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http://revistacult.uol.com.br/101_tempopassa.htm
É muito comum pensar no tempo como tempo seqüencial, como categoria ordenadora
que organiza os acontecimentos vividos numa direção com passado, presente e futuro,
um tempo irreversível, a flecha do tempo, um tempo que passa. Também estamos
acostumados a pensar na memória como um arquivo que guarda um número
significativo de lembranças, semelhante a um sótão que aloca uma quantidade de
objetos de outros momentos da vida, que lá ficam quietos, guardados, disponíveis para o
momento no qual precisamos deles e queremos reencontrá-los. No entanto, a forma na
qual a psicanálise pensa o tempo e a memória está muito distante desta maneira de
concebê-los. Na psicanálise, tanto o tempo quanto a memória só podem ser
considerados no plural. Há temporalidades diferentes funcionando nas instâncias
psíquicas e a memória não existe de forma simples: é múltipla, registrada em diferentes
variedades de signos.
Há um tempo que passa, marcando com a sua passagem a caducidade dos objetos e a
finitude da vida. A ele Freud se refere no seu curto e belo texto de 1915, “A
transitoriedade”, no qual relata um encontro acontecido dois anos antes, em agosto de
1913, em Dolomitas, na Itália, num passeio pelo campina na companhia de um poeta.
Ambos dialogam sobre o efeito subjetivo que a caducidade do belo produz. Enquanto
para o poeta a alegria pela beleza da natureza se vê obscurecida pela transitoriedade do
belo, para Freud, ao contrário, a duração absoluta não é condição do valor e da
significação para a vida subjetiva. O desejo de eternidade se impõe ao poeta, que se
revolta contra o luto, sendo a antecipação da dor da perda o que obscurece o gozo.
Freud, que está escrevendo este texto sob a influência da Primeira Guerra Mundial,
insiste na importância de fazer o luto dos perdidos renunciando a eles, e na necessidade
de retirar a libido que se investiu nos objetos para ligá-la em substitutos. São os objetos
que passam e, às vezes, agarrar-se a eles nos protege do reconhecimento da própria
finitude. Porém, a guerra e a sua destruição exigem o luto e nos confrontam com a
transitoriedade da vida, o que permite reconhecer a passagem do tempo.
No entanto, no entender de Freud, a nossa atitude perante a morte não implica essa
certeza. Se de um lado aceitamos que a morte é inevitável, quando se trata da própria
morte tentamos matá-la com o silêncio, desmenti-la, reduzi-la de necessidade à
contingência. “No inconsciente, cada um de nós está convicto de sua imortalidade”,
afirma Freud, em De guerra e morte. Temas de atualidade. Nada do pulsional solicita a
crença da própria morte. Esta só se constrói secundariamente, a partir da morte dos
próximos, da dor e da culpa pela mesma. Nem a própria morte nem a passagem do
tempo têm registro no inconsciente, afirma Freud.
O tempo do inconsciente não é um tempo que passa, é um “outro tempo”, o tempo da
“mistura dos tempos”, o tempo do “só depois”, o “tempo da ressignificação”.
A forma na qual se constroem as lembranças nos mostra isso, assim o explicita Freud
em um texto de 1899: “As lembranças encobridoras”, valendo-se de um exemplo que,
embora não revele no texto, é uma lembrança dele mesmo que surge durante umas
férias de sua adolescência. Quando Freud tinha 16 anos viajara para Freiberg, sua
cidade natal, sendo este o primeiro retorno desde a sua infância. Nesta ocasião, vive
uma paixão por Gisela, a primogênita da família que o hospeda. Trata-se de um
momento no qual, para Freud, os projetos de futuro estão em jogo: a sobrevivência
econômica e o amor. Nesse momento, surge nele uma lembrança infantil: três crianças,
entre elas ele mesmo, brincam e colhem flores numa campina verde e coberta de flores
amarelas. Formam ramos de flores e os meninos arrancam o que está nas mãos da
menina por ser o mais lindo. Ela corre, chorando, até uma camponesa que lhe oferece,
para seu consolo, um pedaço de pão. Eles vão também atrás de um pedaço de pão que a
camponesa lhes entrega. Nesta lembrança dois detalhes se destacam: a força do amarelo
das flores e o sabor do pão, tão acentuados que beiram à alucinação.
Mas não é um tipo especial de lembrança que nos interessa e sim a dinâmica psíquica
que nela se põe em jogo e que pode ser estendida à construção das fantasias e ao
funcionamento geral da realidade psíquica. Neste funcionamento, a memória não é
única nem fixa, ao contrario, as lembranças vão sendo construídas num processo de
retranscrição. Freud inaugura uma teoria da memória ao afirmar que o material das
marcas mnêmicas reordena-se de tempos em tempos, formando novos nexos. Na
constituição da lembrança há, portanto, uma mistura de tempos. Os tempos não mantêm
uma cronologia, passado, presente e futuro se misturam, se confundem. A lembrança
infantil é como um quadro. O espaço do enquadramento é dado pelo próprio texto da
lembrança, no qual se combinam traços. Traços que revelam as marcas de erotização e
também os processos de luto vividos que deixaram as marcas do objeto ausente. Ou
seja, há um passado que se cria e se recria em novas articulações.
A historia de um sujeito não é, portanto, uma linha reta, mas é traçada por pontos de
condensação nos quais as tramas do vivido se entrecruzam e pulsam, forçando a
presença do passado no atual, resistindo a qualquer linearidade cronológica e
construindo uma realidade psíquica que não coincide totalmente com a realidade
material.
Nesse “outro tempo” que não respeita a cronologia, nesse tempo do só depois, há
movimento - que retranscreve, que articula novos nexos, rearticula as inscrições do
vivido - construindo sonhos no dormir, fantasias e pensamentos na vigília. Há
movimento das dimensões pulsionais e desejantes que, misturando os tempos, produz
novos sentidos. O tempo não passa no sentido do tempo seqüencial, em uma direção
irreversível, mas, na mistura dos tempos, as marcas mnêmicas nas mãos do “processo
primário” condensam-se, deslocam-se e criam novos sentidos.
Mas há também, no psiquismo, uma outra relação entre passado e presente na qual o
après-coup parece não operar mais, a imobilidade impera, assim como “eterno retorno
do mesmo”, como mera insistência pulsional, fazendo do passado um destino. “Neurose
de destino”, dirá Freud. No funcionamento da compulsão de repetição, o pulsional mais
puro, sem possibilidade de representação, se encarna no atual, se apossa dele como
sombra vampiresca e, no fora da linguagem, perde-se qualquer possibilidade de fazer o
luto, de transformar a perda em ausência. Nessa presença da pulsão pura, a expressão “o
tempo não passa” ganha toda a sua força.
Referências bibliográficas
PONTALIS, J. B. (2005). Este tiempo que no pasa. Topia editorial. Buenos Aires.