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PÓS-GRADUAÇÃO EM GESTÃO AUTÁRQUICA E MODERNIZAÇÃO: OS NOVOS

DESAFIOS DO PODER LOCAL

Unidade Curricular Municipalismo e Poder Local

PARTE I – EVOLUÇÃO DO PODER LOCAL: DOS FORAIS AO LIBERALISMO

Professor: Mário do Carmo


Unidade Curricular – Unidade Curricular Municipalismo e Poder Local
P ARTE I – EVOLUÇÃO DO P ODER L OCAL : DOS FORAIS AO L IBERALISMO

“ Não me envergonha confessar não saber o que ignoro. “

(Cícero, in Tusculas)

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Índice

Nota Prévia………………………………………………………………………………………………………………………………………….. …3

CAPÍTULO I - A SOCIEDADE LOCAL E OS SEUS PROTAGONISTAS………………………………………………………..…..18

1. Organização Social e Instituições dos Povos Primitivos da Lusitânica………………………………………..……18

1.1. Domínio Romano ……………………………………………………………………………………………………………….…….19

1.2. Domínio Germânico …………………………………………………………………………………………………..……………..31

1.3. Domínio Muçulmano……………………………………………………………………………………….….………..................34

2. Monarquia Leonesa e Condado Portucalense…………………………………………………………………….………….….36

3. Feudalismo ou Senhorialismo?.....................................................................................................................................38

4. A Sociedade Portuguesa no Primeiro Século da Independência…………………………………….........................42

5. Consolidação do Estado Português (1248-1495)………………………………………………………………………..…..…55

6. Da Revolução de 1383 até ao fim do reinado de D. João II ( 1383-1495)……………………………..…………....60

CAPÍTULO II - O CENTRAL, O LOCAL E O INEXISTENTE REGIONAL …………………………………………………………93

1. Agentes e Dinâmicas do Centro: A Monarquia e seus Dispositivos Institucionais……………………………..94

2. A Representação do Reino. A Debilidade dos Corpos Intermédios e o Inexistente Regional................107

CAPÍTULO III -O ESPAÇO POLÍTICO E SOCIAL LOCAL…………………………………………………………………………….118

1. As Câmaras no Equilíbrio dos Poderes: Funções Sociais e Dinâmicas Locais…………………………………..118

2. As Misericórdias e os Poderes Locais…………………………………………………………………………………………….…128

3. Práticas do Poder Senhorial à Escala Local e Regional (Fins do Século XV a 1640)…………………….……132

4. O Declínio do Poder Senhorial: Câmaras e Donatários (1640-1832)………………………………………..…..….139

5. As Elites Locais…………………………………………………………………………………………………………………………………145

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Nota Prévia

Os estudos sobre a história dos municípios no período moderno verificaram-se em Portugal com
considerável atraso em relação a outros países. De facto, foi apenas uma historiografia muito recente,
datada sobretudo dos anos 80, que veio pôr frontalmente em causa as ideias recebidas e sucessivamente
retomadas do pensamento oitocentista sobre o tema, designadamente o paradigma da centralização
contínua e interminável.
1
Se nos trabalhos de António Hespanha se fez a crítica insistente da ideia da centralização precoce e da
projeção retrospetiva da noção contemporânea de Estado, foi sobretudo nas obras de Joaquim Romero
Magalhães que se acentuou a vitalidade e autonomia dos corpos políticos locais, associada diretamente à
2
sua natureza oligárquica . Os dois autores citados contribuíram para desencadear uma viragem
historiográfica cuja importância se traduziu não apenas numa mudança das conceções hegemónicas, mas
também na proliferação de trabalhos monográficos, que se estendem do Minho3 às ilhas atlânticas 4, entre
muitas outras contribuições publicadas ao longo da última década.

Na sequência dos trabalhos antes citados, a renovação da história dos municípios portugueses teve como
um dos seus tópicos essenciais a análise das oligarquias camarárias. Com efeito, a vitalidade que se foi
reconhecendo aos poderes municipais no Antigo Regime não parecia dissociável do processo de formação,
iniciado ainda na Idade Média, desses grupos «procedentes do estrato dos homens bons que comandam os
concelhos [...] vão ter o exclusivo da administração municipal e vão formar [...] aquilo que se chama 'gente
nobre da governança da terra'» 5 .

Esta categoria social, que não deve confundir- se com a antiga fidalguia, estaria já configurada «em meados
do século XVII», quando «a cristalização oligárquico-aristocrática chega ao seu termo» 6, prolongando-se por

1
Cf., por todos, António Manuel Hespanha, As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal — Séc XVII, 2 vols., Lisboa, 1986.
2
Cf., entre outros, Joaquim Romero Magalhães, O Algarve Económico 1600-1773 (tese mimeo., 1984), Lisboa, 1988, «Reflexões sobre a estrutura
municipal portuguesa e a sociedade colonial portuguesa», in Revista de História Económica e Social, n.° 16, 1986, e «A sociedade portuguesa, séculos
XVII e XVIII», in M. E. C. Ferreira (coord.), Reflexões sobre a História e a Cultura Portuguesas, Lisboa, 1986, Maria Helena Coelho e Joaquim Romero
Magalhães, O Poder Concelhio: das Origens às Cortes Constituintes, Coimbra, 1986, e J. Romero Magalhães, «As estruturas sociais de enquadramento
da economia portuguesa de antigo regime: os concelhos», in Notas Económicas, n.° 4, 1994.
3
Cf. os trabalhos de José V. Capela, Entre-Douro e Minho 1750-1830. Finanças. Administração e Bloqueamentos Estruturais no Portugal Moderno
(tese mimeo.), Braga, 3 vols., 1987, A Câmara, A Nobreza e o Povo de Barcelos, sep. Barcellos Revista, vol. III, n.° 1, 1989, «Braga um município fidalgo
— as lutas pelo controlo da câmara entre 1750 e 1834», in Estudos do Noroeste, n.° 2, 1989, O Município de Braga de 1750 a 1834. O Governo e a
Administração Económica e Financeira, Braga, 1991, e O Minho e os Seus Municípios. Estudos Económico-Administrativos sobre o Município Português
nos Horizontes da Reforma Liberal, Braga, 1995.
4
Cf., entre outras, várias contribuições a colóquios publicadas em Atas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1989, Os Açores e
o Atlântico (Século XVI- -XVII), Angra do Heroísmo, 1983, Os Açores e as Dinâmicas do Atlântico, Angra do Heroísmo, 1989, e ainda Avelino Freitas de
Menezes, Os Açores nas Encruzilhadas de Setecentos (1740-1770), in, Poderes e Instituições, Ponta Delgada, 1993, e José Damião Rodrigues, Poder
Municipal e Oligarquias Urbanas: Ponta Delgada no Século XVII, Ponta Delgada, 1994. De facto, a importância dos municípios no espaço colonial
desde há muito que tinha sido destacada, designadamente, por Charles Boxer, Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa,
Macao, Bahia and Luanda, Madison, 1965.
5
Joaquim Romero Magalhães, «A sociedade portuguesa, séculos XVI-XVIII», cit., p. 151.
6
Idem, O Algarve Económico..., p. 328.

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todo o período subsequente. De resto, o encerramento da referida categoria social acompanharia


cronologicamente outros processos análogos na sociedade portuguesa. Partindo de perspetivas similares, os
estudos sobre história municipal constituem hoje um dos sectores mais ativos da historiografia portuguesa,
com ênfase especial no século XVIII, incluindo alguns relevantes centros urbanos.

As tendências oligárquicas e o acentuar da tutela das monarquias sobre as cidades caracterizaram, em geral,
a Europa moderna. No entanto, importa não esquecer que a maioria das cidades era governada por elites
recrutadas em grupos corporativos, cuja base medieval era mercantil ou burocrática, tanto quando se
mantinha a elegibilidade dentro de um universo corporativo como quando se tratava de ofícios
patrimonializados e hereditários. Mesmo nos casos em que o desempenho de tais cargos nobilitava, as
oligarquias urbanas não coincidiam, em regra, com as elites aristocráticas fundiárias, embora a tendência
fosse sempre para que as diferenças se atenuassem.

E, se os municípios castelhanos apresentavam grandes semelhanças com os portugueses, apesar da sua


diversidade e da regra maioritária da «metade dos ofícios» para nobres 7, a frequente venalidade dos
respetivos cargos fazia com que em muitos centros urbanos, designadamente em Madrid, a oligarquia
urbana dos proprietários do ofício de regedor não coincidisse com o topo da pirâmide nobiliárquica 8.

As questões antes colocadas, bem como outras realçadas em estudos precedentes 9, conduzem-me, assim, a
apresentar as principais características da organização municipal portuguesa do Antigo Regime.

A grande uniformidade institucional. Não obstante as diferenças resultantes da existência ou não da


presidência dos juízes de fora e/ou da confirmação senhorial 10 , todas as câmaras do território continental e
insular português (com exceção da de Lisboa, nomeada pela coroa) estavam sujeitas, desde a viragem do
século XV para o século XVI, a normas gerais quanto às suas competências e à eleição das vereações,
situação praticamente sem paralelo num território com a dimensão do reino de Portugal e Algarves 11 .

7
Cf., entre outros, Antonio Dominguez Ortiz, Las Classes Privilegiadas en Ia España dei Antiguo Régimen, Madrid, 1973, pp. 121 e segs., Sociedad y
Estado en el Siglo XVIII, Barcelona, 1976, pp. 454-475, e várias das contribuições publicadas in Martine Lambert-Gorges (ed.), Les élites locales et
l`État dans l`Espagne moderne du XVI au XIX siècle, Paris, 1993.
8
«El término oligarquia urbana se emplea habitualmente para denotar que el grupo que controla el gobierno local no coincide estrictamente con la
nobleza titulada, aunque comparta rasgos marcadamente nobiliarios.» [Mauro Hernández, A Ia Sombra de Ia Corona. Poder y Oligarquia Urbana
(Madrid, 1606-1808), Madrid, 1996, p. XVIIL.
9
Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Concelhos e comunidades», in História de Portugal, dir. de José Mattoso, 4.° vol., O Antigo Regime (1620-1807), coord,
de António M. Hespanha, Lisboa, 1993, pp. 303-331, e idem (coord.), «Os poderes locais no antigo regime», parte I de César Oliveira (dir.), História
dos Municípios e do Poder Local, Lisboa, 1996, pp. 16-175.
10
Embora tivesse aumentado de 79 em 1640 para 168 em 1811 o número de concelhos presididos por um juiz de fora/magistrado letrado (bacharéis
nomeados pela coroa ou pelos senhores), a verdade é que nesta última data existiam apenas em um quinto de um total 841 municípios. Nos
restantes, a presidência da câmara e o inerente exercício da jurisdição em primeira instância competia aos juízes ordinários, eleitos de entre a gente
da «governança» (cf. Nuno G. Monteiro, «Os poderes...», pp. 83-85). Quanto às câmaras confirmadas por senhores leigos e eclesiásticos,
representavam 54,5% do total em 1527-1532 e subiram em número até 1640 (57,6% do total), mas desceram depois de forma apreciável, alcançando
apenas 30,4% do total em 1811 (id., ibid., p. 52).
11
Em resultado da publicação das Ordenações do reino (impressão de 1512-1514), da reforma manuelina dos forais e da multiplicação das
magistraturas régias. Apesar de também aí se detetar uma tendência para a uniformidade, os municípios castelhanos regulavam-se pelas suas
específicas ordenanças constituintes de governo [cf., por exemplo, Concepción de Castro, La Revolución Liberal y los Municípios Españoles (1812-
1868), Madrid, 1979, pp. 22-56, e Angeles Hijano, El Pequeno Poder. El Município en Ia Corona de Castília: Siglos XV al XIX (prólogo de Miguel Artola),
Madrid, 1992].

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A existência de aldeias com estatuto similar ao de cidades. Embora quase todos os centros urbanos mais
importantes controlassem vastos termos, por vezes com mais de uma centena de paróquias, a verdade é
que, uma vez elevada à dignidade municipal, qualquer povoação com algumas dezenas de fogos e habitantes
passava a ter uma câmara com as competências idênticas às de um centro urbano. Mais de metade das
câmaras portuguesas tinham menos de 400 fogos.

A ausência de ofícios honoráveis (de juiz ou vereador) hereditários ou corporativos. Ao contrário de Castela,
a venda de ofícios municipais em Portugal, que foi quantitativamente importante, não abrangeu esses
ofícios maiores, mas apenas outro oficialato municipal (sobretudo escrivães e juízes dos órfãos), para além
de outras instituições locais não dependentes das câmaras, como as alfândegas 12. De resto, o único ofício
controlado por organismos corporativos era o de procurador dos mesteres em centros urbanos, como Lisboa
13
e outros, para além da situação excecional do vereador pela Universidade na Câmara de Coimbra 14.

Em parte pelo que antes se referiu, verifica-se em Portugal uma maior tutela da coroa sobre a composição
das câmaras, uma vez que, depois do início de Setecentos, os corregedores e o Desembargo do Paço
(tribunal central de graça de justiça) tutelavam diretamente a eleição da maior parte delas. Em sentido
inverso, pode falar-se de uma maior autonomia corrente das câmaras, designadamente em matéria de
justiça, tanto mais que os vereadores podiam substituir os juízes na sua ausência (chamando-se então
«juízes pela ordenação»).

A coincidência entre os mais nobres e os elegíveis para vereadores (e juízes) camarários. Tal facto decorre
do facto de a base da constituição das câmaras ser geral e eletiva, pois que o perfil definido pela ordem
jurídica prevalecente exigia que os elegíveis fossem recrutados de entre os mais nobres e «principais» das
diversas terras. Consequentemente, poder-se-á supor que as «oligarquias municipais» não se diferenciavam
das elites sociais locais. Uma implicação direta desse facto era a raridade de centros urbanos importantes
administrados por elites mercantis. Outra pode reputar-se bastante relevante no plano empírico: pelo que
antes se disse, as relações dos elegíveis (os chamados «arrolamentos») fornecem-nos também, em princípio,
a identificação dos mais nobres de cada terra. Constituem por isso, apesar das limitações que adiante se
apresentarão, uma fonte inestimável.

Por fim, deve sublinhar-se que não havia em Portugal autênticas capitais provinciais. As câmaras limitavam-
se a tutelar o territórios dos seus termos, e não existiam quaisquer instituições corporativas de âmbito
supraconcelhio. Uma sede de comarca ou de provedoria era apenas o local de assistência de um magistrado

12
Cf., entre outros, Francisco Ribeiro da Silva, «Venalidade e hereditariedade dos ofícios públicos em Portugal nos séculos XVI e XVII», in Revista de
História, Vol. VII, 1988, pp. 203- -213. Na verdade, os ofícios venais em Portugal nunca foram, ao contrário dos casos francês e castelhano, ofícios
superiores nobilitantes, mas sim ofícios camarários e na fazenda. Mas a verdade é que não foram todos suprimidos pela legislação pombalina de
1770, subsistindo em certos casos, designadamente ao nível camarário, até 1834.
13
Cf., sobre a peculiar organização municipal de Lisboa até 1834, Paulo Jorge A. Fernandes, As Faces de Proteu. Elites Urbanas e Poder Municipal em
Lisboa de Finais do Século XVIII a 1851 (dissertação de mestrado mimeo.), Lisboa, 1997, pp. 16-128.
14
Cf. Sérgio Cunha Soares, «Os vereadores da universidade na câmara de Coimbra (1640- -1777)», in Revista Portuguesa de História, t. XXVI, 1991, pp.
45-80.

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régio (o corregedor ou provedor) com competências sobre um território de diversos concelhos, mas sem
nenhuma dependência de instituições locais ou regionais 15.

Nuno Gonçalo Monteiro parece-lhe discutível a designação genérica de «oligarquias camarárias» para falar
16
dos oficiais camaristas, preferindo o termo mais inócuo e mais ambivalente de elites . Importa apontar
brevemente as razões que fundamentam este juízo.

Em primeiro lugar, porque se trata em boa medida de uma tautologia. Foi a própria legislação da monarquia
portuguesa a reconhecer o papel de liderança local que cabia às «pessoas principais das terras» (1570), aos
«melhores dos lugares» (1603, Ordenações), aos «melhores da terra» (1618), às «pessoas da melhor
nobreza» (1709), reservando-lhes os «principais ofícios da República» nas diversas povoações do reino 17, ou
seja, os ofícios honorários das câmaras e os postos superiores das ordenanças (cf. adiante). De resto, são
hoje bem conhecidas as etapas através das quais se foi consagrando nos planos legislativo e institucional,
entre finais da Idade Média e meados do século XVII, a crescente elitização da vida camarária, corrigindo-se
e acrescentando-se o que se estabelecia nas Ordenações do reino 18.

A melhor síntese construída sobre a historiografia do municipalismo deve-se a Maria Helena da Cruz Coelho
19
. A temática concelhia, ainda que sob diversas ideologias e contextos, foi sempre prendendo os estudiosos
da História e do Direito. Dois séculos atrás, pontificou Alexandre Herculano que, defendendo a
descentralização política e administrativa, e pugnando pelo reforço do poder local, se voltou para o passado,
para os séculos áureos da génese concelhia, querendo ver neles o que de melhor projetava para o seu
20
tempo, a defesa da liberdade individual, da propriedade fundiária e do espírito democrático .
Posteriormente, no ideário corporativista do Estado Novo, os concelhos apresentaram-se também como
instituições fundamentais na concretização do Estado-Nação, assumindo-se então como elos da sua cadeia
centralizadora, não se descurando por isso as análises das suas etapas históricas.

15
Cf., sobre esta marca peculiar da monarquia portuguesa, Nuno G. Monteiro, «O central, o local e o inexistente regional», in idem (coord.), «Os
poderes locais...», pp. 79 e segs.
16
Cf. as observações de Rui Santos, «Senhores da terra, senhores da vila: elites e poderes locais em Mértola no século XVIII», in Análise Social, n.°
121, 1993, pp. 367-368, e também Mauro Hernandez, «El cierra del las oligarquias urbanas en la Castilla moderna...», in Revista Internacional de
Sociologia, vol. 47, 1987, pp. 186-187.
17
Uma discussão, de resto pioneira, da noção de principalidade pode encontrar-se em Nuno Daupias d'Alcochete, Principalidade (sep. de Armas e
Troféus, t. VII, n.º 1), Braga, 1966.
18
Cf., entre outros, Maria Helena Coelho e J. Romero Magalhães, ob. cit, António P. Manique, «Processos eleitorais e oligarquias municipais nos fins
do Antigo Regime», in Arqueologia do Estado. 1.as Jornadas sobre Formas de Organização e Exercício dos Poderes na Europa do Sul, Lisboa, 1988, J.
Romero Magalhães, «As estruturas sociais de enquadramento»..., cit., onde se introduzem algumas retificações à cronologia desse processo, e Sérgio
Cunha Soares, O Município de Coimbra da Restauração ao Pombalismo. Poder e Poderosos na Idade Moderna, dissertação de doutoramento mimeo,
Coimbra, 1995, vol. 2, pp. 1479-1482, nota 97.
19
Comunicação foi apresentada na II Semana de Estudos Medievais sobre “Historiadores e Jurishistoriadores: a identidade e a diferença (Estados,
Instituições, Poderes, Saberes: Portugal, sécs. XII-XVIII), promovida pelo Instituto de Documentação Histórica da Faculdade de Letras do Porto, que
teve lugar em Novembro de 2002. Não tendo sido publicada até então, apresenta-se agora com as necessárias adaptações e atualizações.
20
Alexandre Herculano, 1983. Todo o volume quarto, correspondendo ao livro VIII da divisão da obra por Herculano, é dedicado ao estudo das
origens, tipologias, oficiais e direitos e deveres dos vizinhos dos concelhos.

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À cabeça destes estudos, Maria Helena da Cruz Coelho 21, no âmbito do Direito, pensa em Marcelo Caetano
22 23
, e, pela História, em Torquato de Sousa Soares . Depois da Revolução de Abril, de novo o poder local,
agora suporte político do Estado Democrático que se queria concretizar, se impôs na ordem do dia das
reformas a encetar, como não menos envolveu os historiadores, também eles cidadãos comprometidos com
o seu tempo 24. O contínuo dos estudos sobre os municípios, levados a cabo sob estes diferentes contextos e
ideologias, foram iluminando multifacetadamente a instituição concelhia, uma das que sempre melhor se
conheceu no âmbito da administração portuguesa.

Depois de 1974 importa ainda destacar o particular interesse com que os municípios acolheram a história do
seu passado, promovendo diversos encontros científicos e publicando as respetivas atas ou apoiando a
25
publicação de fontes, o que impulsionou o dinamismo dos historiadores . Mas estes receberam também,
por parte das Universidades, um enorme estímulo Fruto deste renovado interesse pelo municipalismo,
muito se progrediu na edição dos principais corpus documentais municipais dos séculos XIV e XV que se
corporizam nas vereações, havendo sido continuadas as do Porto, e publicadas as de Loulé, Montemor-o-
Novo e Funchal, para além de alguns fragmentos de outras 26.

Mas terá ainda que mais se avançar, pois, no nosso entender, todos os livros de vereação deviam ser
publicados, e tanto os de Quatrocentos como os de Quinhentos, sobre os quais já alguns estudos se
realizaram, uma vez que a sua massa informativa e possibilidade de estudo ultrapassa mesmo o
municipalismo para servir a história económica, social, política e cultural. Aguardam também ainda uma
publicação sistemática os livros de receitas e despesas que existem para o Porto e Loulé, igualmente fontes
riquíssimas.

Numa outra vertente, e revendo-se nas suas mais antigas memórias, as Câmaras têm vindo a editar os seus
forais, dos medievais aos manuelinos, no geral precedidos de análises históricas, produção relevante que
muito tem incentivado os medievalistas ao estudo do municipalismo 27.

O vigor da história social, que emergiu depois de Abril, fez conhecer de mais perto os perfis dos dominantes
por dentro das comunidades concelhias, ao mesmo tempo que se evidenciavam múltiplos aspetos do seu

21
«O Poder Concelhio em tempos Medievais -o deve e “ haver historiográfico”, in Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, III Série,
vol. 7, 2006 pp. 19-34.
22
Marcelo Caetano, História do Direito Português(1140-1495), Editorial Verbo, 1985, CAETANO, 1951a (republicado em 1990); CAETANO, 1963
(refundido e republicado em 1981);CAETANO, 1951b;CAETANO, 1953 (os dois últimos republicados em “A Crise Nacional de 1383-1385. Subsídios
para o seu estudo”, Lisboa, Verbo, s.d.).
23
SOARES, 1931; SOARES, 1935.
24
Se um balanço dos mesmos se quiser empreender, pode recorrer-se à obra Repertório Bibliográfico da Historiografia Portuguesa. 1974-1994,
Coimbra, Faculdade de Letras - Instituto Camões, 1995.
25
Depois desta data muitos outros se realizaram , por exemplo, na Guarda em 2000 e em Idanha-a-Velha em 2005.
26
Sobre a sua publicação veja-se José Marques; COELHO, Maria Helena da Cruz; HOMEM, Armando Luís de Carvalho Homem, 2000 - Diplomatique
municipale portugaise (XIIIe-XVe siècles) in La Diplomatique urbaine en Europe au Moyen Âge. Actes du Congrès de la Commission Internationale de
Diplomatique, Gand, 25-29, août 1998”, publiées para W. Prevenier e Th. de Hemptine, Louvain/ Apeldoom, Garant, p. 281- 305.
27
Entre outros, Maria Helena da Cruz Coelho, Memórias municipais da Guarda in COELHO, Maria Helena da Cruz; MORUJÃO, Maria do Rosário
Barbosa - Forais e Foros da Guarda, Guarda, 1999, Câmara Municipal, p. 21-28; Maria Helena da Cruz Coelho, 2002 - Forais de Montemor-o-Velho,
Montemor-o-Velho, Câmara Municipal,2002.Nestes trabalhos se referem muitos mais de diferentes autores - com destaque para José Marques – que
têm publicado estas fontes.

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tecido e estrutura económica. E nem mesmo a nova referência da história das ideias e das mentalidades
deixou de invadir o seu campo de análise, ponderando-se o valor simbólico das suas festividades e
atentando-se nos agentes, sinais da sua memória escrita e material.

Pormenorizando um pouco mais este conspecto geral dividamos, embora sem rigidez e sempre um pouco
artificialmente, a história concelhia em dois momentos – o da estruturação do Portugal concelhio, dos finais
do século XI aos inícios do XIV, e o da sua maturação correspondendo aos séculos XIV e XV.

No estudo da implantação da rede concelhia inovou consideravelmente José Mattoso ao estruturar a


identificação do país que é Portugal na oposição entre a sociedade senhorial e feudal e os centros
concelhios, evidenciando como nesta dialética de poderes e viveres se consolidou um território e uma
população.

Com detalhe foi então pensando as raízes dessas comunidades em povoados castrejos, aldeias ou centros
moçárabes, como depois as suas permeabilizações à civilização urbana muçulmana, e matizou as
espacialidades em que se implantaram, de pendor mais rural ou urbano, mais litorâneo ou fronteiriço, de
matriz cristã ou de longa influência islamita.
28 29
Não menos terão sido importantes os estudos de história rural que Robert Durand e Cruz Coelho
realizaram, atentando na formação de comunidades rurais a partir dos contratos agrários coletivos ad
populandum e ad laborandum e na modelação, por dentro de um viver em comum, dos seus objetivos
estratégicos, dos seus direitos e deveres e das suas solidariedades agrárias, judiciárias, fiscais e religiosas.
Mas disseminando-se pelo espaço, em séculos de Reconquista, tanto senhorios como concelhos – concelhos
30
que para alguns se podem tomar como verdadeiros “senhorios coletivos” – terão ainda de se precisar
melhor, nos contornos das implantações, intersecções e intercorrências dos poderes senhorial e concelhio,
concretizadas no controlo e domínio de terras e homens.

Por sua vez, no âmbito da análise das cartas que de direito reconhecem os concelhos, os ditos forais ou foros
breves, cremos que a tese de mestrado de Matos Reis, seguindo ainda na linha das tipologias foraleiras,
prestou um significativo serviço ao agrupar diacronicamente certas famílias de forais e ao pormenorizar, em
minuciosos quadros, a sua especificidade tributária, económica e penal 31.

28
Robert Durand- Les campagnes portugaises entre Douro et Tâge aux XIIe et XIIIe siècles, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian-Centro Cultural
Português, 1982, p. 131-168.
29
Maria Helena da Cruz Coelho, - O Baixo Mondego nos finais da Idade Média, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, Vol. I.: 41-69; Idem,
“Contestação e resistência dos que vivem da terra” in “Homens, Espaços e Poderes. Séculos XI-XVI”, I, “Notas do Viver Social”, Lisboa, Livros
Horizonte, 1990c: 23-36.
30
António Manuel Hespanha, História das Instituições. Épocas Medieval e Moderna, Coimbra, Livraria Almedina, 1982: 153, refere: “os concelhos
constituíam, assim, autênticos senhorios coletivos com atribuições de poderes públicos equivalentes aos dos nobres”. Mas logo a seguir explica que a
participação nas assembleias concelhias, bem como o direito de voto na eleição dos magistrados locais, cabia aos moradores mais ricos, o que desde
logo condiciona o “coletivismo” das decisões e do exercício do poder.
31
António Matos Reis, Origens dos Municípios Portugueses, Lisboa, Livros Horizonte, 1991.

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No mesmo sentido se encaminhou a sua dissertação de doutoramento, retomando, em parte, esta


metodologia, mas alongando-a na sua temporalidade por toda a primeira dinastia26. Pensamos também que
com a síntese que elaborámos para o volume terceiro da Nova História de Portugal se pode agora
perspetivar mais facilmente, no tempo e no espaço, a progressão do movimento concelhio e ajuizar do seu
papel na afirmação do reino de Portugal 32. E, como atrás referimos, não será de somenos entrar em linha de
conta com as múltiplas monografias e edições de forais que, por todo o país, as câmaras têm vindo a
promover.

Falando deste tipo de documentos, julgamos que seria ainda de interesse que, à luz da História e do Direito,
se matizassem um pouco mais as identidades ou diferenças entre cartas de povoamento e forais, sobretudo
daqueles que Herculano diz darem origem a concelhos rudimentares ou Torquato de Sousa Soares a
concelhos rurais, pois as indefinições permanecem ou, perguntamo-nos, terão mesmo de permanecer?

Por outro lado, diremos que os foros e costumes ou os ditos foros longos pouco têm merecido a atenção de
historiadores e jurishistoriadores. À parte o excelente estudo linguístico de Lindley Cintra sobre os foros de
33
Riba Coa , todos temos estado um pouco mudos. Quando tivemos necessidade de “voar” sobre os
costumes da Guarda 34, tomámos verdadeiramente consciência dessa lacuna. E ao relermos as Histórias do
Direito ou das Instituições 35, sentimos que os desafios são interpelantes. Dizem quase todos os juristas que
tais foros constituem uma mescla de normas de direito político e administrativo, normas de direito privado,
direitos reais, direito da família e sucessões, normas de direito penal e de processo 36. Logo, pensamos que
seria um ótimo trabalho o esclarecimento jurídico mais detalhado de cada um destes aspetos em particular,
no clausulado normativo. Mais nos dizem os manuais de História do Direito que estes foros provém
combinatoriamente de preceitos consuetudinários, de sentenças de juízes arbitrais ou de juízes concelhios,
de opiniões de juristas, de posturas municipais e de normas jurídicas inovadoras de natureza legislativa,
sendo portanto de distinguir, como pretende Marcelo Caetano, o que neles há de costumes municipais ou
de códigos já sistematizados. Tal linha de investigação parece-nos muito promissora, devendo ser
prioritariamente aclarada pelos especialistas de História do Direito, para que depois se desenvolva, com
fundamentação e novidade, uma reflexão histórica mais ampla sobre o conteúdo destas ricas fontes.

32
Maria Helena da Cruz Coelho, Concelhos in ”Portugal em Definição de Fronteiras. Do Condado Portucalense à crise do século XIV”, coordenção de
Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem, vol. III de “Nova História de Portugal”, dir. de Joel Serrão e A.H. de Oliveira
Marques, Lisboa, Editorial Presença, 1996.: 554-584.
33
Luís Filipe Lindley Cintra, A linguagem dos foros de Castelo Rodrigo. Seu confronto com a dos foros de Alfaiates, Castelo Bom, Castelo Melhor, Coria,
Cáceres e Usagre. Contribuição para o estudo do leonês e do galego-português do século XIII, 2ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984 .
34
Maria Helena da Cruz Coelho, Memórias municipais da Guarda in Maria Helena da Cruz Coelho ; Maria do Rosário Barbosa Morujão ,Forais e Foros
da Guarda, Guarda, Câmara Municipal, 1999, pp. 21-28.
35
Referimo-nos à obras de Marcelo Caetano, História do Direito Português (1140-1495), Lisboa, S. Paulo, Editorial Verbo, 1981; Ruy de Albuquerque ;
Martim Albuquerque, História do Direito Português, vol. (1140-1415), 1ª parte, 10ª ed., Lisboa, 1999; Mário Júlio de Almeida Costa, História do
Direito Português, 3ª ed., Coimbra, Almedina.1996; António Manuel Hespanha, História das Instituições. Épocas Medieva l e Moderna, Coimbra,
Livraria Almedina, 1982.
36
Mário Júlio de Almeida Costa, História do Direito Português, 3ª ed., Coimbra, Almedina.1996: 261; Marcelo Caetano, História do Direito Português
(1140-1495), Lisboa, S. Paulo, Editorial Verbo, 1981: 233; Ruy de Albuquerque ; Martim Albuquerque, História do Direito Português, vol. (1140-1415),
1ª parte, 10ª ed., Lisboa, 1999: 202; Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, História do Direito Português. Fontes de Direito, 2 ª ed., Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1991: 148-151.

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O segundo momento do percurso medieval do poder concelhio, aquele em que convergem sobre os
municípios forças externas de controlo régio e forças internas de especialização, elitismo e governo
aristocrático, que menos se opõem e mais se combinam e interpenetram.

Os Historiadores têm avançado neste campo, com rigor e capacidade reflexiva. E para alguém como nós que,
juntamente com Joaquim Romero Magalhães, em 1986, lançávamos no ar mais hipóteses que certezas
fundamentadas, numa análise social do poder local, é-nos muito grato deparar com esta frutuosa produção
37
científica .

Se os Historiadores do Direito se prenderam aos cargos, iluminando-nos o aparecimento do novo


funcionalismo, detalhando os seus enquadramentos legais e funcionais e a sua génese e evolução, os
Historiadores atentaram nos homens. Com uma incidência social muito vincada, ensaiaram novas
metodologias e aplicaram aos dirigentes do poder local o método prosopográfico para analisar carreiras,
definir perfis políticos e sociais e percecionar objetivos e estratégias.
38
Trabalho inovador foi o de Adelaide Costa que, na senda do seu Mestre Carvalho Homem, que havia
39
utilizado o método prosopográfico no estudo dos homens do Desembargo Régio ,o decidiu aplicar aos
governantes do Porto nos finais do século XV. Estudou carreiras, mandatos e tempos de estadia no poder e
condensou em fichas prosopográficas uma massa de informação preciosa para os historiadores do
municipalismo.

Esta linha de investigação das elites dirigentes tornou-se muito apelativa. Conheceram-se homens, famílias e
linhagens detentores dos vários poderes locais e evidenciaram-se os mecanismos de ascensão e
permanência nessa liderança. Tornou-se evidente que as elites das sociedades urbanas, de interesses e
feição aristocráticos, se sintonizavam com a política mais controladora e centralista dos monarcas nos
séculos finais medievais, colaborando na arrecadação dos impostos e recrutamento de homens, elementos
40
que suportavam um Estado de Finanças e de Guerra como era o de Quatrocentos . Humberto Baquero
Moreno, historiador de grande sensibilidade para o social, é autor de muitos estudos pioneiros sobre a
presença dos concelhos em Cortes 41.

37
Maria Helena da Cruz Coelho; Joaquim Romero Magalhães, O Poder Concelhio. Das origens às Cortes Constituintes. Notas de História Social,
Coimbra, Centro de Estudos de Formação Autárquica, 1986.
38
Adelaide Lopes Pereira Millan da Costa, “Vereação” e “Vereadores”. O governo do Porto em finais do século XV, Porto, Câmara Municipal, 1993.
39
Armando Luís de Carvalho Homem, O Desembargo Régio (1320-1433), Porto, Instituto Nacional de Investigação Científica - Centro de História da
Universidade do Porto,1990.
40
Maria Helena da Cruz Coelho, 1999b - O Estado e as Sociedades Urbanas in “A Génese do Estado Moderno no Portugal Tardo-Medievo”, coord. de
Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem, Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, p. 269-292; Miguel Martins, A família
Palhavã (1253-1357). Elementos para o estudo das elites dirigentes de Lisboa medieval. “Revista Portuguesa de História”, XXXII, Coimbra, 1997-1998,
p. 35-93.; Miguel Martins, Estêvão Cibrães e João Esteves: A família Pão e Água em Lisboa (1269-1324).“Arqueologia e História”, 53, Lisboa,2001, p.
67-74.; Miguel Martins, Os Alvernazes. Um percurso familiar e institucional entre finais de Duzentos e inícios de Quatrocentos. “Cadernos do Arquivo
Municipal”, 6, 2002, p. 10-43.
41
Veja-se a bibliografia do autor referida no Repertório Bibliográfico da Historiografia Portuguesa. Mas a título de amostragem refiram-se os estudos
Humberto Baquero Moreno, 1989a - O concelho de Beja nas Cortes de Santarém de 1451 a após a sua clausura. “Memória”, 1, Lisboa, p. 267-278;:
Humberto Baquero Moreno, 1989b - A representação do concelho de Caminha junto do poder central em meados do século XV. “Revista da Faculdade
de Letras. História”, 2ª série, 6, Porto, p. 95-104.95-104.

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O diálogo dos concelhos com o poder régio, em Cortes, tem sido uma temática interessante. Ler os capítulos
especiais de Cortes num determinado período é como que abrir “os jornais possíveis dessa época”. E tal
como nestes é necessário atender ao sentido do discurso, também no diálogo do poder local com o central
há que conhecer o perfil daqueles que falam, para compreender as suas estratégias e objetivos; há que estar
atento ao estilo retórico e argumentativo empregue no discurso, que visava convencer para obter; como não
menos há que saber ler no reverso das palavras, quando não nos silêncios, a voz dos que não têm voz nesse
areópago das Cortes. Já cruzámos o método diacrónico – estudo dos capítulos especiais de um concelho ou
42
região em diversas Cortes - com o método sincrónico – estudo de todos os capítulos especiais dos
43
concelhos numa mesma reunião de Cortes – mas acreditamos que se poderá ainda ir mais além
experimentando novas metodologias de abordagem.

Não menos nos parece importante e muito sugestivo perseguir as análises que já têm vindo a ser esboçadas
44
sobre o entrelaçar de carreiras entre os oficiais régios de atuação local e os eleitos do poder local , pois
encontraremos neles significativas ligações pessoais e familiares, que nos remeterão depois para políticas e
objetivos mais afins que antagónicos. Nessa fronteira entre o central e o local se apresenta um cargo ainda
muito desconhecido, esse de regedor, em que os Historiadores pouco se têm fixado e cremos que de entre
os especialistas do Direito só Marcelo Caetano 45 lhe deu atenção.

No contraponto deste enfoque de poderes, uma atenção menor tem sido dedicada aos que não dirigem,
antes são dirigidos. Como já vem sendo repetidamente afirmado e confirmado, a composição social das
elites pode variar num espectro que vai desde uma média e pequena nobreza, a uma aristocracia fundiária
ou de capital ou até a alguns homens do saber, mas nunca ela se abre aos mesteirais. De há muito Marcelo
Caetano atentou nesta problemática46, mas cremos que ainda será possível sopesar um pouco mais o papel
dos mesteirais, atuando como um contrapoder, análise que recentemente esboçámos na comunicação ao
Congresso sobre o poder local em tempos de globalização 47.

Se, com excelentes resultados, o social tem sido percorrido, não se abandonaram as premissas mais
economicistas da vida concelhia. Relevante estudo produziu Iria Gonçalves ao detalhar todas as receitas e
despesas das finanças municipais portuenses no século XV, deixando-nos uma abrangente e concreta visão

42
Maria Helena da Cruz Coelho, O discurso de Guimarães em Cortes in “Actas do 2º Congresso Histórico de Guimarães, vol. 6, História Local”,
Guimarães, Câmara Municipal - Universidade do Minho, 1997. Veja-se ainda a obra, de coautoria, Um cruzamento de fronteiras : a “voz” dos
concelhos da Guarda, a ser publicada pelo Centro de Estudos Ibéricos da Guarda de que já saiu uma primeira abordagem no estudo de COELHO,
Maria Helena da Cruz Coelho; Luís Miguel Repas, As petições dos concelhos do distrito da Guarda em cortes e a política transfronteiriça in Territórios e
Culturas Ibéricas, coord. de Rui Jacinto e Virgílio Bento, Porto, Campo das Letras, 2005,p. 131-147.
43
Maria Helena da Cruz Coelho, 1990d , Relações de Domínio no Portugal Concelhio de meados de Quatrocentos, “Revista Portuguesa de História”, t.
XXV, Coimbra, 1990, p. 235-289.
44
Cite-se o trabalho pioneiro de Maria da Conceição Falcão Ferreira, ”Gerir e Julgar na Idade Média, Subsídios para o estudo dos oficiais públicos”,
Braga, Arquivo Municipal - Câmara Municipal de Guimarães,1993.
45
Marcelo Caetano, História do Direito Português (1140-1495), Lisboa-S. Paulo, Editorial Verbo, 1981.:325.
46
Idem: 498-502.
47
Maria Helena da Cruz Coelho, 2005a - “No palco e nos bastidores do poder local” in O Poder Local em tempo de Globalização. Uma história e um
futuro, Coimbra, Imprensa da Universidade, p. 49-74.: 49-74.

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48
de conjunto sobre o assunto . Só esperamos que outros se interessem pelo tema e estudem e publiquem
os poucos livros de receitas municipais que ainda existem para o século XV, pois as suas rubricas contêm
informações riquíssimas que, como dissemos, muito ultrapassam a história das instituições concelhias.

Outros trabalhos apoiaram-se nas posturas, para averiguarem os ordenamentos municipais sobre higiene e
saúde, sobre regulamentação urbanística, sobre entrepostos comerciais e atividades produtivas,
patenteando a complexidade socioeconómica e político-administrativa da vida urbana 49. As vereações, de
onde estas mesmas posturas muitas vezes se extraem, sustentaram igualmente os mais variados estudos
50
versando sobre a administração, economia e sociedade municipais , como bem o têm demonstrado as
teses de Mestrado produzidas no Porto, sob a orientação do Prof. Baquero Moreno, e que se projetaram
mesmo sobre a centúria de Quinhentos 51 , entre outros estudos 52.

A análise das atas de vereação parece inesgotável e revelaram-se muito esclarecedoras sobre as
comunicações ascendentes, descendentes e horizontais dos municípios, que recorriam a diversas vias, das
terrestres às fluviais e marítimas, e a vários agentes para, em tempo de paz ou de guerra, porem a circular as
mensagens. Mensagens que podiam ser orais, mas, na maior parte dos casos, nos séculos XIV e XV, se
sustentavam já pela escrita. Também os escritos e a escrita dos documentos concelhios surgem como temas
novos a desafiar os estudiosos.

Marcelo Caetano alertava para o papel dos letrados e legistas nesse relevante período de 1383-1385 53, a
pesquisa sobre o percurso e graus universitários de corregedores e juízes terá ainda de continuar e ser até
bem mais aprofundada. Mas cremos que esta temática ampla da produção escrita e dos detentores do saber

48
Iria Gonçalves, As Finanças Municipais do Porto na segunda metade do século XV, Porto, Câmara Municipal, 1987.
49
Entre outros, Iria Gonçalves, Posturas Municipais e Vida Urbana na Baixa Idade Média: o exemplo de Lisboa. “Estudos Medievais”, Porto, 7, 1986,p.
155-172; Maria Ângela Beirante, Relações entre o Homem e a Natureza nas mais antigas posturas da Câmara de Loulé: séculos XIV-XV in “Actas das
1ªs Jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia”, Loulé, Câmara Municipal - Universidade do Algarve, p. 231-242; Maria José Ferro Tavares,
1987, A Política Municipal de Saúde Pública. Séculos XIV-XV. “Revista de História Económica e Social”, Lisboa, 19, p. 17-32.
50
Como, por exemplo, Maria Helena da Cruz Coelho, 1990b - A Mulher e o Trabalho nas Cidades Medievais Portuguesas in “Homens, Espaços e
Poderes. Séculos XI-XVI”, I, “ Notas do Viver Social”, Lisboa, Livros Horizonte, vol. I, p. 37-59.
51
Depois das teses citadas na nota 30 do nosso balanço da historiografia municipal já referido, foram apresentadas posteriormente as seguintes:
Jorge Filipe Pereira de Araújo, 2001 - A Administração Municipal do Porto (1508-1511), Porto, Faculdade de Letras (policopiada).As Cortes e o
Parlamento em Portugal. 750 anos das Cortes de Leiria de 1254. Actas do Congresso Internacional, Lisboa, Divisão de Edições da Assembleia da
República, 2006.; Ana Luísa Bellino Pereira Mendes Matias, 2000 -”O Porto em 1533 - Actas de Vereação da Cidade”, Porto (policopiada) ; Maria
Helena Barbosa Pinto, 2001 - A Vereação Municipal do Porto em 1545, Porto, Faculdade de Letras (policopiada).; Emília Albertina Sá Pereira de
Vasconcelos, 2001 - Vereações na Câmara do Porto no ano de 1548, Porto, Faculdade de Letras, (policopiada).; Edite Rute dos Santos Bentos Soares,
2001 - O Concelho Portucalense em 1551, Porto, Faculdade de Letras (policopiada).; Maria Lúcia de Oliveira Lopes Afonso, 2001 - O Porto segundo o
Livro de Vereações de 1559, Porto, Faculdade de Letras, (policopiada), que inclui a transcrição do Livro 21 de Vereações respeitante a 1559; Paula
Manuela Mourão da Cunha Balsemão, 2002 - Actas de Vereação da Cidade do Porto. Ano de 1537, Porto, Faculdade de Letras (policopiada).; Álvaro
Rodrigues Pinto, 2002 - Vida Quotidiana, Economia e Poder no Porto Segundo as Actas de Vereação de 1539-40, Porto, Faculdade de Letras
(policopiada).
52
Paula Maria de Carvalho Pinto Costa, 2002 - O concelho de Bragança: alguns problemas e desafios tardomedievais. “Cadernos de Estudos
Municipais”, nº 17 (Junho-Dezembro), Braga, Arquivo Distrital de Braga / Universidade do Minho, p. 105-118.; Paula Maria de Carvalho Pinto Costa,
2004/2005 - Bragança medieval no contexto transmontano. A memória legada pelos pergaminhos conservados no Arquivo Distrital de Bragança .
“Brigantia”, vol. XXIV-XXV, nº 1 / 4, Bragança, p. 47-58.
53
Marcelo Caetano, 1953 - O concelho de Lisboa na crise de 1383-1385. “Anais”, 2ª série, vol. 4, Lisboa, Academia Portuguesa da História (republicado
em “A Crise Nacional de 1383-1385. Subsídios para o seu estudo”, Lisboa, Verbo, s.d.).

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no âmbito das circunscrições municipais está a captar investigadores e virá a ser mais bem conhecida dentro
de algum tempo 54.

Tema de convergência entre historiadores e jurishistoriadores deverá ser a investigação a fazer sobre o
estatuto social, a carreira e os conhecimentos dos corregedores que ao longo dos tempos foram escolhidos
pela coroa para o desempenho de funções nas diversas comarcas do reino. Igualmente haverá que precisar a
incidência temporal e espacial da nomeação dos juízes por el-rei, para o que já temos vindo a coligir alguns
dados, e conhecer a sua proveniência social e formação académica, a fim de podermos julgar o impacto
jurídico e intelectual desses agentes régios sobre as comunidades em que atuavam. E os estudos da
sociedade urbana, aspeto que infelizmente foi algo menos contemplado nos trabalhos de história das
cidades e vilas, que tanto se têm desenvolvido, poder-nos-á esclarecer sobre o saber mais empírico ou mais
científico dos oficiais locais de justiça – juízes, advogados, procuradores - e de administração, como os
vereadores 55.

Saber, escrita e escritos conduzem-nos também aos monumenta sustentadores da memória municipal. Os
documentos produzidos e recebidos pelos municípios e guardados em preciosas arcas, de que todos, na
56
época, conheciam o valor, e por isso os inimigos as roubavam ou queimavam em tempo de guerra , têm
também sido encarados sob esta faceta. Como não menos se vem refletindo sobre a sigilografia municipal
57
de rica simbologia . A representação do poder e individualidade dos concelhos passa ainda por outros
marcos personificadores e simbólicos, como os pelourinhos e bandeiras, que, sem serem esquecidos, são de
mais difícil apreensão, dada a escassez dos primeiros que datem de tempos medievais e a inexistência de
qualquer estandarte concelhio ou mesmo de uma sua descrição 58.

Memória material ou memória festiva assumem-se, pois, como património municipal que os historiadores
vêm desvendando. Entradas de reis, príncipes ou gente ilustre na cidade ou vila é tema sempre a relevar no

54
A este propósito salientemos os artigos já publicados de Saul António Gomes, 2005 - Ideologia e representação nas práticas das chancelarias
concelhias medievais portuguesas in “O poder local em tempo de globalização. Uma história e um futuro. Comunicações”, Viseu, Palimage, p. 435-
501; e o já citado Ana Filipa Roldão, 2006 - Preparando as Cortes nos concelhos em 1383: os agentes da escrita Cortes in “As Cortes e o Parlamento
em Portugal. 750 anos das Cortes de Leiria de 1254. Actas do Congresso Internacional”, Lisboa, Divisão de Edições da Assembleia da República,: 229-
243.
55
Ainda sobre a oficialidade – e sem esquecer os clássicos estudos de Marcelo Caetano e Maria Teresa Campos Rodrigues – veja-se o mais recente de
Miguel Martins, 2004 - O concelho de Lisboa durante a Idade Média. Homens e organização municipal (1179-1383). “Cadernos do Arquivo Municipal”,
7, Lisboa, p. 64-110.
56
Como aconteceu em Penamacor, Monsanto e Alter do Chão nas guerras com Castela (Maria Helena da Cruz Coelho , 1990d - Relações de Domínio
no Portugal Concelhio de meados de Quatrocentos, “Revista Portuguesa de História”, t. XXV, Coimbra, 1990, p.266).
57
José Mattoso, 1985 - Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal.1096-1325, vol. I Oposição, Lisboa, Editorial Estampa., p. 379-
380; Maria Helena da Cruz Coelho, 1996 - Concelhos in ”Portugal em Definição de Fronteiras. Do Condado Portucalense à crise do século XIV”,
coordenação de Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem, vol. III de “Nova História de Portugal”, dir. de Joel Serrão e A.H. de
Oliveira Marques, Lisboa, Editorial Presença, p. 563-565; Saul António Gomes, 2005 - Ideologia e representação nas práticas das chancelarias
concelhias medievais portuguesas in “O poder local em tempo de globalização. Uma história e um futuro. Comunicações”, Viseu, Palimage, p. 466-
475. Um estudo, em tendência longa, sobre selos mas também brasões municipais é o de Pedro Sameiro, 1986 - A Heráldica Autárquica em Portugal,
“Almansor-Revista de Cultura”, n. 4, p. 77-117.
58
Todavia, a reprodução e descrição dos pelourinhos que existem no nosso país encontra-se na obra de Eurico de Ataíde Malafaia, 2005 - Pelourinhos
Portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

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59
extraordinário festivo da vida municipal . Acumulam-se-lhe os dias de feira ou romaria 60 63. E a todos
suplanta essa festividade única do corpo municipal que é a festa do Corpo de Deus, iconografia do poder,
das hierarquias e do trabalho nas cidades e vilas portuguesas, que muito tem seduzido os historiadores 61.

O conhecimento da rede concelhia por desmembramento de concelhos ou até pela evolução natural do
desenvolvimento de comunidades que nunca obtiveram carta de foral está ainda muito incompleto. Pouco
definidas se encontram, a vários títulos, desde logo no plano administrativo, a gestão das aldeias dos termos
concelhios e a orgânica sociopolítica dos pequenos concelhos rurais. Interpelante será, ainda, atentar no
diálogo mais pacífico ou conflituoso entre concelhos e senhorios, sobremaneira em áreas de forte
implantação do poder de velhos ou novos senhores. Mais complexo se apresenta, mas por isso mesmo
desafiador de vontades, o estabelecimento de redes de poder e de domínio concelhios, que nos elucidasse
sobre as constelações de pequenos ou médios concelhos dominados por cabeças de concelhos mais
pujantes e absorventes.

Mas o interesse das gerações mais jovens sobre o municipalismo, caldeado com as novas metodologias
interdisciplinares e de história comparada, é a melhor garantia de se rasgarem outros e mais inovadores
horizontes sobre a tão interpelante temática, no ontem como no hoje, da dinâmica, protagonistas e
protagonismos do poder local.

Uma breve passagem pela evolução dos concelhos portugueses confirma que são tão ou mais antigos como
a nossa Nacionalidade. Sabe-se que ao tempo do falecimento de D. Afonso Henriques já existiam em
62
Portugal 54 concelhos, cujos forais chegaram até nós e, destes, 19 eram anteriores à fundação do Reino ,
defendem Castro Caldas e Santos Loureiro. Há forais recolhidos e publicados por Alexandre Herculano, que
são anteriores ao reinado de D. Afonso Henriques. O que significa que poderemos afirmar serem os
concelhos anteriores a esse marco fundamental da nossa História. Para este historiador, a origem dos
municípios deveria buscar-se na tradição hispano-romana, sendo o foral não uma criação do município, mas
uma confirmação duma realidade pré-existente 63. Assim, justifica-se plenamente que a abordagem que
aqui se inicia comece por estas entidades.

Apesar da longa História municipal, não se pode dizer que tenha sido sempre uma história de honras e
glórias. Pelo contrário, pode-se até dizer que é relativamente curto o período em que os municípios tiveram
de facto um papel decisivo na organização do Estado. Esse período é aquele em que por um lado o poder
régio, por não ter capacidade suficiente, não consegue fazer chegar a ação administrativa do poder central a

59
Sobre a temática refira-se o clássico estudo de Ana Maria Alves, s. d. – As entradas régias portuguesas. Uma visão de conjunto, Lisboa, Livros
Horizonte.. e, mais recentemente, sobre Braga, Paula Maria de Carvalho Pinto Costa, 2006 - Das festas religiosas ao luto por D. Sebastião no âmbito
da vereação de Braga (1578) in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Marques, Porto, FLUP, vol. 4, p. 217-231.
60
Em torno das feiras, ao longo dos tempos, se desenvolveu o 3º Encontro de História, promovido pela Câmara Municipal de Vila do Conde, onde
apresentámos um excurso sobre as feiras medievais: COELHO, 2005: 9-30.
61
A título de exemplo vejam-se os estudos de GONÇALVES, 1984/1985: 69-89; SILVA, 1993: 197-217.
62
Eugénio de Castro Caldas & M. De Santos Loureiro e outros (1966), Regiões Homogéneas no Continente Português, p. 75.
63
De acordo com, J. A. Oliveira Rocha , O Futuro da Governação Local, in Economia Pública Regional e Local, (2000), p. 51.

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todo o território e, por outro lado, a “necessidade de estabilização e regulamentação da vida social local
que aconselha a pujança destas entidades para ajudarem a impor a autoridade do Estado perante as classes
privilegiadas. Por vezes e em vários reinados o Rei socorreu-se das gentes dos municípios para as suas
diversas lutas, ora contra a Nobreza, ora contra o Clero.

Reconhecido pela generalidade dos historiadores, o regimento dos corregedores de 1332 é um marco que
assinala o início de uma profunda restrição da autonomia municipal. A partir desta data, de forma
progressiva os juízes ordinários ou da terra vão sendo substituídos pelos juízes de fora parte ou
corregedores.

Como já afirmamos, os concelhos não eram as únicas divisões administrativas existentes nem cobriam todo
o território. O país não estava dividido apenas em concelhos como hoje os conhecemos. A par destes, havia
outras designações oficiais tais como: cidades, vilas, coutos e honras que compunham a organização local.
Figuras que, no entanto, não apresentavam entre si diferenças significativas. Para Nuno G. Monteiro, todo o
Território continental da monarquia portuguesa estava coberto por concelhos, designados oficialmente
como cidades, vilas, concelhos, coutos e honras...65

Algumas terras dependiam diretamente da coroa. Outras e em grande número estavam sujeitas a um regime
senhorial, dependentes então de um nobre ou de uma comunidade religiosa. Eram os coutos e as honras.

Os concelhos eram dirigidos por uma câmara composta por juiz-presidente, vereadores e por um
procurador. Estes representantes, por regra, eram eleitos e confirmados pela administração central da coroa
ou pelo senhor da terra. Aos concelhos cabiam atribuições relevantes que iam da fixação de preços e do
abastecimento em géneros, à aplicação da justiça. A jurisdição em primeira instância, em quase todas as
matérias, feita pelas câmaras era desenvolvida sob atribuições formais semelhantes com as dos juízes das
terras.

Desde a época dos descobrimentos até à revolução liberal, a vida dos concelhos decorreu quase sem
história. As principais competências passaram para os magistrados de nomeação régia, ficando para as
câmaras a gestão de assuntos estritamente locais.

A chegada do regime liberal provoca animadas disputas sobre o poder local e sobre a organização
administrativa do Estado. Com o Estado Novo a Administração local passou a ser simplesmente um
prolongamento da Administração central, a qual nomeava os respetivos titulares dos cargos locais. Após o
25 de Abril, renasce o poder local no nosso país. A eleição dos seus titulares, a descentralização e a
autonomia financeira deram às autarquias locais (municípios) a vitalidade suficiente para que estas

64
José Hermano Saraiva, Evolução Histórica dos Municípios Portugueses, Comunicação apresentada na sede do Centro de Estudos Sociais em
07.11.1956, in Problemas de Administração Local, (1957), p.78.
65
Nuno Gonçalo Monteiro, Os concelhos e as comunidades, in História de Portugal . IV Volume, (1993), Círculo de Leitores, p. 304.

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entidades sejam atualmente responsáveis pela implementação de elevados níveis de qualidade de vida a
muitos cidadãos.

Sendo certo que sempre houve divisões do território (Comarcas, Províncias, Dioceses...), fosse para fins
administrativos, fiscais, religiosos ou militares, estas nunca passaram de simples áreas delimitadas para a
atuação das respetivas burocracias. Não havendo, em geral, qualquer relação de hierarquia ou de domínio
entre os concelhos, também não havia qualquer propósito de aliança permanente de concelhos, sendo
mesmo frequentes os conflitos entre eles.66 Assim, estas divisões nunca surgiam para, em conjunto, os
concelhos manifestarem ou decidirem alguma coisa.

A verdade é que entre o Rei e as câmaras, não se permitiam escalões intermédios, mediações que
enfraqueçam os dois termos da relação (ou algum deles). Por isso não encontramos qualquer realidade
«regional» que agrupe os concelhos com alguma expressão própria, resultante de articulação permanente e
organizada (para já nem referir institucional) entre esses concelhos.. 67

Entre nós nunca houve então, entre o município e a administração central, uma administração intermédia (e
autónoma) que fosse capaz de se afirmar. Exceção para as regiões autónomas dos Açores e da Madeira, cuja
criação surge pela CRP de 76 mas com um estatuto que vai além das prerrogativas que estão previstas para
as regiões administrativas do continente. No entanto, desde sempre se procurou organizar o território
nacional em unidades supramunicipais cujo número não variou muito ao longo dos anos e dos diferentes
regimes políticos 68 exceto com as reformas de Costa Cabral (1842), de João Franco (1895) e Salazar (1926).
No mesmo sentido se manifesta Marcelo Rebelo de Sousa ao afirmar que- da acidentada História
Administrativa portuguesa até 1976, o que se pode inferir é a recorrente procura de uma autarquia local
supra- municipal com escasso êxito 69.
70
De acordo com Freitas do Amaral, desde 1299 que surgem cinco regiões : Antre Douro e Minho, Antre
Douro e Mondego, Beira, Estremadura e Antre Tejo e Odiana. 71Desde muito cedo, do ponto de vista
administrativo, definem-se regiões que auxiliam na articulação do poder central com o poder local. São as
províncias que, de facto, surgem pela primeira vez de uma forma expressa no testamento de D. Dinis, em
1299 72 D. Afonso IV, no século XIV, institui oficialmente seis comarcas: Antre Douro e Minho, Antre Douro e
Mondego, Beira, Estremadura, Antre Tejo e Odiana e Algarve.

66
Maria Helena da Cruz Coelho & Joaquim Romero Magalhães (1986), O Poder Concelhio. das origens às cortes constituintes, p. 35.
67
Idem, p. 34.
68
Manuel Ramires Fernandes (1996), A Problemática da Regionalização, p. 14.
69
Marcelo de Rebelo de Sousa (1999) Lições de Direito Administrativo, p. 386.
70
Até aos fins do século XVI, dizia-se indiferentemente província ou comarca; um século depois, ainda esta palavra aparece, como reminiscência do
passado, mas a primeira acabou por triunfar e foi a única que chegou até nós com o mesmo sentido originário.
71
Diogo Freitas do Amaral(2002), Curso de Direito Administrativo, pp. 522-529, que seguiremos de perto nesta resenha histórica.
72
Cadernos Municipais, n.º 40/41, Janeiro/Abril 1987. Regionalização, Entrevista conduzida por José Manuel Fernandes a José Mattoso, p. 10.

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73
Sete comarcas são referidas na Lei de 30 de Agosto de 1406 , de D. João I: Antre Douro e Minho, Tralos
Montes, Beira, Estremadura, Antre Tejo e Odiana, Além d’Odiana e Reino do Algarve.

Este número reduz-se, em 1572, ao tempo de D. João III, aparecendo seis comarcas no Cadastro da
população do Reino: Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Entre Tejo e Odiana, e Reino
do Algarve.

Até 1640 as seis antigas comarcas, a que se aplica agora a designação de províncias mantêm-se com o mero
significado de unidades histórico - geográficas, destituídas de quaisquer estruturas orgânicas. Cada uma
delas ficou a compreender certo número de novas comarcas denominadas pela cidade ou vila onde residia o
respetivo titular - o corregedor 74.

Após a restauração da independência em 1640, D. João IV converteu a divisão provincial em divisão militar
ao erigir um Governo das Armas em cada província. Deste modo foram as instituições militares que serviram
de elo de ligação entre as comarcas jurídico-administrativas da Idade Média e as províncias que o
Liberalismo iria retomar, embora em novos moldes.

73
Lei sobre Coutos de homiziados.
74
Os corregedores eram comissários régios de funções consagradas em diploma orgânico
específico. Os seus poderes estendiam-se, em particular, à esfera administrativa, judicial, militar e policial com forte cunho fiscalizador e repressivo.

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CAPÍTULO I - A SOCIEDADE LOCAL E OS SEUS PROTAGONISTAS

1. Organização Social e Instituições dos Povos Primitivos da Lusitânica

O território do extremo ocidente ibérico não era habitado exclusivamente por lusitanos, à data da
invasão romana. Outros povos nele residiam, todos resultantes da fusão dos Iberos com os povos
celtas que invadiram a Península (séculos VI ou V a.C.), onde introduziram a civilização do ferro.

Assim, ao norte do Douro viviam os Calaicos; entre Douro e Tejo espalhavam-se os Lusitanos, no
dizer de Estrabão «a mais poderosa das nações ibéricas», entre Tejo e Guadiana, celtas não
especificados, e ao sul, no Algarve, estavam os Turdetanos ou Tartéssios.

É impossível dizer quais eram as instituições de todos estes povos. Conhecemos as de alguns, mas
se é verosímil que as dos outros seriam semelhantes, nada nos autoriza a generalizar
categoricamente.

A base de organização social parece ter sido a cidade, como aliás em todos os povos antigos. A
cidade era um pequeno Estado aristocrático constituído por uma povoação principal, bem
fortificada, e por um grupo de povoações mais pequenas, construídas ao redor dela, sempre na
coroa dos montes e colinas: chamavam-se povoações. Em linguagem indígena, duns ou briga
(donde o sufixo da designação de muitas povoações da Lusitânia romana) e chamaram-lhes os
Romanos castra. Sempre que a cidade era atacada, a população abandonava os pequenos castros
para se concentrar na povoação principal, oppidum, na língua latina.

Hoje o povo chama a essas povoações fortificadas pré-romanas cividades, citânias e castros. Dentro
da cidade os indivíduos agrupavam-se em famílias do tipo monogâmico e patriarcal, cujo chefe
exerceria poderes políticos, judiciais e religiosos sobre os membros delas. As famílias, por sua vez,
constituíam gentilidades, agrupamentos de famílias vinculadas por laços de consanguinidade», isto
é, com um antepassado comum a quem todas prestavam culto e donde resultava terem um chefe
religioso e político comum.

As cidades agrupavam-se em tribos ( populus). Cada tribo tinha o seu governo, quase sempre
monárquico, mas algumas vezes republicano. As repúblicas eram, porém, aristocráticas: só
intervinham no governo e na eleição dos chefes os patriarcas das famílias.

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São numerosas as tribos de que temos notícia75 e andavam em contínuas guerras uma contra as
outras e só quando surgia um inimigo comum algumas se aliavam transitoriamente. Parece que em
face dos perigos que as invasões cartaginesas, primeiro, e a romana, depois, suscitaram, os
Lusitanos formaram uma confederação permanente com um chefe a quem os reis das tribos
prestaram vassalagem.

A população dividia-se em classes. Havia homens livres e servos. E a aristocracia tinha a sua
clientela. Cada aristocracia contava certo número de clientes a quem protegia e que juravam
fidelidade e o seguiam na paz e na guerra até ao ponto de se suicidarem por morte do patrono: tal
era a instituição conhecida de devotio ibérica 76 .

Presume-se que a principal fonte de Direito fosse o costume herdado dos antepassados (mos
majorum), como é próprio das sociedades deste tipo. Dada a individualidade cada tribo, os
costumes variavam de uma apara a outra. Quem aplicava o Direito nos casos concretos era o
patriarca familiar ou o chefe da tribo-autoridades a um tempo políticas e religiosas.

Ao definirem a norma a seguir inspiravam-se nos manes ou divindades de quem tinham o poder e
de cujo culto eram sacerdotes: o Direito nascido desta jurisprudência vinha marcado de um selo
religioso que o tornava sagrado. Não era só o Poder deste mundo que sancionava a lei, mas
também as forças invisíveis do outro.

1.1. DOMÍNIO ROMANO

A Romanização, a conquista e a assimilação do estremo ocidente peninsular pelos romanos é


dividida em dois períodos:

a) Período da Conquista

Na verdade, não houve em rigor um domínio cartaginês no extremo ocidente. Os Cartagineses


procuravam apenas fazer comércio, mas no começo do séc. III a. C. quiseram subjugar militarmente
as populações desta faixa do território. Ao sul venceram com facilidade, mas ao norte encontraram
viva resistência, que a dureza de Amílcar e a sedução de Asdrúbal acabaram por dominar. A razão
de ser da violenta oposição dos Lusitanos ao progresso das tropas romanas está, provavelmente, na
ameaça que estas representavam para a independência local, respeitada pelos Cartagineses. O
facto é que, enquanto a conquista das Gálias pelos soldados de Roma durou apenas sete anos,

75
Só entre os Lusitanos eram cerca de 30.
76
Veja Ramos Loscertales, «La devotio ibérica», in A.H.D.E., vol. 1, pag. 7.

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foram precisos dois séculos para pacificar a Hispânia e deste tempo consumiram-se 150 anos na
luta contra os indomáveis Lusitanos.

César veio quatro vezes à península e das duas primeiras exerceu funções na Hispânia Ulterior em
que estava compreendida então a Lusitânia: Depois de César, pode dizer-se concluída a conquista e
pacificado o extremo ocidente.

b) A Assimilação

Depois de Augusto seguem-se séculos de pacificação em que os romanos e lusitanos convivem e


permutam influências, de modo a produzir-se intensa assimilação no extremo ocidente da
civilização. Os fatores de romanização foram principalmente:

• A Ação das legiões romanas de ocupação

Os legionários instalavam-se com as suas famílias em grandes acampamentos ao redor dos quais
cultivavam a terra e onde exerciam indústrias e mesteres. Eram, assim, simultaneamente colonos,
em contacto direto com a população indígena. Os seus acampamentos atraiam serviçais,
trabalhadores, negociantes, todos forçados a aprender os rudimentos da linguagem aí falada;
progressivamente iam-se consolidando os abrigos provisórios e nasciam cidades.

• Construção de obras públicas

Os Romanos compreenderam que para policiar e fiscalizar o território careciam de torná-lo de fácil
percurso pela abertura de estradas e construção de pontes e viadutos. Lançaram-se os legionários
ao trabalho, requerendo o concurso das tribos indígenas. Assim os Lusitanos aprenderam, no
convívio forçoso das obras, a afalar com romanos, a usar da sua técnica construtiva e a admirá-los.

• Influência das estradas

As grandes estradas romanas não tinham, apenas, fins estratégicos: visavam também objetivos
económicos e políticos, pois formavam uma rede em todo o império encaminhada para Roma. O
tráfico comercial da Hispânia com Roma chegou a ser muito intenso: as províncias daqui
alimentavam os romanos aglomerados a grande urbe imperial. Estas estradas eram excelentes:
lajeadas, marcadas com marcos miliários, policiadas e com mudas e estalagens de espaço a espaço.

• Vinda de colonos

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A fama das riquezas hispânicas atraia colonos romanos e italianos. Além das colonias formadas pela
república era grande o número de imigrantes vindos a tentar fortuna, pelo comércio, pela indústria
ou pela usura.

• Recrutamento de auxiliares lusitanos para as tropas imperiais

Juntamente com as legiões romanas combatiam auxiliares recrutados nas províncias

• O culto do imperador

Com o império foi imposto a todos os cidadãos e súbditos

• A difusão do cristianismo

Também a religião cristã, ao espalhar-se, abolia a diferença de cultos e substituía a separação racial
por uma fraterna comunhão de fé. O cristianismo vinha todo impregnado de romanidade e
latinizava os que o abraçavam.

No séc. II pode afirmar-se que o Sul do território estava completamente romanizada: as populações
indígenas procuravam parecer romanas, até no traje, que passou a ser a toga, pelo que se chamava
aos assim vestidos togati; multiplicavam-se as inscrições, generaliza-se a língua, surgem as villae
rústicas.

A villa era um latifúndio pertencente a um senhor (o dominus) destinada a exploração agrícola e


pecuária, tendo ao centro a casa senhorial rodeada pelas instalações rurais (lagares, celeiros,
tulhas, adegas, estábulos…) e por habitações de pessoal livre ou servil.

No Norte a situação era diferente devido às dificuldades das comunicações no território acidentado
a rudeza e retraimento dos habitantes e o seu natural rebelde, o afastamento dos centros da
civilização, dificultavam os progressos da assimilação cultural.

Compreende-se assim que, no começo do séc. III, o Império estivesse maduro para receber a
concessão feita pelo imperador Caracalla, na célebre Constituição Antoniana de 212, da cidadania
romana a todos os habitantes do Império, excetuando os peregrinos deditícios.

Em virtude desta concessão, a qualidade de cidadão romano passou a ser reconhecida a todos. Ora
como os cidadãos romanos tinham o exclusivo de certos direitos e da aplicação das leis romanas,
esta providência produziu o efeito de generalizar a aplicação do direito romano a todo o império e
igualar os direitos de todos os habitantes livres.

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Até 212 havia uma metrópole (Roma) e um povo soberano (o conjunto dos cidadãos romanos) a
que correspondiam províncias submetidas e súbditos (os não cidadãos residentes nas províncias).
Era uma espécie de império colonial.

Depois de Caracalla todo o território do Império adquire o mesmo caráter de solo romano e todos
os habitantes livres e não deditícios ficam sendo cidadãos romanos. Desde então, a vida da
Lusitânia funde-se na vida do Império e segue a sorte dele. A Constituição de Caracalla marca o
termo do processo de assimilação romana das províncias, embora a equiparação não fosse
completa.

Porém a romanização estava perfeita nas cidades, mas as populações rurais, e as serranas
sobretudo, persistiam apegadas às suas tradições, mantendo o seu carácter, iguais ao que eram
anteriormente. Aconteceu o mesmo que com a difusão do cristianismo: as novas ideias
conquistaram os meios urbanos, mas os distritos rurais (pagi) guardaram seus cultos idólatras e
politeístas (o paganismo)77.

c) O Espírito do Direito Público Romano

Para se compreender a influência da dominação romana é necessário conhecer, antes de mais


nada, o espirito que presidia ao governo de Roma e do seu império.

Os cidadãos romanos formavam uma comunidade política, cimentada pela comunhão de


interesses, de governo e de direito: o populus romanus era uma entidade abstrata, que
representava a sucessão das gerações derivadas de antepassados comuns, nascidas na mesma
pátria, falando a mesma língua e venerando os mesmos deuses.

O populus tinha, pois, um passado, um presente e um futuro que se não confundiam com os dos
indivíduos, antes os superavam em valor e amplitude. O populus era o titular da autoridade coletiva
(res romanae). Para curar dos interesses coletivos e poder realizá-los eram necessários órgãos. A
comunidade romana ocupava-se dos seus interesses através das assembleias dos seus cidadãos
(comícios), representando todo o populus, e do conselho dos padres conscritos, o Senado: eram
estes, o Senado e o povo, que designavam as magistraturas encarregadas de gerir
permanentemente os negócios públicos.

A comunidade organizada era o Estado, a respublica que se propunha prosseguir os ideais e os


interesses da coletividade, e não proteger, garantir ou servir os interesses dos indivíduos. A vida

77
Leite de Vasconcelos, Religiões da Lusitânia, vol. II, pp 1 a 99, e vol. III; «Lusitânia pré-romana», in História de Portugal, Barcelos, vol.I, p. 1.

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privada de cada um, a educação, a moral, a religião nada era alheio nem indiferente ao Estado: em
tudo intervinha, e tudo subordinava à lei suprema do interesse público- salus populi suprema lex
esto. Como era impossível governar só nas assembleias, tinha de haver órgãos executivos que
expeditamente exercessem a autoridade.

Todo o poder provinha do populus, por ele era delegado e em seu proveito e benefício devia ser
exercido. Aos reis dava-se delegação pela votação, nos comícios curiais, da lex regia curiata de
imperio. Assim o Poder nunca podia considerar-se direito ou prerrogativa pessoal de quem
mandava: mas função, isto é autoridade em nome alheio para ser exercida em proveito do dono.

Conforme vimos o populus romanus era constituído pelos cidadãos romanos. Mas em Roma não
havia só cidadãos. A cidadania consistia na fruição de todos os direitos que as leis romanas
admitiam. Ora, sem falar nos servos que eram coisas e não pessoas que não praticavam na vida
política da cidade.

A qualidade de cidadão romano era um privilégio ciosamente guardado e defendido pelos


dominadores. Roma era a cidade imperial, a metrópole que submetia ao seu jugo o resto do
mundo. Ser cidadão do mundo era partilhar da soberania que a cidade exercia, era ser membro do
povo-rei. Os outros povos eram súbditos desse povo, assim como outras cidades estavam
submetidas à grande cidade. Onde quer que um cidadão de Roma se encontrava mantinha o
privilégio de poder participar nos comícios e de exercer os seus direitos segundo as leis da
metrópole. Só aos cidadãos romanos se aplicava o jus civil, o direito romano propriamente dito, jus
proprium civium romanorum. E apenas por exceção (até Caracalla) se outorgava a um ou outro
indígena o privilégio individual da cidadania plena, em paga de serviços prestados e
reconhecimento de perfeita assimilação. A cidadania compreendia o exercício de direitos privados
e de direitos públicos. Os direitos privados eram o jus connubium (direito de contrair justas
núpcias), e o jus commerci (direito de adquirir e transferir a propriedade pelos modos de direito
civil). Os direitos públicos eram o jus suffragii (direito de votar nos comícios) e o jus honorum
(direito de exercer funções públicas, políticas ou religiosas). No Império de Roma havia, portanto,
muitos homens livres mas não cidadãos, que se classificavam num de três grupos: hostes (inimigos
de Roma, aos quais não eram reconhecidos direitos), barbari (membros dos povos que não
mantinham com Roma relações de amizade, nem tinham firmado tratados, e não tinham quaisquer
direitos); peregrini (eram os estranhos à cidade, a quem se reconhecia algum direito).

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Todos os não cidadãos estavam fora do povo romano; pertenciam a outros povos que eram
súbditos da comunidade dos cidadãos romanos. O Direito Romano era privilégio dos cidadãos. Aos
não cidadãos aplicavam-se outras normas e só em certos casos lhes era permitido regerem-se por
certas leis romanas, ou segundo princípios extraídos do Direito de Roma.

As Províncias

Primitivamente chamava-se província, em Direito Romano, ao âmbito das atribuições conferidas


em especial a um magistrado cum império (isto é, um cônsul ou um pretor). Os primeiros
governadores enviados aos territórios conquistados eram pretores aos quais se conferiam certas
atribuições a exercer em determinada circunscrição territorial: recebiam, assim, as suas províncias.

Daqui o passar-se a dar à palavra província, primeiro, o significado de governo de território fora de
Itália; e depois o sentido de território fora de Itália submetido à jurisdição de um magistrado «cum
imperio».

O imperium sob a República compreendia o poder administrativo, militar e jurisdicional. O


magistrado dotado de império exercia, assim, nas províncias o poder absoluto, incluindo o direito
de vida e de morte, salvo quanto aos cidadãos romanos que, no caso de serem condenados a pena
capital, podiam recorrer para os comícios de Roma (provocatio ad populum).

A divisão provincial da Hispânia sofreu diversas fases. O governador das províncias romanas teve
através dos tempos várias designações: procônsul, proetor, legatus Augusti, praeses provinciae. Nas
províncias imperiais (após Augusto) ele era representante direto do imperador a quem estava
subordinado, de quem recebia instruções e a quem tinha de prestar contas; suprema autoridade
militar, comandando todas as legiões estacionadas ou em operações na província; superintendente
do Governo, da administração e da fazenda pública; magistrado superior, com poder de administrar
justiça, em última instância aos cidadãos e aos indígenas, assim no foro civil como no criminal.

Quanto às finanças provinciais estavam confiadas, no tempo da República, a um magistrado auxiliar


– o questor, que também julgava certas questões policiais e administrativas. Depois do Império
continuou a haver questores nas províncias senatoriais mas as suas funções estavam confiadas a
um procurator Caesaris com grande influência política por ser da confiança do imperador. O
questor era a autoridade mais importante, após o governador, podendo substitui-lo quando
necessário.

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Anualmente celebravam-se na capital de cada província assembleias constituídas por delegados


(legati) das suas diversas comunidades ou cidades: essa assembleia provincial ou concilium
provinciae teve origem no culto de Augusto e de Roma, elegia um sumo-sacerdote (sacerdote
provinciae), que depois a presidia, e celebrava os ritos e sacrifícios culturais.

Administração da Justiça

O governador administrava justiça quer aos cidadãos, quer aos não cidadãos. Sobre os não cidadãos
tinha jurisdição ilimitada, mas quanto aos cidadãos não só estes podiam optar nas matérias cíveis
pelos tribunais romanos, como tinham o direito de apelação, primeiro para os comícios e, mais
tarde, para o imperador, das sentenças que os condenassem à morte.

Nos primeiros tempos da dominação romana o governador deslocava-se em certas datas às


principais localidades da província para ministrar justiça. Nessas datas juntavam-se, nos lugares a
que ia o governador, os cidadãos romanos da vizinhança –era o conventus civium romanorum. Mais
tarde começou a chamar-se conventus à circunscrição que tinha por capital a localidade aonde o
governador ia ministrar justiça periodicamente.

A justiça era ministrada em público, aos cidadãos e aos não cidadãos, e o governador era
acompanhado pelos seus conselheiros ou assessores. Na Lusitânia havia três conventus juridici dois
dos quais em território hoje português: O Escalabitano (Santarém) e o Pacence (Beja), sendo o
terceiro o Emeritense (Mérida).

Na província Tarraconense estava abrangido um conventus que hoje é território português: o


Bracarense (Braga).

A Cidade das Províncias. Os Municípios

Dentro de cada província, a unidade político-administrativa era a civitas que até ao século II da era cristã
significava a comunidade indígena dotada de governo e leis próprias. Em rigor, esta comunidade habitava,
não um aglomerado, mas um distrito, uma circunscrição. A comunidade individualiza-se por todos os seus
membros acatarem o mesmo governo e observarem as mesmas leis. Havia comunidades urbanas e
comunidades rurais.

Comunidades urbanas: o seu centro era a urbe, povoação importante, murada, onde a vida social se tecia de
relações complexas, fruto de comércio ativo e de maior divisão de trabalho. À sua roda estendia-se o
territorium onde, aqui e acolá, se encontravam vici (aldeias abertas), castelli (aldeias fortificadas) e villae
(grandes propriedades rústicas).

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Comunidades rurais: não constituíam uma vasta povoação com seu território suburbano, mas num vasto
distrito povoado de vici e castelli. Uma aldeia murada central (oppidum) servia de capital e junto dos seus
muros se fazia o mercado e se reunia a assembleia dos diversos povos do distrito, em vasto terreno a tal
destinado (conciliabulum, fórum). Outras eram comunidades reorganizadas segundo moldes romanos ou já
fundadas pelos Romanos: cidades de tipo indígena. As cidades de tipo indígena são as cidades estipendiárias
e as cidades livres. As cidades de tipo romano são as colónias e os municípios.

Cidades estipendiárias: desde logo, as cidades que tinham sido conquistadas violentamente, por occupatio
bellica, e as cidades que, embora tivessem resistido, negociaram a tempo o seu tratado de capitulação,
rendendo-se à discrição do povo romano (deditio).

Em qualquer dos casos, o general vencedor assumia a plenitude do poder e abolia a constituição política da
cidade. Mas, como o general não podia ficar a governar cada cidade conquistada nem dotá-la de chofre com
novas leis, instituía um regime provisório até o povo romano decidir definitivamente. Regra geral esse
regime provisório consistia em manter os magistrados e as leis que haviam, reservando-se o general a
jurisdição em última instância e a fiscalização política.

Todo o território passava a ser considerado domínio do povo romano. Se a cidade tinha sido conquistada, as
terras eram confiscadas para o domínio público, e depois arrendadas aos antigos proprietários mediante o
pagamento anual por cada um da respetiva renda aos cobradores romanos: vectigal. Se a cidade se tinha
rendido, o tratamento era mais benévolo: os proprietários conservavam posse das suas terras, mediante o
pagamento por toda a cidade de uma soma global, correspondente primitivamente ao soldo ( stipendium)
das tropas de ocupação.

Assim, enquanto o vectigal era cobrado de cada possuidor pelos (cobradores romanos), o stipendium era
uma soma fixa que todos os anos a cidade tinha de juntar, cobrando-a por intermédio das suas autoridades
próprias para depois a entregar na totalidade ao fisco romano.

Cidades Livres: outras cidades indígenas conseguiram ficar em melhor situação e ser consideradas libri
populi. Os Romanos chamavam cidades livres às comunidades urbanas que se governavam sob a forma
republicana, conservando as suas próprias leis e instituições. Estas cidades, por qualquer motivo,
conservavam na aparência a sua soberania: eram independentes. Por isso não pertenciam à província
romana em que se achavam encravadas ou em cujas fronteiras existiam. Conservavam as suas leis, os seus
magistrados, os seus exércitos e a propriedade do seu território, que Roma considerava estrangeiro: não
dependiam do governador nem tinham guarnição romana.

A liberdade era-lhes assegurada: ou por um tratado de amizade, submissão e aliança feito por toda a
perpetuidade e garantido por juramento (foedus) – e nesse caso temos uma cidade federada; ou por tratado

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não jurado ou por ato unilateral do povo romano (lex), o que significa tratar-se de liberdade precária, a todo
o tempo revogável à mercê de Roma, e temos a cidade livre, sem mais.

As cidades livres, não federadas, eram, por via de regra, isentas do pagamento de tributo: imunes. Há
exemplos, porém, de cidades livres obrigadas ao pagamento de tributo (não imunes). Todas as cidades livres
tinham obrigações para com Roma, sendo as das federadas estipuladas no tratado de aliança. Essas
obrigações consistiam em não fazer paz nem guerra sem permissão de Roma, permitir a passagem de tropas
romanas no seu território em caso de necessidade, fornecer viveres, soldados e navios a Roma em caso de
guerra.

Colónias: cidades do tipo Romano são as organizadas pelo modelo de Roma ou das cidades latinas, cujos
cidadãos tinham a cidadania romana ou o direito dos latinos. Colónias, no tempo da República, era uma
cidade fundada por resolução por resolução do populus romanus, com cidadãos vindos de Roma (colónia
romana) ou do Lácio (colónia latina) 78.

Os colonos eram primitivamente legionários no ativo ou reformados (emeriti); mais tarde aproveitaram-se
agricultores e desempregados. Escolhido o lugar em que se devia erguer a colónia, fazia-se a deductio ou
emigração dos colonos à sua frente os comissários eleitos pelos comícios para, em nome do povo, fundar a
nova povoação.

A organização interna da colónia sob o Império era do tipo municipal. Mas nos tempos da República, as
colónias de cidadãos romanos eram administradas pelos magistrados nomeados por Roma, visto ser aí que a
comunidade dos cidadãos tinha a sua sede política.

Municípios: Por esta palavra municipium designaram-se cidades indígenas, primeiro do Lácio, depois da
Itália, e mais tarde de além dos Alpes, acolhidas na comunidade romana. Mas efeitos dessa integração é que
não foram os mesmos em todos os tempos: variavam do antigo direito para os últimos tempos da República
e destes para o Império.

A transformação de uma civitas em municipium representava, sob a República, a perda da primitiva


independência local: a comunidade municipal era considerada como fração da comunidade romana, desta
destacada; os cidadãos do município são cidadãos romanos ficavam com o encargo (munus) de pagar tributo
a Roma e de lhe prestar auxílio militar (Municipes apellantur muneris participes recepti in civitate ut munera
nobiscum facerent-Ulpiano, Digesto, 50).

O cidadão da cidade à qual Roma outorgava o foro municipal não podia invocar a sua primitiva pátria:
doravante a sua pátria é Roma. Comunidade soberana, ou seja civitas, havia uma só, constituída por Roma e
pelos municípios e colónias, e é dela que os munícipes, como os romanos, são cidadãos, unius urbis cives

78
Mais tarde, sob o Império, deu-se honorificamente o título de colónia a cidades que não estavam nestas condições.

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eramus. O Estado romano deixa assim de ser a expressão política da comunidade formada pelos naturais de
uma urbe, para passar a exprimir o conjunto dos territórios cujos naturais têm o foro de cidadãos romanos.
Da cidade-estado passou-se ao Estado-integrador de cidades79.

Sob o Império deu-se o nome de município a qualquer cidade de tipo romano, mesmo que não se tratasse
de uma antiga comunidade política indígena coletivamente integrada no Direito Romano, mas sim de uma
colónia fundada, logo, já por romanos ou latinos e desde a origem romana ou latina. Consoante os cidadãos
da cidade tinham os direitos de cidadãos romanos ou de meros latinos, assim o município se dizia município
romano ou município latino.

Regime municipal

Inicialmente, as relações entre o município e o Estado Romano eram estabelecidas por um estatuto
especialmente elaborado para cada caso: a lex municipalis. Enquanto a cada município correspondia um
estatuto especial, não se pode falar de um regime municipal típico: umas cidades tinham maior, outra menor
autonomia. No tempo da República parece que imediatamente após a concessão do caráter municipal, as
cidades perdiam em liberdade. Depois verificou-se a impossibilidade de manter a conceção de uma
comunidade única de cidadãos romanos repartida pela urbe-mãe e pelos municípios e governada pelos
magistrados, e procurou-se reproduzir em cada município as instituições de Roma, embora se mantivesse
ainda, na maior parte dos casos, a intervenção fiscalizadora do governador da província. A cidade livre é um
Estado independente: o município a parcela de um Estado, subordinada portanto nos seus interesses às
superiores conveniências do todo a que pertence. No início do Império, os municípios em geral gozavam de
certa autonomia dentro dos limites do seu estatuto: cobravam receitas e gastavam os seus dinheiros no que
bem lhes parecia, tinham leis próprias, magistrados para administrar justiça e alguns, embora poucos,
cunharam moeda e levantaram tropas.

Órgãos da administração municipal romana

Reuniam-se comícios por cúrias (comitia curiata) ou por tribos (comiti tributa): em geral, os primeiros
encontravam-se nos municípios propiamente ditos e os segundos nas colónias, mas a distinção nem sempre
se mantém. Os comícios tinham unicamente função eleitoral.

O mais alto cargo da administração do município era a assembleia ou conselho dos decuriões (ordo
decurionum) também chamada Senado e depois Cúria. Era constituído por 100 membros vitalícios,
recrutados entre os antigos magistrados ou outras pessoas por estes escolhidos de entre as consideradas
aptas por possuírem idade, riqueza e costumes que permitissem a sua inscrição no album curiae.Os

79
Marcelo Caetano, ob. cit. p. 75.

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decuriões constituíam a mais alta classe social do município – splendidissimus ordo e tinham certas honras,
imunidades e privilégios compensadores dos pesados encargos (munera) da função.

Magistrados: As funções executivas e jurisdicionais permanentes pertenciam a um colégio de magistrados


em número variável: em regra dois nas colónias e quatro nos municípios, mas que em certos casos chegou a
seis e oito.

Evolução e decadência dos municípios romanos

A centralização progressiva do governo das províncias verificada sob o Império os governadores, primeiro, e
o próprio imperador, depois, a imiscuírem-se, cada vez mais, na vida interna dos municípios.

O ponto mais fraco de todas as autonomias está nas finanças. Os municípios romanos não fugiram à regra:
neles, com a preocupação de fazer grandes obras e de agradar ao povo, efetuaram-se enormes despesas
que depois criaram situações difíceis, aflições e escândalos cujos ecos chegavam aos ouvidos do imperador.

No final do séc. I, o imperador já nomeia, de quando a quando, inspetores de finanças, com caráter
extraordinário, tendo por missão percorrer uma província e por ordem a fazenda dos municípios: eram os
corretores.

Num ou noutro município viu-se que os cidadãos não eram capazes de remediar as dificuldades com que se
debatia a administração local: daí a necessidade de o imperador nomear um delegado seu – curator
reipublicae – escolhido entre pessoas estranhas ao município e a quem era dada categoria superior à de
todos os magistrados municipais para endireitar as finanças, como interventor.

No fim do século III, essa função passa, de ocasional e excecional, a ser permanente e regular: todos os
municípios têm um curator, funcionário imperial superior aos órgãos locais. As suas funções começaram por
ser a gestão das finanças e do património municipal e a administração das obras públicas. Mas em breve os
curadores chamaram a si a censura que antes cabia aos quinquenales e, após Caracalla, foram absorvendo
outras atribuições dos duúnviros, tiveram o poder de se opor às deliberações e decisões tomadas e
chegaram a administrar justiça. Converteram-se em verdadeiros ditadores dos municípios. Daqui resultou o
desinteresse, primeiro, e a opressão, depois, dos munícipes: a tal ponto que os séculos IV e V são de
decadência constante das instituições municipais.

As causas da decadência são as seguintes :

► crise económica do Império, especialmente as províncias, empobrecendo os particulares e criando


grandes apertos às finanças públicas;

►Daí, a dificuldade de cobrar impostos e outras prestações devidas pelas cidades ao Estado, o que levou a
exigir as contribuições, globalmente lançadas a cada município, unicamente dos mais ricos, que eram os

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decuriões: entre eles haviam de arranjar o dinheiro preciso, o que equivalia a torná-los solidariamente
responsáveis pelo pagamento;

►Em vista disto, ninguém queria ser decurião, e era necessário obrigar as pessoas a entrar para a Cúria,
proibindo-se até a prática de atos que pudessem tornar as pessoas incapazes de figurar no album curiae: era
vedado abandonar a cidade, vender bens de raiz, etc. e a qualidade de decurião passava de pais para filhos;

Acresce a isto que, enquanto Constantino não de fez cristão, persistia nos municípios o culto de Roma e de
Augusto no qual os senadores e magistrados municipais eram obrigados a participar: ora muitos deles
converteram-se ao cristianismo e repugnava-lhes ter de praticar tais atos.

O município deixou, pois, de ter quaisquer vantagens para as populações: era apenas uma das peças da
terrível máquina de opressão e extorsão fiscal em que se convertera o governo imperial.

Nos começos do séc. IV ainda os governadores das províncias foram sensíveis aos queixumes dos povos e
nomearam para os municípios um seu delegado, com a missão de proteger os habitantes contra os vexames
dos magistrados: chamavam-se defensor plebis ou defensor civitatis . Mas não tardou que o defensor,
passando a ser eleito pelos munícipes, perdesse o prestígio e a independência que lhe vinham da nomeação
superior e se combinasse com os demais magistrados nas espoliações e violências.

Então as populações encontraram apoio e proteção paternal nos seus bispos, chefes das comunidades
cristãs das cidades e que, revestidos de grande autoridade moral e social, vão ganhando prestígio no meio
da dissolução cada vez maior dos costumes e da administração do Império.

O Jus provinciale era o conjunto das normas de Direito Público reguladoras das relações entre as províncias e
Roma. Em geral, a organização de cada província era feita, após a conquita, por uma comissão de 10
senadores enviadas ao local e que funcionavam em nome e por delegação do Senado. Do trabalho dessa
comissão nascia uma lei – a lex, ou formula, provinciae -constituição administrativa da província, reguladora
da condição das diversas cidades, seus magistrados, tributos, etc.

Estatutos Locais

Vejamos agora as fontes conhecidas do direito de certas cidades ou povoações. Chegaram até nós (e são,
portanto, fontes de história) algumas leis municipais e o regulamento de um distrito mineiro da Península.

Chamamos lei municipal à que regula a organização interna de uma colónia, ou de um município romano ou
latino. Essa lei era uma lex data, outorgada por um magistrado com império, e tinha a designação genérica
de lex coloniae, lex municipalis, lex municipii, lex civitatis, lex loci 80.

80
Os estatutos municipais da Península que chegaram até nós são: a lex coloniae Genetivae Juliae; a Lei de Salpensa; a lei de Málaga.

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1.2. DOMÍNIO GERMÂNICO

Quanto à invasão dos Bárbaros na Península Hispânica, facto histórico de grande complexidade, referimos a
grande invasão de 406, onde em 409, Alanos, Vândalos e Suevos penetram em grande força. Estes três
povos entregaram-se a violências e depredações que atingiram a grau de calamidade, até que, em 411, se
aquietaram temporariamente, fixando-se, de acordo com as autoridades romanas, cada qual em sua região.

Os Visigodos, os mais romanizados de todos os bárbaros, que eram 150.000 a 200.000 à sua chegada à
Aquitânia, mesclados com muita gente de proveniência vária e muito romanizados pela permanência longa
em terras do Império, com contato com os principais focos da cultura romana.

A organização política visigótica

1ª Fase: a da aliança entre os Visigodos e o Império Romano, vai até à queda do Império Romano do
ocidente, no tempo de Eurico (475). Nesta fase os Visigodos não formam um Estado com base territorial.
Constituem, sim, uma nação, um povo com sua aristocracia e seu chefe, ao serviço do Império Romano e
aboletado numa das suas províncias segundo as leis da hospitalitas: cada possuidor romano era obrigado a
receber o visigodo que lhe coubesse, a partilhar com ele as suas terras dando-lhe dois terços e ficando com
um terço do que tinha (sortes gothicae et tertia Romanorum). A província continuava a ser romana,
governada por autoridades romanas e habitada por livres cidadãos romanos sobre os quais o chefe visigodo
não exercia nenhum poder. Apenas Alarico I foi, a título pessoal, investido na dignidade de autoridade
romana, e só nessa qualidade exerceu funções no Império, em nome do imperador.

2ª Fase: a partir da emancipação dos Visigodos relativamente ao Império, que reivindicam a soberania do
território por eles ocupado, constituindo um Estado com sua população, seu território, seu governo
independente.

Será nesse caso que a conceção germânica do estado era igual à conceção romana? Vimos como o Estado
romano se originou na comunidade dos cidadãos de Roma. Foi essa comunidade que considerando o seu
Direito como um privilégio, foi submetendo à cidade os territórios conquistados e aliados, ditando-lhes a lei
a observar nas relações que com eles travavam.

A constituição romana era fundamentalmente republicana, no sentido de todo o poder pertencer à


universalidade do populus, titular também dos bens coletivos. Porém, as comunidades germânicas
assentavam noutra base. São grupos de homens do mesmo sangue que se formam para a aventura e para
guerra sob a chefia de um príncipe (rex ou princeps). O que une os homens entre si não é o pertencerem à
mesma cidade, obedecerem ao mesmo chefe, a quem se devotaram com total dedicação e lealdade. As

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comunidades assim formadas aliam-se, e não raro se unem, fundindo-se noutra mais ampla, assim como
também se desagregam em novos grupos dotados dos seus chefes próprios.

Cada comunidade (civitas) reúne-se em assembleia geral, por via de regra geral numa das fases da lua – lua
nova ou lua cheia. Só tem capacidade jurídica plena os homens livres aptos a pegar em armas, e à
assembleia ou concilium civitatis acorrem os homens armados compondo o exército a que o chefe passa
revista. Essa assembleia, que decide da paz e da guerra, resolve problemas de interesse geral, julga os crimes
e elege o rei e os príncipes. Mas neste ponto a sua organização não difere muito dos primitivos comícios
romanos.

Os Visigodos, porém, quando penetraram na Península, não mantinham já a Constituição germânica em toda
a sua pureza. Na sua constituição, o Estado Visigótico aparece como produto da mistura dos elementos
germânicos ( a unidade do grupo dada pelo chefe, os vínculos sociais estabelecidos hierarquicamente pela
fidelidade dos homens ao seu chefe),com elementos romanos ( a ideia da res publica, feixe de interesses
coletivos permanentes da coletividade que o próprio rei tem de acatar e servir, a ideia de que a soberania
sobre as pessoas e as coisas é atributo da coletividade, e não do príncipe e de que há um património coletivo
constituído pelos bens destinados à utilidade pública).

O rei era o primitivo chefe germânico mas que, procurando imitar o imperador romano de quem se
considerava sucessor, se havia adornado dos seus tributos externos (e até usava o titulo de Flávio) e se
arrogava o exercício da maior parte das suas prerrogativas. Assim, o rei visigodo era, primeiro que tudo, o
chefe militar e, antes da conversão ao catolicismo, o chefe religioso, passando depois a ser o protetor da
Igreja. Legislador do seu reino, administrava justiça como sumo juiz e superintendia em todos os negócios do
governo e da administração, embora não se pudesse considerar absoluto, pois devia acatamento às leis
estava preceituado ao Código Visigótico, Livro II título 1, capítulo 2. Depois, tinha o dever de procurar acima
de tudo o bem comum e não o seu proveito pessoal: é doutrina de inspiração cristã. Finalmente, o rei não
podia esquecer a influência moral e o poderio da nobreza e do clero católico ( deste, após a conversão de
Recaredo), e a sua vontade tinha de se pautar muitas vezes pela que os magnates do reino exprimiam.

Na monarquia visigótica considerava-se o Poder como vindo de Deus, segundo a doutrina crista expressa por
S. Paulo: Omnis potestas a Deo. Mas o regime não era teocrático, isto é, não pregava a inspiração direta do
governo por Deus através dos seus representantes na Terra.

A monarquia era eletiva: o rei eleito de entre os membros de determinada família. Este processo de
designação do monarca foi a principal fonte dos males que afligiram e perderam o reino visigodo. Enquanto
os Visigodos constituíam um povo em marcha, o rei era eleito pela assembleia de todos os homens livres e
combatentes, à qual tinha de ouvir com frequência. Após a estabilização, com a disseminação e assento dos
Visigodos na vasta área territorial onde se estabeleceram, nas Gálias e na Hispânia, tornou-se impossível

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reunir a assembleia geral ou concilium de todo o povo para eleger o rei, e a função eleitoral passou a ser
exercida pelos magnates do reino, componentes da Aula Regia. O rei visigodo tinha, pois, o seu conselho,
constituído pelas pessoas de confiança com quem habitualmente governava e pelas importantes
personagens do reino que nos casos graves ouvia. A Aula Régia era consultada sobre as leis e sobre as
questões a resolver pelo rei, quer fossem de governo, quer da administração corrente ou até de natureza
judicial, visto o rei julgar como juiz.

No governo da monarquia visigótica desempenharam papel relevante os concílios. Concílio era assembleia
dos bispos diocesanos e de outras dignidades eclesiásticas dotadas de jurisdição (prelados, abades e
superiores) reunida para tratar de pontos de fé, de moral e de disciplina eclesiástica.

Administração e Justiça Local

Os visigodos conservaram a mesma divisão provincial que os Romanos tinham deixado. Mas a par das
grandes circunscrições romanas, referem-se os textos às vezes a outras províncias, no sentido de
circunscrições, onde um alto funcionário exerce jurisdição (territorium).Cada uma das antigas províncias
romanas era governada por um dux, administrador e chefe militar. O territorium, ou província no sentido
lato, era geralmente a zona territorial circundante de uma cidade governada pelos comes civitatis, se bem
que exista alguma imprecisão nestas designações, empregando-se indistintamente, em muitos casos, os
termos dux e comes para exprimir o chefe administrativo e militar de uma circunscrição.

Cidades e distritos rurais

O município romano, nas suas características essenciais, extinguiu-se durante o período visigodo e não tinha
81
nenhuma condição de persistir sob o domínio muçulmano . A Cúria, a que o Código Visigótico faz
referência, nos primeiros tempos da monarquia visigótica, descredibilizou-se com o avançar do tempo e foi
desaparecendo, hoje numa cidade, depois noutra, sendo as suas funções, no século VII, quase totalmente
absorvidas por autoridades delegadas do rei. Destas autoridades a mais importante, já no séc. VI, é o judex,
cujas funções são exercidas por um conde (comes civitatis).

O problema da territorialidade

As primeiras leis dos Visigodos eram normas consuetudinárias, datando as primeiras leis escritas, talvez, do
rei visigodo Teodorico II (453-466). Mas o Codex Euricianus é o mais antigo código germânico conhecido,
aplicado a quantos residiam no território sujeito ao rei visigodo, godos, ou romanos, implicando assim a
existência da territorialidade do direito já no séc. V.

81
Vide Sanchez Albornoz, Ruina y extención del municipio romano en España e isntituciones que le reemplazan , Buenos Aires, 1943. Veja ainda Paulo
Merêa, nos trabalhos reunidos sob o título de Estudos do Direito Visigótico, Coimbra, 1948.

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Parece sem embargo de se reconhecer a aceitação pelo Direito Visigótico de muitas normas do Direito
Romano vulgar, isto é, tal como era interpretado e aplicado pelas populações peninsulares, não pode ser
excluída a vigência inicial e, depois, a prática corrente de outras normas consuetudinárias germânicas,
traduzidas mais tarde em leis. Aceita-se assim a tese de que o Código de Eurico foi uma lei pessoal dos
Godos, como defendem, entre muitos outros, Gama Barros, Paulo Merêa e Sanchez Albornoz.

Do Código Visigótico conhecem-se três formas, isto é, três textos diversos: a primeira, do tempo de
Recesvindo, a segunda do tempo de Ervígio e a terceira, denominada «vulgata», de época incerta.

O Código Visigótico é um dos mais notáveis monumentos jurídicos da Idade Média. Nele se reflete a
fermentação social resultante: nele se reflete a fermentação social resultante do encontro e da fusão de
influências díspares: a influência eclesiástica, a influência romana, a influência germânica.

A influência eclesiástica é dominante, pois os concílios tomaram parte na elaboração do Código. Daí resulta,
em primeiro lugar, o estilo em latim muito semelhante ao então usado na Igreja, escrito em frases
pomposas, com longas tiradas declamatórias sobre política e moral, que inculcam a preocupação pedagógica
do legislador. Depois, o clero procura moderar costumes bárbaros, introduzir regras mais racionais e mais
justas, abolir leis em que se consagrasse a violência, a vingança privada, apena de talião. Nem sempre
conseguiu os seus objetivos, mas nesses casos não desanimava e procurava obter pela formação das
consciências o que não conseguira através das leis.

De facto, no Código trava-se uma verdadeira batalha entre as classes dirigentes e a barbárie popular. O
Código aparece, logo, como expressão do ideal jurídico dos governantes da monarquia visigótica, proposto
aos juízes, não como repositório do Direito geralmente observado. Era uma lei que estava adiantada em
relação às possibilidades sociais da época.

1.3. DOMÍNIO M UÇULMANO

A sociedade muçulmana era uma sociedade fechada, onde só se ingressava abraçando a religião corânica. E
o Direito que a regia era igualmente privativo dos crentes. Quanto à situação jurídica dos cristãos nos
territórios dominados pelos Muçulmanos, verifica-se que o Corão regula a atitude dos crentes em face dos
infiéis. Contra os infiéis há que mover a guerra santa: ou crês, ou morres. Muitas povoações da Península se
submeteram, celebrando com os chefes militares tratados de capitulação que lhes permitiam conservar
parte, pelo menos, dos seus bens, e reger-se pelas suas leis, com autoridades próprias, mediante o
pagamento anual dos tributos.

Vivendo nas cidades em bairros próprios e no campo em forçado convívio, muitos cristãos foram-se
mesclando com os muçulmanos e adotando trajes, usos e termos deles: são os moçárabes (semelhantes aos

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árabes).Vigorava outra vez o sistema da personalidade do Direito, mas o cristão podia sempre optar pelo
tribunal muçulmano em vez dos seus tribunais próprios, e era por ele julgado obrigatoriamente se praticasse
delitos contra a ordem pública.

Foi durante todo este largo convívio, como administradores dos cristãos, como seus adversários, tratados de
igual a igual, ou como seus dominados, que os Muçulmanos receberam e transmitiram influências culturais.
Do milhar de vocábulos que deixaram na língua portuguesa raro será o que não designe realidades da vida
material: cargos administrativos, plantas e práticas da agricultura, hidráulica, cozinhados, vestuário.

Como o Direito Muçulmano tinha caráter religioso, a função de aplicá-lo era quase sacerdotal. O califa era o
supremo juiz (íman) na qualidade de sucessor do Profeta, e delegava nos seus representantes dos vários
graus da hierarquia os poderes de jurisdição. Não podia ser exercida qualquer função judicial senão em
nome do califa: impossível conceber-se a designação de magistrados por eleição.

As cidades e comunidades cristãs submetidas com tratado de capitulação e as comunidades cristãs


existentes nas cidades arabizadas mantinham as suas tradicionais instituições e regiam-se pelo Código
Visigótico.

Persistiria neles a organização municipal?

Nada se sabe de positivo a tal respeito. Herculano, embora defendesse a tese da continuidade do município
desde os Romanos até à Reconquista, é forçado a reconhecer que restam «obscuros vestígios» do município
moçárabe. Conhecem-se a existência ainda no séc. X em cada cidade de um conde nomeado pelo soberano
muçulmano para governar os cristãos, de um juiz - censor- encarregado da administração da justiça e de um
funcionário a cujo cargo a cobrança dos tributos a pagar ao Islão, denominado exceptor.

O Direito Muçulmano oferece, pois, caráter muito especial: as normas jurídicas são exatamente, como os
preceitos morais e religiosos, ditadas por Deus, fruto da vontade de Alá manifestada na revelação de
Mafona. Assim, é um direito religioso, cujas leis obrigam os crentes em consciência, exatamente como os
demais ditames divinos. E esse direito abrange todas as zonas da vida social, sem exceção nenhuma – é um
Direito totalitário 82.

82
Marcelo Caetano, ob.cit. p. 116.

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2. Monarquia Leonesa e Condado Portucalense

A reconquista cristã prossegue durante séculos, até à expulsão dos Muçulmanos do seu último domínio
peninsular, o reino de Granada, em 1492. No território onde é hoje Portugal, o movimento finda com a
tomada do Algarve em 1249.

O reino das Astúrias (que, a partir de 911, passa a ser reino de Leão) surge, deste modo, como um Estado
essencialmente militar, núcleo de resistência, primeiro, de combate e cruzada depois. O início da
Reconquista foi caracterizado por uma série de razias nos territórios do Norte e Centro da Península, que
conduziu ao que hoje se chama ermamento (tornar ermo) de uma larga faixa situada entre a zona ocupada
pelos cristãos e aquela onde decorria a vida muçulmana.

O ermamento não teria tido a mesma extensão e intensidade em todo o território. Se permanece alguma
povoação no litoral entre Douro e Mondego, uma parte dos atuais distritos de Viseu, da Guarda e Castela
Branco estiveram muito despovoados até épocas bastante tardias.

Se a população primitiva desapareceu da região ao norte do Mondego, foram-se com ela os usos e costumes
tradicionais, e o repovoamento com colonos estranhos traz consigo um direito novo. Ao passo que, se como
tudo indica, só a vida urbana foi desorganizada, mas persistiram por montes e vales os núcleos de habitantes
rurais, pelo contrário, esse isolamento e a necessidade de se concentrarem sobre si próprias fizeram com
que maior importância ganhasse as tradições jurídicas populares locais, que assim representarão a
continuidade do direito dos povos nativos do território português.

Os reis das Astúrias, à medida que vão repovoando cidades e organizando os respetivos territórios. Todas a
terras ermas ou tomadas aos Muçulmanos por conquista eram consideradas sem dono (res ullius) e portanto
suscetíveis de ocupação ou presúria.

Era, pois, segundo o Direito Visigodo que os reis leoneses compreendiam o Poder. É bom não esquecer que
as profundas influências eclesiástica e romana tinham atuado no sentido de transformar o rei, de chefe de
pessoas, em expoente da comunidade.

Cúria Régia

Compreende-se facilmente que nas Astúrias fosse impossível manter o já complicado aparelho da
administração visigótica: a reduzida extensão, o estado de guerra permanente a instabilidade da vida,
forçaram a concentrar ao máximo o Poder, confundindo-se entre si funções anteriormente distribuídas por
órgãos especializados.

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O rei e os seus áulicos decidiam, conforme as necessidades impunham, todas as questões militares,
económicas, jurídicas e até religiosas. A Igreja, de facto, desorganizara-se também. Os bispos, forçados a
abandonar as dioceses, residiam na corte e, tornando-se cavaleiros, acompanhavam o monarca nas ações
guerreiras da Reconquista.

O rei era assistido por um conselho designado pelos mesmos nomes que tinha o conselho régio na
monarquia visigótica: aula regia, oficium, palatinum- e que no séc. XI passa ser chamado cúria, palavra
simultaneamente significativa de palácio e de corte. As cúrias plenas representavam a continuação dos
concílios nacionais da monarquia visigótica.

O repovoamento oficial do território ao sul do rio Minho começa no reinado de Afonso IX das Astúrias. Nos
meios rurais, o repovoamento foi antes uma reorganização da vida local, com a restauração da autoridade
afirmada em nome do rei sobre a população que por lá andava. Muitos territórios incultos foram a partir de
então colonizados por gente do Norte, homens livres ou servos que acompanhavam os magnates a quem o
monarca conferia o poder e repovoar ou que procediam por iniciativa própria.

O magnate nobre ou eclesiástico, que ia tomar conta das terras abandonadas ou sem dono, procedia por
«apreensão» ou presúria. Daqui resultou a existência nesses territórios repovoados de dois tipos de
ocupação rural: o grande domínio, pertença de um nobre ou de uma corporação eclesiástica, e as pequenas
explorações dos que haviam efetuado as presúrias plebeias ou recebido de um magnate glebas para
desbravar. No intervalo entre as terras ocupadas ficavam as terras da coroa abrangidas pela Reconquista,
mas que, tendo sido apresadas pelo rei ou por mandado dele, permaneciam sob o domínio direto do rei.

À data da formação de Portugal, o território que lhe serviu de base compreendia, pois, as terras da coroa
leonesa, grandes domínios de nobre ou de entidades eclesiásticas, municípios aqui e além e pequenas
explorações livres (alódios).Esta estrutura não era estática. Os reis faziam doações, em plena propriedade,
de terras suas, a apaniguados ou colaboradores que estes podiam transmitir por herança, ou cediam-lhes
temporariamente domínios por benefício ou préstamo.

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3. Feudalismo ou Senhorialismo?

Existiu no extremo ocidente da Península Ibérica, onde se implantou Portugal o feudalismo? A resposta está
ligada, em grande parte, ao que se concluir relativamente aos reinos de Leão e de Castela. Pode dizer-se que
quem primeiro se propõe examinar a fundo a questão foi Alexandre Herculano. Até ele, autores como
Coelho da Rocha ou Silva Ferrão admitiam a existência do regime feudal da Idade Média portuguesa, mas
sem análise detida do problema.

Herculano sustentou sempre que não existiu o feudalismo na monarquia leonesa e nos países dela
desmembrados, embora alguns laivos do regime possam ser encontrados. Mas o regime feudal, segundo
Guizot 83 caracterizar-se-ia pela natureza especial da propriedade territorial que, embora plena e hereditária,
era havida de outrem, considerado superior do proprietário e em relação ao qual este fica adstrito a certas
obrigações pessoais.

O proprietário do solo, em relação aos que nele habitavam, exercia todos ou quase todos os poderes
públicos que hoje consideramos soberanos. Daqui resultava um sistema hierárquico que ligava entre si
suseranos e vassalos, sucedendo que nos escalões intermediários se encontrassem pessoas reunindo as duas
qualidades como vassalos de um senhor mais poderoso, de quem tivessem tido benefícios, e soberanos de
vassalos próprios que houvessem beneficiado do seus haveres.

Alexandre Herculano formula a sua conceção do feudalismo como organização social e diz: «Foi o
despotismo de uma aristocracia anárquica, que, de longe e visto através do prisma das nossas ideias atuais,
nos aparece debaixo do falso aspeto de sistema político. Dentro do feudo, e satisfeitas as condições com que
hereditariamente o adquiria. O feudatário era soberano absoluto. Leis, fazia-as ele ou admitia as que lhe
convinham. A administração pública e o poder judicial estavam nas suas mãos. Tributava a seu arbítrio, batia
ou falsificava a moeda e fazia a guerra aos outros feudatários, e em certas hipóteses ao próprio suserano, ou
celebrava pazes e formava alianças conforme o seu capricho ou os seus interesses. A monarquia, a imagem
do poder central, existia; mas na dependência dos grandes feudatários e não como manifestação e
instrumento da unidade social»84.

Esta visão do sistema é seguida por uma análise das suas origens em que Herculano põe em destaque o
papel do benefício, do séc. V até ao séc. IX, isto é, no período das invasões germânicas, da ruina e
desmembração do Império Romano e das lutas travadas entre os Bárbaros sobre a posse dos fragmentos da
grande construção política de Roma.

83
Na sua 32ª lição da Histoire de la Civilisation en France depuis la Chute de L´Émpire romain.
84
Alexandre Herculano, História de Portugal, p. 228, citado por Marcelo Caetano, ob. cit. p.150.

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Na essência o benefício aparece como concessão de terras feita título de retribuição de serviços: «Era o
soldo, o ordenado, o vencimento, a gratificação, pagos em troco de serviços, entre os quais, naquela época
tormentosa, avultava, mais que todos, o trato das armas. O beneficiário, em vez de receber do Estado ou do
poderoso a quem servia uma retribuição pecuniária, recebia diretamente em trabalho, em produtos ou em
moeda, do tributário, do colono ou do serviço da gleba, do produtor em suma que fecundava a terra, o que
nos tempos modernos recebe do erário ou da bolsa do opulento» 85.

Todos os indivíduos que constituíam a hierarquia administrativa, judicial e militar recebiam bens de raiz a
título de benefício e mais o direito de desfrutar uma porção dos tributos públicos, tanto de origem romana
como de raiz germânica.

Herculano refere, depois, como os detentores dos benefícios procuravam tornar a posse deles hereditária e
sacudir a incómoda supremacia dos reis nas monarquias bárbaras de unidade débil e, muitas vezes, com
monarcas eletivos.

Examinada a origem do feudalismo em França, cuja evolução vai do século VII aos fins do século IX,
Herculano propõe-se analisar se, na Península Ibérica onde nesse período decorre a última fase da
monarquia visigótica, a sua ruina pela invasão muçulmana e o início da Reconquista com a fundação do reino
de Oviedo-Leão, ocorreram as causas que no resto da Europa conduziram ao regime feudal.

Herculano analisou profundamente o Código Visigótico, ou Livro dos Juízes, para chamar a atenção para as
diferentes épocas das leis nele compiladas e para o facto de não dever ser considerado repositório do
Direito efetivamente praticado, quer por não consistir na recolha dos costumes tradicionais, quer por refletir
em muitos casos um propósito de racionalização e de modernização do Direito transmitido aos juízes que
pudessem conhecer alguma cópia manuscrita.

Henrique da Gama Barros, na sua História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV, retoma
o assunto no título consagrado ao «Poder do Rei», alegando que «só depois de conhecermos até que ponto
essa organização social (o feudalismo) exerceu influxo entre nós, poderemos verdadeiramente apreciar os
limites que de facto circunscreviam à coroa o exercício da soberania» 86.

Gama Barros aceita a formulação de feudalismo, cujas características seriam seguintes: a condição social e
política do homem depende da terra que ele ocupa; existem relações hierárquicas de umas terras para
outras, há terras dominantes e terras inferiores; algumas têm esse duplo caráter, dominantes a respeito de
certas terras inferiores em relação a outras; a soberania está ligada em certos casos à propriedade
territorial. E esclarece na sociedade feudal, os direitos e deveres políticos têm por base a posse da terra e
perderam a natureza de simplesmente pessoais; assim, a obrigação do serviço militar, o mais essencial

85
Idem, ibidem.
86
Henrique da Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV, eª ed., p. 165.

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desses deveres no regime do feudalismo, recai inteiramente sobre a posse do feudo e é devida só à terra
que tem sobre o feudo o direito de suserania. As relações de obediência e fidelidade da universalidade dos
súbditos deixaram de ser diretas para com o rei; no feudalismo há suseranos e feudatários, não há rei e
súbditos, não há obrigações gerais e imediatas de todos os membros da sociedade para com o representante
do Estado.

O autor confessa assim a sua integração, entre outras, não pondo em dúvida a existência do sistema feudal
noutros países da Europa, porque é que só em relação à Península Hispânica essa exigência tem
impugnadores? Não leva isso a suspeitar que não há evidência da subordinação de todos esses países,
incluindo as monarquias ibéricas, a princípios idênticos?

Ocupando-se da sociedade leonesa-castelhana em 1250, que evidentemente não se conserva estranha às


ideias feudais, mas que as não tem recebido a ponto de sofrer transformação na sua organização
fundamental, incompatível com o regime do feudalismo. Os burgueses de Tui são vassalos do bispo e a ele
prestam homenagem. Mas os deveres dos habitantes do senhorio para com o prelado estão limitados pelos
deveres dos habitantes do senhorio para com o rei, que é quem exerce na vila a soberania, sancionando os
foros dela; e a coroa garante a sua proteção aos vassalos do bispo contra as opressões eu ele praticar. Os
vassalos do bispo, representados pela entidade concelho, estão obrigados diretamente para com o monarca
ao serviço militar e a fornecer-lhe comestíveis em determinados casos. Vê-se, portanto, que o senhorio de
Tui estava longe de constituir um feudo, embora se observem nele existentes condições e fórmulas que se
filiam, sem dúvida, nas práticas feudais.

Em resumo, afirma Gama Barros, o único facto substancial que aproximou o regime português do sistema
feudal foi os senhores estarem revestidos do poder público em seus domínios próprios. Mas, por um lado,
esses domínios correspondiam a um direito de propriedade não dependente de encargos nem inserido
numa hierarquia de terras nobres; por outro, o exercício do poder público estava subordinado nos senhorios
à autoridade do monarca, mesmo que esta fosse exercida mais de direito que de facto.

A supremacia do monarca resultou da sua chefia militar afirmada durante a guerra da Reconquista; do
interesse do clero em conservar essa autoridade conservadora da ordem e segurança em todo o território; e
no desenvolvimento das instituições municipais que contrariava as pretensões dos senhores e contra elas
buscava aliança nos reis. Prossegue «Não se deve perder de vista que estamos numa época em que a força
valia muito mais que do direito». Por isso, as fraquezas e dificuldades de um monarca eram logo
aproveitadas pelos poderosos e em Portugal em certos períodos as classes privilegiadas estavam «nos seus
domínios próprios numa situação análoga, a muitos respeitos, à dos barões nos seus feudos e até, em parte,
mais favorecida que a destes»87.

87
Idem, p. 363

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Gama Barros acha «nas relações da classe nobre para com a coroa diferenças radicais com o sistema feudal,
mas, considerado nos seus domínios próprios, o homem nobre aparece-nos numa situação que tem
manifesta analogia com a dos senhores feudais, na imunidade, no exercício dos direitos jurisdicionais e nos
encargos e serviços que lhe deviam os moradores e cultivadores das suas terras. Embora na origem esta
situação fosse de todo alheia ao regime do feudalismo, reconhecemos o influxo dele na extensão dos
direitos e prerrogativas que se foram arrogando em Leão e Castela os senhorios particulares»88.

E mais diz: «Nestes reinos e no de Portugal, a ação e a reação entre o princípio feudal, que era dominante
em grande parte da Europa, e as circunstâncias peculiares da Península que repeliam aquele princípio,
produziram um sistema político especial, que não era o feudalismo porque lhe faltavam os caracteres
essenciais, mas que também proporcionava à aristocracia elementos vigorosos de resistência ao
desenvolvimento do poder do rei, nos amplíssimos privilégios de que a nobreza estava revestida»89.

Manuel Paulo Merêa retoma o assunto num opúsculo 90 e afirma que o feudalismo, onde quer que apareceu,
formou-se lentamente, insensivelmente, sob a ação de uma multidão de fatores obscuros: «o feudalismo
não é romano nem germânico, pertence à natureza humana. O feudalismo não nasce de um sistema político,
mas tem as suas raízes no terreno da vida privada».

É importante não confundir feudo com senhorio ainda que a sua conjunção normal tenha sido dado à
organização política dos séculos XI, XII e XIII a sua fisionomia característica, trata-se de institutos distintos. O
feudo é um benefício a cuja concessão veio juntar-se, como condição sine qua non, a obrigação de
vassalagem expressa no juramento de fidelidade, criando dependência pessoal e voluntária, com os deveres
de prestação de serviços nobres, sobretudo o serviço militar – excluídas as prestações pecuniárias ou de
valor pecuniário em períodos certos -, em troca de fidelidade, proteção e justiça prometidas pelo suserano.

Mas o senhorio pode existir sem o contrato feudal e neste é que reside a essência do feudalismo. Em
resumo, o contrato feudal, pela qual o feudo adquire existência não implica essencialmente dispersão de
soberania, o que não impede que apreça quase sempre ligado ao senhorio.

Paulo Merêa, ao abordar a questão do feudalismo em Portugal, pergunta se em Portuga existiram


verdadeiros feudos e verdadeiros senhorios? A verdade é que em Portugal a organização política nunca teve
como elemento essencial o contrato de feudo, com esse ou outro nome. Uma coisa é o feudo, outra o
senhorio, de onde a necessidade de distinguir o regime senhorial do regime feudal, embora nos países de
típico feudalismo os dois sistemas apreçam amalgamados e numa estreita interdependência 91.

88
Idem, p. 372.
89
Idem, ibidem.
90
Introdução ao problema do feudalismo em Portugal-Origem do feudalismo e caracterização deste regímen, Coimbra, 1912.
91
Paulo Merêa «Organização Social e Administração Pública», in História de Portugal, vol. II, edição de Barcelos (1929), p. 468.

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Merêa conclui, pois, que em Portugal, como Leão, apenas conheceu o regime senhorial, mas com uma
fisionomia própria que se denota nas relações do rei com os súbditos, na importância da cavalaria vilã, na
remuneração do serviço militar pelo sistema da soldada, pela supremacia do monarca em relação aos
maiores privilegiados e pelo caráter amovível dos cargos públicos. E refere os obstáculos intransponíveis que
dificultaram o feudalismo em Portugal, como autoridade da coroa, mantida firme pela permanência do
estado de guerra, e considerável massa de homens livres que, sobretudo depois de constituído em núcleos
municipais, serviam de contrapeso em face da nobreza.

A análise de Sanchez Albornoz, que coincide com Gama Barros, a quem se devem estudos basilares sobre a
recomendação e o patrocínio, o benefício e a imunidade originária dos senhorios, na Espanha visigoda e os
reinos da Reconquista, revela que houve uma génese peninsular do regime feudal cuja evolução foi
interrompida de modo a produzir-se um regime diverso eu, todavia, em certa altura, sob a influência
estrangeira, incluiu instituições, práticas e designações feudais.

4. A sociedade Portuguesa no Primeiro Século da Independência

Divisão do Território e Administração Local

Na Idade Média, a divisão do território e administração Local caracterizam-se pela grande irregularidade e
variedade: não havia regras uniformes para a divisão do território, nem quanto ao regime administrativo das
várias circunscrições, nem para determinar o número, a denominação e os poderes das autoridades e dos
funcionários. Tudo variava de lugar para lugar, com uma frequência desconcertante.

No período em estudo, a administração e a justiça pertenciam por via de regra às mesmas autoridades. O
chefe militar era juiz, como os juízes superintendiam na administração. É, pois, com estas observações
prévias que vamos expor as linhas gerais da divisão do território e sua administração local, na segunda
metade do séc. XII e primeira do século XIII.

O território estava dividido em terras de extensão variável, à frente de cada uma das quais se encontrava um
rico-homem, que as tinha em nome do rei, como governador da sua confiança (tenens, o tenente, que
governava uma tenência).

Era o rico-homem, fundamentalmente o chefe militar da sua terra, devendo levantar nesta as tropas, em
caso de mobilização, e manter sempre a sua mesnada composta pelos seus próprios vassalos. Representava
o rei e, como tal, podia intervir no governo do distrito e presidir às assembleias judiciais que na sede se
reunissem.

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A autoridade do rico-homem era mais ou menos efetiva consoante a situação e a condição jurídica das
diversas partes do seu distrito. Havia zonas despovoadas: outras agricultadas, pertencentes à coroa,
cultivadas por reguengueiros ou foreiros ou dadas em préstamo a prestameiros que recebiam os
rendimentos respetivos: havia coutos e honras dependentes dos respetivos senhores; aqui e acolá, como
ilhas, surgiam os primeiros concelhos.

Ao norte do Douro, onde subsistiam os quadros tradicionais da coroa com muitos senhorios pelo meio e
raríssimos concelhos, embora fosse pujante a organização paroquial. Nas Beiras, de repovoamento mais
tardio, também a coroa tinha terras vastas, havendo menos domínios senhoriais e multiplicando-se os
pequenos concelhos, muitos deles ainda rudimentares. A expansão para o sul do Mondego vai originando a
concessão de cartas de foral, que instituem novos municípios, aos quais, por vezes, são atribuídos extensos
alfozes ou territórios dependentes. A luta contra os sarracenos e de guarnição de uma fronteira flutuante
origina aí as grandes doações às ordens religiosas, militares ou a senhores, além dos domínios da coroa.

Julgados e assembleias judiciais

Ao norte do Mondego havia certa regularidade na divisão do território em julgados. O julgado era a área da
jurisdição de um judex, que superentendia na administração e na justiça em nome do rei e sob a autoridade
dele (como na Cúria de 1211).Mas lá estavam os senhorios e os concelhos que não obedeciam à jurisdição
desse juiz. Para cobrar as rendas da coroa havia funcionários próprios, os mordomos, os quais julgavam as
questões fiscais e procediam às execuções por dívidas.

Os julgados abrangiam certo número de freguesias (colationes), as quais também se encontram nos coutos e
honras dos concelhos. As freguesias eram circunscrições eclesiásticas, constituídas pelos fiéis que
contribuíam para o culto de uma igreja paroquial e estavam sujeitos à jurisdição do respetivo pároco,
delegado do bispo da diocese. Não faziam parte, portanto, da organização administrativa civil, mas
constituíam as células fundamentais da estrutura social do País, nelas enquadrando muitos atos populares
da vida económica e jurídica.

Por todo o país existiam castelos subordinados ao rei, embora os houvesse senhoriais também. Esses
castelos eram governados por um alcaide ou casteleiro, geralmente dependente do rico-homem e por ele
nomeado, mas com obrigação de prestar menagem ao monarca. Além de comandar o castelo e de exercer
jurisdição sobre os cavaleiros, competia a manutenção da ordem e a polícia da povoação junto do castelo,
função geralmente delegada num alcaide-menor. A cadeia estava no castelo e aí se cobrava a carceragem.
Outros tributos ligados à função formavam a alcaidaria.

Os concelhos

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No território português fora pouco a pouco aparecendo cada vez mais concelhos. A palavra concelho vem do
latim concilium, que significa reunião, assembleia. De modo que se encontra o termo na linguagem
medieval, empregando em sentido comum, para designar reunião de vária índole, como as do clero, ou a
92
dos homens-bons de um julgado ou terra, destinadas à decisão de um pleito (assembleias judiciais) .
Porém, quando falamos em concelho, ligando a palavra à ideia das instituições municipais, referimo-nos a
qualquer coisa de específico. O ponto de partida é o concilium, a assembleia dos vizinhos de uma povoação
reunida para tratar dos seus interesses comuns. Isto pressupõe uma povoação de homens livres, que têm de
resolver os seus problemas pelos próprios meios.

Se são homens livres, quer dizer que habitam e exploram terras onde não se encontram individualmente
93
dependentes de um senhor, um dominus . A povoação aberta ou acastelada, cuja existência se afigura
fundamental, é o centro de uma área, o termo, o alfoz, por ela dominada nos aspetos económico e
jurisdicional. Nessa área territorial se encontram as terras apropriadas pelos que inicialmente formam o
concelho, e mais zonas inexploradas, parte das quais se destinam à fruição comum, onde todos os vizinhos
poderão apascentar os seus rebanhos, apanhar lenhas, usar águas, sendo uma parte reservada para
eventual partilha por futuros habitantes à medida que fossem sendo recebidos na comunidade. Para isso
havia magistrados especiais, os sesmeiros, encarregados, na área do sesmo, talhar e delimitar a parte a
entregar aos recém-vindos.

Sobre o território municipal incidiam encargos em benefício do rei ou do senhor que dele havia aberto mão
ou que tinha recebido o concelho em préstamo: as daí resultavam para os municípios direitos e deveres em
conjunto, um regime comum e privativo do grupo, que era origem de uma comunidade.

O termo do concelho estava fixado, em muitos casos, pelo costume já estabelecido à data em que a
comunidade era juridicamente reconhecida. Outras vezes é definido, com limites preciosos, na carta de
foral. Mas noutros ainda o foral não definia essa delimitação a que só mais tarde se procedia, com ou sem
colocação de marcos.

Como se formava então, antes do reconhecimento jurídico, a unidade social originária da comunidade?

Dependia das circunstâncias e tanto podia resultar de interesses económicos e povoações nascentes como,
em velhos povoados do Norte do País, nascia da transformação da freguesia ou paróquia e da igreja onde
para os atos de culto se reuniam os fiéis, juntando-se depois no adro para conversarem dos interesses
comuns.

92
Também se empregava o conventus publicus, quer dizer não só a assembleia de vizinhos como sitio onde costumam reunir-se as pessoas. Quando a
lei manda praticar certo ato no conventus publicus vicinorum há que entender em muitos casos que é para ter lugar no adro da igreja, em praça ou
outro local onde habitualmente se juntem os vizinhos.
93
Cf. Gama Barros, ob.cit., p. tomo Xi,p. 22.

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Os problemas que de início solicitam mais instantaneamente a intervenção do concelho são os económicos -
pastos e águas comuns, apascentação dos rebanhos, ajuda mútua na lavoura, etc. Depressa a necessidade
de observar as resoluções tomadas deverá ter forçado o concelho a castigar os infratores, passando a
funcionar como tradicionalmente agiam as juntas ou assembleias judiciais. E a disciplina da povoação
passaria a ser por ele exercida também.

Quando esta povoação tem de tratar com outras povoações ou com o rico-homem ou com o rei, os seus
mensageiros não dirão então que vão em nome dos habitantes, mas sim da assembleia que deliberou
encarregá-los da sua mensagem.

Falam em nome do concelho, transmitem a vontade do concelho. O concelho surge como se fosse uma
pessoa, é uma unidade que se sobrepõe à pluralidade dos seus componentes. Atuando, pois, o concelho
como se fora uma individualidade única, diz-se que tem personalidade jurídica.

Aí esta a coletividade com personalidade distinta dos indivíduos que a compõem, capaz de exercer direitos e
de assumir obrigações, as quais pertencem ao todo e não a cada um dos componentes isolados. Esta pessoa
coletiva atua por intermédio de órgãos próprios. A assembleia dos vizinhos pode designar pra a resolução de
cada caso ou para execução de cada deliberação alguns do seus membros que a representam: são os
magistrados eventuais.

Para facilitar, porém, a atuação da autoridade municipal, quando se torne mais frequente a necessidade do
seu exercício, será preferível que haja magistrados permanentes, eleitos pela assembleia ou aproveitando
algum funcionário régio que passe a acumular com essas funções a de representante e executor do
concilium.

De maneira que inicialmente o concelho seria a povoação de homens livres onde reunisse a assembleia para
deliberar sobre os seus interesses comuns e que exercesse, normalmente por meio de magistrados que a
representassem, a autoridade necessária para fazer acatar as deliberações tomadas e para se comportar
como pessoa jurídica nas relações com outras entidades.

Qual a origem dos concelhos?

Problema muito discutido da história das instituições medievais. Os eruditos tendencialmente filiam sempre
certa instituição de uma época noutra instituição de época anterior, ligando-as através de indícios
documentais.

No caso dos concelhos da Reconquista tem de reconhecer-se, segundo Marcelo Caetano, que a tese que os
filia no município romano, sustentada entre nós por Herculano, se apresentava em termos sedutores, tantas
são as semelhanças encontradas entre os dois tipos de organização local. Mas as investigações posteriores à
época em que Herculano escreveu mostraram a impossibilidade de tal filiação. Gama Barros, que ao

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94
princípio acompanhou o grande historiador, abandonou a tese inicial e Sanchez Albornoz 95 demonstrou,
definitivamente, que, como já antes expusera Levy Provençal, os vestígios das instituições municipais
romanas conservadas no final da monarquia visigótica desapareceram durante o domínio muçulmano, e que
também não se conservaram no reino das Astúrias. Parece ser a orientação que se caminha para a verdade,
e era já a que Marcelo Caetano perfilhou em 1940.

As semelhanças que se podem notar entre a organização dos concelhos medievais e a dos municípios
romanos devem provir de duas origens: porque as mesmas necessidades, quando em análogas
circunstâncias, fazem surgir as mesmas soluções; porque o clero, na leitura dos livros que conservavam a
memória das instituições romanas, encontrava soluções ou fórmulas que fazia adotar, dando-se assim uma
romanização do município medieval por via erudita que é, em muitos casos, inegável.

Que circunstâncias eram estas?

Seriam, primitivamente a formação de novas povoações nas áreas reconquistadas (sobretudo no vale do
Douro) com homens que a presúria tornava livres e que se uniam para defender essa liberdade a tratar dos
seus interesses, sem intervenção de autoridades régias, porventura inexistentes ou longínquas. Ou, quando
existisse autoridade, esta, absorvida pelas preocupações militares, não se ocuparia das questões correntes
da vida coletiva, deixadas à assembleia de vizinhos. Por vezes, porém, acederia a participar nas reuniões e
até a tomar a seu cargo a execução das deliberações delas, transformando-se nessa parte em magistrado
municipal.

Nas povoações mais importantes, aonde acorrem ao mercado as gentes dos arredores e se cruzam os
forasteiros, mercadores, peregrinos, jograis, as que chamamos cidades, e que cedo tomaram o nome de vilas
em lugar dos antigos latifúndios, deve ter sido a segunda hipótese que mais vezes se verificou. O cadi das
cidades muçulmanas era o chefe religioso e juiz e nomeava o almotacé para fiscalizar ruas, comércio,
mercados, pesos e medidas. Desaparecido o cadi (alcaide), os habitantes chamaram a si a almotaçaria ou
polícia económica, que aparece nos concelhos urbanos do Centro e do Sul, mais tarde, como núcleo
essencial das atribuições municipais.

Como se multiplicaram os concelhos?

A primitiva fórmula de concelho rural espontaneamente surgida à margem da intervenção ou talvez até do
poder político deve ter mostrado tal eficiência no desenvolvimento das povoações e constituído objeto de
tal apreço por parte dos municípios, que a certa altura passou a ser invejada e cobiçada por outros núcleos
populacionais.

94
Cf. ,ob. cit. Tomo XI, p. 26.
95
Ruina y extencion del município romano en España y instituciones que le reemplazan ,1943.

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Apesar da dificuldade de comunicações e do relativo isolamento, é também uma característica medieval a


expansão das ideias, que conduz em certos casos a impressionantes reproduções dos mesmos factos ou dos
mesmos atos em lugares muito distantes uns dos outros, às vezes em países estrangeiros.

Se há casos em que as instituições municipais resultam da conquista obtida pelas populações, após luta com
os senhores (caso de Coimbra, quanto ao seu foral de 1111), ou até aproveitando a fraqueza do poder real
(como acontece durante o reinado de D. Sancho I), o mais comum é que sejam concessão dos reis ou
senhores, como instrumento da sua política de povoamento, de aumento da riqueza pública, de
multiplicação de fontes ou de simples satisfação de aspirações manifestadas pelas populações.

Herculano enumerou assim as causas do desenvolvimento das instituições municipais neste período: a
libertação gradual das classes servas, originando núcleos importantes de homens livres que aspiravam a
formar comunidades concelhias; a recompensa de dádivas valiosas ou serviços extraordinários devidos a
povoações; a necessidade de prevenir revoltas iminentes, e outras causas acidentais. Assim é que as
instituições municipais vão sobretudo florescer nos meios urbanos, dando a esta expressão um sentido
amplo (como temos acentuado), significativo de aglomerações populacionais mais compactas, em muitos
casos cercadas de muralhas.

Como se administravam os concelhos?

Marcelo Caetano não encontra resposta fácil a esta questão, pois a organização municipal estava adequada
às condições peculiares de cada concelho: situação geográfica, tipo urbano ou rural, caráter da povoação
(consoante era nova ou antiga) missão que lhe era destinada (arroteamento da terra, comércio, defesa
militar…), vitalidade da população.

Havia, apenas, certos padrões que correspondiam às cartas de foral: o rei escolhia um desses modelos, que
julgava adequado ao caso, e com pequenas alterações (e às vezes mesmo sem elas) adotava-o, aplicando-o
ao novo concelho. Daqui resultam as diversas famílias de concelhos que permitiram a Herculano a sua
classificação, segundo os respetivos forais, em concelhos rudimentares imperfeitos (com seis géneros) e
perfeitos (com três géneros)96.

Dada esta variedade não é fácil destacar traços comuns na organização dos concelhos, genericamente
considerados, tanto mais que os forais não tratam dos órgãos da administração municipal, aos quais fazem
vagas referências. Em todos eles existe a assembleia de vizinhos ou concelho propriamente dito, em que
podem tomar parte todos os homens livres que tenham casa e morada habitual na povoação ou território

96
Mais tarde, Torquato de Sousa Soares propôs outra classificação, em concelhos urbanos, rurais e distritais, com várias especialidades em cada
classe.

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municipal. Em nosso entender é mesmo a existência desta assembleia com autoridade própria que
caracteriza o município medieval.

Não tinham direito a participar na assembleia (não faziam parte do concelho) os não-livres, os habitantes
dos reguengos (reguengueiros) e os que tinham foro especial: mouros forros, judeus, clérigos e nobres. Há
lugares, porém, onde os clérigos são admitidos no concelho. Os nobres, que nalguns forais eram proibidos
de residir no território municipal, quando nele pudesse morar só faziam parte do concelho se renunciassem
aos seus privilégios sujeitando-se às leis comuns e compartilhando dos encargos e obrigações da
coletividade.

A assembleia municipal exercia importantes funções quanto à regulamentação da vida coletiva, mediante
posturas ou degredos, aos problemas mais importantes de interesse comum, à eleição de magistrados, ao
testemunho de atos jurídicos, ao julgamento de questões.

A tendência, porém, foi para se ir restringindo a participação nas reuniões ordinárias apenas a certos
vizinhos mais sisudos e experientes, com mais tempo disponível e mais interesse pelas coisas públicas -os
homens-bons. Pela necessidade de haver quem permanentemente representasse a coletividade e
executasse as deliberações concelhias, breve sugiram as magistraturas permanentes. São variadas, quanto
ao caráter, funções e até designação. Aqui há um ou dois juízes, acolá existem três ou quatro alvazis (a
tendência foi no sentido da fixação em dois, apenas), além existem vários alcaldes, às vezes funcionando sob
a presidência do judex designado pelo rei. Onde houvesse terras vagas a repartir e delimitar para cultura
eram eleitos sesmeiros.

Nas povoações formadas junto a um castelo, o alcaide (pretor) intervinha na vida municipal, presidindo às
assembleias e ao tribunal local com os alvazis e homens-bons. Como o alcaide propriamente dito, ou alcaide-
mor, era um nobre por vezes de alta estirpe, fazia-se substituir no exercício quotidiano das funções por
outrem, de menos categoria, o alcaide-mor.

Forais

Os costumes locais praticavam-se em certa região, em certo distrito ou até em certa povoação. No meio
fechado da localidade ia-se constituindo o direito costumeiro com tais sedimentos da tradição oral do
conteúdo de certas leis escritas, e com os exemplos colhidos em memoráveis casos julgados pelo tribunal
local. A complexidade desse costume levou os vizinhos de alguns concelhos a mandar compilá-los por
escrito, nascendo assim as importantíssimas compilações do direito costumeiro denominadas foros ou
costumes municipais.

Em muitos casos os reis ou senhores, ao fundar uma povoação, davam-lhe, juntamente com o foral, os
costumes ou foros de outra povoação: desta maneira aquilo que numa localidade fora elaborado como

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costume, funcionava na outra já como norma geral imposta na outorgada, isto é, como verdadeira lei,
complemento do foral.

Marcelo Caetano julga vantajoso distinguir os costumes municipais compilados localmente, e em geral
registados sem qualquer ordem através dos tempos, dos códigos, por vezes já sistematizados por matérias e
divididos em partes, que os monarcas outorgavam com os forais ou foros breves a um novo concelho, fruto
de povoamento ou repovoamento recente, utilizando as normas vigentes em mais antigas povoações e que
poderíamos designar por foros extensos.

Lindley Cintra, por sua vez, considera que o direito consuetudinário estava em vigor em localidades de
fundação antiga, e até mesmo noutras cidades numa primeira fase da Reconquista, e as suas disposições
eram aplicadas regularmente muito antes de sentir a necessidade de o fixar por escrito.

Em geral, começou-se por consignar apenas um ou outro dos seus princípios no foral. Só bastante mais tarde
se procedeu à consignação total em determinado códice das leis e regulamentos por que se ia reger certo
concelho.

Foi a partir de fins do séc. XII e principalmente durante os séculos XIII e XIV, já sob a influência do Direito
Romano, que se produziu este grande movimento de redução a escrito do direito consuetudinário local 97.

Herculano atribui aos foros de Castelo Rodrigo e Castelo Melhor o ano de 1209 por ser esta data em que
Afonso IX, de Leão, concedeu foral à primeira dessas povoações. Mas como nota Lindley Cintra, a concessão
de foros, isto é, de determinado direito consuetudinário não implicava forçosamente a concessão imediata
de um texto em que esse direito estivesse consignado 98.

Na verdade, é frequente o monarca, no texto de um foral, outorgar aos munícipes o foro e o costume de
certa localidade. Os habitantes tiveram, pois, liberdade de procurar e de adotar o costume melhor para eles,
e só depois procurariam obter cópia do que tivessem escolhido, por vezes submetida posteriormente a
confirmação régia.

Os forais são importantíssimas fontes de Direito Local. A palavra foral deriva do latim forum , que também
deu foro, usado até ao séc. XV para designar o que depois se chamou foral. Neste período o termo forum
aparece empregado na linguagem jurídica em diversas aceções. Uma delas é a de lei: o Código Visigótico,
como se viu, era denominado forum judicium, a lei dos juízes, expressão que originou no castelhano o fuero
juzgo.

Mas foros eram também os costumes praticados tradicionalmente em certa localidade ou região o direito
objetivo peculiar dos cidadãos desse lugar e que eles defendiam como privilégio seu.

97
A Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, Lisboa, 1959,p. LXXVII.
98
Idem, p. XCV.

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A definição de foral apresenta as dificuldades comuns a todas as instituições medievais: não se pode
formular um conceito muito estrito, tantas são as variantes que os forais apresentam e as imprecisões do
conteúdo de muito deles. Não há uma regra, um padrão único a que todos obedeçam.

Herculano restringia a classificação de foral aos atos de que se depreendesse a criação de um município ou a
99
fixação do Direito Público local . Mas hoje tende-se a abandonar esse critério, porque as instituições
municipais nem sempre eram expressamente outorgadas pelo foral onde muitas vezes elas apenas eram
pressupostas segundo os usos gerais ou como consequência decorrente da sua concessão. Gama Barros, na
análise minuciosa do regime jurídico das terras com organização municipal, veio realçar aspetos importantes
do conteúdo jurídico dos forais.

Há em primeiro lugar que distinguir entre os forais originários e os forais confirmativos e ampliativos. A
mesma localidade pode, através da sua história anterior ao séc. XVI (quando se fez reforma geral dos forais),
ter recebido mais do que um foral, o primeiro dos quais é o fundamental, que o posterior ou posteriores
vêm a seguir confirmar, completar e ampliar. É aos forais originários que nesta altura nos vamos referir,
enunciando algumas características genéricas, a saber:

- O foral é um documento escrito (carta) outorgado unilateralmente pelo rei ou por entidade senhorial que
possa dispor de certa área de terra em benefício de uma coletividade de pessoas;

- Embora desse documento não conste a aceitação dos destinatários, ele é considerado um documento
inviolável por qualquer das partes, o que torna difícil distingui-lo dos contratos abertos;

- O objetivo principal documento é conceder a essa coletividade de indivíduos presentes e futuros o domínio
da área que eles irão povoar, cultivar e defender como homens livres, que já são ou que passam a ser no
momento do ingresso nela;

- A concessão do domínio da terra pode ser em plena propriedade com encargos sobre o conjunto a
satisfazer pela coletividade, como só do domínio útil de cada parcela que individualmente fica obrigado para
com o senhorio direto, ainda quando essas obrigações sejam satisfeitas através de funcionários da
coletividade;

- Em qualquer caso a concessão da terra é feita a título perpétuo e hereditário, com o poder para os
destinatários de alinearam as suas partes desde que obedeçam a certas condições;

- O documento fixa precisamente os encargos ou obrigações que a coletividade (e seus membros) fica tendo
para com o concedente, evitando o arbítrio ou o abuso nas exigências, e garante, em geral sob a forma de
privilégios, que tornem atraente a fixação na povoação considerada.

99
Alexandre Herculano, História de Portugal, 8ª edição, vol. VII, p. 85

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- Desta regulação de direitos e obrigações da coletividade fixada na terra concedida e que respeitam quer às
relações da coletividade com o senhor concedente, quer às relações dos membros desta entre si ou com
outras entidades locais, resulta uma comunhão de interesse individualizadora da entidade social dessa
coletividade;

-A comunhão dos interesses, a necessidade de os membros da coletividade se concertarem acerca do


cumprimento das obrigações coletivas e da fruição e defesa dos seus direitos e privilégios, dando
consciência à existência de uma entidade social distinta das outras, leva à reunião da assembleia dos
interessados (concilium) e à criação através de magistrados encarregados de reger a coletividade.

Parece, assim, que devemos considerar foral de uma povoação toda a carta onde se encontrem mais ou
menos desenvolvidas as características enunciadas. Assim tanto pode ser foral a carta de povoação
destinada a atrair habitantes para desbravar uma terra erma, como o aforamento coletivo pelo qual optam
com frequência as corporações monásticas e as ordens militares e os foros breves em que já se encontram, a
par das concessões essenciais, algumas normas de conduta que formam a lei particular da localidade
privilegiada.

Muito importante é a fixação precisa dos tributos e prestações que os vizinhos terão de satisfazer. Como
alguns desses tributos eram multas devidas pela prática de crimes, encontram-se nos forais numerosas
normas criminais. Mas só se incluíam regras referentes a casos em que era indispensável definir a multa a
apagar.

Inutilmente se procurará no foral a organização do município, com a indicação das suas magistraturas.
Muitos forais são totalmente omissos a tal respeito. Noutros apenas aqui e acolá ou ali uma referência
incidental ao concílio, às magistraturas municipais ou aos funcionários régios.

A organização municipal era costumeira: existia já na data da outorga do foral ou se estrutura depois,
segundo os costumes locais ou do concelho a cuja família o foram pertencia. Nas terras da coroa,
submetidas ao regime de reguengo ou ao sistema de foreiro, pontificavam os funcionários do fisco com
exigências que, dada a ideia de que o domínio da terra permanecia comum ao senhor e ao colono, ou estava
repartido entre eles, e na falta de regras ou contratos escritos e de fiscalização assídua, eram muitas vezes
opressoras abusivas e vexatórias.

O foral significa que uma povoação conseguia ter a sua lei escrita a garantir-lhe a propriedade dos bens
individuais e comunais e de onde constavam precisamente os deveres a cumprir para com o rei. E coisa
análoga acontecia relativamente aos coutos e honras, onde também os senhores podiam conceder foral a
uma ou outra povoação.

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Da segurança e independência que tal lei resultava provinha a vantagem de os membros da coletividade se
ligarem intimamente a esta, reivindicando a sua qualidade de vizinhos. Além disso, as necessidades públicas
(povoamento, defesa, cultura da terra) que determinavam a outorga dos forais levavam a incluir nelas certas
isenções de deveres penosos a que o comum da plebe estava sujeito, ou certas facilidades, favores ou
liberdades que o vulgo não possuía. Eram estas isenções e prerrogativas, ligadas à fixidez das obrigações,
que constituíam o privilégio da povoação detentora do foral.

A povoação individualizava-se, ganhava personalidade e, para garantia e defesa dos direitos comuns, carecia
de órgãos próprios: a assembleia dos vizinhos e os magistrados. De modo que o foral arrastava consigo,
mesmo que o não estabelecesse expressamente, a formação do concelho. Pode não haver sinais de
magistraturas no seu texto, que isso não significa a inexistência atual ou próxima futura das instituições
municipais na povoação que tem de considerar-se verdadeiros forais, quando garantam a liberdade das
pessoas, que, como temos visto, estava intimamente ligada à livre disposição dos bens.

Compreende-se como, sendo a liberdade das pessoas e dos bens a essência do foral, este era desejado nos
burgos ou aglomerações urbanas mais importantes, vilas cercadas ou muralhas a cujo abrigo decorria o
comércio marítimo (lisboa e Porto) ou aonde acorria a gente de fora a fazer mercado ou feira.

Os forais eram normalmente outorgados pelo rei, mas dentro dos seus senhorios podiam dá-los os
respetivos senhores: existem nesta época muitos concedidos por bispos, mestres das ordens militares,
corporações monásticas ou ricos-homens. Nestes casos os direitos concedidos sobre as terras abrangidas
pelo foral não podiam ser mais amplos do que os outorgantes eram titulares.

Mas mesmo que apenas os concelhos em sentido estrito tivessem sido contemplados, precisamos estar de
sobreaviso. Ao contrário do que se possa pensar, a relação entre os forais manuelinos (é a esses que nos
reportamos) e os concelhos é marcada mais por ambiguidades do que por cumplicidades aprofundadas. Com
efeito, os concelhos não são chamados para arbitrarem o que quer que seja nas matérias a introduzir nos
forais manuelinos, mas apenas a apoiar logisticamente as inquirições preparatórias e a servirem de
guardiães e fiéis depositários do documento final.

Os forais de D. Manuel nem na letra nem no espírito tocam nas estruturas tradicionais da administração
concelhia nem mexem nas competências governativas dos oficiais municipais. Mais do que confirmar ou
reafirmar expressamente capacidades de intervenção das autoridades concelhias, os forais manuelinos
pressupõem-nas. Dito de outra forma: D. Manuel não aproveitou a reforma dos forais para reforçar os
poderes concelhios. Longe disso. A questão da reforma dos forais punha-se no objetivo e no propósito de
resolver bem uma relação triangular que se mostrava progressivamente mais difícil entre os lavradores e
foreiros de um lado, os donatários e senhores das terras por outro e o Rei-árbitro no cume do processo.

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Onde é que entravam os concelhos? No seguinte: os lavradores e foreiros, embora trabalhassem a terra
individualmente ou em família, agrupavam-se em comunidades pequenas ou grandes inseridas e integradas
em concelhos (ou elas próprias eram concelhos) cujos oficiais eram os porta-vozes das queixas e os Paços do
Concelho a câmara de ressonância das mesmas 100.

Foi às Cortes quatrocentistas e quinhentistas que, através dos Procuradores dos Concelhos, chegaram as
reclamações e protestos dos lavradores explorados. E quando Fernão de Pina vai pelo Reino recolher
elementos para proceder à correta reforma dos forais, faz as suas inquirições encontrando-se com a
população em quadro municipal porque não havia outro com força representativa e capacidade de
mobilização das pessoas.

A Igreja quando estava presente fazia mais o papel de senhorio do que o de porta-voz dos foreiros. E quando
chegava o momento da decisão, era o Rei que surgia através de peritos de grande competência e prestígio
institucional por ele próprio nomeados.

E depois de elaborado e escrito o foral, mantém-se o triângulo na sua distribuição ou encaminhamento: um


exemplar é entregue ao senhorio, outro fica na posse do poder central, guardando-se no sítio próprio que
era a Torre do Tombo e como era impensável fornecer um exemplar a cada foreiro, o terceiro confiava-se à
guarda do Concelho, competindo aos Juízes e Vereadores conservá-lo em bom estado, sob pena de
repreensão ou mesmo de punição por parte do Corregedor na sua correição anual.

Daí que os estudos sobre os forais se possam inserir numa visão genérica da historiografia municipal.
Terminava aqui a relação do Concelho com o Foral? Não, porque o mesmo foral previa mecanismos de
punição do senhorio que abusasse ou levasse mais direitos do que os consagrados no diploma.

E quem é que aplicava essas penas? São exatamente oficiais locais de eleição ou confirmação concelhia:
juízes, vintaneiros ou até quadrilheiros. Resta saber se oficiais rudes e analfabetos, como seriam estes em
grande percentagem, teriam coragem e força para punir senhorios todos poderosos como, por exemplo, os
Condes da Feira! Mas essa é outra questão, embora seja a pensar nessa circunstância que acima caracterizei
de ambígua a relação entre os forais e os concelhos.

Outra razão para tal é que os forais podem fornecer elementos subsidiários para o estudo das relações de
poder dentro de um determinado espaço, para além de conservarem informações preciosas sobre
toponímia, antroponímia, direitos e costumes tradicionais.

Que temas em concreto é possível colher e apreender nestas publicações?

100
Mafalda Soares da Cunha; Teresa Fonseca (ed.), «Os municípios no Portugal Moderno: Dos Forais Manuelinos às Reformas Liberais», Centro
Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, Edições Colibiri, maio 2005.

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Aspetos históricos e histórico-jurídicos dos forais; estrutura formal e divisões internas; os foros e o seu
significado económico-social; a propriedade e o uso da terra; as regras de uso e partilha dos meios de
produção; forais e senhorialismo, as relações foraleiras entre lavradores e senhorios; notas sobre
antroponímia e toponímia; glossário dos termos utilizados, etc. Mas são possíveis e desejáveis estudos
transversais.

Não são muito numerosos os estudos diretos e exclusivos sobre os concelhos portugueses nos séculos XVI e
XVII, sendo bastante mais abundantes os dedicados ao século XVIII e aos finais do Antigo Regime.
Provavelmente esta será uma tendência geral da historiografia portuguesa e não apenas da historiografia
sobre o municipalismo.

A sensibilização do Ensino Superior para estas matérias tem sido renovada e ampliada, sobretudo nas
Faculdades de Letras, que tem dedicado atenção e inserido os estudos sobre História Local e Regional nas
suas ofertas de pós-graduação.

E não só nas Faculdades de Letras e não apenas nas Universidades Públicas. Sinal do renovado interesse
pelos estudos locais e regionais e talvez do desaparecimento do preconceito de que a História Local era um
assunto menor, mais próprio para amadores desocupados do que para universitários. Como se pudesse
haver verdadeira e séria História Nacional ou Geral sem o contributo das monografias dos espaços mais
pequenos e das micro instituições ou como se entre uma e outras se pudessem estabelecer diferenças
abissais de metodologia e de objeto.

Um outro dado a reter é o progressivo interesse das Câmaras pelos estudos municipais, como se pode
concluir dos repetidos colóquios e congressos sobre o poder local que têm patrocinado, com o suporte
científico das Universidades e, aqui e ali, pelo apoio que têm dado a publicações sobre a terra. O exemplo
dos forais acima lembrado é elucidativo

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5. Consolidação do Estado Português (1248-1495)

Nesta época, que compreende os reinados de D. Afonso III, D. Dinis, D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando, o
poder real ganha relevo no contexto das instituições políticas por duas razões principais: primeira, porque as
circunstâncias vão favorecendo a afirmação da autoridade régia, na medida em que para ela se apela como
providência dos males que afligem a coletividade; segunda, porque essa afirmação toma consciência e
prossegue como política sistemática e perseverante graças à influência dos legistas na corte.

São, na verdade, os doutores ou licenciados em Leis por Paris ou pelas universidades italianas que trazem
para Portugal as ideias do Estado e da autoridade soberana do príncipe, absorvidas no Direito Imperial
Romano contido nas grandes compilações justinianas reunidas ao Corpus Juris Civilis.

Por outro lado, o desenvolvimento da filosofia escolástica, depois que S. Tomás de Aquino (1224-1274)
operou a síntese do pensamento aristotélico com a filosofia cristã, suscitou o estudo dos problemas dos
governantes -os príncipes-, dos quais é paradigma o célebre De regimine principium, em que se acredita ter
colaborado o próprio S. Tomás, se é que não pertence à sua autoria.

Até ao séc. XIV predomina na Europa cristã a ideia de que existe uma hierarquia de poderes: todo o poder
vem de Deus, mas o sumo Pontífice é o vigário de Cristo na Terra e recebeu diretamente de Jesus a sua
autoridade para conduzir toda a Cristandade no caminho de salvação.

Os reis e príncipes têm poder para governar seus povos mas, como cristãos, estão subordinados ao papa, a
quem devem acatar em tudo quanto, direta ou indiretamente, possa influir nos destinos espirituais da
Humanidade. Esta doutrina, da supremacia do gládio espiritual sobre o Gládio temporal, conduzia a uma
forma de teocracia, ou governo do sacerdócio, e é exposta e defendida ainda no século XIV.

D. Afonso III, quando investido na regência do Reino sendo conde de Bolonha, jurou em Paris (setembro de
1245) ser obediente e devoto à Igreja Romana. Mas com o correr dos tempos entrou em conflito com ela e
esteve a ponto de morrer excomungado 101.

A tendência daí por diante será cada vez mais no sentido de, embora reconhecendo ao pontífice romano a
chefia da Cristandade e, por conseguinte, da sociedade internacional por ela constituída, procurar firmar a
autonomia do poder temporal dos reis, reivindicando para o monarca português autoridade própria, não
derivada do papa mas resultante dos desígnios da Providencia Divina. O rei foi posto por Deus na função que
exerce e, para o exercício dos seus poderes na ordem terrena, está no lugar de Deus.

101
A bula de Gregório X, de Regno Portugaliae, de 4 de setembro de 1275, que a morte do pontífice parece não ter deixado produzir efeito,
exprobava ao monarca a quebra do seu juramento e, caso não se emendasse, ameaçava com sanções de gravidade progressiva que poderiam
culminar na privação da coroa, tal como se fizera ao irmão.

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A doutrina que coloca os reis e os papas em posição semelhante quanto à origem do Poder, apenas os
diferenciando quanto às matérias em que o exerciam, já é perfilhada por D. Dinis, e será repetidamente
invocada por D. Afonso IV e pelos seus sucessores.

Que poderes e atribuições tinham as Cortes neste período? Nunca esta matéria foi bem definida. Sem
dúvida que as Cortes não faziam leis: o poder legislativo pertencia por inteiro ao rei, o qual podia ouvir os
súbditos, mas com plena liberdade de decisão. As Cortes, através dos agravamentos ou exposição dos males
a reparar acompanhada do pedido de solução que julgavam justa, apenas davam ensejo a que a autoridade
do rei se exercesse, assentando-se porém que fosse resolvido em Cortes não poderia ser depois alterado
pelo rei só por si.

A principal atribuição deliberativa das Cortes dizia respeito à cunhagem e à quebra da moeda e votação dos
tributos extraordinários que interessassem toda a Nação. Os nobres e prelados que a elas tinham direito de
ir participar nas Cortes designados segundo a tradição. Em geral, a nobreza era representada pelos membros
da família real e pelos ricos-homens, vassalos direitos do rei. O clero compreendia bispos, abades e
superiores das ordens religiosas e de certos grandes mosteiros autónomos, representantes dos cabidos e
mestres das ordens militares.

Quanto aos concelhos, nesta época há grande incerteza sobre os que eram chamados às Cortes, pois só
nelas tinham assento os que fossem convocados, participaram os de todas as cidades e os de algumas vilas
escolhidas), mas podia a convocação estender-se a outros que tivessem interesse em estar presentes ou que
houvesse interesse em ouvir.

Concelhos Meirinhos-mores e corregedores

A administração local nesta época sofre transformações que acusam fundamentalmente a influência dos
dois fatores cuja importância na evolução das instituições de então: a crescente complexidade da
administração, exigindo aumento do número dos magistrados e funcionários e sua especialização; o vulto
tomado pelo poder real e a sua intervenção efetiva em novos domínios do governo do Reino.

D. Afonso III e D. Dinis concederam ainda numerosos forais, embora os do último já muitas vezes destinado a
regularizar relações tributárias entre as povoações e a coroa. Nos concelhos a administração municipal
tende para certa uniformização, mau grado permanecerem diferenças de nomenclatura.

Nas Cortes de 1331 queixam-se os concelhos de que estavam sendo privados de aldeias situadas nos seus
termos (áreas de sua jurisdição) para serem criadas novas vilas. Ao que o rei responde que assim tem de ser
e está no seu direito para melhor povoar e aproveitar as terras.

O aumento do número de magistrados municipais foi uma constante nos últimos anos do reinado do séc. XIII
(reinado de D. Dinis):os dois alvazis primitivos passam a ser chamados alvazis gerais e são criados mais dois

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alvazi dos ovençais e dos judeus com competência para jugar as questões surgidas entre os cidadãos e os
oficiais régios com jurisdição na cidade, bem como os judeus que estavam sob a sua proteção real.

Os almotacés, já nessa altura eram 24 por ano. Um procurador do concelho tinha por função promover tudo
o que fosse do interesse da cidade, atuando nas questões judiciais como Ministério Público. Havia também
um tesoureiro do concelho com o respetivo escrivão, que prestava contas aos contadores do concelho.

A fazenda régia e a superintendência nos vastos e importantes reguengos dos arredores de Lisboa estavam a
cargo do almoxarife, com seu escrivão, nomeados pelo rei, os quais julgavam os litígios que nessas matérias
surgissem. Quanto aos restantes pleitos civis eram decididos nos reguengos pelo vigário, mas nalguns o rei
consentiu que houvesse juiz eleito. Os habitantes dos concelhos não eram vizinhos dos concelhos onde essas
terras estivessem encravadas.

Intervenção do rei na administração municipal

Fazia-se nas povoações com castelo, mediante os alcaides. Dentro do castelo, ou alcáçova, o concelho não
tinha jurisdição e os respetivos habitantes gozavam de privilégios especiais, mas estavam subordinados
exclusivamente ao comando militar. Também os ricos-homens, tenentes das terras, podiam intervir de
passagem para providenciar sobre qualquer abuso ou reclamação.

D. Afonso III, dada a necessidade de por ordem no Reino, e na impossibilidade de ele próprio estar
constantemente em toda a parte, embora nos primeiros anos viajasse muito, nomeou fidalgos, com a
designação de meirinhos-mores, para irem, em seu lugar, visitar certos distritos e aí proverem à manutenção
da ordem, assegurando a regularidade da justiça e tendendo às queixas relativas à administração.

D. Dinis manteve a instituição dos meirinhos-mores dos distritos, como para eles parece ter transferido as
atribuições não militares dos antigos tenentes das terras. E começam no seu reinado a surgir magistrados
extraordinários, geralmente legistas da corte, enviados para «correger» desordens e perturbações em certas
zonas, ou comarcas, como o nome de corregedores, por vezes sob a autoridade do meirinho-mor que
superintendia no distrito que abrangesse várias comarcas.

A preocupação de melhorar a administração da justiça leva o rei, já no princípio do séc. XIV, a mandar para
um ou outro concelho onde os alvazis ou juízes da terra se não mostrassem à altura das necessidades juízes
de fora da sua nomeação, que se intitulavam juízes por el-rei. Nem sempre eram letrados, isto é, com graus
universitários, mas os concelhos tinham de lhes pagar ordenado certo, ao contrário do que sucedia com os
juízes da terra.

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Aparecimento dos vereadores e multiplicação dos juízes de fora

Porventura em consequência das observações que as visitas aos concelhos permitiam aos corregedores,
mostrando os juízes ou alvazis assoberbados com a justiça e a dificuldade cada vez maior de reunir com
frequência a assembleia municipal, pois a população crescia e a vida ia-se tornando mais absorvente, o rei,
em nova versão do Regimento dos Corregedores, feita em 1340 inclui uma ordenação dos vereadores dos
concelhos, elaborada em 1338. Nessa ordenação determinava-se que nas questões de pura administração
os juízes sejam assistidos em cada concelho por alguns homens bons para esse efeito designados e que
reunirão semanalmente para deliberarem.

Está aqui a origem dos vereadores que, reduzidos a dois ou três, começaram a aparecer nos concelhos a
partir de 1342. Daqui por diante a administração municipal estará normalmente entregue aos juízes ou
alvazis assistidos pelos vereadores, e só para os casos de maior importância e gravidade se convocará o
concelho ou assembleia municipal.

D. Afonso IV foi um reformista que devido à grande mortalidade provocada pela peste negra teve
consequências negativas na mortalidade e desorganizou a administração local, e originou um grande
número de heranças, muitas delas ligadas à execução de testamentos. Quiseram as autoridades eclesiásticas
chamar a si tudo quanto respeitasse a tais testamentos: o rei reagiu pela lei de 21 de março de 1349, em que
reivindicava para os juízes leigos essa competência. E como os homens-bons dos concelhos não estavam à
altura das dificuldades, resolveu nomear, para os municípios onde julgou conveniente, juízes de fora que
substituíssem os da terra, enquanto para Lisboa designava um novo juiz especializado, o juiz dos
testamentos.

Nas Cortes de 1352 os povos reclamaram no 7º artigo contra esta quebra dos seus foros e contra o encargo
que representava terem de pagar a tais juízes salário tirado dos bens dos concelhos. O rei explica que os
juízes das terras sendo delas naturais tinham sempre na localidade muitos parentes e amigos que os
impediam de fazer justiça como convinha; era necessário dar cumprimento aos numerosos testamentos que,
por virtude da peste, aguardavam execução.

Ao argumento de que o pagamento aos juízes onerava os povos, respondia o monarca observando que a
importância dos salários seria largamente compensada pela cobrança dos rendimentos atrasados e pelo
aumento das receitas que havia de resultar da lavoura e do aproveitamento da terra graças à ação dos
magistrados. Todavia, o rei confirmava a o direito dos concelhos a eleger os seus juízes ou alvazis, o que não
impediu que continuassem a ser nomeados juízes de fora.

A administração municipal vai cada vez mais pertencendo apenas ao grupo formado pelos juízes e
vereadores, os quais reúnem, não já nos adros das igrejas ou dentro destas ou nas praças públicas, sob

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telheiros mas sim numa sala, ou câmara, da casa para tal efeito destinada. Estas reuniões dentro de casa irão
originar a designação de câmara dada à vereação com seu presidente.

Quando o assunto é mais importante, são convocados os maiorais da terra, os bons, homens mais ricos e
experientes, excluindo-se do governo local a plebe (o povo miúdo, o povo comum), na qual havia tendência
para englobar os mesteirais. Acentuava-se, assim, um governo de grupo, uma oligarquia municipal que
descontentava, nos concelhos mais importantes, as classes em ascensão social. Deve notar-se a constante
preocupação de excluir deste grupo os privilegiados fidalgos, e religiosos, que não participassem dos
encargos do concelho e pudessem ter a pretensão de influir pelo seu poderio nos destinos da comunidade.
Só eram admitidos os que se sujeitassem à lei comum.

O regime senhorial vigorava durante toda esta época na sua plenitude. A afirmação progressiva da
supremacia do poder real vai, naturalmente, marcando a subordinação dos senhores à coroa: em vez de
formarem uma classe, de que o rei é mero expoente, os senhores vão, pouco a pouco, sendo reduzidos à
posição de auxiliares e delegados do monarca. Mas esta evolução é lenta, e o rei ao travar a luta com o
poder eclesiástico tinha de se apoiar, como apoiou, na nobreza.

A ação da realeza relativamente ao regime senhorial, nesta época, reduz-se, por um lado, a tentar coibir os
abusos que se verificavam na criação de novas honras; por outro lado, a manter nas terras imunes os
senhores dentro dos poderes que lhes haviam sido concebidos, impedindo que os ampliassem e sobretudo
que deixassem de respeitar a suprema jurisdição da coroa, de que aliás as Inquirições Gerais iriam tirar a
limpo o estado do território quanto à sua ocupação aos direitos da coroa, dos senhores e dos senhores e dos
povoadores102.

Costume. Compilações de costumes municipais

A multiplicação das leis gerais neste período não impediu a vigência do costume que, elas próprias, em
muitos casos reafirmavam. Mas, por outro lado, o campo de aplicação do Direito consuetudinário foi,
naturalmente, restringido progressivamente, embora continuasse a ser amplo; por outro lado, o legislador ia
procurando que deveriam ser respeitados e sobre aqueles que não mereciam continuar vigorando. Muito
importante para a fixação do Direito consuetudinário local foi a redação em diversos concelhos dos
costumes municipais, ou a preocupação de se dispor para o julgamento dos casos de um texto escrito.

102
O modo de criação de imunidades territoriais mais perigoso para os direitos da coroa era através das honras, que resultava de a terra pertencer
um fidalgo.

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6. Da Revolução de 1383 até ao fim do reinado de D. João II ( 1383-1495)

O País, no final do séc. XIV, continuava a apresentar o aspeto em relação aos períodos anteriores e que Costa
Lobo lucidamente resume: à parte a região de Entre Douro e Minho, bastante povoada e agricultada, o resto
do território surge-nos como uma sucessão de bosques, matas e matos, de onde aqui e acolá e ali surgiam
povoações.

A população toda do Reino não deveria andar longe do milhão de habitantes e as povoações não eram muito
populosas: sabe-se, por exemplo, da Guarda, que em 1465 não chegava a ter 1000 habitantes, e Évora,
cidade das mais importantes no fim do século XV, andava à roda dos 4500. Quanto a Lisboa, calcula-se que
por alturas de 1385 não tivesse mais de 20 000 a 25 000 habitantes.

Consumada a revolução de 1385 e restabelecido o regime monárquico a obediência dos subtidos


inteiramente aos mandatos do seu rei e senhor, vinha expressa nas ordenações Afonsinas, V, 67, os termos
desse dever, que antes de ser jurídico é de consciência, importando a sua transgressão em pecado mortal, e
são claramente definidos em texto da autoria dos compiladores.

Os súbditos devem, pois, acatamento às decisões do monarca que, por sua vez, tem a obrigação de impô-las
coercivamente, não deixando sem castigo, os violadores da lei: só assim ministrará uma justiça eficaz.

A ideia de que a obediência dos súbditos tem a sua contrapartida no cumprimento dos deveres do rei
ressalta no proémio dos capítulos apresentados pelos procuradores dos concelhos a D. João II nas Cortes de
Évora de 1481-1482: “assim como toda a comunidade de sujeitos e singularmente cada uma do povo deve
obedecer e servir com amor e temor reverencial ao príncipe, segundo a doutrina do apóstolo (entende-se
com a Epístola de S. Paulo aos Romanos) que nos recomenda obediência aos reis pela sua grande excelência:
assim é necessário que ele a todos deva defensão, graciosa benfeitoria e amor paternal” 103 . Não há assim
autoridade que não venha de Deus e todos os poderes existentes por Ele foram ordenados. Pelo que quem
resiste à autoridade desobedece à ordem divina.

O poder do rei, embora vasto, era imitado nessa época por várias maneiras. Sem falar no dever de
consciência que o monarca tinha de dar o exemplo de acatamento às suas próprias leis e de se submeter ao
Direito divino e ao Direito natural (como se dizia no prólogo das Ordenações Afonsinas), o soberano jurava
logo no momento da sua aclamação (e ratificava depois esse juramento em Cortes) guardar e respeitar os
foros e privilégios do clero, da nobreza e do povo, isto é, os direitos particulares das classes, dos lugares e
das instituições.

103
Visconde de Santarém, Alguns Documentos para Servirem de Prova à Parte 2ª das Memórias para a História e Teorias das Cortes Gerais, p. 60, e
Lopes Praça, Coleção, I, p. 104.

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As restrições dessas regalias, a imposição de leis gerais, só a muito custo eram conseguidas pelo rei. Além
disso, a máquina governativa já ia sendo complexa, e o monarca era apenas uma peça desse sistema de
conselhos, tribunais e funcionários que formavam a corte e a rede dos seus agentes.

Quanto às cortes eram a instituição própria para os três estados do Reino-clero, nobreza e povo dos
concelhos, até mesmo a Universidade de Lisboa – apresentarem os problemas próprios de cada um,
formularem as suas queixas e obterem providências, quer sob a forma de lei geral – na qual a resposta do rei
ficava valendo como um compromisso tomado par com o Reino-, quer sob a forma de privilégio especial de
uma localidade ou de uma classe. A legislação local provém, sobretudo, das respostas aos artigos especiais
levados às Cortes pelos procuradores de certa cidade ou vila.

A questão da revogação pelo rei, apenas, das leis resultantes das respostas aos artigos apresentados em
Cortes surgiu mais de uma vez. O costume constitucional era o de que, feita a lei em Cortes, só noutras
Cortes podia ser desfeita, revogada ou substituída. Mas por vezes o monarca infringia essa regra. Na verdade
desrespeitou várias das leis acordadas então, como resulta do capítulo 6º das Cortes de 1455, em que os
concelhos se queixam e solicitam mais uma vez a manutenção do costume, o que foi deferido por D. Afonso
V.

Administração Local neste período: Corregedores e juízes

A representação do rei na vida local continua confiada aos corregedores das comarcas, embora nalguns
períodos reapareçam esporadicamente governadores fidalgos, com o título de meirinhos-mores, a absorver
as respetivas funções em mais larga competência.

O novo regimento de D. Duarte procura insuflar sangue novo na administração, estimulando os


corregedores a cumprir melhor as suas funções para impedir negligências e ilegalidades da parte das
autoridades sujeitas à inspeção deles. Inspetores da administração da justiça deveriam verificar se as
querelas por feitos-crimes eram registadas e tinham o seguimento conveniente, mandando prender os
criminosos que indevidamente andassem á solta e proceder à inquirição dos crimes graves, bem como
verificar se as investigações anteriores haviam sido conduzidas como deveria ser. Reprimiam os bandos,
castigariam os encobridores, providenciariam sobre o porte ilegal de armas e sobre os infamadores dos
mosteiros femininos.

Apesar das proibições imposta aos tabeliões e aos corregedores de não julgarem como juiz as causas cíveis e
crimes, antes tratariam de espevitar a diligência dos juízes competentes, são frequentes as queixas por
avocaram e julgarem abusivamente causas comuns, sob o pretexto de os juízes demorarem a processá-los.

A sua ação na parte administrativa ou do vereamento da terra não era menos importante. Deveriam ainda
receber as queixas que os cidadãos quisessem fazer das autoridades locais e dos funcionários do fisco;

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verificar se as terras andavam lavradas e se a mão-de-obra era equitativamente repartida; saber as razões
do despovoamento das terras, quando ocorresse; averiguar se os castelos estavam bem conservados e
abastecidos e se as prisões ofereciam segurança; examinar os forais, para ver se eram cumpridos; julgar do
zelo dos vereadores e verificar se as funções municipais estavam providas e exercidas devidamente,
providenciando sobre as eleições para os diversos cargos e apurando o estado das rendas dos concelhos.

Em caso de forçada necessidade, podia o corregedor fazer-se substituir, até um mês, por um ouvidor,
devendo recorrer ao rei quando precisasse de que a substituição tivesse maior duração.

Como sucedia em relação a outras autoridades, não faltaram nas Cortes queixas dos abusos dos
corregedores, quanto a instalação (aposentadoria), requisições e cobrança de encargos indevidos (as
Ordenações proibiam que levassem direitos de chancelaria, portaria ou carceragem), e dos seus auxiliares,
agentes e familiares.

Concelhos. Intervenção dos mesteres na administração municipal

Três vereadores formavam com os juízes, ordinários ou de fora, a Câmara, cujas deliberações eram
chamadas vereações. As funções dos vereadores são discriminadas no título 27 do livro I das Ordenações
Afonsinas: competia-lhes o encargo de “todo o regimento da terra e das obras do concelho e qualquer cousa
que pudessem fazer e entender para que a terra e moradores dela possam bem viver”.

Com os juízes, julgavam as causas das injúrias verbais e dos furtos pequenos, bem como as apelações da
almotaçaria nas causas de maior valor. Quando os assuntos referentes ao governo local fossem importantes,
deveriam os vereadores, “ antes que façam as posturas e vereações e outras cousas” chamar os “homens-
bons que para a relação e regimento da cidade são apartados”. Estes homens-bons ou bons eram aqueles
vizinhos que pela sua experiência, pela sua idade e situação económica, fossem reputados prudentes e
sabedores: usualmente proprietários rurais e chefes de família, estavam entre eles os que exercessem ou já
tivessem exercido magistraturas régias ou municipais. Formavam uma oligarquia, mais ou menos numerosa
e importante conforme também a grandeza e riqueza do município. O parecer que emitissem chegava para a
resolução das “ cousas leves e boas”: mas nas “ cousas grandes e graves” era necessário convocar a
assembleia dos vizinhos, chefes de família, formando o concelho propriamente dito. O sino da Câmara
tangia para a convocação no adro da igreja paroquial ou noutro local amplo. E aí os vereadores “ digam-lhes
as cousas quais são e o proveito ou dano que se lhes pode recrear… e o que por todos, ou a maior parte
deles, fora acordado assim o façam logo pôr em escrito no livro da vereação e deem seu acordo à execução”.

Assim se produziam as posturas ou leis municipais e as mais importantes vereações ou deliberações sobre
casos concretos. Junto da Câmara funcionava o procurador do concelho para “requerer e procurar todos os
feitos e cousas da cidade ou vila”, devendo acumular as funções de tesoureiro naqueles concelhos em que

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este cargo não existisse separadamente. O escrivão da Câmara deveria escriturar, além dos assentos das
deliberações tomadas, as receitas e despesas municipais 104 .

Em cada concelho deveria haver anualmente 24 almotacés, para servirem dois em cada mês. Competia-lhes
fiscalizar o exercício dos vários ofícios pelos mesteirais e a observância dos preços ou taxas a que estavam
sujeitos; verificar o aferimento dos pesos e medidas e a honestidade do seu uso pelos mercadores; tabelar o
peixe pescado e impedir o açambarcamento dele; vigiar os açougues, feiras e mercados. Tinham também a
seu cargo a limpeza da povoação.

Aos transgressores das posturas municipais sobre estas matérias eram aplicadas multas (coimas) pelos
almotacés que nos dias aprazados faziam audiências em que “ livrariam todos os feitos direitamente e
brevemente sem processos e grandes escrituras”, com apelação e agravo para os juízes municipais, que
decidiriam nas questões de menos valor, mas tinham de reunir com os vereadores nas de maior valor. Junto
dos almotacés servia o escrivão da almotaçaria.

Devia o alcaide-mor, nas terras onde houvesse castelo e por foro e costume antigo o pudesse fazer, tomar a
seu cargo a segurança da povoação para prevenir e reprimir os delitos, designando para o policiamento, com
o acordo da Câmara, um alcaide pequeno. Este alcaide chefiava um grupo de homens-jurados designados
pela Câmara para a guarda, de dia e de noite, da povoação, e no policiamento noturno devia ser
acompanhado de um escrivão ou, não o havendo, um tabelião. Em Lisboa, desde o rei D. Fernando que esses
homens eram designados por freguesias, tendo o nome de quadrilheiros 105.

Consagrando uma antiga tradição, as Ordenações Afonsinas eram muito rigorosas ao determinar a
subordinação dos agentes policiais aos juízes. Só por mandado destes podiam prender alguém e, quando a
detenção fosse sem mandato, deviam levar os detidos logo perante o juiz, salvo sendo de noite, porque
então poderiam encerrá-los na prisão até de manhã fazerem a apresentação judicial. Do mesmo modo o
alcaide não podia soltar nenhum preso sem mandato judicial.

Quanto à eleição dos magistrados municipais, houve no reinado de D. João I uma importante modificação
que estabeleceu a norma daí por diante. Até 1391 juízes e vereadores eram eleitos pela assembleia
municipal. Nesse ano, em Évora, o rei, com o acordo do seu conselho, considerando os inconvenientes do
sistema eleitoral, que origina a formação de partidos (bandos),os quais empregam a opressão e a
galopinagem (sajoorias e rogos grandes) para conseguirem a eleição de pessoas não idóneas, resultando daí
com frequência tumultos (voltas e roídos) e dissensões duradouras (inimizades), resolve mandar adotar
outro processo de designação.

104
Ordenações Afonsinas, I, p. 28.
105
Freire de Oliveira, Elementos para a História do Município de Lisboa, V, p. 409,nota.

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Em cada concelho passaria a haver permanentemente listas das pessoas consideradas idóneas para o
desempenho dos diversos cargos: juiz, vereador, procurador, etc. Cada nome aí recenseado era depois
escrito num pequeno papel (alvará, diz a lei), encerrado a seguir numa pequena bola de cera, que por ter o
feitio das balas passou a chamar-se pelouro. Estas bolas eram encerradas numa arca, com duas chaves,
designada por arca dos pelouros. Chegado o dia marcado para a renovação dos cargos municipais, abria-se a
arca, tiravam-se os pelouros de cada cargo, lançavam-se num capuz (capeirete), de onde um homem-bom
extraia à sorte aqueles que iam servir no ano seguinte106.

Ao corregedor competia, ao chegar à cidade ou vila, chamar à Câmara os juízes, vereadores, procurador e
homens-bons para acolherem seis pessoas, que duas a duas, separadamente e depois de prestarem
juramento, indicassem nomes idóneos para juízes, vereadores, procuradores e escrivães da Câmara, em rol
distinto para cada cargo.

Entregues os róis ao corregedor, este compararia os papéis recebidos e selecionaria os votados, encerrando
cada nome deles em pelouro, depois metido num saco para cada função e guardados os sacos na arca, para
oportuno sorteio pela mão de “ um moço até sete anos”.

Aquando da revolução de 1383, tiveram papel decisivo nos acontecimentos de Lisboa os mesteirais, ou
artífices, considerados então membros da plebe, do “ povo comum”, e excluídos, portanto, do patriarcado
urbano que dava leis à cidade, impondo inclusivamente as taxas dos preços dos artefactos que eles
produziam.

Em recompensa dessa ação, o Mestre de Avis, por carta de abril de 1384, entre outros privilégios, concedeu
que as autoridades municipais não pudessem aprovar posturas, aumentar impostos, contrair encargos,
eleger juízes, vereadores ou procurador, ou “ dar ofícios”, isto é, nomear funcionários, sem que dois
homens-bons de cada mester fossem chamados a votar, deliberando por maioria. Assim a carta do Mestre
de Avis de 1384 apenas determina que em certos casos a vereação não pudesse tomar deliberações sem a
presença e o acordo da maioria de votos de uma assembleia constituída por “ dois homens-bons de cada
mester”.

Esta expressão significa que deveriam ser convocados dois homens de cada profissão, mas sem que tal
inculque a existência anterior de organismos que a representassem. E também é absolutamente inexato que
D. João I houvesse fundado a Casa dos Vinte e Quatro e nomeado o seu primeiro juiz do povo.

O Mestre de Avis ao determinar a presença dos representantes das artes e ofícios nos principais atos do
município acabou com o caráter oligárquico que a administração municipal tinha assumido e permitiu às
novas forças económicas da cidade terem voz e voto nas matérias que diretamente as interessavam.

106
Lei de 12 de junho de 1391, mais conhecida por lei dos pelouros.

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Mas porque é que estava fixado em vinte e quatro o número dos representantes dos mesteirais
na cidade?

Tem-se admitido por serem doze os organismos representados. A afirmação carece de base, pois não se
provou que houvesse, entre 1384 e 1433, qualquer organismo profissional instituído em Lisboa, e menos
ainda, portanto, quais fossem os doze ofícios representados.

Marcelo Caetano sugere a hipótese de que a fixação do número de vinte e quatro tivesse por origem a
existência de colégios análogos noutras sociedades europeias: nas Cortes de Évora de 1481-1482 os
representantes dos concelhos protestam contra a participação dos mesteres no governo dos municípios ao
que o rei responde que os mesteirais só terão voto em Lisboa.

Em 29 de março de 1484, D. João II, institui uma multa de 100 réis para o caso de falta à eleição dos
procuradores dos mesteres, determinando que os Vinte e Quatro escolham um presidente de entre si para
fazer respeitar a nova disciplina. É este presidente que passa a ser conhecido, nos séculos XV e XVI, por juiz
dos vinte e quatro e no século XVII ( e só então) por juiz do povo.

Como surge a Casa dos Vinte Quatro?

Data do final do século XV a função mais ativa dos Vinte e quatro. Convocados quando necessário pelo seu
presidente ou juiz (o termo era empregue como sinónimo daquele), era a eles que os quatro procuradores
permanentes consultavam sempre que queriam orientar-se ou aliviar responsabilidades.

Fundado em 1492 o Hospital Real de Todos-os-Santos em consequência da incorporação dos pequenos


hospícios dispersos pela cidade, como muitos destes eram propriedade dos mesteres, foi reservada no
grande edifício do Rossio, onde a munificência régia instalou o novo hospital, uma ampla sala para os
mesteirais se reunirem. Aí passou a fazer-se regulamente as assembleias dos Vinte e Quatro e por isso foi
chamada Casa dos Vinte e Quatro. Este nome não é, pois, inicialmente o de uma instituição: aparece apenas
no princípio do século XVI para designar uma sede e só depois se tornou extensivo à instituição. Foi o que
aconteceu com a Câmara Municipal, que começou por ser a sala e só depois se tornou extensivo à
instituição.

As associações profissionais: hospitais e confrarias

A atividade profissional dos mesteirais estava, de início, exclusivamente submetida à legislação régia e à
disciplina da polícia municipal, traduzida nas posturas e executada pelos almotacés. Salário e preços dos
artigos produzidos pelos artesãos eram fixados pela Câmara. Era a Câmara também que determinava o
arruamento dos mesteres para maior facilidade de fiscalização e comodidade do público. A almotaçaria era
uma das mais antigas e características atribuições municipais e a ela andava ligado tudo quando respetiva ao
abastecimento urbano e à regularidade dos mercados.

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Residia aí a principal razão pela qual os mesteirais tanto se interessavam por participar no governo
municipal, entregue, até ao séc. XVI, à alta burguesia citadina ou, pelo menos, por serem ouvidos quando se
tratava de assuntos que tocassem nos seus problemas correntes.

A primeira forma que a sua associação profissional assumiu foi, no séc. XV, a formação de confrarias para a
instituição de hospitais. O hospital era nesse tempo um lugar de recolha de inválidos e de abrigo de
peregrinos ou viandantes. Para albergar os antigos mesteirais inutilizados pela velhice ou pela doença e os
viajeiros (sobretudo os mesteirais e mercadores ambulantes) muitas profissões instituíram o seu hospital
privativo. Para o manterem era necessário que se associassem e daí nascia a confraria.

Aquando da concentração dos pequenos hospitais no Hospital Real de Todos-os-Santos, em 1492, há notícia
da existência de hospitais de alfaiates, armeiros, caldeireiros e barbeiros; carniceiros carpinteiros e
pedreiros; ourives; peleteiros; tanoeiros, tecelões, e do grande Hospital de S.Vicente.

Como já foi dito eram aos concelhos que competia fixar anualmente os preços por que haviam de ser
vendidos os artigos mais necessários ao consumo local e prestados os serviços dos oficiais das artes e ofícios.
Esse tabelamento ou taxação, porém, era extraordinariamente difícil de elaborar e fazer observar em épocas
de instabilidade económica, caracterizadas sempre por fortes e frequentes variações de preços. De modo
que em certos períodos as Câmaras deixavam de exercer essa função e abandonavam os mercados à sorte
das flutuações naturais.

Ora. D. João II herdara, sob este aspeto, uma situação verdadeiramente deplorável do reinado de seu pai, D.
Afonso V, que fez uma política destituída de quaisquer escrúpulos e segundo o testemunho de Costa Lobo,
«nenhum dos nossos reis cunhou tanta variedade de tipos de moeda de ínfima, ou, nenhuma lei, como este
monarca».107 O Príncipe Perfeito procurou remediar a situação, restabelecer a confiança e estabilizar os
preços, preparando tudo para o saneamento monetário que veio a operar em 1498. Na verdade, a carta
régia de 20 de abril de 1487 «determina que em todas as cidades, vilas e lugares» se elaborem «taxas» ou
tabelas «sobre oficiais de ofícios e artes mecânicas e outras coisas que adiante serão declaradas»

As Ordenações Afonsinas

Na verdade não existia regra definida ou prática certa sobre o modo de tornar conhecidas as leis e de dar
solene início à sua vigência. Antes de descoberta a imprensa, havia que registar os diplomas na corte e que
enviar cópias aos corregedores e aos concelhos interessados, para aí serem publicamente lidas e
conservadas; mas sempre que se tratasse de matérias que aproveitassem espacialmente a certo lugar, era o
próprio concelho que tinha de pedir certidões, como em geral sucedia com as respostas aos capítulos das
Cortes.

107
História da Sociedade em Portugal no Século XV, p. 325.

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As Ordenações eram uma extensa compilação em que havia muita matéria que interessava ao rei que fosse
conhecida e observada e alguma de interesse particular das classes e dos lugares. Não seria praticável tirar
logo tantas cópias quanto os concelhos para as tornar conhecidas dos juízes. O mais provável é que,
concluída a compilação, o original tivesse ficado na Chancelaria, como decorre da lei de 27 de maio de 1454.

Era natural que a primeira cópia fosse destinada à Casa da Suplicação, que andava com a corte, ou à Casa do
Cível, de Lisboa. E pouco a pouco, mas lentamente, iriam sendo tiradas mais cópias mais completas, que só
podiam ser custeadas por concelhos ricos.

As Câmaras e As Juradorias

Desde os finais da Idade Média que todo o espaço continental da monarquia portuguesa se encontrava
coberto por concelhos, designados por cidades, vilas, concelhos, coutos, honras ou simplesmente terras.
Todos os concelhos era constituídos por câmaras municipais, as quais possuíam em toda a parte atribuições
formais parcialmente coincidentes, nestas se incluindo a jurisdição em primeira instância, pelo menos na
parte cível108.

A municipalização do espaço político local constituiu uma das heranças medievais mais relevantes. De facto,
nos últimos séculos da Idade Média, tende a atenuar-se, em parte, a contraposição entre os concelhos rurais
e concelhos urbanos, ou mesmo, entre terras da coroa e terras de senhorio.

Ao longo da primeira dinastia coexistiam no território português as terras senhoriais (coutos e honras), os
concelhos «perfeitos» ou urbanos, os concelhos «imperfeitos» ou «rurais» (uns e outros tendo geralmente
recebido cartas de foral régias) e os julgados (área de jurisdição de um juiz local, mas sem carta de foral ou
instituições tipicamente municipais. No entanto, as formas de exercício e de regulação das relações
interpessoais mais próximas da comunidade local e da paróquia são precisamente aquelas mais difíceis de
conhecer e de analisar.

Parece indiscutível no final do século XV a universalização do modelo concelhio como unidade administrativa
e judicial de primeira instância, como tal reconhecida e identificada nos primeiros numeramentos. Nas terras
da coroa, tende a comunicar-se das grandes para as pequenas povoações e tanto umas como as outras vão
sendo, em muitos casos, doadas a senhores leigos ao longo da segunda dinastia apesar da frequente
oposição das câmaras.

Na realidade, o alargamento das terras senhoriais e a municipalização do espaço já não constituíam nesta
época realidades antagónicas. O mesmo modelo tende a emergir em muitas das terras senhoriais mais
antigas. Contra a opinião de António Manuel Hespanha segundo a qual em finais do século em finais do

108
César de Oliveira ( dir.) ,« A Sociedade Local o s Seus Protagonistas», História da Administração dos Municípios e do Poder Local .Dos Finais da
Idade Média À União Europeia, Círculo de Leitores.

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109
século XIV os concelhos constituíam «uma quadrícula regular do território» , afirmou José Matoso que a
organização concelhia não atinge nunca , até ao final da Idade Média, as terras dos senhorios 110 .

Na municipalização do território, a intervenção da coroa e a codificação das fontes do direito


111
desempenharam um papel relevante . A verdade é que a reforma manuelina dos forais (1497-1520) veio
completar essa uniformização. As cartas de foral reformadas deixaram de conter praticamente as normas
relativas à administração e ao direito particular estatuído para cada terra. Estas obedecem agora ao modelo
estatuído nas Ordenações. O que os forais novos herdaram dos forais antigos foi quase só a discriminação
dos direitos e encargos devidos, em cada concelho ou território, à coroa ou aos seus donatários, os quais se
manteriam, com algumas alterações impostas mais pelo uso do que pelo direito, em pleno vigor até 1832.

No início do século XVI, quando se realizou o primeiro grande numeramento (1527-1532), todo o espaço
continental da monarquia portuguesa estaria, assim, coberto por instituições que obedeciam a um mesmo
modelo, todas elas compartilhavam as mesmas magistraturas, às quais se atribuíam idênticas competências.

Os ofícios municipais compreendiam sempre, em primeiro lugar, um juiz-presidente (ordinário ou de fora),


embora algumas terras tivessem tido dois (uma para a vila e outro para o termo) e outras, sobretudo em
finais do Antigo Regime, fossem presididas por magistrados de concelhos confinantes (câmaras anexas).
Compunham-nas ainda dois ou mais vereadores (embora existam câmaras sem vereadores, compostas
apenas de um juiz e um procurador) e um procurador, eventualmente também um tesoureiro.

Com exceção dos juízes de fora todos estes oficiais eram eleitos localmente e confirmados, pelo menos a
partir do início ou meados do século XVII, pela administração central da coroa ou pelo senhor da terra.
Constituíam propriamente a câmara de um concelho, ou o chamado senado nas terras mais importantes. Em
teoria não eram remunerados, mas a regra sofria muitas exceções.

Entre os muitos ofícios superiores e não remunerados incluíam-se os almotacés que, embora não fizessem
parte das câmaras, pois eram estas que os elegiam, tinham incumbências importantes para a vida local em
matérias como a vigilância sobre os pesos e medidas, o abastecimento em géneros e a fixação de preços.

As atribuições dos juízes das terras, em certos casos substituídos pelo vereador mais antigo (chamado então
juiz pela ordenação), compreendiam sempre a jurisdição em primeira instância, pelo menos, em matérias do
foro cível. As Câmaras no seu conjunto detinham, ainda, competências numa multiplicidade de terrenos
relativos à administração e à regulação da vida económica local.

109
História das Instituições. Épocas Medievais e Moderna, Coimbra, 1982, p. 154.
110
«Perspetivas e Comentários. Feudalismo e História das Instituições», Estudos Medievais, 5/6, 1984-1985,p.133.No entanto reconhece que se
foram criando comunidades hibridas, resultantes de uma tentativa de conciliação do regime senhorial com a autonomia municipal, mesmos sob a
chefia de senhores privados.
111
Marcos assinaláveis terão sido a legislação de Trezentos sobre os juízes de fora e os corregedores e a ordenação dos pelouros de 1391. A
compilação das Ordenações Afonsinas (1446 ou 1447) retomam a legislação anterior dos reinados de D. Afonso IV e D. Fernando que tendia a
salvaguardar a autonomia dos concelhos mesmo nas terras senhoriais. Definiam as formas de provimento dos ofícios camarários e as suas
competências.

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A totalidade das atribuições dos oficiais camarários configurava aquilo que então se chamava a esfera
própria das suas jurisdições. Precisamente, a especificidade do Antigo Regime a esse nível residia, por um
lado, na acumulação das funções judiciais com as administrativas, e, por outro lado, no âmbito
extremamente alargado destas quando confrontadas com as do período contemporâneo.

A forma de eleição, indireta e por prazos anuais, dos vereadores, procuradores e juízes ordinários, quando
existiam, encontrava-se definida nas Ordenações, mas foi modificada através de diversa legislação ulterior
112
. Refira-se, contudo, que o modelo definido pela legislação geral da monarquia, restringindo desde cedo a
participação nos ofícios camarários superiores aos homens bons dos concelhos, foi sendo concretizado no
sentido de limitar cada vez mais o acesso às magistraturas camarárias.

Os ofícios antes referidos eram os que se reputavam honráveis aqueles que nobilitavam, pelo menos nos
grandes concelhos, a quem os desempenhavam. Além destes, existiam outros que, sem lhes atribuir um
cunho mecânico ou plebeu, correspondiam a ocupações profissionais permanentes e necessariamente
remuneradas, ao invés de todos os restantes. Providos quer pela coroa, quer pelas câmaras ou pelos
senhorios, podiam ser de nomeação vitalícia ou até hereditária. Além disso, foram os únicos cuja
propriedade a coroa vendeu em diversas ocasiões. Estavam neste caso os escrivães do judicial, os únicos
oficiais nos concelhos que necessariamente tinham de saber ler e escrever, e que nos pequenos concelhos
coincidiam geralmente com os de notas. E ainda os juízes dos órfãos, a quem competiam os inventários para
partilhas e a administração dos bens dos órfãos.

As câmaras incluíam ainda um número variável de ofícios menores, ou seja, aos quais geralmente se atribuía
pouca qualificação social. Entre estes, os mais comuns eram os de quadrilheiro (os oficiais localmente
responsáveis pela ordem pública) e os juízes pedâneos ou de vintena, cujo poder era formalmente delegado
das câmaras e eram estas que os nomeavam. Mas cabia-lhes mediar, nos grandes concelhos, as relações
entres as câmaras e as pequenas coletividades locais. De facto, os grandes concelhos da coroa exerciam no
período medieval a sua jurisdição sobre um extenso termo ou «alfoz», quer dizer, um amplo espaço rural
submetido à autoridade da sede municipal localizada no centro urbano da cabeça do município, geralmente
muralhada. Muito lugares desse termos foram sendo desanexados para serem elevados a vila e/ou doados
em senhorio a um fidalgo, tendo adquirido uma efetiva autonomia.

Na maioria dos concelhos do país (em área e população) estas formas de organização, que adotavam
diferentes designações (julgados e juradorias em Coimbra, julgados em Barcelos e no Porto, ouvidorias em
Aveiro, concelhinhos em Santarém, concelhos na Guarda, etc.) sendo embora tecnicamente delegadas das
câmaras, eram muito mais formalizadas, complexas e autónomas.

112
Este assunto será tratado no capítulo «O espaço político e social local».

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Terão existido juradorias ou julgados que gozavam de efetiva autonomia em matéria cível em relação à sede
do respetivo município, e havia muitos pequenos concelhos que em matéria criminal dependiam de outros.

Quadro 1: Fogos e área dos concelhos portugueses do continente em 1527-1532

Fogos Área (Km2) Nº de Fogos por Por Concelho


Total câmaras km2
Província (total) Fogos/média Área/média

Minho 7 252 55 016 112 7,6 191,2 64,8

Trás-os-Montes 11 493 35 629 97 3,1 367,3 118,5

Beira 15 298 67 629 261 4,4 259,4 58,6

Estremadura 19 930 65 515 163 3,3 401,9 122,3

Alentejo 30 319 48 944 116 1,6 421,9 261,4

Algarve 4 989 9 918 13 2,0 762,9 383,8

Total 89 281 282 718 762 3,2 371,0 117,2

Fonte: João Alves Dias, Gentes e Espaços (em torno da população portuguesa na primeira metade do século XVI) dissertação de doutoramento
(mimeo), UNL, Lisboa, 1992.

Ressalta desde logo a enorme diversidade das dimensões dos territórios concelhios, coexistindo gigantescos
com minúsculos municípios. Também o volume da população e as características das sedes concelhias
contrastavam fortemente. Existiam câmaras caracteristicamente urbanas, municípios dominantemente
rurais e de grandes e médias dimensões e, por fim, os pequenos concelhos, tendo como sede um lugar ou
aldeia ou não possuindo mesmo povoado-sede, estando os símbolos da jurisdição e autonomia municipal
(casa do concelho, forca e pelourinho ou picota) situados em lugar ermo ou com muito reduzido número de
moradores.

Os concelhos de grande extensão encontravam-se em todas as províncias e neles residia a maior parte da
população do reino, mas só eram numericamente dominantes nas províncias do Sul (Alentejo e Algarve).

Por seu turno, os pequenos e minúsculos concelhos, muitas vezes encravados no termo de outros maiores,
também existiam em todos os azimutes, mas predominavam na Beira, na parcela da Extremadura depois de
anexada aquela província, e na zona central do Minho em parte coincidente com a jurisdição do arcebispado
bracarense.

Quanto às ilhas atlânticas da Madeira e dos Açores, verifica-se que, tendo os concelhos uma área
semelhante à média nacional, o número médio de fogos por concelho era duas vezes ou três vezes superior,
devido à elevadíssima densidade populacional das ilhas.

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Nos finais do Antigo Regime, as diversas designações (cidade, vila, honra, couto) já não tinham especial
significado, pois não resultavam daí diferenças no plano institucional. Em compensação, produziam uma
hierarquia simbólica que determinava a valorização de títulos através dos quais se valorizava a importância
das terras e até, pelo número, da própria monarquia.

As expressões couto e honra constituíam já no início de Quinhentos uma reminiscência do estatuto das
terras no período medieval, reportando-se a antigas povoações do senhorio eclesiástico ou leigo, mesmo
quando já incorporadas na coroa. As Vilas eram sempre terras com município e, normalmente, com carta de
foral, utilizando-se a expressão «herigir em vila», precisamente, quando se pretendia constituir em
município autónomo uma localidade até então pertencente ao termo de outra câmara.

O termo «vila notável» usou-se no início do período moderno para distinguir um restrito número de vilas às
quais se atribuía uma dignidade superior sem, contudo, se lhes conferir o título de cidade. Este encontrava-
se reservado no período medieval para os centros urbanos que eram sede episcopal. Porém, exceções houve
como a elevação de Bragança à referida dignidade em 1464 para assim honrar a sede do referido ducado,
que outros motivos passaram a ser invocados quando a coroa concedeu esse título. Não existiu nunca, no
entanto, uma regra uniforme para justificar o estatuto e a verdade é que a consideração da residência
episcopal ainda foi ponderada em pleno período pombalino quando se elevou à dita condição as vilas de
Pinhel e Castelo Branco para serem as sedes dos novos bispados (1770 e 1771), etc.

No início do século XIX existiam em Portugal 22 cidades e mais três nas ilhas atlânticas, algumas delas muito
menos populosas do que simples vilas sedes de comarca, como Guimarães ou Vila Real.

Que explicações para a geografia que vigora ao longo do Antigo Regime?

Os grandes territórios municipais correspondem geralmente a terras originárias da coroa sediadas em


centros urbanos com alguma importância, dos quais se constituíam em alfoz.

Normalmente, foram sofrendo amputações desse seu termo (exceto Lisboa e Porto). Os concelhos
pequenos, por seu turno, coincidem como as terras com jurisdição senhorial desde a Alta Idade Média, ou
com territórios que foram desanexados posteriormente dos termos de grandes municípios porque foram
elevados a vila e ou doados em senhorio jurisdicional a um novo donatário.

Subsistem muitas interrogações dentro do quadro geral traçado pois não são claros os motivos pelos quais
muitas honras e coutos deram origem a municípios, enquanto outros, mantendo-se como unidades de
tributação senhorial, nunca alcançaram semelhante estatuto. A própria autonomização desses territórios em
relação aos termos de municípios, que os tutelaram em vários casos, parece ter passado muitas vezes por
situações de notória ambiguidade e resultou frequentemente de arrastados conflitos. A maior complexidade
é talvez a dos já aduzidos concelhos-vintena que gozavam de enorme autonomia em quase todas as

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matérias (incluindo o lançamento de impostos, em especial, a cobrança da sisa), embora sempre englobados
nos termos de outros.

Ate ao século XVIII e inícios do século XIX o número de município aumentou. Mas nunca se pode afirmar de
113
forma inquestionável quantos é que efetivamente existiam num dado momento . E também os concelhos
formalmente extintos foram muito poucos. Em regra, quando não foram suprimidos por algumas iniciativas
de reordenamento do espaço promovidas pela coroa, trata-se de minúsculos municípios cuja perpetuação
acarretava uma sobretributação designadamente, em matéria de pagamento de sisa, ou se revelava muito
pesada para os poucos habitantes que podiam participar na governança.

Em outros casos, terá havido terras cujo notório declínio económico e demográfico fez cair no esquecimento
o seu estatuto. Terá sido o caso de Castro Verde, que aparece com 16 fogos no numeramento de 1527. Pela
mesma altura o senhor de Paradela e Castro Verde afirmava a indisponibilidade para custear a manutenção
das justiças senhoriais nas suas terras.

Quais os critérios de produção das diferentes listas das circunscrições administrativas locais?

O fluxo de criação de municípios tem quase sempre motivos idênticos, podendo-se reduzir a dois: a
elevação a vila a pedido dos habitantes da terra e ou invocando especificamente as vantagens daí
decorrentes, e as criações feitas expressamente para a povoação ser concedida em senhorio jurisdicional a
alguma casa fidalga.

Relativamente mais comuns foram os casos de elevação de uma terra a vila para ser atribuída em senhorio a
uma casa nobiliárquica, em boa parte dos casos, de resto, a favor de casas elevadas à titulação e que até aí
não tinham terras sujeitas à sua jurisdição. É certo que muitas vezes a coroa recorreu a municípios já
existentes para os doar. Mesmo assim, as elevações a vila especificamente para esse efeito verificaram-se ao
longo de todo o período estudado, sendo os exemplos relativamente numerosos.

Durante a dinastia de Bragança, pelo menos existiu mesmo a figura de dação pela coroa a alguns fidalgos do
direito a «fazer vila de 100 ou 200 vizinhos», sem se precisar a povoação, ficando algumas vezes a mercê por
concretizar, ou só se verificando muitas décadas depois mais tarde. Correspondiam essas doações ao
enaltecimento das virtualidades da colonização senhorial. O reduzido número de criações e a ainda diminuta
quantidade de extinções formais, sugerem-nos sem hesitações que a continuidade prevaleceu largamente
na configuração do espaço concelhio português entre o século XVI e o triunfo liberal. Essa estabilidade era,
naturalmente, reforçada pela manutenção sem alterações relevantes até ao tempo da revolução de 1832-
1835.

113
Não é seguro que as unidades de contagem usadas fossem sempre todas autênticos municípios e é absolutamente certo que vários dos municípios
efetivamente existentes foram ignorados em algumas relações.

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Esta estável realidade concelhia era marcada, em boa medida, pela diversidade de elementos que a
compunham: enorme diferença na dimensão espacial e demográfica e na importância económica entre os
municípios; pela existência de câmaras presididas por juízes de fora a par da grande maioria, dirigidas por
juízes ordinários.

As jurisdições senhoriais, por seu turno, eram outro vetor de diferenciação que se traduzia num núcleo de
municípios, cuja dimensão foi, como veremos, oscilando no decurso do período estudado. Existiu uma
hierarquia institucional e simbólica dos municípios que se traduzia no restrito número daqueles ( 89, no
máximo) cujos procuradores tinham assento no Braço do Povo nas Cortes realizadas até finais do século XVII
e, entre eles, na localização respetiva na escala dos bancos.

Apesar da efetiva diversidade não impede que se possa afirmar que o espaço local português se
caracterizava por uma apreciável uniformidade institucional. Apesar do que antes se destacou, a verdade é
que em todo o território existiam corpos políticos e administrativos similares e submetidos a regras comuns
definidas nas Ordenações e em vária legislação ulterior. E as próprias situações mais discrepantes foram
diminuindo em quantidade à medida que caminhamos para os finais do Antigo Regime, sob o impulso da
atuação da coroa e dos magistrados.

Os poderes senhoriais, dos quais falaremos adiante, não constavam essa realidade fundamental, pois que
não possuíam jurisdição de primeira instância. A sua esfera de atuação, de algum modo, restringia-se à
possibilidade de condicionar a composição das câmaras e de julgar em apelação as decisões dos seus juízes.
Contudo, qualquer que fosse a sua dimensão, existia a igualdade legal de cada concelho para quase todos os
efeitos. Cada câmara possuía, assim, uma esfera de jurisdição autónoma e irredutível e os vereadores e a
justiças do concelho, uma vez investidos, tinham a área autónoma de competência prevista na lei e
garantida pelo direito contra a usurpação 114.

As Paróquias

A rede concelhia sobrepunha-se a uma outra, que cobria igualmente todo o território, assim que era mais
antiga, muito mais densa e que, além disso, dependia de outros vínculos e hierarquias: a das paróquias
eclesiásticas. A sua origem remonta à data anterior à fundação da monarquia portuguesa.
115
A quantidade de freguesias eclesiásticas existentes no continente português (4092 em 1801-1802) era
muito superior à dos concelhos, embora com diversa tradução provincial, pois havia em média quase cinco
paróquias por cada município. O quadro paroquial encontrava-se, assim, muito mais próximo das pequenas
coletividades locais do que o municipal e possuía obrigatoriamente, ao contrário daquele, um intermediário

114
António Manuel Hespanha, Vésperas do Leviathan, Vol. I, p. 226.
115
Fernando de Sousa, A População Portuguesa nos Inícios do Séculos XIX (mimeo), Porto, 1979, pp 23-26.

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cultural qualificado: o pároco, qualquer que fosse o seu título, a sua forma de nomeação e o seu estatuto
remuneratório.

A importante estrutura eclesiástica no quotidiano das populações da época a que nos reportamos, para além
do facto de existirem, a par de histórias gerais mais antigas 116, alguns estudos recentes sobre o tema em
Portugal, é difícil de sintetizar. A prática eclesial do Concílio de Trento (1545-1563), com a obrigatoriedade
dos registos paroquiais, com a multiplicação dos manuais de confessores e da tratadística moral, apesar da
sua desigual aplicação no tempo e no espaço, dotara os párocos de um conjunto singular de dispositivos de
controlo das populações. Foi então que, com o vigor da Contra-Reforma, o corpo doutrinário que
usualmente se associa ao catolicismo se consolidou e vulgarizou e, ao mesmo tempo, se dotou dos
instrumentos destinados a impô-lo à sociedade.

A confissão, as prédicas dominais, os róis de confessados e os registos paroquiais de batismos, casamentos e


óbitos faziam do pároco um intermediário quase incontornável para muitos efeitos. A administração central
da coroa, que não tutelava diretamente nenhum corpo político local abaixo das câmaras (as freguesias civis
só foram criadas pelos liberais em 836), seria assim conduzida, com maior frequência sobretudo os finais do
Antigo Regime, a recorrer à estrutura paroquial. Para a realização de inquéritos, para a difusão de diretivas e
para outros fins. Até mesmo para o lançamento de impostos novos (como a décima), embora sem a
intermediação dos párocos, se recorria à divisão paroquial. Prática que, de resto, teria longa continuidade no
liberalismo através do projeto de integrar a estrutura eclesiástica paroquial no sistema político. Embora,
também neste caso, a estabilidade tenha prevalecido desde finais da Idade Média, o número de paróquias
foi crescendo lentamente ao longo do período considerado.

Os párocos podiam ser eleitos pela coroa, pelos mosteiros, pelos bispos e cabidos diocesanos, senhores
seculares, ordens militares, a Santa Sé, párocos de freguesas vizinhas e, até, os próprios paroquianos.

Os destinos dos dízimos eclesiásticos, prestação que correspondia, em princípio, a um décimo da produção
agrícola bruta e se destinava, na sua origem remota, à manutenção do culto. Na verdade, se parte dos
párocos auferia uma parcela dos rendimentos dos dízimos, certo é que muitos gozavam de nenhuma quota
dos mesmos, recebendo, sim, para além de uma côngrua, muitas vezes reduzida, os rendimentos de bens
próprios da respetiva igreja (passais, foros e outros) e as taxas cobradas aos paroquianos pelos atos do culto
(pé-de-altar), etc.).

Os dízimos das paróquias podiam ser cobrados, assim, entre outros, por seculares (na qualidade de
comendadores das ordens militares), por mosteiros, pela universidade ou por outras instituições
eclesiásticas.

116
Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, nova ed. Pref. De Damião Peres, tomos II e III, Lisboa, s.d.

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Embora pareça certo que os dízimos não sofreram em Portugal uma contestação similar à que conheceram
em outros países, o problema referido é um dos que condicionava de forma mais incisiva as relações entre
párocos e fregueses.

As instâncias mais ou menos formalizadas da vida paroquial não se restringiam aos clérigos. Estendiam-se
também aos leigos que se organizavam para a realização dos atos de culto ou para a administração das
alfaias paroquiais (fábrica da Igreja). Boa parte destas atividades eram enquadradas no âmbito das
confrarias, embora pudessem ser alargadas a outros âmbitos, tornando-se um dos principais reguladores das
relações interpessoais locais.

Finalmente, saliente-se que a vida paroquial estava sujeita, geral mas não obrigatoriamente, à hierarquia da
sua diocese e do seu prelado, sendo abrangida periodicamente pela fiscalização das visitações.

As Ordenanças

As ordenanças constituíam uma das instituições mais relevantes da sociedade local portuguesa do Antigo
Regime e, certamente, uma das mais originais. Com efeito, não foi comum na Europa de então que similares
estruturas se implantassem tão cedo (séc. XVI) e se enraizassem localmente com vigor. A instituição reveste,
assim, uma indiscutível singularidade.

Na sua origem, o sistema das ordenanças pode ser reputado como uma resposta às crescentes necessidades
bélicas das monarquias no início do período moderno (onde alguns identificaram uma efetiva revolução
militar), alternativa quer à contratação de tropas mercenárias (de resto, com menos tradição entre nós do
que em outras partes), quer ao recrutamento com base nas levas de homens feitas pelos senhores. Parecem
situar-se no reinado de D. João III (1549), em resposta direta aos problemas levantados pela defesa das
praças do Norte de África, os primeiros esboços de obrigações militares gerais extensíveis a todos os homens
com idades compreendidas entre os 20 e os 65 anos de idade. Mas depois de dificuldades e vicissitudes
várias, o passo decisivo seria dado com o Regimento dos Capitães-Mores de 1570.

Pelo dito regimento, criavam-se em todo reino capitanias-mores de ordenanças, coordenadas por um
capitão-mor, que devia ser o donatário ou alcaide-mor em terras onde existissem, coadjuvado por um
sargento-mor. Cada capitania-mor dever-se-ia dividir num número variável de companhias de ordenanças,
chefiadas pelo respetivo capitão, com o apoio de outros oficiais.

À hierarquia das ordenanças competia ter arrolados todo os homens maiores de 16 anos (houve algumas
variações no tempo quanto à idade mínima), excetuando os privilegiados e os velhos, para que pudessem,
quando solicitados, ser escolhidos para o exército de primeira linha ou, ainda, para operarem localmente
como milícia. Através das ordenanças, as câmaras receberam uma autoridade local que até então,
confusamente, dispunham os senhores de vassalos e de alcaides-mores, para além dos anadéis-mores uma

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tropa milícia ligada às câmaras substituía com vantagem o levantamento senhorial de homens para a guerra
a pedido do rei.

De facto o topo da hierarquia das ordenanças era escolhido pelo poder camarário, com intervenção variável
ao longo do período considerado de outras instâncias (governo militares). Os cargos tendiam muitas vezes a
tornar-se vitalícios, apesar de, em vários momentos, se ter publicado legislação em contrário, devendo os
escolhidos ser recrutados entre «as pessoas principais» das terras.

A ideia subjacente era que aquelas, porque depositárias de uma autoridade natural, seriam menos
propensas a abusar de cargos que, não sendo remunerados, conferiam aos que os desempenhavam o
tremendo poder de escolher quem devia e quem não devia ser recrutado para o exército. No entanto, a
atuação dos oficiais das ordenanças foi quase sempre muito crítica, difundindo-se a ideia de que cometiam
todo o tipo de prepotências no desempenho dos seus cargos.

A estrutura das ordenanças cobria todo o território do continente e das ilhas. A respetiva rede, porém, não
coincidia exatamente nem com a dos concelhos ( as capitanias-mores), nem como a das freguesias ( as
companhias). Em 1824, Mariano Franzini descreveu-a: « Existem no reino 441 capitanias-mores e 2656
companhias de ordenanças, e por isso não seria possível marcar os seus respetivos distritos sobre um mapa
topográfico, ainda mesmo quando existisse algum (…) e no qual se acham colocadas, não só todas as 4100
freguesias do reino, mas também a sua subdivisão nas respetivas povoações, pois que a maior parte destas
companhias se compõem de frações de freguesia, quando outras abrangem mais do que uma». 117

As milícias inicialmente organizadas apenas em algumas comarcas sob a forma de terços de auxiliares,
generalizam-se durante a Guerra da Restauração a todo o reino abrangendo os homens isentos
frequentemente mobilizados para o principal teatro das operações militares em situação de guerra. Embora
a respetiva rede fosse muito menos densa, a hierarquia das forças militares de segunda linha (coronéis,
tenentes-coronéis e majores de milícia) tinha uma presença marcante e distinta na sociedade local dos finais
do Antigo Regime.

Os Senhorios

A ambiguidade da palavra senhorial podia derivar do vocábulo «senhorio direto». Assim se designava
alguma pessoa ou entidade que, havendo cedido a outrem ( o foreiro ou enfiteuta)o domínio útil sobre um
determinado bem através de um contrato enfitêutico em vida ou perpétuo, dele recebia uma dada
prestação, geralmente designada foro (e/ou ração).

Acontece que as formas de cedência deste tipo foram extremamente frequentes ao longo da história
portuguesa, visto que difundindo-se antes da existência do reino se mantiveram ainda depois da revolução
117
Arquivo Histórico Militar, 3ª divisão, 39º sec., cx 16, nº 16.

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liberal. Por tal motivo, o número de senhorios diretos existentes no país era interminável, entre estes se
incluindo pessoas e instituições do mais diverso cunho, sendo normal que as grandes casas nobiliárquicas e
outras instituições preeminentemente fossem, simultaneamente, senhorias diretas e foreiras.

Um segundo sentido do termo, era o de «senhorio donatário de direitos reais». Assim se intitulavam as casas
e entidades que haviam recebido da coroa o direito a cobrarem determinadas rendas. Estas, por sua vez,
tinham origem nos direitos instituídos em cartas de forais medievais ou e outros títulos através dos quais se
regulava a cobrança de rendas em reguengos e outras terras do património régio na Primeira Idade Média
portuguesa. Os recursos da coroa nesta matéria eram limitados, visto que se reportavam aos bens
incorporados nesse originário.

Além disso, embora a sucessão nos senhorios e demais bens da coroa estivesse sujeita às regras da famosa
Lei Mental (séc. XV), a verdade é que as cláusulas de reversão à coroa contidas na mesma não se aplicavam
aos bens doados à Igreja na primeira dinastia, pelo que estes se encontravam indisponíveis.

Consequentemente, os donatários de bens da coroa nunca foram muitos, pertencendo, como veremos, a
categorias sociais e institucionais bem características. Por fim, importa salientar que os direitos cobrados
pelos donatários variavam notoriamente de uns concelhos para os outros, entre aqueles se incluindo foros
enfitêuticos absolutamente idênticos aos que cobravam muitos «senhorios diretos».

Por fim, o termo senhorio aplicava-se, porventura com mais propriedade, aos «senhores de terras com
jurisdição». Neste último caso, a expressão designava uma entidade que recebera a doação de uma terra da
coroa, só que essa concessão incluía o exercício de direitos jurisdicionais. Era sem dúvida, a categoria à qual
se atribuía maior dignidade, pois, no caso dos leigos, dava, entre outras coisas, direito a ser convocado para
o Braço da Nobreza em Cortes. Aliás, os donatários com jurisdição foram sempre menos numerosos do que
os de direito de foral, embora a coroa muitas vezes doasse as duas coisas conjuntamente.

Todos estes tipos de senhorio deixaram a sua marca no Antigo Regime. Um senhorio direto dava lugar a uma
unidade cobrança de rendas e a rendeiros ou oficiais encarregados da sua arrecadação, podendo originar
formas de organização local para o pagamento dos direitos ou, até, para os contestar. O mesmo se pode
dizer, em todos os casos, dos senhorios de direitos reais, dado que estes abrangiam sempre grandes áreas,
na maior parte dos casos, concelhos inteiros ou, pelo menos, todos os lugares compreendidos num
reguengo medieval. Além disso, muitos senhorios possuíam juízes privativos para a cobrança desses direitos.

O senhorio jurisdicional limitava-se à jurisdição intermédia, ou seja, os donatários «nem podiam julgar em
primeira instância, nem podiam decidir em última».118 Em Portugal, a jurisdição em primeira instância
competia sempre aos juízes das terras que presidiam às respetivas câmaras, fossem eles de fora ou
ordinários. A jurisdição senhorial em sentido restrito, portanto, era sempre e só uma jurisdição de segunda
118
A. Hespanha, História..p. 300.

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instância, relativamente à qual havia, em quase todos os casos, recurso para um tribunal superior da coroa.
As jurisdições dadas aos senhores traduziam-se apenas nos instrumentos que lhes conferiam para
condicionarem e restringirem a composição, as atribuições, e as deliberações das câmaras e dos seus juízes.
Em rigor, não exista, por consequência, uma instituição local que correspondesse ao senhorio jurisdicional.

Quando uma corporação religiosa ou uma casa nobiliárquica recebia doação genérica das jurisdições de um
concelho, entendia, desta forma, que detinha somente as jurisdições intermédias sobre as decisões de um
juiz de um determinado concelho. Quase em exceção essas funções eram exercidas por um oficial nomeado
pelo senhor, o ouvidor, que podia ou não ser letrado. As competências dos ouvidores traduziam-se no
direito a conhecer dos recursos das sentenças proferidas pelas justiças locais, mas mesmo assim com
diversas limitações.

Por doação expressa, os senhores podiam ainda receber a isenção da correição real, a qual constitui a
expressão suprema das jurisdições senhoriais em Portugal e só foi, por isso, concedida às casas e instituições
com maior preeminência. Nestes casos estava vedado aos magistrados régios das comarcas, os
corregedores, a entrada mas terras senhoriais, sendo as suas atribuições transferidas para o ouvidor.

O mesmo se verificava com os únicos direitos jurisdicionais que, antes da lei de 1790, permitam aos
senhores interferirem diretamente na composição das justiças das terras, ou seja, das respetivas câmaras
(juízes, vereadores e procuradores). Os diretos de dada das justiças, e de confirmação ou apuramento das
mesmas, tinham uma tradução concreta muito variável de umas terras para outras, embora se possa detetar
uma tendência no sentido de se atenuarem as discrepâncias à medida que se caminha para o final do Antigo
Regime. A sua eficácia como instrumento para o controlo político das câmaras pelo donatário não se
confirma em muitos casos conhecidos. Ao invés, o direito de apresentar juízes de fora pelos senhores
revelava-se bem mais operativo, mas foram poucas as casas que dele beneficiam antes de 1790. Os senhores
podiam ainda apresentar vários oficiais camaristas não integrantes dos senados municipais (escrivães,
meirinhos, alcaides menores, etc.),privilégios cuja doação não coincidia necessariamente com a dada das
justiças, e também os oficiais das ordenanças, quando tinham o exercício (pessoal ou delegado) do ofício de
capitão-mor, como antes se referiu.

Extensão dos Domínios Senhoriais (1527-1532)

No início do período moderno, as terras da coroa não cobriam senão uma parcela minoritária do país: menos
de 29% do número total de concelhos. Pouco mais de um século mais tarde, nas vésperas de 1640, a
situação não se tinha, aparentemente, aletrado: a coroa detinha então 30% das terras (concelhos),que
corresponderiam a 35% da área e a 42% da população. No entanto, a verdade é que nessa altura, as terras
das ordens militares de Cristo, Avis e Santiago, embora ainda não formalmente integradas na coroa, já eram
de facto administrativamente controladas por esta, mantendo-se apenas a autonomia jurisdicional da

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Ordem de Malta. Se incluirmos a referidas três ordens nas terras da coroa, a respetiva percentagem sobe já
para cerca de 42% do número de territórios, 50% da área e 52% da população.

Entre o início do século XVI e meados seguinte, o número de terras da jurisdição de instituições eclesiásticas
manteve-se estável, representando cerca de 15% do total. Os senhorios leigos, ou seja, as grandes casas
nobiliárquicas, onde se incluía até 1640 a casa dos duques de Bragança, eram, no entanto, os mais
numerosos. O seu número, de resto, aumentou entre 1527-1532 e 1640, pois, boa parte das terras
«herigidas em vila» foram-no para serem doadas em senhorio jurisdicional a fidalgos. As terras dos senhores
leigos representavam, assim, cerca de 38% do total da primeira das referidas datas e quase 44% na segunda.
Além disso, em meados do século XVIII, mais de um quarto dos municípios do país estavam isentos da
correição real.

As terras da coroa, por ordem decrescente, tinham um peso maior nas Beiras, seguindo-se o Alentejo e
Algarve, Trás-os-Montes, Estremadura e, por último, a província de Entre Douro e Minho. A coroa, por fim,
controlava jurisdicionalmente a maior parte dos centros urbanos importante. Existiu assim algum equilíbrio
entre a coroa e os poderes senhoriais. Este eram claramente dominantes quanto ao número de câmaras,
mas exerciam a sua jurisdição, em média, em terras mais pequenas e menos populosas.

Com o advento da dinastia de Bragança, dos domínios das ordens militares, só subsistem os da Ordem de
Malta e mesmo estes já se encontravam então incorporados na Casa do Infantado. Com efeito, a nova
dinastia institucionalizou uma nova categoria de senhorios, a das casas da família real com administração
autónoma, na qual passou a incluir-se a antiga casa dos duques de Bragança. No conjunto, essas três casas
(Bragança, Infantado e Rainhas) detinham mais de 15% dos territórios jurisdicionais. Deste, quase 53%
estavam em 1811 sujeitos à jurisdição real maioritária.

De facto os territórios que pertenciam a senhores leigos e eclesiásticos representavam agora menos de um
terço do total. A diminuição do número de concelhos de senhorios eclesiásticos foi reduzida, pois as
mudanças mais drásticas correram com os senhores leigos. As causas pesam sobretudo na extinção violenta
por traição de algumas das maiores casas senhoriais, basicamente a favor da coroa. Em seguida, a extinção
por falta de sucessão de várias casas nobiliárquicas. Por fim, o facto de muitos donatários não se terem
encartado em diversos momentos nas jurisdições das suas terras, embora na maior parte dos casos
continuassem a receber os respetivos direitos reais.

Acresce, ainda, que a coroa não se mostrou muito prolixa na concessão de novos senhorios jurisdicionais: no
conjunto, foram poucas as novas doações. Porém, o que se disse nos senhorios jurisdicionais não se aplica
aos senhorios de direitos de foral. Sabemos, com efeito, que na maior parte das terras que pertenciam à
coroa no plano jurisdicional, se pagavam os direitos de foral a donatários, pois a coroa só os recebia em
exclusivo em menos de meia centena de municípios.

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A coroa detinha a jurisdição de 53% dos concelhos do país, mas só recebia direitos reais em exclusivo em 7%
do total. Diminuiu drasticamente o número de senhorios jurisdicionais, mas não o dos senhorios de direitos
119
reais .Na maior parte dos concelhos pagava-se direitos de foral a casas eclesiásticas ou nobiliárquicas. O
senhorio perdera indiscutivelmente peso no plano jurisdicional, mas não no plano tributário. E os
movimentos anti senhoriais aí estão para o sugerir.

Nos finais do Antigo Regime, dois fatores contribuíram para acentuar a evolução antes delineada. Importa
indicá-los desde já, embora os devamos discutir com maior rigor nos capítulos seguintes. Logo, há que
destacar a publicação da carta de lei de 19 de julho de 1790, que suprimiu todas as ouvidorias e as isenções
da correição. Mudou menos do que é usual pensar-se, mas não deixou de constituir um marco importante.
Depois, há que salientar a relevância dos juízos privativos, que proliferaram nos finais do Antigo Regime. De
facto, estes detinham a jurisdição em primeira instância nas matérias relativas à administração das
instituições que os recebiam e revelavam-se, do ponto de vista da cobrança de rendas, muito mais eficazes
do que as jurisdições senhoriais.

As Confrarias e as Misericórdias

Ainda que o ímpeto da criação de confrarias, em Portugal como na cristandade ocidental, tenha tido lugar a
partir dos séculos XII e XIII, coube ao Concilio de Trento definir com rigor as suas competências. O problema
derivava de uma ambiguidade antiga, uma vez que as confrarias tinham origem em movimentos
associativistas laicos, e os leigos formavam naturalmente os seus corpos de gestão, pouco ou nada
supervisionados pelas autoridades eclesiásticas. A partir de Trento, tomou corpo a divisão entre confrarias
laicas e eclesiásticas: as primeiras eram fundadas sem a intervenção da autoridade eclesiástica enquanto as
segundas deviam a sua criação a um prelado.

Em Portugal esta diferenciação tem especial importância porque ajuda a explicar o fosso que separa as
confrarias laicas, sobretudo as da proteção régia como as misericórdias, das confrarias eclesiásticas, que, ao
contrário das primeiras submetiam os seus estatutos à autorização do bispo e estavam sujeitas a visitações.

A referência obrigatória para qualquer confraria era constituída por um altar com as respetivas imagens,
altar esse que se podia situar numa igreja de qualquer tipo: paroquial, conventual, uma simples ermida ou
dentro da igreja de outra confraria. Quando a importância patrimonial e política da confraria o possibilitava,
podia dispor de igreja própria. No que respeita às confrarias associadas a ordens religiosas, temos como
exemplo principal o das Ordens Terceiras Franciscanas, Dominicanas, Carmelitas e Trinitárias, embora outras
se tenham desenvolvido à sombra de conventos. Algumas confrarias tinham como referência simples
ermidas.

119
Cf. Nuno G. Monteiro, «Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia», História de Portugal, dir. de José Mattoso, vol.IV, O Antigo Regime
(1620-1807),coord. De António M- Hespanha, Lisboa, Circulo de Lietores,1993, quadro nº 3.

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Quando determinada confraria dispunha de igreja própria, era frequente albergar outras confrarias de
menor importância em alguns dos seus altares. Embora todas, sem exceção, se enquadrassem num local de
culto, em teoria uma igreja podia albergar um número de confrarias proporcional ao número de subespaços
de cultos disponíveis. As sés episcopais, por exemplo, podiam incorporar um número elevado de confrarias:
algumas misericórdias, nos seus primeiros anos, sediaram-se nas igrejas catedrais.

O elevado número das confrarias por paróquia é notório neste período: nas seis freguesias de Braga (séc.
XVIII) contam mais de oitenta, nos cinco julgados do concelho de Barcelos 148, nas quatro freguesia da vila
de Aveiro temos 32, em Vila Real e seu termo, num total de 45 paróquias, 215.

Se algumas confrarias tiveram origem medieval, outras tinham formação recente, pois era frequente a
anexação de confrarias e o desaparecimento rápido de algumas delas. Assim, o universo das confrarias
paroquiais surge como fluido, bem como geralmente as do Santíssimo Sacramento e a do Nome de Deus
parecem ter sido as mais protegidas pelas autoridades eclesiásticas, que chegam ao ponto de aconselhar a
sua formação em cada paróquia nas constituições sinodais.

Quanto às competências das confrarias paroquiais de modo global, sem atender a uma eventual tipologia,
cabe referir o recrutamento social: circunscreviam-se geralmente aos fregueses, obrigando algumas delas
todos os moradores da paróquia a inscreverem-se. Tudo parece indicar que cada paroquiano/a pertencia
pelo menos a uma das confrarias existentes.

Enquanto confrarias paroquiais, uma das suas principais funções era a manutenção da igreja paroquial e o
culto: os confrades podiam cotizar-se para pagar as obras da igreja, revezavam-se para conservar os altares
em ordem, organizavam as procissões e festas religiosas. Como força motriz de grande parte das confrarias
surge uma gestão coletivizada da morte: os confrades tinham obrigações precisas de, quando morria um
deles, zelar para que morresse sacramentado, efetuar o transporte do corpo de casa para a igreja, fornecer
círios para o funeral, acompanhar o velório e o enterro.

Algumas confrarias dedicavam-se também a manter a relação entre vivos e mortos. Os únicos indivíduos
externos à confraria que recebiam assistência eram os mendigos e forasteiros que morriam na paróquia.
Outra modalidade que podemos considerar assistencial, embora não isenta de ambiguidades, era o
empréstimo de dinheiro a juros aos confrades, atividade ainda mal conhecida mas que grande parte das
confrarias, paroquiais e não só, parece ter praticado. Entre as atividades económicas praticadas pelas
confrarias parece ter sido particularmente importante a administração de baldios.

Outras confrarias extravasavam o quadro paroquial, na maior parte das vezes estritamente geográfico, e
inseriam-se no âmbito ocupacional. Dessa forma, ultrapassavam as finalidades de culto e passavam a
assumir as inerentes a um corpo profissional organizado dentro de uma logica corporativa. Para além do

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culto padroeiro, podiam administrar um pequeno hospital destinado aos confrades, ajudar as suas viúvas,
contribuir para os dotes de casamento das filhas, emprestar dinheiro juros.

Os portos marítimos tinham geralmente influentes confrarias de mareantes que agrupavam um leque de
profissões ligadas ao mar, desde as da construção naval até aos comerciantes de longo trato. Existiam
obviamente confrarias de mesteres nas cidades, cada uma delas com o seu santo padroeiro, ligado ou não
ao exercício da profissão. No entanto, seria um erro associar as confrarias de base ocupacional
exclusivamente ao setor secundário, uma vez que existiam irmandades de lavradores e de escravos situados
em centro rurais. Outras confrarias, pelas ocupações que agrupavam tinham uma localização forçosamente
urbana: as confrarias de clérigos, de estudantes e a própria Confraria da Corte. Entre as confrarias associadas
às ordens religiosas, que em certos casos se chegam a equiparar em importância às misericórdias num
contexto de declínio destas últimas que se acentua a partir de meados do século XVIII.

As misericórdias diferiam das confrarias anteriores no que respeita ao recrutamento e base geográfica.
Enquanto as confrarias eclesiásticas admitiam mulheres, quer associadas aos maridos na condição de
casadas ou sui juris enquanto solteiras ou viúvas, as misericórdias eram exclusivamente formadas por
homens. Por um lado, grande parte das confrarias eclesiásticas possuía uma base associativa vertical na
medida em que podiam agrupar indivíduos de estatutos sociais diferenciados.

As misericórdias agregavam apenas membros das elites existentes a nível local: nobreza, clero (de
preferência membros dos cabidos episcopais ou colegiais e alto clero regular), profissões liberais,
negociantes de alto cabedal e mestres de oficina ou do mar e lavradores proprietários. Operava-se também
uma distinção clara entre irmãos nobres – nobreza, clero e profissões liberais – e irmãos mecânicos,
constituídos pelas restantes ocupações. E consequência da vocação elitista das misericórdias, o número de
confrade era reduzido quando comparado com o das outras confrarias que podia chegar aos milhares de
irmãos: 100 nas vilas e pequenas cidades até um máximo de 600 nas cidades de primeira importância como
Lisboa e Goa.

A base geográfica da misericórdia é geralmente o concelho sendo de admitir que alguns concelhos não
tivessem misericórdia, mas pouco provável que existisse mais do que uma por município.

De resto, as competências das misericórdias apontam de forma clara para a complementaridade funcional
entre as duas grandes instituições locais. O caso dos presos e dos expostos. Os serviços de assistência
relacionados com presos pobres eram efetuados pelas misericórdias: os irmãos da misericórdia tinham
autorização para entrar nas prisões da Câmara, limpá-las, alimentar os presos, dar andamento à sentença
que aguardavam e fazê-la executar. Eram os irmãos da misericórdia que acompanhavam os sentenciados à
morte ao local de execução e recolhiam os restos mortais respetivos em procissão solene no dia de Todos-
os-Santos.

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Quanto aos expostos, embora a lei atribuísse claramente o financiamento da sua criação aos concelhos, em
cidades e vilas como Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, Santarém, cabiam às misericórdias os aspetos logísticos
relacionados com a assistência às crianças abandonadas. Ressalve-se no entanto as misericórdias só por
circunstâncias ligadas a contratos efetuados com as câmaras ou relacionados com competências de hospitais
entretanto adquiridos, assumiram essa responsabilidade: na maioria dos municípios e misericórdias locais
não intervinham na ação de expostos. Eram as misericórdias a administrar os hospitais locais mais
importantes em termos de capacidade e rendimentos. Administravam os hospitais a que podemos chamar
gerais, destinados à população pobre, quer em resultado das incorporações de antigos hospitais da câmara,
quer devido à fundação de novos estabelecimentos.

Administravam ainda pequenos hospitais como é o caso dos antigos lazarentos, desta forma criando uma
rede interativa de hospitais a nível local. Algumas misericórdias possuíam recolhimentos femininos próprios
e atribuíam dotes de casamento a órfãs, por vezes através de concurso público. Faziam os funerais dos
cadáveres de crianças e adultos encontrados nas ruas, dos doentes pobres falecidos nos hospitais e dos
próprios irmãos e suas famílias, embora assinalando as diferenças de posição social através de rituais
diferenciados. Chegavam inclusivamente a deter o monopólio da posse de esquifes, eventualmente cedidos
às outras irmandades que pretendiam enterrar os seus mortos.

As misericórdias eram das poucas confrarias que podiam fazer peditórios destinados a obras de misericórdia,
isto é, destinados a presos, entrevados e pobres envergonhados; o resgate de cativos no Norte de África
chegou a ser uma das suas funções embora posteriormente fosse atribuído à Ordem da Trindade.

A misericórdia possibilitava também um conjunto de operações financeiras que ultrapassavam o simples


empréstimo a juros das restantes confrarias: serviam como fonte de crédito para as grandes casas senhoriais
e para a própria coroa em situação de emergência; por outro lado, operavam transferências de capitais
através da procuradoria de defuntos, encontrando os herdeiros dos portugueses falecidos no ultramar. A
partir de meados do século XVIII, é a Misericórdia de Lisboa a administrar o jogo da lotaria à escala nacional,
o que é sintomático da sua capacidade financeira 120.

A multiplicidade das misericórdias e a sua importância ao nível local transforma-as nas confrarias mais
importantes no Antigo Regime português, sem menosprezar o papel de enquadramento social e religioso
que a grande quantidade de outras irmandades parece ter desempenhado para as camadas menos
privilegiadas da população.

As Famílias Principais e os Poderosos

120
Cf., Nuno Gonçalo Monteiro, «O endividamento aristocrático (1750-1832); alguns aspetos», Análise Social, vol. XXVII, 1992, p. 267.

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A legislação da monarquia reconhecia o papel de liderança local que cabia às pessoas principais das terras
(1570), aos melhores dos lugares (1603, Ordenações), aos «melhores da terra» (1618), às «pessoas da
melhor nobreza» (1709), em particular, ao reservar-lhes os «principais ofícios da república» nas diversas
povoações do reino, ou seja, os ofícios honorários das câmaras e os postos superiores das ordenanças. Ao
mesmo tempo, nas descrições do reino ou de dadas províncias ou localidades, a par de outras referências, a
identificação e os atributos das respetivas nobrezas era um dos fatores invocados para realçar a importância
das terras.

As corografias e descrições geográficas que se reportam a todo o reino, quando se associam dadas famílias a
certas terras, o que só algumas vezes acontece, escolhem-se em geral a dos senhores de terras com
jurisdição. No entanto, quando se imprimia as citadas corografias raros eram já os senhores de terras leigos
com jurisdição que residiam nas terras de que eram donatários, ao inverso do que se podia verificar cem
anos antes 121, e do acontecia com vários mosteiros rurais, que mantinham uma forte influência local.

A nobreza das terras, que pontificava nas câmaras e ordenanças, cada vez menos se confundia com os
senhores delas. Estes tinham-se vindo a fixar na corte, sobretudo depois da Restauração de 1640, onde
acumulavam novas honras e mercês exceção feita, é claro, aos eclesiásticos. De resto em obras de feição
mais provincial ou local produzidas no século XVIII são os principais residentes na província, e já não os
senhores donatários, que se mencionam. Identificada em certos registos corográficos, a nobreza das terras
era-o também, como se disse, no vocabulário oficial. Estavam-lhe reservados não só os ofícios nobilitantes
locais, mas também a representação das terras em cortes.

Com efeito, os procuradores dos concelhos no Braço do Povo em Cortes deviam sair da «nobreza» e da
«gente da governação» delas, quer dizer das mesmas famílias e casas que asseguravam o governo camarário
local. Os donatários, com jurisdição, por seu turno, tinham assento, tal como os titulares com os quais se
confundiam, no Braço da Nobreza em Cortes que se realizaram até ao fim do séc. XVII. De resto, pelo menos
até no século XVIII, a própria legislação reconhecia uma clara distinção entre a «principal nobreza dos meus
Reinos» (1761), a Nobreza que administra bens da coroa» e o resto da nobreza da Corte ou das Províncias»
(1755). A principal nobreza da corte e a nobreza das províncias, eis uma distinção essencial que se foi
acentuando até aos tempos da revolução liberal oitocentista.

Nobreza das terras

À nobreza das terras cabia o governo local 122por um lado , a de oligarquias fechadas e cristalizadas em torno
do monopólio dos principais ofícios da governança e outras instituições locais, como as misericórdias

121
Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, A Casa e o Património dos Grandes Portugueses (1750-1832), dissertação de doutoramento mimeo),Lisboa, 1995, p
555 e ss.
122
Matéria que será abordada no capítulo «O espaço político e social local».

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imagem essa que sobressai em muito da bibliografia recente produzida sobre o tema em Portugal. A qual,
pode ser reforçada se se ponderar o peso dos morgados e das capelas, quer dizer, da instituição vincular,
como vetor distintivo dos comportamentos dos grupos nobiliárquicos peninsulares e que se destinava
precisamente, através de uma apertada disciplina familiar e da indivisão dos patrimónios, a perpetuar as
casas e as famílias no seu esplendor.

Do outro lado, haverá que pensar nas implicações, não só da muito desigual importância económica, social e
simbólica dos centros de poder local, resultante em grande parte da sua diversificada dimensão demográfica
e espacial, mas ainda de fatores que favoreciam o acesso aos estatutos e fluidez da noção jurídica de
nobreza que acabou por ser consagrada no direito e na prática de várias instituições em Portugal. A qual, de
resto, foi acompanhada até ao período pombalino pela existência de escassos impedimentos legais à
instituição de vínculos e se exprimiu, ainda depois, na facilidade com que, por exemplo, se foram
concedendo as cartas provinciais de armas com as quais se afidalgavam as fachadas das casas provinciais de
razoáveis proporções, hoje usual e impropriamente designadas por solares.

Estudar as elites locais, as famílias e as casas às quais a legislação conferia o governo das terras, nas suas
múltiplas dimensões, vetores de uniformidade e diversificação no espaço e no tempo constitui, assim, uma
das dimensões essenciais do trabalho. A fluidez da noção de nobreza em Portugal, que fez com que nunca
tivessem existido listas nacionais de nobres, e também da desigual dimensão e importância dos centros do
poder político local, que contribuiu para conferir à gente da governança um perfil social bastante variável,
não coincidente em muitos casos com o das pessoas que gozavam em cada terra do estatuto jurídico de
nobre.

Quanto às formas de dominação, prevalecia na cultura política do Antigo Regime a ideia de que, aos diversos
níveis, os principais ofícios da república deviam ser reservados para quem possuía mais elevada dignidade
nobiliárquica. E essa ideia tinha uma tradução exemplar precisamente nas formas definidas para a
administração local. Era a administração dos honoratiores: «tal domínio existe em todos os lugares em que a
honra social (prestigio) dentro de um circulo determinado se converte em fundamento de uma situação de
domínio com um poder autoritário de mando”, “o pressuposto absoluto da posição dos administradores
honorários nesta situação primeira de poder viver para a apolítica sem dela ter de viver, é um certo grau de
bem estar ou de independência economia derivada dos seus próprios recursos privados» 123.

Considerava-se, assim, que os membros das famílias mais antigas e prestigiadas, não só seriam depositários
de uma autoridade natural que o habilitava para o mando, porque mais facilmente acatada pelos dirigidos,
como davam maiores garantias de independência e isenção no desempenho dos ofícios, por disporem de

123
Max Weber, Economia Y sociedad. Esbozo de una sociologia compreensiva (1922), México, 1984,pp 755 e 233.

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recursos próprios para o seu sustento. Uma imagem contraditada por outras da época, mas que persistiu até
tarde enquanto modelo oficial.

Importa conhecer o recrutamento das elites locais, como ainda a explicação para a coexistência desses
modelos de seleção oficialmente muito restrito com essa imagem de «corrupção» por vezes associada ao
poder local.

Como era acatada a autoridade das elites locais? Qual a relação entre dirigentes e dirigidos?

A forma como esses «mecanismos doces» de dominação, destinados a suscitar a adesão voluntaria às
autoridades locais, se combinavam com outras formas de exercício do poder, notoriamente violentas ou
sentidas como tal. Nestas últimas ocasiões, as elites locais, ao invés de surgirem como depositárias de uma
autoridade natural, aparecem denunciadas como «os poderosos» que cometem prepotências. Para se
conhecerem essas situações, haverá que pesquisar o pouco que se sabe sobre o conflito na sociedade local e
as suas instâncias de regulação. Finalmente este último tema exige que se ponderem sempre as relações
entre a esfera local e a sociedade envolvente, cujas intervenções funcionaram muitas vezes como o
despoletar dos conflitos abertos e mais imediatamente visíveis.

População e Rede Urbana nos Séculos XVI-XVIII

O recenseamento de 17 de julho de 1527 mandado executar por D. João III, para carrear elementos para
mais segura reforma administrativa, dai resultou o Numeramento de 1527-1532, que nos habilita hoje, à
distância de quatro séculos e meio, a reconstituir com um grau de aproximação minimamente fiável a
população portuguesa do primeiro quartel de Quinhentos.124 Os resultados do inquérito joanino apontam
para um total de 282 718 fogos, o que, utilizando um coeficiente de multiplicação de 4,3, corresponderia a
cerca de 1 216 000 habitantes. 125

Trata-se de uma população pequena, com uma distribuição média pelo território continental de apenas 13,6
habitantes por quilómetro quadrado. Numa perspetiva comparada, representava cerca de 1,8% da
população europeia, e, cerca de 1/6 ou 1/7 da população da península ibérica.

Portugal apresentava-se no contexto europeu de princípios de Quinhentos como um país não só pouco
populoso como também escassamente povoado, devido aos diferentes fatores de incidência mais
conjuntural, as más condições naturais de boa parte do território português, a sua posição periférica, situada

124
O Numeramento acha-se publicado desde 1905-1909 no Archivo Histórico Portuguez, vols. III-VII, por Anselmo Braamcamp Freire, na parte reativa
ao Minho, Trás-os-Montes, Estremadura e Alentejo.
125
Problema suscitado pelas fontes demográficas do Antigo Regime pois, de um modo geral, estas exprimem-se em fogos, moradores ou vizinhos
(expressões tecnicamente diferentes, mas em todas equivalentes, em principio, a agregados domésticos e quase nunca em habitantes, o que tem
suscitado o problema da determinação do coeficiente habitantes/fogo. Assim optou-se por basear o texto e a maior parte dos cálculos apenas nos
dados respetivos a fogos.

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no finisterra europeu, e a instabilidade provocada por vários séculos consecutivos de guerra com o Islão e a
Cristandade, guerras particularmente agudizadas no, então ainda recente, período de formação da
nacionalidade.

A partir daí e até Setecentos, da Chorografhia do padre Carvalho da Costa, desconhece-se a evolução da
população portuguesa. A reconstituição da população portuguesa que ressalta das estimativas propostas
surge marcada por um crescimento muito intenso (na ordem de 0,8% ao ano) durante a maior parte do
século XVI, seguido duma desaceleração após 1580.Cerca de 1580 ter-se-á atingido um máximo teórico de
cerca de 487 mil fogos.

Entre essa data e cerca de 1660 a população terá entrado numa fase de recessão ou de estagnação, com o
ponto mais baixo em 1640 (477 mil fogos). Numa perspetiva comparada a população portuguesa continua a
representar uma fração minúscula da casa europeia, mas o seu comportamento nestes dois séculos é
surpreendente, pois no caso português esse crescimento demográfico foi muito mais intenso do que em
qualquer dos grandes agregados europeus.

Como é que foi possível à população português manter uma vitalidade suscetível de contrariar os fatores
adversos (epidemias, fomes e cataclismos naturais), sustentar uma emigração que algumas estimativas
cifram em 600 mil saídas entre 1500 e 1640, expulsar judeus e cristãos-novos e ainda crescer acima da
média europeia? A discussão e o aprofundamento destas questões estão, no entanto, e
compreensivelmente, fora do âmbito destas páginas.

Passando ao século XVIII, período para o qual tornarmos a dispor de dados fiáveis e de uma reconstituição
mais segura, o aspeto mais saliente reside na existência de duas tendências distintas e contraditórias: uma
de recessão e outra de crescimento. A primeira corresponde ao primeiro terço do século, durante a qual a
população experimenta um lento declínio, à razão de 0,20% ao ano, perdendo talvez uns 5% dos seus
efetivos totais, o que equivale a qualquer coisa como 3500 a 4000 indivíduos a menos por ano. O fenómeno
emigratório foi violento neste período atraído pelo ouro brasileiro. Segundo algumas estimativas, a migração
rondaria então as 8 a 10 mil saídas anuais.

A partir dos anos trinta aquela tendência regressiva inverteu-se e a população portuguesa iniciou um
crescimento duradouro que cobriu todo o resto do século. Portugal apresentava em 1801 cerca de 3 milhões
de habitantes (correspondendo a 754 390 fogos).

Desequilíbrio Regional da população portuguesa ao longo do Antigo Regime

O território português encontrava-se dividido em seis comarcas, ou províncias, bastante desiguais quer em
área, quer em população. Essas desigualdades, contudo, não eram diretamente proporcionais. Verifica-se,
por exemplo, que a província de Entre Douro e Minho, uma das mais pequenas (apenas um duodécimo do

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espaço metropolitano), albergava cerca de um quinto de toda a população portuguesa, enquanto, em


contrapartida, toda a região a sul do Tejo, quase cinco vezes maior do que o Minho, tinha uma população
particamente igual.

Com 32,6 habitantes por quilómetro quadrado, o Noroeste não só se salientava largamente da média
nacional, como ombreava com os melhores valores europeus. Enquanto o Alentejo com os seus 6,9
habitantes/km2, se assemelhava a uma região semidesértica, constituindo mesmo, ao quedar-se abaixo dos
7 habitantes/km2 de Aragão, a região menos densamente povoada de toda a Península Ibérica.

Além do Minho, a concentração populacional de Lisboa constituía o outro grande foco específico de
distorção demográfica. Uma pequena província e uma capital que, em conjunto, albergavam um quarto de
toda a população do litoral e um terço dos habitantes, que viviam a norte do rio Tejo. Lisboa e Noroeste
pareceriam, assim, situar-se fora da realidade demográfica nacional, não fossem, afinal, os principais
símbolos, e simultaneamente fatores, dessa mesma realidade, tão profundamente marcada por excessivos
contrastes e desequilíbrios.

Em 1527 o grosso da população metropolitana (47%) vivia numa vasta região centro, compreendida entre os
rios Douro e Tejo, habitado a norte daquele rio cerca de um terço dos portugueses e a sul deste cerca de um
quinto. À medida que se desce no território, a população vai diminuindo. A norte do Douro, em cada
quilómetro quadrado vivem, em média, quase o triplo dos habitantes e igual superfície a sul do Tejo.

Por seu turno, só a Região Centro, sensivelmente igual à do Sul em superfície, apresenta mais do dobro da
população desta. Se, entretanto, consideramos o rio Tejo como a fronteira entre o Norte e o Sul, então o
contraste ainda mais se acentua: quase 80% da população vive na zona setentrional do país (o quádruplo
dos habitantes do Alentejo e do Algarve).

Quase metade da população (48%) vivia em cerca de um terço do território, correspondendo a uma longa
faixa litoral que se estendia desde o Minho a Setúbal e a Alcácer, prolongando-se depois pela faixa costeira
alentejana e pelo litoral algarvio. A densidade populacional média do vasto interior (Trás-os-Montes, Beiras,
Alentejo e Serra algarvia) era pouco mais de metade da que se verificava no litoral. Economicamente mais
atrasado, em boa parte imune aos efeitos da economia marítima, o interior ressentia-se ainda, em termos
demográficos, da rarefação das gentes.

O tempo encarregou-se de consolidar e de acentuar o padrão de desequilíbrios regionais. A mais flagrante


continuava a ser a que opunha a pequena província do Minho ao resto do país. O Minho era ainda, no final
do Antigo Regime, como sempre vinha sendo desde a Reconquista, o grande alfobre demográfico nacional,
«produzindo» gente suficiente para o povoamento de um reino em construção, para alimentar as diversas
correntes emigratórias, e ainda sobrando localmente em grande quantidade.

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No final do século XVIII albergava cerca de um quarto da população portuguesa. Para se ter uma melhor
perceção desta magnitude, repare-se que aí vivia um número de habitantes equivalente ao de três outras
províncias juntas: Trás-os-Montes, Alentejo e Algarve. A Estremadura e a Beira eram, à escala nacional, as
províncias que revelavam um melhor equilíbrio entre a sua população e o espaço que ocupavam.

Considerando a repartição da população pelos grandes agregados regionais o maior contraste continua a
ser, no século XVIII, o que opõe a metade do país situada a norte do Tejo à que se situa a sul deste rio, o que
se verifica não só quando considerados os pesos percentuais das duas regiões (80% contra 20% em 1706,
83% contra 17% em 1801),como quando, utilizando um indicador mais adequado – densidade populacional
confrontamos os 12 fogos/km2 do Norte com os 3,5 do Sul. O Litoral contrastava igualmente com o Interior,
se bem que de modo menos flagrante. Em qualquer dos casos - Litoral face ao Interior e Norte face ao Sul, os
primeiros acentuaram o seu peso proporcional ao longo do século XVIII, o que significa que tiveram um
crescimento muito mais rápido.

Verifica-se assim que a população portuguesa, na passagem do século XVIII para o século XIX, tendia a
concentrar-se no Minho, nas comarcas durienses, especialmente naquelas associadas à economia
vitivinícola, e nas amplas regiões de Coimbra, de Viseu e da bacia do Vouga. Avançando para o interior, quer
na província de Trás-os-Montes quer na Beira, a população rarefazia-se. O sistema montanhoso Montejunto-
Estrela parece marcar, para sul e para leste, a barreira separadora entre o Portugal povoado e o Portugal
despovoado. As comarcas de Santarém, Tomar e Setúbal, apesar das suas grandes dimensões, asseguram
como que a transição entre as duas grandes regiões, com contribuições para a população total superiores às
das comarcas da Beira Baixa, do Alentejo e do Algarve.

Rede Urbana

Do ponto de vista demográfico, o fenómeno urbano, elementos disponíveis no Numeramento de D. João III,
apesar das suas limitações e das dúvidas que possam suscitar, constituem uma fonte preciosa para o
apuramento da rede urbana portuguesa de Quinhentos.

Deixando agora de lado a discussão teórica, bem como a técnica, sobre os conceitos de cidade e de
população urbana e restringindo-nos a um critério fundamentalmente quantitativo, vamos começar por
considerar como núcleos de feição urbana todas as aglomerações de mais de 250 fogos, dotadas de
centralidade administrativa ( isto é sedes de concelho). 126

Em termos populacionais, esse valor correspondia a aproximadamente mil habitantes. Povoações dessa
dimensão contavam-se 81, designadamente distribuídas pelo território continental. A sua grande maioria,
refletindo uma tradição urbana que remonta ao período muçulmano, e mesmo romano, localizava-se no Sul

126
Os cálculos seguintes baseiam-se nos dados publicados por Júlia Galgo e Suzanne Daveau, op. cit., pp.107 a 109.

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do país, sendo umas 43 no Alentejo e no Algarve e outras cinco no curso inferior do vale do Tejo, incluindo
Santarém, Lisboa e as suas imediações.

A norte do Tejo, as restantes 33 povoações deste tipo distribuíam-se do seguinte modo: oito na região do
Noroeste, 16 em Trás-os-Montes e nas Beiras e nove no resto da Estremadura. Assim como acontecera com
a generalidade da população, também a população urbana se achava muito irregularmente distribuída pelo
território.

No sul do país atingia as maiores proporções: os fogos sediados em aglomerações de dimensão considerada
representavam 52% do total provincial no Alentejo e 46 % no Algarve.

Na Estremadura equivaliam a um terço, embora este valor baixasse para menos de metade (14%) caso
eliminássemos artificialmente o peso distorcido da população de Lisboa.

No Minho, por seu turno. Correspondiam a 15%. O interior beirão e transmontano constituía a região mais
ruralizada, com apenas 7,5% e 6% de habitantes urbanos, respetivamente.

Porém, se seguirmos o critério quantitativo e considerarmos como Orlando Ribeiro, que apenas é possível
falar de verdadeiros centros urbanos no caso de aglomerados com mais de 500 fogos (cerca de 2200
habitantes), ou mesmo, como sugere Magalhães Godinho, que somente aos que ultrapassam os 900 fogos
(cerca de 3900 a 4000 habitantes) se pode atribuir, para o século XVI, a classificação estatística de cidades, a
imagem do Portugal urbano desta época altera-se significativamente.127

Com base nestes critérios mais de 160 mil pessoas (13,3%) da população portuguesa do primeiro terço do
século XVI, viviam em cidades e mais uns 4,6% em 18 centros urbanos com mais de 500 e menos de 900
fogos. No conjunto, cerca de 18% da população total, ou seja, qualquer coisa como um português em cada
cinco vivia em cidades ou vilas. Trata-se de um valor bastante elevado, se atendermos à época e a outras
características da demografia portuguesa quinhentista, nomeadamente a pequenez da sua população 128.
Mas o grosso da população citadina (36%) vivia em 8 aglomerados de 3900 a 6500 habitantes, do cujo
conjunto é de salientar Tavira (6500) Guimarães (6000), Coimbra e Lagos (5600), Portalegre, Setúbal e Beja
(5100).

Pelo exposto se verifica que urbanismo português do século XVI, a exemplo do que já acontecia com a
distribuição da população, apresentava características relativamente desequilibradas. A uma capital
enormíssima, contrapunha-se uma massa de centros urbanos que, independentemente das diferenças que
os separava, todos se reduziam à dimensão de pequenos face a macrocefalia de Lisboa. Entre esta e aqueles

127
Cf. Orlando Ribeiro, verbete «Cidade», in Joel Serrão (dir.), Dicionário de História de Portugal, Lisboa, 1971, e Magalhães Godinho, Estrutura da
Antiga Sociedade Portuguesa, 2ª edição, Lisboa, 1975, p. 38.
128
É preciso não extrapolar conclusões precipitadas, pois deste número cerca de ¼ de toda a população urbana se encontrava em Lisboa. Porto e
Évora rondariam, cada uma, cerca de 12 500 habitantes.

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situava-se um vazio demasiado grande, que não estava preenchido (nem iria a estar até aos finais do Antigo
Regime) por uma armadura de cidades médias.

Repare-se que em toda a vasta região interior, de Trás-os-Montes e da Beira, à escassez das aglomerações
urbanas se junta a sua insignificante dimensão. Apenas se referem dois centros populacionais com algum
significado para receber o qualificativo de cidades: Covilhã e Castelo Branco, ambas na Beira Baixa.

Apesar do número de centros urbanos ter aumentado quase 25% entre o princípio e o fim do século, a
população que neles vivia, proporcionalmente à população total do país, era praticamente a mesma em
1800 do que em 1700: a taxa da população urbana era inferior à população rural. Esta estabilidade
estatística é fictícia pois oculta duas tendências distintas e contraditórias por um lado, o enorme
crescimento de Lisboa e Porto, cujas populações aumentaram respetivamente 56% e 14,8% e, por outro
lado, a redução do peso relativo dos restantes aglomerados urbanos que, no espaço dum século,
estagnaram ou regrediram mesmo.

Pode assim dizer-se que a província se desurbanizou em proveito duma urbanização intensiva das duas
principais cidades. Com efeito, se eliminássemos artificialmente as populações de lisboa e Porto,
verificaríamos que, entre 1706 e 1801, apenas em Trás-os-Montes e muito ligeiramente a Estremadura, a
população urbana aumentou o seu peso na população total das respetivas províncias. Em todas as restantes
regiões a taxa de urbanização desceu mesmo ao longo do século XVIII, de forma muito acentuada no Sul
(Algarve e Alentejo), mas também na Beira e no Minho.

Lisboa contava no princípio do século XVIII, fora o Termo, com cerca de 28 mil fogos, qualquer coisa como
110 a 120 mil habitantes. O crescimento anual médio de Lisboa terá sido de 1,25%, interrompido em 1755
pelo terramoto, cuja população perdida terá sido cerca de 12%.

No dealbar do século XIX, a capital portuguesa contava com cerca de 44 000 fogos e um número de
habitantes que se deveria situar aproximadamente entre os 175 e os 200 mil.

Em resumo, os desequilíbrios populacionais, de tipo regional (distribuição desigual das taxas de urbanização,
das densidades urbanas e do número de aglomerados urbanos) acentuaram-se entre os séculos XVI e XVIII e
ainda ao longo deste. O grande desequilíbrio continuava a residir na macrocefalia de Lisboa, cidade
desproporcionalmente grande que, em 1706, chamava a si 4,9% da população total e 26,2% da população
urbana, valores que, um século mais tarde ascendiam já a 5,8% e 32%. Do outro lado, isto é, para além de
Lisboa, não existiam senão núcleos de dimensões muito reduzidas.

Diversidade e Uniformidade das Instituições Locais

Dificilmente se poderá encontrar, de resto, um espaço tão restrito como o do reino de Portugal e dos Açores
e ilhas atlânticas nos séculos XVII e XVIII onde os contrastes económico-sociais e socioculturais entre regiões

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sejam tão pronunciados. Contrastes que se podem reconhecer nas características das respetivas economias,
mas que se prolongam nos sistemas demográficos e, especialmente, nos familiares.

No entanto, apesar destes contrastados contextos nos quais se inseriam, a verdade é que as instituições
locais portugueses se caracterizavam por uma relativa uniformidade. Concelhos, paróquias e companhias e
companhias de ordenanças existiam em todo o espaço continental e insular da coroa portuguesa. E as suas
atribuições formais eram semelhantes em toda a parte. Embora não se possa ignorar a sua muito mais
ampla dimensão, a diversidade institucional das monarquias francesa e espanhola era notoriamente maior.

No marco geral dos particularismos que é de todos os Antigos Regimes, a diversidade das instituições
portuguesas era bem menor do que em outras paragens. Aí residirá, certamente, uma das peculiaridades
portuguesas que importa destacar. A outra, há que encontrá-la na inexistência de instituições formalizadas
de âmbito regional. Dela nos iremos ocupar no capítulo seguinte.

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CAPÍTULO II - O CENTRAL, O LOCAL E O INEXISTENTE REGIONAL


Neste capítulo, procuraremos expor os mecanismos institucionais do centro, as suas formas de relação e de
comunicação política com as periferias e a sua evolução ao longo do período considerado. Quais os agentes
disponíveis e o raio da sua ação e o sentido da sua atuação.

Numa Europa onde a generalidade das unidades políticas do Antigo Regime europeu foram os Estados-
Nações oitocentistas, Portugal constituía sem dúvida um caso singular. Era um reino, construído através da
Reconquista e, como tal, dotado de um invulgar homogeneidade institucional, porque nunca coagido a
respeitar a identidade de corpos políticos preexistentes e ainda por outras circunstâncias, que adiante se
discutirão.

Um dos legados dessas origens e dessa história era, precisamente, a inexistência tendencial de «corpos
políticos intermédios”, entre o centro e a esfera local. Além disso, apenas durante o período da união
dinástica com Castela (1580-1640) se integrou numa monarquia compósita, que até tarde respeitou as suas
instituições próprias, e da qual se conseguiu subtrair com êxito.

Terá constituído, de resto, o último caso de secessão bem-sucedido na Europa moderna. Finalmente era
cabeça de um desproporcionado império colonial, que fornecia à coroa portugueses recursos financeiros
largamente independentes da pressão tributária sobre o interior do território.

Com alguma ironia e algum excesso, Charles Tilly estabeleceu a esse respeito uma comparação sugestiva: «A
situação de Portugal (…) assemelha-se com a dos atuais estados produtores de petróleo: as receitas fáceis
davam aos seus dirigentes uma ampla autonomia em relação à população que governavam, mas tornavam-
nos dependentes desse fluxo contínuo de rendimentos e daqueles que o produziam». 129

Portugal não constituía assim uma monarquia compósita, exceto o período filipino e os derradeiros anos que
antecederam a independência do Brasil, a monarquia coincidiu sempre com o reino, apoiada nos proventos
das suas «conquistas». Exceto 1640, não se conhecem grande revoltas entre os finais do séc. XV e os inícios
do séc. XIX, e, menos ainda, rebeliões com uma acentuado cunho regional, étnico ou religioso. A monarquia
portuguesa nunca teve, desta forma, de se defrontar com desafios que foram muito comuns nas suas
congéneres europeias.

129
C. Tilly, « Entanglements of European Cities and States», in C. Tilly e W. P. Blockmans, Cities and the Rise of States in Europe ad 1000 to 1800,
Oxford, 1994, p. 21.

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1. Agentes e Dinâmicas do Centro: A Monarquia e seus Dispositivos


Institucionais

Em Portugal predominou o modelo de governo jurisdicionalista como paradigma de atuação da


administração central até à derradeira fase do reinado de D. João V. De acordo com esse modelo, o fim
principal da atuação do rei é a justiça, entendida como a preservação da ordem natural, quer dizer, do
equilíbrio das instituições e dos poderes preexistentes. A este paradigma, contrapor-se-iam os políticos que
concebiam a esfera da atuação governativa como o terreno do artifício, da construção e da vontade, em
potencial contraposição com os centros de poder tradicionais.

No entanto, antes de meados de Setecentos, somente durante os curtos períodos de «validismo» dos
condes olivares (1621-1640), e de Castelo Melhor (1662-1668) é que as conceções dos políticos
prevaleceram sobre as mais tradicionais. A estas últimas correspondia um modelo de administração e uma
tipologia dos assuntos que em parte se traduzia nas competências dos diferentes conselhos e tribunais:
questões de justiça, de graça, de graça e justiça, etc.

O «Centro» da monarquia consubstancia-se, desta forma, num conjunto de instituições (Conselho de Estado,
Desembargo do Paço, Conselho da Fazenda, etc.) com a sua esfera de jurisdição própria e com uma
significativa identidade corporativa. As quais, de resto, algumas vezes colidiam entre si e não prosseguiam,
em regra, uma ação concertada. Apenas com a reforma das secretarias de Estado de 1736 e, sobretudo com
o forte impulso que receberam no período pombalino é que se começaram a configurar os futuros
ministérios E estes foram expropriando as competências próprias dos diversos conselhos e tribunais
herdados dos séculos anteriores. Tornaram-se, então no governo ou no gabinete, um sentido que já se
aproxima do moderno.

Uma das manifestações mais exemplares dos limites dos órgãos centrais da monarquia, era o quantitativo de
funcionários que se encontrava sob a sua direta dependência. Em meados do século XVII, o número de
oficiais da administração central era de 600 indivíduos e, deste, mais de uma centena pertencia à casa real. A
administração periférica da coroa, quer dizer, os ofícios por ela providos nas províncias, pouco passavam dos
1100 indivíduos. Muito menos do que os 9855 dependentes dos concelhos, os quais, com pouco mais de
duas centenas associados à administração senhorial, ultrapassavam a dezena de milhar 130.

Quase duas centúrias mais tarde, o número de funcionários públicos da administração central lisboeta
tinham crescido de forma notória: eram já 2744 indivíduos em 1820, sem contar com os pensionistas. Um
crescimento indiscutível do aparelho central, portanto, mas que se verificou com maior intensidade, de

130
Cf. A. Hespanha, As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal - Séc. XVII, I Vol., Lisboa, pp.223-361, e José Subtil, «Governo e
Administração», in História de Portugal, dir. de José Mattoso, vol. IV, O Antigo regime (1620-1807,coord. de António Manuel Hespanha, 1993, pp.
191-192.

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facto, só na segunda metade do século XVIII. Mas, em todo o caso, parece seguro que o número total de
funcionários públicos não alcançaria os quantitativos do exército, principal sorvedouro das despesas públicas
na época131.

O centro não prosseguia sistematicamente nada de idêntico ao que hoje se chamariam políticas. A sua
esfera de atuação era bem restrita. Competia-lhe garantir a justiça, no sentido lato antes definido. E
também, claro está, perpetuar as condições, designadamente financeiras, da sua própria reprodução.

Existia uma esfera de disputa política e da decisão política, mas esta abrangia em larga medida apenas as
elites políticas e sociais do centro: nomeação de pessoas para cargos e ofícios superiores (no reino e nas
conquistas), remuneração de serviços (mercês), decisão final sobre contendas judiciais especialmente
relevantes, política tributária, e alinhamentos políticos externos.

De resto, essas relações externas podiam originar situações de guerra iminente, as quais, por seu turno,
colocavam novas exigências financeira e precipitavam, com frequência, as inovações, não só ao nível dos
impostos, como em muitos outros planos. Eram, desta forma necessidades militares ou financeira, ou a
combinação das duas coisas, que forneciam os ingredientes mais comuns para que nos Antigos Regimes se
levassem a cabo «políticas» mais ou menos articuladas, em geral, de duração efémera. As afirmações
produzidas aplicam-se sem dúvida, à problemática da centralização. Antes da última etapa do Antigo
Regime, só em momentos bem determinados tal objetivo constituiu um desígnio consciente da coroa e dos
seus agentes.

Porém, o Pombalismo (1750-1777) marcou a esse nível uma indiscutível rutura. De resto, parece difícil
recusar uma dimensão sistemática e doutrinariamente articulada às políticas evadas a cabo pelo governo do
1º marquês de Pombal.

Os Juízes de Fora

No que se reporta à centralização, cabe aos Juízes de fora um papel cimeiro e com D.Manuel a instituição
estende-se já a todo o país, e no século XVI já o juiz de fora, autoridade do governo central, intervém
visivelmente na atividade do concelho, assistindo às sessões mais importantes, consultado ou ouvido, como
representante que é do governo de Lisboa.

Nos finais do século XVI, durante o reinado de Filipe I (1580-1598), terão existido apenas 32 terras da coroa
com juiz de fora. Não sabemos exatamente quantos eram, nessa altura, apresentados pelos senhores, mas
podemos estimar que o número total não alcançaria sequer a meia centena. Ou seja, menos de 7% das
terras do reino tinham juiz de fora. Um número muito reduzido.

131
Cf. Luís Espinha da Silveira, «Aspectos da evolução das finanças públicas portuguesas nas primeiras décadas do século XIX (1810-1827)», in Análise
Social, nº 97, 1987, pp. 505-529.

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Por volta da Restauração de 1640, embora subsistam algumas incertezas quantos aos números. Tinha-se
verificado já uma quase duplicação dos efetivos. Na meia centúria seguinte, o crescimento foi menos
acentuado, não se alcançando ainda a centena quando da aclamação de D. João V. Porém, neste reinado
verificou-se um certo crescimento. Não será inteiramente acertado, desta maneira, atribuir à governação
pombalina uma iniciativa particularmente inovadora nesse domínio, pois a tendência seria anterior.

O impulso seguinte na criação de lugares de juiz de fora deu-se na sequência da publicação das leis de 1790
e 1792.Criaram-se 23 lugares, tendo desaparecido quatro. A maior parte dos lugares foram criados para
serem apresentados por donatários e a pedido destes, em terras onde tinham deixado de poder designar os
respetivos ouvidores. Ate aos finais do Antigo Regime seriam pouco numerosas as novas criações.

De acordo com os indicadores recolhidos, mesmo se se contabilizarem os concelhos anexos, apenas um


pouco mais de um quinto dos municípios portugueses possuíam juiz de fora residente no início do séc. XIX.
No Sul, onde predominavam os grandes municípios, a percentagem de municípios com juiz de fora
relativamente ao total era mais elevada do que a média, ao invés da Beira e do Minho, as províncias onde
eram mais numerosos os pequenos concelhos. Finalmente, nas ilhas atlânticas, há a assinalar o elevado
número de juízes de fora criados nos Açores, proporcionalmente mais elevado do que no continente.

No entanto, se considerarmos, não o número de concelhos, mas a respetiva área e população, os


argumentos tradicionais parecem ganha novo fôlego. Com efeito, nos finais do Antigo Regime a maior arte
da população (76%) e do território do reino eram abrangidos por concelhos presididos por juízes de fora.

Como atuavam os juízes de fora?

Uma parcela dos juízes de fora não era nomeada pela coroa, mas pelos donatários. Em 1640,

19 (24,1%) do total eram apresentados pelos donatários leigos, e ainda mais 14 pelas ordens militares e pela
Sé de Braga, pelo que restavam para a coroa 45 (ou seja, 58,2% do conjunto); em 1811 as casas da família
real com administração autónoma (Bragança, Infantado e Rainhas)) apresentavam 45 juízes de fora (26,8%
do total) e os donatários leigos e eclesiásticos já somente 18 (10,8%), cabendo à coroa prover 105 (62,5% do
conjunto).

Os juízes de fora dos donatários mantinham quase sempre estreitos vínculos de dependências com as casas
que os escolhiam e lhes pagavam os honorários. De resto o controlo dos donatários sobre estes agentes era
muito mais eficiente do que aquele que podiam exercer sobre as câmaras por eles confirmadas.

Quanto aos juízes de fora nomeados pela coroa, eram recrutados de entre os muitos letrados que, saídos da
universidade, se submetiam à leitura dos bacharéis na procura de um lugar de letras na magistratura oficial.
Os cargos eram de provimento trienal, podendo ser reconduzidos. Embora em média permanecessem mais
tempo nos seus ofícios, a rotatividade nos finais do Antigo Regime foi elevada, o que sugere alguma

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capacidade de controlo do Desembargo do Paço sobre as carreiras respetivas. Parece indiscutível que juízes
de fora serviam de instrumento à circulação do direito oficial. Nesse domínio, contribuíam para a
homogeneização jurídica do espaço político.

No entanto, tal não significa que possam ser considerados agentes de fiscalização e controlo por parte das
instituições centrais da monarquia. De resto, os meios de comunicação eram demasiado ineficazes para que
tal se possa afirmar sem sérias restrições, só se tornando mais eficazes nos finais do Antigo Regime.

Tutelando amplos territórios, os magistrados letrados tinham de ser ausentar regularmente da sede dos
municípios onde exercitavam as suas funções, situação em que, como se referiu, podiam ser substituídos
pelos vereadores mais velhos, que assim assumiam as suas competências, não só em matéria
administrativas, mas também de justiça. Estas situações conduziram com frequência a conflitos, que se
traduziram no final do Antigo Regime em diversa legislação. Mas não devem fazer com que se ignore os
numerosos casos conhecidos em que, inseridos nas câmaras a que presidiam, os juízes de fora se faziam
porta-vozes das suas pretensões face às instituições centrais da monarquia.

Os Corregedores, Os Provedores as Comarcas

Entre a esfera local e das jurisdições de primeira instância, corporizada nas Câmaras e respetivos juízes, e as
instituições centrais da monarquia, interpunham-se as comarcas-correições, territórios da jurisdição de um
corregedor ou ouvidor. Geradas nos finais da Idade Média, eram então apenas seis (Entre-Douro e Minho,
Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Entre-Tejo e Odiana e Algarve.

Posteriormente, o seu número foi-se multiplicando, sobretudo na viragem de Quatrocentos para


Quinhentos. Mas as antigas comarcas medievais, designadas agora por províncias, subsistiram sempre como
referência, usada na descrição do território, embora já não lhes correspondesse nenhuma autónoma.

O seu número era de 48 em finais do Antigo Regime (1826). Os seus territórios mantiveram-se sempre
desiguais quanto à dimensão e, em diversos casos, com áreas encravadas em outras jurisdições, conforme se
conclui dos referidos mapas.

Quando apresentados pela coroa, os territórios de jurisdição intermédia encontravam-se sob a alçada de um
magistrado por ele nomeado, o corregedor. Na verdade, eram estes, juntamente com os provedores, os
principais instrumentos da administração real na periferia. As vastas competências que lhes atribuíam as
Ordenações Filipinas permitiam-lhes, em princípio, fiscalizar a atuação das câmaras, estabelecendo-se
expressamente que venham perante ele corregedor os que se sentirem agravados dos juízes, procuradores,
alcaides, tabeliães, ou de poderosos e de outros quaisquer, e lhes fará cumprimento de direito (art.º 6º).

Em matérias de justiça, as suas atribuições abrangiam a inquirição das justiças locais, a avocação dos feitos
dos juízes ordinários e o conhecimento dos agravos às respetivas decisões. Mas a área das suas

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competências incluía muitas outras matérias, entre as quais a tutela dos governos municipais em questões
tão relevantes como a verificação da eleição local dos juízes e vereações. Fora da sua alçada, ficavam os
assuntos militares, incumbência dos governos militares das províncias, e a maior parte dos da fazenda, da
competência dos provedores ou outros magistrados da coroa (juízes das alfandegas, intendes, etc.).

Existiu sempre uma significativa intervenção senhorial ao nível das jurisdições intermédias.Com efeito, numa
parte destas o magistrado não era corregedor, mas sim ouvidor nomeado pelo respetivo donatário. Nesses
territórios, virtualmente isentos da correição real, o ouvidor substituía para quase todos os efeitos o
corregedor. Em 1640, um pouco mais de um quinto (7 em 32) dos territórios de jurisdição intermédia eram
ouvidorias da apresentação das ordens militares, do arcebispado de Braga, e das Casas de Bragança e de Vila
Real. Não se deve, porém, confundir estas ouvidorias com as restantes, mais numerosas, onde as decisões
do respetivo ouvidor tinham recurso para o corregedor da comarca.

A maior parte dos projetos que previam o reordenamento do espaço político, não passaram do papel, pelo
que os territórios das jurisdições intermédias não sofreram alterações significativas, mantendo-se por vezes
descontínuos. Além disso, os corregedores das antigas ouvidorias-comarcas continuaram a ser apresentados
pelos donatários de «alta hierarquia». Para quase todos os efeitos os corregedores eram os principais
magistrados das comarcas e os principais agentes do poder central na província e, também, nas ilhas
atlânticas. A ação dos provedores era, em parte, concorrente com a dos corregedores.

Os correspondentes territórios (as provedorias) não coincidiam com os das correições na maior parte dos
casos, sendo o total sempre em menor número. A área privilegiada das competências dos provedores
reportava-se à fiscalização da cobrança da maior parte dos impostos devidos à coroa e das finanças
municipais. Mas entendia-se também a outras matérias e instituições, como os hospitais e misericórdias. De
resto, também estes magistrados da coroa alargaram o âmbito da sua atuação na última fase do Antigo
Regime.

A partir do governo pombalino serão desencadeados pelo poder central um conjunto de iniciativas que
tenderão reforçar a sua tutela sobre as instituições municipais e, simultaneamente, a reduzir os seus
particularismos: o lento declínio das jurisdições senhoriais, o reforço da intervenção camarária no
lançamento de impostos centrais, e as tentativas de aumento do controlo central sobre as finanças
municipais e sobre os baldios.

É depois da fundação da Academia das Ciências de Lisboa, (1782) que o espírito da reforma definitivamente
se instala, que se multiplicam os inquéritos destinados a permitir um melhor conhecimento do território,
que se formulam projetos vários e que emerge uma crise sistemáticas do poder municipal. As leis de 1790 e
1792 irão constituir a expressão paradigmática do espírito da reforma dos poderes locais anterior à
revolução liberal de 1820.

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Conhecimento do território

Da associação entre o exercício do poder e a produção de conhecimentos sobre o território tinham os


arbitristas do século XVII, como mostram as palavras de Manuel Severim de Faria, um dos seus
representantes, quando observava que « (…) é arte essencial da política a noticia da província em que cada
nasceu, e cuja administração lhe pode em todo, ou em parte, cair em sorte. Porque mal pode governar
aquilo, que se não conhece (…)».132

Era uma lição que aprendiam nos textos da antiguidade, nomeadamente no De legibus de Cícero, mas que
não se traduzia na existência de um conhecimento rigoroso da realidade concreta do território nacional do
reino.

Romero Magalhães, depois de deter na descrição do espaço português dos séculos XV a XVII, conclui pela
existência de um reino que «dificilmente era governado por quem mal o conhecia ou mal o conhecia ou mal
o podia conhecer».133

De que instrumentos se podia socorrer a coroa para obter informações sobre o território português, durante o Antigo
Regime?

Até ao aparecimento das primeiras descrições globais do território, estaria disponível, desde logo, a
literatura geográfica de influência humanista, que teve uma das suas expressões mais importantes na
Hispânia, de Damião de Góis (1542). Todas eram, porém, obras onde a referência territorial era a Hispânia
romana, descrita na sua história e nos seus elementos naturais e antropológicos, tendo ficado inacabada a
única que elegia o território do reino como referência central: a Geografia, de João de Barros.

Embora as informações sobre as populações, bem como sobre os recursos agrícolas e rendas, pudessem ter
transformado algumas daquelas descrições em hipotéticos instrumentos da fiscalidade régia e episcopal se
apropriava de forma fragmentária.

Por outro lado, embora os autores se afirmassem fundados na observação direta da realidade que
descreviam, a irrealidade dos cálculos que apresentavam sugere, muitas vezes, mais uma intenção de
exaltação das virtudes do espaço, do que a preocupação com o rigor e a quantificação. Talvez isto explique a
razão pela qual a grande operação do reconhecimento do território por parte da coroa não assentou num
investimento naquele tipo de obras – que recebiam o apoio das mais diversas entidades, eclesiásticas e civis,
cujas famílias e origens enalteciam – mas no registo estatístico da população de todo o reino, que se
materializaria pela primeira vez no censo de 1527.

132
Cf. Manuel Severim de Faria, Notícias de Portugal, Lisboa, Off. Craesbeeckiana,1655,p.251.
133
Cf. Joaquim Romero de Magalhães, o «O Enquadramento do Espaço Nacional”, in José Mattoso (dir.), História de Portugal, Lisboa, Circulo de
Leitores, vol. III, p.24

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Provavelmente anterior ao censo, mas ainda por datar, surge a primeira representação cartográfica do reino,
de Fernando Álvares Seco, publicada em 1561, e que viria a estar na base de toda a cartografia do reino, até
ao aparecimento (1662) de uma outra, a Descrição do Reino de Portugal (…) de Pedro Teixeira Albernaz 134.

Juntaram a estas outras descrições, incidindo mais sobre o território do reino e sobre conjuntos reginais,
algumas diretamente ligadas à defesa e à fiscalidade da coroa, mas reproduzindo todas as antigas
representações do reino.

Já no séc. XVIII, uma obra de consulta pelos reis, ou de quem pudesse estar interessado em recolher
informações sobre as terras do reino, era a Corografia Portuguesa, do padre António Carvalho da Costa.135

Embora a representação do território surgisse ali, novamente, de forma fragmentária – pela centralidade
concedida ao espaço concelhio, e não ao espaço do reino na sua unidade – foi uma referência para quase
todos os que se empenharam na descrição, nomeadamente para o Padre João Baptista de Castro, no Mappa
de Portugal (1745-1748), outra das obras mais consultadas.

Nos finais do século XVIII intensifica-se o investimento na recolha de informações sobre o território, desta
vez diretamente relacionado com os imperativos administrativos – e de reforma – da coroa. Impõem-se
então os trabalhos resultantes da atividade da Academia de Ciências de Lisboa, instituição que se propunha,
com intenções claramente utilitárias, dar a conhecer aos Portugueses as suas terras.

Procurava-se, dessa forma, dar resposta à necessidade de conhecimento de um governo que, ao eleger
como fim concreto da sua atividade o bem-estar individual e do Estado, assumia novas funções, que
passavam, entre outras coisas, pelo aumento da população do reino, ou pela regulamentação da atividade
económica nos seus diferentes ramos: agricultura, comércio e manufaturas. Neste contexto aparecem obras
convidando particulares e homens do Estado a converterem as suas viagens em momentos de observação e
de descrição metódica de um país onde, julgava-se então, se escondiam «riquezas imensas»136 que, por
desconhecimento, permaneciam desaproveitadas.

Resultado direto das iniciativas da coroa foram, na mesma altura, as memórias descritivas dos oficiais
enviados, em 1793, para cada uma das provinciais do reino, com o propósito de averiguar a «povoação,
agricultura, fábricas, comércio e indústria interna de cada um dos distritos das comarcas”, mas também os
bens dos concelhos, os pesos e medidas, e os direitos da coroa e da fazenda. Tratava-se da primeira
operação de recolha sistemática de informações que se reportavam a todo o espaço do reino, mas a
inexistência de qualquer formulário que padronizasse as respostas aos inquéritos deste «juízes

134
Curiosamente, uma época em que o reconhecimento do território esteve mais ligado às descrições escritas do que à sua representação gráfica, as
primeiras descrições globais do reino são tardias: a Geografia Antiga da Lusitânia (1597), de Fr. Bernardo de Brito, e a Descripção do Reino de Portugal
(1610), de Duarte Nunes do Leão.
135
Corografia Portugueza e Descripçam Topografica do Famoso Reyno de Portugal, Lisboa, Off. De Valentim da Costa Deslandes, 1706-1712, 3 vols.
136
Cf. José António de Sá, Compendio de Observaçoens que formão o plano da Viagem Politica e Filosofica, que se deve fazer dentro da Patria, Lisboa,
Off. Francisco Borges de Sousa, 1783, p.15.

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demarcantes», bem como as dificuldades com que se confrontaram no cumprimento das suas incumbências,
viria a refletir-se na diversidade dos resultados obtidos.

No que diz respeito ao registo estatístico da população destaca-se, neste final de século, o censo de 1798,
efetuado para efeitos de recrutamento militar pela Intendência-geral da Policia, e que vinha na sequência de
tentativas anteriores, menos bem-sucedidas. Este esforço prolonga-se e acentua-se no século seguinte,
dando origem aos censos de 1801 e 1802, feitos à escala nacional, e nos quais a uniformidade de critérios
era garantida pela elaboração de formulários, a preencher, novamente pelos párocos.

Já no século XIX, Marino Franzini integra a Comissão de Estatística e Cadastro do Reino (1817) e organiza o
numeramento que viria a ser apresentado às Cortes Constituintes de 1822. O mesmo será ainda responsável
pelos numeramentos efetuados pelos primeiros governos constitucionais que hão de estar por detrás do
desenvolvimento, em Portugal, de uma ciência estatística moderna.

As Reformas de 1790-1792

Inspiradas pelas reformas sociais e políticas do iluminismo – que, na segunda metade do século XVIII, se
concretizaram mais na defesa dos direitos do soberano e da exclusividade e indivisibilidade da soberania-, as
políticas reformistas dos monarcas europeus da época acabariam por pôr em causa o pluralismo político-
institucional que caracterizava as monarquias do Antigo Regime.

Em Portugal, o discurso reformista não podia deixar de direcionar as suas críticas para o particularismo e
irregularidades que resultavam dos amplos poderes jurisdicionais das câmaras e, em menor grau, do
exercício dos poderes senhoriais dos donatários, duas das entidades que materializavam a partilha de
poderes entre a monarquia e a sociedade corporativa. É então, no ambiente reformista de finais de
Setecentos, que a lei uniformizadora de 19 de julho de 1790, se destaca pela sua intenção explicitamente
uniformizadora. Através dela, pela primeira vez, a unificação da administração régia aparecia associada à
abolição de privilégios jurisdicionais de vigência multissecular, bem como à reforma global do território do
reino.

Os artigos da Lei de 1790 remetem-nos para as reformas judiciárias experimentadas na Europa de finais de
Setecentos, reformas que, além da afirmação do primado da lei, se dirigiram contra a pluralidade dos
tribunais, responsável pela morosidade e onerosidade dos processos.

Em Portugal, o exercício da justiça senhorial de segunda instância traduzia-se numa maior dificuldade, por
parte dos moradores das terras senhoriais, em aceder à justiça de recurso, porque os confrontava com as
distâncias consideráveis que os podiam separar da respetiva capital de ouvidoria, sempre que esta se
materializava numa circunscrição integrada por terras muito distantes. O que não era raro, uma vez que,
como já foi referido, poucas vezes aquelas constituíam territórios contínuos.

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Para ultrapassar aquela situação, a lei vinha determinar a extinção das justiças senhoriais e das respetivas
ouvidorias, concedendo aos donatários a hipótese, em alguns casos, de as converterem em comarcas, mas
com a advertência de que os novos territórios se não deviam assemelhar aos antigos, precisamente porque
eram dispersos e distantes das capitais, e seu termos. Assim sendo, a estas novas circunscrições podiam
anexar-se concelhos das comarcas da coroa, e a estas últimas, por sua vez, unir-se-iam as terras das
ouvidorias que ali se situassem geograficamente.

Determinava-se ainda a reforma do território destas comarcas da coroa, uma vez que algumas, constatava-
se, eram excessivamente grandes, impedindo os corregedores de cumprirem as suas obrigações e o povo de
«haver justiça que se lhe deve». A lei abolia igualmente a isenção de correição, universalizando a presença
dos corregedores da coroa que, a partir de agora, passariam a atuar em circunscrições redesenhadas com
base em critérios de conveniência administrativa e de racionalização do território.

A justiça senhorial processava-se de forma diversa da que caracterizava a justiça nas terras da coroa.
Porque, entre outras coisas, nem sempre os juízes dos tribunais senhoriais estavam habilitados com as
qualificações requeridas para os juízes da coroa. É, pelo menos, o que se sugere na lei, onde se advertia que
os lugares de corregedores e juízes de fora que a partir dali passassem a ser providos pelos donatários, o
fossem em bacharéis habilitados para os lugares da coroa. Impunha-se, de novo, a perspetiva uniformizante
do centro.

Como se verá, a imagem do juiz ordinário ignorante e parcial estava largamente divulgada, no século XVIII,
surgindo nos prólogos das leis pombalinas, na literatura memorialista, nas obras de juristas consagrados, e
mesmo em textos produzidos pelas câmaras.

Neste contexto, a lei previa que substituíssem, nas terras dos donatários, os ouvidores por juízes de fora,
admitindo-se, para o efeito, a ampliação do seu território com terras da coroa ou de outros donatários. Não
sendo isso possível, restava uma das de duas outras vias: a união ao território do juiz de fora mais próximo
ou, só em último caso, a nomeação, para elas, de juiz ordinário. Estavam assim criadas as condições para que
a maior parte das vilas ficassem sob a alçada dos juízes de fora de outras, o que, se significava, para algumas,
a oportunidade de assumirem as funções de cabeça dos novos julgados, relegava muitas outras para a
posição de membros inferiores.

A condição de vila anexa traduzia-se numa diminuição significativa da autonomia jurisdicional das terras, que
deixavam de ter juiz ordinário. Na ausência do juiz de fora era, no entanto, aos vereadores mais velhos, que
cabia o julgamento das causas e a presidência das câmaras, o que podia diminuir bastante o impacto
daquelas uniões.

O «bom juiz» não foi, durante muito tempo, o juiz letrado, capaz de mobilizar um saber jurídico de natureza
especulativa, mas alguém que, bem enraizado na comunidade detinha um especial conhecimento dos

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conceitos de justiça e de injustiça recolhidas do senso comum jurídico, dessa mesma comunidade. Só mais
tarde – e sobretudo no século XVIII – dominará a imagem do juiz letrado, distante em relação às categorias
do senso comum e capaz, até por ser de fora, de agir com a imparcialidade de que os juízes das terras não
eram capazes.

Quanto à escolha da capital da comarca a que as vilas ficariam sujeitas após a reforma, a disposição da lei foi
pacífica entre as câmaras, tendo estado na origem de numerosas representações onde os oficiais das terras
das antigas ouvidorias – ou das que outrora se situavam geograficamente nas mesmas- requeriam a sujeição
a outra capital. Foi o que aconteceu com quatro dos concelhos da correição de Miranda, todos da coroa, que
optavam por Bragança, antiga capital de ouvidoria, caso ali se viesse a criar uma nova comarca. As
vantagens, segundo os oficiais, eram notórias: nem todas as vilas tinham correio e aliviavam as despesas
com os caminheiros.

Quanto à escolha das novas sedes de justiça de primeira instância foi, como se podia esperar, menos
pacífica, vindo a opor entre si as diversas câmaras. Por um lado aquelas que, presididas por um juiz de fora
ou que aspiravam à sua criação, vão acumular argumentos para anexar a si os pequenos concelhos e coutos
circunvizinhos. E como a operação requeria a abolição dos juízes ordinários, investiram muitas vezes num
ataque frontal aos titulares daquele ofício. O que vamos encontrar então e, vindo da sua parte, a denúncia
da incompetência dos juízes ordinários, um argumento que sabiam ter peso junto dos poderes centrais e de
alguns dos seus agentes.

Curiosamente, esta denúncia veio da parte das câmaras que já eram presididas por juiz de fora, mas também
de muitas das que estas últimas reclamavam para anexas que, justamente para se converterem em cabeça
de novos julgados – ao invés de se unirem a jurisdição alheia – construíram uma imagem pouco lisonjeira
dos seus juízes. Muitas câmaras acusavam os juízes ordinários do couto de serem oficiais «leigos», a quem,
na melhor das hipóteses, faltava a «ciência do direito», mas que, na maior parte dos casos não passavam de
uns «rústicos e pobres lavradores», difíceis de localizar «no meio dos campos», ocupados com «o arado e
outras ocupações servis».

Mas nem sempre o discurso era tão condescendente, sobretudo quando se investia numa imagem do juiz
ordinário que era socialmente contraposta à anterior. Nesse contexto, aqueles juízes apareciam como
deliberadamente parciais porque, contando-se entre os naturais das terras, estavam sujeitos a paixões que
se traduziam «em grave dano do bem comum dos povos». Os grandes, e mais bem levantados do concelho,
é que são sempre juízes e vereadores (…) pelo que mandam e subjugam (…). Eles fazem com que muitas
vezes se culpem os inocentes, e se absolvam (…) os facinorosos». Face à situação. Requeriam os moradores e
a câmara, um juiz de fora, a cuja jurisdição outras vilas se anexariam 137 . Outras câmaras 138, que tinham juiz

137
Caso dos moradores de Santa Cruz de Riba Tâmega no seu próprio concelho. Cf. A.H.P., Cx 100, Doc. 77; Cx 101, Docs. 8,10,13 e 15.

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de fora, reforçavam aquela imagem, colocando lado a lado os defeitos dos juízes ordinários e as qualidades
dos juízes de fora, que compunham o retrato invertido do dos primeiros: o do um juiz letrado, independente
e imparcial.

A associação dessa imagem ao pressuposto da ação civilizadora da justiça fazia ainda com que algumas
câmaras sublinhassem «os bons costumes» e a «observância das santas leis» a que se habituavam os povos
governados pelos juízes de fora, por oposição à incivilidade caracteristicamente dos povos governados por
juízes ordinários.

Esta veneração de que o juiz de fora era objeto estava, no entanto, longe de ser universal, não
monopolizando sequer os discursos reformistas saídos da pena dos mais radicais, como José António de Sá
que, ao enumerar os abusos vulgarmente cometidos pelas justiças, afirmava estarem «maior abuso» as
terras de juízes de fora.

Por outro lado, se não havia consenso no que dizia respeito à confiança da forma de atuar dos juízes de fora,
também o discurso contra o juiz ordinário não recolhia unanimidade. Mostraram-no as considerações de
juristas da época, e as câmaras dos coutos e concelhos que, contra a hipótese de se anexarem a um juiz de
fora vizinho, optavam pela preservação do juiz ordinário, dizendo-se satisfeitas com o seu governo.

Algumas câmaras (como a de Baião) garantiam que a justiça dos juízes ordinários estava garantida pelo
recurso a assessores práticos e peritos. Outras como a de Bemviver, considerava que o bom governo
daqueles juízes estava assegurado pela vigilância que sobre eles exerciam os oficiais régios.

Outros argumentos apareciam relacionados com as dimensões geográficas ou demográficas dos distritos
judiciais. Assim, as câmaras com juiz de fora ou que se candidatavam à sua criação, invocavam também o
argumento da reduzida extensão/população do seu distrito, conjugadas ou não com a pobreza do seus
habitantes, para fundamentar a sua ampliação.

As câmaras das vilas que eram objeto das pretensões dos concelhos vizinhos defendiam-se, pedindo,
fundadas em argumentos similares, a ampliação do seu termo, de forma a justificar a criação de um juiz de
fora. Ou solicitando a preservação do juiz ordinário, por serem pobres e não haver juízes de fora em terras
próximas, admitindo-se incapazes de arcar com os custos de um ou mais pesado aparelho judiciário, ou de
se deslocarem a juízos vizinhos. A distância aqui não era apenas física mas social e simbólica: o que a vinda
de um juiz de fora representava era, para muitos, a substituição de uma justiça próxima, familiar, e
previsível, por uma outra que, pela sua natureza técnica e letrada, lhes era desconhecida e inacessível.

138
Caso da Câmara de Arco de Val de Vez.

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Do ponto de vista das câmaras com juiz de fora ou que o pretendiam ter, a proximidade justificava desde
logo, que a anexação de concelhos e coutos se fizesse a seu favor, e não a favor de juízes de fora de terras
vizinhas.

Diferente era a perspetiva das câmaras que, reconhecidamente, não podiam sustentar juiz de fora. Nas suas
representações eram antes as distâncias excessivas, agravadas pelo isolamento, que se impunham como
argumento. Tratava-se, afinal, de evitar a união das suas vilas a outras, com juiz de fora. Desta forma,
sugerindo que os custos dos processos podiam ser, de facto, fator de desistência na procura da justiça
oficial, os oficiais de honra de Ovelha do Marão «avisaram» que os habitantes não desejavam sair do
governo do juiz ordinário» por ficarem no meio de uma serra, e com grandes incómodos (…) unindo-se o dito
concelho a qualquer outra parte, pela muita distância e que ficam os concelhos circunvizinhos, e serras
desamparadas, que muitas pessoas tem morrido naquelas serras por causa da neve, e tempestade».

Para além da concorrência ou da resistência das câmaras vizinhas, os oficiais das diversas vilas podiam ainda
deparar-se com a mediação dos oficiais da coroa. Foi o que sucedeu na correição de Miranda, onde a câmara
de Mogadouro requeria a união da vila de Bemposta. Perfilhava-se assim, no horizonte, uma disputa com a
da vila de Algozo, que fazia um requerimento semelhante em relação a Bemposta. Mas contra ambas as
propostas se veio a pronunciar a o corregedor. Do seu ponto de vista, a anexação era impraticável, porque
estando Bemposta a quatro léguas de Algozo, dela separada pelo rio Angueira, redundaria no incómodo dos
povos e reduziria a nenhuma a «inspeção do juiz de fora de Algozo nesta vila, em razão da dita distância».

Foi precisamente a ideia recorrente entre as câmaras que resistiam à anexação, de se sujeitar as vilas aos
juízes de fora de outras vilas não era uma solução cómoda, nem eficaz, que deu lugar a uma radicalização de
posições que terminou na defesa da supressão pura e simples das câmaras das vilas anexas.

Anexar um concelho «enquanto à jurisdição» não implicava a abolição das respetivas câmaras, que eram
também titulares do governo económico e político dos concelhos. Por um lado, existiam «câmaras» que se
extinguiriam «de facto» com a anexação. Era o que aconteceria com as que se compunham exclusivamente
de juiz ordinário, como a do couto do Taboado.

No entanto, a ideia que dominava, quer entre os magistrados mais «ilustrados», como eram, seguramente,
os juízes demarcantes que acabariam por ser enviados para as províncias do reino para proceder à sua
demarcação, quer entre os magistrados ordinários da coroa, era a de transformar as câmaras em meros
órgãos do «governo económico» das terras, retirando-lhes as prerrogativas político-jurisdicionais de que
dispunham na tradicional constituição do reino. Isto defendia, por exemplo, o provedor de Bragança, e
relação às vilas situadas no termo de Bragança: uma vez anexadas ao juiz de fora da cidade, ficariam
«abolidos os juízes ordinários», mas conservar-se-iam as câmaras «para o governo meramente económico».
Desta opinião parecia partilhar o provedor de Lamego, um dos que levou mais longe as reflexões sobre o

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tema, mas num discurso que revela bem a forma como circunstâncias específicas, acabavam por determinar
os sentidos possíveis do discurso reformista.

Dominar e inovar não eram, no contexto da cultura política do Antigo Regime, que já se caracterizava pelo
tradicionalismo, objetivos políticos que legitimamente se pudessem prosseguir. E se, no século XVIII, era
clara a emergência de outras conceções sobre os fins do poder político, que estavam de resto, por detrás de
uma vontade reformista que não se dirigia apenas para a regulação do território e das jurisdições, delas se
pareciam querer alhear os oficiais da câmara de Godim.

Deste modo, é provável que a força das conceções mais conservadoras - e, com ela, a de interesses
fortemente enraizados, ainda que ancorados em discursos onde apesar de tudo, os argumentos mais
tradicionais se interpenetravam com os argumentos utilitaristas que a legislação mais recente impunha –
explique porque é que se adiava a solução radical da extinção das câmaras, pois do ponto de vista discursivo
estava criadas as condições.

Sugere-o a proposta da câmara de Penaguião, o caráter vago das palavras do provedor de Lamego, mas
também as palavras de José António de Sá, então corregedor da comarca de Moncorvo. A racionalização da
vida administrativa local passava, na opinião do magistrado, pela simplificação e pela concentração das
finanças camarárias, às quais só a extinção de concelhos e câmaras podia dar lugar. A sua ideia era, então, a
de que reduzidos à «unidade de um só concelho», os concelhos extintos veriam os seus rendimentos
aumentados e mais bem administrados. Esta racionalização cartesiana passava, então, por uma
homogeneização que terminaria no desaparecimento puro e simples dos concelhos menos importantes, e de
menores dimensões.139

A praticalidade desta linha doutrinal, como se sabe, apenas se verificará algumas décadas depois, quando a
rutura final em relação à constituição política do Antigo Regime, levada a cabo pela revolução liberal, vier a
enfraquecer os interesses localistas que José António de Sá tão bem identificava, e tão frontalmente
atacava.

Com ela se extinguiriam os recursos argumentativos que ficariam «gravados” nas representações suscitadas
pelas reformas de 1790-1792, mas que não puderam resistir á vontade renovada dos agentes da revolução
em levar à prática o novo desenho político do território.

139
Cf. A.H.P.Iª/2div., Cx.101, Doc. 25.

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2. A Representação do Reino. A Debilidade dos Corpos Intermédios e o


Inexistente Regional.

As cortes portuguesas dos séculos XVI e XVII, marcadas por um notável esforço para silenciar o conflito e a
disputa política aberta, apareceram na historiografia sob o signo de uma decadência que seria a outra face
da afirmação indiscutível do absolutismo régio140.

As críticas recentes às conceções atras referidas insistiram, precisamente, na diferença das reuniões dos
Estados Gerais antigos face aos sistemas representativos liberais. De facto, aquelas seriam mais assembleias
participativas do que representativas pois os corpos nelas presentes deviam encarnar as respetivas
comunidades, ao invés de representarem o conjunto nacional.

Por outro lado, rejeita-se toda a ideia da iniciativa legislativa das cortes (interpretação dada às famosas «leis
feitas em cortes»), como contrária aos princípios prevalecentes da unidade do poder, consubstanciada no
monarca e do caráter conciliar das assembleias. Também se tem destacado que mantiveram indiscutíveis
virtualidades como canal de comunicação política e não foram isentas de disputa, embora encapotada.
Finalmente, recorda-se que, apesar da ambiguidade do seu estatuto constitucional e de serem
obrigatoriamente convocados pelo rei, se manteve até finais do séc. XVII a ideia de que lhes cabia jurar os
sucessores à coroa e votar o lançamento de novos impostos.

Para o nosso estudo importa avaliar a importância das cortes enquanto instrumentos de comunicação da
periferia, ou seja, considerar a relevância das petições e agravos apresentados nos capítulos especiais do
Braço do Povo. Como se sabe, nele tinham lugar os dois procuradores de cada uma das cidades ou vilas com
assento em cortes, cujo número se situou geralmente em trono das nove dezenas.

Apesar de escassamente regulamentada, a eleição recaia naturalmente sobre as gentes de governança das
terras, mas a diversidade do estatuto social dos eleitos parece refletir bem as grandes disparidades
existentes entre as várias terras. 141

Após a Restauração, as cortes tiveram um papel importante enquanto canal de expressão dos problemas
locais: «as pretensões dos povos visam, antes de mais, aumentar ou recuperar privilégios locais e resolver
problemas comunitários, no plano de uma micropolítica, em que os problemas globais do reino mal
cabem».142

140
Cf., por exemplo, Armando Martins de Carvalho, «Cortes», in Joel Serrão (dir.), Dicionário de História de Portugal, Lisboa, 1964-1969.
141
Cf. Sobre as Cortes seiscentistas, Pedro Cardim, As Cortes de Portugal, Século XVII, Lisboa, 1993, pp. 77-88.
142
António Manuel Hespanha, «A Restauração Portuguesa nos Capítulos das Cortes de Lisboa de 1641», Penélope. Fazer e Desfazer a História, nº
9/10, «A Restauração e a sua época», 1993,p. 50.

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O declínio das cortes como órgãos de participação, patente no espaçamento das suas reuniões já no século
143
XIV , é certamente indissociável da crescente autonomização financeira da monarquia, que passa a
depender nesse terreno cada vez mais do império e cada vez menos do reino. Mas é preciso não esquecer
que a criação ou desenvolvimento dos tribunais e conselhos centrais da monarquia e os progressos da
própria corte criavam outros canais de comunicação política.

Pode-se avaliar a partir do que se conhece para os períodos posteriores que era muito frequente o envio de
tais requerimentos para os tribunais e órgãos centrais da monarquia (Desembargo do Paço, Conselho da
Fazenda, depois Secretaria do Estado do Reino, etc.) como forma de resolução de problemas e de regulação
de conflitos. Recorrendo a vários tipos de mediadores, pode-se dizer que quase todos os grupos e
instituições locais, contrariando a imagem do isolamento, usaram do direito de petição e que quase todos os
conflitos importantes que percorreram a sociedade local portuguesa aí deixaram rasto. 144

Em todo o caso, o declínio e suspensão das cortes significariam uma redução dos corpos políticos com
visibilidade e expressão institucional reconhecida. Acontece que, no caso português, eles eram
invulgarmente pouco significativos. A Câmara de Lisboa foi, sobretudo nos tormentosos conflitos da segunda
metade do século XVII (deposição de D. Afonso VI), um dos poucos que mantiveram algum protagonismo
político, embora pela sua própria constituição se confundisse bastante com as teias da sociedade de corte.

A organização municipal de Lisboa era substancialmente diferente do verificado no resto do reino, vindo a
câmara da cidade a gozar desde a Idade Média até à implantação definitiva do regime liberal de um estatuto
jurídico-administrativo especial. Esta especificidade remontava aos alvores da fundação de Portugal, pois já
nas Cortes de Coimbra, reunida por D. Afonso II, em 1211, enquanto se estatuíram leis com carácter geral
para todo o território português, permitiu-se à Câmara de Lisboa que se continuasse a reger por leis
próprias.

Sumarizando os principais momentos da organização municipal, temos de recuar ao último terço do século
XVI para detetar a origem da estrutura administrativa concelhia que, com ligeiras alterações, irá atravessar
todo o Antigo Regime, quando D. Sebastião conferiu um novo formato à organização camarária através da
nomeação de um presidente da câmara, escolhido de entre os principais fidalgos do reino de «limpo sangue
e que tenha renda com que viva abertamente e seja de idade conveniente», e três vereadores letrados, que
teriam de ser desembargadores, confirmando o carácter eminentemente judicial das funções da
responsabilidade do órgão da administração municipal da capital 145.

143
No século XV realizaram-se 21 reuniões, contra 7 no século XVI e 9 no século XVII.
144
Cf., por exemplo, boa parte da documentação utilizada por José Manuel Tengarrinha, Movimentos Populares Agrários em Portugal (1751-1825), 2
vols., Lisboa, 1994.
145
Cf. Carta Régia de 12 de Dezembro de 1572 in Livro I de Consultas de D. Sebastião, fol.89 e 90 v.

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Estes três vereadores repartiam entre si a responsabilidade de zelarem pelo selo da cidade; pela provedoria
da saúde e casa de S. Lázaro pela limpeza do espaço urbano; pelo açougue e provimento das carnes;
execução das penas; obras da cidade; Terreiro do Trigo, atafonas e moendas, estrutura que só foi alterada
quando o Regimento de 30 de julho de 1591 determinou que o exercício destes serviços, ou pelourinho,
fosse sorteado por entre os vereadores. 146

Este momento marca, simultaneamente, o início da moderna organização do Senado, e a recomposição


social da câmara lisboeta, que sobreviverá também até ao advento do liberalismo, varrendo-se então o que
ainda restava da autonomia municipal de Lisboa. O concelho de Lisboa, passa a ser, partir deste momento,
um município onde a vereação é diretamente nomeada pelo coroa sendo o topo da administração local
reservado a um membro da alta aristocracia do reino, não existindo em Lisboa os tradicionais «róis de
elegíveis», as famosas pautas dos homens da governança», circunstância que tornavam a estrutura
municipal da capital num caso único no todo português.

O povoamento dos arquipélagos atlânticos correspondeu à primeira dilatação no espaço das sociedades
europeias. Sensivelmente, a partir de 1419 na Madeira e de 1427 nos Açores foram sendo transplantados do
continente do reino para estes novos territórios as populações, as técnicas, os produtos e as instituições
sociais, políticas, económicas e culturais necessárias à formação de sociedades locais moldadas à
semelhança do modelo metropolitano. Espaços sociais, as ilhas eram simultaneamente pontos estratégicos
políticos e económicos da coroa portuguesa, como pontos de passagem obrigatória, como escala de apoio e
de controlo decisiva nas rotas do comércio transcontinental.

Tanto a Madeira como o porto do Funchal, e sobretudo os Açores, onde a partir de inícios do século XVI é
criada em Angra a Provedoria das Ramadas e Naus da India, asseguravam o aprisionamento dos navios,
assim como a sua proteção contra corsários e piratas. As ilhas funcionavam, pois, como bastiões avançados,
suportes e símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico.

Cedo se formaram sociedades marcadas por um acentuado caráter agrário, onde às produções de
subsistência típicas do mundo mediterrâneo acrescentaram outras claramente destinadas à exportação,
como é o caso, na Madeira, do açúcar e do vinho, e nos Açores, do pastel e do trigo. O desenvolvimento do
povoamento o crescimento das economias locais e dos efetivos demográficos, com a densificação da
ocupação e da exploração humana dos territórios, deram origem quer ao surgimento e desenvolvimento de
uma malha administrativa, quer à organização das comunidades em paróquias e concelhos, semelhantes em
tudo aos seus equivalentes continentais.

146
Estas eram, em síntese, as áreas de intervenção da vereação, que com ligeiros ajustamentos chegariam até aos finais do Antigo Regime. Cf.
António Manuel Hespanha, Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime, coletânea de textos, Lisboa, 1984, pp 362-363.

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E também aqui, tal como no resto do reino, a municipalização dos espaços políticos locais e a existência de
um nível senhorial dotado de competências jurisdicionais próprias não foram realidades incompatíveis. Os
arquipélagos caracterizados por uma elevada dispersão e descontinuidade espacial dos seus territórios, e
por relevos montanhosos, onde o isolamento intra e interinsulares eram enormes.

Os territórios descobertos são concedidos em regime de donataria ao infante D. Henrique donatários,


acabaram por ser integrados na coroa em 1495.Os donatários estavam incumbidos de estabelecer as bases
necessárias para o aproveitamento socioeconómico dos arquipélagos. Nesse sentido, tinha como principais
tarefas proceder ao povoamento e à defesa das ilhas, administrando a justiça dentro de certas limitações
impostas pela coroa, assegurado ainda a assistência religiosa. Eram em troca transferidos poderes e direitos
régios nos campos judicial e fiscal e, em menor grau, nos campos militar e civil, fornecendo-se aos
donatários privilégios –como a arrematação da redízima e monopólios vários sobre produtos ou atividades,
assegurando-lhes deste modo, uma parte do controlo político e uma fatia importante na extração do
excedente produzido.

Porém, afastados das ilhas e estreitamente ligados à corte e à família real, os donatários cedo
subestabeleceram uma grande parcela das suas competências jurisdicionais em agentes locais: os
denominados capitães do donatário; aos quais estavam agregados uma série de funcionários, de que os
ouvidores são o melhor exemplo. Na prática, o papel dos subdonatários correspondeu àquele que em
princípio estava destinado aos donatários originais. As capitanias eram senhorios eminentemente
jurisdicionais, aos quais estavam potencialmente agregados fatias de património fundiário. Na verdade,
estas doações não tinham um caráter feudal e permaneceram sempre bens da coroa.

Os concelhos começaram a estabelecer-se logo no início do povoamento. E chegados à primeira parte do


século XVI estavam já formados os principais municípios nas várias ilhas., sem que com isso se traduzisse nua
maior eficácia do funcionamento da máquina administrativa da coroa.

No caso madeirense, o Funchal concentrou poderes e população, dando origem a uma maior centralização e
controlo quer dos capitães e seus ouvidores, quer dos funcionários régios sobre o nível político local. No
caso, açoriano, a dispersão geográfica reforçou a autonomia dos espaços políticos locais, o peso dos
municípios e uma lógica mais policentrada que dificultava a ação de quaisquer poderes que ultrapassem o
espaço da ilha.

Tanto num arquipélago como no outro, eram frequentes as interferências dos municípios de maior
dimensão, já dotados de características urbanas, mais importantes em termos económicos e políticos,
dispondo ainda de um quadro de funcionários mais amplo, nas atividades dos restantes concelhos. Esta
estruturação do espaço político local pautava-se, pois, por uma ação francamente dominadora das elites e
dos lugares centrais deste território sobre as franjas periféricas mais próximas.

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As incorporações das donatarias na coroa fez com que os capitães do donatário passassem a depender
diretamente da alçada real. O âmbito de intervenção geográfica da coroa vai-se pois, expandindo e a sua
atuação é reforçada nas periferias, sendo sempre utlizado o modelo político-administrativo metropolitano,
quer na organização da fazenda real, quer no exercício da justiça ou à configuração interna dos concelhos.
Mas esta penetração dos agentes do centro não foi isenta de conflitos e resistências várias entre os vários
níveis institucionais: concelhos, capitanias e funcionários régios.

A partir do reinado de D. João II, as visitas dos corregedores passaram a ser relativamente regulares.
Contudo, as acusações de corrupção sobre os ouvidores dos capitães e as autoridades concelhias, assim
como as queixas por estes não cumprirem os mandatos dos corregedores foram recorrentes.

Os funcionários da coroa eram, sem dúvida, canais de afirmação do poder do centro nos vários setores da
administração e as suas competências suficientemente vastas para provocar conflitos importantes. Mas as
resistências dos senhores das capitânias e das elites que dominavam a vida municipal foram frequentes e a
penetração da coroa, por vezes, hesitante.

Porém, a presença fiel dos corregedores e juízes de fora foi criando sérios embaraços à primitiva liberdade
do governo das ilhas. De facto, toda esta política que se acentua durante séculos XVI e XVII, mais do que
uma alteração das estruturas administrativas ou uma efetiva centralização política visava, acima de tudo,
manter as fronteiras e os limites entre os vários poderes, sob o arbítrio dos funcionários da coroa e da lei
codificada e emanada a partir do centro.

Se no século XV as capitanias constituíam um nível incontornável nas relações entre o centro e a periferia,
do século XVI em diante este papel passa a pertencer às autoridades nomeadas pelo rei que irão,
constantemente, fortalecendo as suas margens de ação. Os concelhos mantiveram-se à parte deste
movimento, controlando o nível local, repartido em pequeno espaços políticos sem grande articulação entre
si, mas com uma ampla autonomia, num quase autogoverno que só era quebrado por alturas das visitas dos
corregedores.

Na verdade, a intervenção do aparelho de poder central manifestava-se quase exclusivamente nos direitos
de apelo, na fiscalização e coordenação exercidas não diretamente nos espaço locais, mas a partir dos
principais centros urbanos dos arquipélagos, por um corpo de agentes administrativos de nomeação régia,
cujas carreiras os obrigavam a calcorrear constantemente vários pontos do país, mudando com frequência
de lugar.

A partir do século XVI a trajetória dos senhores das capitanias passa cada vez mais pelas redes de poder da
corte e pela sua integração na nobreza titulada. Na verdade, este cargo foi-se revestindo progressivamente
de uma natureza meramente honorífica, premiando serviços prestados à coroa por militares e cortesãos
totalmente afastados da realidade insular.

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A ausência dos capitães donatários das ilhas foi, daqui por diante, relativamente comum, ficando as suas
competências entregues a delgados e funcionários, como os já referidos ouvidores. Esta mudança serviu
para fortalecer a intervenção régia, já que a nomeação deste pessoal político substituto passou a ter que ser
sancionada pelo rei.

Por um lado, a coroa ia expropriando as jurisdições originais, diminuindo, na outorga das novas cartas ou
aquando da sua renovação, as atribuições dos capitães. Por outro lado, os ouvidores e locotenentes eram
escolhidos entre as famílias mais destacadas da nobreza local, o que acabava por reforçar as lógicas de
autonomia dos espaços e das elites periféricas.

A inexistência de um poder senhorial forte e atuante em muitas das capitanias insulares, deu maior
protagonismo político aos municípios e aos grupos sociais que os governavam, sem que, contudo, esta
situação conduzisse a uma maior unidade dos fragmentados espaços políticos dos arquipélagos As
capitanias, desde cedo enquadradas ao nível fiscal, administrativo, judicial e militar por funcionários régios,
dificilmente poderiam ter evoluído no sentido de um aparelho burocrático mais amplo, o qual poderia, sem
dúvida, ter concorrido com os poderes do centro, dando origem a um hipotético corpo de poder intermédio.

Na verdade, a formação de poderes autónomos da coroa estava inviabilizada e a fragmentação dos espaços
políticos insulares-divididos em municípios governados por elites ciosas do seu poder e da sua autonomia
local e em capitanias progressivamente expropriadas das suas jurisdições -, não ajudava a consubstanciar
lógicas de agregação e de unidade dos territórios insulares numa entidade pensada em termos regionais.

O processo de incorporação das capitanias na coroa, acentuou-se, sobretudo nos Açores, durante a primeira
metade do século XVIII. Na segunda metade do século, reforçou-se a administração direta por nomeação do
centro político, diminuindo a delegação e a contratação de parcelas da soberania do Estado, aumentando
simultaneamente a formalização dos procedimentos jurídicos e administrativos.

Durante o consulado pombalino a forma de organização político-administrativo dos dois arquipélagos irá de
novo convergir, perante um inequívoco reforço do poder central. A nomeação pela coroa de um capitão-
general para os Açores, dotado de amplos poderes, em 1766, corresponde a uma procura de unificação dos
espaços e dos sistemas institucionais deste arquipélago com o das restantes ilhas atlânticas.

Em 1766 foram extintas as poucas capitanias que ainda restavam nos Açores, foi criado um governo
centralizado em Angra - presidido pelo capitão-general-, colocados juízes de fora em todos os principais
concelhos, e criada uma corregedoria em Ponta Delgada, com jurisdição sobre as ilhas de S. Miguel e Santa
Maria. Os funcionários régios viram, assim, reforçado o seu papel de intermediários entre o centro e a
periferia, diminuindo a capacidade de atuação das elites locais e dos concelhos, que tentarão sempre resistir
à expropriação dos seus poderes.

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Mas apesar desta efetiva centralização, as relações entre centro e periferia e mesmo as relações de poder
internas aos dois arquipélagos parecem-nos continuar muito segmentadas, correspondendo esta ideia quer
a uma elevada autonomia das oligarquias locais que dominavam nas várias ilhas a vida dos concelhos e os
postos cimeiros das ordenanças e das milícias, quer ao facto dos espaços sociais de identidade dos
indivíduos se localizarem ao nível mais micro (ao nível comunitário), quer, ainda, no caso açoriano, a divisão
progressiva deste arquipélago em três polos de poder separados, Ponta Delgada, Horta e Angra, onde
dominavam as elites ciosas das suas prerrogativas de quase autogoverno, situação que ficará
definitivamente sedimentada com a divisão administrativa em três distritos feita por Passos Manuel em
1836.

Será difícil encontrar uma unidade política com a diminuta extensão e reduzida população como as do reino
de Portugal e dos Algarves nos séculos XVI a XVIII onde os contrastes económico-sociais e socioculturais
entre regiões sejam tão pronunciados, cujas diferenças objetivas só muito limitadamente se traduziam no
plano das identidades e subsistisse um referente provincial, não se pode dizer que este prevalecesse sobre
os demais.

Segundo Romero de Magalhães a dimensão anti regional do poder municipal, persistiu a ideia de que
existiram algumas singularidades da monarquia portuguesa moderna, cujas implicações se podem estender
até ao presente. Em termos gerais, essa especificidade resulta da escassa importância dos corpos políticos
intermédios e da sua quase nula expressão territorial. Pelo que não será apenas a inexistência de instâncias
autárquicas regionais o que marca a singularidade portuguesa. É possível estender essa caracterização ao
conjunto dos corpos intermédios, quer dizer, à totalidade dos corpos que à escala do reino se situavam entre
o centro e a escala micro local. Afirmação que se revela adequada, sobretudo, para o período posterior à
Restauração de 1640, quando a maior casa nobiliárquica portuguesa, detentora de vastos senhoriais, se viu
elevada à realeza.

Os poderes intermédios, segundo Montesquieu, «subordinados e dependentes constituem a natureza do


governo monárquico», a garantia das suas «leis fundamentais» aquilo que as impedia de resvalarem para o
despotismo147.

O território continental da monarquia não crescera através da assimilação de comunidades territoriais


autónomas, mas por via da conquista, terminada no essencial no século XIII. Sendo um facto bem conhecido
não deixa de ser decisivo. As grandes monarquias quinhentistas mais próximas de Portugal (Espanha, França,
Inglaterra) resultaram todas da união dinástica de diferentes reinos ou ducados.

147
Cf. Montesqieu, De L´esprit des Lois(1748), Paris, 1979, livro II, cap. «O espaço político e social local».

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Como antes se disse, a monarquia portuguesa era constituída por um reino e pelas suas «conquistas». Não
existiam, assim, quaisquer direitos regionais, nem instituições próprias de províncias (cristalizadas, por
exemplo, antes da sua união), nem sequer comunidades linguísticas acentuadamente diversificadas.

Nas ilhas atlânticas, como antes vimos, a municipalização do espaço político local coartou o surgimento de
instâncias autónomas regionais. Quando se constituíram instituições regionais, durante o período
pombalino, foi através da figura dos capitães-generais, delegados do centro de acordo como modelo dos
governadores ou vice-reis coloniais.

No Antigo Regime quase inexistiam cidades de média dimensão e não inexistiam capitais de unidades
administrativas regionais. Ser sede da comarca era muito pouco, até porque chegou a haver mais de quatro
dezenas e algumas, como Chão de Couce no início do século XIX, não chegavam a ter três centenas de fogos.

No rescaldo do século XV, única casa senhorial efetivamente grande, com enormes clientelas provinciais, e
com um poder territorial amplo e efetivo dentro do reino era a de Bragança. Apesar de um indiscutível
alargamento dos territórios de senhorio verificado até 1640, as tendências antes referidas atravessaram
todo o período moderno e acentuaram-se depois daquela data .

A institucionalização do sistema das ordenanças (1570) tendeu a municipalizar o recrutamento militar,


debilitando de forma significativa os poderes militares dos senhores, com antes se disse. É certo que
funcionavam mal e que os levantamentos de homens feitos pelos grandes senhores se mantêm até ao
século XVIII .

Os comandos militares nunca são vitalícios e hereditários 148 nem o levantamento de homens obedece a uma
lógica estável de controlo de uma casa sobre uma região. É verdade que a sua atuação se entendia para
além da esfera estritamente militar e que, sobretudo no caso dos governadores do Porto e do Algarve,
possuíam competências expressas em matérias civis. Mas nunca parecem ter-se cristalizado como polos
autónomos e duráveis de poder à escala regional.

Depois da Restauração, pois anteriormente era de certa forma um corpo dentro da monarquia dual, a coroa
portuguesa nunca teve de se defrontar com corpos dotados de forte entidade e com expressão territorial, ao
contrário de outras monarquias europeias.

As instituições com identidade institucional relevante (a começar pelos tribunais centrais) não só se
localizavam quase todas em Lisboa, como eram abrangidas em larga escala pelas teias da sociedade da
corte, diagnóstico que se aplica até a instituições que tiveram algum protagonismo político, como a câmara
de Lisboa ou o respetivo juiz do povo. E Portugal era um reino onde a dicotomia entre a corte e as províncias
constituía uma realidade inquestionável.

148
Exceção feita ao caso formal dos condes de Miranda no Porto e ao informal dos Távoras em Trás-os-Montes.

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A nobreza em geral não constituía um corpo corporativo com uma entidade forte, como a que
eventualmente poderia ter constituído a fidalguia em períodos mais remotos, pois foi sendo sucessivamente
enfraquecida por um duplo processo de mutação: alargamento das fronteiras na base, contração do topo e a
constituição da elite dos Grandes, através dos títulos e distinções da monarquia. O Braço da Nobreza em
Cortes (que se reuniram pela última em 1697-1698) era muito reduzido, convocado e não eleito, e
constituído apenas pelos titulares, senhores das terras e conselheiros de Estado.

Quanto à Igreja, embora muito esteja ainda por estudar e o seu estatuto fosse claramente muito mais
favorável do que o da nobreza, pode-se sugerir que os seus múltiplos conflitos internos e a forte tradição
regalista portuguesa limitavam a esfera da sua resistência. De facto, as competências específicas do Santo
Oficio e a complexa imbricação das diversas jurisdições eclesiásticas tornam mais difícil produzir afirmações
taxativas. Em todo o caso, depois do pombalismo, a sua identidade de corpo sofreu uma restrição decisiva
apesar de Montesquieu considerar, pouco anos da ascendência do futuro conde de Oeiras, que a Igreja era
em Espanha e em Portugal o único poder que travava o resvalar da monarquia para o despotismo.

Por sua vez, os poderes senhoriais nunca se configuraram como polos de resistência e de produção de
identidade com um mínimo de relevância no período posterior a 1640. Tal facto resulta de diversos fatores,
entre os quais, a sua escassa concentração territorial; as atribuições limitadas; a diminuição da sua extensão
absoluta; a concentração dos senhores leigos na corte, os modelos de administração patrimonial por eles
praticados, e atrofiamentos das respetivas clientelas.

Finalmente, não havia instituições provinciais, de raiz senhorial ou outra, que como tal se assumissem em
momento de conflito. As instâncias intermédia entre o centro e o local (ou seja, as câmaras) eram delegadas
da coroa, quer dizer, magistrados nomeados por esta (corregedores e provedores) ou, até 1790 numa
parcela cada vez reduzida do território, dos senhores (ouvidores). O contraponto do centro eram os poderes
locais e sobretudo municipais.

Similarmente, é bom lembrar que desde meados do século XVIII não existiam em Portugal minorias étnico-
culturais com expressão visível. Desde a conversão forçada ou ordem de expulsão decretada por D. Manuel,
durante mais de dois séculos, o principal delito de fé perseguido pelo Tribunal do Santo Oficio da Inquisição
em Portugal foi o crime de «judaísmo», constituindo o problema político dos «cristãos-novos».

Ao longo de todo o Antigo Regime, as províncias (ou seja, as comarcas medievais) subsistiram como formas
de descrever o território, de organizar o expediente de repartições da administração central (Desembargo
do Paço) ou como circunscrições militares (governos militares). Mas nunca lhes corresponderam instituições
próprias.

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A identificação das províncias, ou seja, das antigas comarcas medievais um tanto alteradas persistiu mesmo
quando já não lhes correspondia a jurisdição de um magistrado régio. Embora sem nenhuma tradução
institucional, a identificação provincial perpetuou-se até ao final do Antigo Regime.

As Finanças da monarquia portuguesa

Em regra, ao longo de todo o período considerado, os rendimentos direta ou indiretamente provenientes


das colónias, do comércio externo e colonial, ou seja, das fontes exógenas, foram sempre mais relevantes do
que aqueles que incidiam sobre a produção e a circulação de bens no interior do reino.

Apesar de diversas tentativas, através do lançamento de novos impostos ou a reformulação dos já


existentes, para reforçar a carga tributária pela coroa portuguesa, esta manteve-se relativamente pouco
pesada até ao final do Antigo Regime. No entanto, se a coroa não dependia decisivamente da tributação
sobre o interior do reino, o mesmo não se pode afirmar em relação às categorias sociais e institucionais
privilegiadas da monarquia, quer dizer, as casas da família real, a aristocracia de corte e as dignidades
eclesiásticas do centro.

Sob a forma de dízimos eclesiásticos, de direitos de foral, de foros enfitêuticos ou da renda fundiária, estes
grupos apoiavam-se maioritariamente nas fontes de rendimento que auferiam espalhadas pelos quatro
cantos do reino e que incidiam sobre o produto agrícola. Mas ainda, no seu conjunto a riqueza assim
subtraída das províncias para o centro, a maior parte dela com origem e direitos de raiz medieval, era bem
maior do que a cobrada pela monarquia sob a forma de impostos.

A composição e a distribuição geográfica dos rendimentos das casas dos titulares com Grandeza nos finais
do Antigo Regime ilustra bem o que atrás de disse. Em média, recebiam rendas em quase cinco províncias ou
territórios. No cômputo daquelas, os rendimentos que podiam que podiam incidir sobre as receitas das
alfândegas (tenças e padrões de juro real) não chegariam a 10% do total. Muito menos do que os quase 16%
que em média recebiam dos bens da coroa (direitos de foral e de reguengos),localizadas sobretudo a Beira e
na Estremadura, do que os cerca de 31% que lhes rendiam as comendas que administravam espalhadas por
todo o país e do que os 41% que auferiam de propriedades (geralmente arrendadas) e foros patrimoniais,
localizadas sobretudo na Estremadura e no Alentejo.

Sob diferentes formas (dízimos eclesiásticos cobrados por comendas, direitos de foral, foros enfitêuticos ou
propriedade plena) a presença dos Grandes, corporizada normalmente nos agentes de quem lhes
arrematava a cobrança das suas rendas, fazia-se sentir na maior parte dos concelhos do país.

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Se as finanças da coroa não dependiam essencialmente do interior do reino, as elites sociais e institucionais
com maior preeminência simbólica dentro da monarquia tinham a sua base essencial nos rendimentos
cobrados, sob diversas formas, nas várias províncias do reino.

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CAPÍTULO III -O ESPAÇO POLÍTICO E SOCIAL LOCAL


Procuramos agora fornecer um breve retrato de conjunto sobre as dinâmicas que percorriam o mundo local
português, conferindo uma especial atenção às relações entre os vários poderes e centros de autoridade
(não só as câmaras, mas também as ordenanças, as misericórdias, os senhorios, etc.) que o marcaram na
última fase do Antigo Regime.

1. As Câmaras no Equilíbrio dos Poderes: Funções Sociais e Dinâmicas Locais

A estabilidade das instituições locais serviam à coroa porque garantiam à coroa a integração harmónica da
parcelas menores no corpo do reino e satisfaziam as necessidades básicas das monarquias modernas: a
cobrança de impostos e o recrutamento de homens de armas. Depois a tributação dos forais, a primeira e a
mais relevante fonte de receita que a coroa cobrava no interior do reino foi, durante muito tempo, o
imposto da sisa, que incidia sobre as transações e foi restabelecido ainda no século XIV.

Cabia às câmaras mais importantes (cabeça de sisas) cobrar este imposto, podendo guardar os sobejos em
relação ao montante fixado e controlando a distribuição da sua cobrança pelos habitantes do concelho.
Constituindo uma relevante tributação interna indireta, a sisa repousava, assim, claramente na
intermediação das câmaras. De resto, algumas das tentativas para abolir a sua cobrança, defrontar-se-iam
com uma forte oposição camarária.

Até ao final do Antigo regime e à sua abolição com a revolução liberal, as sisas manter-se-iam como uma
significativa fonte de receita da coroa e, simultaneamente, das câmaras (os sobejos).A cobrança das sisas
constituía, desta forma, uma expressão exemplar do «compromisso» entre a coroa e os poderes municipais.

Mais direta vinculação com as câmaras tinham as terças reais, imposto que teoricamente incidia sobre a
correspondente parcela dos rendimentos municipais, ainda que o seu rendimento fosse reduzido, servindo a
sua cobrança como pretexto para a tutela dos magistrados régios sobre as finanças municipais.

As câmaras intervinham ainda sobre o real da água, que incidia sobre a venda a retalho da carne e do vinho.
Pela sua aparente modernidade e importância é, contudo, a décima que deve merecer um comentário mais
alongado. Lançada em 1641 no contexto de guerra decorrente da Restauração e devendo incidir sobre
rendas e rendimentos dos ofícios, a décima nunca alcançou os montantes projetos, como se pôde entrever
anteriormente. Registou durante o pombalismo (1762) uma nova e decisiva reformulação, embora a sua
extensão definitiva a todos sem atenção aos privilegiados só se verificasse, após varias disposições
contraditórias, no contexto da guerra antifrancesa europeia em 1796-1798.

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Aspeto decisivo, aquele que era no início do século XIX, não só o principal imposto direto do reino (situando-
se na hierarquia dos rendimentos do Estado logo a seguir às alfandegas e aos monopólios comerciais),
acabou por ser subtraído ao controlo mais ou menos próximo das câmaras, passando a ser lançado com
maior rigor e formando-se as «juntas» locais encarregadas do seu lançamento sob a supervisão direta dos
provedores.

A coroa delegava ainda nas instituições locais o recrutamento militar, com duas restrições: essa tarefa não
estava confiada às câmaras, mas aos oficiais das ordenanças, os quais embora condicionados pelas câmaras
que participavam na sua escolha, desempenhavam os seus ofícios por muitos anos, ao contrário daquelas
anuais. As fontes do seu poder eram, assim, bem mais estáveis. Além disso, a capacidade de recrutamento
das ordenanças parece ter sempre deixado muito a desejar, caracterizando-se como um sistema que
dificulta, ou mesmo impede, o recrutamento. 149

E, no entanto, tanto durante as invasões francesas como no decurso das guerras liberais, as ordenanças
parecem configurar um dos mais sólidos e ativos redutos de resistência local às mudanças políticas e
institucionais protagonizadas pelo centro e apoiadas numa parcela de malha urbana do reino.

Os principais interlocutores da coroa, aqueles aos quais se podia dispor de mais instrumentos de
comunicação e de fiscalização, eram as câmaras. E, no entanto, os párocos e os oficiais das ordenanças
permaneciam muito mais tempo no desempenho das suas funções, integravam redes (das paróquias e das
companhias de ordenanças),muito mais próximas, nos grandes concelhos onde vivia a maior parte da
população do reino, da pequena coletividade local e, para mais deviam dispor de arrolamentos muito
apurados de todos os residentes (róis de confessados e livros das companhias de ordenanças).

Como se afirmava por altura das invasões francesas, «os capitães-mores e os párocos, são as Autoridades,
que mais podem servir a Nação em qualquer ramo de economia pública» por possuírem as «listas sempre
apuradas, conhecerem os indivíduos todos da povoação do maior ao mais pequeno» 150.

Por isso, foi a eles que se recorreu nos finais do Antigo Regime quando se quiseram fazer inquéritos à
população do reino; foi através destes mediadores que os miguelistas procuraram, nos anos 20 do século
XIX, promover a mobilização política das províncias contra os liberais.

As câmaras não monopolizaram, por conseguinte, o espaço político e institucional local. Nem sequer na
perspetiva da administração central da coroa que nelas depositar a parcela mais significativa das exigências
que delegava nos corpos políticos periféricos.

149
Cf. Fernando Dores Costa, «Os Problemas do recrutamento militar no final do século XVIII e as questões da construção do Estado e da nação»,
Análise Social, nº 130, 1995,p. 124.
150
A.N.T.T., Intendência-Geral da Policia, Papéis Diversos, maço nº 3, doc. nº 22.

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A justiça

Interessa-nos analisar a dimensão estritamente judicial dos poderes locais no terreno da autonomia
camarária. Sabemos que os juízes que presidiam às câmaras, ou quem os substituía, detinha, para além das
competências administrativas, a jurisdição em primeira instância nos territórios respetivos e, embora o seu
número tenha aumentado, os juízes letrados constituíam sempre uma minoria no conjunto. Porém o
exercício da ação dos juízes locais continua a ser muito pouco conhecido, em parte porque quase não deixou
rasto nos arquivos municipais.

Assim, é através dos testemunhos indiretos que o temos de reconstituir pois não só documentação em parte
despareceu como nunca se chegou a produzir. A oralidade deverá, com efeito, ter prevalecido na resolução
de muitos locais. O que nos conduz diretamente a analisar a composição das justiças locais.

Na verdade, nos anos 20 do século XIX entre um terço e um quarto das câmaras do país tinham vereadores
ou procuradores que assinavam de «cruz».151 Ainda conhecemos câmaras, apesar das disposições em
contrário e da proibição formal de 1642, os próprios juízes ordinários não sabiam assinar o nome.

Em 1828, quando o intendente-geral da Polícia miguelista lhe exigia apertadas informações, o juiz ordinário
repetia o argumento: «Não poderei semanalmente fazer as participações que V. Exª exige porque não sei
escrever nem neste Couto, que se compõe de pouco mais de 60 fogos há pessoas capazes de o fazer, e o
Escrivão que serve neste Couto é do Couto de Cadima, que nem todas as semanas aqui vêm, e só sim
quando há que fazer em Audiência». 152

Conforme referido, na viragem do século XV para o século XVI a publicação das Ordenações, a reforma
manuelina dos forais, e a multiplicação das magistraturas régias conferiram aos «pequenos poderes»
municipais portugueses uma relativa uniformidade.

A historiografia atual tem mostrado reservas sobre a tese tradicional de que predominava neste período o
predomínio da lei geral sobre a local, como resultante da mais assídua interferência da coroa na
administração do reino» .153 Além disso, mesmo nos concelhos com juiz de fora aquele era substituído na
sua ausência pelo vereador mais velho, fator de frequentes tensões e conflitos.

Deve-se a António Manuel Hespanha a tentativa mais consistente para estudar as práticas do mundo jurídico
local através da oposição entre o direito erudito e oficial, por um lado, e as práticas jurídicas locais,
enformadas por diferentes culturas e por diferentes agentes, por outro. O autor distingue diferentes
sistemas de justiça na sociedade portuguesa do Antigo Regime, com uma ampla expressão no plano

151
Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Lavradores, frades e forais. Revolução liberal e Regime senhorial na comarca de Alcobaça (1820-1824), Ler História,
nº 4; idem, Forais e Regime Senhorial. Os Contrastes Regionais segundo o Inquérito de 1824», (mimeo), I.S.C.T.E, 1986.
152
A.N.T.T., Intendência-geral da Policia, Correspondência de diversas autoridades, Coimbra (provedoria),maço nº 286, nº 326.
153
Franz-Paul Langhans, Estudos de Direito Municipal. As Posturas, Lisboa, 1937, p. 42.

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administrativo; um sistema local patriarcal-comunitário, emanação direta das «comunidades naturais», um


sistema local «concelhio», que de demarcaria do anterior pelo peso da administração escrita, e ainda o
sistema da administração da coroa, corporizada nos magistrados seus agentes.

Em termos espaciais, o primeiro dos referidos sistemas coincidiria tendencialmente com os pequenos
territórios jurisdicionais, enquanto o segundo se exprimia paradigmaticamente nos grandes municípios.

As ideias apresentadas carecem de uma ampla ratificação, designadamente, através do confronto sobre as
fontes do direito não oficial (costumes, as posturas e os privilégios locais) e sobre as sentenças de juízes
ordinários, pois aquilo que menos se conhece são as práticas jurídicas das justiças não letradas com a
agravante da fiscalização destas pelos magistrados letrados eram bastante ténues e, quando efetivados,
tendiam a ser geralmente sentidos como opressores.

A grande autarcia que podia caracterizar a vida dos municípios mais isolados é bem ilustrada com os casos
conhecidos das ilhas dos Açores: em meados do século XVIII, vários concelhos só recebiam os corregedores
em correição com intervalos de dois em dois anos. Mas também no continente se conhecem histórias
similares. Os exemplos anteriormente apresentados, introduzem-nos indiretamente ao tema do
autogoverno local. A dimensão jurisdicional era a apenas a expressão suprema da autonomia possível das
pequenas comunidades locais.

No período de 1820-1823 encontramos uma condenação das justiças iletradas, na linha do discurso
tradicional dos juristas sobre a matéria. É, sem dúvida, o ponto de vista dominante, aquele que se exprime
no debate sobre os municípios nas cortes vintistas. Mas nem por isso deixam de ser enfáticos os juízos
produzidos: «Eu temo, e tremo, quando vejo impugnar a jurisdição, a um homem ignorante (…) quero dizer a
um juiz ordinário (…) estes homens anticonstitucionais, que pedia o atual sistema, que tivessem sido
restituídos aos campos; porque nestes tribunais não se julga segundo as luzes da Razão, e da Justiça, mas
segundo a paixões de um escrivão (…). O Escrivão é que lhes dita o Assessor que hão-de tomar (…)»154

E, numa memória sobre a despesa da justiça, afirma-se: «A maior parte das Câmaras deste Reino são
compostas de homens inteiramente Rústicos, ignorantes, e que nem ler, ou escrever sabem». 155

Mas não se deve ignorar a outra face da questão: a defesa das justiças locais, do autogoverno das terras,
contras intromissões e tributações do exterior e dos magistrados da coroa. Em pleno vintismo, a profusão de
requerimentos e memórias de juízes de fora.

A apologia das justiças locais, gratuitas porque exercidas por honoratiores, combina-se, assim, com a
denúncia e com as propostas de abolição das magistraturas letradas (corregedores, provedores e juízes de
fora), « porque os juízes das correições das comarcas não servem mais do que flagelo dos lavradores, com

154
A.H.P., Iª/2ª div., caixa nº 36, doc. nº 34.
155
A.P.H., Iª/2ª div., caixa nº 32, doc. nº 129

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crimes, diligências de oficiais, com salários arbitrários , e mesmo quando vão à correições todos os anos a
cada concelho 1º corregedor 2º provedor 3º superintendente, pedem para as suas aposentadorias e de seus
oficiais quantas camas querem, lenhas , presuntos , e o que mais querem sem nada pagarem: o povo é que
paga para os aflagelar(…) as jurisdições de corregedor e superintendente devem recair nos juízes ordinários,
e as dos provedores nos juízes de órfãos(…) ficando suprimidos os juízos das correições (…) os juízes de vara
branca, de primeira instância, devem ser abolidos, e ficam juízes ordinários como primários da nossa
legislação, pacíficos e não famintos (…) sendo juiz ordinário, este não olha só para a paz, como vizinho, mas
independentemente, como pessoa rica e principal da terra, assim ficam os povos em sossego e mais bem
governados» 156.

O longo excerto referido aparece em várias memórias contra as devassas gerais ou a favor da extinção dos
juízes de fora: «que comparação pode ter um juiz ordinário pela maior parte homem velho, cheio de
experiências, vivendo num século iluminado (…) a de um juiz de fora rapaz inexperiente, estrangeiro, cujos
costumes se acham viciados com os exemplos da libertinagem das cidades». 157

O governo autónomo da pequena comunidade local associa a autorregulação em matéria judicial com a
oposição aos altos custos da justiça oficial e letrada. Um tema que, nos grandes municípios, serve às vintenas
ou juradorias para criticar a tributação camarária, como adiante se verá. E que persistirá para além da
revolução liberal, como facilmente se demonstra pelas palavras do célebre padre Casimiro José Vieira,
autodenominado Defensor das Cinco Chagas e General-Comandante das Forças Populares do Minho e Trás-
os-Montes na revolta de Maria da Fonte: «Todo o povo clama pela demarcação antiga das justiças respeito
aos concelhos e comarcas etc., porque conhece, que só assim, que pode dar remédio a seus males que o
puseram quase moribundo (…) não há dúvida, que um administrador não pode trabalhar de graça sendo
capitão-mor de um concelho (…) um recebedor não pode trabalhar de graça para um grande julgado, mas
pode cobrar de graça um recebedor anual em cada freguesia, como dantes». 158

O Governo Economico Municipal

A vertente económica e fiandeira da atuação das câmaras do Antigo Regime, em termos globais traduzia
uma ideia de autarcia económica, avesso à livre circulação de mercadorias e todas as interferências
externas, que fariam do governo económico camarário um objeto insistente das críticas reformistas e liberal
e, em definitivo, um dos símbolos do Antigo Regime económico.

A disparidade dos pesos e medidas que vigoravam de uns concelhos para os outros e as dificuldades
encontradas já depois da revolução liberal para os uniformizar, constitui um significativo testemunho do

156156
«Projecto sobre a reforma da administração da justiça e demais autoridades» (Dez,1820), publicado in Benedicta M.D. Vieira, O Problema
Político Português no Tempo das Primeiras Cortes Liberais, Lisboa, 1992, pp. 141-144.
157
«Carta sobre a extinção dos juízes de fora», de Domingos G. Pires Caldeira, in Benedicta D. Vieira, ob. cit. P. 179.
158
Padre Casimiro José Vieira, da «Carta à Senhora D. Maria da Glória, em 6 de julho de 1846», in Apontamentos para a história da Revolução do
Minho de 1846 ou da Maria da Fonte pelo Padre Casimiro finda a guerra em 1847, Lisboa, s./d., p. 167.

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sentido matricialmente particularista da regulação económica dos municípios herdados de séculos de


história portuguesa.

As posturas concelhias constituíam a matriz da jurisdição económica. É certo que a antiga ordem jurídica
portuguesa considerava que as mesmas vigoravam por consentimento tácito do príncipe, e que não
deveriam contrariar o direito geral do reino consignado nas Ordenações, nem as regalias e competências
159
exclusivamente reservadas a outros corpos. Mas, com essas salvaguardadas, as mesmas Ordenações
dispunham que «(…) as posturas e Vereações (…) o Corregedor da Comarca não(as) poderá revogar, nem
outro algum Oficial ou Desembargador nosso, antes as façam cumprir e guardar». As posturas exprimiam,
assim, a intervenção reguladora das câmaras nas matérias abrangidas pelo que então se chamava o
«governo económico» local e constituíam uma das sua prerrogativas mais afincadamente defendidas contra
intervenções e restrições exteriores.

No seu conjunto, o quadro institucional antes referido contribuía para que o governo económico camarário
tendesse a pautar-se por um ideal de autossubsistência e autarcia local. Porém, os diversos municípios
caracterizavam-se por destacadíssimas disparidades: quanto às dimensões dos seus termos e volume da sua
população, quanto à localização rural ou urbana da sede concelhia, quanto à composição social dos seus
oficiais camaristas e, também, quanto ao tipo de economia e de estrutura social dominante em cada zona.

Um dos principais domínios da ação dos municípios era a proteção dos respetivos mercados. Em termos
gerais, essa intervenção podia-se traduzir na taxação de preços e salários, na reserva de uma parte da
produção cerealífera (ou da sua importação) para o abastecimento alimentar da população residente, e na
restrição à comercialização nos mercados locais de produtos (artesanais, vinhos, etc.) que concorriam
diretamente com a produção local.

A taxação dos salários dos jornaleiros tinha antecedentes medievais e encontrava-se expressamente
sancionada nas Ordenações (liv. I, tit. 66, art.º32). Falta-nos um panorama de conjunto para períodos mais
recuados, mas parece que as intervenções neste domínio se mantiveram ativas nas zonas onde tinha peso a
grande exploração agrícola como eram, designadamente, o Alentejo e a Estremadura Oriental. Nos finais do
Antigo Regime os conflitos salariais, que se largaram ao Centro Litoral (Aveiro e Coimbra), parecem ter sido
importantes em várias conjunturas, assistindo-se a frequentes pressões dos grandes produtores agrícolas
para que as câmaras dos respetivos municípios taxassem os salários dos jornaleiros.

Terminantemente relevante era a intervenção das câmaras no abastecimento alimentar dos respetivos
municípios, em particular, no domínio dos géneros cerealíferos, base alimentar da maioria da população.
Nos concelhos sediados em centros urbanos, desde cedo se tinham instalado sistemas destinados a garantir

159
Livro I, tit.66, art.º 29.

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o fornecimento dos mercados urbanos, se necessário recorrendo à sua importação. Os momentos de alta do
preço do pão, em anos de escassez, constituíam o despoletar habitual de revoltas e tumultos.

Garantir o «pão barato» representava, assim, uma das condições essenciais para segurar a pacificação social
do espaço urbano, um vínculo essencial nas relações entre dirigentes e dirigidos e, por isso, uma tarefa
relevante das câmaras dos centros urbanos, que para o efeito recorriam a diversas soluções.160

O problema do abastecimento de cereais também se colocava nos concelhos dominantemente rurais das
províncias. Porém, como os termos municipais tinham produção própria excedentária e passível de
exportação, a questão invertia-se, ou seja, o que cabia às câmaras garantir era a reserva de cereal necessária
para o fornecimento do mercado local. A esse respeito, as Ordenações estabeleciam que «toda a pessoa que
tiver pão seu, ou das suas rendas, o poderá levar livremente onde quiser, deixando a terça parte no lugar,
donde o tirar, e a dita terça parte poderá levar com licença da Camera do dito lugar» (livro V. tit. 76, art.º 8).

Quanto à taxação dos preços dos cereais, abrangendo geralmente os centros urbanos municipais, só se
verificava em determinados casos e incidia apenas sobre a venda a retalho. A venda a retalho, como as feiras
e mercados, eram objeto e tributação camarária, podendo constituir uma importante fonte de receitas.
Estas eram, assim atividades controladas pelos municípios.

Particularmente importante foi a ação camarária, em meados do século XVIII, na administração dos baldios e
maninhos. O antigo direito português não reconhecia a distinção, ulteriormente introduzida, entre baldios,
maninhos e bens dos concelhos.

A norma consignada nas Ordenações (livro IV, tit 43, art.º 9) era de que «matos maninhos, ou matas e
bravios, que nunca foram lavrados, e aproveitados, ou não há memória de homens, que o fossem (…)
passaram geralmente pelos Foraes com as outras terras aos povoadores delas». Essa regra só não se
aplicava nos concelhos em cujos forais reformados se consagrava o direito dos donatários de direito reais
concederem os maninhos em aforamento. Apesar do protesto dos municípios, era esse o princípio
consignado nas cartas de foral, como o direito que os mosteiros tinham «por seus abades e oficiais ponham
sesmeiros em cada um do ditos lugares dos ditos coutos como até aqui fizeram» . 161

Eram portanto somente estas duas situações previstas, não se estabelecendo distinção entre os bens dos
povos (ou das freguesias) e terrenos concelhios, nem se determinando a quem cabia a administração dos
maninhos.

O alvará pombalino de 23 de julho de 1766 pretendeu evitar o processo de privatização dos maninhos e o
seu aforamento indiscriminado pelas câmaras, nele violentamente denunciadas: passou a exigir-se prévia

160
Cf., entre outros, António de Oliveira, «A vida económica e social de Coimbra de 1537 a 1640.Primeira Parte», Biblos, vol. XLVIII, 1972 (1977), pp.
122-362.
161
Foral dos lugares do couto do Mosteiro de Alcobaça (Évora de Alcobaça) de 1 de outubro de 1514, in L.F. Carvalho Dias, Forais Manuelinos do reino
de Portugal- Estremadura, s.l., 1962, p. 151.

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consulta à Mesa do Desembargador do Paço para se fazerem novos aforamentos, determinando-se também
a completa reorganização da contabilidade municipal. Só que, apesar das aparências, a lei pombalina acabou
por depositar nas mãos das câmaras, embora com as restrições apontadas, a administração e o aforamento
dos baldios, em desfavor de outras instituições (confrarias, vintenas, etc.) que eventualmente os podiam
gerir.

Contra as intenções proclamadas, veio, desta forma, a estimular a longo prazo o processo de privatização
dos terrenos de uso comum, o qual se tornou um dos principais focos de conflito que atravessaram a
sociedade rural portuguesa na última fase do Antigo Regime e, também, através do pagamento de foros a
que deu lugar, numa das principais fontes de rendimento de muitas câmaras.

As Administrações Camarárias e as Populações

As administrações camarárias e as elites que nelas pontificavam divergiam acentuadamente de uns


concelhos para os outros. As coletividades locais estruturavam-se de forma muito variada e em função de
um amplo leque de fatores. Logo, as relações entre as duas entidades não se pautavam pela uniformidade.
Mas alguns traços comuns lhes permitem alguma coerência ao quadro de conjunto.

A dominação das elites, mesmo nos grandes concelhos sediados num centro urbano, não deixava de se
regular por normas mais ou menos formalizadas, consagradas pelo direito e pela tradição.

Os frequentes conflitos que caracterizavam a vida local no Antigo Regime podiam, assim, ter dois tipos de
origem: da violação os referidos códigos ou, mais exatamente, legitimavam-se invocando o desrespeito dos
privilégios e prerrogativas atribuídos aos vários corpos; ou por alterações dos contextos socioecónomicos
locais ou por mutações exógenas, entre as quais, as intervenções da administração central da coroa, ou a
modificação da cultura política prevalecente. Estes últimos fatores tornaram-se particularmente importantes
na última fase do Antigo Regime.

O conceito de comunidade, como sentimento de pertença do mundo local no Antigo Regime, construído em
função da hegemonia social, impunha formas peculiares de regulação dos conflitos e tornavam-se um fator
ativo, suscitável de provocar a mobilização. Desde meados de Setecentos, essa solidariedade local foi
ameaçada, em muitos casos, e reforçada em outros, por um movimento bastante global: o processo de
apropriação dos maninhos e baldios. Mas não deixava de se manifestar de forma inquestionável em
fenómenos tão persistentes como as rivalidades entre populações e, nesse caso, com uma amplitude sem
precedentes, nos movimentos anti senhoriais.

Uma enorme parcela das funções sociais hoje depositadas nessa autoridade distante (o Estado) eram então
desempenhadas pelas famílias e pelas coletividades locais. A opinião dos vizinhos, ou seja, a comunidade

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local, intervinha de forma significativa na regulação das relações domésticas e tem uma importância decisiva
para o enquadramento do problema das finanças municipais.

Se são as finanças enquanto indicador da forma como se regulavam as referidas relações o que mais nos
interessa analisar, não se deve perder de vista a dimensão da sua grandeza absoluta. A característica geral
parece ser a exiguidade de receitas que cobrava normalmente a maior parte dos concelhos. Exceto os
municípios como Lisboa, Porto, Braga e pouco mais, pode afirmar-se que os rendimentos de municípios sede
de comarca eram bastante reduzidos e situavam-se a considerável distância dos rendimentos que auferiam
as principais casas religiosas e nobiliárquicas das províncias 162.

Receitas pequenas que se traduziam, aliás, na modéstia da maior parte edifícios camarários, que não podiam
rivalizar em importância com os grandes mosteiros ou, até, com algumas casas fidalgas. De resto, as terças
reais representavam uma parcela muito reduzida das receitas do estado: entre 0,59% e 0,74% nos finais do
século XVIII e inícios do século XIX. Este indicador sugere-nos também uma outra realidade fundamental: o
acentuado contraste entre os grandes e os pequenos concelhos.

Regra geral, as principais fontes de rendimento eram apenas três: os impostos municipais (imposições sobre
o consumo),as condenações (coimas) e os foros (provenientes dos aforamentos dos baldios) ou, menos
usualmente rendas de propriedades.

Uma das grandes diferenças na estrutura das receitas dos municípios em relação aos outros residia
precisamente na importância dos impostos sobre o consumo (muitas vezes arrendados, podiam ultrapassar
80% das suas receitas, como em Braga, Guimarães ou Viana), totalmente ausentes nas receitas dos
pequenos municípios. Porém os municípios que eram superintendências de sisas podiam tirar proventos
suplementares do seu encabeçamento (sobejos das sisas), ou seja, do que ultrapassava os quantitativos
previamente fixados que se deviam à coroa (património régio). Ao invés quando não se alcançavam os
quantitativos fixados as câmaras podiam lançar uma finta extraordinária («sisa de cabeção» ou «ferrolho»).
Acontece que na última fase do Antigo Regime as receitas dos sobejos das sisas subiram em flecha
ultrapassando em muitos casos as receitas próprias das câmaras. Tornaram-se assim, uma dimensão
essencial da administração camarária, através da qual se pagam as despesas com a criação dos expostos, os
médicos e até uma parte dos encargos com as infraestruturas.

A estrutura das despesas das câmaras do Antigo Regime exprime de forma concludente o âmbito de atuação
daquelas instituições: os gastos administrativos e com pessoal excediam sempre dois terços do total,
quedando o restante, muitas vezes nada, para obras públicas e equipamentos.

162
Salvo anos excecionais, os rendimentos das referidas câmaras não ultrapassavam os 3 contos de réis a valores deflacionados do ano de 1800
(índice de inflação elaborado pelo Prof. David Justino).

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Nos grandes municípios as despesas com o poder central (corregedores, provedores, etc.) constituem uma
parcela quase sempre inferior a um quarto do total, enquanto nos pequenos representavam geralmente a
principal despesa. Pelo contrário, os gastos com o poder local eram o principal dispêndio nas grandes
câmaras, onde, de facto, para além dos sempre destacados pagamentos aos escrivães, os próprios
vereadores e procuradores recebiam emolumentos.

As despesas provenientes das receitas próprias das câmaras canalizadas para o abastecimento de águas,
para os arranjos dos caminhos, ruas e praças, ou para os edifícios municipais quase nunca passavam de um
terço do total, situando-se geralmente muito abaixo dessa parcela. Nos pequenos municípios eram, de resto,
pura e simplesmente inexistentes. Não admira, assim, que nestes se recorresse ao trabalho compulsivo para
a reparação, por exemplo, das estradas públicas.

No entanto, numa sociedade onde nenhum serviço da administração central, fora dos grandes centros
urbanos, tinha intervenção relevante na matéria, não era possível recorrer por sistema ao trabalho
compulsivo dos munícipes para realizar obras públicas. Entre as soluções alternativas situavam-se a
canalização de impostos centrais para esse efeito e o recurso a uma tributação camarária.

Apesar dos referidos expedientes, parece que no final do Antigo Regime a maioria das câmaras registava
uma situação sistemática e crescentemente deficitária. Nos pequenos concelhos, essa realidade seria
particularmente agravada. Chegou-se mesmo a escrever que o «poder camarário adquire (…) a feição de um
pequeno estado local com os seus súbditos – as Vintenas do Termo».

De resto, tal como os pequenos municípios, as vintenas ou jurarias nos grandes concelhos acabavam muitas
vezes por viver um quotidiano marcado por uma ampla autonomia. Esses grandes termos municipais,
partilhados desde logo por diversas instituições e tributações senhoriais, podiam chegar a ter, como no caso
de Coimbra, um regimento especial para os seus pequenos concelhos, que reforçava as competências
definidas nas Ordenações para as vintenas, e os aproximava das pequenas vilas. Mas as câmaras não
deixavam de ouvir as populações das freguesias rurais do termo quando decidiam sobre uma das matérias
que mais as afetava: o aforamento dos marinhos e baldios. Esses aforamentos precipitados pela legislação
pombalina de 1766, deram lugar a algumas das mais relevantes mutações que percorreram a história da
sociedade rural portuguesa. Os ditos aforamentos representaram, sem dúvida, um momento decisivo no
recuo da mancha florestal do país.

A legislação pombalina tendeu, eventualmente, contra as suas intenções, a municipalizar a administração


dos maninhos, embora pretendesse travar a sua privatização. Assim, no fim do século XVIII, foram-se
difundindo, sob a influência das novas escolas do pensamento económico, ideias contrárias a todas as
modalidades de propriedade coletiva e que tendiam a ver na privatização dos baldios uma condição do
progresso da agricultura e da resolução do crónico problema da escassez cerealífera nacional. Nos concelhos

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onde os senhorios podiam controlar o aforamento dos maninhos, esse processo ajudou a contrapor as
populações aos donatários, constituindo-se como uma componente relevante nos movimentos anti-
senhoriais.

Nos restantes casos, em que essa competência cabia às câmaras, deve-se distinguir entre pequenos e
grandes municípios. Nos primeiros, as câmaras, em regra, confundiam-se com a coletividade local, não
aparecendo como uma entidade separada na administração dos maninhos e outras esferas de regulação
coletiva. Pelo contrário, nas grandes câmaras era comum a ocorrência sobre essas matérias, de conflitos
entre as formas de organização da «coletividade local» e as vereações camarárias.

Contudo, se a oposição entre ricos e poderosos e a coletividade local foi muito comum, a verdade é que nem
mesmo no Minho onde se levou mais longe o aforamento dos maninhos se pode falar de um padrão comum
como resultado desse movimento. Algumas vezes, o processo de aforamento dos baldios acabou, até, por
perpetuar a sua utilização coletiva.

Apesar dos padrões institucionais comuns, a vida local portuguesa pautava-se, assim, pela diversidade e pela
conflitualidade múltipla. Sendo corrente a oposição entre as populações locais e as administrações
concelhias, não se pode considerar que essa polarização, embora traduzida ocasionalmente em tumultos e
petições, fosse mais relevante do que outros vetores de tensão e conflito. A movimentação das freguesias
rurais apoiou-se inequivocamente nas instituições locais tradicionais, em particular, nas ordenanças.

2. As Misericórdias e os Poderes Locais

No domínio senhorial, embora a sua atuação não deixasse de se fazer sentir, as câmaras eram
secundarizadas por outras instituições, em especial, pelas misericórdias. Estas constituíam, assim, um dos
mais relevantes polos de poder na sociedade local, cujas relações com os outros centros institucionais não
obedeceram a um padrão uniforme. As confrarias participavam do universo belicoso que caracterizava a vida
social do Antigo Regime: envolviam-se frequentemente em conflitos, quer com instituições concorrentes
quer com instituições que pela sua natureza eram habitualmente aliadas.

Esta conflitualidade é particularmente nítida ao nível das misericórdias que sustentavam lutas internas que
muitas vezes espelhavam tensões alargadas a toda a comunidade. Podiam levar ao risco de irmãos ou ao
despedimento de pessoal remunerado, como capelães, amas-de-leite ou contínuos. Quando as lutas
extravasavam o quadro da confraria, poderiam ter lugar com qualquer uma das instituições existentes no
território: bispos, cabidos ou colegiadas, párocos, ordens religiosas, outras confrarias, misericórdias vizinhas,
câmaras, ou ainda outras instituições.

As misericórdias tinham uma estrutura idêntica no que respeita aos cargos de direção: uma era constituída
por treze indivíduos, reunindo uma a duas vezes por semana para deliberar sobre os assuntos da confraria.

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Dessa faziam parte o provedor, o escrivão, o tesoureiro ou recebedor de esmolas. Estes três cargos cabiam a
irmãos de primeira categoria e os restantes mesários eram nobres e não nobres em proporções iguais.

A elevada conflitualidade demonstrada pelas misericórdias prendia-se antes de mais com o seu caráter
elitista: próximas do poder e gerindo avultados capitais a nível local. O facto de as misericórdias terem um
número limitado de irmãos não é fortuito nem ocasional, uma vez que dificilmente poderiam ter o mesmo
papel político se não operassem discriminações no seio das comunidades. O grupo que forma as
misericórdias coincide regra geral com os indivíduos que efetivamente detêm o poder no espaço político
considerado. Um número reduzido de indivíduos, geralmente pertencentes às famílias mais influentes a
nível local: grandes proprietários rurais à escala local residentes fora do núcleo urbano como no caso de
Mértola, donos das marinhas como em Setúbal, membros da nobreza local como em Guimarães.

As grandes famílias locais, mesmo quando ausentes na corte, certificavam-se da sua representação na mesa
da misericórdia. No que respeita à presença dos irmãos de menor condição, com peso político muito
inferior, ela justifica-se na medida em que estes representavam uma fação próxima do poder, com a função
de executar as tarefas consideradas menos dignas dos irmãos nobres, tais como limpar cadeias ou abastecer
os hospitais. Pertenciam geralmente às elites do artesanato urbano: a condição essencial de admissão na
confraria era não deverem trabalhar por suas mãos, o que em teoria obrigava ao escalão de mestre de
oficina

A proximidade das elites que formam as misericórdias relativamente ao poder não significa que as
163
misericórdias o partilhem apenas com as câmaras. Embora Boxer tenha definido as câmaras e as
misericórdias como pilares do poder local, é um facto que nem sempre as duas instituições se articularam da
mesma maneira. Se nalguns casos o poder é essencialmente municipal e os vereadores da câmara coincidem
com o cargo de mesários da misericórdia, noutros casos surge o cabido episcopal a ocupar os lugares-chave
na direção da confraria como em Braga; noutras cidades, como em Elvas, o bispo serve sistematicamente
como provedor, enquanto em Alcobaça a misericórdia mede forças com a Ordem de Cister.

Quando a base de recrutamento da câmara e da misericórdia era a mesma, não se verificava uma
acumulação mas sim uma alternância entre o cargo de vereador e de mesário, que aliás a própria lei
desencorajava, ao isentar os irmãos da mesa dos cargos concelhios.

Regra geral, enquanto instituições oligárquicas, as misericórdias nem sempre integravam plenamente todos
os membros das elites locais. O poder económico das misericórdias tem sido justamente sublinhado e é sem
dúvida um facto, embora deva ser relativizado: património não significa liquidez, dada a dificuldade que as
misericórdias tinham muitas vezes em fazer render bens imóveis por razões que se prendiam com
incapacidade de cobrar eficazmente rendas e foros.

163
C. R. Boxer, O Império Colonial Português (1415-1825), 2ª edição, Lisboa, Edições 70, 1981.

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O património das misericórdias era constituído muitas vezes por terras e casa de aluguer que
proporcionavam fracos rendimentos. Recetoras de numerosas heranças e legados pios, as misericórdias nem
sempre aceitavam bens nas melhores condições: alguns deles estavam sobrecarregados de obrigações e,
pior ainda, onerados por dívidas.

A agravar a dificuldade em rentabilizar o património, temos o facto de a maior parte do imóveis se encontrar
vinculada a obrigações de culto, faziam com que 34 a 35 % dos rendimentos se encontrassem à partida
destinados a pagar aos numerosos capelães que diziam as missas por alma de defunto. Por outro lado, com
o tempo verificava-se rapidamente um desajustamento entre os rendimentos destinados a pagar as missas,
geralmente perpétuas, e o preço das mesmas: daí que no século XVIII um dos grandes esforços tenha sido a
comutação de missas com as autorizações respetivas da Santa Sé. Por outro lado, muitas vezes as heranças
deixadas à misericórdia davam ocasião a casos de justiça, que se arrastavam durante décadas.

Daí que a tendência das misericórdias fosse no sentido de conseguir o grosso de rendimentos a partir do
empréstimo de dinheiro a juros, ou através dos peditórios de esmolas, que representavam dinheiro isento
de obrigações. O empréstimo a juros, embora lucrativo, ressentia-se sempre da capacidade dos irmãos em
retirar dinheiro dos cofres da irmandade sem o restituir. Verificam-se inclusivamente casos de
subempréstimos, uma vez que o juro pago à misericórdia era inferior à taxa de juro corrente. No entanto,
mau grado a insolvência de alguns devedores, as contas das misericórdias apontam para o empréstimo de
dinheiro a juros como uma das maiores fontes de receita. Por outro lado, há a considerar rendimentos
avultados de alguns bens e serviços específicos, como a posse de marinhas ou a travessia de rios em barcos
da misericórdia.

Embora a riqueza das confrarias fosse um fator de conflito, é de crer que a importância das misericórdias
que justifica a sua centralidade nos conflitos locais se prendesse em primeiro lugar com a sua composição
social e interesses políticos em jogo. A capacidade de aproveitar recursos das misericórdias estava em
primeiro lugar reservada aos que pelo seu estatuto social tinham acesso aos lugares de destaque nas
confrarias, podendo desta forma operar uma apropriação dos seus bens. A degradação financeira das
misericórdias conduziu à venda do património de algumas delas na segunda metade do século XVIII.

A conflitualidade nas misericórdias é antes de mais interna: verificando-se dissensões no interior da


confraria, verifica-se a eliminação do irmão que causava distúrbios ao seu normal funcionamento, podendo
ir até ao despedimento coletivo de confrades. Os irmãos despedidos eram assim riscados do rol, com base
numa decisão da mesa vigente. Diversas situações conduziam à exclusão dos irmãos, todas elas previstas no
compromisso da irmandade: desobediência ao provedor e à mesa, falsas informações no momento da
demissão, escândalo público, não cumprimento das obrigações da confraria, etc.

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Outra fonte constante de conflitos era constituída pelo pessoal que servia as confrarias por salário ou a elas
prestava serviços remunerados. Um sem número de ofícios e serviços dependia dos recursos económicos
das misericórdias, recebendo tanto pagamentos em dinheiro como em géneros: adstritos aos serviços
religiosos (capelães, moços de capela, cerieiros, músicos e meninos do coro); aos hospitais (médicos,
cirurgiões, sangradores, boticários, enfermeiros, barbeiros, porteiros, cozinheiros, lavadeiras, etc. ou aos
serviços administrativos (solicitadores, procuradores na corte, homens de leis). Havia também coveiros para
enterrar os mortos, amas de leite para criar os expostos, serventes e moços de recados, recoveiros, etc.

Quando conhecidas em pormenor as questões entre as misericórdias e os seus servidores, obtemos uma
imagem de instabilidade, que outros estudos que não os micros analíticos poderiam dificilmente fornecer:
enfermeiros pouco escrupulosos no tratamento de doentes; capelães constantemente despedidos, por
vezes em bloco; amas-de-leite despedidas por culpas consideradas graves e readmitidas em seguida.

As causas de conflitos com outras instituições prendia-se geralmente com o desrespeito pelos privilégios
concedidos pela coroa, fáceis de cumprir no papel, mas com os quais a realidade local nem sempre
concordava.

As desavenças com o bispo local tinha geralmente como pretexto o direito de visitação episcopal que o bispo
reivindicava, embora fosse contra o caráter de confraria laica e contrariasse a proteção régia de que as
misericórdias usufruíam. Embora se desconheça o contexto desses conflitos, encontramos os bispos a
quererem visitar à viva força, por vezes em momentos repetidos no mesmo local. Em alguns casos, são os
visitadores do bispo a atropelar direitos das misericórdias, ao pretender incluir as igrejas nas respetivas
pastorais ou a tentar sobrepor-se aos capelães da misericórdia no desempenho de ofícios divinos. Os
próprios párocos contestaram alguns dos direitos das misericórdias, tais como a capacidade de rezar missas
nas igrejas respetivas, ou a realização de enterros.

As motivações dos conflitos com a câmara estavam relacionadas como pretexto ou razão principal de
eclosão de questões protocolares associadas a rituais públicos, pelo valor que a sua visualização das
hierarquias detinha na representação pública dos poderes. Embora muitas razões do conflito permaneçam
desconhecidas, diversos tipos de capital estavam em jogo simultâneo ou isoladamente: as lutas faziam-se ao
nível das representações simbólicas, como no caso dos rituais públicos, ou nas situações que comprometiam
a imagem pública da irmandade; ao nível dos recursos económicos quando se pretendia reivindicar o direito
a uma herança ou a uma área de peditório de esmolas, ou ao nível político quando estavam em jogo o
controlo do poder no seio da confraria.

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3. Práticas do Poder Senhorial à Escala Local e Regional (Fins do Século XV a 1640)

A Casa de Bragança diferenciava-se das demais casas aristocráticas da época não apenas por uma questão
de escala, mas pela tradição de implantação senhorial que detinha e pela abundância e natureza dos
privilégios jurisdicionais com que a coroa a distinguira.

As características da administração senhorial são produto de vários fatores. As competências formais do


senhorio jurisdicional nem sempre se exerciam da mesma maneira. A capacidade de pressão e influência
política a nível local e regional estavam muito correlacionados não apenas com as variáveis já apontadas –
extensão, espessura temporal do senhorio e tipo de privilégios obtidos – mas também com a proeminência
dos donatários.

A combinação destes fatores parece, pois, decisiva para compreender o caráter excecional do modelo
administrativo do senhorio brigantino e, por comparação, perceber algumas características das práticas
senhoriais verificadas nas restantes casas.

Características dos senhorios

O tamanho do senhorio jurisdicional e, sobretudo, as características físicas, demográficas e económicas dos


concelhos que o integram eram relevantes no que respeita aos recursos disponíveis. Afetavam desde logo a
importância dos proveitos económicos passiveis de serem extraídos das exações fiscais e direitos cobrados.
Mas repercutiam-se também no volume e importância das vereações que se confirmavam e na dada dos
diversos ofícios locais. Ou seja, na capacidade de distribuição social dos recursos. Se em pequenos concelhos
estes bens de troca tinham reduzido valor, em grandes concelhos assumiam inegável importância social,
visível pelos esforços que as comunidades desenvolviam em controlar o acesso aos mesmos.

O senhorio apresentava ainda virtualidades ao nível das exigências administrativas que a sua gestão criava.
Neste domínio não era indiferente a sua concentração ou dispersão territorial. No primeiro dos casos havia
uma forte probabilidade da principal residência senhorial se situar numa dessas localidades. Este facto era,
desde logo, uma garantia de eficácia e capacidade de controlo sobre os assuntos do senhorio. O seu titular
tendia a conhecer diretamente os principais atores e as questões do interior do sistema garantindo, por isso,
processos de decisão marcados por uma forte influência pessoal, ou seja, na prática, o exercício de um
controlo acrescido sobre o espaço político e social comunitário, como ocorria em muitos senhorios
eclesiásticos entre os quais se deve destacar o maior e mais concentrado – o do Mosteiro de Alcobaça.

Se porventura, o senhorio era descontínuo, mas de grande dimensão, como ocorria com a casa de Bragança
(mas também com a de Aveiro), a sua gestão, para ser eficaz, implicava processos de seleção criteriosos das

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pessoas a colocar nos lugares de administração colonial. Antes de mais no centro do senhorio que coincidia
com a residência do seu titular, mas também a nível regional ou local. Ou seja, os desembargadores da casa,
os seus ouvidores e os procuradores dos feitos da casa nos diversos concelhos.

A Casa de Bragança talvez represente o expoente máximo, e quase único da posse destas vantagens
comparativas no que toca a senhorios laicos, uma vez que nos senhorios eclesiásticos se podem encontrar
outros exemplos (o mais significativo deste ponto de vista talvez fosse o dos coutos de Alcobaça.

Constituída nos finais do século XIV e início do Século XV, à custa das doações com que D. João I agraciou o
comportamento de Nuno Álvares Pereira nos conflitos com Castela, conseguiu atravessar as várias
conjunturas que assinalaram politicamente os séculos XV, XVI e primeira metade do século XVII sem
percalços que a marcaram definitivamente.

A importância da longevidade para explicar a acumulação de privilégios e, em particular do de incidência


jurisdicional, parece razoavelmente evidente. Este tipo de privilégios não estava, por norma, contido nas
doações genéricas. Aí enunciavam-se apenas os direitos de jurisdição (civil e crime, ou apenas civil). Todos os
outros eram concedidos por mercê especial e, portanto, contidos em cartas de privilégio específicas.

A obtenção de privilégios era conseguida por mercê do monarca, por petição do próprio senhor. A
predisposição positiva para a graça régia era conseguida através da prestação de serviços à coroa ou de
expetativas da sua realização. A memória e a qualidade dos desempenhos dos membros da casa, passados e
presentes, eram assim decisivos na hora de pedir benesses.

Uma brevíssima comparação entre as casas de Bragança e da Feira pode ser elucidativa. As possibilidades de
intervenção das diversas esferas de exercício de poder (central, senhorial e local), no condado da Feira a
administração senhorial estava efetivamente balizada pelos dispositivos legais contidos nas Ordenações
Filipinas. Alguns dos direitos régios e parte das competências exercidas pelos oficiais periféricos da coroa no
concelho da Feira eram, no senhorio brigantino, da responsabilidade direta da administração senhorial, não
obstante isso colidir com a lei geral. As cartas de privilégio serviam justamente para ultrapassar esse
obstáculo legal. Exemplo concreto é o da terça das rendas concelhias que deveria entrar nos cofres régios
para ser aplicada na reparação dos muros e fortificações do respetivo município: se tal se verificava na Feira,
no ducado de Bragança os duques não só cobravam essas verbas, com as gastavam nas obras que bem
entendiam, podendo até transferi-lhas de uns concelhos para outros.

Filipe III confirmou, em 1638, o privilégio pelo qual a casa estava isenta do cumprimento de todas as leis que
tocassem nas jurisdições das suas terras, pelo que se assegurava o gozo e uso dos costumes antigos 164.

164
Carta régia de 1 de junho de 1638, ACB, MS, 17, fl. 121 v.

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A extensão espacial e cronológica do enraizamento senhorial brigantino permitiu-lhes estruturar uma ampla
e sólida rede de dependentes, criar estilos e rotinas relacionais e aperfeiçoar os mecanismos de
comunicação administrativa e institucional com o centro político e as periferias do seu senhorio.

Práticas de Administração Senhorial

Tomando como exemplo a Casa de Bragança destacam-se três cargos político-administrativos. Antes de mais
o já citado de desembargador que tinha a função de consulta e acompanhamento com o duque, mas
também porque era responsável último e através dele se garantia a administração da justiça distributiva da
casa e se zelava pela sua preservação e aumento da sua fazenda. Ou seja, cobrar as rendas, dar a cada uma o
direito que cada um tinha na justiça e a satisfação dos serviços desempenhados em prol dos duques.

O ouvidor tinha funções de fiscalização sobre um território relativamente amplo. Entre os privilégios que os
Braganças conseguiram na administração da justiça intermédia e, portanto, acréscimos do poder de estes
oficiais ducais. Exemplos concretos podem ser aduzidos nas constantes confirmações da monarquia para os
casos serem sempre julgados pelas justiças brigantinas, não obstante as tentativas efetuadas pelos réus ou
autores dos feitos de as ultrapassar invocando suspeição sobre os oficiais de justiça da casa, no privilégio
para servirem mais tempo que os três anos regulamentares, ou ainda na equiparação aos corregedores das
comarcas.

Quanto aos procuradores dos feitos da casa, tal como na coroa, dividiam funções entre os aspetos
associados à fazenda e á justiça. Residiam e exerciam funções onde os Braganças tinham interesses ou junto
dos tribunais régios. Enquanto advogados e procuradores da casa manipulavam os recursos jurídicos ao
serviço dos seus interesses, interpondo embargos às precatórias que não convinham: além do que,
opinavam sobre as características e vantagens internas no concelho, debaixo de ordens diretas do duque. O
seu perfil social sugere um lugar de alguma centralidade no espaço social concelhio, aparentando
desempenharem funções de mediação entre a casa e as instituições locais, que caracterizam os atores que,
na literatura especializada, se convencionou apelidar brokers.

A matriz e culturas organizacionais adotadas pela administração senhorial eram tomadas da própria
administração periférica da coroa. Tal como acontecia com a monarquia, era necessário recorrer à
especialização funcional e à multiplicação de ofícios e agentes para substituir o exercício impossível de um
poder presencial, suprindo as lacunas de informação e comunicação diretas. Eram estes agentes da
administração senhorial, mais do que as câmaras ou os oficiais locais, os principais responsáveis pela
transmissão autorizada das informações a serem processadas, e por isso, os elementos que mais fortemente
pesavam na construção dos processos de decisão do senhorio que afetavam as respetivas comunidades.

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O exercício efetivo do poder sobre o espaço de jurisdição podia ser condicionado pela existência de outras
instituições que se constituíssem como polos políticos, económicos e simbólicos concorrentes ou
alternativos. Era o caso dos concelhos em que os direitos jurisdicionais eram partilhados, ou daqueles onde a
presença de instituições de sociabilidade e apoio social – misericórdias, hospitais, confrarias- adquiriam
particular relevo. Deixemos o primeiro caso, quanto ao outro, era vital que a administração senhorial
demonstrasse capacidade de os integrar e instrumentalizar nas suas logicas políticas. Por norma era o que
acontecia, até porque os seus fundadores e principais patrocinadores tendiam a coincidir com o próprio
donatário da terra o que, naturalmente, se refletia na composição social dos membros das mesas quando
não menos na intervenção direta nos despachos correntes.

Os atos de liberalidade constituíam instrumentos de exercício de autoridade muitas vezes mais eficientes do
que a imposição forçada de comportamentos. Manifestavam-se não apenas na criação de instituições de
caridade, como na dispensa de esmolas e apoios aos mais desfavorecidos: dotes para casamento a órfãos,
bolsas de estudo para as diversas universidades do reino, participação nos dotes para entrada para os
territórios de além-mar (em que a Índia assumia destaque).

Os ganhos deste tipo de práticas e rotinas da administração senhorial não eram desde logo evidentes para as
populações. Pelo contrário, a maior parte receava a perda de autonomia política e os abusos e prepotências
senhoriais, que, deve dizer-se, também ocorriam com relativa frequência. A resistência de concelhos
realengos à possibilidade de integrar senhorios particulares aí está para o recordar, do que expressivamente
se fez eco D. Afonso V, na segunda metade do século XV, a propósito dos rumores da doação de Ponte de
Lima ao então arcebispo de Braga, D. Fernando da Guerra.

A doação de jurisdições por parte da coroa implicava muitas vezes a dada de ofícios de justiça e fazenda.
Quer isto dizer que os donatários das terras dispunham do poder de nomeação dos ofícios locais. O efetivo
exercício deste direito pressupunha naturalmente um conhecimento profundo do universo social concelhio
já que os eleitos ou nomeados deviam preencher os requisitos sociais previstos nas Ordenações e se
constituíam, uma vez empossados, nos agentes políticos a administrativos da comunidade. Ou seja, deviam
simultaneamente fazer respeitar os usos e costumes locais, mas também garantir a aplicação dos direitos de
jurisdição senhoriais.

No caso da Casa de Bragança, a partir da documentação notarial de Vila Viçosa é possível reconstituir as
origens geográficas de parte da criadagem ducal. Estas revelam que muitos dos seus residentes eram
naturais de terras do senhorio. E, mais do que identificação de migrações familiares maciças, permitem
apreender a presença em Vila Viçosa de elementos de grupos familiares de forte implantação nos concelhos
brigantinos. Por outro lado, o teor dos contratos realizados revela a permanência de relações entre essas
pessoas e os núcleos sociais de onde eram originários, o que virtualmente os transformaria em potenciais

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agentes de difusão de informação e influência bilateral. Colaboravam na imposição da disciplina senhorial


com possíveis contrapartidas na capacidade de sacar e fazer atribuir mercês e benesses da casa.

Poderes Jurisdicionais.

Desde logo as câmaras eram eleitas pela e de entre a nobreza das terras, mas confirmadas pelos donatários.
Os procedimentos a respeitar para a eleição estavam consignados nas Ordenações. Talvez se possa
acrescentar que, pelo menos, em alguns concelhos, entre os quais pertencentes à casa de Bragança, se
seguia uma metodologia diferente. Em vez de se fazer a eleição por pelouros, fazia-se por favas, segundo um
regimento próprio. Os Braganças usufruíam de um privilégio que permitia que essas mesmas eleições por
favas não respeitassem a forma ordinária das Ordenações. Implicava, na prática que o processo eleitoral se
realizasse com efeitos muito superiores aos dos prazos trienais (fala-se de dez anos), dando azo a possíveis
repetições de mandatos de vereadores com intervalos cronológicos inferiores a três anos.

Estas disposições eram muito polémicas e razoavelmente mal aceites pelas populações, pelo menos, a
atender ao pedido que Barcelos, apoiada por outras terras do reino, fez cortes, em 1563, para conformar a
eleição dos oficiais da câmara às Ordenações, largando o «regimento das favas».

Se as queixas dos eleitos demonstram algum desinteresse pelo desempenho dos ofícios camarários (ou pelo
menos pelo seu exercício nestas condições), todo o processo parece revelar modalidades mais pesadas, mais
discricionárias nas práticas senhoriais para a seleção dos membros da vereação. Atentatórias, portanto, das
liberdades e autonomia das comunidades, mas elucidativas quanto à efetividade dos direitos senhoriais.

A referida nomeação dos oficiais locais era uma outra área de exercício formal do poder e onde de mais de
perto se jogava com os interesses das populações. Não só porque representava a escolha dos principais
elementos para a futura administração concelhia, mas porque, de forma indireta, permitia uma intervenção
senhorial na organização hierárquica do espaço local. A escolha destes oficiais mais do que poder
económico, conferia, ou confirmava, poder social e simbólico.

Ao decidir sobre os nomes, a casa imiscuía-se diretamente nas lógicas de reprodução dos grupos aí
dominantes. Daí que as modalidades de concessão de ofícios (propriedade, titularidade em vida ou
serventia) não fossem deste prisma, inocentes. Aceitar a sucessão hereditária era manifestar apoio a
determinado grupo local; nomear um estranho ao oficio podia representar reconhecimento de processos de
ascensão social na comunidade ou, simplesmente, vontade de quebrar hegemonias locais.

É verdade que às vezes estes ofícios eram concedidos a título de satisfação de serviços ou pagamento de
dívidas de natureza vária, o que admitia a eventualidade de recaírem sobre estranhos às terras. Eram
promessas que assumiam a forma de alvarás de lembrança de ofício da justiça ou fazenda, para quando
algum deles vagasse.

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Mas, a casa também se podia fazer pagar pela dada de um ofício. A satisfação de serviços podia, ainda,
revestir outras modalidades como seja outorgar determinado oficio como dote a quem casasse com a filha,
irmã ou qualquer herdeira do seu titular. Este tipo de transferência de ofícios era muito corrente, diria
mesmo banal. Implícito estava, todavia, o direito à transmissão do ofício por herança.

O relevo social e económico destes ofícios era, de qualquer das formas, muito diferenciado. Nos casos dos
municípios de maior dimensão e maior densidade demográfica constituíam cargos de inegável valor, mas
nos pequenos concelhos podiam ser, deste ponto de vista, quase desprezíveis. Assim se explica que a par de
proliferação de cargos idênticos em terras como Bragança, Chaves, Vila Viçosa, Melgaço, por exemplo,
ocorram acumulação de cargos em comunidades diminutas.

Outra significativa estrutura formal no exercício do poder ao nível concelhio era o juiz de fora. António
Manuel Hespanha refere, para 1640, parte significativa destes magistrados sediavam em municípios
senhoriais. Dos 79 que foram identificados pela fonte citada, treze eram nomeados pela coroa de Bragança
(16%) e alguns onde exerciam os ofícios em terras senhoriais ou do mestrado de ordens militares ( por ex.
Aveiro, Montemor-o-Novo e Torres Vedras da casa de Aveiro; Alcácer do Sal, Palmela e Aldeia Galega do
mestrado de Santiago.

Estes dados corroboram o afirmado sobre as limitações deste instrumento de atuação do poder régio, são
ainda altamente significativos no que se refere à vitalidade do poder senhorial.

Ou seja, os argumentos para defender a ideia do juiz de fora enquanto instrumento de reforço do poder real
tinham como pilares não apenas o facto de constituir um cargo comissarial, mas o da obrigatoriedade de
formação académica especifica o que os transformaria em veículos preferenciais dos diversos usos e
costumes locais. Ora a utilização dessa figura por parte dos senhorios permite sugerir novas configurações a
esse instituto. Apontem-se, antes de mais, os factos retomando novamente o exemplo da casa de Bragança:
a maior parte dos juízes de fora em concelhos da casa foram diretamente solicitados à monarquia logo no
início da segunda metade do século XVI (Bragança, Chaves e Barcelos em 1549; Vila Viçosa em 1551;
Monsaraz em 1567; Arraiolos, Borba e Alter do Chão em 1567), vincando-se bem que se chamariam «juízes
de fora pelo dito Duque». Por outro lado, só na carta régia que outorgou o juiz de fora a Vila Viçosa se faz
expressa menção da exigência de frequência universitária.

O duque obtivera, em 1553, autorização para todos os juízes de fora poderem servir por mais um ano para
além dos três fixados pelas Ordenações, recuando a residência para o final dos mandatos de quatro anos, e
esse controlo ao exercício do cargo competia aos ouvidores da casa. Em vez de agentes da coroa surgem
como agentes dos donatários. Eram eles quem os escolhia e pagava e, segundo o duque de Bragança, muito
bem. Nas lógicas ideológicas de então, era fundamental para os donatários que a justiça e, portanto, o bom
governo, se exercesse com eficácia e opinião favorável das comunidades visadas.

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Controlo da participação Política das Terras: Os procuradores dos Conselhos Senhoriais em Cortes

O desempenho dos procuradores dos concelhos senhoriais em cortes apreende-se, não apenas através dos
conteúdos dos capítulos gerais e especiais apresentados, mas também pelo perfil dos procuradores
selecionados. Estes saíam usualmente da gente da governança das terras e revelam uma apreciável
estabilidade nos grupos onde se processa o seu recrutamento.

No caso das vilas do ducado de Bragança as reuniões para a eleição dos procuradores se faziam na presença
do juiz ordinário ou juiz de fora, vereadores, procuradores da casa, moradores do concelho, e tabelião.
Aparentemente, nas decisões gerais o peso do titular do senhorio influía nos processos de decisão dos
procuradores do seus concelhos.

Poderes senhoriais/poderes regionais: hipótese falhadas de estruturação de poderes à escala regional

A configuração territorial das jurisdições senhoriais também proporcionava comportamentos e expetativas


diferenciadas no que respeita aos demais poderes com implantação jurisdicional. Ou seja, exerciam
influências e poderes no próprio âmbito regional. Assim parece, por exemplo, que se podem interpretar os
longos, múltiplos e acérrimos conflitos que atravessaram boa parte do século XV e XVI entre a casa de
Bragança e o arcebispo de Braga.

A jurisdição eclesiástica da arquidiocese bracarense entendia-se, então, pelas províncias de Entre-Douro e


Minho (exceção feita à administração eclesiástica de Valença) e Trás-os-Montes, cobrando nesses territórios,
para além das dízimas, uma pluralidade de rendas oriundas quer das dádivas e foros das igrejas quer dos
legados testamentários ou dos seus bens patrimoniais.

Por sua vez, os duques de Bragança detinham jurisdições, rendas e direitos de padroado sobre as extensas
ouvidorias de Bragança e Barcelos, e os condes, depois marqueses, de Vila Real eram donatários desse
importante concelho.

As causas das querelas foram múltiplas. Incidiram, sobretudo sobre perceção de rendas, dilucidação da
posse de direitos de padroado e autorização para instalação de uma igreja colegiada em Barcelos. Em
princípio quase todos eles, quer o arcebispo, quer o duque intercederam e apoiaram aqueles que
pertenciam (ou que pretendiam que pertencessem) ao seu núcleo de dependentes.

O poder que se disputava não era a sentença favorável sobre este ou aquele aspeto concreto, mas a
influência e o reconhecimento da capacidade de «mando» sobre um mesmo território. Se a casa de
Bragança podia jogar com as fidelidades e dependências estruturadas em torno das alianças familiares (não
apenas as suas ou do seus parentes consanguíneos, mas também as das sua redes clientelares), o arcebispo

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acenava, ou ameaçava, com os poderes de excomunhão, o peso do divino e as cumplicidades institucionais.


Os poderes de ambos equivaliam-se muito, o que talvez ajude a explicar a multiplicidade de formas e
duração do antagonismo.

A capacidade de intervir regionalmente, para além das fronteiras do senhorio jurisdicional pode ser detetada
por outros episódios, nomeadamente, por ocasião dos levantamentos fiscais da década de 1630. O duque de
Bragança foi fundamental no apaziguamento das tensões, não apenas nas suas terras, mas nos próprios
levantamentos de Évora. O prestígio social, o papel político e as redes sociais da casa demonstraram assim
as possibilidades de controlo sobre as áreas significativas da província de Entre Tejo e Guadiana.

A fundamentação desta perspetiva, da existência de poderes com expressão regional clara, não deixa de ser
impressionista. Parece, todavia, poder constituir um tópico pertinente de abordagem para futuras
investigações. Supõe-se que a extinção de grandes casas senhoriais com importante implantação regional
como a de Marialva no início do século XVI, Bragança em 1640, a de Vila Real logo a seguir, marcou o
desaparecimento de poderes com forte implantação regional. O poder passou a exercer-se com uma base
espacial claramente circunscrita, não conseguindo consolidar estruturas de poder minimamente
formalizadas a nível intermédio.

4. O Declínio do Poder Senhorial: Câmaras e Donatários (1640-1832)

O tema do poder senhorial no período moderno constituiu, de alguma maneira, uma redescoberta da
historiografia recente. De facto, na esteira de Alexandre Herculano, considerava-se correntemente que «no
165
século XV, o elemento monárquico foi anulando os elementos aristocráticos e democrático» , quer dizer,
os poderes senhoriais e aristocráticos.

António Manuel Hespanha (1986), embora reconhecendo algumas das suas limitações institucionais,
realçava a significativa extensão do poder senhorial em meados de Seiscentos e, ao mesmo tempo, a sua
importância enquanto elemento constitutivo da matriz fundamental do sistema de poder do Antigo Regime.

Qual a importância das clientelas senhoriais no período da dinastia de Bragança. De resto, a casa então
elevada à realeza bem poderia funcionar, na fase antecedente à sua entronização, como um exemplo
paradigmático.

É preciso, contudo, clarificar o conceito de clientelas na medida em que acaba por inviabilizar o
estabelecimento de uma hierarquia clara de importância entre diferentes relações. Aceitemos uma
definição: «Uma relação do tipo patrono-cliente, por um lado, é uma troca pessoal e direta na qual um

165
A. Herculano «Cartas sobre História de Portugal» (1842), in Jorge Custódio et al. (org.), Opúsculos, IV Lisboa, 1985, p. 231.

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patrono usa os recursos de patrocinato que possui ou controla em favor dos seus clientes (…) a clientela, por
outro lado, é a lealdade e o serviço que um cliente deve ao seu patrono em troca da sua proteção (…): um
patrono é o superior e o cliente o inferior numa relação desigual, vertical e recíproca». 166

Assim no período estudado, dever-se-iam distinguir as relações clientelares no universo político da corte, as
clientelas da grande nobreza, as clientelas propiamente senhoriais e as relações de dependência nascidas da
propriedade e outros dispositivos locais.

O balanço que aqui se propõe é claro: as primeiras tiveram uma importância variável mas indiscutível; as
segundas, pesaram sobretudo quando se confundiram com as primeiras; as terceiras registaram um
indiscutível declínio; e, por fim as últimas foram decisivamente relevantes, mas geralmente em favor de
quem residia localmente e aí controlava recurso, sem nenhum vínculo com o centro (através da corte ou dos
senhores).

Considerando uma dimensão tripartida «patrono-intermediário-cliente», enquanto vínculo entre o central e


o local, pode-se falar a partir dos finais de Seiscentos no enfraquecimento de todas as clientelas englobando
vastas redes provinciais conectadas com o centro, para lá dos canais de comunicação oficiais dos
magistrados da coroa.

As revoltas, depois das que ocorreram no contexto das invasões francesas, a mais notória e articulada
mobilização política das províncias, expressa no miguelismo a partir de 1826, repousava nas redes de
medianeiros institucionais locais (nas ordenanças, sobretudo) e era liderada por elites da província que de
modo nenhum se confundiam com os donatários senhoriais da coroa.

A evolução da extensão das jurisdicionais senhoriais, antes apresentada, fornece-nos um primeiro e


relevante indicador. Entre meados do século XVII e o início do século XIX mais de 40% dos concelhos
portugueses mudaram de senhorio, tendo a coroa, no último desses registos, uma posição claramente
maioritária.

A espetacular quebra do número de senhorios leigos e a incorporação formal de quase todos os senhorios
das ordens militares beneficiou também largamente as casas da família real com administração autónoma
(Bragança, Rainhas, Infantado e, por algum tempo, da Princesa). O número de senhorios eclesiásticos
manteve-se quase estável, enquanto o dos senhorios leigos diminui para menos de metade.

Embora, em contraste com o que se verifica em relação ao poder medieval, sejam escassas as monografias
disponíveis onde se analise com detalhe o exercício concreto dos poderes senhoriais, interessa ponderar se
todos os tipos de instituições senhoriais se empenhavam igualmente na efetivação dos seus poderes e, em
que contexto esse esforço era maior e podia ser mais bem-sucedido.

166
Sharon Kettering, «The Historical Development of Political Clientelism», Journal of Interdisciplinary History, vol. XVIII, nº 3 1988, p. 425.

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O valor relativo dos rendimentos que as casas tiravam das terras do seu senhorio e, ainda, com a
composição daqueles. Naturalmente, as entidades senhoriais propendiam a empenhar-se mais no exercício
dos mecanismos de controlo senhorial naqueles concelhos donde lhes provinha maiores rendimentos. Por
outro lado, era mais difícil constituir redes de influência e clientelas em povoações onde apenas se cobravam
direitos, do que naquelas onde se possuía a «propriedade plena» da terra. De facto, os foreiros ou
reguengueiros, possuindo uma relação estável e geralmente hereditária de posse da terra, eram muito mais
independentes face ao senhor do que aos trabalhadores ou rendeiros.

Os numerosos movimentos de resistência ao pagamento de direitos senhoriais, ocorridos com mais


frequência depois de meados de Setecentos nas zonas onde os direitos senhoriais eram pesados aí estão
para o provar.

Quanto às características das diferentes instituições senhoriais, iniciemos pelas casas da família real com a
administração separada, cujos traços gerais tendem a confluir no sentido de se atribuir pouca autonomia
política e administrativa a essas instituições. Desde logo, pela vocação que presidiu à sua instituição, a qual
impediu que se independentizassem, e que fez com que em dados momentos os respetivos rendimentos
fossem contabilizados nas receitas do Estado. Depois porque os ofícios honoráveis nessas instituições eram
atribuídos às mesmas categorias nobiliárquicas abrangidas pela casa real, integrando-se todos eles no
sistema da sociedade de corte portuguesa, e sendo remunerados os respetivos serviços, como os restantes
prestados à coroa, em bens da coroa e ordens. Finalmente porque as instâncias administrativas e
jurisdicionais superiores destas casas (juntas) eram, para quase todos os efeitos, reputadas de tribunais
régios, fazendo-se as carreiras dos respetivos magistrados, pelo que se conhece, indistintamente na
administração central da coroa e nas diversas casas da família real.

Porem, se a autonomia política administrativa e, até, simbólica das casas da família real em relação à coroa
era pouco significativa, importa não perder de vista que aquelas possuíam privilégios excecionais no plano
das jurisdições e uma burocracia numerosa e relativamente eficiente, pelo menos quando comparada com
as das outras instituições. Embora com variações ao longo do período considerado, as casas da família real
gozavam, não apenas das prerrogativas jurisdicionais mais comuns (confirmação das justiças locais e
apresentações de ouvidores) mas ainda do direito a apresentarem muitos juízes de fora (antes mesmo de
1790), da isenção da correição real e de amplos privilégios concedidos às juntas para que em matérias
relativas à administração das suas fazendas.

Além do mais, o essencial do seu património era constituído por bens da coroa, ou seja, por direitos de foral
, foros e dízimos, cuja cobrança as respetivas administrações procuravam garantir.

Em síntese, ser reguengueiro ou foreiro de uma das casa da família real significava ter pela frente um
senhorio, quase sempre, mais eficiente e mais privilegiado do que os demais. Para quem lhes pagava direitos

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senhoriais, estas instituições eram reputadas, muitas vezes, particularmente opressivas. Os conflitos e
petições demonstraram-no cabalmente.

Quanto aos senhores eclesiásticos, deve notar-se que as regras das ordens respetivas, ou outras normas
equivalentes lhe impunham formas de organização da contabilidade, de cobrança direta ou de
arrendamento de bens e, ainda, instâncias de fiscalização muito mais estritas do que aquilo que se verificava
com a generalidade dos senhorios leigos. No entanto, a verdade é que era muito variável a relação existente
entre a origem dos rendimentos e o exercício das jurisdições senhoriais. De facto, a coincidência entre essas
duas dimensões era muito elevada no caso de uma boa parte dos mosteiros cistercienses e de alguns
beneditinos, enquanto a maioria das corporações eclesiásticas não exerciam qualquer tipo de jurisdições,
pois nos finais do Antigo Regime apenas cerca de três dezenas de instituições religiosas as detinham.

Por fim, consideramos os donatários leigos, os quais nos finais do Antigo Regime detinham jurisdições sobre
um pouco menos de um quinto do território. Até ao princípio do século XVIII, era ainda em boa medida a
posse de senhorios com jurisdição o que delimitava o topo da hierarquia nobiliárquica, quer dizer, as casas
cujos representantes tinham assento em cortes pelo Braço da Nobreza. Por isso, a concessão de senhorios
acompanhou geralmente o culminar das mais bem-sucedidas estratégias familiares de mobilidade social
ascendente até esse patamar superior. No entanto, a verdade é que várias das casas que receberam títulos
desde a Restauração nem sequer tinham, nem viriam a ter senhorios, mas apenas outros bens da coroa e
das ordens.

Neste caso a relação entre jurisdição e origem dos rendimentos revela-se muito significativa e é possível
apresentar indicadores quantitativos. Do total de pouco mais de meia centena de casas Grandes que
existiram entre 1750 e 1775, possuímos informações para 43 casas. De entre estas, quase metade não
tinham direito a exercer quaisquer funções jurisdicionais; em média, as ditas casa iam buscar somente 11,7%
das suas rendas a territórios do seu senhorio; apenas em meia dúzia de casos esse valor ultrapassava um
terço das respetivas receitas, e somente em dois ou três casos (Távora, Cadaval e, possivelmente, Aveiro) a
metade.

A quase totalidade das casas que exerciam direitos jurisdicionais recebiam nessa terras direitos de foral, mas
é certo que boa parte delas também aí tinha «propriedade», combinando-se assim as duas dimensões. Um
aspeto social é a organização administrativa das casas cujos senhores eram, com poucas exceções,
absentistas. De facto, grande parte destas não tinha ofícios ou corpos administrativos próprios, o que se
adequava ao modelo prevalecente de arrendamento por grosso da quase totalidade dos seus bens e direito.
Não surpreende assim que o grau de empenhamento da meia centena de senhores jurisdicionais leigos na
concretização das suas prerrogativas fosse bastante limitado, exceção feita nos finais do Antigo Regime, a

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meia dúzia de casas com maior preeminência simbólica, mais rendimento e considerável extensão de
jurisdições em terras onde cobravam direitos pesados.

O direito de confirmação de justiças ou de apuramento de pautas constituía uma das expressões mais
relevantes do senhorio jurisdicional. Era normal que os senhores procurassem controlar politicamente as
câmaras, sobretudo nos concelhos onde recebiam avultadas rendas, para assim garantirem a sua cobrança
sem problemas. Contudo, embora as formas de concretização deste direito variassem de uns casos para os
outros, a verdade é que a sua eficácia do ponto de vista senhorial era duvidosa. Mas ainda, pode-se afirmar
sem hesitações que, na maior parte dos casos, os donatários não conseguiam controlar as câmaras por eles
confirmadas.

Um caso paradigmático é, sem dúvida, o dos coutos de Alcobaça. O mosteiro respetivo dependia
materialmente dos quartos e dízimos que aí se cobrava e lhe forneciam mais de quatro quintos das suas
receitas, tinha uma presença ancestral na zona e o Dom Abade podia presidir diretamente à eleição das
justiças nos coutos. No entanto, o certo é que, se os párocos por ele apresentados lhe eram geralmente fiéis,
as câmaras escapavam ao seu controlo, tendo-se envolvido desde os finais da Idade Média até à grande
rebelião de 1824 em frequentes e prolongados pleitos com o donatário. 167

Eram desde logo as atribuições gerais das câmaras e as formas reguladas pelo direito geral do reino
(Ordenações Filipinas, livro I, tit. 647, art.º II) para a sua eleição e confirmação que se saldavam nessa
frequente ineficácia do direito senhorial de pautar as pautas dos oficiais camaristas. Embora houvesse
exceções à regra, o leque de escolhas dos donatários ou os seus representantes era limitado: tinham de
optar entre os candidatos pautados, e até, por vezes, de justificar porque excluíam os que tinham mais
votos. Os fatores de tensão eram a esse respeito numerosos em toda a parte.

Uma vez confirmados, os juízes e vereações tinham uma legitimidade e uma esfera de jurisdição próprias. Os
donatários não podiam demiti-los. E as câmaras passavam a deter a jurisdição em primeira instância, mesmo
quando decidiam contra os seus senhores. A mesma ineficácia parece, aliás, ter-se verificado quanto ao
direito a apresentar os oficiais das ordenanças. E pelo mesmo motivo, isto é, o facto dos oficiais das
ordenanças, uma vez empossados não poderem ser demitidos pelos donatários.

Pelo contrário, a nomeação dos ouvidores (e dos juízes de fora) fornecia normalmente aos donatários
agentes dedicados. De resto, eram em princípio remunerados pelos senhores, embora, para diminuir as
inerentes despesas, se escolhessem muitas vezes magistrados da coroa, que exerciam as funções de
acumulação. Ainda que nos faltem indicadores fiáveis sobre a concretização deste direito, deve realçar-se
que até tarde existiram ouvidores não letrados. No mesmo sentido a apresentação dos ofícios camarários

167
Cf., entre muitas outras indicações (a começar pelos próprios forais reformados), Iria Gonçalves, O Temporal do Mosteiro de Alcobaça nos séculos
XIV e XV, dissertação de doutoramento (mimeo), Lisboa, 1984 e Nuno G. Monteiro, «Lavradores, frades e forais. Revolução liberal e regime senhorial
na comarca de Alcobaça (1820-1824)», Ler História, nº 4, 1985

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menores (escrivães, juízes dos órfãos, etc.) e eclesiásticos (padroados) fazia-se, ao que tudo indica, de
acordo com critérios relativamente controlados pelos senhores.

Em conclusão, nos finais do Antigo Regime a jurisdição leiga e a eclesiástica era claramente minoritária no
conjunto do território do reino, como, de resto, também nas ilhas e nas colónias. Os referidos direitos eram
exercidos com mais zelo, por algumas grandes casas nobiliárquicas, ou por mosteiros com sede rural. Em
alguns casos, associavam-se com a cobrança de direitos e correspondiam a um esforço para exercer um
efetivo controlo institucional local, mas em outros tinham apenas uma função de prestígio. O senhorio como
fonte de poder e de construção de clientelas tinha, assim, no conjunto do território uma expressão apenas
residual.

Mas convém não esquecer que todas as grandes instituições nobiliárquicas e eclesiásticas tinham de
arrecadar rendas de diverso tipo, dispersas por todo o reino. E a cobrança desses rendimentos tornou-se
cada vez mais difícil, em resultado da crescente oposição das populações tributadas. Foi por isso que,
embora existam antecedentes bem mais remotos, um cada vez maior número de instituições passou a
solicitar o privilégio do juízo privativo em primeira instância nas matérias relativas à cobrança de dadas
rendas ou ao conjunto da sua administração. Coisa que as jurisdições senhoriais não conferiam. No início do
século XIX a maioria das grandes (e muito pequenas) casas religiosas e nobiliárquicas gozavam dessas
prerrogativas.

A multiplicação dos juízes privados reflete, numa parte dos casos, a crescente rebeldia das populações e,
também, a facilidade com que as câmaras se faziam intérpretes da oposição local ao pagamento dos direitos
senhoriais. Porém, em muitos outros, não eram concedidos apenas para a cobrança de determinados
direitos foraleiros, mas sim para todas as dependências da administração de uma instituição. Com a
concessão de juízos privativos associava-se um conjunto de privilégios que permitiam subverter as vias
judiciais ordinárias e melhorar a eficácia na cobrança de rendas e direitos.

No decorrer da primeira revolução liberal (1820-1823), os juízes privativos, efemeramente extintos, foram
objeto de persistentes críticas e petições, ao contrário dos resquícios das jurisdições senhoriais. Esse facto
constituiu, só por si, um conducente testemunho da forma como os mecanismos executivos e a coerção
prevaleciam sobre os demais.

A tributação senhorial mantinha-se com assinável importância. Mas as jurisdições senhoriais tinham de há
168
muito iniciado um irreversível declínio. De acordo com a formulação clássica de Tocqueville , essa

168
Quanto a nobreza possui não apenas privilégios, mas poderes, quando ela governa e administra, os seus direitos particulares podem ser
simultaneamente maiores e menos visíveis. (…) Os nobres tinham privilégios incómodos, possuíam direitos onerosos; mas asseguravam a ordem
pública, distribuíam a justiça, faziam cumprir a lei, socorriam o fraco, dirigiam os assuntos públicos. E à medida que a nobreza deixa de fazer essas
coisas, o peso dos seus privilégios parece maior, e a sua própria existência acaba por já não se compreender», L´Ancien régime et la revolution(1856),
Paris, 1975, p. 95.

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realidade apenas contribuía para acentuar, nas zonas onde eram mais pesados, a contestação ao pagamento
de direitos senhoriais que pareciam cada vez menos legítimos.

5. As Elites Locais

Na sequência de estudos pioneiros, entre os quais avultam os de Joaquim Romero de Magalhães, a história
dos municípios portugueses passou a confundir-se com a análise das oligarquias camarárias. Com efeito, a
vitalidade que se foi reconhecendo aos poderes municipais no Antigo Regime não parece dissociável da
formação desse grupos, «procedentes do estrato dos homens bons que comandam os concelhos e que
depois como escudeiros e cavaleiros vão ter o exclusivo da administração municipal e vão formar já no
século XVIII aquilo que se chama «gente nobre da governança da terra». 169

Esta categoria social, que não se deve confundir com a antiga fidalguia, estaria já configurada em meados de
Seiscentos, pois então não deixaria de constituir de certo modo «uma classe social formada dentro da ordem
ou estado popular e que, pela sua conduta, modo de vida e exercício do governo concelhio, conseguiu ficar
nas bordas da ordem da nobreza».170

As etapas gerais através das quais se foi consagrando nos planos legislativo e institucional essa elitização da
vida camarária foram já identificados. De facto, desempenharam um relevante papel nessa evolução as
progressivas limitações que a própria monarquia foi introduzindo à elegibilidade para as vereações
municipais. Na verdade, as «Ordenações Filipinas (1603, Livro I, tit.67), determinava apenas que a seleção
cabia aos eleitos escolhidos pela reunião da câmara, «homens bons do povo», devendo recair nos «melhores
dos lugares». Tais reuniões teriam lugar de três em três anos, escolhendo-se para cada ano a composição
das câmaras pela via indireta descrita. No entanto, pouco tempo volvido desde a sua difusão, um conjunto
de disposições legislativas modificou as normas definidas nas Ordenações, acentuando a elitização e a
hereditariedade dos ofícios honorários municipais e, simultaneamente, a tutela da sua eleição pelos
magistrados. O conjunto desses preceitos veio, muito mais tarde, a ser reunido no Regimento de 8 de
Janeiro de 1670.

O modelo de eleição que se foi definindo na primeira metade de Seiscentos vigorou, com efeito, ate finais do
Antigo Regime, sem alterações de substância. Incumbia aos corregedores ou ouvidores a escolha de dois ou
três informantes, os quais elaboravam a lista dos elegíveis. Convocavam-se depois os eleitores que votavam,
de entre os arrolados, aqueles que deviam preencher os ofícios municipais (juiz ordinário, quando era o
caso, vereadores, procuradores e, eventualmente, tesoureiros). Todas estas escolhas acabaram por recair

169
Joaquim Romero de Magalhães, «A sociedade portuguesa, séculos XVI-XVIII», in Maria Emília Cordeiro Ferreira (coord.), Reflexões sobre a História
e a Cultura Portuguesa, Lisboa, 1985, p. 151.
170
Idem, O Algarve Económico 1600-1773, Lisboa, 1988, pp. 328 e 348.

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dentro do mesmo círculo, ou seja, «dos mais nobres e da governança da terra», «sem raça alguma». As listas
dos ilegíveis e a relação dos votos eram depois enviadas para confirmação ao Desembargo do Paço, nas
terras da coroa, ou dos senhores, no caso dos concelhos de donatário.

A oligarquização das instituições municipais, como aliás da generalidade das instituições nobilitantes,
constituiu uma característica corrente na Europa moderna. Ou seja, embora ativamente potenciada pelas
estratégias desenvolvidas pelos grupos e famílias residentes nos municípios pelas estratégias desenvolvidas
pelos grupos e famílias residentes nos municípios mais importantes, deve acentuar-se que foi
dedicadamente incentivada pela própria legislação da monarquia.

A cultura política dominante pressupunha que os grupos locais com mais antiguidade e maior nobreza, não
só se mostrassem mais desinteressados no desempenho dos cargos políticos, como vissem a sua autoridade
naturalmente acatada por aqueles a quem tinham de governar e dirigir. De resto, o número relativamente
uniforme de pautados que se verifica de uns concelhos para os outros na mesma comarca, resultava, em
muitos casos, da intervenção dos corregedores, embora aqueles magistrados também pudessem atuar no
sentido de abrir a participação camarária a grupos ilegitimamente dela excluída.

Acrescente-se que o próprio pensamento reformista e, depois, o liberal não colocaram no centro das suas
críticas aos municípios portugueses a denúncia da sua natureza oligárquica. Ao contrário da monarquia
vizinha e também da francesa, entre nós foi «ideia de retirar atribuições às câmaras e de as sujeitar a um
maior controlo por parte dos magistrados da coroa (…) o que parece ter recolhido a unanimidade». Por isso
mesmo, não se figura adequado atribuir à opção centralizadora e, depois, à decisão de suprimir a maior
parte dos concelhos tomados pela revolução liberal triunfante, na sequência de muitos projetos anteriores,
uma inspiração essencialmente antioligárquica.

O problema que a legislação liberal procurou resolver foi o de uniformizar judicial e administrativamente o
reino e de integrar os espaços políticos locais, o que explica, afinal, que tenham sido os municípios mais
pequenos (e menos oligárquicos) aqueles que geralmente se extinguiram.

Como resultado de muitos fatores desenvolvidos ao longo deste trabalho, as «câmaras configuravam talvez
uma categoria institucional, mas não uma comum categoria social»171 , pois diversidade era a marca
dominante na composição das vereações camarárias, como também, nos restantes cargos institucionais
locais. Essa disparidade, aliás, ia muito para além da mera contraposição entre grandes e pequenas câmaras.

Em geral, os ofícios camarários nos pequenos municípios não acrescentavam prestígio nem poder e, como
antes se sugeriu, podiam revelar-se uma fonte de despesa para quem os desempenhava. Inversamente as
grandes câmaras conferiram nobreza e forneciam múltiplos recursos aos oficiais camaristas. Eram por isso

171
Nuno G. Monteiro, «Os concelhos e Comunidades» in História de Portugal, dir. de José Mattoso, vol. IV, O Antigo Regime (1620-1807), coord. de
António Manuel Hespanha, Lisboa, 1993. p. 328.

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preservados por quem não podia ascender a outros patamares mais elevados, e intensamente procurados
por quem pretendia adquirir estatuto social.

Quanto às ordenanças, deve notar-se, por um lado, que os ofícios capitão-mor e de sargento-mor
conferiram sempre nobreza vitalícia, qualquer que fosse a dimensão da capitania, e que, por outro, exigiam
um grande empenho a quem os exercia, pela natureza das tarefas requeridas e pela duração
(indeterminada) do ofício.

Do lado da procura social, deve-se ponderar a complexidade e diversidade da estratificação nobiliárquica


portuguesa abaixo do estatuto da Grandeza e, depois, que aquela não coincidia linearmente com a
hierarquia da riqueza e do rendimento. Havia, por razões históricas conhecidas muito mais fidalguia antiga
no Minho e na Beira Alta e, inversamente, mais riqueza carecida de estatuto nobiliárquico em alguns
concelhos do Douro, da Estremadura e do Alentejo.

Acrescente-se ainda que as mais antigas e ricas casas sediadas na província furtavam-se frequentemente ao
desempenho de cargos municipais, mesmo em concelhos importantes: o seu horizonte era naturalmente, o
serviço da monarquia (no exército, nas conquistas, etc.), tal como a sua área de alianças matrimoniais
transcendia a província de origem.

A cristalização de oligarquias camarárias coincidia geralmente com as famílias sem grandes perspetivas de
mobilidade, enquanto a sua procura intensa correspondia em regra aos grupos em ascensão. Era este
último, possivelmente, o padrão dominante, aos vários níveis, na procura dos ofícios de ordenanças, que
apesar de tenderem para a hereditariedade em alguns casos, eram predominantemente requisitados por
quem buscava estatuto social e influência local.

Embora registassem apreciável diversidade, os pequenos concelhos absorviam no desempenho dos seus
ofícios uma significativa parcela da população masculina nele residente, verificando-se, como se disse, uma
rotatividade no exercício desses ofícios. Possuímos, assim, prova documental da existência de dezenas de
municípios onde os arrolados para os ditos cargos eram na sua quase totalidade (pequenos e médios)
lavradores e até alguns onde tais ofícios eram exercidos por trabalhadores agrícolas.

Quanto aos grande municípios, apesar de ser complexo comparar fortunas com rendimentos (critérios
usados, quase sempre, em alternativa) e da pouca fiabilidade desses indicadores, podem-se destacar
algumas breves ilações desse conjunto.

Desde logo, não encontramos titulares entre os ilegíveis para as câmaras da província, sendo raríssimos os
donatários e comendadores nelas identificados. A mais aristocrática câmara do país (Lisboa não
considerada) é, sem dúvida, a do Porto, onde se arrolam fidalgos da casa real (alguns donatários e
comendadores) cujo rendimento médio anda pelos quatro contos; já não aparece, de resto, nenhuma alusão

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ao conceito de cidadão, tão relevante ainda em Seiscentos. Mas Viseu (cerca de três contos de renda média)
e Lamego (onde se apontam inconcebíveis valores de fortuna média – mais de centena e meia de contos)
vêm logo depois, de acordo com esses dois critérios (nobreza e renda).

De resto, nas câmaras do Douro (Vila Real e Santa Marta, que nem chega a ser sede de comarca) indicam-se
fortunas consideráveis entre os arrolados. Surpreendente, é a composição de Aveiro: câmara de
negociantes, de advogados e até de boticários, com reduzida fortuna, o que talvez se explique por ter sido
durante anos terra de senhorio. E, em parte, o mesmo se aplica Leiria.

Em síntese, mesmo ao nível das sedes de comarca, a diversidade é a marca dominante das elites locais
portuguesa

Conclusões

A relativa uniformidade institucional do espaço político local português do Antigo Regime, em larga medida
herdada do período medieval e das iniciativas da coroa impostas na viragem do século XVI para o século XVI,
consubstanciou-se na cristalização de instituições cujo raio de ação tinha uma dimensão variável mas, em
todo o caso, limitada.

Um espaço político pulverizado, por consequência, onde nunca puderam consagrar-se instituições
supralocais e marcado, ainda, pela acentuada diversidade social das suas elites dirigentes.

A construção do estado moderno, com a inerente vocação para uniformização e para monopolização do
exercício de múltiplas funções antes espacial e institucionalmente disseminadas, nunca se teve de afrontar
em Portugal com interlocutores corporativos de vulto. Mas defrontou-se com a referida pulverização
espacial, e com a sua tradução no plano económico e judicial. Desta forma, não surpreende que os projetos
reformistas dos finais do Antigo Regime tenham dado lugar, com um notório vínculo de continuidade, às
grandes soluções de rutura adotadas pela revolução liberal triunfante: o monopólio judicial das
magistraturas letradas e oficiais, a centralização administrativa e a supressão da maior parte dos concelhos
herdados da Idade Média.

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