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Amor de Perdição

A obra como crónica da mudança social


Se o Amor é o tema central de Amor de perdição — e se concretiza na forma de ideal do
amor ou de amor contrariado —, outros temas e questões sociais ganham especial relevância
na novela, como a noção de honra, as falsas virtudes ou a condição da mulher no início do
século XIX.
Amor de perdição assume-se como uma crónica da vida em sociedade e dos costumes
desta época de mudança social e política na transição do Antigo Regime (Absolutismo) para a
Época Moderna do Liberalismo.
Na narrativa encontramos dois sistemas de valores, ideias e entendimentos do mundo
em confronto:
 por um lado, as noções de honra, de privilégio das classes sociais dominantes, de
autoridade familiar e de (falsa) virtude cristã, associados ao Antigo Regime;
 por outro, os valores de liberdade, igualdade, justiça social, que o Liberalismo e o
Romantismo vêm reivindicar.

As questões sociais são analisadas de forma crítica em Amor de perdição. O narrador


denuncia e satiriza os valores caducos da sociedade antiga (isto é, anterior à Revolução Liberal)
e os comportamentos sociais condenáveis — sobretudo da velha nobreza e do clero —, tais
como a falência da justiça, as práticas dos membros da Igreja (recordem-se as freiras do
convento onde Teresa é encerrada), a noção de autoridade paterna (de Domingos Botelho e de
Tadeu de Albuquerque), cujas contradições são expostas perante os olhos do leitor.

O Capítulo IV é, assim, revelador da transgressão social presente em Amor de Perdição.

A construção do retrato de Teresa apresenta uma jovem:

 perspicaz, pois percebe a hipocrisia social, que potencia a mentira, o engano, a


falsidade;
 determinada em seguir o seu coração, o que a leva a opor-se a seu pai, pois prefere
morrer a casar com o seu primo;
 com grande autodomínio, visto que não chora quando o pai a amaldiçoa;
 insubmissa e desafiadora da lei paterna.

Teresa é rebelde na forma como não segue o caminho que seu pai para si traçou, o que
seria expectável na época, e está confiante na sua crença de casar por amor – sinal da mudança
dos tempos e das convenções sociais da época.

A partir da leitura do capítulo IV na sua globalidade, é possível elencar alguns dos


aspetos que tornam esta obra uma crónica anunciadora da mudança social não só ao nível do
matrimónio. Desta forma:

 apresenta-se uma sociedade em transformação, na qual ecoam os ideais da Revolução


Francesa, de que Simão Botelho se apresenta como defensor;
 critica-se uma sociedade retrógrada e feita de desigualdades, a começar pela
insignificância social da mulher;
 denuncia-se uma sociedade repressora em diferentes quadrantes – social (através da
discriminação de géneros, como já referido); jurídico (com a corrupção da justiça,

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manietada pelos poderosos, como quando Domingos Botelho interfere junto de um
corregedor de forma a obter o perdão para o seu filho Manuel, que tinha desertado do
exército); religioso (com a tirania dos conventos); familiar (através dos casamentos por
conveniência e da autoridade paterna, que era inquestionável);
 apontam-se as contradições entre o ser e o parecer, com a vida dissoluta que reinava
nos conventos;
 valoriza-se o papel do homem enquanto indivíduo que pugna pelos ideais da liberdade,
da dignidade e da honra.

Não podemos deixar de referir que Camilo era particularmente sensível a estes aspetos,
pois também ele foi vítima de uma sociedade opressora, que limita a liberdade de ações dos
indivíduos, impedindo-os de atingirem a felicidade. Há, efetivamente, nesta obra um carácter
revolucionário, com a insubordinação de Teresa, que não aceita casar com quem seu pai lhe
impõe. Desta forma, a Revolução Francesa é trazida para dentro da família.

Linguagem e estilo de Camilo Castelo Branco na obra Amor de Perdição


A linguagem e o estilo de Camilo Castelo Branco na obra Amor de Perdição caracterizam-se
pelos seguintes aspetos:

 Coexistência de uma linguagem culta/erudita ou mesmo retórica em que predominam


os períodos longos, com uma linguagem mais popular, corrente e dinâmica com
períodos curtos, expressões de cariz popular ou castiço;
 O adjetivo é usado com moderação;
 Linguagem adaptada à caracterização das personagens (por exemplo, natural em
Mariana ou João da Cruz, mais cuidada e estilizada em Simão e Teresa);
 Linguagem poética, sobretudo nas cartas;
 Presença de metáforas ao serviço da intensificação dos sentimentos;
 Presença da ironia na crítica social;
 Concisão dos diálogos;
 Uso recorrente de vocabulário do campo semântico de amor, dor, morte, sofrimento;
 Construção frásica com pouca subordinação;
 Relevância do uso expressivo do verbo;
 Utilização do pretérito perfeito e do pretérito imperfeito que permite um relato mais
rápido e conciso.

Narrador
Podemos associar o narrador à figura do autor, que assume ser o sobrinho de Simão
Botelho na frase final da novela: «A última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi Manuel
Botelho, pai do autor deste livro.»
O narrador de Amor de perdição é não participante, ainda assim, não relata a história
de forma imparcial e neutra.
Na verdade, a narração é acompanhada por juízos emitidos sobre as personagens e
sobre a sociedade. O narrador apresenta a sua opinião, tira conclusões sobre episódios da
intriga e desenvolve reflexões e críticas sobre comportamentos sociais. Não raro estas
intervenções assumem a forma de julgamentos morais.

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Em vários momentos, este narrador dirige-se diretamente a um narratário, que ele
designa por «a leitora» ou «o leitor». Desta forma cúmplice, envolve os leitores na avaliação do
mundo e das personagens da intriga e veicula as ideias centrais da obra.

Os diálogos
Os diálogos em Amor de Perdição são ação, pois derivam para os pontos essenciais da
intriga.
Há vários tipos de diálogo com a função de:

 Informar sobre determinadas circunstâncias;


 Fazer a expansão sentimental;
 Permitir a confrontação;
 Comunicar decisões tomadas.

Os diálogos são também importantes na caracterização das personagens porque o


narrador, através deles, transmite as diferentes visões do mundo e as diferentes sensibilidades
dos protagonistas.

São também momentos em que as personagens se expõem e, por isso, revelam-se


situações privilegiadas de caracterização direta e indireta (através de comportamentos, da
linguagem, etc.). Por esse motivo, estão em muitos casos ao serviço da crítica social.

A concentração temporal da ação


A ação da novela é narrada de forma linear, relatando-se os acontecimentos por ordem
cronológica. Há, no entanto, momentos de retrospetiva (analepse), em que se narram
antecedentes da ação. Por exemplo, quando, no Capítulo I, se dá conta de antecedentes da
família de Simão.
Inicialmente os acontecimentos são relatados em ritmo acelerado:
 o Capítulo I dá conta de momentos da história da família ao longo de quatro décadas.
 Os demais capítulos centram-se na vida de Simão Botelho e nos seus amores por
Teresa. Aqui, os acontecimentos espraiam-se por um período de cerca de três anos
(de 1804 a 1807). Como resultado, não há uma proporcionalidade entre o tempo
cronológico e o tempo da narrativa.
Se inicialmente a narração dos acontecimentos é rápida e avança a bom ritmo o relato de
vários acontecimentos, o ritmo abranda quando se trata o conjunto de peripécias relacionadas
com o amor de Simão e Teresa e o comportamento das duas famílias. Mais adiante, perde-se a
noção de tempo quando a narração se concentra na vivência interior desse amor, que é
expressa em cartas e reflexões das personagens.
Neste último momento, encontramos uma evocação dos sentimentos e dos factos
passados pelos dois amantes. O tempo psicológico manifesta-se aqui e traduz-se nos períodos
de reflexão das personagens (quando pensam um no outro) ou na espera de correspondência.

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Construção do herói Romântico
As narrativas e os dramas escritos durante o Romantismo criam a figura do herói
romântico. Em traços gerais, podemos defini-lo como uma personagem que acredita em valores
elevados e «humanos» e se move por ideais grandes e, regra geral, inalcançáveis: o amor, a
justiça, a liberdade, a construção de um mundo melhor, etc.
A grandeza do herói romântico decorre também do facto de entrar em conflito com a
sociedade, numa luta desigual, por recusar as regras e convenções que esta impõe. A rebeldia
termina geralmente em desgraça ou frustração profunda (por exemplo, Carlos de Viagens na
minha terra, de Garrett).
Simão Botelho encarna a figura do herói romântico. Dedica a vida a um amor idealizado
e sem limites, por ele enfrenta a autoridade dos pais e as regras sociais e, por não ser possível
realizá-lo, acaba por morrer.
Mas a elevação de carácter da personagem reside também noutros nobres sentimentos
e atitudes que o animam: a coragem que revela nos seus atos, a determinação, o seu conceito
de honra, o respeito pelos que não são da sua condição social (como Mariana ou João da Cruz).
Por exemplo, é sem hesitação que se entrega à justiça depois de matar Baltasar ou que, no
cárcere, recusa ser tratado com privilégios.
O herói romântico é também uma personagem que se define pelo seu isolamento
existencial: individualista e egocêntrico, Simão distingue-se e demarca-se das demais
personagens e existe num mundo que é só seu e diferente do dos outros homens.
Outro traço de Simão que faz dele um herói romântico é a oposição que se estabelece
entre ele e a sociedade, oposição que evolui para um conflito. A personagem opõe-se com
todas as suas forças às convenções, regras e ideias-feitas da sociedade, mas acaba por sucumbir
nesse ato rebelde e heroico.
Simão contesta desde cedo as práticas sociais e os valores hipócritas e vazios que a
comunidade defende: um falso conceito de honra, a falta de integridade e de carácter, a
falência dos valores humanos e cristãos e dos sentimentos e laços de família. Meneses e
Albuquerques cultivam ódios entre si, os privilegiados sentem-se superiores aos desfavorecidos
e o verdadeiro Amor não encontra espaço para existir nesta sociedade.

Amou, perdeu-se e morreu amando, é a frase que resume a obra:

«Amou, perdeu-se, e morreu amando.»

O amor será a causa da


Simão apaixona-se por Desenlace trágico com
destruição das
Teresa. a morte, por amor.
personagens.

Amor-Paixão:

 Núcleo da ação;
 Sentimento avassalador, febril e egoísta;
 Condição que desperta o desejo de vingança e de conservação da honra;
 Responsável pela sacralização dos amantes, por aproximação com a paixão de Cristo.

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Linguagem, estilo e estrutura:

Narrador Diálogo Tempo Linguagem

Permite a identificação do
estatuto social das
Convoca personagens:
Permite o avanço da Capítulo I – 40 anos
frequentemente o – povo (viva, popular,
ação (antecedentes)
narratário familiar)
– nobreza, burguesia
(cuidada, literária)

Imprime ritmo e
Capítulos I a XX
Tece juízos de valor dinâmica
7 anos (1801-1807)
teatral à narrativa

Flutua entre os Reflete o estatuto


diferentes tipos de Conclusão
social
focalização (predomínio 9 dias
da omnisciência) de quem fala

Relação entre a obra e o autor:

A obra -> O autor

Simão é preso na cadeia da Relação do Porto Camilo é preso na cadeia da Relação


pelo facto de ter assassinado o homem que
se interpunha entre si e Teresa. -> do Porto, no seguimento do seu caso

adúltero com Ana Plácido.

Simão sente-se abandonado por toda a Camilo fica órfão em tenra idade.
->
família.

Simão sente que fez muita gente à sua volta Camilo envolveu-se com várias
desgraçada. -> mulheres

que acabou por abandonar.

Relação entre personagens:

Simão Botelho:
 Forte de compleição, Belo;
 Parecido com a mãe;

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 Estudante de Humanidades, em Coimbra;
 Adepto dos ideais liberais;
 Jovem rebelde e turbulento, que acaba transformado pelo amor que sente por Teresa;
 Tio de Camilo Castelo Branco, com quem mantém algumas semelhanças biográficas (daí
que o subtítulo de Amor de perdição seja “Memórias de uma família”);
 Personagem modelada;
 Com características de anti-herói (arruaceiro, responsável pela morte de Baltasar);
 Homem sensível,
 Corajoso; determinado; digno; responsável e ansioso por liberdade.

A construção deste herói romântico pode ser um reflexo do próprio autor.

Teresa Albuquerque:
 Filha única de Tadeu de Albuquerque;
 Órfã de mãe;
 Fidalga;
 Herdeira de um grande património;
 Bonita,
 Mártir e anjo.

Simão e Teresa são ajudados por João da Cruz e Mariana. Como opositores, surge o pai de
Teresa, Baltasar e os pais de Simão. Contudo, o Destino é o oponente invencível.

Mariana:
 Filha de João da Cruz;
 Jovem do povo;
 Bela e de formas bonitas;
 Mártir e anjo.
Tadeu Albuquerque:
 Fidalgo de Viseu;
 Viúvo;
 Pai de Teresa.
Domingos Botelho:
 Fidalgo de linhagem e um dos mais antigos solarengos de Vila Real;
 Magistrado e corregedor em Viseu.

João da Cruz:
 Mestre ferrador, com oficina perto de Viseu;
 Alberga Simão em sua casa, pois deve a sua liberdade e a sua vida a Domingos Botelho.
Baltasar Coutinho:
 Dalgo de Castro Daire;
 Primo de Tadeu de Albuquerque;
 «refalsado, imagem odiosa, pessoa com absoluta carência de brios».

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