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DIREÇÃO CIENTÍFICA E ORGANIZAÇÃO

Paulo Mendes Pinto

PREFÁCIO
Jaime Ramos

EDIÇÃO
Rui A. Costa Oliveira

AUTORES
António Faria
João Ferreira Dias
Luís Ferreira Rodrigues
Maria José Rijo
Mariana Bernardo Nunes
Mariana Vital
Paulo Mendes Pinto
Rui Lomelino de Freitas
Sofia Sousa Claro

TEMPLO ECUMÉNICO UNIVERSALISTA


Título
Religare - Religiões e Tradições Espirituais do Mundo

Direção Científica e Organização


Paulo Mendes Pinto

Edição
Rui A. Costa Oliveira

Autores
António Faria
João Ferreira Dias
Luís Ferreira Rodrigues
Maria José Rijo
Mariana Bernardo Nunes
Mariana Vital
Paulo Mendes Pinto
Rui Lomelino de Freitas
Sofia Sousa Claro

Composição, Design Gráfico e Paginação


Tiago Moderno

Impressão
Gráfica Mirancorvo, Lda

ISBN
978-989-99798-4-0

Depósito legal

© 2022 Fundação ADFP - Assistência, Desenvolvimento e Formação


Profissional. Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.
ÍNDICE

Prefácio ..................................................................................................... 1
Jaime Ramos

O Templo Ecuménico Universalista e o Observatório das Religiões .. 5


Paulo Mendes Pinto

Cosmovisões originárias da Ásia

Hinduísmo ................................................................................................. 21
António Faria

Xintoísmo .................................................................................................. 35
Mariana Bernardo Nunes

Jainismo .................................................................................................... 51
António Faria

Budismo .................................................................................................... 65
Paulo Mendes Pinto

Confucionismo ......................................................................................... 79
Mariana Bernardo Nunes

Daoísmo [Taoísmo] .................................................................................. 91


António Faria

Siquismo ................................................................................................... 103


Maria José Rijo

Cosmovisões de Origem Mediterrânica


(Médio Oriente/Europa/América)

Paganismo ................................................................................................ 115


Mariana Vital
Judaísmo ................................................................................................... 129
Paulo Mendes Pinto

Zoroastrismo ............................................................................................ 157


Mariana Vital

Cristianismo ............................................................................................. 169


Paulo Mendes Pinto

Islão ........................................................................................................... 217


Paulo Mendes Pinto

Fé Bahá’í ................................................................................................... 233


Paulo Mendes Pinto

Ateísmo ..................................................................................................... 249


Luís Ferreira Rodrigues

Cosmovisões de Raiz Africana

Orixás ........................................................................................................ 267


João Ferreira Dias

Cronologia

Momentos para uma História das Religiões ......................................... 279


APRESENTAÇÕES DOS AUTORES

Paulo Mendes Pinto (Diretor científico e organizador)

Trabalha fundamentalmente no campo do diálogo entre e com as religiões, no


desenvolvimento de projetos que liguem a cultura sobre as religiões, a cidada-
nia e a escola.
Doutor em Estudos Culturais (Un. de Aveiro) e Mestre em História e Cultura
Pré-Clássica (Un. de Lisboa), é especialista em História das Religiões com tra-
balho sobretudo sobre Mitologia Antiga e Estudos Judaicos. Dirige a área de
Ciência das Religiões na Universidade Lusófona desde 2006, onde dirigiu a
Licenciatura e o Mestrado homónimos.
Foi Embaixador do Parlamento Mundial das Religiões (2015-18) e fundador da
European Academy for Religions (2017).
É Diretor-Geral Académico do Ensino Lusófona – Brasil e membro do Conse-
lho Superior Académico do Ensino Lusófona.

António Faria

Licenciado em Ciência das Religiões pela Universidade Lusófona de Humani-


dades e Tecnologias; Pós-graduado em Filosofia pela Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa; Pós-graduado em Ciência das Religiões pela Univer-
sidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
Foi docente das cadeiras no âmbito das Religiões e das Espiritualidades da
Ásia, quer na Licenciatura, quer nas Pós-Graduações na área de Ciência das
Religiões na Un. Lusófona. É o Coordenador da Linha de Investigação em Cos-
movisões da Ásia na área de Ciência das Religiões na Universidade Lusófona.

João Ferreira Dias

Doutorado em Estudos Africanos pelo ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa


(2016) e Mestre em História e Cultura das Religiões pela Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa (2011), possuindo vários cursos de especialização,
nomeadamente Estudos Afro-Latino-Americanos pela Universidade de Har-
vard (2021), o curso de Direitos Humanos e Direito Humanitário em Perspec-
tiva (2020) pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e o de
Inserção Internacional e Política Externa do Brasil (2008) pela Universidade
de Lisboa.
Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE e Investigador-As-
sociado do Centro de História da Universidade de Lisboa. É, também, Vice-
-Presidente da Comunidade Portuguesa do Candomblé Yorùbá (CPCY).
Atuou como docente de Religiões Africanas na Licenciatura em Ciência das
Religiões da Universidade Lusófona de Lisboa, e docente-convidado na Unida-
de Curricular de Religiões Africanas na Licenciatura em Estudos Africanos, da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Luís Ferreira Rodrigues

Nasceu em 1976, no Barreiro. Licenciado em Arquitectura do Planeamento


Urbano e Territorial e mestre em Ordenamento do Território e Planeamento
Ambiental, desenvolve a sua atividade profissional como urbanista em Lisboa.
Dedica-se ainda ao estudo de história, arte e ciência das religiões, sendo autor
dos livros Open Questions: Diverse Thinkers Discuss God, Religion & Faith
(ABC-CLIO, 2010), História do Ateísmo em Portugal (Guerra & Paz, 2010),
Manual de Crimes Urbanísticos (Guerra & Paz, 1.ª edição, 2011) e A Ponte
Inevitável (Guerra & Paz, 2016).

Maria José Rijo

Licenciada em Filosofia (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Uni-


versidade Nova de Lisboa) e Mestre em Ensino da Filosofia (Universidade da
Beira Interior). Foi professora do ensino secundário durante vários anos, tempo
em que continuou a aprofundar os seus interesses nos campos das espiritualida-
des, da mística, da literatura e das suas relações com o pensamento filosófico.
Na Câmara Municipal de Oeiras, onde coordena a Livraria-Galeria Ver-
ney, continuou a desenvolver projetos no domínio da Filosofia, nomeadamente
a Filosofia com Crianças, iniciativa que implementou nesta autarquia, e no da
multiculturalidade e do diálogo com as religiões.
Mariana Bernardo Nunes

Mestre em Ciência das Religiões pela Universidade Lusófona de Humanidades


e Tecnologias com uma dissertação Shintō, rituais e purificação: o indivíduo
no ciclo de desordem e ordem (2018). É Licenciada em Estudos Asiáticos pela
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2012-2015) onde aprendeu ja-
ponês. O seu desejo de conhecer a cultura e as tradições espirituais e religiosos
do Japão levou-a viajar para o Japão no Outono de 2017, contactando com as
tradições “espirituais”, em particular o shintō (xintoísmo), que permanece até
aos dias de hoje muito estimado pelos japoneses.

Maria Vital

Mariana Vital é formada em Ciências da Educação pela Universidade de Lisboa


e do seu interesse em Educação Intercultural nasceu a ambição do Diálogo In-
ter-religioso e da Liberdade Religiosa enquanto metas e projetos.
É membro fundador do Observatório para a Liberdade Religiosa, tendo inicia-
do o Grupo de Estudos do Paganismo em Portugal, ambos sediados na Univer-
sidade Lusófona.
Participa e colabora ativamente nas comunidades pagãs integrando projetos in-
ternacionais como Council of Near Eastern Pagan Traditions, o Pagan Heathen
Symposium; e nacionais como Conselho de Antigas Religiões e Cultos da Ibé-
ria e o Templo de Inanna e Astarté.

Rui A. Costa Oliveira

Natural da Beira Interior (Tortosendo-Covilhã), tem licenciatura e mestrado


em Ciência das Religiões, pela Faculdade de Ciência Política, Lusofonia e Re-
lações Internacionais da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnolo-
gias (Lisboa) e é doutorado em Estudos de Cultura, pela Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, onde defendeu tese – O projeto «Portugal» e as
relações Estado-Religião à luz da metáfora conjugal – e fez pós-graduação
em Técnicas Editoriais. Algum do seu trabalho de investigação – publicado e
também disperso em colaboração diversa – privilegia o enfoque de temáticas de
natureza sócio-político-religiosa, mantendo colaboração vincular com o CLE-
PUL – Centro de Literaturas e Cultura Lusófonas e Europeias da FLUL, com
o Centro de Ciência das Religiões da ULHT e com a CEG/UAb – Centro de
Estudos Globais da Universidade Aberta.

Rui Lomelino de Freitas

Mestre em Ciência das Religiões pela Universidade Lusófona, com dissertação


dedicada ao estudo dos Manifestos Rosacruzes do séc. XVII. É Investigador
na Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona (ULHT), docente
no Mestrado em Ciência das Religiões da mesma universidade e Membro da
European Society for the Study of Western Esoteriscism (ESSWE).
É autor de dezenas de trabalhos, entre conferências, livros e artigos em revistas
científicas, sobre temas como: Hermetismo e Rosacruz; Manifestos Rosacru-
zes; Estudos Académicos em Esoterismo Ocidental; Sintra Mágica; Templários
e o Graal; Os textos gnósticos de Nag Hammadi; Priscilianismo, Catarismo; A
Lenda de Hiram Abbif e a Iniciação Maçónica; a Franco-Maçonaria; a Antro-
posofia de Rudolf Steiner, G.R.S Mead e a Gnose no séc. XX.

Sofia Sousa Claro

Licenciada e mestranda em Ciência das Religiões pela Universidade Lusófona


de Humanidades e Tecnologia de Lisboa. Áreas de Investigação: História com-
parada da mitologia, dos símbolos, de religiões antigas (xamanismo, animismo,
entre outras). Mitos de criação na mitologia antiga, mais especificamente, As-
sírio-babilónica.
É Cantora e Compositora – UDJAT Ensemble, desde 2015. Cantora lírica e
de world music experimental, explora melodias onde encontra a sua própria
linguagem, inspirada nos Mitos de Criação, história antiga e religiões antigas.
A sua formação em Ciência das Religiões é uma forte inspiração na sua lingua-
gem como Cantora.
PREFÁCIO

Jaime Ramos

Do Mistério da Vida à Fraternidade

dom da Vida coloca-nos perante a angústia de, perante o conhecimento


O e as especulações científicas, desconhecermos o Mistério que a cria, e a
mantém, para além da nossa Morte.
As religiões surgiram quando se enterrou o primeiro Homo com preocupações
espirituais, admitindo uma vida extracorpórea.
A primeira sepultura que se conhece, a denotar preocupação com o futuro, de-
pois da morte, terá 40.000 anos. O culto dos mortos, o ritual da despedida, são
a manifestação mais arcaica de uma visão espiritual, e a recusa da condenação
do corpo á putrefação biológica.
Os enterramentos ritualizados foram o início da consciência do “eu”, com uma
perspetiva de “além”.
Não foi o medo do desconhecido que criou as religiões, mas sim a necessidade
de dar significado á Vida, de transcender, de descobrir o Sagrado, o Divino, de
perceber o “sinal” de Deus.
A Mente humana, geradora da liberdade de alma, procura, pelos teólogos, filó-
sofos e cientistas, compreender o Universo que Criou, os Poliversos que come-
ça a imaginar.
O nosso cérebro é a autoconsciência do Universo, a “garganta funda” que nar-
ra a sua História, suficientemente promíscua para começar a imaginar outros
universos.
Foi o Homo Habilis que, com as mãos, acelerou o crescimento da Mente do Sa-
piens, a mais complexa estrutura de todo o Universo, arrogantemente agnosti-
ficada pelo Homo Deus.
Cientistas dostoievskianos veem o universo como “palácio de cristal” sem se-
gredos. Outros, fundamentalistas da ciência, encaram as histórias das fés reli-
giosas como contos da carochinha para crentes ingénuos.

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Militantes ateus consideram as religiões fontes de todas as guerras e ódios. O
ateísmo criou seitas, fiéis do materialismo, crentes do homem perfeito e socie-
dade sem classes, com legiões de fanáticos dirigentes, proibindo a liberdade de
crer no Sagrado, em Divindades.
Deus, desconhecido e inefável, tem vindo a caminhar nos espartilhos integristas
das religiões, com destino nebuloso, atraído pelo abismo do sincretismo, ou
pela ícara altitude do esoterismo multiplicador de espiritualidades.
A globalização gera a visão PLUR, Peace, Love, Union and Respect , num
agnosticismo criador do “Homem Light”, incentivador do relativismo amoral,
favorecedor da proliferação de fundamentalismos, extremismos e seitas, como
reação ao “politicamente correto”.
O diálogo entre visões religiosas exige liberdade absoluta, adubada pela tole-
rância e podada pelo respeito pelas Verdades dos outros.
A construção do Templo Ecuménico Universalista visa a utopia, não do fim
das religiões, mas sim da coexistência transcendental do Homem, crente de
diferentes fés, que desejamos revigoradas na defesa de valores morais, e na sua
conceção do sagrado.
O cérebro humano possui um centro da espiritualidade religiosa, tal como exis-
te para a fala ou a audição, predestinando-nos para uma visão mística, espiri-
tual, de crença em divindades e no sagrado.
Podemos afirmar que as religiões, e as tradições espirituais, são os mais impor-
tantes traços culturais identitários de um povo ou nação.
A Humanidade não pode prescindir de valores. Sem a fraternidade e o amor
filial a biologia não teria evoluído na criação do Homo Sapiens.
O “deus dinheiro” aumenta a sua influência com as catedrais de consumo, am-
pliadas pela teologia do marketing, pela falta de “filtros” na promoção da ga-
nância, e divulgação acrítica no mundo digital, fomentando a amoralidade.
Neste consumismo absorvente, dependentes do ter, da imagem, do parecer ser,
deixamos de refletir sobre o significado da Vida e o sentido da existência.
Sacrificamos a espiritualidade ao materialismo do ter, do impulso de consumir,
numa infantil compulsão, de satisfação pessoal imediata. Neste caminho rápido
para o prazer instantâneo geram-se os doentios comportamentos aditivos.
As religiões e tradições espirituais não são as únicas fontes de moral, mas difi-
cilmente haverá promoção dos valores éticos, se não interiorizados e enraiza-
dos em culturas adequadas às comunidades, pessoas, povos e geografias.
Os primeiros deuses eram sectários, com uma ética duvidosa e, frequentemen-
te, malévola. Egoístas, exigiam sacrifícios e dadivas, para gozo e satisfação

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pessoal, defendiam a violência para os outros e bem-aventuranças para os seus
idólatras e sicários.
Só tardiamente os deuses começaram a ter uma moral Universalista, assente
numa bondade aberta a toda a humanidade e não só aos seus crentes.
A desilusão de Deus, recusando as visões panteístas ou teístas, passa pelo deís-
mo maçónico do Supremo Arquiteto do Universo, para se acantonar na indife-
rença do agnosticismo ou no proselitismo ateísta.
Crescem espaços e grupos de espiritualidade “alternativa”, assentes em visões
agnósticas, ou mesmo ateias, de igrejas sem deuses.
As religiões têm evoluído no sentido, não do medo do outro, do ódio ao dife-
rente, mas procurando a harmonia e a reconciliação.
Foi esta perspetiva que fundamentou o inicial desejo de ecumenismo entre cris-
tãos, o posterior diálogo com as outras religiões abraâmicas, incluindo depois
as religiosidades asiáticas e outras culturas espirituais.
Reconciliação alargada quando Bento XVI defendeu a necessidade de diálogo
entre os crentes religiosos e os ateus, na metáfora do “pátio dos gentios”, para
a procura da Verdade.
O conhecimento da história das culturas espirituais e religiosas evita o medo do
outro. O receio que a nossa verdade possa não ser a Verdade, mais justifica a
preocupação pelos valores que os diferentes defendem e promovem.
Idealizámos o Templo Ecuménico Universalista para promover a tolerância, o
respeito pelo outro, e a liberdade de crer ou não crer, homenageando as vítimas
das ortodoxias e fundamentalismos.
Sendo um local de libertação de espiritualidade individual, nos seus esconsos
instalámos um Observatório de Religiões, com três objetivos: uma informação
independente e rigorosa, não valorativa, sobre as 15 grandes culturas religiosas
a nível mundial, seguido de uma área sobre as barbáries e guerras religiosas
mais significativas, e uma cronologia histórica com as datas mais marcantes.
Os conteúdos históricos e religiosos tiveram como autores membros de uma
larga, sabedora e competente equipa, escolhida e liderada pelo Professor Paulo
Mendes Pinto.
São esses textos que são divulgados neste livro, leitura fundamental para todos
que, independentemente da sua fé, querem conhecer o pensamento, a história, a
doutrina, das 15 grandes e importantes religiões e culturas espirituais.
Sabemos, com humildade, que uma andorinha não faz a primavera, que nin-
guém muda sozinho o mundo.

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Sentimos que é dever de cada um, de cada organização, contribuir para uma
sociedade melhor, com mais direitos, mais liberdade e igualdade, mas também
com mais deveres, de fraternidade para com os outros, de amor ao próximo,
especialmente direcionado, com bondade e compaixão, para os mais frágeis.

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O TEMPLO ECUMÉNICO UNIVERSALISTA
E O OBSERVATÓRIO DAS RELIGIÕES

A Pedra Bruta como medida de todas as coisas

Paulo Mendes Pinto


Contexto e origem

TEMPLO ECUMÉNICO UNIVERSALISTA, em Miranda do Corvo, é


O um conjunto edificado e paisagístico que se integra num conjunto mais
vasto de realizações da Fundação ADFP. Esta fundação é

«uma Instituição de Solidariedade Social, sem fins lucrativos, com estatuto de


utilidade pública, que prossegue a atividade da Associação para o Desenvolvi-
mento e Formação Profissional, nascida em novembro de 1987, e sediada em
Miranda do Corvo. O objetivo principal é a solidariedade social, contribuin-
do para a formação de pessoas com deficiência e doentes mentais, apoiando
doentes crónicos, crianças, jovens, mulheres grávidas ou com filhos, vítimas
de maus tratos, refugiados, sem-abrigo e idosos. Investe em pessoas através
da criação e inovação de respostas sociais, orientadas para o convívio interge-
racional, a integração de pessoas com deficiência, doença mental ou minorias
étnicas, e promoção do desenvolvimento local sustentado»1

A postura humanista, integradora da mais plena diversidade, afirma-se no lema


da instituição «Investimos (com bondade) em pessoas», desenvolvido pelo Pre-
sidente e Fundador, Jaime Ramos: «As nossas equipas multidisciplinares pos-
suem excelentes qualidades técnicas, sendo integradas por pessoas capazes de
agir, com bondade, no apoio aos utentes mais fragilizados e vulneráveis. Não
diagnosticamos deficiências. O nosso objetivo é descobrir talentos em todas as
pessoas, incluindo aquelas que possuem mais desvantagens.»2

1 A Fundação ADFP – Assistência, Desenvolvimento e Formação Profissional, com 34 anos


de vida, tem 10 residências com 480 residentes, emprega 826 colaboradores, mas de 25% com
deficiência, e presta serviço a cerca de 7510 utentes por mês.
2 Jaime Ramos, «Mensagem do Presidente do Conselho de Administração», https://www.adfp.
pt/fundacao/mensagem-do-presidente-do-conselho-de-administracao

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O Templo, como o designaremos a partir deste momento, está integrado no
designado Trivium, «a visão filosófica do espírito da Fundação ADFP»: Parque
Biológico da Serra da Lousã, Espaço da Mente, Templo Ecuménico Universa-
lista.
Centrada na dimensão mais completa e integradora da Humanidade, para a
ADFP apenas há uma forma de conceber a ação com as comunidades humanas:
aliando natureza, cultura e espírito, a marca profunda é a da complementarida-
de complexa da existência.
É neste sentido que se articulam os três espaços que são, desta forma, não iso-
lados, mas complementares:

– Parque Biológico da Serra da Lousã – Natureza: Igualdade

– Espaço da Mente – Cultura: Liberdade

– Templo Ecuménico Universalista – Espírito: Tolerância e Respeito


(Fraternidade)

O conjunto do Trivium é mais que um projeto de lazer para visitas educativas.


Com este tríplice projeto pretende-se dar um forte contributo a uma visão mais
ecológica da Humanidade, seja na sua relação com a Natureza, com a Cultura,
do específico do local ao genérico do global, seja nas questões e nos contextos
e pertenças espirituais. A Humanidade apenas se completa neste triângulo de
sentidos, complementaridades e complexidades.

O(s) significado(s)

A construção de um Templo Ecuménico Universalista parte de uma premissa:


nada do que é humano nos é estranho, seguindo a expressão de Terêncio (séc. II
a.EC). É nesta natureza da natureza Humana que este equipamento é um Tem-
plo, que é Ecuménico e é ainda Universalista.
No seu livro Templo Ecuménico Universalista No caminho para a Verdade,
Jaime Ramos recorda o leitor da complexidade do projeto, se de representações
falarmos: «Há diversas especulações sobre as intenções que estiveram na base

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da edificação deste Templo. Há sempre quem imagine cabalas e quem construa
teorias de conspiração imaginando algo de obscuro.»
Retomando a forma como apresentara o Templo num seu outro livro, Deus Na-
tureza, contos para netos maiores, publicado em 2015, explico os objetivos do
Templo através do que o ele não é:

«Não há tentações de sincretismo ou irenismo religioso.


Não há uma visão de Quinto Império Português, seja de Fernando Pes-
soa ou de Agostinho da Silva.»

Mas o universo do simbólico é assumido como fundamental: «Não existindo


qualquer subordinação a obediências maçónicas, é evidente a importância e
visibilidade que concedemos a alguma simbologia da Maçonaria.»3
É claro que a própria natureza do símbolo nos remete para a liberdade herme-
nêutica que cada um experimenta ao debruçar-se sobre ele: por isso, o símbolo
é polissémico, interpelador e não dogmático. É neste quadro de riqueza de lei-
turas que o simbólico se integra no projeto, tal como é na diversidade do huma-
no que a própria Fundação ADFP realiza o seu trabalho social.
E este espaço começa por ser um Templo, porque é um lugar de profundidade e
de pensamentos e de sentimentos. Um espaço em que o visitante é transportado
para a profundidade do lado criador da sua espécie e, ao messo tempo, para uma
relação com o Criador ou a Criação, se assim os entender.
Não é oração aquilo para que o espaço remete, mas recolhimento, na busca dos
valores absolutos para cada um. Não é piedade nem crença, mas emancipação
no confronto e no contacto com a diversidade que é, para cada um, a Verdade,
colocada ao lado de todas as outras Verdades, uma vez que um imenso leque de
religiões e espiritualidades estarão presentes num mesmo espaço, sem hierar-
quias ou valorações.
O «sagrado» deste Templo é a capacidade de cada um se espantar e de criar, de
olhar para a realidade e, sem perder nada da sua conceção de sagrado, se centrar
no Homem, no que tem feito de bom e de mau em nome de Deus.
E é por esta razão que o Templo é Ecuménico. No sentido primeiro latino da
palavra, este Templo recolhe em si, para o dar aos visitantes, a «ecúmena», o
todo, o orbe terreno. É ecuménico, nunca no sentido de fundir as diferenças e

3Jaime Ramos, Templo Ecuménico Universalista. No caminho para a Verdade (2021).

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buscar alguma coisa de sincrética, mas no sentido em que, neste Templo, que é
das espiritualidades da Humanidade, Tudo e Todos têm lugar. Até os não-cren-
tes, como é natural.
E, por fim, este Templo Ecuménico é Universalista porque nos pretende reme-
ter para um olhar de respeito e de tomada de consciência. Todos os conteúdos,
os textos, os signos e os símbolos, todos correspondem a uma dimensão uni-
versalista da Humanidade, a uma procura e a um desejo de explicar o Todo,
integrando-o.
Naturalmente, e como falamos do ponto de vista da nossa cultura, com o que
isso tem de positivo, mas também de castrante, olharemos para o que a «ecú-
mena» nos traz de experiência de vida em grupos humanos, e teremos pontos
dos quais não abdicamos.
Os Direitos Humanos, como ponto de chegada de um caminho em comum de
milhares de anos é aquilo que de mais fino, subtil e superior a nossa sociedade
criou. É o que nos interessa valorizar, na narrativa aqui apresentada.
É esta a realidade que é superior às guerras, às matanças, a tudo o que temos
feito em nome de Deus. Não é apenas de belas criações e melhores realizações
a que nos referimos neste Templo. Ao longo dos milénios, temos matado primo-
rosamente como nenhuma outra espécie.
Na frase de Luther King: «Aprendemos a voar como os pássaros e a nadar
como os peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos.» Que este tem-
plo seja uma ajuda nesta tomada de consciência.

Descrição e localização

Fisicamente, o espaço ocupado pelo complexo do Templo Ecuménico


Universalista organiza-se em três espaços diferentes, mas complementares:

-Um caminho, na floresta, em terra que ascende desde a saída do Par-


que Biológico, e que permite ao visitante percorrer um longo trajeto,
ponteado por bancos com frases existencialistas, até ao topo onde se
encontra a estrutura do Templo propriamente dito;

-Dois trilhos que, desde a entrada, no topo desse caminho ascensio-


nal, circundam o edifício piramidal do Templo, levando o visitante a

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descobrir e a contemplar vária simbologia religiosa de todo o Globo,
terminando num grupo concêntrico de sete círculos que representam o
aperfeiçoamento e mostram os conceitos religiosos cristãos que repre-
sentam as maiores dificuldades nesse caminho;

-Por fim, o Templo propriamente dito, uma construção piramidal.

O centro do conjunto, o Templo, tem como base um quadrilátero do qual se


projeta, no zénite, uma pirâmide, a construção principal. O Templo localiza-se
no meio da floresta, no topo da colina do Parque Biológico da Serra da Lousã,
em Miranda do Corvo, com acesso por estrada.
Pretende-se que para quem tenha algum tempo e predisposição introspetiva, a
aproximação ao Templo seja gradual, mediante a subida de um percurso pedo-
nal, de reflexão espiritual e filosófica, que liga o Parque Biológico da Serra da
Lousã ao Templo, a base da colina ao seu topo.
Seja através deste longo caminho pedonal onde o caminhante vai sendo con-
frontado com frases de filósofos e pensadores, ou de carro, diretamente ao Tem-
plo, no topo da colina, este é um local onde vamos propositadamente, num
gesto de vontade pessoal, na busca da espiritualidade e da Verdade interior de
cada um.

O Exterior

O exterior do Templo apresenta duas características e funções. Por um lado,


pretende-se mostrar aos visitantes elementos caracterizadores de algumas re-
ligiões e tradições, sejam símbolos ou imagens, ou frases significativas. Por
outro lado, queremos fazer tudo isto, não apenas como forma de transmitir
conhecimento, mas como meio de criar uma vivenciação própria. Percorrer os
trilhos, escadarias e pátios exteriores é realizar um «caminho». E é um Cami-
nho porque nos interpela, nos questiona, nos leva a interrogar.
E esta noção de caminho começa na ligação pedonal entre o Parque Biológico e
o Templo. Trata-se de um percurso difícil pela inclinação, com uma significati-
va extensão, pontuada por bancos onde teremos frases de pensadores célebres.

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Frases que nos questionam, que nos obrigam, no meio de um caminho solitário,
a refletir e a criar intensidades interiores.
O exterior do Templo, se bem que dentro do recinto, é marcado por vários es-
paços e caminhos, todos com a função de levarem o visitante a um percurso em
torno de tradições religiosas e de princípios e valores que despertem o sentido
humanista.
A entrada no recinto é feita por um portão entre duas colunas de pedra, delimi-
tando a entrada como se de um espaço sagrado fosse. De cada lado uma parede
com uma frase:

A Paz é a nossa aspiração, o amor a nossa revelação.


É no teu coração que descobres o caminho para a sabedoria e a com-
paixão.

Transposto o portão sobressai uma escadaria orientada para a entrada da pirâ-


mide e dois percursos pedonais, um pela esquerda e outro pela direita, permi-
tindo acessibilidade a pessoas com limitações motoras. O visitante escolhe qual
dos três caminhos fazer, ou qual a ordem pela qual os fará.
Seguindo o caminho central, a escadaria, facilmente o visitante vai perceber
que ela se organiza em lances de 3, 5 e 7 e 9 degraus, usando os números mais
simbólicos nas tradições espirituais e místicas ocidentais.
Próximo, à direita de quem sobe, um cubo em pedra com uma bola, também
ela de pedra, a girar sobre água. No cubo lê-se: contudo, ela move-se; a céle-
bre frase atribuída a Galileu no final do seu julgamento, na Inquisição – em
1616, precisamente há 400 anos, Galileu Galilei foi proibido pela Inquisição
de defender que a Terra se movia em redor do Sol. Em 1633, foi condenado a
prisão perpétua, tendo escapado à morte por ter negociado e aceite, perante esse
tribunal religioso, que estava errado. À saída do tribunal do Santo Ofício terá
exclamado: Eppur si muove.
A presença de Galileu tem como objetivo recordar o positivismo científico e
afirmar simbolicamente que nenhuma crença, nenhuma fé, incluindo as cer-
tezas científicas, pode silenciar ou travar a permanente busca da verdade pela
ciência.
A escadaria desagua num espaço retangular, remetendo-nos novamente para as
proporções atribuídas ao Templo de Salomão. O pavimento é em calçada, num
xadrez branco e negro, remetendo-nos para o típico chão dos Templos maçóni-
cos que representam a luz e as trevas sobre as quais constantemente nos move-

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mos. Lateralmente, tem 15 bancos, sete a poente e oito a nascente, como que
desafiando que a complexidade de «religiões» presentes no interior do templo
aqui se pudessem sentar, a discutir fraternalmente.
Em três dos cantos, temos outras tantas colunas de pedra, cada uma de seu esti-
lo arquitetónico clássico: ordem jónica, coríntia e dórica. Este espaço tem uma
composição que lembra os templos maçónicos, representando as três colunas:
a Força, a Beleza e a Sabedoria, padrões do debate e dos trabalhos tidos nesse
espaço.
De facto, é a ideia de debate que trazemos a este pátio quadriculado. Este espa-
ço representa o apelo do papa Bento XVI (ainda vivo, e que é aqui homenagea-
do) ao diálogo interreligioso aberto a ateus e agnósticos. Inicialmente o diálogo
ecuménico foi circunscrito aos cristãos e às suas diferentes denominações. O
papa Bento XVI veio, posteriormente, dar a designação de «Pátio dos Gentios»,
recuperando o nome do pátio que, no Templo de Jerusalém, era aberto a todos.
Este espaço é, também, uma herança da ágora das cidades gregas, onde todos
tinham o dever de dialogar, de defender ideias, de imaginar utopias, sempre
com respeito pelas diferentes visões dos outros.
No percurso pedonal da esquerda encontramos, gravado no solo, um espaço
com os símbolos tauístas. Pouco à frente, temos uma imagem de Buda. Antes
de chegar ao topo, um pequeno roseiral lembra-nos os ideias do Rosacrucianis-
mo. Mais à frente, já lateralmente em relação ao Templo, surge um queimador
de velas, peça construída em betão, e cuja estrutura simula duas mãos erguidas
em prece.
No percurso à direita encontramos três rochas com uma escultura que lembra
o deus Endovélico dos Lusitanos, remetendo-nos para o mundo politeísta, mas
também para os fenómenos indígenas, no seu confronto com as hegemonias
religiosas, neste caso, a latina. Segue-se um altar hindu com três divindades –
Brahma, Vishnu e Shiva. A seguir, teremos a Mesa da Igualdade dos Shiks, mas
que também é a Távola Redonda das tradições da Bretanha e, ainda, a mesa
com os 13 lugares, na qual Jesus fez a sua Última Ceia. É a imagem da partilha,
a refeição onde todos são iguais e se é indiferente às classes sociais.
No ponto de cruzamento dos dois caminhos com a escadaria, acima do Pátio
dos Gentios, um largo degrau tem gravada a palavra PAZ, escrita em 13 línguas.
Por fim, já à cota do Templo, em frente à fachada principal, orientada a Este,
uma cruz templária, de braços iguais, recortada em negativo/vazio, abrindo
uma janela na parede branca. Esta cruz simboliza a necessidade de abrir passa-

13
gens nos muros que separam os homens ou fronteiras. O que aqui interessa é o
negativo do símbolo que, longe de definir, é uma abertura.
Esta cruz recorda, também, que estamos num território de maioria e de grande
tradição cristã que, graças ao laicismo, tolera a liberdade de se construir um
Templo aberto a todas as formas de espiritualidade ou sagrado pessoal. A cor da
parede lembra-nos a cruz branca do hino dos Hospitalários: Avé Cruz Branca.
Assumindo plenamente as heranças heterodoxas, orientada a norte, temos a
bandeira de Portugal, num mastro com 15,24 m, a altura da Caaba, homenagem
à religião que foi maioritária, neste mesmo território, por quase meio milénio.
Ao redor da pirâmide temos um caminho delineado no chão. Pretendendo-se
que o visitante não entre diretamente no Templo, mas sim que o faça através
da espiral que, neste desenho, circunda o Templo por sete vezes, exatamente o
mesmo número de voltas que o crente faz na Peregrinação a Meca, em torno
da Caaba.
O piso desta espiral vai-se tornando mais regular em cada volta, partindo do
grosso calhau rolado até ao paralelepípedo em calcário branco. Sugere-se que,
em cada percurso que fazemos na vida, e dificuldade que enfrentamos, ficamos
mais fortes e com um caminho mais facilitado para a perfeição pessoal.
Neste percurso, inscrito em pedras no pavimento, aparecem os Sete Pecados
Mortais, que aqui representam as dificuldades, as armadilhas, que nos afastam
da inatingível perfeição pessoal.

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A Pirâmide

O edifício central do complexo, o Templo, tem uma altura de 13,4 metros, in-
vocando a altura do Templo de Salomão, construído no século IX a.EC, em
Jerusalém, por ordem de Salomão. Os cantos estão orientados para os quatro
pontos cardinais: Norte, Sul, Este e Oeste.
As fachadas têm impresso, em baixo-relevo, três palavras e três letras maiús-
culas: Bondade (M), Moral (R) e Verdade (J), para além do símbolo de um dos
monoteísmos abraâmicos, quer em baixo-relevo, quer gravados nos óculos de
vidro que transmitem luz ao interior do Templo.
Assim, na face à direita, orientada a SE, existe o «Crescente», símbolo do Is-
lão, lado onde também temos incrustada uma pedra negra definindo a direção
de Meca e lembrando-nos do significado da Caaba nessa religião. Na fachada
orientada a SW, no vidro e no betão, vê-se o símbolo judaico – a Estrela de Da-
vid. Na parede virada a NW, observa-se a Cruz, símbolo dos cristãos.
A entrada da pirâmide faz-se por uma porta ladeada por uma pequena corrente
de água, um deslizamento suave que pretende desafiar quem entra ao gesto de
tocar, numa confirmação da sua existência, e implicando a consequente seca-
gem através do ato de esfregar das duas mãos. Constitui um gesto simbólico de
limpeza e purificação, antes da entrada, simbolismo comum a várias religiões.
Transposta a entrada surge uma nova porta, encimada por um triângulo de pe-
dra, com um olho no centro. Esta imagem sugere a figura do Grande Arquitecto
do Universo, existente nos templos maçónicos. Invoca igualmente a imagem de
muitas igrejas católicas dos séculos XVIII e XIX, especialmente a Santíssima
Trindade, onde eram frequentes estas representações de Deus – a vizinha Igreja
de Condeixa-a-Velha é um exemplo em que podemos encontrar o triângulo com
o olho, instalado no altar principal.
No interior, temos um espaço circular, invocando uma das possíveis formas de
reunião das comunidades, religiosas ou não. Trata-se de um espaço cilíndrico,
rematado, no seu topo, por uma abóbada de calote esférica. No topo zenital,
uma estrela de nove pontas, o maior algarismo (usado como símbolo do Babis-
mo), e que nos remete para a Fé Bahá’í, donde cai, como se de um fio-de-prumo
se tratasse, um candeeiro com luz. Toda a abóbada em cor azul sugere o céu
com pequenas estrelas a deixarem passar a luz.
Na direção sul, um rasgo permite que, diariamente, ao meio-dia solar, o Sol crie
um ponteiro de luz a iluminar/indicar o Centro do Templo. É uma referência

15
aos antigos adoradores do Sol, provavelmente uma das mais primitivas formas
de religiosidade, mantida, mesmo que sem se dar por ela, em quase todas as
religiões atuais.
No pavimento, está desenhado um quadrado com um labirinto em calçada por-
tuguesa, a preto e branco. Este quadrado tem de lado 8,9 m, remetendo-nos
para a dimensão do Santo dos Santos do Templo de Salomão. O labirinto, esse,
como que plagia representações dos Templários, nomeadamente nas Catedrais
de Chartres e Amiens, sugerindo uma reflexão sobre a nossa vida e a procura da
Verdade. É também o tópico da mitologia grega representado no mais famoso
mosaico da vizinha Conimbriga.
No centro, um paralelepípedo de pedra de granito polido serve de suporte a uma
rocha bruta em estado natural, invocando a principal metáfora da maçonaria e
que nos remete para a imagem de construção que é cada um: o trabalho da pedra
bruta que somos até se conseguir a pedra polida e geometricamente perfeita que
desejamos ser. Simbolicamente, o paralelepípedo tem as dimensões de 1,11m
x 0,666m, a possível medida da Arca da Santa Aliança, peça que faz parte do
nosso imaginário coletivo.
As referências ao Templo de Salomão devem-se ao facto de esta construção
ter ficado no nosso património comum como uma das marcas mais vincadas
da afirmação do monoteísmo, com a construção de um templo dedicado a uma
única divindade.
A escolha da forma piramidal é uma homenagem arquitetónica ao Egito Antigo,
à sua sabedoria e conhecimento, a todo o património que, cultural e religiosa-
mente, o Mundo Clássico lá foi buscar, e do qual somos herdeiros. Tal como nas
pirâmides do Planalto de Guiza, especialmente a mais conhecida, a de Keops, o
Templo tem várias relações, entre medidas que assentam no Φ (fi), a proporção
áurea.
Esta sala espiritual não é espaço de imposição de uma Verdade, muito menos
de uma Religião. É um local de liberdade e libertação, através do livre exame
e livre interpretação dos símbolos e alusões. Tal como a pedra bruta sugere a
necessidade de um aperfeiçoamento pessoal, também aqui, pela oposição desta
à pedra polida, somos levados ao binómio, à tensão de uma humanidade imper-
feita dividida nas diferenças e intolerância, cada vez mais radicalizada.
Cada visitante é um leitor único do espaço, fazendo a sua invocação, oração,
ou simplesmente marcando o tempo com o seu silêncio. Sobretudo, que reflita
sobre si e sobre a humanidade. Neste Templo, a mensagem é a não-mensagem,
é apelo à individualidade no que ela tem de comum com o Humanismo. Isto

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é, tudo simples pista para que cada indivíduo encontre o seu Caminho, como
sugere o labirinto ou as irregularidades das voltas da espiral.

As Pedras: a Bruta assente na Polida

O ponto central da narrativa espiritual do Templo é a dupla-pedra que se encon-


tra no centro do labirinto. Não se trata apenas do centro geométrico da constru-
ção e do pavimento labiríntico; é o centro do que se pretende que seja transmi-
tido: uma pedra bruta, natural, tal como foi retirada de um leito fluvial, assenta
sobre uma pedra paralelepipedicamente aperfeiçoada.
O seu significado assenta na tradicional leitura maçónica tão bem expressa
no ditado popular que nos convoca para trabalhar dizendo que vamos «partir
pedra». Sempre que a visão simultânea de dois tipos de pedra radicalmente
diferentes surge, é automaticamente invocada essa metodologia de trabalho in-
terior, o desbaste da pedra bruta até a transformar numa pedra de forma cúbica,
lisa e perfeita.
Mas, neste caso, as duas pedras de alto valor pedagógico não estão, como é
comum nos templos maçónicos, ladeando uma entrada. Aqui, elas estão no cen-
tro, não periféricas e estão uma em cima da outra, não lado a lado. E esta dupla
centralidade implica uma reflexão.
Por um lado, estas duas pedras poderão ser entendidas como o Homem, o cen-
tro e «medida de todas as coisas», na frase célebre de Protágoras; por outro
lado, elas são complementares, apesar de opostas, estando uma em cima da
outra. E esta forma como as duas pedras se apresentam é, à imagem do labirinto
que as circunda, o mais interessante enigma deste complexo.
Ao estarem colocadas, lado a lado, no templo maçónico, as pedras bruta e cú-
bica criam uma narrativa de evolução, de aperfeiçoamento. Ao invés, aqui, no
Templo Ecuménico Universalista, não vislumbramos essa evolução de pedra
bruta para pedra cúbica, como, a existir alguma evolução, então a bruta en-
contra-se em cima da cúbica. Evoluirá a pedra bruta da pedra cúbica, numa
completamente desafiante antropóloga simbólica?
Esta posição leva-nos, paralelamente, para a diversidade religiosa que se
expressa no corredor circundante do espaço do Templo: o Observatório das
Religiões. Aí, o visitante é confrontado com o fenómeno religioso, belo e
perfeito nas ideias, complexo nas guerras religiosas e nas matanças a que deu

17
lugar. O perfeito das ideias resulta, pela ação humana, no brutal da morte em
nome de Deus.
Da mesma forma, e numa visão muito rousseliana, a base da metáfora do hu-
mano que é essa dupla-pedra assenta na ideia de perfeição que o Homem tem
na origem, a base de tudo. Perfeição que nos transforma em toscos, como que
inacabados, a precisar de novo polimento num regresso à essência. Afinal, na
contemplação do que está no centro do Templo, temos uma simples mensagem:
o aperfeiçoamento é apenas um regresso. Por isso, é natural.
Esta metáfora é complementada e enriquecida com a luz zenital que todos os
dias, ao meio-dia solar, desce sobre a pedra-bruta, iluminando-a, mostrando
que esse Humano está talhado para receber essa luz, como se o acesso a ela lhe
fosse inato.

O Observatório das Religiões: a dimensão pedagógica e de conhecimento

Ainda no interior da pirâmide, mas no espaço entre as paredes exteriores e


o espaço central, cilíndrico, devemos fazer um percurso que designamos de
Observatório de Religiões. Seguindo um misto cronológico e geográfico, apre-
sentamos um vasto grupo de posicionamentos, de tradições de relação com o
transcendente. São, mais que religiões ou filosofias e espiritualidades, cosmovi-
sões, pois colocam o Homem no mundo, através de uma relação.
O objetivo é o de colocar estas cosmovisões ao acesso de todos os visitantes, de
forma neutral, imparcial, despida de preconceitos. Cada «religião» é apresenta-
da nas suas principais características, quer através de um esquema simplificado
que num olhar transmite algumas informações sumárias, quer através de um
texto mais longo que detalha e informa o visitante mais interessado.
Ao mesmo tempo, na parede exterior do cilindro central, está exposta uma cro-
nologia comparada da história mundial das religiões.
Depois desta apresentação, que constitui um minicurso intensivo sobre reli-
giões, mostramos um conjunto de acontecimentos, guerras e conflitos, que de-
nunciam a barbárie que pode ser criada pela intolerância assente em precon-
ceitos culturais e religiosos. Terminamos o caminho pelas «religiões» com as
barbáries que, em nome de Deus ou de um qualquer ente divino e superior, se
têm cometido ao longo dos séculos.

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Numa sociedade de medo e onde o terrorismo tomou conta de muitos dos nos-
sos receios, este percurso de conhecimento sobre «religiões» também é o mote
para nos inquietar e nos levar, nos obrigar, a uma posição mais ativa pela Paz
e pelo Diálogo.
Não se pretende originar um sincretismo religioso ou promover um cocktail
de religiões. Desejamos que as religiões existentes atuem de acordo com a sua
Verdade, promovendo um mundo melhor, assente no diálogo inter-religioso e
no primado dos valores humanistas.
Desejamos que cada religião contribua com a sua orientação moral, para a paz
da Humanidade, sem esquecer o meio ambiente e a natureza.

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Hinduísmo
Sanāthana Dharma

António Faria
Hinduísmo

Sanāthana Dharma

“H induísmo” é um termo de proveniência muito recente, uma designa-


ção que os estrangeiros impuseram sobre formas de religiosidade e
entendimentos filosóficos pertencentes a uma determinada região geográfica.
As tentativas de fornecer uma caracterização mais substantiva do “hinduísmo”
têm sempre sido associadas com tentativas de impor uma ou outra concepção
política na Índia ou para sobrepor uma ideologia (filosófica ou outra). Por isso,
deveremos manter a máxima flexibilidade e cautela no uso da expressão “hin-
duísmo”, fruto de uma visão colonialista e homogeneizante errada.
O facto de que quase nenhuma doutrina “Hindu” permaneceu (e permanece)
inquestionável ou incontestada por outra proposta “Hindu” mostra que a ên-
fase deve ser colocada sobre a dinâmica do diálogo filosófico com/entre as
tradições, em vez da defesa de certas proposições como únicas e incontestadas.
Existem Hindus que negam a existência de Deus, e há Hindus que negam que
existe vida após a morte. Portanto, o verdadeiro foco de interesse é sobre a na-
tureza das formas internas de desafiar, de afirmar, re-avaliando e reescrevendo
tudo o que é tido como questões filosóficas fundamentais.
Se, por exemplo, a “escola” Mīmāmsā representa uma vertente de ateísmo ético
dentro do “hinduísmo”, outros Hindus acreditam que há um único princípio
cósmico, a que chamaram Brahman. E, em expressões populares da religião
existem muitos deuses que fornecem os objetos imediatos de devoção. O facto
de que existem Hindus ateus e outros monistas, panenteístas, panteístas, teístas,
monoteístas e politeístas (o que implica já uma redução a categorias ociden-
tais), deve ser suficiente para constituir um aviso sério sobre a dificuldade de
selecionar um fio de pensamento dentro do que se insiste em chamar “hinduís-
mo”, e afirmar que é “central”. Também, quando utilizamos a palavra “deus”
ou “Deus” dentro do “hinduismo” temos de perceber o vasto campo semântico
que está em causa. Por outro lado, existem termos que não têm correspondência
directa nas línguas ocidentais. Assim, não há equivalente direto no sânscrito
para as palavras “religião” (tal como é genericamente entendida) ou “filosofia”.

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Quatro Conceitos Motores

Quatro conceitos básicos e interdependentes conduzem-nos directamente ao


núcleo da espiritualidade Indiana. Eles são karma, māyā, nirvāṇa e yoga. Como
tentativa de orientar um primeiro olhar de superfície, podemos dizer que estas
quatro ideias motoras, de modos diversos, espelharam-se nas culturas da Índia
e que nos permitem um primeiro olhar sobre algumas das suas filosofias-reli-
giões. Assim, e muito brevemente, diremos que:

Karma - Pode ser entendido como Lei de Acção e Reacção, de Causa e


Efeito que liga o homem em si mesmo e ao Cosmos (e este a tudo o que
existe, quer seja entendido como senciente ou não-senciente).

Māyā - Habitualmente traduzido por “ilusão”, pode em contexto védico


ser entendida como o poder de Brahman, fonte e origem dos Universos em
Manifestação, a ilusão cósmica para os que, cegos ainda pela ignorância
fundamental (Avidyā), se entendam como separados da totalidade por se
acharem com raiz própria e independentes.

Nirvāṇa - Pode ser entendido neste contexto como a experiência da Rea-


lidade Absoluta, transcendente e imanente, impossível de realizar para o
homem preso na Roda da Vida (Saṃsāra) pelos vínculos karmicos, detentor
ainda de uma mente condicionada. Não é um lugar, mas sim um estado de
consciência incondicionado. De um dado ponto de vista é a cessação de
toda a dualidade, o ser uno com a Realidade/Cosmos.

Yoga - Pode ser entendido como um caminho a percorrer para a obtenção


dos meios, com base em técnicas estabelecidas e realizadas por cada pra-
ticante; é Via assente num dado sistema filosófico, Sādhana, e Praticante,
o Sadhāka. Orienta o atingir da Libertação (Mokṣa, Mukṭi, Kaivālya) dos
condicionamentos; a autorrealização do potencial que em cada um de nós
existe; União, resultado da cessação das flutuações de citta, da mente.

Por outro lado, quando pensamos em “filosofia” no contexto da Índia, não


podemos esquecer que ocorreram diversas concepções em tempos (culturais e
cronológicos) diferentes. Assim, podemos enquadrá-la como:

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Ānvīkśikī - Um olhar crítico e racional que ilumina os conteúdos de uma
“teologia”, economia e ciência política. É entendido que estabelece as fun-
dações de toda a acção e dever. Por vezes entendida também como um
exame crítico de elementos obtidos pela perceção e pelos textos.

Darśana - Um sistema de ideias, com maior ou menor sistematização filo-


sófica e que engloba fenomenologia, epistemologia, metafísica, ética, “so-
teriologia”, etc.

Filosofia Popular - Uma rede intuitiva de olhares sobre a humanidade, a


sua natureza e destino, Natureza e a Realidade Última ou Deus, explícita
ou implícita nos ditos, canções, hinos, ensinamentos ou escritos dos sábios
e “santos”.

Se queremos compreender as diversas cosmovisões que dinamicamente foram


surgindo na Índia temos de fazer um esforço para caçar muitas sandálias que
outros têm vindo a calçar. Temos de tentar ver o mundo através dos seus olhos,
perceber as interações que no tempo e no espaço foram surgindo no subconti-
nente. Se a tarefa é entendida como muito difícil, na prática mesmo impossível,
que permaneça constante a necessidade de conhecermos os nossos “óculos”
sem nunca esquecer ainda que o observador condiciona a experiência. Mas,
acima de tudo, recomenda-se o exercício de uma humildade pró-activa sempre
associada a uma honestidade intelectual.

Introdução aos “7 Períodos”

Jamais podemos esquecer que existem ainda hoje quatro famílias linguísticas,
duas línguas oficiais, vinte reconhecidas e mais de cem dialetos. Isto implica
uma diversidade cultural que jamais deverá ser perdida de vista, sob pena de
ocorrerem reduções e distorções que são efetivamente indesejadas para os que
pretendem olhar mais em profundidade e com melhor abrangência.
Podemos pensar que a “filosofia” (o acto de filosofar) ocorreu na Índia muito
antes do 1º Milénio AEC. Esteve sempre ligada ao que no Ocidente designamos
por “religião” (Dharma). Através dos séculos a “filosofia” (Darśana) nutriu e
foi alimentada pela “religião” (Dharma). Pese embora o pensamento filosófi-
co crítico e sistemático surja nas Upanishad e nos sistemas filosóficos iniciais

25
(séc.VII-V AEC), já no Ṛg Veda - mais de dois mil anos antes - surgia um
pensamento reflexivo, a que podemos (dependendo do entendimento do que
será “filosofia”) entender como filosófico. Desde esses começos tão antigos, o
pensamento da Índia evidencia um acervo extraordinário de olhares filosóficos,
especulativos e argumentativos. Todo este acervo não é de fácil abordagem
cronológica.
A tese durante muito tempo sustentada de uma invasão da “Índia” por povos
nómadas denominados Arianos, está hoje a ser progressivamente abandonada.
Esta tese deve ser compreendida a partir de uma ideia de império e conquista,
tão cara aos colonialismos, onde implicitamente se defendia a ideia de ser até
conveniente que raças (ditas) superiores possam (e devam) dominar outras (ti-
das por) inferiores. Aceita-se hoje, em função de novas descobertas arqueoló-
gicas que não houve nenhuma invasão e que o que aconteceu foi uma migração
forçada da civilização do Indo-Sarasvatī, devido a problemas resultantes da
tectónica de placas que contribuíram para a secagem dos rios Indo e Sarasvatī.
Deste modo, a luta que, segundo alguns académicos Ocidentais (e mais tarde
seguidos por pensadores da própria Índia), teria havido entre a civilização do
vale do (S)Indo-Sarasvatī e a cultura Védica Ariana (os alegados invasores)
está hoje seriamente posta em causa sendo já, para muitos académicos, quer
do Ocidente quer da Índia, um modelo histórico ultrapassado e que em muito
influenciou a nossa compreensão da história e cultura da Índia.
O Sanāthana Dharma, vulgo “hinduísmo”, pode ainda ser entendido como um
processo sociocultural bastante complexo onde surgiram continuidades, des-
continuidades e novas formas de expressão filosófica e cultural. De um certo
ponto de vista, poderemos dizer que o Sanāthana Dharma começou com a
Civilização Védica, possivelmente cerca do 5º Milénio antes da Era Comum.
Por outro lado, poder-se-á dizer também que existem grandes diferenças entre
a Cultura Védica e o “hinduísmo” tal como o conhecemos hoje. No entanto,
parece haver mais uma continuidade dinâmica do que rupturas epistemológicas
introduzidas ao longo dos períodos.
Assim sendo, todas as evidências de hoje parecem apontar para o facto que os
Arianos que falavam Sânscrito e compuseram os Vedas não eram nómadas in-
vasores que semearam a morte e a destruição nas populações indígenas mas sim
verdadeiros nativos da Índia. Parecem existir mesmo boas razões para pensar
que a civilização Védica, tal como a vemos através dos Ṛg Veda e dos outros
três Saṃhitā Védicos era em muito idêntica à denominada Civilização do (S)
Indo-Sarasvatī.

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À luz destes novos entendimentos sobre a antiguidade e o desenvolvimento das
civilizações Pré-védicas e Védicas, poderemos propor 7 Períodos fluidos com
“estilos culturais” evidentes onde, no entanto, a continuidade dinâmica foi em
muito mantida. Nos primeiros dois períodos, as datações são aproximativas, tal
como outras datações tidas até agora como “standard” o são também.

1. Período Pré-Védico e Védico (±6500-2500 AEC)

Cidades como Merhgarh (Baluchistão Oriental, Paquistão) foram datadas pelos


arqueólogos como pertencendo ao 7 Milénio. Esta cidade com cerca de 20.000
habitantes ocupava uma área equivalente á cidade de Stanford na Califórnia,
USA. Foram ainda encontrados artefactos de notável perfeição pertencendo ao
V - IV milénios AEC. Uma escrita até hoje não decifrada; saneamento e uma
arquitetura muito avançada.

A Tradição-Sabedoria incorporada nos quatro Vedas. Certas referências astro-


nómicas apresentadas no Ṛg-Veda sugerem que a maioria destes “Hinos” foram
compostos no quinto e quarto milénios AEC. O limite inferior deste Período
é fixado pelo desastre natural que ocasionou a seca do rio Sarasvatī, aparen-
temente devido à oscilação de placas tectónicas. Cerca de 3100 AEC, o rio
Yamunā alterou o seu curso e deixou de contribuir para o caudal do Sarasvatī,
passando a ser um tributário do Ganges. Cerca de 2300 AEC, o rio Sutleg, o
principal afluente do Sarasvatī, passou a ser afluente do Ganges. Cerca de 1900
AEC, o outrora maior rio do norte da Índia, secou definitivamente. Em conse-
quência, as cidades ribeirinhas foram sendo abandonadas e finalmente cobertas
pela areia do grande Deserto do Thar.
Dada a antiguidade dos “hinos” Védicos e o facto dos Arianos que falavam o
Sânscrito não serem afinal invasores estrangeiros, parece ser lógico concluir
que estavam já presentes na civilização do (S)Indo-Sarasvatī. Ainda mais, os
restos da Civilização do (S)Indo-Sarasvatī em nada contradizem o mundo cul-
tural que se perspectiva nos Hinos Védicos. Assim, teremos de propor que os
cidadãos de Harappa e Mohenjo Dharo, tal como os de centenas de outras ci-
dades da região dos rios (S)Indo e Sarasvatī e os Arianos Védicos serão exac-
tamente o mesmo povo.
De acordo com alguns académicos, o fim da Idade Védica (incluindo já os
Brahmānas e as Upaniṣad) é determinado pela grande guerra descrita no
Mahābhārata, que é datada tradicionalmente como tendo ocorrido por volta do

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ano 3100 AEC. Ora, isto coincide com o início do Kali Yuga, a Idade Densa
descrita nos Purānas, Tantras e outros textos. No entanto, Feuerstein, propõe o
ano de 1500 AEC como sendo a data mais provável tanto para essa guerra como
para a data da finalização da redacção dos quatro hinos Védicos.
O texto mais antigo da literatura Védica é o Ṛg Veda, literalmente “versos” de
Sabedoria. Abordando principalmente aspetos de práticas cerimoniais, apresen-
ta também discursos de reflexão, principalmente quando os sábios védicos co-
locam questões sobre eles próprios, sobre o mundo à sua volta e o seu lugar nes-
se mesmo mundo, sobre o Homem e sobre o Universo. Surgem perguntas como
“o que é o pensamento”? “Qual a sua fonte”? “Porque sopra o vento”? “Quem
coloca o sol - o dador do calor e da luz - no firmamento”? “Como é que a terra
produz toda a multiplicidade de vida”? “Como renovamos a nossa existência e
nos tornamos no todo”? Questões de como, quando, o quê e porquê mostram
o início do questionamento filosófico. De início, alguns textos sugerem a in-
tervenção de devas - palavra sânscrita, traduzida por “deuses” (देवता) - uma
espécie de “super-homens” (mas que podem muito bem ser entendidos também
como “Princípios ou Consciências Operativas”. Para muitos ocidentais, isto
parece encorajar mais o “inefável”, o “sagrado”, o “religioso”, do que o pensa-
mento filosófico. Mas notamos aprofundamentos quando surgem interrogações
sobre quem são os devas e o que estará para além deles. Indo para além dos
objectivos básicos da vida pessoal e em sociedade, surgem questões sobre qual
o bem mais elevado e o modo como pode ser alcançado. Pergunta-se ainda qual
a natureza do conhecimento e do pensamento. Surgem deste modo evidências
de filosofia, de busca da verdade, da realidade. Por tudo isto, podemos afirmar
a existência de Filosofia no terceiro milénio AEC.
Os textos principais do Período Védico - onde os rituais de cosmicisação são
muito importantes - são em número de quatro: Rig Veda, Sama Veda, Yajur
Veda e Atharva Veda. Cada Veda tem quatro partes. A primeira parte, a coleção
de mantras, os Saṁhitā, constituídos por “hinos” aos devas, questões e refle-
xões, assim como entoações e fórmulas para obter sucesso. A segunda parte, os
Brahmāna, são arranjos dos Saṁhitā para uso ritual. A terceira parte, āraṇyaka,
são reflexões e interpretações dos rituais. A quarta parte, as upaniṣad, são refle-
xões sobre as questões de base dos aspectos filosóficos (darśana) e de prática.
Filosoficamente, as Upanishad são talvez os textos mais importantes, pois con-
têm as mais profundas investigações sobre o significado da vida. Colocam três
questões importantes, entre muitas outras:

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1. Ãtman, uno com a realidade, Brahman.
2. Karma, a prática das boas ações para ficarmos bem.
3. Meditação: só a prática da meditação possibilita a Libertação
(do samsãra), dos ciclos de morte e sofrimento.

2. Período Bramânico (±2500-1500 AEC)

Colapso da Civilização do (S)Indo-Sarasvatī. O centro da Civilização Véd-


ica deslocou-se para Oriente, para a zona dos bancos do grande Rio Gangā
(Ganges) e dos seus afluentes. Rearranjo do tecido social com progressiva es-
tratificação. Os Brâmanes, a classe sacerdotal, depressa passaram a dominar
a cultura Védica, tornando-se a elite religiosa desse tempo. As especulações
mito-teológicas e as preocupações ritualistas desses sacerdotes foram captura-
das pela literatura Brâmane (os Brahmāna). Os últimos séculos deste período
viram surgir os Āraṇyakas (os tratados da floresta, textos possivelmente rituais
e destinados aos ascetas que habitavam a floresta) e os Sūtras que lidavam com
questões éticas e legais e ainda com as artes.

3. Período Pós-Védico ou das Upaniṣad (±1500-1000 AEC)

Com o surgimento das upaniṣad entramos num novo período com um intenso
aroma metafísico e cultural. Surge a ideia de uma “internalização” dos rituais,
onde o Antar-Yājna (ritual sacrificial) é combinado com a renúncia ao mundo.
É o terceiro estágio da Śruti, o início das tecnologias psico-espirituais, a conti-
nuação da metafísica dos Vedas com um teor mais discursivo, mais “filosófico”.
Se podemos constatar alguma “inovação” nestes textos, ela pouco mais será do
que notas explicativas ao que está presente – de forma filosoficamente rudimen-
tar, dirão alguns - nos Vedas.

4. Período Pré-Clássico ou Épico (1000-100 AEC)

O pensamento metafísico e ético está em plena efervescência. Atingiu um grau


muito elevado de sofisticação no qual as Darśanas se confrontavam, interagin-
do e apurando os seus modelos de cosmogénese e antropogénese. As Darśanas
só podem ser estudadas se forem analisadas dentro desta profícua interacção.

29
Partilha de ideias e alguma sistematização de diferenças. Surge neste período o
Dharma do Buda (vulgo “budismo”) e onde rapidamente vão surgindo diversas
tendências que mais tarde se constituem como Tradições com orientações espe-
cíficas. Influência dos Jainas e Cārvākas. Surgem duas orientações de renúncia
ao mundo (samnyâsa) e a aceitação das obrigações sociais (dharma). Desen-
volvimento pré-clássico do Sāṁkhya e do Yoga. O Épico Mahābhārata como
exemplo de sincretismo é finalizado, embora o seu núcleo, que comemora a
grande batalha entre Pāndavas e Kauravas, pertence a uma era muito anterior.
Também o Rᾱmᾱyana, o outro épico muito conhecido, mas menos antigo do
que o Mahābhārata, pese embora o seu núcleo ser anterior ao do Mahābhārata
em cerca de trinta gerações (Feuerstein).
Por outro lado, a sabedoria dos textos védicos tinha-se tornado uma tradição
sagrada e bastante reservada, muitas vezes inacessível a muitos membros da
sociedade, ou, quando disponível, estaria para além da sua compreensão. Para
“ultrapassar” esta situação surgem histórias e poemas que tentam transmitir
muitas das questões centrais da tradição sagrada à maioria das pessoas. Surgem
assim o Mahābhārata e o Ramayāna. Surgem os Dharma Shastras, os códigos
morais (regulação das relações indivíduo e sociedade). Por exemplo, o Manu
Shastra explica como é que a justiça e a ordem podem ser asseguradas pelo rei
e pelas instituições do governo.

5. Período “Clássico” (100 AEC - 500 EC)

Surge uma luta intensa pela supremacia entre as Darśanas. Segundo alguns
autores, sensivelmente por volta do ano 200 EC, foram compostos os Yoga
Sûtra-s de Patañjali (outros apontam o séc. II AEC, ou mesmo uma data ante-
rior) e o Brahmasūtra de Bādarāyana. O Sāṃkhya-Kārikā de Ῑśvarakṛṣṇa fecha
este período (sec. IV EC). Nāgārjuna de certo modo “sistematiza” a Tradição
Mahāyāna do Dharma do Buda. A Dinastia Gupta entra em declínio.

6. Período Tantra ou dos Purānas (500-1300 EC)

Cerca de meados do 1º Milénio EC, ou talvez ainda um pouco antes, assiste-se


a uma progressiva revolução, melhor dizendo, uma modificação cultural que
se designa habitualmente como Tantra ou “tantrismo”. Embora não possamos
entrar aqui em detalhes sobre esta Tradição (por vezes tão mal compreendida),

30
diremos somente que todas as suas “tecnologias” psico-espirituais resultaram
de séculos anteriores de esforços para que fosse criada uma «síntese filosófica e
espiritual» (Feuerstein) a partir das várias tradições que tinham vindo a surgir.
Assim, o Tantra pode ser entendido como uma integração das mais altas ideias
e ideais metafísicos com os sistemas mais “rurais” e práticos da Índia. O Tantra
entende-se como o sistema mais apropriado para o Kali Yuga ou Idade da Escu-
ridão (com 432.000 anos de duração, segundo os Purānas).
Os ensinamentos Tantra, por volta do final do 1º Milénio EC, espalharam-se
por todo o sub-continente Indiano, «influenciando e transformando a vida espi-
ritual» dos “Hindus”, “Budistas” e “Jainas”. Pouco acrescentando aos domínios
filosófico e espiritual, promoveu, contudo, um estilo de vida que contrastava
com os padrões habituais. Apresentava um “poder” ou princípio feminino, śak-
ti, como poder supremo no universo manifestado. Surgiram também as com-
pilações purānicas com bases nos antigos Purānas do período Védico. Na sua
essência, os Purānas são antigas histórias entendidas como sagradas, à volta das
quais se estabeleceu uma rede conhecimentos filosóficos, mitológicos e ritualis-
tas (sínteses para a população).

7. Período “Sectário” e “Moderno” (1300-Presente)

Surgem os movimentos Bhakti, que integraram uma religiosidade devocional


onde se percebem também as tendências monoteístas que chegaram à Índia
através das invasões muçulmanas e do colonialismo europeus (de matriz cri-
stã). Surgem assim os Xivaítas ou Shaivas, que cultuavam Śiva e os Viśnuítas
ou Vaiśnavas que cultuavam Viśnu. Ao incluírem uma dimensão emocional no
processo psico-espiritual, o movimento devocional – Bhakti-marga – comple-
tou a síntese pan-indiana que tinha de algum modo sido iniciada na Idade Pré-
-Clássica/Épica.
A todo o fermento gerado pelos movimentos Bhakti seguiu-se a queda do Im-
pério Mughal. Cerca do primeiro quartel do século XVIII a presença das Na-
ções Europeias tornou-se progressivamente mais forte até que a Rainha Vitó-
ria assumiu unilateralmente o título de Imperatriz da Índia. Desde a criação
da Companhia das Índias Orientais pelos Ingleses e da Companhia das Índias
Orientas Holandesas mesmo no início do século XVII, o impacto do imperialis-
mo secularizante do Ocidente foi sendo progressivamente devastador sobre as
imemoriais tradições filosófico-religiosas das Terras de Bhārata. Isto conduziu

31
a uma perca progressiva da identidade destes povos que passaram a ter uma
auto-representação distorcida, uma perspectiva negativa de si-mesmos. Muito
do seu sistema de valores foi contaminado com o “cientismo” materialista oci-
dental através de sistemas “educativos” onde as “novas” tecnologias de então
se passaram a constituir como “princípios” de valor. A mão de ferro inglesa era
poderosa, contaminante e por vezes destruidora, conforme nos relata o psicólo-
go e pensador Carl Gustav Jung:

« A invasão do Oriente foi um acto de violência


numa escala devastadora e que nos deixou a obrigação
– noblesse oblige – de compreender o pensamento
do Oriente. Isto é talvez mais importante do que nos
possa agora parecer» (1938).

Notas Finais

Até ao século XX, as cronologias ocidentais sobre a Índia eram francamente


conjecturais. As que aqui se apresentaram devem ser entendidas como sendo
ainda flexíveis. Dada algumas das especificidades do pensamento Indiano – é
notório uma certa “descentração” antropomórfica – as suas cronologias inte-
gram o que entendemos como “Factos Míticos”, como “Factos” Históricos”, e
ainda relatos de frequente simbolismo e alguma ideologia. Certos historiadores
Ocidentais notaram muitas vezes o carácter de “intemporalidade” da consciên-
cia “hindu”, das suas culturas. Mas esta abordagem redutora tem impedido um
estudo sério de uma vasta informação cronológica contida nos Purānas e em
muitos outros textos.
Uma distinção de maior utilidade – para lá das divisões entre tradições religio-
so-espirituais e períodos cronológicos – pode também ser feita entre as orienta-
ções fundamentais de ascetismo (tapas), renúncia (samnyāsa) e enfoque “mís-
tico” (no seu sentido mais abarcante). Isto é transversal a muitas das tradições
filosófico-religiosas da Índia. As diferenças e similaridades entre estas aborda-
gens maiores só podem ser compreendidas quando se integra estudo e prática e
não meramente uma opinião exterior tantas vezes distorcida pela imposição de
outras categorias culturais, que conduzem tantas vezes a afirmações (pretensa-
mente) definitivas e simultaneamente infundamentadas.

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Se pensarmos no “yoga”, verificaremos que muito antes de ter adquirido os
seus significados de “espiritualidade” ou de “disciplina espiritual”, os pensado-
res da Índia desenvolveram todo um corpus de Conhecimento (Jñāna, Gnosis,
Vidyā) e de técnicas que se destinavam a obter uma transformação da Cons-
ciência presente em cada um, uma “transcendência” da simples consciência de
vigília que é entendida como “condicionada”.
Para finalizar diremos que, de um modo geral, as culturas da Índia apresentam
uma tendência para reconhecer, racionalizar (reflexão crítica) e praticar (o que
foi criticamente validado). Reconhecer que de facto existem muitas cosmovi-
sões (filosofias-religiões), por vezes e que é benéfico isso acontecer, pensar cri-
ticamente (mas olhando o outro ponto de vista) de modo a erradicar possíveis
erros (evidenciados consoante vários tipos de lógica e do que é entendido como
meios válidos de conhecimento), para que se passe à verificação através de uma
ciência na primeira pessoa (a prática pessoal).

33
Xintoísmo
Via dos Kami

Mariana Bernardo Nunes


Xintoísmo

Via dos Kami

Xintoísmo ou shintō (神道), literalmente «Via dos kami1», desenvol-


O veu-se como uma expressão própria de identidade local, bem como uma
tradição, supostamente, intimamente ligada à casa imperial, segundo as nar-
rativas das mitologias do Kojiki (古事記) e Nihon Shoki (日本書紀), ambas
codificadas no século viii d.EC.
Ao longo da sua história – que segue de perto os eventos decorridos nos vários
períodos históricos do Japão – o Xintoísmo acolheu e adaptou elementos de
outras tradições nativas, nomeadamente, do Confucionismo, do Taoísmo e do
Budismo.
Enraizado na cultura japonesa, o Xintoísmo possui um panteão bastante diverso
e revolve em torno de uma noção própria de «espiritual» e «espiritualidade».
É portanto, uma cosmovisão, na qual, mundos de natureza subtil habitados por
entidades misteriosas (em que se incluem os kami) e a nossa realidade material,
isto é, o mundo dos humanos ou ningenkai (人間界), se encontram profunda-
mente interligados.
Contudo, não possui um fundador ou um cânone textual propriamente dito,
apesar de ser marcado por uma forte prática ritual desenvolvida no contexto
dos jinja (神社) ou jingū (神宮), espécie de «santuários» de origem ancestral.

Possíveis categorias de shintō

Shintō popular – enraizado no folclore japonês, cuja veneração de kami afe-


ta, particularmente, o quotidiano do devoto. Uma das expressões mais visíveis
deste tipo de shintō são os festivais ou matsuri (祭), nos quais se reúne toda a

1
Kami, no panteão xintoísta, corresponde a entidade que representa tudo o que está fora do vulgar
(divino ou demoníaco: fenómenos, poderes sagrados, invisíveis e poderosos, ocultos deste mun-
do material, mas que o habitam, exigindo pureza de intenções e conformidade ética nos compor-
tamentos, a quem os procura solicitando proteção). Em conformidade com os contextos em que
o termo é usado, pode referir: espíritos, o divino, supremo, elevado, superior, mas da Natureza.
Cada profissão ou atividade tem o seu kami protetor. As montanhas, as árvores, as nascentes, as
cascatas e, obviamente, os santuários, são moradas dos kami. Segundo alguns textos da tradição,
existem 800 miríades de kami, conhecidos por nomes próprios alguns, e outros, completamente
desconhecidos.

37
comunidade, e a sua forte associação com a prática de rituais em jinja, isto é,
shintō de santuários.

Shintō doméstico – trata-se da veneração dos kami na casa dos devotos, onde,
geralmente, há um pequeno altar em sua honra, visando a proteção da casa e
dos seus moradores. Este tipo de shintō está fortemente associado à veneração
dos espíritos dos antepassados, prática comum nas diversas tradições orientais.
As ofertas de comida diante de uma miniatura de jinja, que inclui um talismã
do Grande Santuário de Ise e talismãs dos kami tutelares, são um aspeto central.
Em frente da miniatura, pode encontrar-se um espelho, o ramo da árvore sakaki
e tiras de papel lembrando shimenawa.

Shintō sectário – oficialmente kyōhashintō (教派神道), foi desenvolvido no


âmbito de políticas religiosas do Japão moderno do século xix, que, com su-
cesso, procurou a nacionalização dos jinja e a elevação das práticas rituais nos
jinja como «culto» de Estado, separando-o definitivamente do Budismo. São
grupos reconhecidos e «legitimados» pelo governo, sendo vigiados por parte do
departamento Jingikan (神祇官) (Escritório dos Assuntos dos Kami), substituí-
do em 1872 pelo Kyōbushō (教部省). Entre 1908 e 1945, eram coletivamente
referidos como «13 sectores shintō»: Izumo Oyashirokyō, Ontakekyō, Kurozu-
mikyō, Konkokyō, Jikkokyō, Shinshūkyō, Shintō Taikyō, Shintō Shūseiha, Shin-
tō Taiseikyō, Shinrikyō, Tenrikyō e Misogikyō.

Shintō da casa imperial japonesa – designa o conjunto de ritos religiosos exe-


cutados exclusivamente pela casa imperial, em três diferentes jinja, dentro do
palácio imperial, sendo que o primeiro é dedicado a Amaterasu, kami que ofere-
ceu ao seu neto Ninigi (de quem descende a Casa Soberana) o espelho sagrado
– yata no kagami (八咫鏡) – um dos sanshu jingi (三種神器), isto é, os três
tesouros nacionais do Japão: a espada (kusanagi no tsurugi, 草薙劍), o espelho
e a peculiar «joia» em forma de vírgula (yasakani no magatama, 八尺瓊勾玉).

Shintō de santuários – Jinja shintō (神社神道) é possivelmente a categoria


mais antiga de shintō, correspondendo a práticas desenvolvidas em edifícios
cujo número alcançou as centenas de milhares. Os seus rituais celebram a
vida, daí o seu fraco envolvimento nas questões fúnebres e a sua presença
fundamental em casamentos. Nacionalizados, no período Meiji (25-01-1868
a 30-07-1912), durante o qual se desenvolveu o movimento nacionalista

38
«shintō estatal», os jinja foram agrupados e sistematizados, tornando-se um
corpo composto por uma hierarquia e cuja administração não se efetuava por
critério de hereditariedade; sacerdotes eram funcionários públicos e os jinja,
instituições estatais. Nos meados do século xx, surgiu a Jinja Honchō (神社本
庁), associação que ainda hoje reúne dirigentes/líderes a nível prefeitural e trata
de questões relacionadas com as práticas shintō «oficiais». Atualmente, jinja
são instituições privadas supervisionados pela Jinja Honchō, apesar de também
poderem operar de forma autónoma.

Santuários xintoístas

Apelidados de jinja (神宮) são espaços (santuários) onde residem kami, daí
serem considerados «sagrados», «casa de deus». A designação jingū (神宮) só
se aplica a grandes complexos de jinja e nem todos os jinja servem de morada
apenas a um kami, apesar de alguns jinja serem uma meta de «peregrinações»
devido à sua veneração/devoção de kami específicos como Amaterasu, algo que
se constata em Ise (Ise Jingū 伊勢神宮).
As principais características de um jinja são:

• Torii (鳥居) – «Portão» que serve de entrada ao jinja e cujas origens


remontam a uma época bastante antiga. No entanto, esta construção
de madeira ou cimento pode também ser encontrada nas florestas ou
ao lado de uma pedra, geralmente alertando para a presença de um
kami. Na sua grande maioria, os torii são precedidos por estátuas de
dois guardiães animais (leões, cães, raposas, veados, etc.) entendidos
como mensageiros pessoais do kami. A sua função é proteger o jinja de
espíritos malignos.

• Lanternas (de bronze ou pedra), tabuletas e estátuas – Onde se fazem


oferendas individuais ou de grupos em honra ou em saudação de um
kami.

• Temizuya (手水舎) – Pavilhão de abluções, por vezes, junto de uma


fonte, diretamente associado aos rituais de purificação interna e externa
do corpo do visitante ou devoto.

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• Shinden (神殿) – Pavilhão do kami (de madeira ou cimento) que, à
semelhança do que se verifica nas «relíquias» (budistas ou cristãs), al-
berga objetos kami, isto é, símbolos sagrados permanentemente escon-
didos dos olhos comuns. Um dos objetos mais frequentes são espelhos
que, não obstante, também podem servir de simples ornamento.

• Haiden (拝殿) – Pavilhão de veneração, local onde se efetuam ora-


ções, cujo interior só pode ser visitado pelos sacerdotes. No entanto, é
também neste espaço que os visitantes depositam uma moeda na «caixa
do dinheiro» ou saisenbako (賽銭箱), agitam um sino (nem todos os
jinja incluem este objeto), batem palmas uma vez e dirigem uma peque-
na oração ao kami, antes de irem aos seus afazeres.

• Shamusho (社務所) – «Escritório do santuário», pouco comum em


jinja de menor dimensão. Local de consulta dos visitantes com o sacer-
dote local, bem como compra de amuletos, postais e outras recordações.

• Gohei (御幣) – Espécie de varinha com tiras de papel dobradas, num


formato ziguezague, e cuja cor nem sempre é branca. É tanto uma ofe-
renda simbólica como indica a presença do kami no «santuário». Esta
função decorativa é partilhada pelas bandeiras decoradas com imagens
do Sol, Lua ou animais.

• Haraegushi (祓串) – Principal objeto, presente nos rituais de purifi-


cação, sendo utilizado exclusivamente por sacerdotes ou sacerdotisas.
Por vezes, esta «varinha» é substituída por um ramo da árvore sagrada
sakaki.

• Shimenawa (しめ縄) – Corda de palha, do qual pendem pequenas fitas


de papel brancas, geralmente localizada próxima dos objetos ou dos
locais sagrados onde residem kami. Frequentemente, costuma ver-se
shimenawa em torno de árvores (dentro do jinja) ou atadas aos pilares
do jinja.

40
Ritualística shintō

As cerimónias de grupo em honra do kami são realizadas exclusivamente em


jinja, reforçando a noção de uma tradição espiritual associada a uma forte de-
voção do crente/sacerdote. Compõem-se de quatro elementos fundamentais:

• Temizu (手水) – Purificação através da água que tanto pode ser in-
formal (pelo devoto) e formal (pelo sacerdote). O objetivo é eliminar
«impurezas»/«poluição» (kegare 穢) e os pecados (tsumi罪) do corpo e
coração-mente (kokoro 心).

• Shinsen (神饌) – Símbolo de respeito e veneração aos kami, cerimónia


realizada, diariamente ou duas vezes por dia, de preferência. Consiste
em oferendas de alimentos simples, como arroz, vegetais, fruta, sal,
água, vinho de arroz (miki), bem como de dinheiro (depositado no sai-
senbako) ou de materiais (seda, papel, madeira). As oferendas de géne-
ros podem ser cozinhadas ou cruas.

• Norito (祝詞) – Orações recitadas por sacerdotes em Japonês clássi-


co, evocando ancestralidade. Formalmente, são poemas que se iniciam
com umas palavras em honra do kami, seguidos de referências à origem
de determinado ritual, expressão de graças, reportar ou efetuar petições
ao kami, enumeração das oferendas. Em contexto funerário, norito é
uma expressão de condolências para com o espírito do falecido.

• Naorai (直会) – Um festim simbólico realizado no final de cada ce-


rimónia shintō, no qual se «come em conjunto com os kami», expres-
sando aproximação/intimidade entre o crente e o kami.

Principais rituais shintō

Alguns rituais são bastante antigos, outros relativamente recentes; no caso dos
rituais de natureza imperial, estes surgem somente no período Meiji, época na
qual se oficializou um certo tipo de Xintoísmo como «religião de Estado», em
detrimento da perda de influência e popularidade do Budismo:

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• Hatsumōde (初詣) – Diretamente associado ao Dia de Ano Novo (Sho-
gatsu no Hi), corresponde ao ritual da primeira visita dos japoneses ao
jinja, expressando-se gratidão pelo ano anterior e apelando à proteção
do kami local, para que este o ajude ao longo do ano.

• Miyamairi (宮参り) – Visita de um recém-nascido ao jinja local.

• Shichi-go-san (七五三) – Cerimónia realizada no dia 15 de novembro.


Nesta data, crianças de 7, 5 e 3 anos vestem as roupas mais tradicionais
e visitam os jinja, a fim de serem abençoadas.

• Kinensai (記念祭) e Niinamesai (新嘗祭) – Celebrações realizadas,


anualmente, no dia 17 de fevereiro e 23 de novembro, respetivamente,
pelo Imperador. Cerimónias desenvolvidas no contexto de corte japone-
sa, nas quais o Imperador reza aos kami para que haja uma boa colheita.
Na cerimónia niinamesai, agradece-se pela colheita e oferece-se um
pouco de arroz aos kami.

• Kigengetsu (紀元節) – Celebração do dia 11 de fevereiro em honra do


«fundador» do Japão, o mítico imperador Jinmu, cuja origem remon-
ta provavelmente ao século vi. Jinmu é supostamente descendente de
Amaterasu, kami protetora da casa imperial.

• Meijisetsu (明治節) – Aniversário do imperador Meiji (3 de novem-


bro), célebre governante postumamente «kamificado», juntamente com
a sua esposa, construindo-se em sua honra, o Meiji jingū, em Shibuya
(Tóquio), um dos jinja mais conhecidos, juntamente com Ise e Izumo.

• Tenchōsetsu (天長節) – Aniversário do atual imperador do Japão,


Akihito (23 de dezembro).

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Principais kami do panteão shintō

O panteão é bastante diverso, incluindo kami especificamente associados a fe-


nómenos da natureza, alimentos e a uma função prática; outros são personagens
históricas «kamificados», tal como poetas, imperadores ou generais:

• Izanagi (伊邪那岐) e Izanami (伊邪那美) – Casal de kami que criou


o mundo tal e qual o conhecemos. Após a sua morte, Izanami torna-se
a protetora e senhora do «mundo subterrâneo» ou Yomi (黄泉), sendo
incapaz de regressar ao «mundo dos vivos»; Izanagi é tido como o
fundador da prática ritual harae, bem como o «pai» dos kami mais im-
portantes da tradição shintō (Amaterasu, Tsukuyomi e Susanoo).

• Amaterasu Ōgami (天照大神) – Principal kami, cuja principal associa-


ção é ao Sol e à luz purificadora capaz de dissolver as trevas. Segundo
o Kojiki, Amaterasu nasceu do olho esquerdo de Izanagi, após este se
banhar como forma de purificação da «sujidade» do Yomi. Amaterasu
é venerada pela sua função agrícola e é, como já referido, a suposta an-
tepassada da casa imperial japonesa, até hoje. Amaterasu tem o corvo
como principal mensageiro animal.

• Tsukuyomi no Mikoto (月夜見の尊) – Kami da Lua, nascido do olho


direito de Izanagi, irmão de Amaterasu. Depois deste ter morto a kami
do alimento (Ukemochi), Amaterasu, enraivecida, deslocou-se para o
lado oposto de Tsukuyomi, nunca mais se vendo junto do irmão (o dia
nunca mais se juntou à noite!). Outras narrativas aludem a este aconte-
cimento, mais protagonizado pelo irmão Susanoo no Mikoto.

• Susanoo no Mikoto (須佐之男尊) – O temperamental kami que é re-


tratado como um indivíduo invejoso do poder da sua irmã Amaterasu.
Contudo, também é celebrado como herói, tendo derrotado o terrível
monstro Yamata no Orochi (八岐の大蛇), levando à descoberta da cé-
lebre espada Kusanagi.

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• Ame no Uzume no Mikoto (天宇受売命) – Kami da madrugada e fo-
lia, igualmente importante na tradição shintō devido ao seu papel na
estratégia de recuperar a luz perdida, após Amaterasu se ter isolado na
gruta. Ame no Uzume é ainda uma mestra das artes e da dança. O seu
consorte é o seu irmão Sarutahiko Ōkami (猿田毘古大神), patrono das
artes marciais, incluindo o aikidō.

• Inari Ōkami (稲荷) – Kami do arroz e da fertilidade cujo animal pro-


tetor é a raposa (kitsune). Venerado por mercadores, é um kami que
escuta e atende aos desejos dos devotos, geralmente relacionados com
questões monetárias.

• Hachiman (八幡神) – Kami da guerra e protetor do Japão e do seu


povo. Uma divindade agrícola que, posteriormente, se tornou guardiã
do clã Minamoto, cujo herdeiro Yoritomo instaura o primeiro xoguna-
to, regime militar que só foi extinto no século xix. Tem a pomba como
animal mensageiro.

• Tenjin (天神) – Célebre poeta do período Heian (794-1185, com capi-


tal em Kyoto), deificação de Sugawara no Michizane (famoso erudito
e político, 845-903), o kami do ensino e da intelectualidade. Os seus
principais jinja localizam-se em Quioto e Fukuoka.

• Oda Nobunaga (織田信長) – Célebre líder militar e dáimio que nun-


ca alcançou o título de xogum, embora tenha conseguido unificar um
Japão dividido em vários clãs, durante o período Sengoku Jidai. O seu
espírito reside em Kenkun-jinja, Quioto.

Algumas noções relevantes em shintō

Hitorigami (独神) – Espécie de «divindades criadoras» que surgem no segui-


mento da divisão entre o céu e a terra, independentemente, não em pares como
os kami. Ao todo, correspondem a cinco, embora os mais relevantes sejam:

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Ame-no-Minakanushi (天御中主), Takami-musubi e Kamu-musubi, responsá-
veis por invocar Izanagi e Izanami.

Kami (神) – Refere-se tanto a uma qualidade ou propriedade que infunde exis-
tência, a uma descrição de um fenómeno que demonstra essa mesma qualidade,
bem como um nome próprio que procure identificar tal fenómeno. Traduzido
erroneamente por «deus», kami refere-se a algo que não é infinito, omnisciente
ou omnipotente. Possivelmente, entendido como uma entidade invisível invo-
cada em cerimónias com o propósito de ajudar as pessoas, apesar de também
residir em locais «sagrados» como montanhas, rios, florestas, pedras. Em tem-
pos antigos, os kami eram integrados num contexto de animismo.

Musubi (産霊) – Homens, kami e os elementos da natureza não formam cate-


gorias distintas, partilhado da mesma «raiz natural»; todos os seres – visíveis
ou não – são manifestações desta «força criadora», espécie de base da própria
vida que permeia todas as formas de vida.

Jinja (神社) – Local onde se realizam várias práticas e rituais e, hoje, «oficial-
mente» associado à tradição shintō, desempenhando várias funções consoante
a natureza – pessoal/popular, imperial e «festiva» – dos seus rituais. Jinja eram
locais administrados outrora por linhagem familiar. O número de pessoas que
se responsabiliza por estes espaços pode variar, embora geralmente inclua miko
(巫女) que servem de assistentes aos sacerdotes, por vezes, observando o cum-
primento dos rituais na qualidade de sacerdotisas. Jinja são responsáveis pela
organização dos matsuri.
Kessai (決済) – Imersão do devoto em água que também pode ser realizado
pelos sacerdotes, no período de «abstinência», isto é, na véspera do matsuri.
Enquadrado numa noção forte de purificação, kessai é um rito preliminar, não
de «exorcismo», no qual se lavam sobretudo as mãos e a boca.

Misogi (禊) – Ritual cuja prática supostamente remonta ao kami Izanagi e que
consiste na imersão do devoto em água, geralmente de uma nascente, cascata ou
à beira-mar. De natureza asceta, misogi produz efeitos sobretudo terapêuticos.

Harai (祓) – Realizado exclusivamente por mestres xintoístas ou kannushi (神


主), é um rito de purificação mais formal, associado a «exorcismo», incluindo
a recitação de umas palavras (oração) para o efeito e a agitação da haraegushi,

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«limpando» o objecto, grupo ou indivíduo. O ritual de total purificação da
nação designa-se oharai (お祓い).

Shubatsu (修祓) – Complemento do harae que consiste no salpicar de sal ou


água salgada no grupo.

Matsuri (祭) – Festivais anuais ou bianuais, organizados pela comunidade e


pelo sacerdócio dos jinja. Os matsuri estão ligados intimamente ao ciclo das
estações agrícolas e são ocasiões animadas, acompanhadas por música, dança
e procissões. Dos mais relevantes, destaca-se o Gion Matsuri de Quioto (1-31
julho).

Kagura (神楽) – Danças «sagradas» acompanhadas de música tradicional


«clássica», cuja origem supostamente remonta a Amaterasu, na sequência de se
ter enfurecido com o kami e seu irmão e se refugiar numa gruta. Estas danças
possuem um claro elemento de devoção ao kami e centram-se no movimento
das mãos e na postura do dançarino, não no movimento dos pés.

Mikoshi (神輿) – Meio de transporte do kami, durante o ritual de procissão


realizado nos matsuri. Visualmente, é um palanquim ricamente ornamentado
que guarda o símbolo (nunca revelado) sagrado do kami. Neste sentido, a
procissão simboliza, entre outras coisas, a transferência do kami do jinja para
um local de «descanso», antes de regressar ao jinja; o kami sai do seu domínio
– shinkai (神界) – e reside temporariamente no ningenkai.

Reizan (霊山) – As montanhas, juntamente com as árvores, sempre foram lo-


cais de veneração para os japoneses. Quando um kami habita uma determinada
montanha, esta passa a ser designada de reizan. Em tempos mais antigos, as
funções hoje reservadas aos jinja eram desempenhadas em montanhas e flores-
tas, espécie de «abrigos» dos kami.

46
Xintoísmo no Japão

O culto dos kami precede a formalização da tradição shintō que se foi adaptan-
do ao longo da história do Japão. Desde modo, pode dividir-se a «evolução» do
Xintoísmo, tal e qual o conhecemos hoje, em vários períodos:

• Período «inicial» – Os kami começam a ser venerados a nível local,


através de oferendas como forma de proteger as colheitas. Surgem
os primeiros «abrigos» temporários em que se procura «domesti-
car» os kami, isto é, yashiro (社) e, consequentemente, legitimar
a autoridade de um clã relativo a outro. Paralelamente, assiste-se
à rápida expansão imperial do território Yamato (大和), na qual a
corte absorve cultos locais (chigi). Surgimento de um tipo de culto
que reunia práticas rituais locais e os kami centrais às narrativas
mitológicas – jingi (神祇). Xintoísmo como uma tradição autóno-
ma antiga.

• Período de «integração» – Estabelecimento da autoridade da corte


imperial japonesa em assuntos kami; é a corte que dita e super-
visiona os rituais jingi, por meio do Jingikan (ano 689); os kami
são divididos em «divindades celestiais» e «divindades terrenas»,
a partir do século vi, durante o reinado do imperador Tenmu. Uma
das fontes mais relevantes, neste período, é o Engi shiki (século x)
que relata e descreve os rituais realizados pelos jinja.

• Período de «convivência» – a primeira tradição não nativa a ser


incorporada no culto jingi foi o Taoísmo, consequência dos avanços
da adivinhação que tinham sido importados da China, através da
Coreia. Surgimento do Conselho de Yin-Yang e crescente influência
dos «mestres de yin-yang» ou onmyōji (陰陽師). Incorporação de
rituais de pacificação e purificação taoísta na corte.

• Período de «sincretismo» – Chegada do Budismo ao Japão e con-


cílio da veneração kami com divindades budistas. No século viii,
surge uma nova categoria de jinja, os jingūji (神宮寺), podendo
entender-se o Xintoísmo como extensão do próprio Budismo. Os
kami são readaptados dentro da teologia budista, tornando-se seres

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inferiores aos budas iluminados (deva ou asura), presos ao ciclo
kármico de vida e morte. No final deste período, acentuam-se di-
visões entre ambas tradições, eventualmente expulsando monges
dos jinja.

• Período de «expansão» – Novas redes de jingi marcam a sua pre-


sença no território japonês. Prática de rituais relacionados com a
resolução de crises e as oferendas típicas do kinensai. No entanto,
santuários a nível mais local constatam um crescente declínio em
comparação com a crescente influência de templos budistas, prote-
gidos pelo xogunato em Kamakura. Presença das peregrinações a
santuários xintoístas integrados nos complexos de templos budis-
tas.

• Período «prematuro moderno» de shintō de Estado – Presença de


famílias como os Yoshida que supervisionam e controlam os rituais
e propriedades ligadas a todos os jinja no Japão (séculos xvi- xviii).
Em vez de vários shintō, reconhece-se a existência do shintō tal
como é definido pela família Yoshida, à custa da perda de influência
do próprio Budismo; o Xintoísmo passa a ser uma presença fre-
quente em funerais, algo geralmente reservado a budistas. Parale-
lamente a este shintō «estatal», surgem grupos shintō fundados por
ação popular, em locais de peregrinação local, não nacional.

• Período de «uniformização» – Corte definitivo do Xintoísmo com


o Budismo, em 1868, e «mistura» de elementos da tradição confu-
cionista com rituais shintō, nomeadamente, o culto aos antepassa-
dos. Xintoísmo é elevado a culto de Estado, eliminando-se todos
os vestígios «religiosos» (práticas divinatórias, curandeiros, ritos
de possessão). Construção da Universidade Kokugakuin (國學院
大學), um dos mais célebres institutos de pesquisa e história da
tradição shintō e da cultura japonesa.

• Período «contemporâneo» – Idealização do Xintoísmo como


«religião» e «fé» (shinkō) da nação japonesa, por parte da NAS
(National Association of Shrines), a mais célebre organização que
apela à realização dos ritos, supervisionando os rituais de natureza

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imperial, bem como ao agradecimento das pessoas em relação aos
kami. Aumento da presença de grupos independentes (Kurozumikyō
e Tenrikyō) – seitas de inspiração shintō – como resultado da
realidade de «Novas Religiões».

Xintoísmo em Portugal

Em Portugal conhece-se muito pouco desta tradição religiosa e o que se sabe é


divulgado por instituições como a Embaixada do Japão em Portugal, bem como
por algumas associações de artes marciais.
É ainda notável a falta de empenho na tradução de obras relevantes para a for-
mação da tradição shintō, nomeadamente as mitologias japonesas do Kojiki e
Nihon Shoki.
E, a nível académico, constata-se uma quase inexistência de teses ou disserta-
ções sobre esta importante tradição espiritual japonesa.

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Jainismo
A Via de Jaina (dos Vencedores)

António Faria
Jainismo

A Via de Jaina (dos Vencedores)

aina é uma palavra originária de uma das quatro famílias linguísticas do


J subcontinente indiano, o sânscrito, e que deriva de jina, «conquistador», um
título dado a uma linhagem de instrutores que não só ultrapassaram as paixões
como realizaram a Iluminação, e que, por isso mesmo, obtiveram a libertação
dos renascimentos, por vezes dita «libertação espiritual». Deste modo, um Jai-
na é aquele que concede a estes «conquistadores» – os que apontam os baixios
no rio turbulento do saṃsāra como passagem para a praia segura do nirvāṇa
– a autoridade total, e tenta agir de acordo com os seus ensinamentos das «três
joias»: Conhecimento Correto, Confiança Correta e Conduta Correta.

Origem e princípios fundamentais

Para esta cosmovisão existe uma linhagem de vinte e quatro «conquistadores»,


ditos também Kevala Jñāna (do sânscrito, kevalī, omnisciente) sendo o último
um contemporâneo do Buda, e que ficou conhecido por Vardhamāna Mahāvīra
(Grande Herói).
Nesta linha de apresentação cumpre referir alguns dos pontos-base da cosmovi-
são jaina: teoria do Karma, a sua ontologia, a ideia de «alma»/«espírito» (sânsc.:
Ātman ou Jīva), categorias como matéria, espaço, tempo, movimento e inércia,
a centralidade ética de Ahiṃsā, o ponto-base da ética jaina, entendido como
a prática da não-violência mental, verbal ou física. Acresce ainda o não-ape-
go (sânsc.: aparigraha), o não-absolutismo ou princípio das multiplicidades
modais (sânsc.: anekāntavāda), entre outros. Tudo isto remete, de certo modo,
para um não-antropocentrismo, pois que implica uma relação muito saudável,
porque harmoniosa, com a Natureza. Estes princípios podem ser entendidos
como essencialmente importantes e globalmente relevantes.

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Diversidade

Existem, no seio desta cosmovisão, dois grupos que apresentam algumas orien-
tações diferentes: Śvētāmbara («vestidos de branco») e Digambaras («vestidos
de céu»). De facto, a questão da nudez foi um dos tópicos que deram origem à
formação destes dois grupos, uma divisão surgida por volta do século IV a.EC
(Feuerstein, 2008). Enquanto estes últimos defendem a impossibilidade de se
atingir a Iluminação em corpo de mulher, os primeiros veneram Malli (19.º
Tīrthaṅkara), postulando que a libertação depende do género e do modo como
se anda vestido.

Textos

Apesar da literatura jaina ser vasta e abrangente, foi somente cerca de dois sé-
culos após o desaparecimento de Vardamãna Mahāvira (25.º Tīrthaṅkara), que
foi efectuada a compilação dos seus ensinamentos, anteriormente divulgados
por tradição oral – «Encontro» de Pāṭaliputra (hoje, Patna), cerca do ano 300
a.EC – numa tentativa de estabelecer o conteúdo das 14 Pûrvas, os «[ensina-
mentos] Anteriores», que, por esse tempo, estariam já parcialmente perdidos,
e cuja passagem a escrito não foi amplamente aceite por toda a comunidade
jaina. A sua primeira apresentação mais sistemática surgiu por volta do século
IV a.EC, no que ficou conhecido como «Aforismos sobre a Compreensão da
Natureza das Categorias» (no original sânscrito: Tattvārtha-adhigamasūtras),
um dos contributos inestimáveis para as cosmovisões indianas.
Podemos contabilizar (segundo os Śvētāmbara) cerca de 45 textos, dos quais
apresentaremos um ou outro tópico. Assim, temos:

•1-12: Os 12 «membros» (sânsc.: Angas), escritos no dialeto Prakrit


(falado pela gente comum do reino de Magadha). Por exemplo, en-
quanto o terceiro «membro» – o «Recetáculo» (sânsc.: Sthâna; prakrit.:
Thân) – fornece uma enumeração detalhada dos princípios-chave da
cosmovisão jaina, a «Instrução sobre os Pontos de Vistas» (sânsc.:
Drishti-Vâda; prakrit.: Ditthi-Vâya), engloba os ecos dos 14 Pūrvas
desaparecidos.

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•13-24: Os doze «membros secundários» (sânsc.: Upaṅgas), e que li-
dam com questões cosmológicas, cosmográficas, astronómicas e hagio-
lógicas.

•25-28: Os 4 Aforismos-Raiz (sânsc.: Mūla-Sūtras), a base para


ascéticos.

•29-38: As dez «Misturas» (sânsc.: Prakīrnas), sobre oração, morrer-


conscientemente, astrologia e medicina.

•39-45: Os 7 «Aforismos Cortantes» (sânsc.: Cheda-Sūtras), que lidam


com regras monásticas.

Haverá ainda que acrescentar o «Aforismo Auspicioso» (sânsc.: Nandi-Sūtra)


que é um texto de hermenêutica, assim como o «Aforismo sobre a Porta da
Discussão» (sânsc.: Anuyoga-Dvāra-Sūtra), que fala sobre a natureza do co-
nhecimento. Tanto um como outro fornecem uma contextualização académica
ao cânone.
Como podemos ver, o contributo jaina é relevante e apresenta múltiplas facetas
para as filosofia de vida das Terras de Bharata (subcontinente indiano). Diremos
ainda, e de modo muito sintético, que o pensamento filosófico jaina é não-teísta,
realista e pluralista/atomista, e, ainda, que assenta numa ética da «autoconquis-
ta». Podemos assim apontar três pilares (entre outros) da metafísica jaina:

1.O modelo da multiplicidade modal (sânsc.: anekāntavāda);


2.O modelo das modalidades (sânsc.: nayavāda);
3.O modelo da predicação condicionada, ou doutrina dos pontos de vis-
ta (sânsc.: syādvāda).

Teoria de conhecimento

O Jainismo apresenta dois tipos básicos de conhecimento: imediato e mediado.


Deste último, podemos destacar três níveis possíveis: perceção, inferência e
testemunho verbal, ou seja, e dito de outro modo, a consciência condicionada
pelo karma possui dois níveis:

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•O que é inferido (sânsc.: mati; aquilo no qual a mente está ativa). Mas
mati subdivide-se em 1) percepção, 2) lembrar, 3) reconhecer, 4) conhe-
cimento da relação modal e 5) inferência.

•Aquilo que é escutado ou conhecido através de palavras (sânsc.: śruti),


ou seja, o testemunho verbal.

Na sua cosmovisão peculiar, os Jainas afirmam que conhecer um objeto é ter


consciência desse objeto. Mas, pergunte-se, como pode haver consciência?
Como pode a consciência «compreender» o objeto? Ora, uma vez que para os
Jainas, a consciência é a essência do ātman e, sendo este abrangente, é conse-
quentemente omnisciente. Deste modo, a consciência tem o impulso natural de
se mostrar a si mesma e desvelar os objetos em qualquer ato cognitivo, sendo
capaz de o fazer sem o recurso da mente associada aos sentidos. A isto se chama
«Consciência Só», ou «Conhecimento Absoluto» (sânsc.: Kevāla Jñāna). No
entanto, é devido ao karma (metaforicamente, uma espécie de «pó» que adere
ao ātman) que toda a potência de ātman não se estabelece em ato. Deste modo,
o conhecimento nada mais será do que o resultado da modificação temporária
da consciência do ātman que passa a ser mediada pela mente e sentidos (sânsc.:
parokṣa). A possibilidade de haver cognição imediata, ou seja, não-mediada,
dita também cognição direta (sânsc.: aparokṣa), ocorre pela remoção do kar-
ma associado. Também este conhecimento imediato (que possibilita as perce-
ções extra-sensoriais ou extra-ordinárias) possui três níveis, consoante o grau
de pureza adquirido: Absoluto, Mente-Mente (manah-paryāya; no sentido de
«entrar» na mente de outro, portanto, sem recurso ao conhecimento, através
da consciência sensorial, a consciência que opera através dos órgãos dos senti-
dos) e Conhecimento Limitado (sânsc.: avadhi), sendo que este último permite
conhecer os objetos, independentemente, das suas dimensões e distância. Em
resumo, e por ordem crescente de abrangência e pureza, estaremos a falar de
clarividência e clariaudiência, telepatia (ambas limitadas no espaço e no tempo)
e omnisciência (sem limite no espaço-tempo).
Mas, também, o conhecimento pode ser dividido em dois grandes blocos:

•Pramāṇa – o conhecimento de uma coisa tal como é.

•Naya – conhecimento de uma coisa nas suas relações.

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Naya tem a ver com um ponto de vista (com um «pensamento»), a partir do
qual afirmamos sobre uma coisa, sendo toda a verdade necessariamente função
dos nossos pontos de vista, um conhecimento parcial. Consequentemente, esse
conhecimento parcial é somente um conhecimento possível, entre os inumerá-
veis aspetos possíveis de uma «coisa». É isto que se denomina «naya». Con-
sequente, «naya», tomada como conhecimento final, é simplesmente falácia,
ignorância.
De acordo com a sua teoria da relatividade do conhecimento (sânsc.: Syādvā-
da), os Jainas reconhecem sete tipos de «motivos», sete formas de julgamento,
ou seja, defendem um sistema de lógica dita de «Predicação Condicionada».
Assim:

1.Relativamente, uma coisa é real (é).


2.Relativamente, uma coisa é irreal (não-é).
3.Relativamente, uma coisa é simultaneamente real e irreal (é e não-é).
4.Relativamente, uma coisa é indescritível (não-é predicável).
5.Relativamente, uma coisa é real e indescritível (é, sendo não-predicável).
6.Relativamente, uma coisa é irreal e é indescritível (não-é, sendo não-
-predicável).
7.Relativamente, uma coisa é real, irreal e indescritível (é, não-é, sendo
não-predicável).

Metafísica (anekāntavāda)

De acordo com a metafísica jaina, a realidade é por natureza complexa por-


que tida como realista e pluralista. Por isso, é entendida como permanente no
seio da mudança constante, possuindo identidade, no meio da diversidade, e
unidade, no seio da multiplicidade, sendo ainda a realidade caracterizada pela
originação, decaimento e permanência.
Assim, é postulada a existência real de inúmeros objectos e Jivas (ātmans «po-
luídos» pelo karma). Deste modo, os objectos de conhecimento são reais e não
meras «ideias». No entanto, nunca podemos esquecer que «a metafísica jaina é
uma metafísica da substância», o que implica que tudo, incluindo a ação, possui
substância (ver esquema mais à frente), ou seja, e rasgando fronteiras, todo o
universo é processo no espaço-tempo.

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Cisão e interação negativa

Apesar de a cisão ocorrida no mundo jaina – que deu lugar ao surgimento de


duas correntes dentro da cosmovisão jaina – são poucas as diferenças filosóficas
entre as duas orientações daí resultantes. Talvez o maior acidente que ocorreu
no mundo jaina (e um pouco por uma grande parte do território do subconti-
nente indiano) foi o morticínio levado a cabo por muçulmanos, que não só cha-
cinaram à espada milhares de monges e monjas jainas como destruíram os seus
templos e bibliotecas, prejudicando severamente a vitalidade da cultura jaina.
Mas, embora sejam em pequeno número (cerca de cinco milhões, na Índia), não
podemos esquecer a importância da sua prática vivencial que gira em torno de
valores de harmonização e não de destruição, uma arte da vida que colhe hoje
poucas simpatias numa parte significativa do mundo (dito) desenvolvido. Uma
via de Purificação

Karma e Via

À semelhança de outras cosmovisões da Ásia, a espiritualidade jaina propõe


um caminho para a autoemancipação, pela realização do «Conhecimento Abso-
luto» (sânsc.: Kevāla Jñāna) como consequência da eliminação do karma, isto
é, a libertação da lei de causalidade ética. É de referir que, embora o conceito
de karma tenha um campo alargado de significados, tem, de diferentes modos,
uma grande importância, em todas as cosmovisões da Índia. No caso Jaina, foi
grandemente elaborada e apresenta uma aplicabilidade abrangente que engloba
também as ações e volições, que determinam tanto a vida presente como as vi-
das futuras do Jīva. Podemos encontrar, na cosmovisão jaina, 8 tipos principais
de karma, tendo os académicos jaina listado 148 tipos de atividade cármica:

1.Karma, impedindo a sabedoria;


2.Karma, impedindo o conhecimento correto, gerando assim a aceitação
do código jaina da conduta ética;
3.Karma, conduzindo à experiência do prazer e da dor;
4.Karma, causando ilusão completa;
5.Karma, determinando a duração da vida do indivíduo;

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6.Karma, determinando o estatuto social do individual;
7.Karma, determinando o nascimento do indivíduo numa dada família;
8.Karma, que é genericamente obstrutivo.

Sob o ponto de vista da sua atividade no tempo, pode ser classificado em três
categorias:

a) O que foi acumulado em existência passadas (sânsc.: satta-karma);


b) O que é produzido na presente existência, mas que só surge mais tarde
(sânsc.: bandha-karma);
c) O que está ativo agora (sânsc.: udaya-karma).

Assim, e dado que não existe nenhum postulado absolutamente determinista


neste modelo, se tivermos efetivamente de experienciar o karma que está pre-
sente (sânsc.: nikacita) poderemos também evitar o que está latente (sânsc.:
shithilla), pelas práticas das disciplinas que esta cosmovisão recomenda.
O karma é também entendido como uma espécie de substância que pode ser
gerada, armazenada e aniquilada, sendo experienciado como um influxo que,
enquanto não for extinto, prende o Jīva à matéria inerte (sânsc.: ajīva-pudga-
la), levando-o a experienciar, continuadamente, a roda dos nascimentos e das
mortes. De notar que a noção jaina de jīva abarca todas as «entidades», ou seja,
inclui por exemplo a água e o fogo, ao passo que, em algumas das «escolas»
do Sanāthana Dharma (por exemplo, o Vedānta), esta noção só se aplicará aos
seres dotados de consciência própria. Em resumo, diremos que o karma é o
«poluidor» da Consciência (sânsc.: ātman) e que a sua diminuição e cessação é
alcançada através da autoabsorção (sânsc.: ātmadhyāna) resultando na emanci-
pação da existência condicionada.

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Degraus da Virtude

O praticante jaina tem como propósito passar da vivência condicionada para


a experiência abrangente e profunda da liberdade, contentamento e energia.
Abandonar tudo e encetar a prática de renúncia não é a única via, dado que é
entendido como possível mesmo para qualquer «proprietário» (alguém integra-
do na sociedade) libertar-se (parcial e progressivamente) do karma.
Entre a vida mundana e a libertação são propostos quatorze níveis de virtude
(sânsc.: guṇa-sthāna) que levam o praticante desde a sua representação (sânsc.:
mithyā-dṛṣṭi), como sendo um corpo-mente, passando por uma progressiva vi-
são correta que lhe permite entender-se para além do complexo corpo-mente
por transcensão dos limites impostos pelo karma. Em resumo, teremos os se-
guintes estágios, onde se apontam algumas características inerentes:

1. Visão falsa, estando o iniciante à mercê do karma.


2. Alguma apetência para a visão correta, com longos períodos de igno-
rância.
3. Visão correta e visão falsa. Estado misto com oscilação entre verdade
e dúvida.
4. Visão correta, mas com falta de autocontrolo emocional. Começa aqui
o processo espiritual.
5. Autocontrolo condicional e visão correta. A possibilidade da via ascé-
tica.
6. Controlo sobre a não-atenção, um controlo ainda imperfeito sobre os
quatro vícios: raiva, orgulho, ilusão e ganância. Tomada de consciência
das tendências, para passar para padrões não-conscientes, pela aplica-
ção de uma atenção fina.
7. Atenção controlada, purificação da mente, concentração intensa e ab-
sorção meditativa.
8. O grande esforço com «cessação»: prática meditativa especial, pela
qual o asceta cultiva uma alegria até então desconhecida, e obtendo um
poder sobre si mesmo, cada vez maior.
9. O grande esforço com «não-cessação»: neste estágio os impulsos se-
xuais estão inteiramente sob controlo; as forças emocionais estão igual-
mente bem domesticadas.

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10. O esforço subtil: agora, mesmo o derradeiro interesse mundano é erra-
dicado.
11. A pacificação da ilusão: a noção errada de ser uma entidade física e
separada está completamente dominada, abrindo espaço para a intuição
da Consciência universal.
12. O desaparecimento da ilusão: toda a ilusão egoica é destruída; não ten-
do impedimento oriundo do karma, o praticante atinge a gnose.
13. Transcendência ativa: isolamento interno de toda a multiplicidade;
transcensão, condição sublime.
14. Transcendência inativa: erradicação total do karma. Um ser integral-
mente liberto. Para lá dos quatorze estágios de virtude, está a libertação,
a condição luminosa do jīna, o ser perfeito, livre da existência corporal
e do karma.

No Yoga Jaina podemos distinguir duas fases principais: Yoga propriamente


dito e as fases ditas «Preparatórias». Estas últimas, muito resumidamente, cons-
tam das seguintes práticas: veneração do mestre, conduta adequada, ascetismo
e não-aversão à libertação. Só a partir daqui haverá a possibilidade de se iniciar
o Yoga Jaina, que consta de cinco níveis, aqui sumariamente descritos:

1. Lembrar constantemente ou ponderar sobre a natureza essencial de si


mesmo.
2. Contemplação, observação focada sobre a própria natureza essencial,
que aumenta a qualidade e o tempo de permanência em estados mentais
positivos.
3. Meditação (sânsc.: dyāna), ou o fixar a mente em objetos auspiciosos,
acompanhado de um prazer subtil. Estabilidade e capacidade de in-
fluenciar os outros mentalmente.
4. «Uniformidade», ou o modo de indiferença perante as coisas anterior-
mente desejáveis ou indesejáveis, o que conduz à abstenção do uso dos
poderes psíquicos (sânsc.: siddhi) e à atenuação das forças cármicas
que prendem à existência mundana.
5. A remoção integral dos momentos de consciência significa a transcen-
dência dos estados psico-mentais produzidos pelo karma, o que conduz
à emancipação.

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Pelo exposto podemos ver que a cosmovisão jaina tem aspetos em comum com
outras cosmovisões da Índia (como, por exemplo, o Dharma do Buda e o Sana-
thana Dharma, vulgarmente denominados, Budismo e Hinduísmo, respetiva-
mente). De um modo muito sucinto, tocámos em algumas questões relevantes
nesta cosmovisão, infelizmente, pouco conhecida nas culturas ocidentais. Mui-
to para além dos estereótipos que surgem em narrativas de superfície, o contri-
buto jaina para o pensamento e prática vivencial da Humanidade é seguramente
importante. Articula os ideais da não-violência e da pluralidade, propiciando a
justificação para a apreciação mútua entre as verias cosmovisões. O seu contri-
buto foi relevante para todo o pensamento indiano (que influenciou e pelo qual
foi influenciado), principalmente nas interações com outras cosmovisões em
convivência. Podemos dizer que a cosmovisão jaina foi e é como um seixo con-
tinuamente atirado com força e precisão para o centro de um lago: as ondas que
decorrem dessa transferência energética continuam a agitar ideias e a propor
experiências de vida com sentido de harmoniosa abrangência e profundidade.

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Categorias Jainas

Substância
(dravya)

Não-extensa
Extensa
Tempo

Vivente Não-vivente

Princípio de Princípio de Espaço Corpo


Movimento Repouso

Átomos: Compostos
terra; ar;
fogo; água

O Sempre Liberto Prisioneiro


Perfeito

Não-movimento
Movimento plantas: só têm um
sentido

com 5 com 4 com 3 com 2


sentidos sentidos sentidos sentidos

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Budismo
Dharma do Budha

Paulo Mendes Pinto


Budismo

Dharma do Budha

ma parte muito significativa das chamadas religiões assume a existência


U de uma divindade como ideia central da sua constituição. Neste sentido, o
Budismo, um termo muito recente e na verdade redutor, mas que continuamos
a usar por conforto e hábito vocabular, não seria uma religião, pois é não-teísta,
apresentando-se essencialmente como via da busca da libertação dos apegos da
existência.
Para o Buda, a chave para a libertação reside na pureza da mente, que se alcança
pelo esforço individual, através de práticas de meditação e disciplina interior,
que a própria natureza constituinte de cada ser permite, e não pela súplica ou
ação interventiva de uma divindade. Assim, o Budismo é um sistema, mais que
religioso, terapêutico e filosófico.

As origens do Budismo

O Budismo surgiu na região do atual Nepal, e constituiu-se como autêntico mo-


vimento de natureza filosófico-religiosa a partir dos ensinamentos postulados
por Buda, em cujos ensinamentos propôs um via para a erradicação da Duhkha
(Desejo/Sofrimento), em que assenta os seus três fundamentais pilares (ou re-
fúgios): Triratna – Buddha, o Iluminado; Dharma, o Ensinamento; Sangha, a
Comunidade budista.
O aparecimento do Budismo está profundamente ligado, histórica e ideologi-
camente, ao Sanathana Dharma (vulgo: Hinduísmo), sistema religioso com-
plexo, assente na Escritura dos Vedas e seus Upanishades, donde deriva e onde
Buda é considerado uma manifestação ou avatar da divindade Vishnu.

Buddha

A noção de Buda

Buda, em sânscrito Buddha, o Desperto, o Iluminado, é o título dado àqueles


que despertaram plenamente para a verdadeira natureza da mente e dos fenó-

67
menos, os quais pela ausência de entidade própria se manifestam dotados de
omnisciência e de compaixão infinita, para além de uma absoluta imparciali-
dade para com todos os seres sensíveis. A consciência da sua própria realidade
(a natureza búdica) permite-lhes viver de maneira plena, livres de qualquer
condicionamento mental ou emocional, em que radica a Ignorância (Avidyā), e
de que deriva o desejo, o apego e a aversão que estão na origem do sofrimento
dos seres.
A palavra Buda não denomina apenas uma personagem específica que viveu
em de-terminado momento (p.ex.: Siddhartha Gautama, o Buda histórico), mas
ela refere uma literal categoria de seres iluminados que alcançaram a realiza-
ção espiritual, da ausência da realidade intrínseca dos fenómenos. Os escritos
budistas mencionam vários outros Budas que surgiram em épocas diferentes, e
cuja memória se perdeu nos tempos, postulando-se neles também, que outros
surgirão futuramente.

Siddhartha Gautama, o Buda histórico

Siddhartha Gautama terá nascido, provavelmente, cerca de 566 a.EC. Histo-


ricamente, seria príncipe do Reino dos Śākya, atualmente parte da fronteira
do Nepal com a Índia. A sua renúncia à vida e condição de príncipe, levou-o a
abandonar a família por volta dos 30 anos de idade e a procurar respostas para
o sentido da existência humana e do sofrimento.
Como sucede em qualquer cultura, também no Budismo os nomes associados
ao seu personagem principal emergem envoltos de brumas de pendor mitoló-
gico e mistérico. Referido, pelas tradições, como Príncipe Gautama, seria filho
de um dos muitos governantes dos reinos autónomos que, na época, pontuavam
uma vasta região no Norte do Industão. O seu nome, Siddhārtha, em sânscri-
to, significa «aquele cujos objetivos são alcançados», numa direta alusão ao
desenvolvimento do seu caminho existencial. Pertencendo ao clã dos Śākya,
ficou também conhecido também por Śākyamuni, que quer dizer «o sábio do
clã/reino dos Śākya».
Terá começado o seu percurso como tantos outros eremitas, que seguiam um
caminho de ascese, numa vida austera. Passou seis anos como pedinte, conhe-
cendo as mais duras privações e rigor. Contudo, percebeu que não era pelo
campo da mortificação que obteria as respostas que procurava, propondo, mais
tarde, o que ficou conhecido como o «Caminho do Meio», entre os extremos da
rigorosa austeridade e o dos prazeres sensoriais.

68
Por volta dos 35 anos de idade, alcançou a Iluminação. A partir de então, passou
a ser conhecido como Buda, mais especificamente: Buddha Śākyamuni (o sábio
dos Śākya).
A Iluminação de Buda ter-se-á dado em Bodh Gaya, após cerca de 50 dias de
meditação, debaixo de uma árvore. Descobrira que a causa do sofrimento era
o desejo.
Apesar de ter nascido na região do Nepal, em Lumbini, todos os locais do seu
«cami-nho», hoje, estão identificados no território da atual Índia. Este Cami-
nho, especialmen-te a partir do século XX, em que se propõe, abertamente,
como religião/filosofia de pendor universalista, passou a atrair peregrinos de
todo o mundo, que se têm ido fide-lizando ideologicamente e transformando
em seus seguidores, bem afastados do primevo berço ecológico e cultural.
Atualmente, os principais lugares de peregrinação são: Varanasi, Sarnate, Bodh
Gaya, Rajgir, Nalanda, Patna, Vaishali, Kushinagar e Kapilavastu.
Os primeiros ensinamentos foram dados em Sarnate e sistematizou a essência
dos seus ensinamentos. Integrada no chamado «Caminho de Buda», esta é uma
das cidades sagradas do Budismo. Em 528 a.EC, Buda terá vindo aqui, ao Par-
que dos Veados, após a Iluminação, para dar o seu primeiro ensinamento que
ficou conhecido por Roda do Dharma.
No local onde se pensa que Buda tenha dado esses ensinamentos, foi construí-
do o Stupa de Dhamekh, no século V EC. Junto a este santuário de relíquias
existe ainda um outro, o Stupa de Dharmarajika, construído no século III EC,
pelo imperador indiano Ashoka, que, depois de vastas conquistas sangrentas, se
converteu ao Budismo nascente, abandonando toda a violência e tornando-se
um dos seus principais divulgadores. Será um tempo de grande prosperidade na
difusão do Budismo por toda a Índia e regiões limítrofes.
Gautama viveu até os 80 anos de idade, transmitindo os seus ensinamentos
e conquis-tando um grande número de discípulos, monges ou não-monges. A
morte de Buda terá ocorrido em 486 a.EC. A tradição diz que faleceu devido a
envenenamento acidental (por cogumelos) por um dos seus discípulos.

Filosofia e princípios

Ao enfrentar os sofrimentos da vida, que são o resultado de uma relação de


separatividade do sujeito se entender como «in-divíduo», como um «eu» sepa-
rado, a mente pode atingir o estado de Nirvāna (pureza mental), e chegar ao fim

69
da condição existencial dos renascimentos. Algumas tradições budistas creem
que, devido a uma alimentação desnaturada, à base de seres sencientes, o renas-
cimento pode ocorrer no reino animal em seres inferiores, pelo que muitos dos
seguidores adotam uma dieta vegetariana.
Neste princípio do renascimento encontra-se consignada a ideia de Karma, em
nada semelhante à ideia de destino de algumas religiões de tradição mediter-
rânica. O Karma não deve ser entendido como uma coisa, mas sim como uma
determinação com origem em «fatores mentais», positivos ou negativos, que
ali estão/são «implementados», mas que podem ser modificados, ou seja, enfra-
quecidos e por fim erradicados.

As Quatro Nobres Verdades

As chamadas Quatro Nobres Verdades são o cerne filosófico e, em especial,


prático do Budismo. Estas são quatro noções básicas que contextualizam os
demais ensinamentos e práticas – todas as escolas do Budismo as reconhecem
e nelas se baseiam.
Desde os primeiros discursos do Buda aos seus discípulos estas noções foram
apresentadas de forma sistemática como um entendimento fundamental e pro-
cessual, a partir do qual outros ensinamentos mais complexos e específicos
poderiam ser compreendidos.
Com base nestes princípios, existem diversas explicações e métodos, bem como
diversos níveis de compreensão de acordo com cada indivíduo.
Elas podem, assim, ser entendidas como:

•Dukkha ariya sacca (em Pali) [Dukkha existe] – Diz respeito ao so-
frimento, mais precisamente, à insatisfação, dukkha, uma das três mar-
cas da existência. Esta verdade diz-nos que a mente, quando tomada
pela ignorância, não é capaz de dissociar a insatisfação da experiência
sensorial.

•Dukkha samudaya ariya sacca [a origem de Dukkha] – Mostra-nos


por que motivo a mente ignorante nunca está plenamente satisfeita:
através dos sentidos, entrando em contacto com sons, os aromas, os
sabores, as sensações tácteis e as ideias, adquire apego às sensações

70
agradáveis e aversão às desagradáveis. Como o mundo está em cons-
tante mutação, esse desejo nunca atinge a satisfação.

•Dukkha nirodho ariya sacca [a possibilidade de erradicar a Dukkha]


– Através da compreensão do processo que causa a insatisfação, o de-
sejo pode ser abandonado e assim alcançar-se a cessação de dukkha,
a «terceira nobre verdade». Se a insatisfação surge, porque a mente
está constantemente a projetar a sua felicidade e a sua tristeza na expe-
riência sensorial, eliminando esse condicionamento, é possível alcançar
uma satisfação incondicionada.

•Dukkha nirodha gamini patipada ariya sacca [o método, a «terapia»


para a erradicação de dukkha] – é o caminho que conduz à cessação da
insatisfação, ou seja, um conjunto de práticas que permitem reconhecer
a verdadeira natureza da mente e a sua relação com os sentidos, de for-
ma que a experiência sensorial deixe de ser um aspeto condicionante da
felicidade e da tristeza, eliminando a insa-tisfação na sua origem.

A filosofia de vida budista baseia-se num princípio orientador da leitura do


sofrimento: a existência está relacionada com a insatisfação; por seu turno, a
origem do sofrimento é a incompreensão, a falta de sabedoria, os desejos mate-
riais, psicológicos e «espirituais».
Assim, para superar a dor/sofrimento deve superar-se o desejo e, sequencial-
mente, a ignorância, que gera o «egotismo», que gera o desejo, e o apego-a-
versão. Assim, o ser humano, para se livrar da dor/sofrimento tem as práticas
propostas por Buda no Nobre Caminho Óctuplo.

O Nobre Caminho Óctuplo

Como o nome indica, o Nobre Caminho Óctuplo é um conjunto de oito práticas


que correspondem à «Quarta Nobre Verdade» do Budismo. Essas oito práticas
são:

•Compreensão correta: conhecer as Quatro Nobres Verdades de ma-


neira a entender as coisas como elas realmente são, e com isso gerar

71
uma motivação de se querer libertar do sofrimento (dukkha), e também
os outros seres.

•Pensamento correto: desenvolver as nobres qualidades da bondade


amorosa, não tendo má vontade em relação aos outros, não querendo
causar o mal (nem em pensamento), não ser avarento, não ser egoísta.

•Palavra correta: abster-se de mentir, de falar em vão, de usar pala-


vras duras ou caluniosas, e, ao invés disso, dizer a verdade, ter discurso
construtivo, harmonioso, conciliador.

•Ação correta: não matar, não roubar e não ter uma conduta sexual
indevida; promovendo a vida, a prática da generosidade e não causar
sofrimento por práticas sexuais egocêntricas;

•Meio de vida correto: evitar qualquer ocupação que prejudique os ou-


tros, tais como negócios fraudulentos, tráfico de drogas ou matança de
animais; olhando os outros com amor, compaixão e alegria, e no dia-a-
-dia, praticar a generosidade, a ética, a paz, o esforço, a concentração e
a sabedoria.

•Atenção correta: praticar a autodisciplina para obtenção da quietude


e atenção da mente, de maneira a evitar estados mentais maléficos e a
desenvolver estados mentais positivos e saudáveis.

•Meditação correta: desenvolver completa consciência de todas as


ações do corpo, incluindo pensamentos e palavras, a fim de evitar atos
insanos, pela contemplação da natureza verdadeira de todas as coisas.

•Visão correta: com todos os outros passos realmente realizados inter-


namente, promove-se uma visão correta do mundo e da vida, através
de um estado de consciência não condicionada, agindo de acordo com
essa visão.

72
Diversidade do Budismo

Como muitas outras tradições, no seio do Budismo também se geraram contra-


dições e disputas ideológicas que deram origem a várias escolas de pensamen-
to, e que, com o tempo, se autonomizaram, constituindo-se como ramificações
genuínas do Budismo das origens. Atualmente, a principal cisão está refletida
em duas grandes Tradições: a da escola Theravāda e as linhagens Mahāyāna,
de que derivou a Vajrayāna.
Numericamente falando, as escolas mais representativas são:

•Theravāda, estabelecida no Sudeste asiático;

•Zen japonês e Chan chinês, escolas com ênfase na meditação e inte-


grantes da linhagem Mahāyāna;

•As escolas japonesas devocionais da Terra Pura (Jodo Shu) e Verdadei-


ra Terra Pura (Jodo Shinshu), também Mahāyāna;

•As escolas tântricas do Budismo tibetano (Nyingma, Kagyu, Gelug e


Sakya) que fazem parte da linhagem Vajrayāna.

Theravāda

Etimologicamente, Theravāda vem do Pali, da junção de duas ideias: thera


(anciãos) e vada (palavra ou doutrina) – a «Doutrina dos Anciãos».
Geralmente considerada a mais antiga das escolas de Budismo, atualmente
existentes, Theravāda é uma das vinte escolas que surgiram nos primórdios do
Budismo – estas «escolas» constituíam o que ficou conhecido como o «veículo
de base». Os princípios Theravāda estão codificados no Tipitaka (Pali), texto
que grande parte dos estudiosos aceitam como tendo o registo mais antigo dos
ensinamentos do Buda.
Os países onde esta escola está implantada são, principalmente, o Sri Lanka, a
Tailândia, Myanmar, Laos, o Cambodja e o Bangladesh.
Theravāda é a única escola que não considera canónicas as escrituras adotadas
pelas escolas Mahāyāna e Vajrayāna.

73
Mahāyāna

A palavra Mahāyāna, em sânscrito, significa «Grande Veículo». Trata-se do


grupo de escolas budistas que enfatizam o ideal de Bodisatva – Buda da Com-
paixão –, em contraste com os seguidores que apenas buscam a Iluminação
para si próprios (via exclusivamente monástica), e que, depreciativamente, são
chamados Hināyana (Pequeno Veículo) e conotados com a tradição Theravāda.
A filosofia Mahāyāna é seguida também pelo Vajrayāna (Veículo de Diamante).

Vajrayāna

O «Veículo de Diamante», tradução do Sânscrito, é uma escola oriunda do


Mahāyāna pelo que, muitas vezes, é considerada como uma extensão do Budis-
mo Mahāyāna, uma vez que difere essencialmente na adoção outras técnicas,
as técnicas tântricas, que permitem um caminho mais rápido para a Iluminação.
Entre os movimentos que desta escola se desenvolveram, encontram-se as Shin-
gon e Tendai, originárias da China, com influências Dao/Taoístas, e presentes
também no Japão, para além das escolas Nyingma, Gelug, Kagyu e Sakya, de
origem tibetana.

Budismo Zen

Trata-se do nome japonês de um ramo do Budismo Mahāyāna (intepretação


não con-sensual), praticado sobretudo na China (onde se denomina Ch’an),
Japão, Vietname e Coreia.
Trata-se, sem dúvida, de uma das escolas budistas mais conhecidas e de maior
expan-são na Europa e nos Estados Unidos da América. A sua prática básica é
a meditação Zazen. A prática Zen tem duas vertentes principais: Soto (maior
ênfase à meditação silenciosa) e Rinzai (faz amplo uso dos koans).
Os budistas Zen enquadram a sua tradição numa transmissão de mestre a discí-
pulo que remonta a Mahakashyapa, sucessor de Gautama, que teria entendido a
mensagem búdica para além das palavras.

74
Terra Pura

Trata-se de uma das tradições budistas com mais adeptos. A escola original foi
funda-da por Honen Shonin (1133-1212) – no original, em japonês, chama-se
Jodo Shu.
É uma forma de Budismo também conhecida como Amidismo pela sua forte
devoção ao Buda Amida, o Buda da Luz Infinita.
Espalhada pelo mundo, com vertentes particularmente devocionais, a Terra
Pura divi-diu-se em várias subescolas.
As Escolas Terra Pura remetem a sua origem à tradição Mahāyāna.

O Budismo Tibetano

O Budismo Tibetano, também com origem na vertente Mahāyāna, está repre-


sentado nestas principais escolas: Nyingma, Gelug, Kagyu e Sakya.
Muitas vezes confundido com o Budismo Vajrayāna, por ser o mais numeroso
nessa escola, o Budismo Tibetano tem as suas práticas de meditação na forma
de elaborados rituais, com entoação de mantras para uma «transcensão» do
ego. Possui uma importante tradição artística, nomeadamente na pintura e na
escultura.
Profundamente marcada por tradições monásticas, aplica especial ênfase no re-
lacionamento entre praticantes e lamas. Na Europa, implantado nos principais
centros urbanos e em mosteiros construídos em lugares afastados e calmos, o
Budismo Tibetano teve um enorme desenvolvimento nas últimas décadas.

Dalai-Lama

Os Dalai-Lama são, segundo as crenças do Budismo Tibetano, a manifestação


do Bodhisattva Avalokiteśvara, a personificação budista da Compaixão, o Se-
nhor da Compaixão.
Alguns dos Dalai-Lama estão sepultados no interior do Potala, fazendo crescer
a aura de sacralidade do local.
O décimo quarto Dalai-Lama tinha apenas 16 anos quando o Tibete foi ocupado
pela China. A sua fuga, em 1959, tornou-se num dos mais simbólicos atos da
resistência contra a anexação chinesa.

75
O Potala

O palácio-fortaleza dos Dalai-Lama, sobre a cidade de Lassa, está situado a


mais de 3600 metros acima do nível do mar.
Durante mais de trezentos anos, desde o século XVII, este conjunto altamente
complexo de salas, corredores, galerias, escadarias, foi mosteiro, sede do poder
espiritual e de governo.
Diz a tradição que o Potala foi construído de forma sobrenatural numa única
noite. Historicamente, o Potala foi começado a construir no século VII, quando
o rei guerreiro Songtsen Gampo ocupou e construiu um palácio sobre a cha-
mada Colina Vermelha. Destruído e reconstruído várias vezes, o atual edifício
foi iniciado no tempo do quinto Dalai-Lama, Lobsang Gyatso (1617-1682).
Foi usada tanta matéria-prima, retirada imediatamente após a construção, que
o declive resultante criou um lago artificial que hoje tem o nome de Lago do
Rei Dragão.
Por volta de 1648, o «Palácio Branco», exterior ao complexo, estava concluí-
do no seu essencial. Em 1694, já 12 anos após a morte do Dalai-Lama que o
mandara edificar, o «Palácio Vermelho» estava também pronto para receber o
centro religioso do país.
Atualmente, o Potala é um Museu Nacional sob administração chinesa.

Dharamsala

Situada na República da Índia, nas terras baixas da cordilheira de Dhauladhar,


a cidade divide-se em duas partes: a baixa e a alta. A segunda, conhecida como
McLeodgang, batizada com o nome do tenente britânico governador do Penjab,
em 1848, é, atualmente, uma colónia tibetana.
Aqui se encontra o governo no exílio do Tibete, desde que, em 1959, este foi
invadido pela China. Assim, a cidade é a morada do 14.º Dalai-Lama.
Várias são as construções, administrativas e sagradas dos tibetanos de Dharam-
sala. O ponto principal desta comunidade é o Complexo de Tsuglagkhang, que
inclui a residência do Dalai-Lama.
O Mosteiro de Namgyal, o Templo de Tsuglagkhang, o Instituto Tibetano de
Artes do palco, o Instituto Norbulinggka, que promove as artes tradicionais do
Tibete, a Biblioteca e Arquivo Tibetanos e o Instituto de Medicina Tibetana,

76
são alguns dos mais importantes locais onde se preserva e se difunde a cultura
tibetana para todo o mundo.

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Confucionismo
Caminho da Retidão Humana | Via de Confúcio

Mariana Bernardo Nunes


Confucionismo

Caminho da Retidão Humana | Via de Confúcio

Confucionismo (儒家 Rujia) é uma via para uma vida correta associada
O ao desenvolvimento ético do indivíduo. Criado na China, não possui
fundador, mas um Mestre – Confúcio, conhecido em chinês por Kongzi (孔子),
literalmente «Mestre Kong» – cujos ensinamentos foram comentados ao longo
dos séculos até aos dias de hoje.
Enquanto ideologia «ortodoxa» na China do período Han (206 a.EC-220 EC,
a partir de trezentos anos depois de Confúcio), o Confucionismo é respeitado
como um «culto» de letrados em constante transformação, realizando-se sacri-
fícios diante das tabuletas espirituais em templos dedicados ao Mestre.
Amplamente desenvolvida por Confúcio e confucionistas, esta ideologia de
pendor religioso pode ser classificada de:

•«Escola de ensinamento» (kongjiao [孔教]) – doutrina intelectual


«ortodoxa», cu-jos membros são na sua maioria letrados, empenhados
e dedicados ao estudo dos clássicos, procurando seguir o caminho de
«autocultivação»;

•«Ensinamento ritual/etiqueta» (lijiao [禮教]), com particular enfo-


que nos ritos, sacrifícios e cerimónias, bastante visível no Clássico dos
Ritos. Seja no campo da religião, política ou educação, a «moral» con-
fuciana tem como objetivo central o sistema de governação chinês e
também as atividades religiosas.

No fundo, esta tradição encontra-se profundamente enraizada na cultura chine-


sa e representa uma «cosmovisão», um «olhar» idiossincrático em relação ao
mundo e aos que o habitam, desenvolvendo uma noção de «moral» própria, as-
sociada às relações humanas, em que o núcleo familiar – onde se cultiva o amor
e o respeito aos pais como sentimentos naturais de humanidade – se constitui
como modelo comunitário que assegura estabilidade e prosperidade.

81
Confúcio

Muito pouco se sabe acerca desta figura quase mitológica que, segundo a tra-
dição, terá nascido por volta dos séculos VI-V a.EC, em Kufu (Estado de Lu,
atual província de Shandong). Kong-Fon-Tseu (também conhecido, em adulto,
por Kong Zhongni) seria oriundo de uma classe intermédia, entre a nobreza
guerreira, os camponeses e os artesãos, isto é, os shi (士 = estudiosos), classe
dos «letrados, funcionários públicos».
Ainda hoje não é consensual a determinação dos cargos que terá desempenhado
na sociedade chinesa de então, sendo referido como funcionário administrativo,
com funções no exercício da Justiça, ou ainda, num mais proeminente papel,
equivalente a primeiro-ministro, dada a prolongada e profunda lastragem que o
seu pensamento alcançou na cultura chinesa, particularmente, nos domínios da
regulação dos costumes e da administração pública.
O papel de professor que Confúcio, segundo as narrativas, desempenhou como
situação de recurso nos inícios de vida, chegando a contar, ainda jovem, com
algumas dezenas de fiéis discípulos, contribuiu sobremaneira para o título de
«educador» por que ficou também conhecido. Sabe-se, porém, que o seu au-
têntico enfoque vocacional foi sempre o do campo da administração pública e
o exercício ético das políticas governa-tivas. Para tanto, o seu esforço foi o de
ganhar a confiança do monarca reinante da Dinastia Zhou (1046-256 a.EC), em
que nasceu e viveu, até alcançar o lugar de conselheiro.

O «cânone» chinês tradicional: os Cinco Clássicos e os Quatro Livros

Os «Clássicos» remontam a tempos pré-Dinastia Qin (221-206 a.EC) e são


considerados o repositório principal do sistema de valores da cultura chinesa.
Já os Quatro Livros servem de «introdução» ao pensamento confuciano e, nas
dinastias Ming e Qing (séc. XIV-XX), integram o «programa» oficial do siste-
ma de exames para admissão de funcionários, supervisionado pelos altos fun-
cionários da corte (os mandarins). A ordenação tradicional do cânone cultural
escriturístico da China, apresenta-se assim esquematizado:

82
Cinco Clássicos

Clássico das Odes/Poesia (詩經Shijing) – Antologia de poemas oriun-


dos da Dinastia Zhou e de referência para as elites letradas chinesas.
Ao todo, são 305 «canções» populares, entre os membros da realeza
Zhou (Orientais) e as classes mais humildes, incluindo-se uma série de
«hinos» proclamados em contexto mais «oficial».

Clássico dos Documentos (Shujing書經ou Shangshu尚書) – Coleção


de documentos e discursos redigidos por governantes (reis, ministros)
e outras figuras importantes de épocas que remontam aos «Imperadores
míticos», estendendo-se ao período Zhou. São textos fundamentais em
termos de filosofia política que descrevem as responsabilidades da elite
e dos súbditos perante o Céu (Tian 天) .

Clássico dos Ritos (Lijing禮經) – Secção «confuciana» que explora os


ritos, sendo composto pelos «três Li» (três ritos): Yili (儀禮) – Cerimó-
nias/Etiqueta; Zhou Li (周禮) – Ritos de Zhou; Liji (禮記) – Registo
dos Ritos. É uma coleção antiga de mais de três mil regras de comporta-
mento e conduta, para além de descrições de uma estrutura de governo
«ideal», não excluindo as múltiplas referências a indivíduos «virtuo-
sos» em contexto confuciano.

Clássico das Mutações (Yijing易經) – Antigo manual de adivinhação


focado em cleromancia – sequências de números não aleatórios – e
cujos resultados são interpretados como desígnios do Tao (Caminho) (
道), princípio movedor unitário, responsável pelos fenómenos e «mu-
danças» no mundo natural, mais concretamente durante o período da
Dinastia Zhou. Tem tanto de cosmologia como filosofia.

Anais das Primaveras e Outonos (Shunqiu 春秋) – Crónica de even-


tos que afetavam diretamente o Estado nativo de Confúcio, durante os
séculos VIII-VI a.C. Alguns comentadores – em que se inclui Mêncio
– consideram que Confúcio é o autor deste último clássico.

83
Quatro Livros (base do ensino público chinês até 1905)

Grande Ensinamento/Aprendizado (Daxue 大學) – Originalmente,


uma parte do Clássico dos Ritos composta por um texto supostamente
da autoria de Confúcio e os vários comentários de um dos seus discí-
pulos, Zeng Zi.

Doutrina do Meio (Zhongyong 中庸) – Capítulo do Clássico dos Ritos


atribuído ao neto de Confúcio. A frase em si surge num dos livros/capí-
tulos do texto conhecido por Analectos. O livro explora a procura de um
equilíbrio na vida fundamental para o indivíduo viver numa sociedade
«harmoniosa», tornando-se o «homem superior» (junzi 君子).

Analectos (Lunyu 論語) – Série de diálogos entre Confúcio e os seus


vários discípulos, coletados e editados por estes, postumamente. Os
Analectos seguem geralmente uma fórmula pergunta/resposta, esta últi-
ma iniciada por «O Mestre disse…». É um «livro» de teor filosófico que
considera o Dao/Tao como a ordem normativa sociopolítica que não
pode existir sem uma hierarquia, definindo-se as relações e as posições
dos indivíduos em sociedade.

Mêncio (Mengzi 孟子) – Escrito pelo pensador confuciano Mêncio que


valorizava a bondade humana como uma virtuosidade inata.

Princípios confucianos

Ren (仁) – traduzido geralmente por «benevolência», carácter moral, natureza


humana. Qualquer indivíduo, enquanto ser humano, tem a capacidade de me-
lhorar o seu ren. Por vezes, entendido como altruísmo, ren parece aproximar-se
da ideia cristã de «amar o próximo»; quanto mais «genuíno» for o seu ren, mais
facilmente alcança a «harmonia»;

Li (禮) – ritos que deviam ser respeitados por todos, governantes e súbditos. Os
ritos estão associados ao Dao/Tao, influenciando-o de uma forma positiva. O
regresso ao «rito» é um ideal em Confúcio, não isento de alguma «restrição»,

84
daí virtudes como a humildade e frugalidade (rang 儉) auxiliarem no desenvol-
vimento do carácter (individual) moral;
Xiao (孝) – popularmente traduzido por «piedade» filial, é uma virtude de res-
peito pela família e pela Humanidade, numa maior escala. A família é um mo-
delo de harmonia que se encontra acima da ordem pública. Tal como o ren, o
xiao está ligado ao li;

Yi (義) – associado à ideia de justiça e comportamento apropriado ou digno, yi


é «rectidão» e princípio orientador do «homem superior».

Neo-Confucionismo (新儒学)

Esta nova corrente do Confucionismo, que tem no filósofo Zhu Xi (1130-1200)


o grande inovador no ressurgimento do pensamento de Confúcio, expõe os
seus princípios a partir do conceito tradicional, e partilhado com o Tauísmo, do
Yang/Yin que se reconhece presente na totalidade da existência, mas em cujos
elementos se identificam
dois princípios universais: Qi (força vital) – o determinado, (i)moralidade; Li
(lei ou princípio racional) – moralidade, o indeterminado, entendido como
alma, mente (espírito) que todo o ser possui e é constituinte do núcleo metafí-
sico: Taiji (Grande fim), princípio criativo.

Outros conceitos relevantes

Reciprocidade (shu 恕) – segue a ideia de que «boas ações geram boas ações»,
daí ser importante: «Não faças aos outros o que não gostarias que te fosse fei-
to.» É, no fundo, uma regra de «retribuição» dos atos executados pelas pessoas.

Lealdade (zhong 忠) – o indivíduo deve manter uma relação de lealdade para


com os outros.

Confiança/integridade (xin 信) – o indivíduo deve demonstrar e cultivar con-


fiança em si e nos outros.

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Respeito pelos mais velhos (ti 悌) – como o nome indica, o indivíduo deve res-
peitar os membros do seu agregado familiar, independentemente de serem pais,
irmãos ou avós. O mesmo se aplica aos «mais velhos» fora da família. O con-
ceito de «piedade filial» encontra-se associado ti, permitindo a formação de ren.

Homem superior – é o contrário de «homem inferior» (xiaoren 小人) e o mo-


delo de indivíduo que todos devemos aspirar a ser. A sua «virtude» supera a do
«homem inferior».

Mandato do Céu/decreto do Céu (tian ming 天命) – o conceito antecede o tem-


po de Confúcio e encontra-se associado à ideia de que o «Céu» é uma entidade
sobrenatural que designa um indivíduo com o propósito de cumprir o «manda-
to» por um período indeterminado. Geralmente, o portador desse título era o
«rei» ou o Imperador: na China, os Imperadores (tiandi 天帝) possuíam vários
títulos, sendo um dos mais relevantes, o de «Filhos do Céu» (天子), revelando
a sua responsabilidade enquanto cumpridores do «mandato do Céu», na Terra.

Retificação dos nomes (zhengming 正名) – a cada indivíduo corresponde uma


função designada com um «nome» próprio, e é nessa função que cada um pres-
ta o seu contributo à sociedade. Neste sentido, deve-se agir como se é desig-
nado existencialmente, numa absoluta sujeição ou equiparação determinadas
pela hierarquização expressa na condição social – um governador age como
governador, um filho como tal e, assim, sucessivamente. A desordem social
surge quando a retificação dos nomes está em falta.

Cinco relações que os postulados «confucianos» têm como básicas na


harmonia:

•Pai e filho;
•Governante e ministro;
•Esposo e esposa;
•Irmão mais velho e irmão mais novo;
•Amigo e amigo.

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Festividades

A única grande celebração corresponde ao Festival Cultural Internacional Qufu


de Confúcio, comemorando-se o aniversário do Mestre (dia 28 de setembro),
entre finais de setembro e inícios de outubro. Possivelmente o aspecto mais
«religioso» do Confucionismo, juntamente com a veneração do Mestre e seus
discípulos em templos, uma prática que remonta à dinastia Han.

Confucionismo na China

Graças ao Confucionismo, surgiram as primeiras academias de ensino público


que preparavam os alunos para os exames sob superintendência de mandari-
natos; uma vez que os letrados correspondiam a uma faixa muito reduzida da
sociedade, obter um cargo na administração pública era sinal de prestígio e
estatuto.
O sistema de exames só foi efectivamente abolido nos finais da Dinastia Qing,
e o seu programa variava, apesar de os textos «confucianos» permanecerem
como grande referência política.
Ao longo da História, o cânone (particularmente os Analectos) foram avida-
mente comentados por outros pensadores, de entre os quais:

Mêncio (ou Mestre Meng) – pseudónimo do eminente filósofo confucionista


Ji Mèngkê (371-289 a.EC), autor do já referido livro Mêncio, com o mesmo
nome, que considerava a natureza humana como «boa» e um coração de «com-
paixão», como algo definidor da nossa natureza – «a bondade humana e inata».
Se um indivíduo demons-trasse «virtude» (de 德), é um «rei», isto é, é legítimo
enquanto governador, caso con-trário, era considerado um «usurpador» ou ba
(霸).

Xunzi (荀子) – Estudante da célebre Academia Jixia que teve vários discípulos,
incluindo Han Feizi e Li Si. Nascido numa época posterior a Confúcio, Xunzi
debruça-se sobre a natureza humana «má», que se entrega ao «proveito» (li 利).
A busca da satisfação própria, do «eu» conduz à desordem e à violência. A go-
vernação baseia-se em «ritos» e «punições», consoante as intenções do súbdito.

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Mozi (磨子) – Tal como Confúcio, Mozi valorizava o bem-estar do povo, não
da natureza, daí o seu carácter «humanista». A sua escola recebeu a designação
de Moísmo e discordava das ideias confucianas sobre a cultivação da humanida-
de pelo próprio indivíduo no seu âmago. Favorecia-se uma abordagem prática.

Han Feizi (韩非子) – Filósofo central da escola legalista que, como o nome in-
dica, foca-se nos aspectos da legalidade como algo central à vida em sociedade.
Leis e punições garantiam o bem-estar dos indivíduos.

Fases da «história» do Confucionismo

Como sistema de valores, o Confucionismo sofreu algumas alterações e adapta-


ções, consoante o período em questão. A sua evolução segue de perto a história
da China:

•Fase «inicial» – durante o Período das Primaveras e Outonos (722-


481 a.EC), a escola do ensinamento «ru» adquire uma forma concreta,
mas «clássica», criando-se uma nova filosofia que não excluía os ensi-
namentos dos antigos, muito pelo contrário. Posteriormente, letrados
como Mêncio e Xunzi do período dos Reinos Combatentes (481-221
a.EC) destacam-se numa tradição confuciana mais tardia.

•Fase de «adaptação» – período de convivência entre múltiplas «esco-


las» de pensamento na China, incluindo o Taoísmo, Moísmo, Legalis-
mo, Yin-Yang e Cinco Agentes. Eventualmente, o Legalismo acaba por
marcar presença na dinastia Qin (221-206 a.EC), sendo rapidamente
substituído por um confucionismo «melhorado» da Dinastia Han, que
se seguiu. Surgem ainda, a Escola dos Novos Textos e dos Antigos Tex-
tos. Numa fase posterior da dinastia Han, dá-se uma miscigenação de
constructos de natureza tauísta e confucionista, que originam o «Ensi-
namento Mistérico/Metafísico» (xuan xue 玄學).

•Fase de «transformação» – período de alguma convivência e rivalida-


de com o Budismo e Taoísmo, especialmente durante a Dinastia Song
(960-1279). Analisando e excluindo elementos sobrenaturais ou supers-

88
ticiosos, os letrados – com papel predominante do sábio racionalista
Zhu Xi, hermeneuta dos Quatro Livros, em contravenção do estudo do
I Ching – contribuíram para o surgimento da escola de Ensinamento
Confuciano designada Dao/Tao Xue (道學), isto é, «Ensinamento do
Caminho» ou «Escola do Princípio/Ciência» (理學), tendo dado início
ao que se designou, a partir de então, como Neo-Confucionismo.

•Fase de «variação» – Dá-se a introdução do Confucionismo noutros


países asiáticos, nomeadamente no Japão, no Vietname e na Coreia,
observando-se um «sincretismo» com as culturas e tradições locais.
Cada governante adapta e reinterpreta o Confucionismo em função das
necessidades do seu espaço.

•Fase de «renovação» – introdução da filosofia confuciana no mundo


ocidental, particularmente, sob a capa de uma proximidade de princí-
pios com a religião cristã e com outras filosofias. Investimento nas tra-
duções dos Clássicos e dos Analectos, por parte de missionários pro-
testantes e transformação da doutrina confuciana por vários letrados
chineses «modernos». Nos dias de hoje, observa-se algum «revivalis-
mo» da moral confuciana, aplicado ao campo da ideologia política (sob
a designação de valores asiáticos/do oriente).

Presença de Confúcio em Portugal

A expressão mais visível da presença do Mestre Kong no nosso país é, sem


dúvida, o Instituto Confúcio na Universidade de Lisboa – ICUL (Lisiben Daxue
Kongzi Xueyuan 里斯本大学孔子学院) –, cuja construção foi patrocinada
num protocolo ajustado pela Universidade de Estudos Estrangeiros de Tianjin
(TFSU) e pela Universidade de Lisboa.
O edifício foi inaugurado em 2007 e foca-se, primariamente, no ensino do Chi-
nês e divulgação da cultura chinesa em Portugal; quase todo o staff que trabalha
neste Instituto é contratado como docentes de Chinês Mandarim, na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa, ao abrigo do programa de Licenciatura
em Estudos Asiáticos.

89
Para além de ensino da língua Chinesa, o Instituto é responsável por um pro-
grama de intercâmbio de alunos chineses, «cursos de verão» na TFSU, bolsas
de estudo (licenciatura, mestrado e doutoramento) e cursos personalizados para
interessados na área empresarial.
Por último, o ICUL coordena com o «quartel-general» Hanban, sediado em
Pequim, a realização dos HSK (Hanyu Shuiping Kaoshi 汉语水平考试), testes
de proficiência de Chinês que testam as capacidades de compreensão da língua
em vários níveis.

90
Daoísmo [Taoísmo]
A Via do Dao (Tao)

António Faria
Daoísmo [Taoísmo]

A Via de Dao (Tao)

«Via do Dao» surge e radica nas culturas tradicionais da China, sendo o


A Dao a sua questão fundamental. Dao pode ser traduzido por «a Via» e
«uma via», sendo Daoísmo entendido como o conjunto de todas as abordagens
textuais e práticas dos aderentes (consoante a sua linhagem e comunidade),
aqui designados como Daoístas.
O Dao surge como a questão derradeira e sagrada para os praticantes, onde
podem ser enquadradas quatro características primárias: 1) Fonte; 2) Mistério
inominável; 3) Presença sagrada abarcante (qi); 4) Universo, enquanto proces-
so cosmológico (Natureza).

Princípios e origens

Estamos perante uma cosmovisão que, enquanto tal, deve ser entendida como
uma via dinâmica e consequente com os seus olhares sobre o mundo-vida e que
engloba várias escolas/tradições e linhagens. Olhada no seu conjunto, apresen-
ta-se como um sistema aberto e complexo, com várias escolas e linhagens e que
pode ser mapeado em periodizações históricas e modelos de prática e realiza-
ção. Surgida na China, em data incerta e tendo como pano de fundo a sabedoria
tradicional e filosófica da cultura chinesa, tendo integrado, por exemplo, o I
Ching (Livro das Mutações, que não pertence diretamente a esta cosmovisão).
O núcleo do I Ching é um texto da dinastia Zhou Ocidental (séculos xi-viii
a.EC) denominado Zhōu yì (Mutações de Zhou).
Enfatiza a harmonia entre a vida do praticante e o Dao, que pode ser também
entendido genericamente como a fonte e a força que subjaz a tudo o que existe,
em tudo o que existe. Dao é presença enquanto condição de possibilidade de
tudo poder surgir e presença em tudo o que surge e se modifica. É a raiz sem
raiz, a natureza fundamental e matriz estrutural do Universo e, simultaneamen-
te, a Via para tudo isto. Assim, é também a Via Fundamental do Universo e as
instruções deixadas para a prática da via a ela conducente. O que atrás foi dito
implica também uma série de práticas tendentes a instaurar o re-equilíbrio do

93
corpo-energia. Meditação, exercícios internos, rituais e artes marciais, entre
outros, são também meios para um mesmo fim.
Com mais de dois mil anos, o Daoísmo não tem propriamente um fundador,
crenças ortodoxas e textos com «autoridade». Os Daoístas focam-se no Dao,
enquanto questão última, usando designações como daojia (Família do Dao),
daojiao (Ensinamentos do Dao), daoshi (adepto do Dao), e xuanfeng (Movi-
mento Misterioso), ou seja, os Daoístas têm-se entendido como aqueles que
transmitem o Dao (chuandao) e como parte da «tradição do Dao» (daotong).

Especificidades da Via

Sendo uma via dinâmica, podemos distinguir quatro divisões temporais


genéricas:

• Daoísmo Clássico;
• Daoísmo Inicial;
• Daoísmo Organizado;
• Daoísmo Moderno.

Independentemente das suas formulações temporais, esta cosmovisão tem


como pretensão a transformação do praticante, de modo a experienciar o Dao.
Esta experienciação segue modelos de práticas que conduzem a essa realização
última. São estes constituídos por nove pontos fundamentais:

1. Alquimia: transformação interna (neidan) e externa;


2. Ascese: purificação interna e externa;
3. Cosmologia: processos transformativos baseados na interacção yin-
yang. Também as 5 fases (wuxing) e qi (ch’i; «energia»);
4. Dietética: estar atento a padrões de consumo e influências;
5. Ética: ênfase na moralidade e na ética, incluindo os preceitos do estudo
e da busca;
6. Hermenêutica: ênfase no estudo e interpretação dos textos, resultando
muitas vezes em comentários;

94
7. Meditação: uma prática central, de diversos tipos;
8. Não-Ação: (wuwei), envolvendo principalmente a não interferência, a
não intervenção e a atividade sem «esforço»;
9. Ritualística: os rituais ocupam também uma posição muitas vezes
central, com diversas expressões e postos em ato em atividades da
comunidade.

Cosmogonia e Cosmologia (yin-yang)

De um ponto de vista cosmogónico – Cosmogonia é aqui entendida como um


discurso/estudo/modelo sobre as origens do Universo, enquanto que Cosmologia
será entendida como um discurso/estudo/modelo sobre os princípios e estrutura
subjacente ao Universo – apresenta as categorias de impessoalidade, de
transformação espontânea e de emanação, partindo da não-diferenciação para a
diferenciação, sendo que a manifestação não implica redução.

Esta cosmovisão propõe uma cosmologia onde o Universo é entendido como


a-moral, espontâneo, sem início nem fim, sendo a libertação (estar em sintonia)
realizada pela harmonização com o Dao, através de múltiplas práticas con-
soante as várias tradições e linhagens. O Dao (a derradeira questão para esta
cosmovisão) é entendido como sagrado, e, se quisermos apontar algumas das
categorias em uso nos estudos religiosos, podemos entendê-lo como não-repre-
sentável.
Em esquema, podemos sistematizar:

1. Anterioridade irrepresentável (wu-wuji), de «onde» surge um aspeto


apofático que implica o…
2. Círculo Imaculado (wu-ji), que produz a Indiferenciação Primordial
(UM), gerando por transformação espontânea (processo impessoal) o…
3. Círculo «preto e branco», DOIS (Yin e Yang); a formação dos «Céus» e
«Terra» que implica o surgimento do…
4. Círculo «Yin-Yang», TRÊS (Yin-Yang), que origina as…
5. Cinco Fases (Wuxing), que implicam o surgimento das…
6. Miríades de seres.

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Esta cosmovisão, na sua formulação de base e «clássica» (por vezes, denomi-
nada «Cosmologia Tradicional Chinesa»), apresenta três dimensões primárias:

1. Yin-yang, como princípios e forças cosmológicas inter-relacionadas;


2. Cinco Fases: Madeira (yang menor), Fogo (yang maior), Terra (—),
Metal (yin menor) e Água (yin maior);
3. Qi(Ch’i): «força física», podendo ser entendida como respiração física
e respiração subtil («energia»).

Todos os seres e fenómenos são entendidos como uma combinação yin-yang


(em «potenciais» diversos), sendo que yin e yang não devem ser entendidos
como poderes opostos ou antagónicos, como «bom» ou «mau». Estão relacio-
nados com os entendimentos cosmológicos e as práticas alquímicas. Podemos
ainda dizer que «yin» está associado ao carácter «feminino», terra, lua, escuro,
morte, frio, húmido, pesado, turvo, descendente, repouso e interior, enquanto
«yang» remete para masculino, céus, sol, luz, vida, calor, seco, luz, claridade,
ascendente, atividade e exterioridade. Acrescente-se que são enumerados, nes-
ta cosmovisão, nove valores: suavidade (produzir sem esforço), flexibilidade,
recetividade, anonimidade, serenidade, aptidão, não apego, contentamento e
deferência.
No que podemos denominar como «pragmatismo sereno interdependente» in-
clui-se a prática da recetividade e harmonia cosmológica, a dietética de acordo
com os princípios defendidos, as práticas de saúde e longevidade, meditação e
ritual, reflexão crítica dos textos e expressão artística. A «experiência vivencial»
tem a ver com o ser, enquanto processo e os diferentes níveis de manifestação,
as interações com a comunidade, o lugar, a residência/habitação, a experiência
«mística» e a desvelação. Por outro lado, deveremos mencionar uma questão
também importante para o praticante, a sua «identidade», que pode ser expressa
em nove pontos: buscador, afinidade, afiliação formal, linhagem, experiência
«mística», ordenação, desvelação, treino e transmissão.
De um ponto de vista da sacralidade, e como já anteriormente foi referido, o Dao
pode ser primariamente entendido como monista e panenteísta. Mas, enquanto
imanente, é panenénico (a sacralidade da Natureza), politeísta e animista. No
que toca a uma cosmogonia/cosmologia surgem as categorias de «emanação» –
da não-diferenciação absoluta até à diferenciação – espontaneidade, impessoa-
lidade (sem buscar um qualquer resultado ou haver qualquer intencionalidade).

96
A questão yin-yang (que é originariamente não-Daoista, mas sim Chinesa ou
mesmo originária da Ásia Oriental e do ponto de vista de uma «soteriologia» –
sendo esta entendida como proposta para a libertação – é veiculada a necessida-
de de um «alinhamento» ou «união», através do Dao, ocorrendo então imorta-
lidade por dissolução/harmonização do «ego», aqui entendido como composto
(o modelo das «duas almas»; consciência transitória e não uma «alma» eterna).
Surgem postulados radicados na consciência e na libertação (talvez por influên-
cia do Dharma do Buda). Surgem ainda evidências de uma «antropologia po-
sitiva», otimista, onde o mundo é afirmado, sendo o homem uma manifestação
do Dao (que é a sua natureza inata).
Uma outra «marca» surge ainda na forte ênfase na não-ação (wu-wei), na prá-
tica, na não-contenção, flexibilidade, produção, não-«nomeação», não-desejo,
quietude, «clareza» e contentamento. Também postula como muito relevantes a
questão da linhagem, da ordenação (dentro de uma linhagem) e da comunidade,
assim como um «caminho gradual» (vários graus de empenhamento) e adesão
(preceitos), o que remete para níveis de afiliação e participação, não podendo
ser esquecida a importância do lugar e do «enraizamento». Por outro lado, se
as práticas anteriormente descritas, no seu conjunto, são tidas como muito im-
portantes, elas são diversas e de valoração específica, consoante a linhagem e
comunidade.

Textos fundamentais

Existe uma multiplicidade de textos que são relevantes nos diversos movimentos
e linhagens. Contudo, talvez os mais importantes no cânone daoísta (Daozang)
sejam:

Daodejing, o «Livro do Dao e da Virtude», atribuído tradicionalmente a Laozi


(pseudo-histórico), uma antologia com 81 capítulos, que contam aforismos em
prosa poético-filosófica;

Zhuangzi – o «Livro do Mestre Zhuang», uma antologia a muitas «vozes»,


cuja versão recebida apresenta 33 capítulos em prosa, contendo parábolas e
histórias, sendo os «capítulos internos» associados aos ensinamentos do Mestre
Zhuang.

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O cânone daoísta é uma coleção que contém mais de mil e quinhentos textos,
tendo a primeira compilação surgido no século v. A que é hoje utilizada ra-
dica no século xv, com um suplemento adicionado no século xvii. Os textos
apresentam uma variedade de géneros com níveis diversos de importância e
profundidade.

Daodejing: metafísica

O Daodejing (Laozi, como era conhecido na China), é um texto curto com cerca
de 5000 caracteres (81 «capítulos»), que é geralmente dividido em duas partes:
a primeira sobre o Dao (capp. 1-37) e a segunda (capp. 38-81) sobre De (virtu-
de). Mas o Dao é também ordem (Kohn, 2009), visível nos padrões processuais
e nas alterações rítmicas do «mundo natural». Assim, deste modo, será até certo
ponto previsível, dado que poderemos discernir e descrever no desenrolar dos
seus processos. O que é aqui denominado «natureza» pode ser entendido como
o modo espontâneo e até certo ponto observável dos seus processos, o modo
como as «coisas» (processos) «vão sendo». No entanto, enquanto o Dao é «na-
tureza», é também algo mais: a sua «essência» última, a condição de possibili-
dade das qualidades internas desses mesmos processos, ou seja, aquilo que faz
com que as «coisas» sejam de um dado modo. Se é «natureza» é também as
suas próprias leis geradoras e orientadoras.
Dito de outro modo, talvez ajude para já a uma melhor compreensão intelectual
da natureza do Dao, se pensarmos uma «estrutura» com dois níveis: o «Dao
Eterno» que é misterioso, inefável – que podemos pensar como um ponto adi-
mensional, no «centro» do Universo, e, simultaneamente, o «Dao que pode
ser dito», tangível, observável, enquanto manifestação visível nos processos
cíclicos do mundo que podemos conhecer.
Têm também ocorrido tentativas para reduzir o Dao a categorias mais «fami-
liares» como «Deus», «Logos», «Divindade». Mas, na verdade, na tentativa de
facilitar a compreensão do que está em causa, pouco mais se terá feito do que
distorcer a complexidade de significados dos conceitos originais. Na sua trans-
cendência e imanência – espontaneidade velada na mais profunda «escuridão»
– o Dao é pro-criativo (mas jamais uma divindade criadora), o Dao permanece
nessa procriatividade e não no ato criador ex-nihilo, atribuído ao Deus descrito
no Génesis. Por outro lado, a associação identificadora ao «Logos» – como se

98
fosse a «razão nuclear» da realidade, à moda dos Gregos antigos – contraria o
carácter não dual e holístico do Dao e a sua simultânea manifestação concreta,
a sua trans-racionalidade, a sua paradoxal «vacuidade» que é, no entanto, a
condição de possibilidade de todo o surgimento, de todas as maravilhas infi-
nitas, muito para além do Ser e da Substância que os pensadores ocidentais
glorificam.
No Daodejing, o Dao é referido de muitas maneiras diferentes:

a) Dao inominável: não dual e paradoxal;


b) Dao nomeável: as manifestações multidimensionais;
c) Mãe (fons et origo) de toda a existência («Dez Mil Coisas»);
d) Princípio, Função, Virtude e Técnica.

Por isso, não devemos esquecer que as «nomeações» têm um carácter sempre
aproximativo de descoberta, por tentativa e erro, segundo regras não rígidas
(um «valor heurístico»). Vejamos uma tradução possível do capítulo primeiro
do Daodejing:

O Tao (Via) que pode ser dito não é o Tao Absoluto.


Os nomes que podem ser dados não são nomes permanentes nem
imutáveis.
Como a origem do céu e da terra, é inominável.
Como a mãe de todas as coisas, é nomeável. […]

Estas duas denominações radicam na origem (sem origem), mas com nomes di-
ferentes. Ambas podem ser chamadas o Mistério Cósmico. Alcançando o mis-
tério e daí o mistério mais profundo, é sugerido que podemos encontrar a porta
para a essência secreta da vida.
Dadas as nossas aspirações metafísicas e a dualidade inescapável da lingua-
gem, buscamos meios para transcender essas dificuldades, os nossos dilemas
metafísicos. Se discorrermos em termos de complementaridade mútua pensa-
mos em yin e yang, em Vacuidade (Dao sem nome, o oceano ilimitado) e Ser
(Dao com nome, as ondas desse mesmo oceano), não havendo «de facto» ne-

99
nhuma diferença radical entre todo insondável e parte, entre oceano e onda,
entre floresta e árvore, (todos interdependem), pois a diferença radica somente
na inevitabilidade da perspetiva (inerente ao pensamento/linguagem dualista).
No entanto, tudo isto são (por agora) simplesmente conceitos, conhecimento
mediado (radicados na perceção, inferência e testemunho verbal), sendo por
isso mesmo designações provisórias.
Mas, na verdade, são os nossos múltiplos condicionamentos que nos dificultam
essa «arte de viver», que nos impedem esse «conhecer por tornar-se». Sendo a
linguagem composta maioritariamente por termos «humanamente compreen-
síveis» radica e potencia (n)esses mesmos condicionamentos (que para esta
cosmovisão são, no entanto, «resolúveis»), dificultando o surgimento do que se
poderá chamar a «mente do Dao», a não-mente do auto-esquecimento espontâ-
neo, tal como proposto pelo Mestre Zhuang.
Ao tentarmos reproduzir a realidade, através da linguagem, estamos a reduzir
os processos e a origem sem origem desses mesmos processos. O vício de que
as disputas assentes em modelos binários de lógica podem trazer alguma con-
clusão satisfatória que reflita a realidade, terá de ser combatido por um sistema
de lógica que desconstrua a própria «lógica», o que parece implicar o assumir
da não perspectiva, a perspectiva transcendental do permanente e imparcial
Dao, que é o veículo do Sábio (shengren), o humano perfeito.

Wuwei, enquanto «filosofia da ação»

No início deste texto apontamos um modelo de nove pontos fundamentais para


a realização do Dao, onde, no oitavo ponto surgiu o tópico «wuwei», dito «não-
-ação», e que ode ser entendido como ação espontânea, ação sem compulsão.
Se assim for, alguns dos (aparentes) paradoxos e mistérios do Daodejing tor-
nam-se mais claros, apesar dos seus múltiplos aspetos místicos e filosóficos que
parecem estar em campo. Neste contexto, o que se poderá entender por «querer
sem compulsão», acolher a possibilidade de «falhar»? Que equilíbrio possível
haverá entre afirmação e libertação, indivíduo e coletivo? A «ação espontânea»
fornece respostas claras a estas questões, quer nos comportamentos quotidia-
nos individuais e na comunidade social e política. Olhemos um pouco mais de
perto.
Obviamente que wuwei nada tem a ver com padrões de comportamento co-
muns, governados por emoções de separatividade ou dependentes de sucesso

100
ou insucesso, de crítica ou de louvor. A ação espontânea permite o bom uso
do ego, que já não está constrangido pelas suas capacidades ou pelo ambiente
circundante, pelos seus padrões comportamentais parasitas. As ações espon-
tâneas são sempre opcionais, pois há efetiva liberdade de escolha. Uma ação
só é espontânea se o falhanço (ou mesmo a sua possibilidade) não puser em
perigo a estabilidade emocional do indivíduo. Mas isto não quer dizer que a
acção espontânea seja inconsequente, pois mesmo ações que possam acarretar
risco pessoal podem ser espontâneas. Há aqui um fator decisivo, ou seja, o
ego pode desejar ter sucesso, mas não se sentir emocionalmente compelido
a agir. Deste modo, o falhanço não tem qualquer poder, pois não há nenhu-
ma tensão compulsiva associada. Acresce ainda que as ações espontâneas são
sempre «reversíveis». Por isso, se diz que um movimento espontâneo pode ser
parado a qualquer momento e reorientado sem um aumento significativo de
esforço. Assim, wuwei é «faz o não-fazer» ou «age não-agindo», ou seja, indica
o agir incondicionadamente, não compulsivamente. Segundo o Daodejing, é
pelo «não‐fazer» que tudo se alcança. Por outro lado, o «fazer» é sempre con-
dicionado, levando a que a (re)ação se volte contra o (que se entende como)
ator. Quando «não-fazer» e «fazer» são entendidos respetivamente como «ação
espontânea» e «ação compulsiva» (ou reação) cessa a (aparente) contradição. O
que o «ego» tem de abandonar é o que reflete a ação competitiva e rude, pois o
grande vencedor não está veiculado à competição. A prática da ação espontânea
surge também como um meio para realizar equilíbrio dinâmico yin-yang.
Do que foi dito se infere que temos de trabalhar a «experiência interior», usan-
do também processos científicos de uma «ciência na primeira pessoa». Temos
de descobrir com curiosidade e abertura como os processos mentais condicio-
nam as ações que praticamos no dia a dia, do «fazer», da incapacidade do «abrir
mão». Esse é o ego prisioneiro, o que luta, que se apega, que é dominado pelas
paixões, que enfatiza objetivos intelectuais ou outros, que anda em constante
tensão, que quer sempre mais. Por isso, não tem o verdadeiro poder. Esse é o
ego a abandonar, realizando a mente sem esforço, o «não-fazer»/ação espontâ-
nea. É ter sem possuir, fazer sem contenda, dirigir sem controlar, aceitar o po-
der misterioso nos ciclos de surgimento e cessação, de crescimento e redução,
de força e fraqueza. Isso, é percorrer a Via do Dao.

101
Siquismo
Dharma | Via de Namm (Via de Deus)

Maria José Rijo


Siquismo

Dharma | Via de Namm (Via de Deus)

Origens

Siquismo é, frequente e injustamente, concebido, como uma síntese do


O Islão com o Hinduísmo. Não obstante, ele congrega um pensamento
com elementos de uma originalidade que nos obriga a não aceitar esta visão
simplista.
O termo Sikh tem origem no sânscrito śiṣya que significa discípulo, aquele
aprende a verdade. Dharma significa percurso espiritual, e Sikh Dharma signi-
fica «O percurso espiritual do discípulo da verdade» e foi este o ensinamento
fundamental do Guru Nanak. O Siquismo é uma religião monoteísta, fundada
em finais do século XV, na região do Punjabe (dividida entre o Paquistão e a
Índia, após a saída dos Ingleses). Esta religião é das mais recentes das grandes
religiões da atualidade, e é a quinta maior do mundo.

O fundador

Guru Nanak (1469-1539) foi o fundador do Siquismo e o primeiro dos gurus


sikh. Oriundo de Nankana Sahib, próximo da cidade de Lahore, capital da pro-
víncia do Punjab, no Paquistão, o seu nascimento é celebrado no Kartik Puran-
mashi, o dia de lua c heia que tem lugar anualmente em datas diferentes, no mês
de Katak, entre outubro e novembro do calendário gregoriano.
Pouco se sabe acerca da vida de Guru Nanak, mas a tradição sikh possui um
conjunto de narrativas que atestam aspetos da sua vida, e transmitem muitos
ensinamentos.
Guru Nanak terá viajado por muitos lugares, transmitindo a mensagem de
Deus, verdade eterna que permeia a realidade por Ele criada. Nanak lançou os
alicerces para uma doutrina, nos seus aspetos sociais e políticos, baseada na
igualdade, no amor fraterno, na bondade e na vida virtuosa.
É parte da crença religiosa sikh que o espírito de santidade, divindade e autori-
dade religiosa de Guru Nanak pairou sobre cada um dos nove gurus que se lhe
seguiram, quando a condição lhes foi transmitida.

105
Guru Nanak teve nove sucessores, o último dos quais, Guru Gobind Singh que
terá sido quem instituiu as práticas religiosas onde constam hinos de Gurus
Sikhs, Hindus, Muçulmanos e Santos Sufi e são cantados enquanto decorrem
os seus rituais meditativos.

Conceção da alma e vida após a morte

Relativamente à sua conceção da alma, os Sikhs acreditam que a alma e Deus


são um só, inicialmente, não existem separados. Tal como Deus é infinito e eter-
no, também a alma possui esses atributos. Durante a Criação, a alma emerge
de Deus de forma a nascer em existências físicas, ou em encarnações. Assim,
a alma encarna primeiro como a mais simples forma de vida, progredindo para
formas que se vão, cada vez mais, complexificando. Cada vida na Terra é uma
aprendizagem de experiências e lições. Até atingir a encarnação da forma hu-
mana, a alma passa por cerca de 8,4 milhões de encarnações. Assim, o dom da
vida na condição humana não pode ser desvalorizado ou desperdiçado.
Os Sikhs creem que a alma está habilitada a optar por encarnar novamente ou a
ir ao encontro da «luz branca e brilhante» de Deus. De acordo com esta segunda
opção, a alma ao unir-se a Deus, encontrará para sempre a plena libertação.
O Guru é aquele que auxilia a alma no seu processo de libertação de tudo o que é
terreno.
A forma como os Sikhs lidam com a morte é muito curiosa: é um momento em
que a alma se liberta e se conecta com o infinito, portanto, não é um momento
de tristeza, antes pelo contrário, a morte é apenas o processo do descartar de
um corpo para uma próxima vida. Este processo é conhecido com «Roda da
Transmigração», e é por causa dele que existe sofrimento e dor, pois o desejo da
alma deixar a vida terrena e voltar a fundir-se com Deus novamente, é intenso.
Os rituais fúnebres dos Sikhs consistem na recitação de hinos até se considerar
que o corpo está pronto para a cremação. Antes da cremação, é pronunciada
uma oração final, que acelera a libertação da alma. As cinzas são, habitualmen-
te, lançadas aos rios.

106
As Práticas

Sikh Dharma tem uma forma de estar universal e, por isso, Guru Nanak res-
peitava todas as outras formas de adorar Deus. Deste modo, os Sikhs respeitam
todas as fés existentes no mundo, pois, para eles, são vários os caminhos para
se chegar a Deus.
Os Sikhs tentam viver da forma mais aproximada possível do modo como Deus
os fez, pois creem que, se Deus os fez daquela forma, terá sido por uma boa ra-
zão. Assim, nunca cortam os seus cabelos, que têm um papel importantíssimo,
porque é pelos cabelos que flui a energia do Sol que os torna mais inteligentes,
mais conscientes e mais completos. Também a barba no Homem ajuda a manter
o equilíbrio emocional.
Sadhana e Nam Simran Sadhana é a disciplina diária que tem início duas horas
e meia antes do sol nascer.
Durante esse período, chamado Amrit Vela, os Sikhs limpam o seu corpo e
mente, banham-se em água fria e cantam louvores a Deus. Esta fase do início
do dia é essencial, porque, segundo creem, os raios de sol, nesta hora, atingem
a Terra de uma forma ascendente e energizante, sendo que, deste modo, os raios
potenciam a consciência do praticante.
Esta hora do dia é igualmente importante por causa do silêncio que a caracte-
riza, facilitando assim a prática da meditação, longe dos ruídos do quotidiano.
Este primeiro momento é a preparação para a meditação seguinte, que terá
como objeto a meditação sobre o nome de Deus, ou Nam Simran. Nesta me-
ditação, o nome de Deus é entoado inúmeras vezes, de forma a lembrarem a
ligação das suas almas a Deus.
Alguns Sikhs incluem nestas práticas diárias o Kundalini (energia vital primor-
dial) Yoga em busca da cura.
As Nitnem Banis, ou as orações diárias são cinco, têm lugar em horas diferentes
do dia, e são derivadas do Siri Guru Granth Sahib e dos textos do décimo Guru.
Cada oração tem um propósito e significado específicos. Ao respeitarem os
horários das orações, os Sikhs evocam Deus, nas várias horas do dia e noite.
Durante as orações, as suas cabeças e os seus pés estão cobertos, como sinal de
respeito.
Procuram viver com retidão, e compartilham e procuram, igualmente, viver
com amor e bondade, sempre prontos a ajudar o próximo em nome de Deus.
Desde o início que a vida do Sikh tem como base o serviço a todos, o chama-
do Sadh Sangat. Pretende-se que a presença na congregação constitua a pedra

107
angular da experiência espiritual de cada um, sensibilizando-o e despertando-o
para a importância de conceber homens, mulheres e crianças como iguais.
A maioria das ocasiões importantes, quer sejam mais festivas ou de tristeza
são celebradas no Sadh Sangat, desta forma, supera-se o medo da solidão. Este
sistema religioso resultou claramente numa procura crescente de crentes, uma
vez que os seus princípios preenchem espiritualmente os seus membros e cada
um deles encontra apoio na restante comunidade.
O Serviço Abnegado ou Nishkaam Seva é a força da ligação que une a comu-
nidade do Sadh Sangat. É um serviço voluntário sem expetativa de reconheci-
mento pessoal ou de qualquer recompensa. Manifesta-se em incontáveis atos
humildes, veem Deus em cada pessoa. Praticar o Seva é superar o ego e desen-
volver a verdadeira humildade.
O Culto de Adoração ou Gurdwara é o espaço consagrado, é o tempo dedicado
à Sadh Sangat, que pode ser diário ou semanal. Este serviço é um dos acon-
tecimentos mais edificantes para a comunidade, pois possibilita a ascensão do
espírito à Cherdi Kala (ou Alto Astral). Todos são bem-vindos ao serviço do
Gurdwara (Templo) mesmo não fazendo parte da comunidade Sikh, todavia,
todos deverão cobrir as suas cabeças e tirar os seus sapatos.
Guru Ka Langar (Cozinha Livre) é a refeição que é oferecida à comunidade
após o serviço do Gurdwara. A tradição começou com Guru Nanak que acre-
ditava que, sem fome, a aproximação a Deus seria mais fácil. Mas o ritual da
refeição comunitária pretende ir mias longe, pois Guru Nanak com esta prática
aboliu a questão das castas. Todos são iguais naquela refeição, e todos devem
adotar os mesmos procedimentos de cobrir as suas cabeças e retirar os sapatos
naquele momento.
Os Sikhs dão tradicionalmente o dízimo ou Das Vandh, com o objetivo de
apoiar as necessidades administrativas da comunidade. Mas mais que isso cos-
tumam doar grandes montantes de dinheiro, bens e serviços ao Gurdwara, bem
como a cozinha livre, entre outros.
Os Sikhs procuram viver de forma saudável, respeitando e cuidando dos seus
corpos, da mesma forma como devem cuidar das suas almas. É frequente opta-
rem pelo regime vegetariano, e o álcool, o tabaco e as drogas apenas podem ser
utilizados com indicação terapêutica.

108
Ritualística

A Recitação dos Textos Sagrados, a leitura permanente do Siri Guru Granth


Sahib é conhecida como o Percurso ou o Caminho de Akhand, possibilitando,
segundo os Sikhs, a presença do Guru, através da invocação dos seus crentes.
O Caminho Akhand cria um poderoso campo de energia sagrada e divina em
torno da comunidade de fiéis.
A cerimónia que marca o fim do Caminho Akhand denomina-se de Bhog, e
é uma cerimónia alegre, realizada tradicionalmente em cerimónias fúnebres,
entre outras.
O Batismo ou a cerimónia Amrit Sanchar teve lugar, pela primeira vez, em
1699, realizada pelo décimo Guru, Gobind Singh.
Quando uma criança sikh nasce é, habitualmente, levada a um templo, gurdwa-
ra, onde se escolhe o seu nome, abrindo uma página ao acaso do Guru Granth
Sahib. O nome da criança começará pela primeira letra da primeira palavra da
página do lado esquerdo, em que se abriu o livro.
Quando adultos, os candidatos ao batismo prepararam-se com alguma ante-
cedência, com o intuito de escolherem, de forma consciente, a entrega a esse
compromisso.
A iniciação khalsa é uma das cerimónias mais preponderantes do Siquismo
é a iniciação na ordem Khalsa, que é feita através da participação na cerimó-
nia amrit (ou seja, na cerimónia onde bebem a bebida açucarada mexida por um
sabre de dois gumes), recebem o título amritdhari (portador do néctar) e novos
nomes, passando a usar os chamados Cinco Cás (K). Os sikhs que ainda não
foram iniciados nesta cerimónia são os denominados sahajdhari.
O indivíduo assume o comprometimento com uma vida moral, defender os ou-
tros, a defender os direitos dos outros, a manter a sua identidade única, compos-
ta pelos 5 K: Kesh, Kanga, Kara, Kachchera e Kirpan. E, por fim, a incorporar
na sua prática diária a Nitnem Banis, ou recitação diária.
Tornam-se membros do Khalsa Panth, ou o corpo dos puros, os que estão dis-
postos a sacrificar-se pelos direitos humanos e a defender a liberdade religiosa.
Os homens sikhs utilizam o apelido (sobrenome) Singh («Leão») depois do
nome próprio. As mulheres utilizam Kaur («Princesa») como segundo nome.
A não aceitação pelos sikhs do sistema de castas reflete-se no facto de muitos
sikhs preferirem evitar o uso do apelido, intimamente ligado à identificação das
castas, utilizando somente o seu nome individual a que juntam Singh ou Kaur.

109
No que concerne ao casamento sikh (Anand Karaj) os noivos devem dar quatro
voltas em redor do Guru Granth Sahib, enquanto entoam um hino religioso.
A cerimónia é conduzida por um homem ou mulher iniciado na Khalasa, que
explica aos noivos os seus deveres matrimoniais.
O casamento é uma instituição sagrada absolutamente essencial para os Sikhs,
pois estabelece o comprometimento de se desenvolverem espiritualmente, com
a ajuda da Sadh Sangat (a companhia do sagrado).
São administrados quatro votos: o primeiro deles, o compromisso de ser fiel à
sua própria alma, ascendendo assim para a conexão com Deus. Por cada acei-
tação de voto curvam-se perante o Siri Guru Granth Sahib e, em seguida, ca-
minham em torno dele simbolizando a sua entrega. No final da cerimónia, são
lançadas sobre o casal pétalas de flores para celebrar o amor.

A indumentária

Os Sikhs consideram sobremaneira a virtude da modéstia. Deste modo, a forma


como se apresentam em público está em consonância com esta conceção de
vida. Buscam o conforto em tecidos que permitam movimentos graciosos do
corpo. O vestuário dos Sikhs é muito próprio, o Bana torna-os identificáveis
com o seu grupo, constitui um elo de ligação entre os crentes e é, também, uma
forma de lhes lembrarem que o propósito das suas vidas é servir a Deus e aos
outros.
Os homens Sikhs usam turbantes a envolver os seus cabelos, cuja função não
será apenas a de proteger os cabelos, mas, mais que isso, o turbante representa
uma «coroa espiritual», e, desde o nascimento, mantêm todos os pelos corpo-
rais (kesh), daí muitos possuírem cabelos muito longos.
Segundo as suas crenças, o Kesh liberta-os da roda da causa, efeito e separação.
Tal como acontece noutras religiões há graus de adesão e influência regional
diferentes, como por exemplo, os mais devotos devem seguir as regras todas,
enquanto que um Sikh menos devoto pode cortar o seu cabelo. Estes últimos
são denominados, pelos ortodoxos, de patit, ou seja, decaídos ou renegados.
No que respeita às mulheres e crianças o uso do turbante aplica-se igualmente.
As mulheres e crianças do sexo feminino usam o Chuni, e as crianças de sexo
masculino, os Pakta. Note-se que a cor dos turbantes, em qualquer um dos ca-
sos, não tem relevância.

110
Guru Gobbind Singh criou os 5K dos Sikhs, cujo objetivo é o de fortalecerem
e solidificarem a suas próprias identidades. Sendo que os K, que estão exterior-
mente visíveis são: Kesh (o cabelo e a barba), Kara (pulseira de aço que permite
lembrar a sua entrega a Deus e ao Guru, e nunca ao Homem, localizada no pul-
so, ela lembra o Sikh que nunca deve fazer nenhum mal com as mãos) e Kirpan
(faca cerimonial, quer dizer coragem e autodefesa ou dignidade do espírito); e
os que não são visíveis: Kachcheras (roupa interior, simboliza a castidade) e
Kanga (pente de madeira que é mantido no cabelo, símbolo de limpeza).
É este conjunto de práticas que possibilita aos Sikhs a sua autoridade espiritual
e compromisso para com Deus.

Textos Sagrados

Guru Nanak passou a sua mensagem em forma de música divina e poética, cujo
nome é Shabd Guru. Segundo Guru Nanak, Deus era o seu próprio Guru e a
sua palavra era-lhe diretamente transmitida.
Os versos por ele escritos foram passados para os seus sucessores, sendo que o
quinto sucessor compilou todos os textos no Adi Granth e colocou-os no Tem-
plo Dourado, em 1604.
Todavia, o Adi Granth não foi concluído, pois foram deixadas páginas em bran-
co propositadamente, com o objetivo de serem mais tarde completadas, o que
aconteceu com o décimo Guru, Gobind Singh, que acabou por completar o
Shabd Guru com textos do seu pai e nono Guru Tegh Bahadur, conhecido como
Siri Guru Granth Sahib, sendo que as suas palavras foram tomadas pelos Sikhs
como pertencentes a Deus.
Os Sikhs acreditam que a seguir ao décimo Guru Gobind Singh, que morreu
em 1708, não virá mais nenhum sucessor. Consequentemente, a compilação
de textos Shabd Guru é tratada com o mesmo respeito como se de um Guru
humano se tratasse.
Os Shabds foram criados, tendo como fim o de elevar a consciência daqueles
que os recitam de forma cantada. Eles estão estruturados em 31 secções de
acordo com a Raad (Melodia Tradicional Indiana), tem cerca de 1430 páginas,
com poemas de inspiração divina e estão escritos em diversas línguas.
A utilização da música e da poesia como forma de transmissão destes ensina-
mentos é único entre as religiões de textos sagrados.

111
Locais sagrados

O Templo Dourado ou Harimandir Sahib – A visão do Templo Dourado surge


com o quarto Guru, Guru Ram Das.
Ele terá escavado a área em torno de uma nascente, conhecida pelas suas pro-
priedades curativas e, consequentemente, a nascente torna-se numa enorme
piscina. Em 1601, o seu filho Guru Arjan, e quinto Guru, avança com a cons-
trução do Templo Dourado, também conhecido por Harimandir Sahib (a Casa
de Deus).
Metade é construída em mármore e a outra metade em ouro, com portas nas
quatro direções dos pontos cardeais, símbolo do acolhimento a pessoas de todas
as fés e de todas as esferas da vida.
O mármore tem pedras preciosas embutidas, e o facto de ter sido construído
no centro da piscina, outrora nascente, conhecida pelos seus poderes curativos,
este edifício simboliza assim uma espécie de navio dourado, que repousa sere-
namente naquelas águas.
Em 1604, os textos sagrados Siri Guru Granth Sahib são colocados no Templo
Dourado, ficando assim preenchido com o som das canções daquele Guru.
As portas do Templo abrem às 2h30 da manhã e encerram às 22h, e, mesmo
durante a noite, são recitadas palavras sagradas, com o intuito de limpar espiri-
tualmente o santuário.
A construção do Templo foi possível devido a oferendas e a mão-de-obra da
própria congregação, e presentemente, ele é mantido por voluntários de todas
as idades. Todos os visitantes têm à disposição, se o desejarem, estadia e refei-
ções oferecidas pelos voluntários. Esta doação dos voluntários tem o nome de
Guru Ka Langar.
Por todos estes motivos, o Harimandir Sahib é o destino mais querido e precio-
so para todos os Sikhs, que é visitado por milhares de pessoas com o objetivo
de elevar os seus espíritos e os dos outros, através dos seus serviços abnegados.

Símbolos

O Khanda é o símbolo mais importante do Siquismo e resulta da junção de qua-


tro armas: a espada de dois gumes ao centro (a Khanda) com o Chakkar (arma
circular usada do século XVIII), ladeados por duas espadas curvas (Kirpans).

112
Todos estes elementos representam virtudes divinas: criatividade, justiça, li-
berdade, moralidade e espiritualidade, a eternidade e a perfeição, e os poderes
espiritual e temporal.

Celebrações

Os Sikhs guiam-se habitualmente pelo Calendário Lunar, logo os dias variam.


Os feriados mais importantes são as datas de nascimento dos Gurus, bem como
grandes celebrações como os 500 anos do nascimento de Guru Nanak (em
1969) e a celebração dos 300 anos do nascimento do Khalsa (em 1999).
Outra data que celebram, entre dezembro e janeiro é o nascimento de Guru
Gobind Singh, o décimo e último Guru humano, cuja vida continua a inspirar
os Sikhs pelo mundo.
A 13 de abril, Baisakhi, comemora-se o dia em que, no ano de 1699, Guru Go-
bind Singh cria a Khalsa, onde batiza cinco discípulos seus, o chamado Panj
Piare.
Em junho comemora-se o Martírio de Guru Arjan, e faz-se memória da sua
tortura, assim como a criação do Templo Dourado, bem como a compilação do
Siri Guru Granth. Ele foi martirizado em 1606.
Em outubro ou novembro celebra-se o aniversário do Guru Ram Das, o quarto
Guru. Foi conhecido pela sua humildade e poderes de cura.
Também em outubro ou novembro é o dia do Guru Gaddee, em que se relembra
o dia no ano 1708, quando o Guru Gobind Singh colocou no trono (Gaddee) o
Guru Granth Sahib e decretou que este pertence a todos os Sikhs.
Nesta celebração, o Siri Guru Granth Sahib é transportado numa alegre procis-
são.
Também num destes meses é celebrado o aniversário de Guru Nanak Dev, uma
das maiores festividades. Contam-se histórias sobre a sua vida e das suas com-
posições em Gurdwara. Em algumas regiões, hindus e muçulmanos também
celebram este feriado.
Em outubro, celebra-se o Diwali que coincide com o Festival das Luzes (festi-
val hindu), e homenageia-se a libertação do Guru Hargobind do Forte Gwalior,
em 1617. Nesta celebração, o Templo Dourado é enfeitado com milhares de
luzes e lâmpadas de barro, e velas e lanternas flutuantes decoram as águas que

113
circundam o Templo. São lançados à noite, fogos de artifício que iluminam
todo o céu.
Por fim, em dezembro, celebram o martírio do Guru Tegh Bahadur, honrando o
seu sacrifício para proteger a preciosa liberdade religiosa e os direitos humanos.
O nono Guru foi decapitado em 1675.

114
Paganismo
Neopaganismo / Reconstrucionismo politeísta

Mariana Vital
Paganismo

Neopaganismo / Reconstrucionismo politeísta

Paganismo representa uma vasta variedade de tradições que enfatizam


O a reverência à natureza e o reconstrucionismo/revivalismo de práticas
religiosas politeístas e animistas.

Origens

Algumas formas modernas de Paganismo têm origem nos nacionalismos euro-


peus do século XIX (incluindo a Ordem Britânica dos Druidas), mas os grupos
Pagãos mais contemporâneos podem traçar as suas raízes organizacionais a
partir da década de 60 do século XX, tendo estas como ênfase a psicologia
arquetipal e o interesse espiritual na natureza.
Nas suas abordagens antigas, o Paganismo tem uma influência-chave: a própria
natureza. Mas no seu renascimento assumido (séculos XVIII-XX), com várias
novas ou reconstruídas formas de espiritualidade naturocêntrica, o Paganismo
também é influenciado por diversas fontes, nem todas elas explicitamente reli-
giosas ou espirituais, mas também literárias, sociais, folclóricas e mitológicas,
mesmo antecedentes à obra de Gerald Gardner, fundador da Wicca, em 1950.

Fundadores

O Paganismo não tem uma figura fundadora que funcione como alvo de adora-
ção ou veneração. Devido ao facto do antigo Paganismo ter uma origem pré-his-
tórica, os primeiros protagonistas do início deste caminho religioso perdem-se
nas brumas do tempo. Ainda assim, as várias linhagens e tradições dentro do
Paganismo podem ser seguidas, assim como um ou mais líderes visionários que
fundaram (ou popularizaram) a sua comunidade particular. É, contudo, incor-
reto apontar estas figuras como fundadoras da comunidade pagã, na sua abran-
gência. Estes alguns exemplos de figuras fundantes:

117
Enquanto Gerald Gardner, através do desenvolvimento e adaptação de várias
formas de ritual, compilou e criou novos rituais, divulgando a sua existência ao
mundo externo como a Tradição Wicca, a Doreen Valiente foi a conhecida Alta
Sacerdotisa que escreveu sobre a Bruxaria Tradicional, sendo hoje aclamada
como a autora da Carga/Exortação da Deusa, um dos textos de referência Wic-
can. Frequentemente, a paternidade desta tradição é dada a Gardner, enquanto
a maternidade é reconhecida a Valiente, perfazendo o duo fundador da Wicca.

Michael Harner (1929), por sua vez, lançou a Fundação para os Estudos Xâma-
nicos (Foundation for Shamanic Studies), a instituição que ensina «Xamanismo
puro», uma destilação dos princípios gerais da espiritualidade indígena-mági-
ca-religiosa das culturas tribais por todo o mundo.

Já Isaac Bonewits (1949-2010) estabeleceu a organização Druida Pagã, Ár


nDraíocht Féin: A Druid Fellowship (ADF, A Irmandade Druida), que promove
uma abordagem ao Paganismo (incluindo todas as variantes de Paganismo-Eu-
ropeu, além das variantes Celta e Druida) mais académica.

Edred Thorsson (1953) é o líder e autor de obras sobre a espiritualidade (e a


ritualização) das Runas e a religião dos antigos Nórdicos.

Charles Leland (1824 –1903) foi um folclorista americano que reuniu lendas e
mitos com os quais compôs o Evangelho de Arádia, uma obra incontronável na
mitologia do Movimento da Deusa.

Esta rápida lista está, naturalmente incompleta e não se pretende que seja total
ou universal. Muito devido à tendência descentralizada e à ênfase na expe-
riência espiritual pessoal, os protagonistas fundadores do Paganismo ocupam
um papel mais modesto quando comparados com os representantes de outras
tradições com estrutura oficial.

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Princípios do Paganismo

O Paganismo é uma religião que ultrapassa o sentido tradicional da palavra,


pois não possui uma doutrina oficial, ao invés, tem um grupo de características/
princípios comuns que são partilhadas pela maioria das tradições que compõem
o Paganismo. Uma das crenças comuns é a presença do divino na Natureza e a
reverência pela ordem natural na vida (Panteísmo). O crescimento espiritual é
relacionado com os ciclos da Terra e uma grande ênfase é dada às preocupações
ecológicas. O Monoteísmo é praticamente rejeitado dentro do Paganismo, e
a maioria das tradições Pagãs empenham-se, com particular interesse, no re-
construcionismo (ou revivalismo) das antigas tradições religiosas politeístas,
incluindo as Tradições Nórdicas (Norte da Europa) e as Celtas (Bretanha, Ibé-
ria, etc.). Muitas tradições pagãs são reconstruídas no sentido de reviver muitos
dos seus ritos antigos, incluindo o restabelecimento dos dias sagrados e cele-
brações sazonais.
Para além da Natureza, muitos pagãos prestam adoração a uma variedade de
deuses e deusas (Politeísmo), onde se incluem (frequentemente) os antepas-
sados ou heróis e heroínas ligados às tradições pagãs. No caso dos antepassa-
dos, muitos pagãos procuram honrar a ancestralidade, nas suas componentes,
genérica e pessoal. Outro elemento partilhado pela vasta maioria de tradições
pagãs é a inclusão do sagrado feminino, frequentemente acompanhada da com-
plementaridade de um sagrado masculino que representa a dinâmica de forças
opostas de poder equivalente (oposição complementar) que compõem e decom-
põem continuamente o Universo: fogo e gelo, dia e noite, espírito e matéria, etc.
Algumas tradições pagãs incluem no ritual a componente da magia, mas esta
não é uma prática universal dentro da religião pagã. Outro princípio que tem
muito adesão por parte dos pagãos é o esquema da responsabilidade pela ação e
reação. E, particularmente importante para aqueles que partem de uma tradição
mágica, como o caso da Wicca, há ditames que são considerados invioláveis:
«Faz o que quiseres desde que não prejudique a ninguém», ou ainda o popula-
rizado: «Tudo o que fizeres voltará para ti três vezes maior.» Esta responsabi-
lização e advertência a regrar a liberdade pessoal com a liberdade dos outros é
tida como conduta máxima da Feiticeira.

119
Textos

De forma geral, os pagãos tendem a reconhecer todos os textos considerados


sacros por outras tradições religiosas da seguinte forma: nenhum texto está aci-
ma de crítica, mas qualquer texto deve ser respeitado pela sabedoria que possa
conter.
Muitas formas de Paganismo nutrem uma consideração profunda pela mitolo-
gia, particularmente os mitos e folclore politeísta e xamânico. Assim, as antolo-
gias de mitos e lendas – ou interpretações e comentário à mitologia – são textos
essenciais para muitos adoradores.
Nesta linha, o movimento pagão, que emergiu na segunda metade do século
XX, foi caracterizado por um vasto número de escritores, cujo trabalho foi acei-
te como expressão legítima das crenças e práticas de várias formas de adoração
da Natureza, politeísmo moderno, espiritualidade da deusa e outros tipos de
Paganismo contemporâneo.
Em última instância, os praticantes da religião natural asseguram que a nature-
za (como é experimentada e compreendida, através da experiência pessoal) é
a autoridade final que ultrapassa a opinião ou sabedoria de qualquer outro ser
humano. «Quando em dúvida, consulta a árvore mais próxima», diria Isaac Bo-
newits. «Ler» a natureza (também chamada de ciência ou experiência pessoal),
é, portanto, uma ferramenta de cultivo da sua própria sabedoria espiritual indi-
vidual, utilizada, como outras tradições religiosas dariam uso às suas respetivas
sagradas escrituras na procura de inspiração. Aliás, frequentemente, muitas tra-
dições pagãs apelam aos fenómenos naturais, ciência, experiência pessoal ou
mitologia como fontes de evidência e referência/padrão para o entendimento
do mundo que os rodeia e as leis que o regem. À luz deste esquema de com-
preensão, o divino não poderia nunca ser apresentado de forma exclusiva numa
figura masculina, pois que tudo na natureza que assume um tipo de género, terá
sempre o outro, e assim deverá ser, segundo o padrão, a mesma dinâmica de
maculino-feminino a afigurar-se nos arquétipos divinos.
A partir de assumidos padrões, os Pagãos também distinguem níveis de perce-
ção e ação diferentes, aplicados à natureza: o nível do corpo humano, o nível
do mundo não-humano exterior, e o nível do próprio cosmo que se expressa nos
ciclos solar e lunar e que compõe a Roda do Ano.

120
Práticas

O Paganismo – como actividade espiritual humana – é tão diverso quanto a pró-


pria biosfera. Estudar a identidade pagã é compreender e respeitar a diversidade
dentro da comunidade pagã. Paganismo, Bruxaria, Wicca, Druidismo, Xama-
nismo, Tradições Helénicas ou Ítalo-Romanas, Tradições Mesopotâmicas ou
Kemeticas, Tradições do Norte, Asatru, Odinsimo – cada uma destas, comporta
muitos entendimentos diferentes, por parte dos seus praticandes. As diferenças
geográficas asseguraram que a espiritualidade pagã evoluísse de diversas for-
mas, mesmo tendo raízes ancestrais comuns. Exemplo desta diversidade de prá-
ticas retira-se daquela que é uma das essências da conduta pagã: a observação
da Roda do Ano e a marcação dos ciclos naturais do Sol e da Lua. Para além das
celebrações dos ciclos naturais, há também as celebrações de passagem: o Ca-
samento (Pular da Vassoura, Handfasting), o Rito Fúnebre, o Rito dos Anciãos
(ritual realizado pela comunidade ou grupo que confere o estatuto de Ancião a
um dos seus membros, é especialmente associado à entrada da mulher na fase
de Anciã/Lua Minguante, no simbolismo da Lua Tripla).

Roda do Ano

O movimento pagão desenhou (desde o século XX) o seu tempo sagrado, a


partir de fontes diversas de folclore, arqueologia e mitologia. Assim, e como
é padrão dentro das tradições pagãs, diferentes tradições podem observar dife-
rentes dias sagrados. A popularidade da Wicca, por exemplo, transformou o seu
calendário na Roda do Ano mais praticada no Paganismo.
O tempo sagrado (calendário das celebrações) é estabelecido em muitas tra-
dições pelo ciclos do Sol e da Lua. O ciclo lunar ocorre a cada 28-29 dias,
enquanto um ciclo solar ocorre na duração de um ano completo. As celebra-
ções-chave, no ciclo lunar, incluem a lua nova e a lua cheia.
Já o ciclo solar, observado por muitas tradições, costuma ser marcado pelas
celebrações das mudanças de estação (equinócios e solstícios) e pelos festivais
que pontuam o ciclo das colheitas e do gado (época do plantio das sementes,
das colheitas nos campo, das colheitas nos pomares, das primeiras pastagens,
depois do inverno, da bênção do gado, da recolha dos animais no inverno, etc.),
no calendário Wiccan, estes últimos são identificados em quatro festivais que,

121
somados aos solstícios e equinócios, perfazem uma Roda do Ano do Ciclo So-
lar, composta por oito festivais:

• Samhain ou Halloween, tradicionalmente celebrado em (ou à volta de)


31 de outubro, no Hemisfério Norte (HN); e 31 de abril, no Hemisfério
Sul (HS).
• Yule, o solstício de inverno (21 de dezembro, no HN; e 21 de junho, no
HS).
• Imbolc ou Candelárias, tradicionalmente celebrado em (ou perto de) 1
de fevereiro (HN) e 1 de agosto (HS).
• Ostara, o equinócio da primavera (21 de março, no HN; e 21 de setem-
bro, no HS).
• Beltane ou Maias, tradicionalmente celebrado em (ou perto de) 1 de
maio (HN) e 1 de novembro (HS).
• Litha, o solstício de verão (21 de junho, no HN; e 21 de dezembro, no
HN).
• Lughnasadh ou Lammas, tradicionalmente celebrado em (ou perto de)
1 de agosto (HN) e a 1 de fevereiro (HS).
• Mabon, o equinócio de outono (21 de setembro, no HN; e 21 de junho,
no HS).

Os nomes alternativos associados a estes festivais pagãos advêm de costumes


cristãos (do sincretismo por estes feito, entre os seus calendários e os já exis-
tentes que foram assim «convertidos» à nova religião), ou, em alguns casos, po-
rém, da ligação ao nome que representa o fóssil de costumes mantidos durante
muitas gerações.
Para todas as tradições pagãs, a Roda do Ano pauta o ano, com o ritmo das
práticas e da liturgia de leitura dos ciclos naturais. Assim, se o solstício de in-
verno representa um sol com o seu mínimo poder, este também está ligado ao
nascimento da luz que, até ao solstício de verão, crescerá, para depois declinar
e voltar a repetir o ciclo. Assim, os ciclos acompanham os arquétipos da Lei
do Divino e Eterno: (Re)Nascer, Crescer/Apogeu, Declínio e Morrer (esta Lei
aproxima, com naturalidade, muitos pagãos da crença na reencarnação, pois,
como é na Natureza, assim é na Humanidade). As variantes, nos calendários,
entre as tradições, são determinadas pela distinção feita entre as mudanças de
estação e as próprias geografias, bem como dos mitos que a essas mudanças
vão estar associados. Se as tradições celta, druida, nórdicas e eslavas marca-

122
vam religiosamente os equinócios e os solstícios, as tradições mesopotâmicas e
egípcias dividiam o ano em duas grandes estações, guardadas pelos equinócios:
a metade do ano da chuvas e a metado do ano da seca.

Locais

Muitos pagãos postulam a ideia de que o Universo é sagrado; que mesmo o


mais mundano e corriqueiro elemento da Natureza é, ou tem potencial para ser,
impregnado de possibilidades e poder espiritual. Na visão panteísta, o Paganis-
mo celebra todo o espaço, toda a natureza, como um todo sagrado, mas, nesta
imanência global, há sítios ou pontos particulares, dentro do mundo natural,
que são reverenciados como locais de poder espiritual especial e dignos de
reverência e veneração, tais como: Stonehenge, Angkor Wat, Newgrange, as Pi-
râmides do Egipto, Macchu Picchu, o Parthenon, o Grande Monte da Serpente,
o Cromeleque dos Almendres. Por todo o mundo, há numerosos locais cerimo-
niais antigos e de significado religioso. Os pagãos procuram, frequentemente,
estes monumentos veneráveis de inspiração, na busca contínua de reviver ou
recriar a devoção: politeísta, centrada na Deusa, ou baseada na Natureza.

Outros locais naturais

Outros locais conquistam o estatuto sagrado, por parte dos adoradores, devido
à significação histórica, particularmente, no que toca à mitologia ou ao folclore.
Sítios associados com antigos deuses e deusas carregam especial significado.
Árvores notáveis, fontes abundates de água e outras morfologias únicas da Na-
tureza, são reconhecidas, enquanto embuídas de significado, tanto pelo que lhe
é atribuído pelo folclore, pelas tradições locais como o estabelecido pelos pa-
gãos contemporâneos (individualmente ou em grupo/comunidade) que por elas
são atraídos, e nelas encontram ou criam referências de significado espiritual.

123
Um caso particular, em Portugal

Um exemplo deste último tipo de espaço sagrado é o contemporâneo culto ao


Deus Endovélico que tem no Alentejo, todos os anos, um ritual comunitário.
Endovélico era um deus da Idade do Ferro, da medicina e da segurança (pelo
tipo de votos a ele dedicados), de carácter simultaneamente solar e ctônico,
venerado na Lusitânia pré-romana. Depois da invasão romana, o seu culto es-
palhou-se pela maioria do Império Romano, subsistindo por meio da sua iden-
tificação com Esculápio ou Asclépio, mas manteve-se sempre mais popular na
Península Ibérica, mais propriamente nas províncias romanas da Lusitânia e
Bética.
Indícios arqueológicos apontam um templo, em São Miguel da Mota (Alente-
jo), dedicado a Endovélico, com numerosas inscrições e ex-votos a ele dedica-
dos, no Museu Etnológico de Lisboa. O culto de Endóvelico sobreviveu até ao
século V, até à chegada do Cristianismo à região. Hoje, a Câmara Municipal do
Alandroal promove, todos os verões, a celebração ao Deus Endovélico, dirigida
sempre por saceedotes de uma tradição pagã convidada.

Espaço Sagrado

Muitos grupos pagãos e indivíduos incluem a prática de rituais mágicos como


parte da sua vida espiritual. Em algumas tradições, a realização de um rito
mágico implica um espaço limitado (amiúde um círculo), no qual a energia
da cerimónia ocorre. Este espaço é entendido como tendo qualidades mágicas
que o separam do resto do Universo. Na Wicca, este fenómeno é visto como
a criação de um mundo «entre mundos» – um local espiritual, entre o mundo
material e o espiritual, que permita a passagem entre os dois planos. Os pagãos
não procuram criar uma distinção rígida entre o que é e o que não é sagrado, e
preferem antes ancorar um entendimento cósmico do Universo como sagrado,
aproveitando, para isso, adentrar em locais específicos que sejam particular-
mente apropriados para a veneração. Para os pagãos, o espaço sagrado é a cha-
ve para a compreensão de tudo o que é a natureza, no sentido cósmico: a sua
sacralidade, através da veneração particular de uma localização especifica (seja
esta no universo físico ou no mundo espiritual).

124
Rituais

Muitos adoradores escolhem integrar tradições pagãs nas suas rotinas diárias,
através da configuração de altares pessoais (um ou mais) nas suas casas ou quin-
tais. O altar pessoal pode ser simples ou elaborado; pode estar de acordo com
os parâmetros tradicionais estabelecidos pela comunidade em que se participa,
ou pode ser inovador, de fé ou devoção de expressão individual. O altar pode
funcionar como ponto focal para meditações pessoais, como local de oferenda
devocional aos deuses, ou como altar de trabalho, que pode ser usado em rituais
ou cerimónias. Muitos pagãos incorporam também diversas práticas oraculares
(como Tarot, Runas, Ogham, etc.), frequentemente, arrumadas nos altares (quer
com o intuito de sacralização do objeto oracular, quer como local de trabalho
oracular). Como os pagãos costumam resistir à ideia de que a espiritualidade
está, de alguma forma, desligada do resto da vida, qualquer atividade pode ser
entendida como parte de uma prática espiritual. Acampar, passear, jardinar, fo-
tografia natural, desenhar ou outra procura criativa, a prática de herbalismo ou
o uso de óleos essenciais, confecção de incenso, preparação e uso de mezinhas
e panaceias tradicionais, estes são exemplos de muitas práticas que podem ser
incorporadas na vida quotidiana com o claro reconhecimento do significado
espiritual de que são imbuídas. Cabe ao pagão a responsabilidade última sobre
o investimento e caminho escolhido no seu desenvolvimento espiritual.

Símbolos no Paganismo

Não existe um símbolo que defina totalmente o mundo multifacetado do Paga-


nismo. Com tantas expressões etnicamente específicas do Paganismo, símbolos
com fortes associações culturais vão ser naturalmente preferidos em detrimento
de outros. Ainda assim, o pentagrama (estrela de cinco pontas, normalmente,
mas nem sempre, envolta por um círculo) é quase universalmente usada por
Wiccans e outras Feiticeiras ou Magos, e talvez seja o que mais se aproxima de
um símbolo comum usado pelo Paganismo como um todo.

125
Organizações pagãs

O Paganismo antigo nasceu com as práticas coletivas e públicas, sempre liga-


das a uma tribo, a um clã, a uma comunidade, a um Estado. Hoje, a prática soli-
tária é aceite, mas muitos pagãos tendem a filiar-se com outros, tipicamente, em
grupos pequenos que podem ser governados por consenso ou através de outra
forma democrática de tomada de decisão. Estes grupos são identificados como
círculos, tribos ou conventículos (covens), este último termo é usado quase ex-
clusivamente por Wiccans e Feiticeiras/os. Alguns grupos (particularmente os
covens tradicionais) têm estabelecido estruturas de liderança e protocolos de
inclusão de novos membros.
A nível regional ou nacional, organizações chapéus de chuva, como o Conve-
nant of the Goddess (CoG) ou a Pagan Federation International (PFI) permitem
aos membros de grupos independentes reunirem-se com propósitos comuns,
como trabalho em rede e apoio político.
Os grupos, normalmente, envolvem-se em trabalho ritual e educativo: os an-
ciãos ensinam aos membros mais novos a teologia e a espiritualidade da reli-
gião pagã, no geral e da sua tradição particular: os rituais comunitários ajudam
os membros do grupo a praticarem a sua espiritualidade. Os grupos também
tendem a desenvolver actividades dinamizadoras e construtoras de identidade
comunitária, assim como desenvolvem projetos sociais e muitas vezes com mo-
tivações de ordem ambiental.

Paganismo, política e sociedade

Os pagãos tendem a uma magna abrangência do sistema de valores, social e


político. Os adoradores deste tipo de espiritualidade podem, em boa consciên-
cia e sem compromissos de natureza política, aprovar valores de esquerda, de
direita, de centro, liberais, verdes ou qualquer outro. A sociedade pagã é uma
sociedade onde a liberdade de expressão e de ideias políticas é fundamental.
Este grande espectro acaba por ser apenas excludente de ideologias que não
reconheçam esta liberdade de expressão fundante, e é importante referir que
não há nenhuma ideologia política que defina, nem que esgote, os princípios
do Paganismo. Ainda que muitos pagãos se identifiquem com estruturas sociais
tribais, num nível mítico ou espiritual (a Humanidade como irmanada sob a

126
mesma tribo/clã), estes adoradores, geralmente, aceitam e defendem os valores
da democracia liberal, que lhes garante, à partida, a liberdade de expressão, de
pensamento e de culto que privilegiam.

Paganismo e género

Quando a Wicca Gardneriana surgiu (em 1950), foi considerada extrema no seu
uso explícito de simbolismo erótico nos rituais – outras formas de Wicca, Bru-
xaria e ainda outras tradições naturais, não seguem sempre a regra de trabalhar
Skyclad (nu) ou desenvolver outras formas de expressão sexual ritualística –,
mas tornou-se emblemática a sua irreverente atitude positiva (e libertadora), em
relação à sexualidade, que caracteriza, ainda hoje, o Paganismo. E, apesar de
muitos adoradores pagãos tenderem a adoptar estilos de vida mais alternativos,
geralmente, são aceites na comunidade pagã, sem necessidade de se esconde-
rem ou desculparem pelas escolhas dos seus originais ou ousados estilos de
vida.

Factos interessantes

A 22 de março de 2008, em Olímpia (Grécia), foi realizada uma recriação (por


atores) de uma cerimónia onde as atrizes, caracterizadas como sacerdotisas da
Grécia Antiga, percorreram o caminho do templo de Hera, levando o vaso com
a Chama Olímpica, durante o ensaio da Cerimónia do Acendimento, por oca-
sião dos Jogos Olímpicos de Pequim.

127
Judaísmo
Paulo Mendes Pinto
Judaísmo

Judaísmo é um continente de valor que em muito ultrapassa o conceito


O religioso. Trata-se de uma noção, de uma ideia de identidade relativa à
religião e cultura do chamado Povo Hebreu/Judeu.
A abrangência da ideia, associada ao termo «Judaísmo», é de tal dimensão que
muitos dos que, por nascimento, são considerados judeus, não são religiosos, e,
simultaneamente, várias religiões e seus seguidores não-judeus consideram-se
descendentes da linhagem abraâmica (cristãos, muçulmanos e bahá’ís).

Estruturação e diversidade do Judaísmo

A nível de divisões atuais, o Judaísmo é comummente catalogado tomando em


consideração os seguintes movimentos:

Judaísmo ortodoxo (divisível entre «chassídicos» (ou hassídicos) e


«não-chassídicos», os mitnagdim);

Judaísmo conservador (fora dos Estados Unidos da América é conhe-


cido por Judaísmo Masorti);

Judaísmo reconstrucionista;

Judaísmo reformista (fora dos Estados Unidos da América também é


conhecido como Judaísmo progressista ou Judaísmo liberal).

Historicamente, o Judaísmo divide-se em dois grupos, os Sefardim (Sefarditas)


e os Askenazim (Asquenazes). Os primeiros correspondem aos de origem cul-
tural com base na Península Ibérica, e os segundos, na restante Europa, nomea-
damente de Leste.

131
Princípios básicos da fé judaica

A ideia de Divindade

O Judaísmo baseia-se num monoteísmo unitário estrito; isto é, na crença num


único e indivisível Deus. Deus é Omnipotente (todo-poderoso), Omnisciente
(tudo sabe) e Omnipresente (está em todo o lugar).
A principal oração judaica – «Shema Israel! (Ouve Israel!)» – exprime, aliás,
esta fé num Deus único: «Ouve Israel, o Eterno é o nosso Deus, o Eterno é
Um.»
Deus é uma realidade não-física, donde, uma entidade sem forma corpórea. É
totalmente proibida toda a forma de representação de Deus, desde a formal até
à simples pronúncia do seu Nome ou desejo da grafia desse mesmo nome.
Todos os trechos da Bíblia ou da literatura rabínica que utilizam ou apresentam
a antropomorfia de Deus são vistos como liberdades poéticas, metáforas, por
ser impossível falar de Deus de outro modo.

A noção de pertença

A Lei Judaica, a partir da época do Talmude, considera judeu todo aquele que
nasceu de mãe judia ou se converteu de acordo com a Lei Judaica. (Recen-
temente, os seguidores da Reforma Americana e do Reconstrucionismo têm
incluído também as crianças nascidas de pai judeu e mãe gentia, desde que
educadas de acordo com a religião judaica.)
Um judeu que deixe de praticar o Judaísmo e se transforme num judeu não-pra-
ticante continua a ser considerado judeu. Um judeu que não aceite os princípios
de fé judaicos e se torne agnóstico ou ateu também continua a ser considerado
judeu, com certos limites comunais.
No entanto, se um judeu se converte a outra religião perde o lugar como membro
da comunidade, transformando-se num apóstata. Apesar deste rótulo, e embora
a pessoa esteja fora da comunidade judaica e tenha ideias religiosas diferentes,
aos olhos das autoridades em Lei Judaica, essa pessoa continua a ser judia.

132
Ritualidades e passagens

O Judaísmo, mais que uma religião para quantos nascem no seu seio, consti-
tui elemento indispensável de identidade, e, por este facto, a ritualização das
diversas fases da vida reveste-se de um grande peso, assinalando-se especiais
momentos desta pertença:

• Nascimento

Uma das ideias basilares do Génesis é a conhecida frase: «Crescei e multipli-


cai-vos, enchei e dominai a terra.» Este primeiro «mandamento bíblico» veio a
ser tolhido pela «desobediência» de Eva, ao colher o fruto da Árvore do Conhe-
cimento. Após esse episódio, sobre ela e a sua descendência caiu a maldição das
dores de parto. Mas, se a parturiente corre risco de morte, para a Lei judaica, a
sua vida é mais importante que a vida da criança que ainda não nasceu.
O recém-nascido é acolhido oficialmente no seio da comunidade, através de
uma cerimónia em que recebe o nome hebraico. Se for do sexo feminino, é a
cerimónia da nomeação («as fadas» na tradição ibérica judaica), se for rapaz é
feita a circuncisão, a Berit-Milá, aos oito dias de vida, e que marca a entrada
na Aliança de Abraão. A circuncisão é obrigatória aos oito dias, após o nasci-
mento. Em seis dias, Deus criou o mundo, ao sétimo descansou, e o oitavo dia
marca o início da intervenção humana no aperfeiçoamento da obra divina. A
circuncisão é um dever fundamental, através do qual os pais proclamam a con-
tinuidade da sua pertença ao povo judaico.

• Maioridade religiosa

Distinta da marca que civilmente corresponde à maioridade, a festa de Bar Mit-


zvá marca a entrada na maioridade religiosa. É o rito de iniciação, através do
qual a comunidade proclama que o jovem está apto a cumprir a Torá e os seus
mandamentos.
Feita aos treze anos para os rapazes, aos doze para as raparigas (Bat Mitzvá),
a cerimónia de Bar Mitzvá é preparada durante alguns anos, correspondendo a
uma aprendizagem da leitura em hebraico e correspondente estudo dos conteú-
dos da Torá.

133
Para os rapazes, a partir desta maioridade religiosa, passam a contar para o
minian (o quórum) dos 10 homens necessários para a oração colectiva. Na ce-
rimónia de Bar Mitzvá, o jovem procede à leitura pública da Torá, na sinagoga,
e – em certas comunidades – põe os Tefilim (filactérios). Os Tefilim são duas
pequenas caixas cúbicas com correias de cabedal que se colocam na fronte e no
braço esquerdo perto do coração, e que contêm quatro passagens do Êxodo e
do Deuteronómio, em pergaminho, lembrando a saída do Egipto e afirmando a
principal oração e profissão de fé judaica – o Shemá: «Ouve, Israel, o Eterno é
o nosso Deus, o Eterno é Uno.»

• Casamento

No mundo judaico, o casamento é uma etapa desejada, tida como natural con-
tinuidade do Génesis e da ordem de crescimento e multiplicação dada a Adão e
Eva. Esta religião não favorece nem pratica o ascetismo e a mortificação, razão
pela qual não há apelo a uma recusa face ao casamento. Mais, segundo a visão
cabalista, a alma que desce dos céus é composta por duas partes, uma masculi-
na e outra feminina, que se separam e vão habitar corpos diferenciados, com a
missão e plenitude concretizadas no reencontro do casamento, em que voltam
a completar a unidade de origem. O casamento é, assim, uma forma de parti-
cipação, quer do homem quer da mulher, no equilíbrio e dinâmicas do cosmo.
Por outro lado, e a nível social, o casamento é da maior importância, na medida
em que é através da célula familiar (mais ou menos alargada) que se processa a
transmissão cultural e religiosa, com especial empenho da mulher.
Olhando para a mulher, o casamento é feito por acordo mútuo e pode dar lugar
ao divórcio, previsto na Bíblia – apesar do seu peso e importância, o casamento
não é um sacramento. Contratualmente, o casamento é marcado por um contra-
to, a Ketubá, instituição legal estabelecida na época da Mishná que se destina-
va, numa sociedade patriarcal, à protecção dos direitos da mulher.

134
• Morte

Para o Judaísmo, a morte é parte natural da integração do Homem na natureza,


por isso, quando alguém morre, o corpo é colocado no chão, cobrindo-se com
um lençol e juntando-se uma luz que simboliza a presença divina, a imortalida-
de do sopro divino que foi albergado por aquele corpo.
A morte, porém, é um estado de impureza, pelo que se deitam fora as águas
paradas, a fim de evitar a contaminação. Num misto de religiosidade e higiene,
abrem-se as janelas para que a alma possa partir.
O tratamento do corpo com a sua preparação fica a cargo de uma organização
comunitária, a Hevrá Kadisha, a irmandade santa, que se ocupa da lavagem do
corpo e do seu envolvimento com uma mortalha de linho branco, símbolo da
igualdade que caracteriza todo o ser humano perante a morte.
O enterro do corpo é feito diretamente na terra, sem caixão, apenas envolvido
num lençol, e realizado no próprio dia ou no dia a seguir, a fim de não se pro-
longar o estado de impureza.
O luto é rigoroso, durante sete dias em que se permanece em casa, sem sair. Du-
rante um ano, embora a vida vá retomando o seu curso progressivamente, são
geralmente banidas as distrações e continua a ser dito, diariamente, o Kadish,
oração própria para os momentos de morte. Nas visitas regulares que se fazem
ao cemitério não é hábito pôr flores nas campas, mas sim pedras, símbolo da
terra, fonte de vida.
Para o Judaísmo, a alma é imortal, é uma parte de Deus, um «sopro divino», e,
quando sobrevém a morte, a alma retorna à eternidade, onde tem uma existên-
cia puramente espiritual.

Calendário

Calendário luni-solar (começou no ano 3761 a.EC), tem 354 dias, nos anos
comuns (12 meses), ou 385 dias, nos anos embolísmicos (13 meses):

1. Tishrei [30 dias] 4. Tevet [29 dias]


2. Cheshvan [30 dias] 5. Shevat [30 dias]
3. Kislev [30 dias] 6. Adar [29 dias]

135
7. Nissan [30 dias] 10. Tamuz [29 dias]
8. Iyar [29 dias] 11. Av [30 dias]
9. Sivan [30 dias] 12. Elul [29 dias]

Festas e celebrações

Rosh Hashanah (1 Tishrei). Início do Ano Novo judaico.

Yom Kippur, (10 Tishrei). Dia da Expiação. É a maior celebração de


cariz pessoal, que encerra os dez dias do arrependimento, começados
no Ano Novo.

Sukkot (15 Tishrei). Festa dos Tabernáculos ou das Cabanas, em que se


lembram as tendas do deserto durante o período do Êxodo. Sukkot de-
senrola-se durante sete dias culminando com a festa de Hashana Rabba
(Dia da Grande Salvação).

Hanukkah (de 24 Kislev a 2 Tevet). Festadas Luzes ou da Dedicação,


em que se lembra a consagração do Templo de Jerusalém, por Judas
Macabeu, em 165 a.EC.

Purim (14 Adar). Festa que lembra a ação de Ester, esposa judia do rei
persa, em favor do seu povo.

Pessach (Passover) (14-15 Nissan). Páscoa, principal festa judaica, que


assinala a libertação da escravidão do Egito.

Yom Hashoah (27 Nissan). Celebração da memória do Holocausto.

Shavuot (6 Sivan). Pentecostes judaico. Celebra-se a colheita dos pri-


meiros frutos e faz-se memória da revelação da Torá a Moisés, no mon-
te Sinai.

136
Shivá Assar Betammuz (17 Tamuz). O período entre 17 Tamuz e 9 Av
é de luto. Pede-se o perdão das faltas e pede-se a Deus a reconstrução
do Templo destruído. Implora-se também pelo descanso das almas dos
judeus mortos, durante o holocausto.

Tisha B’Av (15 Av). Dia da Lamentação e da Memória das destruições


do Templo: em 587 a.EC, por Nabucodonosor (Babilónia), e, em
70 EC, por Tito (Roma).

Símbolo

A Estrela de David, composta de dois triângulos opostos e sobrepostos (en-


trosamento) – além de outras leituras simbólicas, suger a essência dos ideais
judaicos: a fé e a história judaicas –, é o símbolo da nação judaica, aceite em
todo o mundo, desde o século XIX.
Em épocas anteriores, esta função simbólica era muitas vezes materializada,
quer pela Menorah (candelabro de sete braços), quer pelo Shofar (chifre de
carneiro, tocado nas cerimónias do Templo), quer ainda pelo Ethrog (limão) ou
pelo Lulav (palma).
A «Estrela de David», também referida por Magen David (Escudo de David),
passou a constituir um símbolo de opção definitiva, depois das grandes deporta-
ções do Nazismo que culminaram no Holocausto, em que os Judeus eram obri-
gados a usá-la no braço, como meio de identificação forçada. A actual bandeira
do Estado de Israel tem ao centro este símbolo.

Origens e Judaísmo Antigo

Ao contrário de outras religiões, o Judaísmo não se pode considerar como o


produto directo de uma única revelação, num determinado momento e espaço
muito específicos. Trata-se de uma lenta construção colectiva, alicerçada numa
série de figuras significativas, remetendo a Abraão, mas também a Jacob, a
Moisés, aos reis David e Salomão, e à ação de muitos dos seus profetas.
A ideia de construção colectiva inclui todo o percurso que a esse grupo se apli-
ca, podendo identificar-se duas vertentes nesse caminho comum: uma geográ-

137
fica e outra mais espiritual. No que respeita à primeira vertente, temos toda
uma narrativa que trata um movimento que leva um grupo humano reduzido,
originário da Mesopotâmia, até Canaã, com posterior deslocação para a Babi-
lónia e, por fim, espalhado numa diáspora que dura até aos dias de hoje; no que
concerne à segunda vertente, é-nos apresentado um outro caminho, no sentido
da construção da ideia de um Deus universal, Uno e Único, caminho esse que é
prenhe de vicissitudes, atrasos e lutas internas, até se estabelecer, entre a gene-
ralidade da população e das autoridades, essa ideia de divindade.
Neste sentido, o Judaísmo é, acima de tudo, uma religião de construção de
memória e de memórias. Locais, personagens e momentos são especialmente
importantes na construção desta identidade.

O tempo dos Patriarcas

Com Abraão, numa visão histórica do colectivo, são lançadas as bases da reli-
gião de Israel. Um grupo familiar, alargado e seminómada, faz um percurso que
vai desde Ur, na Mesopotâmia, até Canaã, passando por Harran, na atual Tur-
quia, e pelo Egito. É com este grande patriarca que nasce, na narrativa do livro
do Génesis, a história nacional de Israel, com ações que conduzem diretamente
ao estabelecimento da referida identidade colectiva pela memória colectiva.
Com Abraão e sua mulher Sara é estabelecida a primeira Aliança com Deus,
claramente familiar, que lhe promete uma descendência imensa com posterior
instalação em Canaã.
Da geração de Abraão resultam os dois outros Patriarcas mais conhecidos dos
textos bíblicos: Isaac, pedido por Deus a Abraão em sacrifício, para lhe testar a
sua fé, e Jacob, que, em consequência de um misterioso combate com um en-
viado de Deus a que resiste, recebe o nome de Israel. Continuando a construção
da identidade comunitária, Israel passará a ser o nome dos 12 filhos de Jacob,
que dão origem às doze tribos, estrutura colectiva do Povo de Israel.

A metáfora do Egipto

Historicamente, poderia considerar-se normal que alguns grupos de seminóma-


das, ou mesmo de povos sedentários, regularmente, se instalassem no fértil
delta do Egito. As autoridades faraónicas possibilitariam essa forma de escape,
em alturas de piores colheitas, como se pode atestar no livro do Génesis através

138
do episódio de José. Mas, no livro do Êxodo, a situação que é descrita de forma
totalmente oposta. Esta nova situação, que teve de ser resolvida por Moisés,
era de escravatura e de sofrimento. E, aqui, está o dado mais importante: o so-
frimento era colectivo. No tempo dos Patriarcas, temos um grupo familiar que
é cada vez maior, mas não deixa de ser familiar. O que o texto do Êxodo nos
mostra já é uma realidade totalmente diferente: um grupo com uma identidade
nacional. E vários fatores surgem ao longo da experiência do Egipto e do Sinai
que reforçam a unidade do colectivo:

– a fuga coletiva, possibilitada por um Deus que se afirma como o Deus


de um povo, aparecendo em hierofania fulgurante na sarça ardente;
– a atribuição de um Profeta que contacta directamente com Deus e que
pode agir em seu lugar, lançando o medo, o respeito e a aflição, no bem
organizado e egocentrado mundo egípcio;
– a existência de uma nova Aliança, em que Deus estabelece um acordo
com um povo, dando-lhe uma Lei (os Dez Mandamentos e a própria
Torah) e um território (Canaã);
– a caminhada quase iniciática que advém de uma falha coletiva (o cul-
to idolátrico no Sinai), onde toda uma geração terá de morrer até se dar,
de facto, a chegada à Terra Prometida de Canaã.

Todo o conjunto Egito/Sinai está na origem de uma certa pedagogia que é a


constante memória de um Deus que livrou o seu povo da escravidão, com a sua
posterior queda numa enorme infidelidade. E, ao longo do último milénio antes
da Era Comum, é recorrente este discurso por parte de autoridades religiosas,
retomando sempre a ideia da falha do colectivo como justificação de situações
menos boas, como perseguições ou expulsões.

Instalação em Canaã

A chegada a Canaã é o clímax de toda a história bíblica. Toda a narrativa do


colectivo, desde Abraão até Moisés, estava direcionada para a chegada a esta
Terra, onde «escorria leite e mel». A instalação é um cântico ao poder de um
Deus glorioso à frente do seu Povo, dos seus exércitos, ocupando de forma
omnipotente o que havia sido acordado. No campo da memória e da identidade,

139
é neste momento, mais que autorizado por Deus, por Ele próprio comandado,
que nasce a aliança entre um povo e um território. Mas esta aliança, entre um
Deus, um Povo e um Território ganha uma maior complexidade e força porque
a estes três elementos acrescenta-se um quarto: a Lei, especificamente, com
as prescrições do Deuteronómio. A legitimação da presença do Povo na Terra
Prometida advém-lhe do cumprimento do que lhe fora estabelecido nesse livro
central da Torah.

Monarquia

A instauração da monarquia é consequência, não imediata, da conquista e insta-


lação em Canaã. Os Hebreus era um povo nómada, dividido em tribos, chefia-
das por Juízes, aos quais faltava capacidade para a união política e competência
para a organização e direção militar do povo na dura conquista da Terra Prome-
tida aos seus ocupantes. Por volta do ano 1000 a.EC, o reconhecimento da ne-
cessidade dessa união política, levou os próprios filhos de Israel a pedir a Deus,
através de Samuel, seu último juiz (outras tradições referem-se-lhe como pro-
feta e também como vidente), a figura unificadora e legítima de um monarca.
Os três primeiros reis, Saul, David e Salomão realizam a unificação das tribos,
impõem uma administração central, vencem os filisteus e outros povos. David
conquista Jerusalém, faz dela a capital, aí instala a Arca da Aliança, que contém
as Tábuas da Lei.
Salomão constrói o Templo de Jerusalém por volta do ano de 996 a.EC, de-
senvolveu e expandiu o comércio, instaurando uma poderosa rede de alianças
políticas e comerciais. Estes dois monarcas criaram a identidade entre o Povo, o
seu Deus e uma cidade onde se centraliza o culto. Antes, Jerusalém não passaria
de uma normal cidade onde se prestava culto a diversas divindades. Com estes
monarcas, e com a construção do Templo, dá-se um forte avanço na construção
da ideia de um Deus único, cultuado apenas num local, mediante regras muito
bem estabelecidas.
Por volta de 930 a.EC, com a morte de Salomão, o povo de Israel cindiu-se em
dois reinos, separados e autónomos. O reino de Israel (no Norte), com capital
em Siquém, agruparia dez das doze tribos, sob a direcção de Jeroboão, e o reino
do Judá (no Sul), com capital em Jerusalém, com duas tribos, sob a direcção de
Roboão (filho de Salomão).

140
Fim dos reinos de Israel e de Judá

Em 722 a.EC, o reino de Israel é destruído pelos Assírios, desaparecendo para


sempre. O reino de Judá, constituído pelas tribos fiéis à dinastia de David, terá
o seu fim dois séculos mais tarde, no ano de 586 a.EC, com a destruição do
Templo de Salomão, por Nabucodonosor, rei da Babilónia.
Nesta fase, tem início um cativeiro que consolidará a ideia de identidade na-
cional, ideia catapultada quando, ainda no século VI a.EC, se der o regresso e
se reconstruir o Templo. Este Segundo Templo foi construído a partir de 515
a.EC, com a chegada a Jerusalém dos judeus deportados na Babilónia, condu-
zidos por Esdras e Neemias. Dá-se uma profunda reforma religiosa e social
que coincide com uma das maiores etapas de sistematização do texto bíblico,
nomeadamente dos textos normativos.

Os Macabeus

Com a morte de Alexandre Magno, em 323 a.EC, o Império Macedónio foi


repartido pelos seus generais, dando origem a diversos reinos.
Os Selêucidas ficaram com um largo domínio na Mesopotâmia, Síria e Palesti-
na, impondo uma dura e intransigente aculturação nesses espaços. A resistência
a essa influência, por parte dos Judeus, foi encabeçada pela família dos Maca-
beus, que venceu as forças sírias do selêucida Antíoco IV e rededicou o Templo
(em 165 a.EC), que havia sido profanado com a edificação de um altar dedicado
a Zeus. O Hanukka (Festa das Luzes ou da Dedicação), normalmente celebrado
na segunda ou terceira semana de dezembro, é a festividade que, ainda hoje,
comemora este acontecimento. Durante 8 dias, todas as famílias acendem, es-
calonadamente, uma das oito velas, mais a central, do candelabro de nove bra-
ços, culminando com a sua iluminação completa, no último dia. Nesta quadra
festiva, oferecem-se presentes às crianças.
Em 63 a.EC, Jerusalém foi tomada pelo general romano Cneu Pompeu, e o
domínio maca-beu terminou, em 39 a.EC, com a nomeação, pelo Senado Ro-
mano, de Herodes (o Grande) para rei da Judeia. São deste período (anos 40-4
a.EC.), as obras no Templo, de que resta o chamado «Muro das Lamentações».

141
A destruição do Templo por Tito

No ano 70 EC deu-se mais uma marcante destruição de Jerusalém, desta vez


pelas legiões de Tito, e teve como centro simbólico a destruição do Segundo
Templo. No fundo, é com este evento que termina o chamado Judaísmo Antigo,
centrado na cidade de Jerusalém e no seu Templo. A identidade transportará
agora esta realidade para um horizonte mítico, fertilizante de uma cultura que
será cada vez mais um fenómeno de diáspora.
Esta destruição integrou-se na Grande Revolta Judaica (66-73 EC), por vezes
chamada de Primeira Guerra Judaico-Romana, que foi a primeira de duas gran-
des rebeliões dos Judeus da Judeia contra o Império Romano; a segunda foi a
Revolta de Bar Cochba, em 132-135, em que uma parte da população judaica
foi massacrada ou escravizada. Este acontecimento é central na história da diás-
pora judaica, a expulsão dos Judeus da Terra Prometida, centro nevrálgico da
identidade medieval e moderna.

O Judaísmo rabínico e de diáspora

O Judaísmo rabínico desenvolveu-se no espaço ritual e simbólico deixado pela


destruição do Templo. Confinados aos espaços de reunião que eram as sinago-
gas, espaços comunitários não sagrados, a reflexão e condução religiosa ficará
a cargo do rabinato, uma directa herança do século I da nova era.
No século em que Roma deixa de ser uma República para assumir o Principado,
havia várias grandes seitas e grupos religiosos no espaço de Israel. Em geral,
todos estes grupos procuravam, de forma diversa, uma via para a salvação mes-
siânica, apontando uns mais que outros a via da luta contra o domínio romano
como condição de base. Eram, essencialmente, os Fariseus, os Saduceus, os
Zelotas e os Essénios.
Entre estes grupos, apenas o dos Fariseus, mais numerosos e próximos às es-
truturas de poder, sobreviveu ideologicamente, e de que deriva o atual rabinato.
No século I, com os judeus já espalhados por todo o Mediterrâneo, especial-
mente nas grandes metrópoles como Alexandria, eram muitas as seitas judai-
cas, que apresentavam uma diversidade e actividade teológica invejável. Os
textos do Mar Morto, fruto do labor de uma comunidade monástica essénia, e
descobertos apenas no século XX, são prova disso.

142
Tiberíades, uma cidade sem a história das grandes cidades bíblicas, assumirá
a importância de quase cidade santa para os judeus, porque a ela se acolheu a
maioria dos judeus de Jerusalém, após a rebelião de Bar Cochba, transforman-
do-se, por esse facto, num grande centro espiritual religioso e intelectual.
A Mishná (tradição oral da Torah) foi ali compilada, por volta do ano 200. Em
fins do século IV, foi também ali terminado o Talmude de Jerusalém. E Flávio
Joséfo, autor de diversas obras essenciais para a compreensão da história dos
Judeus, foi também Governador de Tiberíades, na última década do primeiro
século.
No início do domínio otomano, por volta de 1560, o sultão Solimão, o Magní-
fico, ofereceu a cidade de Tiberíades e seus arredores a uma judia portuguesa,
Grácia Nasi, a herdeira da poderosa família Mendes Benveniste, que a recons-
truiu. Voltaria, porém, a ser destruída em 1837, mas desta vez por um terramoto.

A Cabala

A Cabala é um esquema de pensamento e de conhecimento esotérico sobre


Deus e o Universo. Assenta na ideia de um conhecimento revelado e trans-
mitido de forma selectiva, através dos séculos. Linguisticamente, o vocábulo
cabala confirma esta ideia de sistema religioso/filosófico de compreensão do
mundo através do acesso a conhecimentos superiores, tendo como tradução
directa «recepção».
As formas mais antigas de misticismo judaico deveriam consistir numa doutri-
na empírica de leitura do Universo. Sob influência neoplatónica e neopitagóri-
ca, dando um largo lugar ao estudo dos números e da geometria, assumiu um
carácter especulativo.
Na Idade Média, o pensamento cabalístico obteve um grande desenvolvimento
com a redação de vários textos de carácter místico, especialmente, o Sefer Yet-
zirah (o Livro da Composição), considerado o mais antigo texto sobre a Cabala,
ou Sefer HaBahir (o Livro do Brilho), anterior ao século XIII.
O mais importante texto cabalístico é o Zohar (o Livro do Esplendor). Deve
ter sido escrito na Península Ibérica no século XII, e a língua utilizada foi o
aramaico. Editado por Moshe ben Shem-Tov, foi por este atribuída a sua autoria
ao rabi do século II, Shimon bar Yochai.
Muitas das formas da Cabala defendem e ensinam que cada letra, palavra, nú-
mero e acento da Sagrada Escritura, contém um sentido escondido. A cabala é,

143
assim, a metodologia de interpretação desses significados ocultos. Muito de-
senvolvida a partir do século XIII, com escolas e grandes mestres, esteve mui-
tas vezes em oposição ao Talmude, como forma e autoridade na organização
das comunidades.
Desde o final do século XIX que a Cabala também tem sido estudada como um
complexo sistema racional de compreensão do mundo, mais do que um sistema
místico. Actualmente, os estudiosos diferem na legitimidade de aplicação do
vocábulo cabala a todos os movimentos místicos, desde o século I, anteriores
aos séculos V/VI, e mesmo ao horizonte actual da chamada cabalística.

A centralidade de Jerusalém

Jerusalém é, sem dúvida, a cidade mais estudada do mundo. Cidade Santa para
três religiões denominadas abraâmicas: Judaísmo, Cristianismo e Islão.
Para o mundo judaico, Jerusalém é o centro dos centros, a base do quase-mítico
reino de David e Salomão, o local onde se centrou o culto no Templo de Jeru-
salém, o local onde todas as instituições políticas e religiosas da sua cultura ti-
veram sede. Os judeus ortodoxos aguardam ali a vinda do Messias, para darem
início à reconstrução do Templo.
A história da cidade diz-nos que, apesar de ser considerada sagrada, foi simulta-
neamente cidade de ódio, de desolação e de guerra. Esteve cercada mais de 50
vezes, conquistada por 36 ocasiões e destruída em 10 delas.
A nível estratégico, a cidade de Jerusalém não indicia ter tido lugar de destaque.
Não se trata de um local colocado na linha das ricas rotas de comércio entre
o Egito e a Ásia; não é uma cidade costeira que domine alguma plataforma
comercial; não tem território agrícola rico; não detém poder sobre zonas meta-
lúrgicas de monta.
Arqueologicamente, os mais antigos vestígios de ocupação humana parecem
datar de meados do quarto milénio a.EC e encontram-se na colina sudeste, por
cima da única nascente perene da cidade, Guihon, o que foi essencial para a
fixação inicial das populações. Até ao século VIII a.EC só essa colina terá sido
habitada.
Desta forma, a cidade seria bastante pequena, em especial se comparada com
outras importantes cidades da época. Não ocuparia uma superfície superior a
12ha, e a sua população nunca ultrapassaria em muito os 2000 habitantes.

144
O seu nome poderá, segundo a hipótese mais aceite, ser um nome teofórico
(com base no nome de uma divindade) que significaria «fundação de Salém»,
sendo Salém uma divindade astral de Canaã (atestada na cidade de Ugarit, nos
séculos XIV-XIII a.EC), do campo funcional da Vénus latina. Biblicamente, o
nome surge no Génesis, ligado ao percurso de Abraão: «Melquisedec, rei de
Salém, trouxe pão e vinho e, como era sacerdote de Deus Altíssimo, abençoou
Abraão» (Gn 14,18).
Até aos séculos XI/X a.EC, a cidade esteve na órbita do poder do Império Egíp-
cio. Assim o atestam os mais antigos textos em que o nome da cidade é referido:
os chamados «textos de execração» (séculos XIX-XVIII) e a correspondência
diplomática de Amarna, a capital do faraó Akenaton (Amenófis IV).
Segundo os relatos bíblicos, obviamente, entre a realidade e a mitologia, cons-
truída posteriormente para ser imagem de uma época de perfeição, de auge, de
sublimação, a cidade fora conquistada por David que dela fizera a sua capital
(2Sm 5,6-9), por volta de 1000 a.EC.
No centro simbólico da cidade está o Templo, atribuído a Salomão (1Rs 5,15-
8,66), monarca que seria catapultado para a posteridade, como exemplo bíblico
da Sabedoria. De facto, toda a construção teológica de Javé se encontra profun-
damente ligada às descrições e memórias míticas das figuras destes reis e do
seu tempo: um monarca e uma dinastia, o seu palácio, sede de poder; um Deus,
ligado à casa real; e um Templo, dedicado ao Deus na mesma cidade, sede do
poder real.
Jerusalém teve um crescimento significativo a partir de fins do século séculos
VIII a.EC. Esse crescimento deve-se, em grande medida, à ruína do reino de
Israel, anexado à Assíria em 722/721. De facto, a queda de Israel terá levado
à movimentação de muitas populações em fuga para a cidade capital de Judá.
As primeiras muralhas da cidade datam do século séculos XVIII a.EC, mas é
da época deste crescimento o pano que já cercaria uma extensa superfície para
além da colina inicial. É também desta época de crescimento, do reinado de
Ezequias, a construção do famoso túnel com cerca de 533 metros para ir buscar
água para um reservatório dentro das muralhas, a chamada «Piscina de Siloé»
(2Rs 20,20).
Em 597/6 e 587/6, Jerusalém foi conquistada pelos Babilónios, sendo destruída
na segunda investida. Uma parte da sua população foi deportada para a Babi-
lónia que, desde essa data, nunca mais se livraria de ser a magna metáfora da
negação, do inverso da cidade sagrada. A cidade regressava à sua dimensão da
colina inicial, perdendo população e riqueza.

145
Nos séculos seguintes, o domínio sobre a cidade é uma constante altercação
com as forças hegemónicas da região: os Persas, Alexandre Magno, os Lágidas
ou Ptolomeus (governantes do Egipto), e, depois, os Selêucidas, com capital em
Antioquia da Síria, até 135 a.EC, voltando ao domínio judaico com a família
dos Asmoneus, até 63 a.EC, e caindo, a partir desta data, no domínio romano.
Em 129-130, o imperador Adriano visitou a cidade e decidiu-se pela sua re-
construção, segundo um plano latino, completamente novo. A cidade foi re-
baptizada de Aelia Capitolina. Porém, a reconstrução não começou logo, pois,
em 132, inicia-se a revolta judaica encabeçada por Bar Cochba, que durará até
135. Como consequência desta segunda revolta, o imperador Adriano ordenou
a interdição dos judeus habitarem a cidade.
Em 324, o imperador Constantino decide que a cidade deve regressar ao seu
nome antigo de Jerusalém, talvez influenciado por sua devota mãe cristã, Santa
Helena. Começaram as construções em memória dos locais de passagem de
Jesus, as igrejas para os peregrinos, as hospedarias, os mosteiros.
A peregrinação a Jerusalém torna-se num quase dever do cristão abastado e
letrado. É deste período bizantino da cidade que data o texto de Hegéria, uma
cristã oriunda da Península Ibérica, que é umas das mais importantes fontes
para se compreender a cidade e os ritos cristãos da época.
Em 614, os Persas conquistam a cidade aos Bizantinos. Por pouco tempo, po-
rém, pois em 617 são os próprios Persas que a devolvem aos cristãos, fruto do
poder que estes detinham no Império. Logo depois, em 622, torna à esfera de
Constantinopla, e, em 629, regressam as relíquias e os prisioneiros levados em
614, entre as quais as da Santa Cruz.
Miticamente, e enquanto ponto ordenador do universo, durante toda a Idade
Média, as representações do mundo, planisférios, colocam o centro em Jerusa-
lém. Reminiscência dessa atitude de nela se ver o centro terreno, numa visão
teológica e simbólica do espaço, encontra-se a palavra «orientar», procurar o
Oriente, que usamos como a caracterização da ação de saber onde estão os nos-
sos referenciais de espaço.
Desde esses recuados tempos que a luta entre os três monoteísmos teve, nessa
cidade simbólica, o seu principal palco.

146
Textos sagrados do Judaísmo

Lei de Israel

Lei escrita – TaNaK (acrónimo do conjunto de textos da escritura):

Torah [Tora] Contém o Pentateuco cuja escrita é atribuída a Moisés:


Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronómio.

Navi’îm [Profetas] Contém os textos dos Profetas:


Anteriores ao Exílio da Babilónia: Josué,
Juízes, Samuel, Reis;
Posteriores ao Exílio da Babilónia: Isaías,
Jeremias, Ezequiel, Oseias, Joel, Amós,
Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc,
Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.

Ketuvîm [Escritos] Contém os escritos hagiográficos: Salmos,


Jó, Provérbios, Rute, Cântico dos Cânticos,
Eclesiastes (Coélet), Lamentações, Ester,
Daniel, Esdras-Neemias, Crónicas.

Lei oral – Talmude (da Babilónia e de Jerusalém – Com comentários,


interpretações e ensinamentos rabínicos):

Mishná + Guemará [Haggadá e Hallaká].

Os textos sagrados do Judaísmo estão agrupados num grande conjunto designa-


do pelo acrónimo TaNaK, correspondente à Tora (Lei Escrita), Nevi’îm (Livros
Proféticos) e Ketuvîm (Livros Sapienciais). Segundo a tradição judaica, quando
Moisés recebeu a Lei, no monte Sinai, foi-lhe transmitida, também, por Deus,
a Tora shebéal (Lei Oral) que inclui basicamente a Mishná e o Guemará. As
escolas rabínicas consideram a Lei Escrita (Tora Shabichtáv) e a Lei Oral (Tora

147
shebéal pé) complementares, pois a Tradição oral não é mais do que a explici-
tação e a transposição para a vida dos ensinamentos colhidos da Tora.
Por efeito da diáspora judaica, depois da destruição do Templo, no ano 70, a
autoridade rabínica sentiu necessidade de fixar, de forma escrita, toda a Tradi-
ção Oral, a fim de a preservar. Para o efeito, e sob o impulso do Rabi Yehuda
HaNasí, o Presidente (séculos II-III), presidente do tribunal rabínico, patriarca
dos Judeus palestinos e descendente directo da Casa de Hilel, o Velho (século I),
foi feita a recolha, compilação e fixação escrita dos textos dos tanaítas (mestres
e doutores da Lei que ensinavam a memorização pelo método da repetição).
Esse trabalho ficou concluído, ainda em vida do Rabi Yehuda, entre os anos
170 e 220, e, rapidamente canonizados, passaram a ser aceites e difundidos por
todas as comunidades judaicas da Palestina e da diáspora, constituindo-se como
única base de estudo autorizado.
A Mishná está organizada em seis grandes Ordens: Sementes (em que se reú-
nem as bênçãos, as orações e as súplicas), Festas (que tratada importância do
Sábado e das celebrações e comemorações festivas), Mulheres (onde se reú-
nem todas as prescrições relativas aos deveres, direitos e relações das e com as
mulheres), Danos (reúne todos os aspectos da vida social e pode considerar-se
como o autêntico código de direito civil), Coisas Sagradas (onde se apresentam
todas as disposições concernentes à vida do Templo, celebrações litúrgicas e
sacrifícios), Purezas (que trata das questões ligadas às impurezas e às purifica-
ções, tanto das pessoas, como dos animais ou dos objectos).
Os estudos resultantes deste texto, recolhidos nos diversos centros e escolas ju-
daicas formam o corpo denominado Guemará, que, juntamente com a Mishná,
constituem o Talmude, de que existem duas versões: o Talmude de Jerusalém
ou Palestino, formado nos séculos III-IV, que foi editado pelo Rabi Yochanán;
e o Talmude Babilónico, dos séculos III-V, pelo Rav Ashi e Ravina.
Os textos do Guemará distinguem-se, pelos seus diferenciados conteúdos, em
Hallaká (doutrina legal, com explicitação e interpretação da Lei, pelos rabis e
escolas judaicas) e Haggadá (narrações, parábolas, ensinamentos e exortações
edificantes, de fundo espiritual ou moral).

148
Antiguidade da presença em Portugal

Até ao domínio muçulmano

Apesar de muitas vezes perseguidos, os judeus peninsulares encontraram na


Ibéria um espaço de significativa liberdade, quer religiosa quer de acção. Foi
este o fundo que resultou na construção quase mítica da ideia de Sefarad, ao
longo dos séculos, sempre associada a um espaço de profunda identificação e
significativa felicidade. Esta palavra surge em Abdias, no versículo 20, e veio a
ter grande impacto na cultura judaica, pelo menos até ao século XIX. Vejamos
o contexto nas palavras do profeta:

Os deportados deste exército,


os filhos de Israel
ocuparão as terras dos cananeus até Sarepta.
Os deportados de Jerusalém
que estão em Sefarad
possuirão as cidades do Négueb.

Abdias, um dos chamados Profetas Menores, pelo escasso tamanho do seu tex-
to, 21 versículos apenas, deve ter escrito depois de 586 a.EC, isto é, posterior-
mente à destruição de Jerusalém, na época de Nabucodonosor.
Desde muito cedo, esta realidade designada por Sefarad foi identificada com a
Península Ibérica. De facto, não podemos saber desde quando existiram judeus
no território peninsular, mas podemos dizer, com certo grau de segurança, que
isso terá acontecido muito cedo, logicamente antes do domínio romano, aquan-
do da grande expansão comercial dos fenícios. O século VI a.EC, apesar de
muito anterior aos vestígios materiais mais antigos, ganha contexto que o torna
viável, enquadrado no comércio fenício.
Logicamente, por proximidade geográfica, os primeiros assentamentos, ar-
queologicamente atestados, tiveram lugar na costa mediterrânea da Península.
Livres ou escravos, a importância das comunidades judias foi crescendo de tal
modo que, no início do século IV EC, no Concílio de Elvira, já existem medidas
contra a proximidade entre judeus e cristãos, por os primeiros poderem levar os
segundos a judaizar.

149
Em Portugal, na cidade de Mértola, e para data pouco posterior, existe testemu-
nho arqueológico da presença judia, através de uma lápide funerária conserva-
da no Museu da basílica paleocristã, datada de 482.
Tradicionalmente considerada a mais antiga marca material da presença judia
em Portugal é, contudo, possível, que um outro artefacto, provavelmente, pro-
veniente da cidade romana de Ammaia, constitua um dos testemunhos arqueo-
lógico mais antigos para a datação da presença judaica não só em Portugal, mas
em toda a Península Ibérica.
Trata-se de uma pequena peça glíptica, uma pedra de anel, que deve ter sido
encontrada nas ruínas da referida cidade (em pleno Alto Alentejo, não longe
de Marvão), datável do século II EC. Uma das peças, com a representação
do Menorah, parece demonstrar, por si só, a existência de uma comunidade
judaica nesta cidade romana, pelo menos, a de um judeu, entre os séculos II e
IV EC – para além do Menorah, outros elementos de claro e directo simbolis-
mo judaico estão representados: o Shofar (chifre de carneiro), que era tocado
nas cerimónias do Templo, no Dia de Ano Novo (Rosh Hashana) e no Dia do
Perdão (Yom Kippur); o Ethrog (limão), um símbolo da fertilidade, já que a sua
árvore produz fruto durante todo o ano, e, por outro lado, por ter bom sabor e
bom cheiro, representa a pessoa com sabedoria e boas acções; e o Lulav (pal-
ma), um símbolo da vitória (como a que os Judeus haviam obtido frente aos
Gregos, segundo o Livro dos Macabeus).
O III Concílio de Toledo (realizado em 589 e presidido por São Leandro de Se-
vilha, em que se converteu Recaredo), marcou a primeira grande perseguição,
a primeira fase de intolerância dos cristãos.
Já antes, Severo, bispo de Maiorca, em carta datada de 418, fornece um impor-
tante relato da conversão forçada a que foram obrigados os judeus da Menorca.
Entre muitas e sanguinárias lutas que então ocorrem, como súmula final, Seve-
ro assegura ter ganho quinhentas e quarenta almas judias para ao seu rebanho.
A consolidação de um espaço onde, apesar de tolerados, os judeus não tinham
a totalidade dos direitos dos cristãos, dá-se com o primeiro código visigótico, a
Lex Romana Visigothorum, promulgado em 506. Este código excluía os judeus
dos cargos públicos e proibia os matrimónios entre cristãos e judeus. Estes,
eram ainda inibidos de possuir escravos que fossem cristãos, para além de os
proibir de construir novas sinagogas.
Pouco depois do referido Concílio de Toledo, Sisebuto lançava uma das mais
duras ofensivas contra os judeus. No ano de 612, meses depois de subir ao
trono, este monarca promulgava um código em que abolia todas as formas de

150
possível dependência de cristãos em relação aos judeus, dando incentivos para
a conversão ao Cristianismo, com a obrigação de receber uma educação cristã
todo o filho de judeu ou judia com algum cristão. Ficava totalmente proibida
toda a actividade prosélita que tentasse conduzir os conversos à sua religião
anterior, o Judaísmo, actividade punida com a morte.
Nos séculos seguintes, vários outros monarcas regressam a este espírito perse-
cutório em que o Judeu seria sempre tido como um estranho numa sociedade
que não era a sua. Confisco de bens, baptismo forçado, proibição de circulação,
serão medidas recorrentes num mundo que, pela luta contra o Islão, que a partir
de 711 se impõe, é cada vez mais cristão exclusivista. Numa Europa que se irá
confundir com a ideia de «Cristandade», qualquer que fosse a minoria religiosa,
ela implicaria, faria recair sobre si, as mais funestas consequências dessa sua
diferença. No século VI, os arianos são dizimados, mais tarde, serão os cátaros;
a luta contra o sarraceno, o inimigo externo, será uma constante; dentro de mu-
ros, nas próprias cidades, havia o inimigo interno, o judeu. Por definição, tudo
o que era diferente deveria ser banido.
Em 711, a Península Ibérica entra numa fase de domínio muçulmano e de sig-
nificativa acalmia nas relações entre religiões e culturas.

A expulsão de 1496

Essenciais na construção económica, cultural e administrativa dos nascentes


reinos cristãos peninsulares, os judeus sefarditas viveram, em terras lusas, fases
de significativa calma social e religiosa, se bem que nunca tenham sido total-
mente integrados e bem aceites.
A última fase do convívio entre cristãos e judeus, na Ibéria, caracterizou-se por
um aprofundamento das tensões que resultarão no édito de expulsão de 1492,
assinado pelos Reis Católicos, seguido, quatro anos depois, pelo monarca por-
tuguês, D. Manuel.
Os anos das décadas de oitenta e noventa do século XIV viram o início das per-
seguições. No ano de 1391, a judiaria de Sevilha era atacada e morreriam, tal
como em Lisboa em 1506, cerca de 4000 judeus. Rapidamente, os assaltos se
generalizaram a outras cidades. Muitos dos mais ricos judeus são sequestrados
e forçados à conversão.
Portugal, com D. João I (que sobe ao trono em 1385), seguia a restante Europa
na imposição de obrigar os judeus à distinção física: os judeus deveriam trazer

151
no exterior das suas vestes uma estrela vermelha de seis pontas do tamanho de
um selo régio de cera, sob pena de prisão e perda das roupas. No auge das lu-
tas que, em Portugal, decorrem nos anos de 1383-1385, a populaça de Lisboa,
ávida da pilhagem inevitável e, talvez também, movida por algum sentimento
anticastelhano, decide entrar pela judiaria, com o pretexto de algumas figuras
de destaque da comunidade judaica estarem ao lado de D. Leonor. Apenas a
intervenção do Mestre de Aviz conseguiu minimizar os estragos.
As décadas seguintes seriam de aparente acalmia, mas de um sossego que se
viria a revelar bastante perigoso. Nos reinos vizinhos, e no seguimento des-
ta fase de crescente intolerância, dá-se a chamada Disputa de Tortosa (1413-
1414). O converso Jerónimo da Santa Fé redigiu um conjunto de midrashim
que ofereceu, em agosto de 1412, ao papa Bento XIII – aliás, o antipapa Pedro
de Luna. Com base nesse documento, o Papa lançava uma discussão que pre-
tendia mostrar aos judeus ainda não convencidos a abraçar o Cristianismo, que
o messianismo de Cristo estava já indicado no Antigo Testamento. As pressões
são muito grandes e muitos judeus abraçam o Cristianismo, tornando-se no
grande e influente grupo social dos conversos.
A futura verificação de que, apesar de baptizados, estes conversos mantinham,
muitas vezes, as antigas práticas judaicas, será um dos principais argumentos
para justificar e desejar a instalação da Inquisição em 1478.
Na década de oitenta, poucos anos antes da expulsão, uma parte da cobrança
de impostos em Castela ainda estava nas mãos de judeus. Numa época de con-
flito, esta situação viria a aprofundar desconfianças e ódios. O peso dos judeus
nos empreendimentos dos Descobrimentos castelhanos e portugueses era muito
grande.
Neste quadro, dá-se a expulsão de 1492. Sabemos que muitos dos judeus dos
reinos vizinhos passaram para Portugal. Terá decorrido uma negociação espe-
cial com D. João II para a instalação de seiscentas famílias judias. Terá existido
ainda a negociação de aplicação mais corrente para a passagem da restante
turba de judeus espanhóis.
Os pagamentos foram elevados (mesmo no caso em que a autorização de resi-
dência era apenas de oito meses), e os números de entrada terão rondado os cem
mil. Muitos foram obrigados a partir, no fim do prazo negociado, mas muitos
foram ficando, sendo baptizados de forma forçada por ordem de D. Manuel,
após a édito de expulsão a que possivelmente fora obrigado por acordos do seu
casamento com a princesa filha dos Reis Católicos.

152
Tornados cristãos por um baptismo forçado, os judeus portugueses foram fu-
gindo, ao longo dos dois séculos seguintes, mantendo alguns, na medida do
possível, práticas criptojudaicas, que a Santa Inquisição, instalada em 1534, se
foi encarregando de reprimir.

A actual comunidade judaica em Portugal

Apesar do peso social e cultural, para além do tamanho das comunidades do


século XV, a verdade é que os judeus portugueses são hoje muito poucos. Se-
gundo o Censos de 2011, correspondente a indivíduos com mais de 15 anos de
idade, existiam em Portugal 3061 judeus, mediante a seguinte repartição regio-
nal: Norte – 676; Centro – 567; Lisboa – 1149; Alentejo – 149; Algarve – 345;
Açores – 129; Madeira – 46.
De facto, estes valores são por demais chocantes quando sabemos que a comu-
nidade que viveria em Portugal, nos finais do século XV, seria, seguramente,
muito superior a 150 000, pelo menos na casa dos 10 a 15% da população do
reino.
Nestes escassos valores, como que ouvimos o trabalho de séculos de persegui-
ção inquisitorial. Perseguição de facto, e perseguição na criação de mitos e de
medos. Só no reinado de D. Maria já não haverá relaxados em carne, condena-
dos à morte pelo Tribunal do Santo Ofício. A diferenciação entre cristão-velho
e cristão-novo apenas seria proibida pelo Marquês de Pombal, a 25 de maio de
1773. Só nas Cortes Constituintes, a 26 de março de 1821, foi votada a extinção
da Inquisição.
Mas, apesar desta mudança, a nascente comunidade judaica de Lisboa nunca
pôde ter sinagoga com porta para a rua. Quando, já no século XX (1904), a pri-
meira pedra da Sinagoga de Lisboa é lançada, a construção não pôde, por lei,
ter fachada virada para a via pública: a Rua Alexandre Herculano ainda esconde
essa fachada por detrás de um outro edifício da época.
Só recentemente foi aprovada legislação para a atribuição da cidadania portu-
guesa aos descendentes de judeus portugueses espalhados pelo mundo.

153
A comunidade de Lisboa

A Comunidade Israelita de Lisboa é bastante heterogénea, reunindo cidadãos


portugueses judeus, e judeus estrangeiros que vivem em Portugal, nomeada-
mente brasileiros, israelitas e, mais recentemente, ucranianos.
A comunidade lisboeta tem cerca de 200 anos de existência e foi fundada por
judeus sefarditas, originários de Marrocos e Gibraltar. Ao longo do século XX,
e, em especial, devido às perseguições antissemitas, cresceu com judeus as-
quenazes da Polónia, Rússia e, mais tarde, da Alemanha e de outros países da
Europa ocupada por Hitler.
O primeiro vestígio material da moderna comunidade é a sepultura de José Am-
zalak, falecido a 26 de fevereiro de 1804, e enterrado num terreno pertencente
ao Cemitério Inglês da Estrela. Esta proximidade justifica-se devido à nacio-
nalidade inglesa dos primeiros judeus de Lisboa, originários, muitos deles, de
Gibraltar. O nível cultural desta nascente comunidade era bastante elevado. No
seguimento da Reforma de Passos Manuel que, em 1836, cria o Ensino Secun-
dário, em 1844, é criado, no Liceu de Lisboa, uma cadeira de Hebraico que é
entregue a um membro da comunidade judaica, Francisco Manuel Lourenço
Saragga.
Não podendo obter a legalização da comunidade, os judeus de Lisboa foram
criando instituições de beneficência, associações autónomas, cujos estatutos
eram submetidos à aprovação do Governo Civil. Estas instituições desempe-
nharam um papel decisivo na união e organização da comunidade lisboeta.
Em 1897, é criada uma comissão para a edificação de uma sinagoga, coinciden-
te este acto com a eleição do I Comité da Comunidade Israelita de Lisboa, cujo
Presidente Honorário era Abraham Bensaúde e o Presidente Efectivo Simão
Anahory.
O projecto da Sinagoga foi da autoria de um dos maiores notáveis arquitectos
da época, Miguel Ventura Terra. O edifício teve de ser construído dentro de um
quintal muralhado, dado que não era permitida a construção com fachada para a
via pública, pelas razões acima apontadas. Lançada a Primeira Pedra em 1902,
a Sinagoga Shaaré-Tikvá (Portas da Esperança) foi inaugurada em 1904.
A comunidade teve um papel muito importante durante a II Guerra Mundial, ao
acolher milhares de refugiados vindos das zonas ocupadas pelas tropas alemãs.
Durante o Estado Novo, foi notável a direcção, em épocas nada propícias a

154
minorias religiosas e num ambiente europeu antissemita, de Moisés Amzalek,
presidente da comunidade durante várias dezenas de anos.

A comunidade de Belmonte

A Comunidade de Belmonte é relativamente numerosa, com mais de 200 indi-


víduos. Devido a receios ancestrais, que foram a chave da sua sobrevivência,
só começou a afirmar-se publicamente a partir de 1989, quando em Assembleia
Geral decidiu solicitar a vinda de um rabino. A partir dessa altura, procurou
estabelecer uma sinagoga, Beit Eliahu (Casa de Elias), construída de raiz e
inaugurada simbolicamente, a 5 de dezembro de 1996, em comemoração dos
500 anos do Decreto de Expulsão. Trata-se da última comunidade marrana que
sobreviveu a mais de três séculos de perseguição.

A comunidade do Porto

A Comunidade do Porto foi criada, em 1923, pelo capitão Barros Basto, ele
próprio um marrano convertido ao Judaísmo, em 1920. Com o impulso apai-
xonado do chamado Apóstolo dos Marranos, foi lançado um importante mo-
vimento de «resgate» de marranos, tendo sido criadas, sob a sua iniciativa,
comunidades e sinagogas em alguns dos principais centros de criptojudaísmo:
Bragança, Covilhã, Fundão…
No Porto, Barros Basto conseguiu construir, em 1938, a Sinagoga Mekor Haim
(Fonte da Vida), uma escola, um instituto teológico e um jornal, o Halapid (o
Facho), que se publicou ao longo de 30 anos. Republicano e conhecido oposi-
tor de Salazar, foi acusado de fazer proselitismo junto dos cristãos, tendo sido
afastado do Exército, vítima de uma denúncia por atentado à moral.
A Comunidade do Porto, que, para além dos seus membros de origem cristã-no-
va, conta com uma pequena presença de origem marroquina e da Europa Cen-
tral, é composta por refugiados da Segunda Guerra Mundial que conseguiram
permanecer em Portugal.

155
Zoroastrismo
Masdeísmo

Mariana Vital
Zoroastrismo

Masdeísmo

Zoroastrismo (com fundamento no Masdeísmo/Mazdeísmo) é uma das


O religiões mais antigas de que há registo e deve o seu nome a Zaratustra
(em grego, Zoroastro), cuja ação foi a de purificar o seu povo das crenças po-
liteístas, pela erradicação dos cultos sacrificiais e a sua elevação ao plano da
espiritualidade e da ética.
A sua escatologia contempla a chegada de um messias salvador e acredita na
ressurreição e julgamento dos maus, que, através da sua purificação pelo fogo,
permitirá a ascensão de toda a humanidade ao paraíso eterno. Prevê uma segun-
da vinda de Zoroastro (chegados os 9 mil anos dos 12 mil que decorrerão desde
o seu surgimento até ao fim do mundo).
O Zoroastrismo condena o ascetismo e as suas práticas de sofrimento infligido
ao corpo, através de flagelações e jejuns, defendendo, em seu lugar, a temperan-
ça de hábitos e costumes, na alimentação e nos relacionamentos.
A crença masdeísta é fundamentada no Avesta (escrituras sagradas) e defende
a existência de dois princípios (dualismo), com origem no Deus Supremo, e
assim descrita: Ahura-Mazda1, o Criador, teria criado Spenta Mainyu (Espírito
Santo e Senhor de Sabedoria) para combater o espírito mau Ahriman ou Angra
Mainyu2 que se lhe opõe. Deste antagonismo teológico dualista, refletido na
vida dos humanos, derivam os dois tipos de posturas/comportamentos das cria-
turas dotadas de discernimento: os do Bem e os do Mal, respetivamente.
O Zoroastrismo, hoje, é uma minoria religiosa, e os seus seguidores encontram-
-se no Irão e na Índia. Na Índia, são denominados Parsis (que evoca ressonân-
cias da Pérsia de origem).

1
Ahura-Mazda (deus supremo do Mazdeísmo dos povos iranianos e que foi religião oficial do
Irão, no século iii) aparece manifesto na condição tríade de Supremo, Universal e Omnipresente.
O símbolo sagrado que lhe está associado é o Fogo. Este elemento simbólico, porém, é conside-
rado, por muitos autores, como reminiscência de cultos politeístas anteriores ligados ao culto de
Mitra e mesmo do Magismo persa (adoradores do Fogo), mas ainda prevalecente, em fronteiras
próximas de algumas tradições hindus.
2
Spenta Mainyu (espírito do Bem – verdade, bem-fazer, sabedoria, que protege e sustém toda a
Criação e, em alguns passos tardios é mesmo identificado com o Deus Supremo) e Angra Mainyu
(espírito do Mal – mentira, ganância, ira, inveja, que investe para destruir), segundo uma versão
mais antiga do mito, seriam dois irmãos gémeos, filhos de Ahura-Mazda, que, desde toda a eter-
nidade, se combatem.

159
Origem do Zoroastrismo

É incerta a data da fundação desta religião, no entanto, há fontes que apontam


para datas entre o século xvi e xiii a.EC, porém, outras datas são também refe-
ridas, próximas do século vi a.EC.
Zoroastro terá vivido na Ásia Central, na região hoje compreendida pela parte
oriental do Irão e a zona ocidental do Afeganistão. Outros pormenores da sua
vida encontram-se referidos em diversas narrativas, mas sempre envoltos ou
integrando mitos e lendas.
O sacerdote mazdeísta Zoroastro terá fundado o Zoroastrismo na época históri-
ca de passagem para a Era do Bronze, quando a abordagem religiosa dominante
seria o politeísmo. Zoroastro ter-se-á mostrado um sério crítico das crenças re-
ligiosas do seu tempo, condenando o consumo da planta alucinogénea Haoma
e os sacrifícios integrados nas práticas religiosas.
É indicado como oriundo do clã Spitama, sendo filho de Pourushaspa e de Dug-
dhova. Foi casado duas vezes e teve vários filhos. Teria falecido aos setenta e
sete anos, assassinado por um sacerdote, durante um ato cultual.
Segundo algumas cronologias do profeta, em que prevalece o halo místico e de
predestinação, é referido que, por volta dos trinta anos, enquanto participava
num ritual de purificação num rio, Zoroastro viu um ser de luz que se apresen-
tou como sendo Vohu Manah (Bom Pensamento) e o conduziu até à presença de
Ahura Mazda (Deus Supremo) e de outros cinco seres luminosos, dos Amesha
Spentas (os Imortais Bondosos), sendo este o primeiro de uma série de encon-
tros com Ahura Mazda, que lhe revelou a sua mensagem.
Seguiu-se, então, um intenso trabalho de difusão da nova doutrina, na sua re-
gião natal, que foi muito mal recebida, especialmente, por parte das autoridades
civis e religiosas, e, após doze anos de pregação muito pouco frutuosa, Zoroas-
tro abandonou a sua terra e fixou-se na corte do rei Vishtaspa, na Báctria (região
correspondente ao atual Afeganistão). Este rei e a sua esposa, a rainha Hutosa,
converteram-se à doutrina anunciada e o Zoroastrismo foi declarado como a
religião desse Reino.

160
História do Zoroastrismo

Pouco se sabe sobre esta religião e a sua história, pelo menos até 549 a.EC,
quando os Persas, liderados por Ciro, o Grande, da família Aqueménida, con-
quistaram o Oeste do Irão e fundaram o primeiro Império Persa. Os Aque-
ménida eram uma família zoroastriana, devota e muito tolerante para todas as
religiões, inclusive, como se encontra na Bíblia, foi durante esse reinado que os
Judeus foram libertados do exílio da Babilónia, e puderam retornar a Jerusalém.
E, devido a essa boa vontade e ao favor que gozavam de Ciro, os Judeus acaba-
ram por incorporar e assimilar muitas crenças e práticas zoroástricas.
Mas, em 331 a.EC, Alexandre, o Grande, conquistou o Império Aqueménida,
e, sob o seu governo opressivo, muitos sacerdotes zoroastras foram mortos e os
textos sagrados foram queimados. Felizmente, os Gathas (parte mais antiga e
venerada do Avesta, cujos 17 capítulos se acredita serem da autoria do próprio
Zoroastro), sobreviveram.
A Alexandre sucedeu o reino dos Selêucidas, em 311 a.EC, e, por sua vez, a
estes sucederam-se os Arsácidas (247 a.EC até 224 EC), que eram seguidores
do Zoroastrismo. Entretanto, em 224, o poder foi tomado pelos Sassânidas que
haveriam de prevalecer até à chegada do Islão, em 651. Introduziram várias
mudanças na área religiosa, e assenhorearam-se do controlo religioso da so-
ciedade, transformando o Zoroastrismo na religião de Estado com exclusão de
todas as outras.
Com a chegada dos muçulmanos árabes, sucederam-se as perseguições de na-
tureza religiosa com conversões forçadas ao Islão, foram queimadas as biblio-
tecas e foi praticamente erradicado o Zoroastrismo, cujos seguidores passaram
a minoria em clandestinidade, tendo muitos deles fugido para a Índia, onde se
estabeleceram, ficando a ser conhecidos por Parsis.

Doutrina

Zoroastro elevou Ahura Mazda («Senhor de Sabedoria») ao reconhecimento de


divindade suprema, criadora do mundo e única digna de adoração, e ele próprio
como o seu profeta. Ahura Mazda é tido como detentor dos poderes de: omnis-

161
ciência, omnipotência, omnipresença, imutabilidade, ser criador de tudo e ser a
fonte de toda a bondade e felicidade no mundo. No Zoroastrismo apenas é pra-
ticada a adoração e o culto a Ahura Mazda. Zoroastro, não sendo alvo de culto,
é, porém, fonte inspiradora para o seguimento e guia no caminho autêntico da
verdade e da retidão. A ordem natural, marcada pelo bem e pela justiça (asha),
encaminha os homens e as mulheres para Deus.
Outro conceito religioso que o Zoroastrismo apresenta é o dos Amesha Spentas
(Imortais Beneficentes), que podem ser entendidos como emanações ou aspe-
tos de Ahura Mazda. Nos Gathas, os seis Amesha Spentas são apresentados de
uma forma bastante abstrata; séculos depois, porém, eles serão apresentados
com a elevada estatura de divindades (ainda que inferiores a Ahura Mazda).
Cada Amesha Spenta é associado a um aspeto da criação divina, sendo, simul-
taneamente, atributos de Ahura Mazda, e é, através deles, que os seres humanos
acedem ao conhecimento de Deus. São assim caracterizados:

• Vohu Manah – Bom Pensamento, Boa Mente, Bom Propósito;


• Asha Vahishta – Verdade Perfeita, Retidão;
• Spenta Ameraiti – Devoção Benfeitora, Serenidade, Bondade Amorosa;
• Khashathra Vairya – Governo Desejável, Poder e Governação Justa;
• Hauravatat – Plenitude e Saúde;
• Ameretat – Imortalidade e Longevidade.

Os Gathas revelam também um pensamento dualista, sobretudo no plano éti-


co, entendido como um livre-arbítrio, entre o bem e o mal. Posteriormente, o
dualismo torna-se cosmológico, entendido como uma batalha no mundo entre
forças benignas e forças maléficas.
Atualmente, os zoroastrianos dividem-se entre o dualismo ético ou o dualismo
cosmológico, existindo também outros que aceitam os dois conceitos. Segundo
o Zoroastrismo, o inimigo chamado Angra Mainyu (ou Ahriman), responsável
pela doença, pelos desastres naturais, pela morte e por tudo quanto é negativo,
não deve ser visto como um deus; ele é, antes, uma energia negativa que se
opõe à energia positiva de Ahura Mazda, tentando destruir tudo o que de bom
foi e é feito por Ele (a energia positiva de Deus é chamada e personalizada em
Spenta Mainyu, como acima referido). No confronto final, Angra Mainyu será
destruído e o bem triunfará. O Zoroastrismo também encara este dualismo no

162
plano interno de cada pessoa, como a escolha que cada um deve fazer entre o
bem e o mal, entre uma mentalidade evolutiva e uma mentalidade estagnada.

Textos religiosos

O principal texto religioso do Zoroastrismo é o Avesta. Julga-se que a sua atual


forma corresponde apenas a uma parte da original, que teria sido destruída
aquando da invasão de Alexandre, o Grande.
O Avesta divide-se em várias secções, das quais a principal é o Yasna (Sacrifí-
cios). O Yasna inclui os Gathas, hinos que se julga terem sido compostos por
Zoroastro. O Vispered é, essencialmente, um complemento do Yasna. O Vendi-
dad é a secção que contém as regras de pureza da religião, podendo ser com-
parado ao Levítico da Bíblia. Os Yashts são hinos dedicados aos seres divinos.
O principal documento que nos permite conhecer a vida e o pensamento reli-
gioso de Zoroastro são os Gathas. A linguagem dos Gathas assemelha-se à que
é usada no Rig-Veda do Hinduísmo. Para além do Avesta, existem os textos em
palavi, escritos na sua maior parte no século ix.

Veneração e adoração no Zoroastrismo

Os zoroastrianos não são adoradores do fogo, como, geralmente, se pensa. O


fogo é um símbolo importante na sua fé representando a luz divina de Ahura
Mazda. Por isso, quando um zoroastriano reza, ele reza na direção do Fogo ou
da Luz.
Hoje, o Zoroastrismo não é muito ritualizado e centra-se mais na ética – bons
pensamentos, boas palavras e boas ações – que, no quotidiano, pode assumir a
forma simbólica de um cordão usado, diariamente, à volta da cintura, chamado
kusti, ao qual se dá três nós com significado simbólico.
Outra prática de culto promovida no Zoroastrismo é a veneração coletiva, mui-
tas vezes ocorrida durante os festivais sazonais ou nos marcos sociais como o
casamento ou o navjote (cerimónia de iniciação, onde a criança zoroastriana
recebe o seu kusti). No Zoroastrismo, as preces são permitidas em casa, res-
guardando o culto no templo para as ocasiões mais festivas. Das características
que mais distinguem o culto zoroastriano é o conceito de Zoroastro, enquanto

163
profeta de Deus, não ser alvo de particular veneração. Zoroastro é, para o Zo-
roastrismo, o caminho através do qual, seguindo os seus ensinamentos, os seres
humanos se aproximam de Deus e da ordem natural do bem e justiça (asha).

Sacerdócio

Existem três graus de sacerdócio no Zoroastrismo contemporâneo. O sacer-


dócio tende a ser hereditário, embora não seja obrigatório que o filho de um
sacerdote venha a desempenhar a função do pai. Outro dado de interesse é o
sacerdócio feminino, que ganhou (ou, segundo algumas interpretações históri-
cas, reconquistou), o seu lugar na tradição do Zoroastrismo, em 2009, quando
Mobed Soroushpur (Presidente do Conselho de Sacerdotes Zoroastrianos) pro-
pôs incluir as mulheres na casta sacerdotal, evocando que, no passado, a escola
dos sacerdotes já aceitava mulheres.
O sistema sacerdotal funciona por hierarquia, da menor para a maior responsa-
bilidade sacerdotal: ervad (neste grau inicial, é preciso conhecer de cor as escri-
turas do Zoroastrismo, bem como a lei, treinados para a prática de cerimónias
litúrgicas externas, desempenham apenas uma função de assistente nas cerimó-
nias lideradas por mobeds e dashturs), o mobed (os sustentadores da religião,
treinados para a prática das cerimónias litúrgicas internas), e o dastur («sacer-
dote que é juiz», responsável pela administração de um ou vários templos, é a
autoridade máxima sacerdotal, à qual os ervad e mabed estão subordinados).

Locais de culto

Os templos religiosos do Zoroastrismo, onde se desenrolam as cerimónias e


se celebram os festivais próprios da religião, são conhecidos como templos de
fogo. Estes edifícios possuem duas partes principais, das quais a mais impor-
tante é a câmara onde se conserva o fogo sagrado, que arde numa pira metálica
colocada sobre uma plataforma de pedra. Os sacerdotes zoroastrianos visitam
o fogo cinco vezes por dia e procuram mantê-lo aceso, fazendo oferendas de

164
sândalo purificado. Recitam também orações perante o fogo com a boca tapada
por um tecido, de modo a não contaminarem o fogo.
Atualmente, os templos de fogo mais importantes do Irão e da Índia mantêm
uma chama de fogo sagrado a arder perpetuamente.
Templos do fogo mais importantes para Zoroastrismo:

• Templo do Fogo de Pir-e Sabz – o mais antigo do Zoroastrismo


(Montanha santuário de Chak Chak, Irão, local de peregrinação);

• Templo do Fogo de Iranshah Atash Behram (Udvada, Índia, local de


peregrinação).

Rituais

O Zoroastrismo não determina que os membros devam realizar um número


obrigatório de orações por dia. É cada zoroastriano que decide, quando e onde
deseja orar. A maioria dos zoroastrianos reza várias vezes por dia, invocando a
grandeza de Ahura Mazda. As orações são feitas perante uma chama de fogo
(símbolo da Luz divina).
O Navjote (ou Sedreh-Pushi, como é conhecido entre os zoroastrianos do Irão)
é uma cerimónia de iniciação obrigatória destinada às crianças zoroastrianas e
que deve acontecer, entre os sete e os quinze anos de idade. É importante que a
criança já conheça as principais orações da religião.
Antes da cerimónia começar, a criança toma um banho ritual de purificação
(Naahn). Durante a cerimónia, conduzida pelo mobed e na qual estão presentes
familiares e amigos, a criança recebe o sudreh (ou sedra, uma veste branca de
algodão) e o kusti (um cordão feito de lã) que ata na sua cintura. A partir deste
momento, o zoroastriano deve usar sempre o sudreh e o kusti.
O casamento zoroastriano implica dois momentos distintos. No primeiro, os
noivos e os seus padrinhos assinam o contrato de casamento. Segue-se a ce-
rimónia propriamente dita, durante a qual as mulheres da família colocam sobre
a cabeça dos noivos um lenço; e, simultaneamente, dois cones de açúcar são

165
esfregados um contra o outro. O lenço é, então, cosido, simbolizando a união do
casal. As festas do casamento podem prolongar-se por três a sete dias.

Práticas funerárias

Os zoroastrianos acreditam que o corpo humano é puro e não algo que deva ser
rejeitado. Quando uma pessoa morre, o seu espírito deixa o corpo num prazo
de três dias e o seu cadáver é considerado impuro. Uma vez que a natureza é
uma criação divina marcada pela pureza, não se deve poluí-la com um cadáver.
Na prática, esta crença implicou que os cadáveres dos zoroastrianos não fossem
enterrados, mas colocados ao ar livre para serem devorados por aves de rapina,
em estruturas conhecidas como torres do silêncio (dakhma).
Após a morte, um cão é trazido perante o cadáver, num ritual que se repete seis
vezes por dia. No quarto onde se encontra o cadáver, arde uma pira de fogo
ou velas, durante três dias. Durante este tempo, os vivos evitam o consumo de
carne.
Os participantes no funeral vestem-se todos de branco, procurando evitar-se
o contacto direto com o defunto. O cadáver (sem roupa) é, então, depositado
numa torre do silêncio. Depois de as aves terem consumido a carne, os ossos
são deixados ao sol, durante algum tempo para secarem.
Por motivos vários (relacionados, por exemplo, com a diminuição da população
de aves de rapina ou com a ilegalidade desta tradição em alguns países), esta
prática tem sido abandonada por zoroastrianos residentes em países ocidentais
e até mesmo no Irão e Índia, optando-se pela cremação.

Celebrações

As comunidades zoroastrianas atuais regem-se por três calendários diferentes:

• Fasli (usado pelos zoroastrianos iranianos e alguns parsis);


• Shahanshahi (usado pela maioria dos parsis); e

166
• Qadimi (este último, o menos utilizado de todos).

As festas religiosas podem ser celebradas em diferentes dias; nestes calendá-


rios, cada mês e cada dia do mês recebe o nome de um Amesha Spenta ou de
um Yazata.
Os zoroastrianos celebram seis festivais, ao longo do ano – os Gahambars –
cujas origens se encontram nas diferentes atividades agrícolas dos antigos po-
vos do planalto iraniano e nas estações do ano.
O Noruz é o Ano Novo Persa, celebrado no dia 21 de março no calendário Fasli
(os parsis celebram o Noruz em meados de Agosto). Por volta deste dia, os
zoroastrianos colocam, nas suas casas, uma mesa com sete itens: um vaso com
rebentos de lentilhas ou de trigo, um pudim, vinagre, maçãs, alho, pó de suma-
gre, frutos da árvore açofeifeira (ou jujubeira). Outros elementos que enfeitam
a mesa são moedas, o Avesta, um espelho, flores e uma imagem de Zaratustra.
O Noruz é celebrado com o uso de roupas novas, com o consumo de pratos es-
peciais, com a troca de presentes e com a celebração de cerimónias religiosas.
O fogo tem nele um lugar e significado especial. Seis dias depois do Noruz, os
zoroastrianos festejam o nascimento de Zaratustra.

Demografia no Zoroastrismo moderno

Os números de zoroastrianos têm decrescido no mundo. As maiores comunida-


des residem na Índia e no Irão. Existem (apenas) cerca de 200 000 seguidores
desta religião e o seu número tem continuado a descer, de forma acentuada.
Na comunidade zoroastriana observa-se a frequência de casamentos tardios e
sem descendência. Estes factos, aliados à não aceitação, no Zoroastrismo, de
crianças de casamentos inter-raciais e inter-religiosos, nem se reconhecerem
conversões (em especial pela comunidade Parsi, na Índia), contribuem larga-
mente para o declínio dos seguidores do Zoroastrismo.

167
Cristianismo
Paulo Mendes Pinto
Cristianismo

Cristianismo é atualmente uma das maiores religiões do mundo, se bem


O que dividida em várias vertentes. Em relação à maior vertente, a Igreja
Católica Romana, o número dos seus crentes, em 2014, seria da ordem de 1272
milhões, cerca de 17,8% da população mundial, mais 0,5% do que em 2004.
A sua centralidade, no chamado mundo ocidental, é tal que o calendário euro-
peu – cuja organização tem como base a liturgia cristã –, é seguido em quase
todo o Globo, e tem o seu início na data convencionada para o nascimento de
Jesus, o Cristo.

Centro da crença

O centro da mensagem cristã, no seguimento da tradição judaica em que esta


religião nasceu, encontra-se na figura messiânica de Jesus de Nazaré, tido como
o Filho de Deus, ou Deus «humanado». Numa visão escatológica, nele se en-
contra a chave da salvação, assim como do fim dos tempos.
O Cristianismo, na sua diversidade, é uma religião monoteísta. No entanto, para
os cristãos, Deus revela-se em Jesus, o Cristo, nos conceitos de uma tríplice
relação eterna: Pai, Filho (encarnado em Jesus) e Espírito Santo.
Após longos e dolorosos debates entre perspetivas teológicas diferentes, esta
definição foi formulada no chamado Credo de Niceia (proclamado em 325 no
Concílio de Niceia), no qual se recorreu à palavra grega homoousios (da mesma
substância) para definir a unidade ontológica entre o Pai e o Filho. Contudo,
nem todas as vertentes cristãs seguem esta definição.

Jesus

Do hebraico Yeshua, Jesus é o nome próprio daquele que está na base da reli-
gião cristã. Contudo, a religião que Jesus originou tomou o nome do seu «epí-
teto» funcional, Xristos, em grego, uma tradução da ideia judaica de Messias.
Da biografia de Jesus poucos dados históricos se possuem fora dos textos do
Novo Testamento. Terá nascido durante a vida de Herodes, o Grande, que os
Romanos haviam designado para governar a Judeia. Por tradição, o ano 1 cor-
responde ao do nascimento de Jesus. Porém, os cálculos antigos estão errados,
como se confirmou, posteriormente: Herodes morreu no ano 4 a.E.C. e Jesus

171
terá nascido até cerca 3 anos antes. Os festejos do Natal, a 25 de dezembro, que
celebram esse acontecimento, são relativamente tardios e representam a cris-
tianização das festas em torno do Solstício de inverno, a 21 de dezembro, que
cultuavam o Sol Invicto e o nascimento de Mitra.
Seguindo os Evangelhos, Maria foi a mãe de Jesus. Com José, pai adotivo de
Jesus, morava em Nazaré, na Galileia. Os Evangelhos contam que o arcanjo
Gabriel apareceu a Maria e anunciou que ela ia dar à luz um filho – «ao qual
porás o nome de Jesus. Será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo…» (Lc
1,31ss).
Por imposição romana, algum tempo antes da data prevista para o parto, Maria
e José foram a Belém, correspondendo à exigência de um recenseamento. Foi
aí, num estábulo, em virtude de não terem encontrado outro abrigo, que Maria
terá dado à luz aquele que para muitos é o Salvador. Segundo a leitura cristã
das Escrituras judaicas, o nascimento e a morte do Messias haviam sido profe-
tizados.
A tradição de que faz eco o Evangelho de Lucas conta que, na noite do nasci-
mento de Jesus, os pastores que guardavam os seus rebanhos nos arredores de
Belém, viram anjos no céu, cantando hinos de louvor. O Evangelho de Mateus
fala também de alguns sábios (Reis Magos) que vieram do Oriente, guiados
por uma estrela, para ver o Messias recém-nascido. Dessa visita teria resultado
o célebre «massacre dos inocentes», quando Herodes soube do nascimento do
suposto Messias, e, temendo uma ameaça ao seu trono, mandou matar todos os
recém-nascidos de Belém e arredores.
Jesus inaugura a sua missão pelos 30 anos de idade. Inicialmente, integra-se no
círculo dos discípulos de João Baptista, seu familiar, que prega o arrependimen-
to e batiza os que aceitam a sua mensagem, preparando uma parcela do povo,
disponível para a vinda do Messias. O ministério de Jesus começa exatamente
após o seu batismo por João, no rio Jordão. De seguida, isola-se no deserto, du-
rante 40 dias, onde teria tomado consciência da sua condição divina e do poder
de que era dotado. Em consequência, teria sofrido várias tentações de índole
política e religiosa, suscitadas pela natureza da sua condição humana assumida.
Terminada essa prova, deu início, então, às suas atividades e escolheu os pri-
meiros discípulos, junto a Cafarnaúm.
Terá sido na região da Galileia que Jesus desenvolveu parte significativa da sua
pregação, assim como a realização de muitos dos milagres que se encontram
nas narrativas evangélicas.

172
Os textos centrais sobre Jesus – denominados Evangelhos do chamado Novo
Testamento – referem-se ao período último da sua vida: aos episódios da Pai-
xão e Morte por crucificação (ou seja, na interpretação cristã, ao seu sacrifício
por toda a Humanidade), confirmando as profecias escriturísticas do Antigo
Testamento.
Segundo os relatos evangélicos desse último período da sua vida, Jesus terá
chegado a Jerusalém para aí passar a semana da Páscoa. Fez uma entrada triun-
fal na cidade, resultado de toda uma ambiência proporcionada pela celebração
pascal e pelo entusiasmo da população, movida pela fama alcançada por Jesus,
devida à sua mensagem e aos seus milagres. Tudo leva a crer, porém, que os sa-
cerdotes tenham visto essa entrada como um ato provocatório, tanto mais que,
pouco depois, Jesus entrou no Templo e expulsou «os vendilhões» (todos os
que, dentro da organização das atividades do templo, ali procediam ao câmbio
da moeda e à venda dos animais para o sacrifício). Para Jesus, o Templo era a
«Casa de Deus» e não lugar de comércio ou de um nacionalismo exclusivista.
Na quinta-feira à noite dessa mesma semana, Jesus mandou aos discípulos a
prepararem a Última Ceia. Na companhia dos Doze, celebrou a Páscoa judaica
e anunciou a traição de um deles, preparando-os para a sua morte iminente. Du-
rante a Ceia da celebração, no momento de servir o pão e o vinho, e dirigindo-se
aos participantes, disse: «Isto é o meu Corpo que será entregue por vós» e «Este
é o cálice do meu Sangue, derramado por vós e por todos»; e, dessa forma, deu
origem ao ritual religioso central do Cristianismo: a Eucaristia ou Santa Ceia.
Após a Ceia, Jesus retirou-se para o jardim de Getsémani, na encosta do Monte
das Oliveiras, frente ao Templo. Acompanhado dos seus três discípulos mais
próximos, afastou-se do grupo e entrou em estado de tristeza e angústia profun-
das, que as narrativas descrevem como um solilóquio orante em que terá suado
«grossas gotas de sangue», em ato de absoluta submissão amorosa pela doação
sacrificial que intuía ser bem aceite e de agrado da benevolência de Deus-Pai
para com a Humanidade a redimir.
Passado algum tempo, homens armados chegaram para o prender, e o discípulo
Judas Iscariotes, cuja traição havia sido anunciada durante a Ceia, identificou-o
com um beijo, cumprindo a sua parte de um acordo com o Sinédrio, pelo qual
recebera 30 moedas de prata.
Jesus foi preso e interrogado pelo tribunal em que estavam representados o
Conselho dos Anciãos, os sumos-sacerdotes e os doutores da Lei, e respondeu
positivamente ao questionamento sobre a sua condição de Messias, Filho de
Deus e Rei dos Judeus. Esse assentimento custou-lhe a acusação de blasfémia.

173
Levado à presença do procurador romano, Pôncio Pilatos, foi acusado de pôr
em causa a tutela de Roma ao afirmar-se Rei. O procurador, porém, no seu
interrogatório, não achou razões que justificassem uma condenação pelo que o
enviou a Herodes Antipas, governador da Galileia (donde Jesus era oriundo),
e que, devido às festividades da Páscoa, se encontrava de passagem por Jeru-
salém. Devolvido por este, novamente, a Pilatos, o procurador decidiu, como
pretexto para libertar Jesus, e como era costume pela Páscoa, soltar um encar-
cerado; porém, a multidão, enquadrada por elementos adversos do tribunal,
pediu que fosse Barrabás, o condenado alternativo, e não Jesus, a ser libertado.
Pilatos, com o célebre «lavar de mãos», desresponsabilizou-se do desfecho e
aceitou condenar Jesus à morte por crucificação. Flagelado, humilhado, ridicu-
larizado e coroado com espinhos, Jesus foi, finalmente, crucificado no Gólgota,
uma elevação em forma de caveira às portas da cidade. No topo da cruz, Pilatos
terá mandado afixar em latim, grego e aramaico o motivo da condenação: Iesus
Nazarenus Rex Iudeorum (Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus).
Segundo os relatos evangélicos, Jesus, durante a agonia na cruz, terá rezado
salmos, clamando em alta voz, a determinado momento, o versículo inicial do
Salmo 22: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Mateus 27,46).
Antes de soltar o último suspiro, terá dito: «Perdoa-lhes, Pai, porque não sa-
bem o que fazem» (Lucas 23,34). Ao fim de três horas, Jesus morria e o seu
corpo foi entregue para ser depositado num túmulo, que foi fechado com uma
pesada pedra.
No primeiro dia da semana, pela manhã, Maria Madalena, acompanhada de ou-
tras mulheres, foi ao túmulo de Jesus, a fim de proceder aos rituais de unção do
cadáver. Ao chegar, estranhamente, encontrou a pedra fora do lugar e o túmulo
vazio. Na versão do quarto Evangelho, Jesus, aparecendo-lhe, pediu-lhe que
levasse aos seus discípulos o anúncio da sua ressurreição.
Os Evangelhos indicam que Jesus apareceu repetidas vezes aos discípulos, du-
rante um período de tempo limitado, até à sua Ascensão aos Céus. A tradição
dos primeiros tempos do Cristianismo faz remontar a esse período o mandato
expresso do Senhor ressuscitado aos discípulos de evangelizarem e a batizarem
para além das fronteiras do povo judeu. A mesma tradição, porém, mostra que
esse mandato não evidente para todos, e o debate, por vezes azedo, atravessou
a comunidade ao longo de uma geração.
Quanto à mensagem que Jesus pregou, durante a sua vida pública, ressalta o
recurso a formulações curtas, densas de significado, muitas vezes ilustradas por
parábolas, pequenas histórias – segundo o costume cultural judaico seguido pelos

174
mestres – que denunciam uma aguda apreciação da natureza e do quotidiano
das pessoas, mas que encerram uma grande riqueza de ensinamento poético, ou
convite à descoberta espiritual, sobretudo em torno do tema do Reino de Deus.
Os Evangelhos recolhem cerca de 70 parábolas. Não há termo de comparação
para um uso tão abundante e literariamente criativo deste género de ensino.
Muito do que se encontra na mensagem de Jesus já fazia parte da tradição he-
braica, e, como Ele próprio afirmava, não veio alterar a Lei e os Profetas, mas
completá-la (cf. Mt 5,17). Há, contudo, perspetivas que, não sendo novas no
âmbito do Judaísmo contemporâneo, manifestam uma inflexão original: a pro-
ximidade de Deus, que apelida de querido Pai (Abbá); a visão do povo judeu,
se não mesmo de toda a Humanidade, ou pelo menos todos homens e mulheres
de boa vontade, como fazendo parte da família dos filhos de Deus; a soberania,
ou Reino de Deus, como uma realidade próxima e envolvente; um sentido mar-
cante da radical gratuidade do amor e perdão de Deus.
A norma que erige em mandamento fulcral é o amor a Deus e ao próximo, e
propõe uma versão positiva da conhecida regra de oiro: cada um deveria fazer
ao próximo o que gostaria que lhe fizessem a si.
Aquilo que marcou os discípulos e se tornou o cerne da fé cristã era o modo
como Jesus encarnava, nos seus gestos e no seu estilo de vida, a bondade e a
misericórdia exigente de Deus que anunciava.

Paulo

Paulo, que não privou com Jesus, é, pela sua atividade, empenho evangelizador
e escritos, um dos principais obreiros da vocação universalista do Cristianismo.
Assume como mandato, recebido pessoalmente do próprio Senhor ressuscita-
do, o anúncio do Evangelho aos não-judeus. Ele protagoniza a consciência do
cristianismo nascente de que a mensagem de Cristo é válida para toda a Huma-
nidade. De certa forma, poderá dizer-se que é com Paulo que o Cristianismo se
começou a afirmar como uma realidade autónoma nas fronteiras do Judaísmo.
Contudo, mesmo os Atos dos Apóstolos, obra do seu fiel companheiro e amigo
Lucas, também autor de um dos Evangelhos, fazem remontar a primeira con-
cretização dessa consciência ao apóstolo Pedro, antes mesmo da conversão de
Paulo.

175
Com efeito, o ministério de Paulo começa com a hierofania na estrada de Da-
masco. Então, ainda conhecido por Saulo, perseguia os cristãos e, numa dessas
viagens persecutórias a Damasco, terá sido interpelado por Jesus ressuscitado,
passando abruptamente a integrar a comunidade dos seus discípulos. O seu
labor evangélico ter-se-á desenvolvido por toda a Ásia Menor e Grécia, mas
essencialmente centrado na de Antioquia – com muitos não-judeus simpatizan-
tes do Judaísmo e comunidade judaica numerosa –, onde, pela primeira vez, os
seguidores de Cristo são apelidados de «cristãos» (cf. Atos 11,26).
Entre estes grupos encontrou a comunidade cristã a sua base de apoio, num
ambiente propício à expansão, mas que se mostrará, em breve, também motivo
de fortes tensões internas.
Tudo leva a crer que, aquando da perseguição lançada em Jerusalém nos anos
36-37, na qual foi morto Estêvão, primeiro mártir cristão, alguns membros da
comunidade judaico-cristã de língua grega tenham seguido para Antioquia. A
pregação nesta grande metrópole não se circunscreveu, porém, aos judeus, mas
alargou-se a todos os «tementes a Deus» e, provavelmente, aos crentes das ou-
tras religiões monoteístas na cidade que se encontravam predispostos ao acolhi-
mento de uma nova mensagem como a cristã, nomeadamente os neoplatónicos,
os crentes da religião de Mitra e os devotos da deusa Ísis.
O sucesso foi grande e rápido. Barnabé veio reforçar o corpo dos responsáveis
e chamou Paulo para o ajudar. Desta cidade partiram ambos na primeira das
famosas viagens apostólicas.
Tradicionalmente, destacam-se quatro grandes viagens de Paulo, ocorridas no
tempo do imperador Cláudio, aproximadamente entre a primavera de 47 e o
ano 60. Nestes seus périplos, deverá ter percorrido mais de 20 000 quilómetros.
Finda a 4.ª viagem que o levará a Roma, Paulo ali ficará por dois anos, sob
prisão domiciliar, aproveitando para «anunciar o Reino de Deus e ensinando o
que diz respeito ao Senhor Jesus Cristo, com o maior desassombro e sem impe-
dimento» (cf. Atos 28,31).
É possível que tenha empreendido uma viagem à Península Ibérica, deparando
com a barreira intransponível da língua. Mas é, seguramente, em Roma que,
algures entre os anos 64 e 67, é condenado à morte e decapitado.

176
Aspetos estruturantes do Cristianismo

Calendário do Cristianismo

Atualmente, são três os calendários seguidos pelas tradições cristãs. Qualquer


deles tem 12 meses e 365 dias. O calendário Juliano Antigo é seguido pelos
ortodoxos russos; o Juliano Reformado (com 13 dias de diferença) é seguido
pelos ortodoxos gregos; o Gregoriano é seguido pelos restantes cristãos e so-
ciedade civil.1

Festas e celebrações

Apresentam-se aqui as principais festas religiosas dos cristãos que se regem


pelo Calendário Gregoriano e Juliano Reformado (ortodoxos neocalendaristas
das igrejas de Alexandria, Antioquia, Roménia, Bulgária, Chipre, Grécia, Albâ-
nia, República Checa e Eslováquia, Finlândia, Estónia e as igrejas da diáspora,
em que se inclui a Metropolia que engloba a França, Espanha e Portugal). Os
ortodoxos que seguem o Calendário Juliano Antigo (velho-calendaristas: Jeru-
salém, Rússia, Geórgia e Sérvia), celebram estas mesmas festas 13 dias mais
tarde.

•1 de janeiro – Santa Maria, Mãe de Jesus (católicos); Nome de Jesus


(anglicanos); Amor fraterno (evangélicos); São Basílio (ortodoxos).

•6 de janeiro (ou domingo entre os dias 2 e 8) – Epifania do Senhor


(católicos, anglicanos e ortodoxos gregos).

•30 de janeiro – Os Três Santos Hierarcas (ortodoxos).

•2 de fevereiro – Apresentação do Senhor (católicos, anglicanos e orto-


doxos gregos).

1 A denominação de Calendário Gregoriano ficou associada ao papa Gregório XIII, que, em


1582, mandou proceder à correção do calendário seguido – o Juliano Antigo – que divergia 10
dias do tempo astronómico real.

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•25 de março – Anunciação do Senhor (católicos, anglicanos e ortodo-
xos gregos).

•Domingo anterior à Semana Santa – Domingo de Ramos (católicos,


anglicanos e ortodoxos).

•Semana Santa – Quinta-feira Santa: Instituição da Eucaristia (católi-


cos, anglicanos e ortodoxos).

•Semana Santa – Sexta-feira Santa: Paixão e Morte de Jesus (católicos,


anglicanos e ortodoxos).

•Semana Santa – Sábado Santo: Vigília Pascal (católicos, anglicanos e


ortodoxos).

•Páscoa do Senhor – Ressurreição de Jesus Cristo: Festa central do


Cristianismo (católicos, anglicanos, evangélicos e ortodoxos).

•Ascensão do Senhor – Sétimo domingo pascal (católicos, anglicanos


e ortodoxos).

•Pentecostes – A descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos e Maria,


reunidos no cenáculo, celebra-se no domingo a seguir à Ascensão (ca-
tólicos, anglicanos e ortodoxos).

•30 de junho – Sinaxe dos Doze Apóstolos (ortodoxos).

•6 de agosto – Transfiguração do Senhor (católicos, anglicanos e orto-


doxos gregos).

•15 de agosto – Assunção da Virgem Maria/Dormição da Teotokos (ca-


tólicos, anglicanos e ortodoxos gregos).

•1 de novembro – Todos os Santos (católicos e anglicanos).

•8 de dezembro – Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria (cató-


licos).

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•25 de dezembro – Natal (católicos, anglicanos, evangélicos e ortodo-
xos gregos).

Símbolos

A Cruz é o símbolo por excelência do Cristianismo, pois corresponde ao instru-


mento de suplício que foi usado para a morte de Jesus. A sua simbologia remete
para o «eixo do mundo», cujas hastes indicam os quatro pontos cardeais. A
haste maior, vertical, indica o sentido da relação da Humanidade-Deus/Deus-
-Humanidade; a haste menor, horizontal, indica a ligação fraterna dos homens.
Usado em múltiplas variantes gráficas, estilísticas e simbólicas, alguns grupos
fazem significativa distinção entre o seu uso com a representação do Cristo
(crucifixo), ou não.
Em tempos recuados, em especial no século II, o símbolo usado pelos cristãos
foi um peixe, desenhado em traços gerais, aludindo à imagem dos Evangelhos:
«Vinde comigo e Eu farei de vós pescadores de homens»; este primeiro símbo-
lo, em grego ichtheís, era ainda acróstico da expressão «Jesus Cristo Filho de
Deus Salvador», que foi uma primeira profissão de fé.

A centralidade de Roma

Roma – capital imperial e local do martírio de Pedro –, constituiu-se, religiosa e


simbolicamente, desde cedo, como sede primacial de estruturação institucional
e mental que resistiu até aos dias de hoje, no seio do Cristianismo. Referimo-
-nos em especial ao culto dos antepassados que se sintetiza na expressão mos
maiorum, uma ideia de família alargada como base estruturante da organização
social e a convicção de que em grande medida tudo se deve aos que já mor-
reram, havendo por isso o dever de continuar a sua obra. Esta forma de estar,
perante o mundo, será favorável ao pensamento escatológico, às religiões que
anunciam a salvação e o fim dos tempos, entre as quais o Cristianismo.
Refira-se ainda a sacralização de determinadas funções sociais e políticas, como
o Pater Patriæ, «Pai da Pátria»; a Tribuna Potestas, «Tribuno da Plebe»; mas,
especialmente, o Pontifex Maximus, «Sumo Pontífice». Estas funções eram in-
violáveis. Afrontá-las era afrontar a cidade.

179
Ao nível do Cristianismo, nenhuma cidade teve e tem tanto peso como esta,
nomeadamente para o mundo ocidental e para a Igreja Católica em particular,
para a qual chegou a justificar a denominação de Cidade Eterna2.
Segundo a tradição, os apóstolos Pedro e Paulo, ao chegarem a Roma, já lá
encontraram comunidades cristãs muito ativas. Por circunstâncias impostas,
acabaram por se fixar na cidade e ali sofreram o martírio. Pedro terá chegado já
depois da carta de Paulo aos Romanos. Paulo chegará pela mesma altura como
prisioneiro, morrendo decapitado na via Ostiense. De Pedro diz-se que morreu,
crucificado, numa cruz invertida, e terá sido sepultado onde hoje se encontra a
Basílica que ostenta o seu nome, a maior do mundo cristão.
Na fase inicial do Cristianismo, quatro cidades se destacaram como metrópoles
e sedes dos Patriarcados históricos: Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Roma,
desdobrando-se esta, posteriormente, na «segunda Roma» que foi Constantino-
pla. Logicamente, Roma ganhou rapidamente precedência. Já antes, a capital
do Império se situava entre os objetivos mais ambicionados pelos proponentes
das várias religiões. Mas, no caso do Cristianismo, destacou-se também devido
ao declínio de algumas das suas «concorrentes»: o bispo de Jerusalém perdeu
o poder muito cedo, após a destruição da cidade pelos Romanos, no ano 70, e
o bispo de Éfeso perdeu prestígio, quando a sua comunidade foi sacudida pelo
cisma doutrinal do Montanismo.
Roma, porém, foi também centro das esporádicas perseguições sofridas pelas
comunidades cristãs, ao longo de quase três séculos. Lugar que assinala, sim-
bolicamente, essas perseguições é o Coliseu (erguido por Vespasiano, no ano
72, e palco do martírio de centenas de cristãos, lançados às feras). É nas suas
ruínas que ainda hoje se realiza, anualmente, na Semana Santa, a Via-Sacra
transmitida televisivamente para todo o mundo.
Posteriormente à sua aceitação pelo Império, no início do século IV, com a
conversão do imperador Constantino, o Cristianismo evoluirá em pouco tempo
para religião de Estado, «batizando» lugares e festividades religiosas existen-

2Atualmente, é em Roma que permanece a sede do Catolicismo Romano (o Estado do Vaticano


[44 hectares], criado em 1929 pelo Tratado de Latrão, entre o Papado e a Itália), onde reside o
Papa e a sua Cúria, composta de cerca de meia centena de cardeais, uma centena de bispos [dos
cerca de 5500, no mundo], sete milhares de presbíteros (entre regulares e seculares, de um total
mundial de cerca de 415 mil), e mais de 20 000 religiosos e religiosas (dos cerca de 700 mil no
mundo, cujas funções se distribuem por cerca de uma centena de Departamentos estatais de que
fazem parte os Dicastérios governativos, institutos e universidades pontifícias).

180
tes, tornando seu um sentir transversal às populações que estavam já em pleno
processo intelectual de busca de uma vertente monoteísta da religião, bem pa-
tente no culto ao Sol Invicto e restantes religiões de salvação.
A primeira Basílica de São Pedro terá sido construída, por ordem de Constan-
tino, em 320, no local de uma necrópole onde já então se venerava um túmulo
que a tradição indicava ser do Apóstolo Pedro. Antes, em 313, Constantino
havia dado liberdade de culto a todas as religiões, através do Édito de Milão.
Mercê destas iniciativas do poder político e do crescente favorecimento do
Cristianismo, Roma deixou de figurar como imagem da perdição, comparável,
nas escrituras judaicas, às cidades Sodoma, Gomorra e Babilónia, passando a
ser vista, exatamente, como antevisão da «Cidade de Deus».
Os cristãos assimilavam assim as mais antigas tradições da cidade que a afirma-
vam eterna, nunca conquistada. Neste quadro mental, o saque de 410 por Alari-
co foi, por isso, um acontecimento traumático. Roma era invadida, incendiada,
devastada. Santo Agostinho redigirá, dezassete anos depois, a sua Cidade de
Deus, como resposta teológica a uma cultura abalada pelos acontecimentos e
saudosa dos tempos passados: o Império Romano podia estar prestes a terminar
e a cidade de Roma não ser eterna, como se sonhava, mas outra cidade já exis-
tia, essa sim, de Deus, e intocável, tecida dos laços da caridade e assinalada pela
rede das comunidades cristãs.
O renascer do Império e a atribuição das insígnias imperiais, permanecerá no
imaginá-rio cultural do Ocidente e tornar-se-á um objetivo pretendido por mui-
tos. Carlos Mag-no irá a Roma para receber a coroa imperial no simbólico dia
25 de dezembro do ano 800. A sua ação política centra-se claramente no mundo
dos Francos, não no Sul mediterrânico. Para o Papado, a aliança era essencial,
numa altura em que eram constantes os conflitos com os Lombardos, e o Islão
chegava às portas (Roma seria invadida e saqueada na década de quarenta).
Sucedem-se imperadores que não chegam sequer a conhecer Roma nem por ela
se interessam. São os tempos de prosperidade de Constantinopla, a Nova Roma.
Só a chamada Reforma Gregoriana, que vai buscar o seu nome a Gregório VII
(1073-1085), torna a colocar Roma no mapa político da Europa, nos séculos XI
e XII. Definindo juridicamente a relação de poderes entre imperador, monarcas
e Papado, Roma assume que pode fazer reis e afastá-los.
Neste quadro de crescente valorização da instituição papal, nascem os jubileus,
em 1300, uma figura que vem dar corpo a uma nova forma de peregrinação.
A figura jubilar vai criar a necessidade da viagem ritual aos lugares santos da

181
Cristandade, para que o crente obtenha o perdão dos seus pecados, e ganhe
indulgência para as penas associadas.
Nos séculos seguintes, reflexo do enorme poder temporal da instituição papal, a
cátedra de Pedro sairá, episodicamente, de Roma. Será Martinho V que tornará
a estabele-cer o Papado em Roma, em 1420.
Com a cristandade ocidental novamente unida sob o mesmo Sumo Pontífice,
a luta com o imperador torna a ganhar destaque. Nesta luta temporal, entre o
Papado e o Imperador, Roma é saqueada, em 1527, e a Península Itálica fica nas
mãos de Carlos V. Voltará a brilhar no século XVI. O Papado reúne artistas e
recolhe obras de arte desde a Antiguidade. A atual Basílica de São Pedro é ainda
hoje exemplo dessa grandiosidade.
Entre 1545 e 1563, toda a cristandade católica está em ebulição em Trento,
num Concílio que procura responder ao desafio protestante e que marcará uma
reforma profunda e de longo alcance das comunidades cristãs em comunhão
com Roma.
No século XIX, os Estados Pontifícios, criados no tempo de Carlos Magno,
através da forjada Doação de Constantino, desaparecem definitivamente, com
o nascimento da Itália moderna, em 1861, unificada por Garibaldi sob Victor
Emmanuel I.
Perdidos os Estados Pontifícios, Papa ficará exilado na cidadela do Vaticano
até ao reconhecimento desta como território soberano em 1929, como acima
referido.

O Papado

Para o Papa transitou a simbologia do Pontifex Maximus latino: o título, mas


também as vestes brancas, o anel e o báculo, a que se atribuíram ressonâncias
bíblicas e cristã.
Segundo alguns autores, em tempos do chamado Cristianismo Primitivo, ao
bispo de Roma não lhe era reconhecida qualquer proeminência sobre os restan-
tes, porém, são demasiados os episódios conhecidos – de carácter simbólico ou
natureza de primus inter pares – em que o reconhecimento dessa proeminência
era manifesta ou requerida, desde cedo. Obviamente, que será a partir do reco-
nhecimento do livre culto do Cristianismo, pelo Édito de Milão, em 313, e a sua
consolidação pelo imperador Teodósio e pontificado de São Dâmaso (366-384),

182
que a explicitação da proeminência romana será, mais ou menos, consensual-
mente assumida, durante algum tempo, no seio da Cristandade. Essas prece-
dências dos Patriarcados tradicionais ficarão assim estabelecidas por decisão
conciliar: 1.º, Roma; 2.º, Constantinopla, a «Nova Roma»; 3.º, Alexandria; 4.º,
Antioquia; 5.º, Jerusalém.
De facto, o lugar que milenarmente o Papado viria a ocupar evoluiu, gradual-
mente, nos dois séculos e meio que antecederam a subida de Constantino ao
poder. Multiplicam-se os momentos em que Roma é chamada a intervir com
uma clarificação doutrinal ou disciplinar, e, por vezes, a posição da comunidade
romana é suficiente para criar uma tensão intransponível com regiões inteiras,
como no caso dos critérios para a marcação da data da Páscoa. Mesmo depois
do Imperador Constantino ter deslocado a capital do Império e perante o cres-
cente prestígio do Patriarca de Constantinopla, o Bispo de Roma mantém e vai
firmando o seu estatuto de primazia.
Lugar de relevo nesta evolução tiveram Inocêncio I, Leão I (Magno), na pri-
meira metade do século V. A sua personalidade e intervenção disciplinar e dou-
trinal consolidaram a autoridade papal. No caso de Leão Magno, o seu combate
ao monofisismo e a capacidade de negociar, sem apoio militar, uma retirada
de Átila, o Huno, que se encontrava às portas de Roma, projetaram o Papado
no caminho de uma crescente relevância política. Com o desaparecimento do
Império Romano do Ocidente, o Bispo de Roma adquiria um papel de destaque
funcional e simbólico.
A palavra «Papa» significa pai. Até cerca do século VI, todos os bispos ociden-
tais eram assim chamados, mas gradualmente, restringiu-se esse tratamento aos
bispos de Roma.
Pouco antes do reconhecimento do poder temporal do Papado por Carlos Mag-
no e a sua coroação em Roma, no Natal de 800, terá sido Leão III (795-816) o
primeiro Papa a ser coroado com a tiara. Com Bonifácio VIII, a tiara ostentava
duas coroas – o poder temporal e espiritual. A tiara com 3 coroas surge esculpi-
da, pela primeira vez, no túmulo de Bento XII (1334-1342).
A partir de meados do século XI, vários Papas reformadores procuraram mo-
ralizar a administração da Igreja. O mais notável foi Hildebrando (Gregório
VII, 1073-1085), que deu nome à chamada Reforma Gregoriana, e teve como
uma das suas tarefas principais a luta contra a simonia, ou seja, o comércio de
cargos eclesiásticos. Todavia, o ponto alto do poder papal foi alcançado com o
pontificado de Inocêncio III (1198-1216), o primeiro a usar o título de Vigário

183
de Cristo. O Papa assumia-se, agora, não apenas como sucessor de Pedro, mas
representando o próprio Senhor.
Após este apogeu, os séculos seguintes foram de significativa complexidade
para a Igreja e, particularmente, para a instituição papal, que chegou a ter, si-
multaneamente, três pontífices.
No Renascimento, o Papado foi alvo da cobiça das principais famílias italianas,
levando a limites estéticos inimagináveis as capacidades desenvolvidas pelos
pintores, escultores e arquitetos que trabalhavam na Península Itálica. O espa-
nhol Rodrigo Borja (papa Alexandre VI, 1492-1503), dedicou-se a embelezar a
cidade de Roma. Na época em que Maquiavel escrevia o seu Príncipe, Júlio II
(1503-1513) foi um papa guerreiro, comandando pessoalmente o exército dos
Estados Pontifícios. Leão X (1513-1521) que terá dito, ao ser eleito: «Agora
que Deus nos deu o Papado, vamos desfrutá-lo», despertou a indignação do
monge agostiniano Martinho Lutero, em 1517, ao autorizar a venda de indul-
gências para custear as obras de reconstrução da Basílica de São Pedro. Dessa
indignação nasceu a Reforma Protestante.
Do ponto de vista protestante, o Papado não era uma instituição de origem
divina, antes pelo contrário, refletia sobretudo a fragilidade humana. Não acei-
tavam que houvesse uma ligação inequívoca entre Pedro e os bispos de Roma.
Punham mesmo em causa a tradição histórica de que Pedro tivesse estado em
Roma, quanto mais que tenha sido o primeiro bispo da comunidade cristã nessa
cidade.

O Monacato – origens e desenvolvimento

Tratando-se de uma das imagens mais fortes da vivência cristã, o monacato


emergiu nos primeiros séculos do Cristianismo e veio a desaguar, no Ocidente,
no universo tradicionalmente designado por Ordens ou Congregações Religio-
sas. No seu primeiro impulso, difunde-se por uma vasta região que abrange
sobretudo a bacia oriental do Mediterrâneo.
A criação de formas de vida religiosa onde a existência dos indivíduos se pauta
por um propositado afastamento do mundo da urbe, na busca espiritual de um
sentido que aí não se encontrava, tinha antecedentes em grupos religiosos que
pululavam no mundo dos Antíocos, dos Selêucidas e dos Ptolemeus: seguidores
de Mitra, de Aura Mazda, de Ísis, de Dionísio ou de Baco, Neoplatónicos, Pi-

184
tagóricos e Órficos, todos incluíam no seu horizonte de possibilidade religiosa
a fuga das grandes cidades. No Hinduísmo, havia já longas tradições de vida
ascética e mendicante e o Budismo apresentava, desde a sua origem, uma forte
componente monástica. Mas foi provavelmente em memórias bíblicas, associa-
das à tradição profética de Elias, Eliseu e João Baptista, por exemplo, ou aos
quarenta anos de caminhada purificadora de Israel no deserto, sob a orientação
de Moisés, que os primeiros eremitas e comunidades monásticas cristãs se ins-
piraram.
Muita variedade de formas de vida e de rigor nasceram, no pós-313, com o fim
da perseguição romana. Procurava-se um outro espaço de sacrifício que fosse a
continuidade do martírio. A busca de formas apropriadas à recusa de uma vida
normal conduziu indivíduos e grupos para locais ermos, o cimo de colunas ou
mosteiros rudimentares, assumindo estilos de vida que marcaram o imaginário
religioso do próximo milénio. Mesmo Maria e Madalena foram recriadas em
eremitas, que serviam de guia até aos mais incorrigíveis pecadores.
O modelo copta terá sido dos mais difundidos, pelo rigor de vida que implicava,
no Egito, o afastamento dos povoados. Nos ermos, no deserto, as colónias de
discípulos em torno de eremitas por vezes famosos, como Antão, teciam das
suas memórias verdadeiros mitos de santidade e magia. Seguir o mestre era a
regra fundamental, até Pacómio ter consignado, em meados do século IV, uma
primeira forma de vida monástica regulamentada. Destes mosteiros, ainda hoje
subsistem dois, junto ao mar Vermelho: o Mosteiro de Santo Antão (Dayr Anba
Antuniyus) e o Mosteiro de São Paulo (Dayr Anba Bula), erguido onde supos-
tamente se encontrava o túmulo do eremita Paulo de Tebas.
No Oriente, a vida monástica tinha algumas regras gerais, como a recusa total
de incluir carne na alimentação. A Profissão Monástica consistia em tomar o
hábito do mosteiro, numa cerimónia atestada desde o século V, que simbolizava
a subordinação a todas as regras dessa comunidade.
O II Concílio de Constantinopla, em 553, dedica 32 cânones à vida monástica.
Já antes, o Concílio de Calcedónia dedicara-lhe o cânone 4.º das suas delibe-
rações. Paradoxalmente, a crescente normalização abriu caminho à realidade
cada vez mais diversificada das ordens religiosas que fomos conhecendo ao
longo dos últimos oito séculos da nossa história.
Um momento particularmente importante para o seu desenvolvimento no Oci-
dente, encontra-se no ano de 910, quando o abade Berno obteve de Guilherme,
o Piedoso, conde de Auvergne e duque da Aquitânia, a villa de Cluny para ali
fundar um mosteiro e restaurar a pureza primitiva da Regra de São Bento.

185
O seu sucessor, Odão (926-942), libertou o mosteiro dos poderes políticos e
religiosos locais, obtendo a sua ligação direta ao Papa. A partir de então, as
fundações de Cluny foram rápidas por toda a Europa Central. O poder da ordem
foi excecional. Protegida por Papas, bem relacionada com as altas esferas da
nobreza, de onde provinham muitos dos seus membros, o seu poder não tinha
igual. O Papado da época reflete essa influência, no interior do tecido eclesial:
Urbano II (1088-1099) foi monge em Cluny, e Calisto II foi eleito em Cluny,
em 1119, onde morrera pouco antes Gelásio II.
Ao organizar as peregrinações a Santiago de Compostela, Cluny foi responsá-
vel pela construção de inúmeros templos por toda a Europa, difundindo dessa
forma a arquitetura românica. Também o seu modelo de organização hierár-
quica, irradiando a partir de uma casa-mãe, acabou por ser seguido por várias
outras ordens.
No século XIII, século cristão por excelência, no Ocidente, nasciam as chama-
das ordens mendicantes: Franciscanos, Dominicanos e Carmelitas, entre outros.
O fundador dos Dominicanos, Domingos de Guzmán, nasceu em Caleruega,
cerca de 1170. Era oriundo de uma família da pequena nobreza de Castela-
-a-Velha. Em 1203, acompanhou o seu bispo numa viagem ao estrangeiro e
ficou consternado com a importância do Catarismo, no Sul de França. Intuiu
que a única resposta a essa heresia residia na pregação evangélica. Em 1207,
fundou um mosteiro para mulheres heréticas convertidas, em Prouille. Depois
da derrota dos Albigenses, em 1213, fixou-se em Toulouse. Em 1215, esteve
no IV Concílio de Latrão e, dois anos depois, deu origem formal à Ordem dos
Pregadores, subordinada à Regra que o Papa aprovara.
Entre 1218 e 1219, Domingos fez uma grande caminhada de Roma a Toulouse
e, depois, à Hispânia; posteriormente, seguiu para Paris e daí a Milão. Em 1220
e 1221, presidiu aos dois primeiros capítulos da Ordem, em Bolonha, onde
faleceu.
O fundador dos Franciscanos, Francisco de Assis, o homem pobre de Deus, il
Poverello, nasceu em Assis, em 1182. Era filho de um abastado comerciante de
lã, com casa grande e confortável na Piazza del Commune. Foi batizado com
o nome de Giovanni, mas, talvez por a sua mãe ser francesa, ou por o pai ter
fortes relações com a França, passou a ser conhecido por Francesco, o france-
sinho.
Terá sido no ambiente boémio desta cidade comercial que o futuro santo vi-
veu a sua juventude. Integrado na cavalaria da sua cidade, combateu, aos vinte
anos de idade, contra Perugia e foi aprisionado. Um ano de cativeiro, porém,

186
não atenuou o desejo de ser armado cavaleiro. Mas, conta a lenda que, um dia,
Francisco se sentiu impelido a entrar na Igreja de São Damião. Prostrado frente
a um crucifixo, ouviu Cristo dizer-lhe, qual Paulo de Tarso: «Vai, Francisco, e
reconstrói a minha casa, porque se arruína.» Começou aí a sua vocação religio-
sa, substituindo por inteiro a ambição militar.
Tomou à letra, inicialmente, as palavras ouvidas, vendendo tudo o que podia
e entregando o dinheiro ao padre de São Damião. A situação evoluiu para os
tribunais, onde o pai o deserdou, procurando salvaguardar os interesses fami-
liares contra a obstinada ideia do filho de tudo dar. Num gesto simbólico, em
pleno tribunal, o jovem despiu todas as suas roupas e entregou-as ao pai, como
recorda o fresco de Giotto na Basílica de São Francisco.
Aos 24 anos, o jovem Francisco tinha percorrido a sua via para a pobreza total.
Fundou a Ordem dos Frades Menores e revolucionou, de forma semelhante
à de São Domingos, o Cristianismo ocidental. A sua vida seria radicalmente
alterada, aquando de uma peregrinação a Roma: o contacto com o luxo e a
ostentação, lado a lado com a pobreza total da população, mostrava ao jovem
Francisco que era na via da pobreza que estava o espírito do Evangelho e o
terreno fértil para a salvação de todos.
Faleceu em 1226 e foi canonizado dois anos depois. A basílica que lhe é dedi-
cada, em Assis, começada a construir por ordem papal imediatamente após a
sua morte, integra o local onde o santo pediu para ser sepultado: a Colina do
Inferno, o local onde eram abandonados os corpos dos condenados executados.
Cumprido o desejo do Santo, o Papa ordenou que se mudasse o nome do local
para Colina do Paraíso.
No século XV, o corpo, até então em exposição, foi selado numa cripta secreta
por motivos de segurança. Só em 1818 o local foi descoberto e o corpo voltou
a ser visitado e venerado.

Diversidade e conflitos no Cristianismo

Ao longo da sua história, o Cristianismo sempre oscilou entre o poder norma-


lizador do Papado e toda a estrutura hierárquica a ele subjacente e uma pulve-
rização de movimentos que se alargam da mais rigorosa ortopráxis às franjas
da heterodoxia.

187
A tensão e a procura de meios de erradicação das formas menos consentâneas
com essa normativização, teve fases de verdadeira exclusividade, como a vi-
vida na Europa no final da Idade Média e princípios da Idade Moderna, onde
se afirmou a ideia de «cristandade» como imagem identificadora da Europa –
em Portugal, o vocábulo surge pela primeira vez no século XIII. A luta, nesse
segundo milénio de Cristianismo, ganha por vezes foro militar, como na luta
contra os Albigenses, ou na ideia de cruzada contra os Muçulmanos. Cimen-
tando essa fase de intransigência e intolerância total, pela mesma altura, dá-se
a criação do Tribunal do Santo Ofício, instalado em Espanha, em 1478, e, em
Portugal, em 1534, que perseguiria e mataria, entre outros, milhares de cristãos-
-novos e cripto-judeus.
No Cristianismo contemporâneo, as divisões mais significativas são as da
Ortodoxia Oriental, do Catolicismo Romano e dos vários ramos da Reforma
Protestante. Entre Ortodoxia e Catolicismo, as diferenças são essencialmente
culturais e hierárquicas, enquanto as denominações Protestantes apresentam di-
ferenças teológicas mais acentuadas em relação às duas primeiras.
O universo protestante organiza-se sobretudo por denominações, que se defi-
nem por um nome, um mínimo de estrutura e um conjunto de doutrinas comuns
sob a exclusiva autoridade da Bíblia.

Divisões históricas, nos primeiros séculos

Logo nos primeiros séculos do Cristianismo surgiram movimentos que se auto-


marginalizaram ou foram afastados do centro normativo. Uns eram cismáticos
(rutura jurídica), outros heréticos (rutura doutrinal). Foi o caso, por exemplo,
dos gnósticos, que sustentavam um modelo dualista e iniciático para o acesso
à transcendência; dos ebionitas, que negavam a divindade de Cristo; dos apo-
linaristas, que negavam a perfeita natureza humana e divina de Jesus e vendo
nele um misto de humano e de Deus; dos montanistas, que pregavam uma nova
escatologia, a que só eles podiam aceder através de visões e revelações; e dos
arianos, ramificados em cambiantes diversas – Donatismo, Priscilianismo, etc.
– que consideravam Jesus apenas como um simples enviado do Pai.

188
Arianismo

Visão cristológica sustentada por Ario e seus seguidores, o Arianismo pretendia


salvaguardar o monoteísmo bíblico e a radical transcendência de Deus das li-
mitações ontológicas que lhes pareciam implicadas na doutrina da encarnação.
Consideravam o Verbo encarnado em Jesus Cristo como primeira criatura de
Deus, um demiurgo, quase, mas não inteiramente divino. O Concílio de Niceia
(325) condenou esta doutrina, afirmando que o Verbo era «Filho Unigénito de
Deus… Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gera-
do, não criado, consubstancial ao Pai». A decisão, porém, foi precipitada pela
impaciência de Constantino, que convocara o Concílio, e o consenso não se
revelou duradouro.
A heresia chegou a ter mais seguidores no Oriente do que a doutrina de Niceia.
Esta, porém, encontrou em Atanásio de Alexandria e nos Papas importantes
paladinos. Aliás, o Ocidente revelou-se, em geral, pouco permeável às teses
de Ario, mesmo quando trazidas pelos Ostrogodos e Visigodos, que chegaram
cristianizados à Europa Ocidental, mas seguidores do Arianismo.

Nestorianismo

O Nestorianismo foi a primeira rotura profunda no Cristianismo. Tomou o


nome de Nestório, patriarca de Constantinopla, no século V, formado na cidade
de Antioquia. Não é certo que alguma vez tenha defendido a fórmula doutrinal
condenada, embora tenha apoiado a pregação de Anastácio, seu capelão, contra
a atribuição do título de Theotokos (Mãe de Deus), a Maria, mãe de Jesus. Tam-
bém a Igreja Síria Oriental veio a ser acusada de nestorianismo, após o Concílio
de Éfeso (431), embora tudo indique que sempre tenha preconizado uma cris-
tologia fiel à tradição teológica antioquena, autónoma, mas não em contradição
com a doutrina aprovada nos grandes concílios do século V.
Pensa-se, hoje, que a divergência doutrinal e a posterior rutura jurídica das co-
munidades acusadas de nestorianismo se deveu em grande parte a dificuldades
de ordem política e linguística, associadas aos limites geográficos do Império
Romano e à necessidade de traduzir termos muito delicados e precisos do grego
e do latim para o aramaico e vice-versa. Um esforço aturado de entendimento
no século XX permitiu, em 1994, a assinatura de uma declaração cristológica
conjunta entre a Igreja Católica e a Igreja Síria Oriental.

189
A doutrina condenada afirmava que, em virtude da Encarnação, havia duas pes-
soas distintas em Cristo: a humana e a divina. A formulação aprovada no Con-
cílio de Calcedónia (451) acentuaria a unidade da pessoa e distinção das natu-
rezas: «Um e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigénito, tornou-se conhecido
em duas naturezas sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação.»
Atualmente, grupos esotéricos ligados à ideia de gnose, como os Rosacrucia-
nos, mostram-se inspirados pelo argumento nestoriano.

Monofisismo

Depois do Concílio de Calcedónia, em 451, surgiu outra grande divisão dentro


do Cristianismo, com origem na Igreja de Alexandria, de língua copta. De-
signada de Monofisismo (uma só natureza), foi proposta, na sua forma consi-
derada herética, por Eutiques, no século V, que afirmava a existência de uma
só natureza em Cristo, e essa não «consubstancial connosco». A versão mais
atenuada mantinha como referência a expressão de Cirilo de Alexandria: «a
única Natureza Encarnada do Verbo.» Esta cristologia veio a estender-se do
Egito às comunidades cristãs da Palestina e da Síria. Várias tentativas foram
feitas, nos séculos V e VI, para alcançar a reconciliação, mas terminaram com
o avanço do Islão que separou do Império Bizantino, política e culturalmente,
estas Igrejas. Hoje, o Monofisismo é professado por três Igrejas independentes:
a Igreja Apostólica Arménia, a Igreja Ortodoxa Síria e a Igreja Ortodoxa Copta
(do Egito e da Etiópia).
Tal como no caso do Nestorianismo, o esforço ecuménico do século XX per-
mitiu declarações conjuntas. Primeiro, em 1973, do papa Paulo VI e do papa
Shenouda III da Igreja Ortodoxa Copta; depois, em 1984, do papa João Paulo
II e do patriarca da Igreja Ortodoxa Síria, Ignatius Zakka I.

190
O cisma entre Ocidente e Oriente

Raízes

Ao longo dos primeiros séculos do Cristianismo, a Igreja organizou-se em tor-


no de seus quatro patriarcados: Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Roma, a que
se juntou, posteriormente, Constantinopla. Algumas comunidades de dimensão
significativa romperam com esta estrutura, em virtude das diferenças doutrinais
atrás referidas.
Após a queda do Império Romano do Ocidente (476, destituição do último im-
perador romano), e mantendo-se o Império Romano do Oriente, numa divisão
herdada de Diocleciano, nos princípios do século IV, foi grande a sintonia jurí-
dica, doutrinal e ritual entre ocidentais e orientais. Mas a inevitável rivalidade,
entre as duas capitais imperiais, Roma e Constantinopla, prefiguravam já as
disputas eclesiáticas que os séculos seguintes iriam presenciar.
As divergências culturais, o uso do latim, no Ocidente, e do grego, no Oriente,
bem depressa deram lugar a divergências de ordem político-religiosa. Enquanto
a cultura latina ocidental, paulatinamente, se foi transformando pela influên-
cia de povos recém-chegados, as comunidades cristãs do Império Romano do
Oriente permaneceram fortemente ligadas à tradição intelectual helénica e aos
Padres da Igreja de língua grega.
Esta distância cultural foi politicamente exacerbada quando o Papado legiti-
mou o Sacro Império Romano, no Ocidente, sem entendimento prévio com o
Imperador de Bizâncio. As disputas sobre a natureza e exercício da autoridade
papal ganhavam cada vez mais terreno. Por fim, no ano de 1043, quando Mi-
guel Cerulário se tornou patriarca de Constantinopla, deu-se início a uma forte
campanha contra a Igreja Latina, a pretexto da doutrina sobre a processão do
Espírito Santo, na Trindade3.

3
Questão que passou à história sob o nome de Filioque. Em suma, enquanto que a Igreja Romana
entende que, na definição da relação da Trindade, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho; na
Igreja Oriental, a definição diz que essa procedência do Espírito é apenas do Pai.

191
O cisma

No ano de 1054, Roma enviou o cardeal Humberto a Constantinopla para tentar


resolver as divergências. A personalidade irascível dos dois principais interve-
nientes acabou por radicalizar o problema e agudizá-lo sem possibilidade de
entendimento, a que se seguiram atos de excomunhão mútua até ao século XX.
À excomunhão do patriarca Cerulário – ato entendido como excomunhão ex-
tensiva a toda a Igreja Bizantina –, o Sínodo oriental e Cerulário responderam
com a excomunhão do papa romano Leão IX, entretanto falecido.
Menos de dois séculos depois, em 1204, as já más relações seriam ainda agra-
vadas quando, os participantes da IV Cruzada, que se dirigiam para a Terra
Santa, de passagem, saquearam Constantinopla e ali sedearam o Império Latino
no Oriente, com expulsão do imperador bizantino, ainda que por um escasso
período de tempo.
Ao longo dos séculos, deram-se várias tentativas de reunificação, principal-
mente nos Concílios de Lyon, em 1274, e de Florença, no ano 1439. Em 1453,
por fim, os esforços terminaram, dado que Constantinopla caiu à invasão mu-
çulmana dos Otomanos.

A grande divisão no Ocidente: a Reforma Protestante

O vocábulo

A palavra «Protestantismo» tem origem na palavra «protesto». No seu sentido


mais amplo, identifica o movimento cristão que surgiu na Reforma do século
XVI e, mais tarde, se consolidou nas Igrejas Luterana, Reformada (Calvinista/
Presbiteriana) e Anglicana.
A expressão foi usada pela primeira vez na Dieta de Speyer, em 1529, pelos
Luteranos que pretendiam protestar contra as decisões da Igreja Católica Ro-
mana. Declaravam, desse modo, o seu apelo e a sua objeção. Afirmavam não
haver nenhum outro mandamento divino nem doutrina a pregar além da Palavra
de Deus.

192
Por causa dessa proclamação, os Luteranos e outros defensores da Reforma
passaram a ser conhecidos por «Protestantes». Com o tempo, o título veio a ser
substituído ou a aparecer como sinónimo de «Evangélico» e de «Reformado».

Primeiros movimentos reformadores

A Reforma Protestante surgiu de uma movimentação religiosa muito ampla


que pretendia reformar a Igreja Católica Romana, na Europa do século XVI.
Preconizava o regresso aos padrões do Cristianismo dos tempos apostólicos,
extirpando os abusos do clero e das autoridades.
Embora a Reforma Protestante date do século XVI, o facto é que já no século
anterior vinham sendo sistematizadas as bases teológicas que enquadrariam os
grandes reformadores como Martinho Lutero (1483-1546), João Calvino (1509-
1564) e Ulrich Zwingli (1484-1531). Nomes como John Wycliffe (1328-1384)
e o Lollardismo, nos Países Baixos, na Alemanha e em Inglaterra; e John Huss
(1369-1415) e os Hussitas, na Boémia, foram precursores das teses reformistas.
Um acontecimento, porém, figurará como marco fundante da Reforma Pro-
testante: a fixação na porta da Igreja de Wittenberg, por Martinho Lutero, em
1517, de 95 teses em que este condenava a pregação das indulgências como
forma de angariar dinheiro para as obras da Igreja de Roma e a autoridade
exercida pelo Papa.
Rapidamente, alicerçada no descontentamento com que se encarava o Papado
e projeção dada às ideias pelo texto impresso, a Reforma transpôs fronteiras e
alcançou países como a Noruega, passando pela Dinamarca e a Suécia. Na Suí-
ça, a Reforma foi implementada, primeiramente, na área de Zurique, através de
Ulrich Zwingli. João Calvino evoluiu no sentido das ideias do Humanismo, em
França, aproximando-se das teses da Reforma, até se ver obrigado a fugir para
Basileia (Suíça). De passagem por Genebra, em 1536, foi convidado a ajudar
na implementação do protestantismo e acabou por estabelecer na cidade um
regime teocrático. A reforma progrediu também nos Países Baixos, Inglaterra,
Hungria e Escócia – nesta última, através de John Knox (1543-1572).
Em Inglaterra, assistiu-se ao desenvolvimento da influência luterana, enquanto
que, na Escócia e na Holanda, o Calvinismo obteve primazia. A diferença entre
o Luteranismo e Calvinismo situava-se em questões de disciplina sacramental
e de ordem teológica. Enquanto que, para Lutero, a doutrina essencial era a
encarnação de Cristo, culminando na teologia da cruz, Calvino fundamentava o

193
seu pensamento na glória e soberania de Deus. No que concerne à Ceia do Se-
nhor, Calvino considerava os símbolos como veículos de uma graça imanente,
enquanto que, para Lutero, eles consubstanciavam a presença real do Corpo e
Sangue de Cristo, tal como o entende a Igreja de Roma.
Apesar das divergências, o objetivo comum dos reformadores era abolir (ou
reformar) o Catolicismo Romano, segundo eles, degenerado, procurando a fé
dos Apóstolos, como base e fundamento da vida cristã. A degeneração prolife-
rava, segundo os reformadores, apoiada em abusos teológicos que justificavam
tradições estranhas às práticas cristãs dos tempos apostólicos. A resposta da Re-
forma às indulgências, segundo Lutero, encontrava-se já na Carta de Paulo aos
Romanos, onde se afirmava claramente que a justiça de Deus «tem origem na fé
e conduz à fé» (1,17). Segundo a Igreja Católica, a salvação do crente dependia
também das suas obras. Estas obtinham-lhe mérito perante Deus e o mérito
podia ser partilhado com outros. Isso traduzia-se, nessa altura, na prática de
penitências, em mandar rezar missas em favor das almas, e, no caso que esteve
na origem do protesto de Lutero, na entrega de donativos monetários em troca
de indulgências concedidas pelas autoridades da Igreja, a partir dos méritos de
Cristo e dos Santos.
Os Protestantes contrapunham a autoridade singular da Bíblia (sola Scriptura)
ao poder jurídico e magistério doutrinal da hierarquia eclesiástica, acreditavam
que a justificação se alcançava somente pela fé (sola fidei) e consideravam que
todos os fiéis se encontravam perante Deus sem qualquer outra mediação. A
Igreja Católica Romana apelava para tradições milenares, como fundamento
para a convicção de que as suas práticas e orientações doutrinárias eram de
origem apostólica. A reforma protestante rejeitou tais fontes de autoridade da
Igreja e declarou as Escrituras superiores a todas as tradições humanas. Neste
sentido, os reformadores advogaram ainda a necessidade do ensino da doutrina
do sacerdócio de todos os crentes, fundamentado em Pedro (2,9) e na prática
neotestamentária da Igreja, conforme textos como o de Atos (17,11), de modo
a permitir a qualquer indivíduo o contacto direto com as Sagradas Escrituras.
Ao longo do período inicial da Reforma, assistiu-se à formulação de diversas
confissões de fé que procuravam precisar as diferenças doutrinais. Destacaram-
-se os sessenta e sete artigos, de Zwingli, em 1523; a Confissão de Augsburg e a
Confissão Helvética, em 1530 e 1536; os trinta e nove artigos da Religião Cristã
do Anglicanismo, em 1571; o catecismo calvinista de Heidelberg, em 1562; e a
Confissão de Westminster, da Igreja Presbiteriana, em 1647.

194
Diversidade no Protestantismo

Quer pela forma pulverizada como nasceu, quer pela recusa da instituição pa-
pal, o Protestantismo não apresenta uma organização hierárquica centralizada
que normalize ritos e doutrinas.
Tratando-se de uma larga tradição religiosa que várias vezes se dividiu, o Pro-
testantismo organiza-se por grandes famílias ou denominações. Um grande
número de movimentos, por exemplo, teve origem em movimentos religiosos
internos do próprio Protestantismo, numa dinâmica de fidelidade e aprofunda-
mento das intuições iniciais da Reforma. Foi o caso, por exemplo, do Metodis-
mo e do Pentecostalismo.
Temas doutrinários e questões de consciência também dividiram os Protestan-
tes. Assim aconteceu com a tradição Anabatista, composta dos Amish e dos
Menonitas, que rejeitou liminarmente as doutrinas católica e luterana do batis-
mo infantil e se distinguiu pela defesa intransigente do pacifismo.
O grau de aceitação mútua entre denominações e movimentos tem variado, mas
aumentou muito, graças ao movimento ecuménico, iniciado no século XX, e
ao surgimento de instâncias interconfessionais como o Conselho Mundial de
Igrejas.

Divisões e formulações recentes (séculos XIX e XX)

A diversidade aqui apontada é uma pequena imagem da variedade que sempre


marcou o Cristianismo. Mas, ao longo dos tempos, houve também grupos mi-
noritários que a si próprios se consideraram periféricos, em relação à sociedade
maioritária, sem pretensões de a integrar.
Nos séculos XIX/XX, eclodiram vários movimentos religiosos. Entre eles des-
tacamos os Adventistas do Sétimo Dia, A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos
Últimos Dias (ou Mórmones), as Testemunhas de Jeová, os Pentecostais e os
Neopentecostais.

195
A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias

Com características restauracionistas, os Mórmones, como são mais conheci-


dos, apresentam-se como herdeiros espirituais de uma tribo de Israel que teria
povoado a América do Norte em época remota. Essa tribo teria, a dada altu-
ra, recebido uma visita de Cristo. Mas, tendo abandonando completamente a
memória das suas origens e da vinda de Cristo, a tribo deixou rastos das suas
tradições no Livro de Mórmon, gravado em placas de ouro, numa língua desco-
nhecida, que jazeram escondidas durante largos séculos até que Joseph Smith
as encontrou, leu e editou. Novamente escondidas, por indicação do anjo que
indicara o seu paradeiro, deu-se início ao movimento religioso.
A 6 de abril de 1830, Joseph Smith lançou as bases de A Igreja de Jesus Cristo
dos Santos dos Últimos Dias, em Manchester, Nova Iorque. O cânone das suas
Escrituras compreendia o Livro de Mórmon, a Bíblia, Doutrina e Alianças e
Uma Pérola de Grande Valor. Oito anos mais tarde, era fixado o nome pelo
qual o movimento ainda hoje é conhecido.
Em 1839, foram comprados os primeiros terrenos para construção de uma co-
munidade, em Nauvoo, no Illinois. Mas, a 27 de junho de 1844, Joseph Smith
Jr. e Hyrum Smith foram assassinados em Carthage, Illinois. Dois anos depois,
os Mórmones começaram a abandonar a cidade de Nauvoo, a fim de fugirem
às perseguições.
Em 1847, liderados por Brigham Young, chegaram ao Vale do Lago Salgado
(Salt Lake Valley). Três anos depois, era criado o Território de Utah, por deci-
são do Congresso Americano, com Brigham Young como Governador. A 4 de
janeiro de 1896, Utah era elevado à categoria de Estado. A prática da poligamia,
porém, provocou uma onda de choque na cultura dominante, pelo que, esta prá-
tica, seguida dos exemplos bíblicos, acabou por ser abandonada ainda no século
XIX, ainda que se tenha mantido o mito da sua manutenção.
À influência do Antigo Testamento foram também buscar os interditos alimen-
tares, não consumindo nem bebidas alcoólicas, nem qualquer outra bebida ou
produto que potencialmente altere as capacidades cognitivas ou de consciência,
como o café.
Com uma vida social centrada na família, que acreditam ser espelho da orga-
nização celestial, os Mórmones organizam a sua relação com Deus através de
dois patamares de ritos e de alianças. O nível mais importante dos ritos, seja o
batismo seja o matrimónio, é realizado para a Eternidade, acreditando-se que

196
esses laços se mantêm na eternidade. Estes ritos são realizados apenas nos Tem-
plos, e não nas capelas locais.
Dedicam uma parte muito significativa dos seus meios ao desenvolvimento
académico e profissional dos seus membros, sendo uma igreja que suporta in-
vestigação científica e apoio escolar aos seus membros. Sendo literalistas bíbli-
cos, em nada renunciam à ação cívica e à participação nas instituições, assim
como procuram compaginar a leitura da Bíblia com as mais recentes descober-
tas científicas.
Seguindo sempre a legalidade, apenas desenvolvem proselitismo em países
onde ele é acolhido e possível.

Adventistas do Sétimo Dia

Também com origem Protestante, esta Igreja teve como base o Movimento
Millerista, liderado pelo pastor William Miller (1782-1849). Foi no ano de
1831, que Miller começou a difundir as suas interpretações bíblicas. Desde
1818 que Miller lia sistematicamente a Bíblia, procurando a interpretação de
cada versículo. Em 1838, com base na sua interpretação dos capítulos 8 e 9 do
Apocalipse, concluiu que, em 1840, o Império Otomano desapareceria. Apesar
de não se ter desintegrado como Miller apontara, teve grandes convulsões, o
que veio dar credibilidade às suas leituras e interpretações, juntando cada vez
mais seguidores.
O centro da sua interpretação encontrava-se na leitura dos livros de Daniel e
de Ezequiel. Com base nesses livros bíblicos, Miller defendia que a segunda
vinda de Cristo, o Advento, teria lugar entre as primaveras de 1843 e 1844. Não
tendo tido lugar o Advento, foram vários os seguidores a apontar novas datas e
a reequacionar o local e a forma como se daria início ao processo do Advento.
Para os crentes, foi o chamado Grande Desapontamento.
Banido da Igreja Batista, Miller acabou por falecer em 1849. Antes, a crença
na vinda breve de Cristo começou a reformular-se, tendo sido convocadas con-
ferências que reuniram delegados do movimento. A atual Igreja Adventista do
Sétimo Dia acabou por formalizar a sua instituição, no ano 1863, nos Estados
Unidos da América. Um dos seus fundadores é Ellen G. White (1827-1915)
cujos textos são dos que mais influenciaram esta Igreja.
A sua teologia mantém as mesmas características dos cristãos protestantes, tais
como a Trindade e a inenarrância bíblica. No entanto, outros ensinamentos se-

197
param as linhas das doutrinas, tais como o Juízo Investigativo e o Estado In-
consciente dos Mortos.
Os Adventistas do Sétimo Dia distinguem-se, também, pela observância do
Shabath, e colocam a sua ênfase na segunda vinda de Jesus Cristo. Esta Igreja é
também conhecida pela importância que os seus membros dão à alimentação e
à saúde, e, pelos seus princípios conservadores, à compreensão de corpo, mente
e alma, numa unidade indivisível, que os leva a uma posição muito construtiva
em torno da investigação médica.

Testemunhas de Jeová

Na década de setenta do século XIX, um pequeno grupo de estudo bíblico, em


Allegheny, Pensilvânia (EUA), hoje parte de Pittsburgh, deu origem às Teste-
munhas de Jeová. Charles Taze Russell (1852-1916) foi o seu principal promo-
tor.
O grupo começou a publicar, em julho de 1879, a revista A Torre de Vigia de
Sião e Arauto da Presença de Cristo (em português: A Sentinela). Por volta de
1880, já se haviam formado diversas comunidades nos Estados vizinhos. Em
1881, formou-se, se bem que ainda sem esta designação, a Watch Tower Bible
and Tract Society (Sociedade Torre de Vigia da Bíblia e Tratados), com Russell
por presidente.
Ao assumir uma dimensão internacional, a sede da Sociedade foi transferida,
em 1909, para o local que hoje ocupa, em Brooklyn, Nova Iorque. Publicavam-
-se, então, sermões, simultaneamente, em diversos jornais e, por volta de 1913,
saíam em quatro idiomas, em 3000 jornais, nos Estados Unidos da América, no
Canadá e na Europa.
Foi a partir de 1931 que os seguidores do projeto de Russell passaram a ser
conhecidos por Testemunhas de Jeová. São especialmente conhecidos pelo in-
terdito que colocam a transfusões de sangue, princípio que seguem pela inter-
pretação de um determinado trecho bíblico. São também conhecidos por não
colaborarem em qualquer atividade dos Estados, sendo absolutos objetores de
consciência, quer no que respeita a tudo o que tenha a ver com guerra, quer, até,
na participação em eleições, em que nunca votam.

198
Pentecostais

O Movimento Pentecostal nasceu no seio de diversas Igrejas protestantes e


evangélicas tradicionais. A maior especificidade deste movimento encontra-se
na experiência direta e pessoal com Deus, através do batismo do Espírito San-
to, sendo possíveis os fenómenos de profecia e glossolália (falar em línguas
estranhas). O nome de Pentecostais advém-lhes do facto de acreditarem que, à
semelhança do que aconteceu no Pentecostes, relatado nos Atos dos Apóstolos,
esse fenómeno poder acontecer, hoje, em qualquer lugar e com qualquer crente.
Os crentes pentecostais são literalistas bíblicos e sentem-se próximos da Igreja
Primitiva, no que respeita aos seus ensinamentos e espiritualidade. As Igrejas
pentecostais correspondem, também, a um fenómeno de atomização de congre-
gações, onde, muitas vezes, impera uma total independência das igrejas e dos
pastores entre si.
O início deste fenómeno cristão teve lugar em 1906, na rua Azuza, na cidade de
Los Angeles, Califórnia, onde se reuniam crentes de origens denominacionais
variadas em torno de um avivamento liderado por William Joseph Seymour
(1870-1922). O fenómeno da Rua Azuza caraterizou-se pela realização de cul-
tos que chocaram as outras comunidades cristãs, com descrições da descida do
Espírito Santo completamente invulgares nas Igrejas da época.
William Joseph Seymor, afro-americano, pertencia a uma igreja onde negros,
brancos, hispanos e mulheres estavam ao mesmo nível de adoração e serviço a
Deus, num tempo em que a segregação racial nos Estados Unidos era totalmen-
te contrária a esta miscigenação social – e, talvez, daqui a reação que as outras
comunidades cristãs tiveram.
O crescimento e consolidação das Igrejas pentecostais vai ter lugar nos Estados
Unidos da América, assim como na Europa, onde chega muito rapidamente.
Contudo, é na América do Sul, especialmente no Brasil, que hoje as Igrejas, que
se revêm na permanência dos Dons do Espírito Santo, mais se desenvolvem,
especialmente as Assembleias de Deus, a maior e mais antiga denominação
pentecostal.

Neopentecostais

O Neopentecostalismo, também conhecido como Pentecostais da terceira ge-


ração, é um movimento que nasce, especialmente no Brasil, na passagem para

199
o último quartel do século XX. Têm uma identidade distinta dos Pentecostais,
apesar de também serem literalistas bíblicos. Para o crente neopentecostal, o
mundo espiritual está radicalmente polarizado entre Deus e Diabo, estando re-
pleto de demónios que implicam frequentes rituais de expulsão e exorcismo.
Seguem uma Teologia da Prosperidade, classificando a pobreza como perten-
cente ao domínio do Diabo. Numa linha inspirada em alguns textos bíblicos,
a riqueza, e mesmo a sua ostentação, são demonstração dos Dons e Graças
de Deus; a concretização da recompensa que Deus atribuiu a cada um está à
distância da demonstração da fé ou da limpeza espiritual de tudo o que seja
demoníaco, especialmente através de ofertas à Igreja.
As Igrejas neopentecostais usam, com muita frequência, elementos simbólicos
retirados do Antigo Trestamento, como a Estrela de David, a Arca da Aliança,
o Shofar, chegando mesmo a usar a bandeira de Israel.

Textos do Cristianismo

BÍBLIA CRISTÃ

Antigo Testamento

A Igreja Cristã, a partir do ano 400, utilizou como canónica, a versão judaica
do Antigo Testamento da chamada tradução dos Setenta (ou Septuaginta). Esta
tradução dos textos hebraicos para grego foi feita, provavelmente em Alexan-
dria, em contexto judaico, antes ainda do fechamento do cânone hebraico, pelo
que alguns dos seus textos não chegaram a ser incluídos na versão última da
Bíblia hebraica.
Mais tarde, os teólogos da Reforma acabaram por excluir do Cânone cristão
que adotaram todos os livros ou fragmentos que não correspondiam ao texto
hebraico massorético. Porém, até ao século XIX, os textos não reconhecidos
como autoridade, em matéria de fé, eram incluídos nas edições protestantes,
mas em apêndice, sob o nome de Apócrifos. Por acordo estabelecido em 1968,
renovado em 1987, entre as Sociedades Bíblicas Unidas e a Igreja Católica e o
Secretariado para a Unidade dos Cristãos, não edições interconfessionais, estes

200
livros costumam figurar com o nome de Deuterocanónicos e colocados no fim
do Antigo Testamento.
Em contexto católico, o Concílio de Trento, em 1546, determinou que os livros
de Judite, Tobias, Sabedoria, Eclesiástico (ou Sirácida), Baruc, 1 e 2 Macabeus,
os capítulos 13 e 14 e os versículos 24 a 90 do capítulo 3 de Daniel, os capítu-
los 11 a 16 de Ester, deveriam ser tratados como canónicos, e não o seriam os
textos conhecidos como Oração de Manassés e 3 e 4 Esdras. Entretanto, a Igreja
Católica Ortodoxa acabou por decidir a inclusão de Tobias, Judite, Sirácida e
Sabedoria.
No conjunto das versões católica e protestante, os textos dos Antigo Testamento
são os 46 livros seguintes (com [*] os não aceites como canónicos pelas Igrejas
da Reforma):

Pentateuco – Génesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronómio;

Livros históricos – Josué, Juízes, Rute, Samuel I e II, Reis I e II, Cróni-
cas I e II (ou Paralipómenos I e II), Esdras, Neemias, Tobias*, Judite*,
Ester*, Macabeus I e II;

Livros sapienciais – Job, Salmos, Provérbios, Eclesiastes (ou Qohelet),


Cântico dos Cânticos, Sabedoria*, Eclesiástico* (ou Sirácida);

Livros proféticos – Isaías, Jeremias, Lamentações, Baruch*, Ezequiel,


Daniel, Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc,
Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.

Novo Testamento

Por esta expressão entendem os cristãos os textos escritos após a ressurreição


de Jesus, sobre a sua vida e sobre a vida das comunidades nascentes. Em senti-
do literal e, em certa medida, teológico, este nome corresponde à ideia de Nova
Aliança, um novo momento, uma nova fase de relacionamento entre Deus e a
Humanidade, através da vinda do seu Filho, Jesus Cristo.

201
Os 27 livros do Novo Testamento foram escritos por vários autores, em várias
épocas e lugares. Ao contrário do Antigo Testamento, este Novo Testamento foi
escrito num relativo curto espaço de tempo, isto é, pouco mais de setenta anos.

• Evangelhos (exceto o Evangelho de João, os outros três, de Marcos,


Mateus e Lucas, são considerados sinóticos)

Trata-se do grupo de quatro textos diretamente relacionados com a vida de


Jesus, que a descrevem. São tradicionalmente atribuídos a quatro dos seus dis-
cípulos. A palavra que normalmente os designa, «Evangelho», significa Boa-
-Nova, na medida em que se referem ao nascimento, vida e ressurreição do
Messias.

Evangelho de Marcos – Terá sido, provavelmente, o primeiro dos


Evangelhos a ser escrito.

Evangelho de Mateus – Poderá ter sido o segundo dos Evangelhos a


ser escrito. De qualquer forma, o autor parece ter conhecido o texto de
Marcos.

Evangelho de Lucas – O texto atribuído a Lucas também parece conhe-


cer o texto de Marcos.

Evangelho de João – Texto autónomo dos restantes, seguindo outra


fonte ou tradição.

• Atos dos Apóstolos

Este livro trata da história dos primeiros cristãos, nomeadamente, a evangeli-


zação efetuada pelos Apóstolos. Tradicionalmente atribuído a Lucas, apresen-
ta-se como continuação do texto anterior deste evangelista. Em grande parte, é
centrado na atividade do apóstolo Paulo, que não conheceu o Senhor, durante a
sua vida terrena, mas que projetou o Judeo-Cristianismo inicial para o mundo
e cultura dos gentios.

202
• Epístolas

O maior grupo de textos do Novo Testamento é constituído por cartas de alguns


Apóstolos às primeiras comunidades espalhadas pela bacia do Mediterrâneo
oriental. Estas epístolas contêm recomendações, normas e explicações teoló-
gicas, para além de práticas sobre a sua organização, funções dos membros e
dúvidas de fé.

Cartas de Paulo – Romanos; Coríntios (1 e 2); Gálatas; Efésios; Fi-


lipenses; Colossenses; Tessalonicenses (1 e 2); Timóteo (1 e 2); Tito;
Filémon.

Carta aos Hebreus.

Outras cartas – As restantes epístolas são dirigidas às comunidades


cristãs como um todo. Foram nomeadas de acordo com os seus autores:
Tiago; Pedro (1 e 2); João (1, 2 e 3); Judas (irmão de Tiago).

• Apocalipse

Tradicionalmente atribuído ao apóstolo João, este escrito é de natureza total-


mente diferente dos anteriores, apresentando um texto rico em imagens e so-
nhos de carácter apocalíptico que, aludindo ao fim dos tempos, provavelmente
refletem uma leitura simbólica de acontecimentos contemporâneos vividos e
sofridos pelas comunidades cristãs em contexto do Império.

O Cristianismo em Portugal

A antiguidade da presença (séculos I a V)

Trazido por comerciantes, soldados, marinheiros, escravos e libertos, o Cristia-


nismo deve ter chegado à Ibéria nos dois primeiros séculos da era cristã. Paulo
refere, na Carta aos Romanos, a intenção de evangelizar na Península. Tiago
foi miticamente colocado (possivelmente no século VII) a fazer essa tarefa,

203
sendo depois sepultado o seu corpo no local do «campo de estrelas» ou do
«campo de estelas», nascendo no século IX um dos maiores locais de peregri-
nação cristã – Santiago de Compostela.
Nenhum dos Apóstolos deve ter aportado em terras tão periféricas à bacia do
Mediterrâneo. Mas, qualquer que tenha sido a data da chegada da religião cristã
ao extremo ocidental da Europa, ela foi, decerto, bastante antiga. Numa for-
ma de difusão semelhante, em grande parte do Império, o Cristianismo deve
ter-se implantado nos grandes centros urbanos e ao longo das vias terrestres e
aquáticas. Os pagani (os pagãos em linguagem cristã) eram os camponeses, os
campesinos, mais arreigados às tradições e menos permeáveis às religiões de
salvação, típicas do mundo urbano.
No que diz respeito aos primeiros séculos da nossa era, referências de alguma
segurança são as de Ireneu de Lião, de finais do século II, no seu Adversus hae-
reses (entre 182 e 188), e de Tertuliano, início do século III, na obra Adversus
Iudaeus, em que referem comunidades florescentes de cristãos na Ibéria. Tal
como as tradições relativas a Paulo e a Tiago, também os sete «personagens
apostólicos», enviados de Roma, por Pedro, aquando das perseguições decre-
tadas por Nero, carecem de mais elementos, permanecendo no campo do mito.
As proximidades mediam-se, no fundo, pelos ritmos e rotas comerciais, por
onde circulavam bens, mas também pessoas. O Norte de África deve ter tido
um peso muito grande nas emergentes comunidades cristãs dos territórios pe-
ninsulares.
Esta proximidade com o continente africano depreende-se claramente pela for-
ma como é gerido o incidente que é, também ele, o mais antigo documento
sobre a organização das comunidades cristãs na Ibéria. Em 254, em plena per-
seguição decretada por Décio, dois bispos são acusados de apostasia, de terem
renunciado à sua fé para salvarem a vida. De facto, os bispos de Mérida, Mar-
cial, e de Leão-Astorga, Basilides, terão adotado práticas rituais pagãs, median-
te as quais se salvaram da pena capital.
Obrigados a renunciar às cátedras, pela eleição de outros bispos para os seus
lugares, eles não aceitaram a resolução. As comunidades escreveram, então, a
Cipriano de Cartago, pedindo conselho. Escreveram também a Roma, mas a
resposta de Cipriano terá sido a mais importante para a comunidade ibérica.
No seu escrito sinodal, Cipriano defendia o afastamento dos bispos lapsi (que
apostataram para se livrarem da morte).
Se estes dois bispos fugiram à morte, renegando a sua fé, em 303, com a per-
seguição de Diocleciano, a Península Ibérica já contribuía com muitos mártires

204
para as listagens cristãs, estando referenciadas as cidades de Mérida, Lisboa,
Ávila e Évora.
Pela mesma altura (300-303), decorreu o Concílio de Elvira, e nele estiveram
presentes bispos de várias cidades, resultando desta reunião um conjunto de
cânones em torno do afastamento dos cristãos da convivência com os pagãos,
do celibato dos clérigos de ordens maiores, entre outros assuntos prementes,
para uma comunidade religiosa ainda em organização e, em certa medida, sig-
nificativamente rigorista.
A nível de implantação e de dinâmicas sociais, com a liberdade de cultos a par-
tir de 313, com a proibição de sacrifícios pagãos em 341, e com a oficialização,
por Teodósio, do Cristianismo como religião de Estado, o Cristianismo implan-
tava-se no terreno e, nesse século, aparecem as primeiras uillae com basílicas,
como o caso de Torre de Palma (Monforte) ou São Cucufate (Vidigueira), para
só falar em casos mais conhecidos.
Neste mesmo século IV, já em Lisboa existia um bispo, Potâmio, primeiramen-
te seguidor da normatização de Niceia, mas, depois, convertido ao Arianismo.
De resto, no século V, o século da queda oficial do Império Romano do Oci-
dente, chegavam os povos germanos já antes convertidos ao cristianismo, mas
à versão ariana.
Nestes primeiros séculos de cristianismo peninsular, outra heresia ganhava sig-
nificativos adeptos: o Priscilianismo. Esta doutrina perdurou, pelo menos, até
finais do século VI, sendo ainda condenada pelo I Concílio de Braga, em 561.
Num quadro político e militar, onde os chamados povos bárbaros imperavam,
pelo menos desde 409/411, Paulo Orósio marca literariamente um dos pontos
altos do cristianismo antigo, na Península Ibérica. Inspirado em Santo Agos-
tinho, autor da Cidade de Deus, Orósio escreve a sua Historiarum adversus
paganos, uma apologia do Cristianismo, perante a desagregação do Império
Romano.
Pelo mesmo século, no Norte do atual Portugal, São Martinho de Dume dava
ecos da organização, expansão religiosa e luta contra o paganismo, na sua obra
De correctione rusticorum, condenando as práticas religiosas politeístas e su-
perstições que se mantinham lado a lado com a fé em Cristo.

205
Na construção de uma identidade

Portugal, na sua história mais recuada, enquanto reino, enquanto unidade


geopolítica coesa e com estabilidade de fronteiras, está fortemente marcado por
uma dupla força centrada no universo religioso cristão: o da intrínseca proximi-
dade do Reino à Igreja de Roma, nos seus primeiros séculos de vida.
Essa dupla marca encontra-se em dois aspetos totalmente centrais na possibi-
lidade territorial, um deles, geral; o outro, específico. Por um lado, e tal como
todo o restante Ocidente medieval, mais que reinos, para lá da ideia de Portu-
gal, havia a grande mole que identificava o todo coletivo, a ideia de «Cristanda-
de» (a palavra nasce, em Portugal, exatamente no século em que as definições
de fronteira se estabilizam). Por outro lado, a viabilidade do reino de D. Afonso
Henriques teve um forte apoio, melhor dizendo, um garante essencial, na re-
lação que então se estabeleceu com o Papado, e que culminaria na bula Mani-
festis probatum (1179) em que o já autodenominado monarca foi reconhecido,
como tal, pelo Papa.
De facto, e debruçando-nos sobre o primeiro caso, podemos afirmar que é toda
a noção de organização do mundo que tem, em dados imaginários e simbólicos,
os principais referentes da construção geográfica. Mais que identidades políti-
cas autónomas, a cultura medieval, onde Portugal logicamente se inclui, tinha
como fundamentais referentes do espaço categorias simbólicas e espirituais. A
identidade vigente era, essencialmente, religioso-simbólica, ainda que já se lhe
reconheçam laivos de dimensão nacionalista.
A identidade coletiva tinha na mítica Roma, tomada como cabeça da Cristan-
dade, a constante chama de um Império cristão, ideia recorrente e acentuada no
confronto com o outro, o árabe, o islâmico, o mouro, que, algumas vezes colo-
cou em perigo os seus limites. A casa real de que Carlos Magno vai ser a figura
mais conhecida, consegue a sua grande notoriedade ao travar, em Poitiers, as
tropas muçulmanas (em 732, apenas 21 anos depois de entrarem na Península
Ibérica); quase quatro séculos após a queda do Império Romano do Ocidente,
havia novamente um Imperador (coroado pelo Papa, simbolicamente, na noite
de Natal do ano 800) – a ideia de cabeça da Cristandade era assumida face aos
perigos externos, face ao «outro».
De facto, a ideia de Cristandade forma-se e sedimenta-se na afirmação da di-
ferença frente aos inimigos: essencialmente muçulmanos, a sul, mas também
ortodoxos, a oriente, e bárbaros, ainda não cristianizados, a nordeste. A identi-

206
dade, em criação, acentuava-se e encontrava matéria fortificante no confronto
com a diferença religiosa dos outros.
No que diz respeito ao segundo ponto, Portugal foi uma opção do Papado, no
conjunto das reformas e das políticas levadas a cabo no século XII, nomeada-
mente, na chamada Reforma Gregoriana: ao aceitar a vassalagem de D. Afonso
Henriques, o Papado como que se colocava acima e dominando os poderes
reais e a hegemonia de Castela, no quadro peninsular. Efetivamente, a viabili-
dade deste Reino de Portugal, passou em muito pela relação simbiótica entre
um Monarca e o Papado.
Sem descurar a complexidade da questão, a ideia de cruzada, nascida pela mes-
ma época (são os Cruzados que ajudam na conquista de Lisboa, em 1147),
reside exatamente nesta noção de identidade coletiva, de pertença. Conquistar
a Terra Santa é trazer de volta à Cristandade um dos seus locais simbolicamente
mais importantes: o centro do seu mundo. A ideia de «Reconquista» cristã, na
qual o Reino de Portugal nasce, assenta neste mesmo princípio.
Pelos dois campos apontados, o que nos interessa é ver como a tal cristandade
se encontra bem presente na formulação da identidade e da factibilidade do
País. Somos parte da cristandade, tal como o era qualquer região do Ocidente
medieval; somos ainda uma possibilidade real de sobrevivência política, devido
a uma aliança com a cabeça dessa mesma cristandade. Mas mais, uma certa
noção supraidentitária, centrada numa ideia de pertença religiosa, foi comum
em Portugal até bastante tarde. Mesmo a nossa modernidade, já em pleno sé-
culo XVI, está profundamente marcada por essa forma de pertença a um grupo
lato e supranacional. Só nesse quadro se pode entender a verdadeira dimensão
da luta contra o crescente poder otomano, no Mediterrâneo, quer por parte do
imperador Carlos V, quer por parte de Felipe II de Espanha, quer por parte de D.
Sebastião de Portugal. De facto, o episódio que leva ao fim da Dinastia de Avis/
Beja e ao lançamento da matéria mítica que mais nos marcará pelos séculos
seguintes, o Sebastianismo, nasce deste quadro de luta da Cristandade contra
o Islão.
De resto, um certo ideal de cruzada, de defesa da Cristandade contra os seus
inimigos externos, está patente na forma como Afonso V, um século antes, rece-
bera o apelo papal para a luta contra a invasão otomana que destruía o que res-
tava do Império Romano do Oriente (a antiga Constantinopla caía, em 1453). O
nosso príncipe era, já em plena metade do século XV, em pleno Renascimento,
o único eco a esse apelo de Roma.

207
Neste caminho, até a interpretação, o sentido, do motor das chamadas Desco-
bertas necessita de um móbil religioso para ser plenamente entendido. Não é
que os Descobrimentos portugueses tenham tido como fundamental princípio
a conquista religiosa, mas muitos autores da época apontam a expansão da fé
como um dos desejos dos monarcas responsáveis: a expansão da fé, a busca do
mítico Prestes João, a ideia de conquista de Meca (para troca com Jerusalém)
por Afonso de Albuquerque – a teia interpretativa é complexa, implica muitos
fatores, mas o móbil religioso tem o seu lugar reservado.
Logicamente, dentro deste quadro de evolução histórica, a proximidade, a nível
identitário, é mais forte nos países do Sul do Mediterrâneo. Quando a Europa
Central e do Norte enceta o caminho da Reforma Protestante, o Sul mantém-se
ligado a Roma, de forma cada vez mais forte.

Ecos da Reforma e Protestantismo

Ao contrário do que sucedeu em Espanha, em Portugal, a Reforma Protestante


não chegou em tempo útil. São escassos os ecos desse movimento no nosso
país.
Talvez a mais antiga alusão à Reforma que se encontra na literatura portuguesa,
e que menciona o nome de Martinho Lutero, data de 29 de agosto de 1520. Está
inserta num texto enviado pelo representante de Portugal na Santa Sé, D. Diogo
da Silva. No fim do documento lê-se:

Contra aquele frade de Alemanha Martym Luther, que la faz tantas reuoltas,
fez aguora o papa humma bulla de que se ele muyto ry, segundo dizem: é esta
humma cousa que tyra o somno porque todo aquele pouo pede concílio e re-
formação.

Nas décadas seguintes, outros escritos referiram a Reforma, regra geral contra,
como João de Barros, André e Garcia de Resende, e Luís Vaz de Camões, entre
outros, mas também alguns com significativo interesse, como Damião de Góis
e Diogo de Teive.
Se fosse necessário dar nome a um possível primeiro protestante de nacionalidade
portuguesa, ele seria, eventualmente, Manuel Travassos, bacharel em Cânones,
pela Universidade de Coimbra, condenado pela Inquisição a 11 de março de
1571. Damião de Góis, também acusado pelo Tribunal do Santo Ofício, nunca

208
se confessou luterano, apesar de ter sido visita de Lutero e Melâncton, na
Alemanha.
Com poucos seguidores em terras lusas, o protestantismo luso viverá, durante
pelo menos os dois primeiros séculos da Reforma, fora do território português.
O domínio holandês no Brasil (até à ascensão da Casa de Bragança, em 1640),
assim como os contactos com colónias holandesas e inglesas no Extremo
Oriente, foram os elos possíveis numa sociedade em que dominava a censura e
o terror da Inquisição.
É neste quadro que se dá a tradução da Bíblia por João Ferreira de Almeida.
Passando primeiro pela Holanda, dirigindo-se depois para o Oriente, nas últi-
mas décadas de Seiscentos, este letrado português, primeiramente com forma-
ção católica, depois, protestante, faz uma tradução da Bíblia, diretamente das
línguas originais para português. Trata-se, sem sombra de dúvida, de um dos
maiores monumentos da língua portuguesa, o livro em português mais distri-
buído, vendido e lido do mundo, com muitos milhões de exemplares editados,
desde então.
A primeira instituição protestante a instalar-se em Portugal deveria estar ligada
aos grupos de estrangeiros que mais frequentemente aportavam a terras lusas.
Assim, e usando a ideia de um território intocável, mediante a impossibilidade
legal de, em Portugal, existirem outros espaços de culto que não os católicos, a
Igreja Reformada da Holanda, em Portugal, terá nascido dentro da embaixada
dos Países Baixos em Lisboa.
Não se sabe muito acerca da vida da primeira Igreja Evangélica de Lisboa,
organizada em 1641. Era formada por cidadãos de diversas nacionalidades e
servida por ministros luteranos, oriundos de nações de maioria reformada. É
possível que nela se reunissem anglicanos, luteranos e huguenotes. Depois do
terramoto de 1755, perde-se o contacto com tal comunidade; porém, em 1761,
surge nova comunidade – a Igreja Alemã – que ainda hoje existe.
De resto, com exceção de alguns locais de culto e de reunião, autorizados a
estrangeiros, comerciantes, em Lisboa ou no Porto, apenas na passagem do
século XVIII para o século XIX, o protestantismo em Portugal ganhou alguma
expressão.
No século XIX, uma das primeiras comunidades a aparecer terá sido a presbi-
teriana, na cidade do Funchal, na Ilha da Madeira, dirigida por James Halley.
Terá sido em 1837, muito pouco tempo depois das Guerras Liberais, em que tão
importante papel tiveram as tropas britânicas que por cá se demoraram. Nesse
ano, dois outros acontecimentos importantes se dão em Lisboa: a Colónia Bri-

209
tânica funda uma escola para os filhos dos seus súbditos, socialmente menos
favorecidos; a revista O Panorama, dirigida por Alexandre Herculano, insere
um interessante texto apologético sobre as «Escolas Domingueiras», isto é, Es-
colas Dominicais – diga-se que só no ano de 1854 se criou a primeira Escola
Dominical (também em inglês), no nosso país.
Pouco depois, a 12 de outubro de 1838, desembarcou no porto do Funchal,
vindo da Escócia, o casal Kalley. O missionário e cirurgião Robert Reid Kalley
e sua esposa iam à Madeira em busca de clima propício à saúde da senhora
Kalley, mas marcarão fortemente o protestantismo português. Com efeito, às
suas expensas, abriram um pequeno hospital e algumas escolas em diversas
localidades da Ilha. As autoridades civis, no ano de 1842, chegaram a prestar
homenagem pública ao Dr. Kalley por este seu filantrópico trabalho. Contu-
do, quando menos se esperava, levantou-se uma grande perseguição religiosa
contra o trabalho e a família Kalley. Entre 1843 e 1846, o casal Kalley e mui-
tos madeirenses, que constituíam as comunidades que os rodeavam, viram-se
forçados a deixar a Ilha da Madeira e a refugiarem-se na América. Algumas
comunidades, na América do Norte, ainda hoje se afirmam descendentes desta
diáspora.
Apesar desta perseguição, algum tempo antes, no ano de 1845, William H.
Hewitson organizava, clandestinamente, a primeira Igreja Presbiteriana no
Funchal. Era a primeira instituição protestante, de facto, em Portugal.
Na cidade de Lisboa, a primeira comunidade organizou-se, posteriormente,
por volta de 1866, sendo um dos seus ministros, nos primeiros tempos, Robert
Stwart, da Igreja Presbiteriana Livre da Escócia. Esta Igreja ainda hoje existe.
Antes, desde 1854, o movimento metodista já efetuava cultos nas minas do Pa-
lhal, Aveiro, sob a direção de Thomas Chegwin. No Porto, em 1868, e sob res-
ponsabilidade de James Cassels, a comunidade dava os primeiros passos, sendo
efetivamente organizada em 1871, pelo ministro evangélico Robert Hawkey
Moreton.
Depois destes primeiros momentos, outros movimentos se implantaram em
território nacional, uns ganhando mais seguidores do que outros. É o caso da
Igreja Episcopal Espanhola, da Igreja Anglicana, que está na génese da Igreja
Lusitana Católica Apostólica Evangélica, no ano de 1878; da Igreja dos Irmãos,
nascida pela ação de Helena Roughton (cerca de 1860); das Igrejas Congrega-
cionais, implantadas em 1879; e das Igrejas Batistas, talvez organizadas em
1888. Pelo Censos de 1900, apenas 5000 portugueses seriam cristãos não-ca-
tólicos.

210
Paralelamente aos territórios do reino, no continente europeu, nas então coló-
nias, também começava um enorme movimento evangelizador protestante. Por
exemplo, data do início do século XIX o nascimento da Igreja do Nazareno, na
Ilha Brava, no arquipélago de Cabo Verde.
Já no século XX, chegou a Portugal o movimento das Assembleias de Deus.
Foi pelas mãos de um antigo pastor batista, José Plácido da Costa (1869-1965).
Emigrado para o Brasil, no início do século, regressa a Portugal, em 1913,
depois de, em 1910, ter sido expulso da sua Igreja, por ter adotado, em con-
junto com outros elementos, a doutrina glossolálica. Em maio de 1913, batiza
a primeira crente pentecostal em Portugal. Em 1919, depois do falecimento da
sua filha, Plácido da Costa consagrou totalmente a sua vida à evangelização. A
Igreja de Lisboa foi organizada pelo sueco Jack Hårdstedt (1895-1973), e a sua
sede inaugurada a 13 de maio de 1934.

O Catolicismo, no Portugal Contemporâneo

Da religião de Estado à liberdade religiosa

O movimento liberal, que pôs fim ao chamado Antigo Regime, criando con-
dições para uma efetiva separação dos poderes, encetava uma nova fase de
relacionamento com o mundo católico. As ordens religiosas eram expulsas em
1834, e, dois anos depois, eram criados os Liceus, instância oficial para o En-
sino Médio, fechando-o, assim, às instituições religiosas. Muito valeu ao Es-
tado o confisco dos bens das Ordens religiosas, vendidos e leiloados em hasta
pública.
Com esta radical rutura com o passado, eram as instituições e as estruturas do
Estado as visadas, não o Credo. Pela Constituição de 1822, no seu artigo 17.º,
o Reino era católico. Mas mais, pelo artigo 10.º da mesma Constituição, o Es-
tado estava obrigado a ajudar as entidades religiosas, a perseguir e a castigar os
cidadãos que fugissem à ortodoxia católica.
Num século profundamente marcado por movimentos sociais, totalmente no-
vos, com dinâmicas de uma força tremenda, ao mesmo tempo que o Catolicis-
mo era religião de Estado, nos anos sessenta (1865-67), os meios intelectuais
eram sacudidos pela polémica em volta da questão do casamento civil. Pelo

211
meio, em 1848, era, finalmente, assinada uma Concordata com o Vaticano, re-
sultado de uma franca estabilização da situação.
Ao longo de parte do século, surgem fortes linhas de contestação a estas me-
didas; correntes ultramontanas agitam o tecido social, nomeadamente os mais
próximos aos valores miguelistas, mais conservadores. Fruto desta forma con-
turbada de o Estado se relacionar com o mundo religioso, é a polémica que
surge quando, em 1857, as Irmãs da Caridade – de origem francesa – são acu-
sadas de se imiscuírem em domínios do ensino. A polémica sobe às instâncias
parlamentares e ganha foros de agitação de rua. Passados cinco anos, em 1862,
essa congregação religiosa abandona o território nacional.
O País tinha sido católico ao longo de vários séculos da sua história, e assim
se mantinha na viragem de Novecentos. Neste quadro, a jovem República, pela
mão de Afonso Costa, ministro do significativamente designado Ministério da
Justiça e dos Cultos, voltava a expulsar e a extinguir as Congregações e Ordens
religiosas, lançando uma significativa perseguição ao clero.
A sua sequência principal de decretos é, para 1910: a 8 de outubro, expulsa
os Jesuítas e adota um formulário laico na correspondência oficial, abolindo a
expressão «de Cristo», na indicação do ano civil; a 10 do mesmo mês, decreta
a abolição do juramento religioso, nos atos civis; ainda a 12 do mesmo mês,
abole a quase totalidade dos feriados religiosos, transformando-os em dias úteis
de trabalho; a 3 de novembro, publica a lei sobre o divórcio; significativamente,
a 25 de dezembro, publica a lei sobre o casamento e a proteção dos filhos; e, em
1911, é de referir a lei de 20 de abril, que separa a Igreja do Estado.
No campo do ensino, a 22 de outubro, era extinto o ensino da Doutrina Cristã
nas escolas, e, no dia seguinte, eram anuladas as matrículas na Faculdade de
Teologia de Coimbra – só os alunos já em formação terminariam os seus es-
tudos. Só em 1968 voltaria a existir, em Portugal, uma instituição de ensino
teológico superior, uma Faculdade de Teologia. Esta situação manter-se-ia ao
longo de toda a I República, mas também de quase todo o Estado Novo. De
facto, o regime que nasce após a revolução de 1926 não deixa grande possibi-
lidade de crescimento ao meio teológico nacional. O cardeal Cerejeira e o pri-
meiro-ministro Salazar, apesar de algumas fortes proximidades que os uniam,
não se encontram na formulação de uma instituição teológica. A criação de uma
universidade católica completa, com todas as faculdades e autonomias neces-
sárias, era uma dimensão que o ditador não queria entregar à Igreja, apesar de
ser a Católica.

212
A Constituição republicana, votada a 21 de agosto de 1911, pela Assembleia
Constituinte, presidida por Anselmo Braamcamp Freire, afirmava de forma
clara e inequívoca, num forte articulado estrategicamente colocado entre a pri-
meira dezena de estipulações, a laicidade do Estado e a liberdade de crença. O
Estado tornava-se laico, num claro sentido anticlerical. Eis o seu articulado:

4.º – A liberdade de consciência e de crença é inviolável.


5.º – O Estado reconhece a igualdade política e civil de todos os cultos e
garante o seu exercício nos limites compatíveis com a ordem pública,
as leis e os bons costumes, desde que não ofendam os princípios do
direito público português.
6.º – Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, nem pergunta-
do por autoridade alguma acerca da que professa.
7.º –Ninguém pode, por motivo de opinião religiosa, ser privado de um
direitoou isentar-se do cumprimento de qualquer dever cívico.
8.º – É livre o culto público de qualquer religião nas casas para isso es-
colhidas ou destinadas pelos respetivos crentes, e que poderão sempre
tomar forma exterior de templo; mas, no interesse da ordem pública e
da liberdade e segurança dos cidadãos, uma lei especial fixará as con-
dições do seu exercício.
9.º – Os cemitérios públicos terão carácter secular, ficando livres a todos
os cultos religiosos a prática dos respetivos ritos, desde que não ofen-
dam a moral pública, os princípios do direito público português e a lei.
10.º – O ensino ministrado nos estabelecimentos públicos e particulares fis-
calizados pelo Estado será neutro em matéria religiosa.
12.º – É mantida a legislação em vigor que extinguiu e dissolveu em Por-
tugal a Companhia de Jesus, as sociedades nela filiadas, qualquer que
seja a sua denominação, e todas as congregações religiosas e ordens
monásticas, que jamais serão admitidas em território português.

Todo o anticlericalismo desenvolvido desde o início do movimento republica-


no, dezenas de anos antes, e culminante na Revolução de 5 de outubro de 1910,
estava aqui patente numa situação legal, completamente nova.
Pela mesma mecânica que conduz as sociedades humanas a encontrar os equi-
líbrios antes estabelecidos, o Estado Novo mais não fez que afirmar a catolici-
dade da Nação, como que respondendo, de forma oposta, à visão e às práticas
executadas e preconizadas pela Constituição de 1911 e por sucessivos governos

213
desde 1910. Afirmando genericamente a liberdade religiosa, herança impossí-
vel de perder da I República, assumia e levava para o campo do ensino a noção
de que a Nação tinha uma religião: a Católica. Vejamos a Constituição aprova-
da por plebiscito, a 19 de março de 1933:

Art. 8.º – Constituem direitos [...]: 3.º A liberdade e a inviolabilidade


das crenças e práticas religiosas, não podendo ninguém por causa delas ser
perseguido, privado de um direito, ou isento de qualquer obrigação ou dever
cívico. Ninguém será obrigado a responder acerca da religião que professa, a
não ser em inquérito estatístico ordenado por lei.
Art. 42.º, § 3.º – O ensino ministrado pelo Estado visa, além do revigoramento
físico e do aperfeiçoamento das faculdades intelectuais, à formação do carácter,
do valor profissionais e de todas as virtudes morais e cívicas, orientadas
aquelas pelos princípios da doutrina e moral cristã, tradicionais no País.

Neste articulado, era afirmada a catolicidade-base da Nação, através da adoção


dos seus princípios para constarem no modelo de ensino. A noção de anterio-
ridade e de identidade nacional são a base da justificação: orientadas aquelas
pelos princípios da doutrina e moral cristã, tradicionais no País. Logicamente,
num regime que era «robusto», a separação da Igreja do Estado, criada pelos
republicanos, era mantida. As relações seriam equacionadas à luz de um tratado
com a Santa Sé, a Concordata.
Atualmente, as relações entre a Igreja Católica e o Estado Português regem-se
através de uma Constituição que, na sua «Parte I: Direitos e deveres fundamen-
tais», «Título I: Princípios gerais», artigo 13.º (Princípio da igualdade), ponto
2.º, coloca a questão da liberdade religiosa e da não-confessionalidade do Es-
tado de forma direta:

Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer


direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça,
língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas,
instrução, situação económica ou condição social.

No seu artigo 41.º (Liberdade de consciência, religião e culto), a lei passa a


cobrir, a incluir nos seus fins e aplicações, todas as religiões, sem deixar marca

214
alguma da anteriormente tida como religião tradicional. Vejamos o texto cons-
titucional:

1. A liberdade de consciência, religião e culto é inviolável.


2. Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou
deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.
3. As igrejas e comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na
sua organização e no exercício das suas funções e do culto.
4. É garantida liberdade de ensino de qualquer religião, praticado no âmbito
da respetiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social
próprios para o prosseguimento das suas atividades.
5. É reconhecido o direito à objeção de consciência, ficando os objetores obrigados
à prestação de serviço não armado com duração idêntica à do serviço militar
obrigatório.

Alguns dados e valores atuais

Numa fase de pacificação de relações, marca do regime democrático, com uma


Comissão da Liberdade Religiosa em vigência, e com uma Concordata recen-
temente negociada, o papel do Catolicismo na sociedade portuguesa é imenso.
A Universidade Católica Portuguesa, com funcionamento completamente le-
gal, desde 1971, tornou-se um dos pólos de excelência e inovação em diversas
áreas do conhecimento. Muito do ensino elementar e secundário é pelos por-
tugueses entregue a escolas religiosas, pertencentes a congregações ou ordens
(especialmente os Jesuítas, Dominicanas, Sagrado Coração de Maria, Maristas,
entre outras), ocupando alguns dos mais elevados lugares nas avaliações que
anualmente são publicadas pelas entidades educativas competentes. O papel so-
cial continua a ter um destaque bastante grande no universo das misericórdias,
bem como no apoio, muitas vezes informal, de muitas organizações e institutos
laicais, tal como de simples paróquias.
A nível nacional, a Igreja Católica, em Portugal, organiza-se em torno da estru-
tura dos bispados, em número de 21, seguindo em muito a estrutura adminis-
trativa dos distritos: Algarve, Angra, Aveiro, Beja, Braga, Bragança-Miranda,
Coimbra, Évora, Funchal, Guarda, Lamego, Leiria-Fátima, Lisboa, Portalegre-
-Castelo Branco, Porto, Santarém, Setúbal, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu.
Para as Forças Armadas, existe ainda um Vicariato Castrense.

215
Numericamente, a Igreja Católica é a entidade religiosa mais importante no
País. Uma parte muito significativa da população nacional afirma ser católica.
Segundo o Censos de 2011, 81% dos portugueses declararam ser católicos.
Nessa análise populacional (onde a resposta não era obrigatória, e que apenas
incidia sobre os maiores de 15 anos de idade), verifica-se ainda que, apesar de
alguma homogeneidade nacional, algumas regiões apresentam valores franca-
mente maiores que outras. De facto, nenhuma das regiões apresenta valores
que remetam o catolicismo para a ordem da simples maioria, mas é interessante
verificar que a Sul do Tejo os valores descem para valores na casa das sete deze-
nas. No restante País, Norte e Ilhas, os valores andam sempre muito próximos
dos noventa por cento, quando não acima desse valor.
Na leitura desse mesmo Censos, verificamos ainda que os valores para Protes-
tantes e Ortodoxos eram, na altura, bastante baixos, sendo que era no Algarve
que se encontravam números ainda assim superiores. No Norte, mais católico,
os valores eram mais próximos do zero.

216
Islão
Comunidade de Crentes | Umma

Paulo Mendes Pinto


Islão

Comunidade de Crentes | Umma

s Muçulmanos são cerca de 1,6 mil milhões, em todo o mundo, concen-


O trando-se predominantemente na Ásia, no Médio Oriente e em África.
Têm também uma presença relativamente forte na Europa, com dez milhões de
crentes, sendo mesmo, em alguns países europeus, a segunda maior religião em
número de crentes.

O Profeta

Muhammad (ou Maomé) nasceu por volta do ano 570. Foi criado por um tio,
pois perdeu o pai ainda antes do seu nascimento. Apesar de oriundo de uma
conceituada família do clã Hâshim da poderosa tribo de comerciantes dos Qo-
raysh (Coraixitas) de Meca, a desafortunada circunstância de orfandade que
envolveu o seu nascimento e meninice (pois perdeu também a mãe aos seis
anos e o avô, a quem tinha sido entregue a sua tutoria, aos oito), ter-lhe-á ditado
uma infância e juventude com muitas privações, podendo dizer-se dele que terá
conhecido a pobreza.
Para o Islão, Maomé é o mais recente e último profeta do Deus de Abraão. Nes-
te sentido, o Islão integra as chamadas «religiões do livro», isto é, as religiões
que também se identificam com essa origem comum de Abraão: o Judaísmo e
o Cristianismo.
Para os muçulmanos, Muhammad foi precedido, no seu papel de Profeta, por
Jesus, Moisés, David, Jacob, Isaac, Ismael e Abraão, entre outros.
Para os muçulmanos, é absolutamente proibida qualquer representação ou fi-
guração de qualquer um dos Profetas do Islão, isto é, dos Profetas abraâmicos.

219
Locais Sagrados

Meca

Cidade em que nasceu o Profeta. Foi aí que começaram as revelações do Alco-


rão. De início, os meios mais abastados de Meca não aceitaram, pacificamente,
a mensagem de Maomé, pelo que este se viu forçado a fugir da sua cidade e a
refugiar-se na cidade de Medina. Esta mudança, acabaria por marcar o início da
era muçulmana (ou da Hégira) que deu origem ao calendário islâmico.
Atualmente, especialmente durante o mês do Ramadão, mais de um milhão
e duzentos mil peregrinos rumam todos os anos a Meca. A importância desta
peregrinação, que deve ser feita por todo o muçulmano, pelo menos uma vez na
vida, passou a fazer parte dos Cinco Pilares do Islão. É na sua direção também
que todo o crente muçulmano faz a sua oração, cinco vezes por dia.

A Caaba

Apenas os muçulmanos podem entrar no recinto de Meca onde se encontra a


Caaba. Envergando uma túnica branca, como sinal de pureza, o crente muçul-
mano apresenta-se de forma indistinta e igual aos restantes, e só assim pode
incorporar o conjunto de peregrinos e fazer os ritos necessários para que o
preceito da peregrinação a Meca seja cumprido.
O centro do mundo muçulmano é a Caaba («construção quadrada»), que tem
cerca de 12 por 10 metros, e 15 de altura. Os quatro cantos desta construção em
mármore estão perfeitamente orientados em relação aos pontos cardeais.
Encastrada no exterior da Caaba, encontra-se a Pedra Negra, o centro da Hajj
(peregrinação), que deve ser contornada e beijada sete vezes.
Segundo a tradição árabe, ela teria caído no Jardim do Paraíso, oferecida por
Deus a Adão, para absorver todos os pecados da Humanidade. Segundo a tradi-
ção, originalmente era branca, mas tornou-se preta com a vastidão dos pecados
absorvidos, tendo sido depois purificada por Abraão, e outra vez por Maomé.

220
Medina

Na linha imaginária que une Meca e Jerusalém, Medina é a segunda cidade


santa do Islão.
Foi para Medina que o Profeta e os seus companheiros fugiram, aquando das
hostilidades de que foram alvo em Meca, no ano 622 do calendário gregoriano.
No fundo, foi em Medina que o Islão teve o seu berço. Foi em Medina que o
Profeta foi aceite como membro ativo no tecido social, regulando as práticas
sociais e religiosas, iniciando consistentemente uma nova religião.
Nessa época, talvez metade da população de Medina fosse judia, e havia tam-
bém uma grande comunidade cristã.
Parte do Alcorão é revelado ao Profeta nesta cidade (22 suras).
Foi de Medina que partiram os primeiros exércitos para o Egipto, para a Pérsia
e para a Síria; é de Medina que Maomé lança toda a sua luta contra os politeís-
tas de Meca, regressando posteriormente.

Jerusalém

Os muçulmanos consideram Jerusalém como uma das suas principais cidades


santas, a terceira, depois de Meca e Medina.
A Cúpula da Rocha é um dos locais mais sagrados para o Islão e tem, possivel-
mente, no seu interior, espaço onde se situava o local mais sagrado do Templo
de Salomão, o «Santo dos Santos». Dentro do seu espaço sagrado encontra-se
a Rocha, o solo, onde, segundo a tradição, Abraão se preparara para sacrificar
o seu filho.
Foi, ainda, neste espaço que o Profeta Maomé ascendeu ao Céu na sua célebre
«Jornada Nocturna», montado no seu cavalo Buraq, que terá deixado uma pe-
gada no rochedo.

221
Os Cinco Pilares do Islão

• Al-Shahadah («testemunho»)

É a afirmação da fé que contém o princípio fundamental da religião muçulmana:

«Não há nenhum Deus senão Alá, e Muhammad é o seu Profeta.»

A recitação sincera desta oração é a única atitude necessária para se abraçar o


Islão.

• Al-Salah («oração»)

Todo o muçulmano deve orar cinco vezes por dia. A oração, feita em comuni-
dade, em grupo numa mesquita, ou individualmente, deve ser feita na direcção
da cidade santa de Meca.

Oração da Manhã: Feita no período que vai desde a aurora ou raiar do


dia e o mais tardar até ao nascer do Sol.

Oração do Meio do Dia: Feita a partir do meio-dia solar (quando o Sol


está no zénite) até à hora da oração seguinte. À Sexta-Feira, esta oração
é feita em congregação, na Mesquita ou no lugar de culto onde estejam
reunidos um mínimo de crentes (normalmente fixado em 4), e liderados
por um Iman (hierarca que dirige o culto) ou alguém que saiba e possa
liderar a oração que é precedida de um sermão.

Oração do Meio da Tarde: Feita no meio do percurso solar, entre a ora-


ção anterior e a hora do pôr do sol.

Oração a seguir ao pôr do sol: A penúltima oração diária é feita logo a


seguir à hora do pôr do sol.

222
Oração da Noite: Normalmente feita cerca de hora e meia depois da
oração anterior, podendo ser feita até antes do raiar da aurora da manhã
seguinte.

• Al-Siyam («jejum»)

O jejum que todo o muçulmano, em plena condição física, deve fazer durante
o Ramadão. Nesse jejum o crente deve abster-se de comer, beber e ter relações
sexuais, desde o nascer até ao pôr do sol.

• Al-Zakat («esmola»)

A esmola é obrigatória para todo o muçulmano, sendo parte importante da for-


ma do crente estar em sociedade.

• Al Hajj («peregrinação»)

A peregrinação a Meca é obrigatória para todo o muçulmano que tenha meios e


saúde para a realizar. Esta peregrinação deve ocorrer, pelo menos, uma vez na
vida de cada crente.

Calendário do Islão

Com 12 meses lunares (da lua nova até à lua nova seguinte), o calendário islâ-
mico
começou no ano 622 do calendário gregoriano. Em cada ciclo de 30 anos, tem
11 anos com 355 dias e os restantes com 354 dias.

São estes os nomes dos seus 12 meses:

1. Muarrã (Muharram) [29/30 dias] 7. Rajabe (Rajab) [30 dias]


2. Sáfar (Safar) [29 dias] 8. Xabã (Shaaban) [29/30 dias]
3. Rabi I (Rabi-ul-Awwal) [30 dias] 9. Ramadão (Ramadan) [29/30 dias]
4. Rabi II (Rabi-ul-Akhir) [29 dias] 10. Xaual (Shawwal) [29 dias]
5. Jumada I (Jumad’ul-Awwal) [30 dias] 11. Dulcadá (Dhul-Kadah) [30 dias]
6. Jumada II (Jumad’ul-Akhir) [29 dias] 12. Dulijá (Dhul-Hijja) [29/30 dias]

223
Festas e Celebrações

O ciclo anual de festas do Islão assenta, com algumas variantes regionais, nos
seguintes momentos:

1 Muharram – Início do Ano Novo Islâmico, em que se comemora a saída


do Profeta Muhammad, de Meca para Medina (Hégira).

10 Muharram – ‘Aashurá. Dia de jejum em reparação das faltas do ano


anterior. Lembra-se a saída de Noé da arca e a passagem do Mar
Vermelho por Moisés.

12 Rabi-ul-Awal – Comemora-se o Nascimento do Profeta Muhammad


(cerca do ano 570 do calendário gregoriano).

27 Rajab – Celebra-se a Miraj (Ascensão): viagem nocturna do Profeta


Muhammad, guiado pelo anjo Gabriel, através dos Céus. Na companhia
de outros Profetas, orou e recebeu de Deus diversas instruções tais
como o preceito das cinco orações diárias.

15 Shaaban – Celebra-se a Noite do Perdão, em que os fiéis se dispõem


ao perdão aos seus semelhantes.

1 Ramadan – Início do mês do Ramadão, mês sagrado e de jejum.

27 Ramadan – Layat-Al-Qadr. Já perto do fim do jejum do Ramadão,


comemora-se a aparição do anjo Gabriel a Muhammad, em que lhe
comunicou a sua escolha por Deus para a missão profética, dando-se a
1.ª Revelação do Alcorão (Nuzul Qur’na).

1 Shawwal – Eid Al-Fitr. Festeja-se e agradece-se a Deus o dom de ter


suportado o jejum do Ramadão.

8-13 Dhul-Hijjah – Peregrinação a Meca. Este é o período recomendado


para o cum-primento do 5.º pilar do Islão: fazer a peregrinação a Meca,
pelo menos uma vez na vida.

224
Simbologia

O Hillal (Crescente da Lua Nova, sinal para a contagem do início dos meses,
associado a uma estrela) é, por excelência, o símbolo (não sagrado) do Islão,
assinalando a centralidade dos símbolos lunares e do próprio calendário.
Actualmente, este símbolo encontra-se presente em muitas das bandeiras dos
países islâmicos, assim como na correspondente muçulmana da Cruz Vermelha
Internacional.

A diversidade do Islão

Sunitas e Xiitas

Sem deixar claro quem deveria ser o seu sucessor na liderança da comunidade
muçulmana (a Umma), os anciãos da comunidade entenderam que Abu Bakr,
um dos primeiros convertidos ao Islão e companheiro fiel do profeta, deveria
ser o líder. Abu Bakr foi o líder até à sua morte, dois anos depois. Sucedeu-lhe
Omar que dirigiu a comunidade por dez anos; e, logo de seguida, Otman, du-
rante doze anos.
Após a morte de Otman, deu-se uma disputa em torno de quem deveria ser
o novo califa. Para alguns, essa honra deveria recair sobre Ali, primo de
Muhammad e seu genro, casado com a filha Fátima. Para outros, o califa deve-
ria ser o primo de Otman, Muawiyah. Acabou por ser eleito de Ali, em 656, mas
logo foi contestado por Muawiyah, tendo eclodido uma guerra civil, entre as
duas facções. Ali acabaria por ser assassinado, em 661, e Muawiyah conquistou
a liderança para si e para a sua família, fundando a dinastia dos Omíadas.
O conflito entre os dois campos não terminaria aqui, estendendo-se até aos dias
de hoje. Daqui resultou o surgimento das duas grandes tradições islâmicas: o
Islão Sunita (maioritária, cerca de 90%) e o Islão Xiita (da linhagem familiar
do Profeta).
O Islão Xiita está subdividido em três ramos principais, de acordo com o nú-
mero de Imãs reconhecidos: Xiitas dos Doze Imãs, Ismaelitas e Zaiditas. To-
dos estão de acordo, quanto à legitimidade dos quatro primeiros Imãs, porém,
discordam em relação ao quinto: a maioria dos Xiitas acredita que o neto de

225
Hussein, Muhammad al-Baquir, era o imã legítimo, enquanto os outros seguem
o irmão de al-Baquir, Zayd bin Ali (Zaiditas).
Os Xiitas que não reconheceram Zayd como imã permaneceram unidos durante
algum tempo. O sexto Imã, Jafar al-Sadiq (702-765), foi um grande erudito,
tido em consideração pelos teólogos sunitas. A principal escola xiita de lei reli-
giosa recebeu a denominação de «Jafari» por sua causa.
Após a morte de Jafar al-Sadiq ocorreu uma cisão no grupo: uns reconheciam
como Imã o filho mais velho de al-Sadiq, Ismail bin Jafar (m. 765), enquanto
que, para outros, o Imã era o filho mais novo, Musa al-Kazim (m. 799). Este
último grupo continuou a seguir uma cadeia de Imãs até ao décimo segundo,
Muhammad al-Mahdi (falecido, ou de acordo com a visão religiosa, desapare-
cido em 874). Os primeiros ficaram conhecidos como Ismaelitas; os que segui-
ram uma cadeia de doze imãs ficaram conhecidos como os Xiitas dos Doze; o
termo «xiita» é geralmente aplicado aos Xiitas dos Doze, que são maioritários
no Irão.

Sufismo

Do árabe, Tasawwuf, é o vocábulo genérico que designa os grupos, escolas e


correntes místicas e contemplativas. Nestes grupos, os rituais, a existência de
«santos», bem como de irmandades, é corrente.
O Sufismo é uma realidade efetivamente autónoma dos principais grupos islâ-
micos. Apesar de muitas escolas (tariqas) sufis poderem ser classificadas como
xiitas ou sunitas, ou mesmo como ambas, há algumas formas de Sufismo que
não são claramente nem de uma nem de outra, constituindo, dessa forma, uma
esfera própria da fé islâmica.

Textos Sagrados do Islão

O Alcorão

Do árabe al-qur’an, significa «a proclamação», «a leitura» (com origem no


verbo, comum em formas semelhantes em várias outras línguas semitas atuais

226
e antigas, «qr’» que genericamente significa: ler, recitar, clamar, convocar, cha-
mar, invocar, isto é, o que é para ser lido ou declamado, portanto, o livro por
excelência).
O Alcorão foi revelado a Muhammad, entre os anos de 609 e 632 do calendário
gregoriano; a primeira revelação foi recebida na cava de Hira, junto a Meca. O
Alcorão é composto de Suras (capítulos), 92 das quais reveladas em Meca e 22
em Medina, perfazendo um total de 114. Ao todo, compreende 6616 versículos.
Decorando a revelação, Muhammad recitou-a aos seus companheiros que a te-
rão escrito no material que tinham à disposição (omoplatas de camelo, folhas de
palmeira, pedras). As revelações a Muhammad foram, mais tarde, reunidas em
forma de livro. Considera-se que a estruturação do Alcorão como livro ocorreu
entre 650 e 656.

Suna e Hadith

A palavra árabe Suna significa ‘um caminho’, logo, suna do profeta significa os
caminhos do profeta, ou aquilo que é normalmente conhecido como Tradições
do Profeta - feitos, dizeres e aprovações do Profeta ao longo dos seus 23 anos
de profeta. Logo após o Alcorão, a Suna é segunda fonte da lei islâmica.
O Hadith é uma colecção das narrações durante o mesmo período. A grande di-
ferença com a categoria anterior reside no facto dos Hadiths serem classificadas
quanto ao seu estatuto, em relação aos seus textos e à sua cadeia de transmisso-
res, mediante uma análise criteriosa de veracidade.

O Islão em Portugal

Principais fases da presença islâmica na Península Ibérica

FASE 1 – 711 a 828

Iniciada a conquista em 711 por Tariq, o avançou deu-se com rapidez.


As comunidades cristãs puderam, em muitas das situações, manter práticas reli-
giosas e propriedades privadas, mediante o pagamento de um tributo.

227
A queda da Dinastia Omíada, em Damasco, e a instalação dos novos senhores
do Islão, os Abássidas, em Bagdade, trouxeram importantes alterações ao pa-
norama político do Andaluz. O único sobrevivente dos Omeias chegou à Penín-
sula Ibérica em 756, onde se intitulou emir.

FASE 2 – 828 a 929

As revoltas muladis, iniciadas nos finais do século VIII, por perda de autono-
mia com a criação do califado, vão-se prolongar durante mais de um século,
conferindo a este território um estatuto de ampla autonomia, que só viria a ser
cerceado pelas campanhas militares do futuro califa Abd ar-Rahman III (835).
O grande período das revoltas muladis no Garbe coincide com a segunda meta-
de do século IX e encontra-se intimamente ligado às ações de um chefe militar
de grande importância para a história do Ocidente peninsular, Marwan al-Jilhi-
qi, filho do governador com o mesmo nome.
A submissão dos Marwan à autoridade de Abd ar-Rahman III consumou a rea-
lização de uma campanha militar do já então califa no Garbe. A unificação
operada por Abd ar-Rahman III concluiu um século de luta pelo controlo do
território do Garbe.

FASE 3 – 929 a 1086

Para esta fase, destaca-se o papel de al-Mansur, hajib (perfeito do palácio) do


califa que conseguiu tomar o poder em Córdova. Realizou profundas reformas
militares, reorganizando o exército califal à base do recrutamento de berberes e
de mercenários cristãos. As campanhas que conduziu em território cristão (981
a 1002) levaram-no, inclusivamente, à tomada e destruição do Santuário de
Santiago de Compostela (997).
A Península Ibérica seria palco, durante largas dezenas de anos, de lutas que
expressam bem o vigor dos diferentes interesses regionais, traduzidos na frag-
mentação do território em múltiplos reinos de taifa, pequenos estados (frequen-
temente de existência efémera) politicamente independentes entre si.
A taifa mais tardia surge em Silves, em 1048. Na base deste novo poder poderá
estar uma família que já teria uma forte presença na região, eventualmente des-
de o século VIII, os Banu Muzayn.

228
A época de apogeu destes reinos independentes tem o seu término ao longo
do século XI, quando a Dinastia Abádida, sediada em Sevilha, começa a sua
expansão por toda a Península Ibérica. A estratégia hegemónica abádida culmi-
naria, em 1054, com a conquista de Silves. Apenas em 1094 a taifa de Badajoz
desapareceria.
A fragilidade de um poder central e centralizador islâmico estava longe de se
poder efectivar de facto. Ao mesmo tempo, as lutas internas entre senhores mi-
litares, entre taifas, e entre Sevilha e os poderes locais, mostraram a Afonso VI
a viabilidade de expandir o território cristão. Em 1085, este monarca conquis-
tava a mítica capital do último monarca visigodo, e colocava a marca no Tejo.

FASE 4 – 1086 a 1250

Após a conquista cristã de Toledo, Yusuf, emir almorávida a quem recorreram


muitos muçulmanos aquando das investidas de Afonso VI, decide lançar uma
ofensiva. Badajoz e Lisboa são tomadas em 1094.
Instalado na Península um poder efectivo, controlado do Norte de África, as
operações militares são uma constante perante um espaço que é tido como
alheio a um «verdadeiro» Islão. As campanhas, conduzidas entre 1090 e 1117
são um duro golpe no tradicional clima de confiança e tolerância entre grupos
religiosos.
A última dessas campanhas, pelo menos a derradeira, digna de nota antes do
efectivo declínio do poder Almorávida, é o saque e abandono de Coimbra, em
1117.
A partir de 1120, é claro o desconforto da população islâmica, face ao poder e
domínio Almorávida, religiosamente intransigente e que mantinha as popula-
ções sob um apertado controlo fiscal.
Ao longo do século XII, os reinos cristãos vão acentuar o carácter de Guerra
Santa à luta de conquista dos territórios sob domínio islâmico.
Logo, em 1147, a fronteira passa definitivamente para o Tejo com a dupla con-
quista de Santarém e Lisboa. Data também deste período a entrada dos Almóa-
das na Península.
A segunda investida cristã ocorreu entre 1166 e 1172, durante a qual teve lugar
uma tomada limitada do Alentejo, campanha conduzida por Geraldo, Sem Pa-
vor, e sucessivas razias, que causavam justificado pânico entre as populações
muçulmanas.

229
Os Almóadas levam a cabo, entre 1161 e 1195, oito campanhas militares no
Garbe. A mais notável dessas campanhas culminou no estabelecimento de
uma aliança entre Abu Yusuf Yaqub al-Mansur e o rei de Leão, aliados contra
Afonso VIII de Castela, a quem vencem na Batalha de Alarcos, em 1195, feito
notável, que permitiria ao Islão contrariar, durante alguns anos, o avanço da
Reconquista. A fronteira entre cristãos e muçulmanos ficaria fixada no rio Tejo,
durante aproximadamente 40 anos.
A fase final da presença islâmica no Garbe inicia-se após a derrota do emir
muçulmano Ibn Abd Allah Muhammnad Na-Nasir, em Navas de Tolosa (1212),
batalha que marca o arranque da Reconquista definitiva de todo o atual Alentejo
e Algarve.

A atual comunidade islâmica portuguesa

A actual comunidade de muçulmanos nacionais e a residir em Portugal cresceu


bastante nas últimas dezenas de anos, devido à imigração, nomeadamente dos
chamados
PALOP, sendo hoje entre 45 000 e 50 000 indivíduos.
Para além dos muçulmanos oriundos das ex-colónias e dos seus descendentes
já nascidos em Portugal, há hoje algumas centenas largas de imigrantes do Ban-
gladesh, da Índia e do Paquistão; dos países do Magrebe, nomeadamente Mar-
rocos, Argélia e Tunísia, bem como de países árabes como Iraque, Líbano, Síria
e Egito. Mais recentemente, Portugal tem recebido também alguns emigrantes
muçulmanos europeus, vindos dos países de Leste.
O grosso das comunidades muçulmanas encontra-se em torno das três grandes
cidades – Lisboa, Porto e Setúbal –, e ainda no Algarve, com especial presença
em Albufeira, Portimão e Silves.
A Comunidade Islâmica de Lisboa foi fundada em 1968. Chegados os anos da
descolonização, a comunidade engrossaria em valores com elementos vindos,
quer de Moçambique, alguns destes vindos antes da Índia, quer oriundos da
Guiné-Bissau.
A Mesquita Central de Lisboa, junto à Praça de Espanha, seria inaugurada em
1985, ficando concluída apenas em 2016, tendo a primeira cerimónia realizada,
nos mais recentes espaços, sido o encontro entre o Presidente da República,

230
Marcelo Rebelo de Sousa, e as comunidades religiosas, no dia da sua tomada
de posse.
A 10 de Junho de 1983, nascia uma Sala de Culto em Odivelas, reinaugurada
como mesquita, em 21 de junho de 1991.
Em Lisboa, existe ainda a Comunidade Ismaelita, totalmente autónoma das res-
tantes, com local de culto próprio e organização interna própria. A sua sede e
lugar de culto situa-se nas Laranjeiras, em Lisboa.
A sul do Tejo, a comunidade do Laranjeiro, Comunidade Islâmica do Sul do
Tejo, foi fundada em 1982. Da dinâmica desta comunidade nasceria, em 2001,
o Colégio Islâmico de Palmela.
No Porto, em novembro de 1998, era constituída a Comissão Instaladora do
Centro Cultural Islâmico do Porto. O Lugar de Culto Islâmico Hazrat Bilal era
inaugurado, em 20 de maio de 2001.

231
Fé Bahá’í
Paulo Mendes Pinto
Fé Bahá’í

ascida na segunda metade do século XIX no espaço da cultura persa, a


N Fé Bahá’í tem, na sua visão do mundo, uma dupla faceta que a diferencia
das restantes religiões mediterrânicas. Por um lado, assume-se como herdei-
ra espiritual das restantes tradições religiosas que lhe são anteriores, nomea-
damente do Judaísmo, Cristianismo e Islão, reconhecendo-as como parte do
próprio fenómeno Bahá’í; por outro lado, defende uma plena igualdade entre
os Seres Humanos, defendendo, desde a sua origem, os direitos das mulheres,
assim como a paz e a harmonia entre Estados, bem como a anulação de todos
os preconceitos.

Origens

O nascimento da Fé Bahá’í dá-se num contexto bastante importante para a afir-


mação dos seus princípios mais identitários. Nos anos 40 do século XIX, a
Europa e os Estados Unidos da América vivem a plenitude de uma avassaladora
vaga de alterações a nível do quotidiano e do conhecimento. A Revolução In-
dustrial está cavando uma profunda alteração do tradicional modo de vida; os
contributos da Revolução Científica, nomeadamente, no campo da Geologia, da
Química e da Zoologia, levam a profundas ruturas nos tradicionais paradigmas
do campo dos saberes, particularmente em domínios associados à dogmática
cristã.
Nesta fase de uma certa mundialização de saberes e de produtos, a Fé Bahá’í
enquadra-se numa visão do mundo que procura a integração e não a recusa, a
unidade e não a divisão.
Ernest Renan (1823-1892), em Os Apóstolos, de 1866, resumia muito bem a
nova forma religiosa que, ainda sob o nome do seu primeiro inspirador – o Bab
(a Porta) – era designada de Babismo: «O nosso século [XIX] teve um movi-
mento religioso tão extraordinário como os das épocas anteriores; um movi-
mento que provocou tanto entusiasmo, e em proporção teve um maior número
de mártires, e cujo porvir é ainda incerto. [...] O Babismo foi um fenómeno
considerável.»

235
Figuras centrais e fundadoras

Para os Bahá’ís, já existiria, desde o século XVII, uma profecia que apontava
para o despontar desta nova religião. Ao mestre xiíta Shaykh Ahmad-i-Ahasá’í
(1735-1834) teria sido transmitido o conhecimento, não só do lugar onde se
daria o início da Fé Bahá’í, mas também o dia, a hora e o ano em que nasceria
Bahá’u’lláh.

Bab (1819-1850)

Primeiramente apelidada de Babismo, a Fé Bahá’í teve em o Bab a sua primeira


figura e profeta. Significativamente, adoptou para sua identificação o vocábulo
Bab (que na generalidade das línguas semitas quer dizer «Porta»); Bab fazia
parte de uma linhagem especial, tratava-se de um Siyyid, um descendente de
Maomé, que dava pelo nome de Mírzá ‘Alí Muhammad. Mais significativa-
mente ainda, adoptou, também o mesmo título sagrado do profeta Maomé, Nu-
qtiyi-úlá (O Ponto Primordial, em árabe).
Ainda jovem, com 35 anos de idade, no dia 23 de Maio de 1844, na Pérsia,
proclamou ser ele o precursor, o Qá’im (Aquele que se levanta), aquele que
estaria encarregue de preparar o caminho e anunciar a vinda de uma nova figu-
ra espiritual – Bahá’u’lláh –, o chamado Grande Advento. Este acontecimento
teve lugar algumas horas após o pôr-do-sol, na cidade de Shiráz.
Esta vinda abriria uma nova era para a Humanidade que se encaminharia para
uma unificação. Bab, além de fundar uma religião independente, transmitiu os
seus ensinamentos, centrados na enfatização de uma interpretação não literal
dos Textos Sagrados, estabelecendo o conceito de que todas as religiões reve-
ladas foram transmitidas por Deus à Humanidade, de acordo com a época em
que surgiram.
A Mensagem do Bab causou grande repercussão, e tanto ele quanto os seus
seguidores foram alvo de perseguições violentas. Depois de várias vezes preso,
foi finalmente fuzilado em Tabriz, no ano de 1850, a 9 de julho, por um pelotão
de 750 soldados. Após a sua morte, calcula-se que mais de 20 000 dos seus
seguidores tenham sido também martirizados.
O sepulcro do Bab encontra-se em Haifa, na Terra Santa, no Centro Mundial
da Fé Bahá’í.

236
Bahá’u’lláh (1817-1892)

Bahá’u’lláh (em português, A Glória de Deus), Mírzá Husayn ‘Alí, de nasci-


mento, veio ao mundo no seio de uma família nobre.
Desde a mais tenra idade que se distinguiu pela sua extraordinária sabedoria,
inteligência e conhecimento. Foi um dos mais destacados apoiantes do Bab, e
como ele sofreu a tortura e a prisão. Em 1853, na prisão, teve a indicação de
que era o Prometido anunciado pelo Bab. Exilado, nessa mesma altura, por um
período de quarenta anos, percorreu as regiões e as prisões mais inóspitas do
mundo persa e otomano.
Em 1863, Bahá’u’lláh proclamou ser «Aquele que Deus tornará manifesto», o
grande manifestante de Deus, anunciado pelo Bab e pelos profetas do passado.
Quase a totalidade dos seguidores do Bab abraçou a nova revelação, passando
a denominar-se Bahá’ís e já não Babis ou Babismo.
Pregou, em pleno Islão, a unidade do género humano, em Deus e através de
Deus, independente de fronteiras, movimentos políticos ou credos religiosos.
Durante a sua vida, Bahá’u’lláh viu a sua mensagem expandir-se pela Pérsia
e Império Otomano, todo o Cáucaso, Turquestão, Índia, Birmânia, Egipto e
Sudão.
Numa efetivação, de facto, da ideia global que o Bahá’ísmo pregou, Bahá’u’lláh
redigiu epístolas sagradas e proféticas aos mais importantes governantes do seu
tempo: Napoleão III, rainha Vitória, Nicolau II, Guilherme I, Francisco José,
‘Alí Pásha, sultão da Turquia, Násiri’d-Dín, xá da Pérsia e Pio IX, papa da
Igreja Católica.
Ao longo dos anos de prisão, Bahá’u’lláh revelou centenas de Escrituras ins-
piradas que, juntamente com os Escritos do Bab e Abdu’l-Bahá, representam
as Escrituras da Fé Bahá’í. Estes Escritos Sagrados são os únicos que, pela
primeira vez na História da Humanidade e de uma grande religião, nos chegam
redigidos pelo punho e letra do seu fundador, ou assinados por ele.
O profeta bahá’í deixou um herdeiro, o seu filho mais velho, Abdu’l-Bahá, an-
tes da sua Ascensão. Com o término do ciclo ministerial de Bahá’u’lláh (1852-
1892), surge a figura do Convénio. Faleceu em 1892 e os seus restos descansam
em Bahjí, a cerca de 20 km do Monte Carmelo.

237
Abdu’l-Bahá (1844-1921)

Bahá’u’lláh designou o seu filho mais velho, Abdu’l-Bahá (Servo de Bahá),


como líder da Comunidade Bahá’í e único intérprete autorizado dos seus Ensi-
namentos. Nascido a 23 de maio de 1844, com o nome de ‘Abbás Effendi, foi
o centro do Convénio, a única pessoa autorizada a interpretar o conjunto dos
escritos sagrados dos Bahá’ís (do Bab e de Bahá’u’lláh).
Figura carismática, que acompanhou o seu pai em todos os exílios, desde os
nove anos de idade, ‘Abdu’l-Bahá foi fundamental na disseminação da Fé
Bahá’í e dos seus ensinamentos, no chamado mundo ocidental. O seu ministé-
rio espiritual decorreu entre 1892 a 1921 e, nesse período, a Fé Bahá’í esten-
deu-se aos Estados Unidos da América, Canadá, Grã-Bretanha e algumas partes
da Europa continental.
Tal como Bahá’u’lláh, também ‘Abdu’l-Bahá expressou a vontade testamental
de que Shoghi Effendi Rabbani, seu neto, se tornasse o depositário e única pes-
soa autorizada a interpretar as Escrituras Sagradas e a dirigir os destinos da Fé
Bahá’í, após a sua morte.
‘Abdu’l-Bahá faleceu a 28 de novembro de 1921, em Haifa, e está sepultado no
Monte Carmelo, no mesmo Santuário que o Bab.

Shoghi Effendi Rabbani

Com Shoghi Effendi, que dirigiu a Fé Bahá’í de 1921 a 1957, surgia a Guardia-
nia, para que em seguida, no ano de 1963, se estabelecesse – como o arquitec-
tou Bahá’u’lláh – a Casa Universal de Justiça: a autoridade legislativa e espi-
ritual máxima da Fé, compos-ta por nove membros e eleita a cada cinco anos.
Foi sob a direção de Shoghi Effendi que a Comunidade Bahá’í construiu uma
forte e sólida organização administrativa que ele dirigiu diretamente.
Os seus escritos integram, essencialmente, interpretações das Escrituras Sagra-
das Bahá’ís (do Bab, de Bahá’u’lláh e de ‘Abdu’l-Bahá).
Shoghi Effendi faleceu em novembro de 1957.

238
Calendário dos meses da Fé Bahá’í

O ano religioso da Fé Bahá’í, cujo calendário começou em 1844, tem início no


Equinócio da Primavera (fixado no dia 21 de março do Calendário Gregoria-
no), é solar e compõe-se de 19 meses de 19 dias. No final de cada ano, entre o
décimo oitavo e o décimo nono mês, o calendário é acertado com o ciclo solar,
intercalando-se 4 dias, nos anos comuns, ou 5, nos anos bissextos. Os dias são
contados a partir do pôr-do-sol, e os meses são identificados pelo nome de al-
guns dos atributos de Deus:

1. Bahá (Esplendor)
2. Jalál (Glória)
3. Jamál (Beleza)
4. Azamat (Grandeza)
5. Núr (Luz)
6. Rahmat (Misericórdia)
7. Kalimat (Palavras)
8. Kamál (Perfeição)
9. Asmá (Nomes)
10. Izzat (Força)
11. Mashíyyat (Vontade)
12. Ilm (Sabedoria)
13. Qudrat (Poder)
14. Qawl (Discurso)
15. Masá’il (Perguntas)
16. Sharaf (Honra)
17. Sultán (Soberania)
18. Mulk (Domínio)
19. Alá (Sublimidade)

239
Festas e celebrações

1 de março – Naw-Ruz (Início do Ano Novo Bahá’í).


21 abril – 1.º dia do Ridvan. Festival que se prolonga por 12 dias – a maior
celebração da Fé Bahá’í –, em que se comemora a Declaração de
Bahá’u’llah (1863), pronunciada às 16 horas.
29 abril – 9.º dia do Ridvan.
2 maio – 12.º dia do Ridvan.
23 maio – Comemora-se a Declaração do Bab (1844). O início da comemoração
dá-se 2 horas após o pôr do Sol do dia anterior.
29 maio – Ascensão de Bahá’u’llah (1892), às 3 horas da manhã.
9 julho – Martírio do Bab (1850), cerca do meio-dia.
Aniversário do Bab (1819). Esta comemoração a que se segue a de Bahá’u’llah,
no dia imediato, tem lugar no primeiro dia após a 8.ª lua nova depois de
Naw-Ruz (Ano Novo Bahá’í)
Aniversário de Bahá’u’llah (1817). Dia seguinte ao da comemoração de o Bab.

Símbolos

A estrela de nove pontas é, normalmente, utilizada pelos Bahá’ís como um


emblema que pretende ilustrar a Unidade de Deus e dos Seus Manifestantes.
É o símbolo do universalismo e do Universo; aquilo que abarca e representa
o Todo. Sendo o número mais elevado, ele representa a consumação. Na Fé
Bahá’í, o número nove (9) reveste-se de uma enorme carga simbólica, estando
patente na arquitectura de muitas das suas instituições.

As Instituições

O universo religioso dos Bahá’ís não integra nenhuma função sacerdotal com
o significado corrente no Cristianismo. A igualdade, como um dos princípios

240
fundamentais da sua fé, é aplicada a todas as formas de relacionamento entre
indivíduos, comunidades e instituições.
A administração e as instituições bahá’ís funcionam de acordo com os princí-
pios de igualdade proclamados por Bahá’u’lláh, cimentados em instituições por
Ele formuladas que foram, ao longo do tempo, trazidas à luz do dia.
Estas instituições, que serão tratadas abaixo, são administradas por corpos elei-
tos a nível internacional, nacional ou local, conforme a sua natureza e função.
Os processos de eleição excluem a existência de partidos ou de nomeações e
impedem qualquer situação próxima de uma eventual propaganda.
Todos os cargos, funções e instituições estão obrigados a uma regra basilar de
funcionamento: o processo de tomada de decisão é sempre realizado através
da consulta, na qual cada membro da instituição tem os mesmos direitos e as
mesmas possibilidades de se expressar.

A Casa Universal de Justiça

Constituída por nove membros eleitos, de cinco em cinco anos, por todas as
Assem-bleias Espirituais Nacionais do mundo, a Casa Universal está sedeada
em Haifa, no Centro Mundial da Fé Bahá’í.
Tal como sucede nos restantes monoteísmos mediterrânicos (Judaísmo, Cris-
tianismo e Islão), também a Fé Bahá’í está profundamente ligada à tradicional-
mente chamada, e pelos Bahá’ís incorporada, Terra Santa. De facto, o Centro
Mundial Bahá’í situase aí porque na Terra Santa estão os túmulos das três figu-
ras centrais da sua fé: o Bab, Bahá’u’lláh e ‘Abdu’l-Bahá.
Por decisão de Bahá’u’lláh, o corpo administrativo da Fé Bahá’í também aí
está estabelecido. A Casa Universal de Justiça dirige o desenvolvimento da Fé
e implementa os ensinamentos de Bahá’u’lláh na comunidade.

Assembleia Espiritual Nacional

Tal como existe uma assembleia de nove elementos eleitos a nível mundial, na
casa Universal de Justiça, também a nível nacional a estrutura é significativa-
mente semelhante: uma assembleia de nove membros eleitos é responsável pela
administração dos assuntos da Fé Bahá’í a este nível nacional.
Todos os anos, os crentes Bahá’ís elegem os delegados à Convenção Nacional
que elege a Assembleia Espiritual Nacional. Esta, tem por missão, estimular,

241
unificar e coor-denar as atividades dos Bahá’ís e dirige os assuntos gerais da Fé,
no país em questão, nunca esquecendo a consulta na tomada de decisão.

Assembleia Espiritual Local

Mantendo a simbologia e a funcionalidade dos grupos de nove indivíduos, tam-


bém a estrutura mais pequena na organização bahá’í se baseia na eleição da
Assembleia Espiritual Local, a direcção das comunidades citadinas, que consta
de nove membros que têm jurisdição sobre todos os assuntos da Comunidade
Bahá’í nessa esfera local.

Princípios Básicos da Fé Bahá’í

Fé e devir da Humanidade

Num entendimento linear da História e das diversas etapas da Revelação – co-


meçada em Moisés, seguida por Buda, Zaratrusta, Jesus, Maomé, e terminada,
por agora, em Bahá’u’lláh – os Bahá’ís consideram que a Humanidade está a
chegar à etapa da sua maturidade, a que corresponderá a unificação de toda a
Humanidade, como se de uma família se tratasse, e a construção de uma socie-
dade pacífica e global.
Nesse sentido, os Bahá’ís reconhecem em Bahá’u’lláh o novo Enviado de Deus
e regem as suas vidas segundo os princípios e ideais por ele enunciados.
A nível de origem, e apesar da fé ter nascido e se desenvolvido primeiramente
no espaço persa e otomano islâmicos, os Bahá’ís constituem um dos grupos
religiosos mais diversos do mundo, e reconhecem que esta diversidade é o seu
mais importante património, imagem da sua vocação unificadora de tradições e
de superação de diferendos e distâncias culturais.
Superando as diferenças lógicas de uma história diferente para cada tradição,
região e religião, o objectivo fundamental da Fé Bahá’í é o seu crescimento
espiritual através da transformação pessoal e social. Para o bahá’í, esta trans-
formação consiste no desenvolvimento das capacidades latentes na pessoa e
no seu contexto social, qualquer que seja o enraizamento social, cultural ou
nacional.

242
Nesta ideia de uma fraternidade social e individual, o indivíduo bahá’í procura
ser fonte e motor do bem social, reconhecendo no seu próximo a pessoa cujas
necessidades deve colocar antes das suas próprias. Nesta visão construtiva da
integração social, sempre vocacionada para uma dimensão de unidade mundial,
o bahá’í entende que o amor ao próximo se concretiza no serviço incondicional
à causa da Humanidade.
Nesta visão de unidade global, os Bahá’ís dão um lugar de destaque à diversi-
dade de cada indivíduo, afirmando ser essa a base fundamental do fenómeno
da consulta, fonte primeira de todo o processo decisório nas várias estruturas
que regem as comunidades. Defendendo esta unidade na diversidade, afirmam
que a expressão formal desta unidade é o princípio de «cidadania mundial»,
rejeitando, assim, qualquer ideia de uniformidade.

Os objetivos da Fé Bahá’í

Os propósitos fundamentais da Fé Bahá’í encontram-se explicitados nos cha-


mados Onze Princípios de ‘Abdu’l-Bahá:

1. A busca da verdade;
2. A unidade do género humano;
3. A religião deve ser causa de amor;
4. A unidade da religião e da ciência;
5. Preconceitos de religião, raça e ódio, a guerra e a carnificina são
causadas por um ou outro desses preconceitos;
6. Oportunidades iguais para a obtenção dos meios de subsistência;
7. A igualdade dos homens perante a lei;
8. A paz universal;
9. Que a religião não deve se intrometer nas questões políticas;
10. A educação da mulher;
11. O poder do Espírito Santo é o único meio para se realizar o
desenvolvimento espiritual.

243
Ou, materializados em princípios e objectivos mais actuais:

O abandono de todas as formas de preconceito;


A plena igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres;
O reconhecimento da unidade e da relatividade da verdade religiosa;
A eliminação dos extremos de pobreza e riqueza;
A concretização de uma educação universal;
A responsabilidade de cada indivíduo na pesquisa independente da ver-
dade;
O estabelecimento de uma federação mundial de nações;
O reconhecimento de que a verdadeira religião está em harmonia com a
razão e com a busca do conhecimento científico.

Para a concretização destes princípios, os Bahá’ís defendem:

Adopção de uma língua universal auxiliar;


Abolição dos extremos de riqueza e pobreza;
A instituição de um tribunal mundial para a resolução das disputas entre
as nações;
A glorificação da justiça como princípio regente da sociedade humana;
A exaltação do trabalho à posição de Adoração, quando realizado em
espírito de serviço;
A religião como baluarte para a protecção de todos os povos e nações;
Resolução espiritual dos problemas económicos;
Estrita obediência ao governo do próprio país.

Alguns princípios proclamados por Bahá’u’lláh

A Unidade da Humanidade – O princípio da unidade da Humanidade é o cen-


tro dos Ensinamentos de Bahá’u’lláh. A Unidade Mundial é o último estágio
no desenvolvimento da Humanidade – a maturidade – e será construído sobre
o reconhecimento individual de que esta Unidade da Humanidade é o princípio
espiritual central da vida de hoje.

244
Investigação Independente da Verdade – Esta é a primeira vez na História da
Humanidade em que a busca independente da verdade é uma prática possível.
A verdadeira investigação independente exige muito mais do Homem que a
aceitação cega de uma Fé ensinada por outrem.

A base comum de todas as religiões – Os Bahá’ís acreditam que todas as gran-


des religiões do mundo têm origem divina. Todas foram reveladas por Deus em
lugares e épocas diferentes, segundo as necessidades e capacidades de diferen-
tes povos.

A harmonia entre Ciência e Religião – Bahá’u’lláh ensina que a religião e a


ciência estão em harmonia entre si. A verdadeira religião e a verdadeira ciência
nunca se contradizem. Ambas apresentam aspectos complementares da verda-
de.

Igualdade de Direitos entre Homem e Mulher – Pela primeira vez na história


da religião, o Fundador de uma religião proclamou a igualdade de direitos entre
Homem e Mulher. Bahá’u’lláh não fez esta proclamação como um ideal ou uma
esperança piedosa, mas descreveu-a como um factor básico na criação de uma
Nova Ordem Mundial. Esta proclamação é apoiada por leis, pondo ao mesmo
nível a educação para as Mulheres e para os Homens e a igualdade de direitos
na sociedade.

Eliminação dos Preconceitos – A verdadeira solução para os preconceitos é a


consciência de Unidade da Humanidade. Quando uma pessoa alcançar a cons-
ciência espiritual da Unidade da Humanidade pode superar os preconceitos pes-
soais.

Educação obrigatória universal – O conhecimento é um dos grandes dons de


Deus para o Homem e aqueles que se privam da oportunidade de adquirir co-
nhecimentos viverão uma vida mais limitada que os outros.

Paz universal – A base fundamental dos ensinamentos da Fé Bahá’í é a de pro-


mover a Unidade da Humanidade e promover a Paz Mundial.

245
A Fé Bahá’í em Portugal

A origem da Comunidade Bahá’í de Portugal remonta ao ano 1926, com a visita


de 2 crentes bahá’ís, que foram entrevistados para os jornais Diário de Notícias
e Diário de Lisboa, proferiram conferências no Clube Rotário e ofereceram
livros à Biblioteca Nacional.
Em 1946, foi eleita em Lisboa a primeira Assembleia Espiritual Local. Em
1962, foi eleita a Assembleia Espiritual Nacional dos Bahá’ís de Portugal.
Durante o regime anterior ao 25 de Abril de 1974, a Comunidade Bahá’í foi
submetida a vigilância policial, limitação de reuniões e proibição de activida-
des públicas. Esta situação mudou com a proclamação da liberdade religiosa
na Constituição democrática. Em 1975, a Comunidade Bahá’í de Portugal foi
reconhecida legalmente e inscrita como Pessoa Religiosa Colectiva.
A Comunidade Bahá’í de Portugal experimentou um grande crescimento. Ac-
tualmente, vários milhares de bahá’ís residem em mais de 150 localidades do
Continente, Açores e Madeira. Existem Assembleias Espirituais Locais em vá-
rias cidades e vilas, incluindo quase todas as capitais de distrito. A Comunidade
Bahá’í conta com um centro administrativo próprio em Lisboa, onde está se-
deada a Assembleia Espiritual Nacional dos Bahá’ís de Portugal.
Nos últimos anos, a Comunidade Bahá’í de Portugal levou a efeito várias con-
ferências. Nos Institutos Bahá’ís são realizados regularmente seminários, Es-
colas de Verão e de Inverno, além de cursos que, assim como outros realizados
em diferentes pontos do País, procuram fomentar o estudo dos Ensinamentos
bahá’ís, em torno de temas tais como a educação, a família, a paz, a abolição de
preconceitos, a promoção da condição das mulheres, a unidade da humanidade,
entre outros.
Para além do seu carácter confessional, a Comunidade Bahá’í deu início, no
ano lectivo 1999/2000, a aulas no Ensino Público, após autorização do Minis-
tério da Educação. A Comunidade Bahá’í de Portugal participa com programas
próprios na série A Fé dos Homens e também no programa Caminhos, os quais
são emitidos na RTP2.
Este trabalho social concentra-se fundamentalmente em seis áreas: a defesa
dos direitos humanos, a promoção da condição da mulher, o desenvolvimento
social e económico, a educação de valores, o meio ambiente e o apoio às inicia-
tivas da Organização das Nações Unidas e dos seus organismos. As principais
actividades incluem campanhas de sensibilização das populações, colóquios,

246
publicações, cursos de formação, conferências públicas e aulas de educação
moral.

247
Ateísmo
Luís Ferreira Rodrigues
Ateísmo

omo a própria etimologia da palavra o indica, «a-teísmo» significa «sem


C deus». Ou seja, contrariamente à opinião generalizada, o ateísmo não im-
plica necessariamente a recusa, mas sim, a mera dispensa de deus enquanto
conceção existencial. Nesse sentido, o ateu é simplesmente alguém para quem
a existência de Deus, deuses, ou fenómenos que possam pressupor uma existên-
cia divina, não é plausível ou sequer necessária.

Conceções de Deus

Quando o ateísmo dispensa a crença na existência de Deus, deuses ou fenó-


menos que possam pressupor essa existência, dispensa a crença nas seguintes
concepções de deus:

Ser Inteligente

No que diz respeito à sua identidade, esta conceção assume que deus é singular
(nomeadamente, o Deus das tradições abraâmicas) ou pode coexistir com ou-
tros deuses (deuses das tradições pagãs); no que diz respeito ao poder, grau de
decisão e intervenção, deus pode ser absolutamente omnipotente, omnisciente e
omnipresente ou, pelo contrário, não possuir em pleno esses poderes. Contudo,
o que unifica todas estas características aparentemente distintas é a natureza
intelectiva que se atribui ao agente divino: independentemente do seu poder,
presença ou ausência do mundo natural (ou seja, da sua imanência ou transcen-
dência), deus é um ser pensante, investido de uma identidade própria.

Energia ou Força

Nesta conceção, a divindade não tem identidade, existindo enquanto energia ou


força diáfana imensurável. Conceitos como o de Karma (ou seja, o decorrente
das ações intencionais que determina uma condição existencial, entre várias
formas biológicas, ao longo do tempo e do espaço), o de Tao das Tradições es-
pirituais do Oriente, ou o do Panteísmo (deus, enquanto energia ou força e Cau-

251
sa original do que existe, da qual emana toda a realidade do mundo), refletem
o conceito de absoluta ausência de um agente pessoal dotado de volição cons-
ciente; ou seja, ele é tudo, ele está em tudo o que existe. É importante salientar
que, para este conceito de divino, «energia» ou «força» são tomadas como algo
não mensurável (ao contrário das forças físicas como a gravidade ou o electro-
magnetismo, por exemplo), apresentando-se assim como meras abstrações ou
suposições e não como evidências de natureza real e material.

«Algo»

Nesta conceção, deus é indefinível e incompreensível. No entanto, assume-se


que exista enquanto «algo» que transcende a verificação e a compreensão hu-
mana.
Das três concepções referidas, a primeira refere-se a deus como um agente com
existência e essência; na segunda, deus tem existência, mas não tem essência;
na terceira, deus é indefinível na sua existência e essência. O ateísmo dispensa
a crença em qualquer das tradicionais conceções de deus, alicerçando a sua
posição não-crente em múltiplas justificações – entre as quais se elencam as
seguintes:

Razões da Não-crença em Deus

Unanimismo

Dado que o número de pessoas que acredita em deus é bastante superior ao


número daquelas que não acreditam, pressupõe-se que a dimensão quantitativa
é suficiente para legitimar a crença em deus. Para os ateus, pelo contrário, a
unanimidade não legitima a verdade. Na História humana, foram muitos os
grandes pensadores, cujos argumentos minoritários, em contravenção com o
senso comum, vieram a ser considerados, mais tarde, como inovadores e de
escorreita idoneidade, buscadores irrepreensíveis da verdade. Para os ateus, os
argumentos quantitativos que pretendam legitimar a crença em deus, são mais
facilmente explicáveis por razões de estatística sociológica ou psicológica de

252
massas do que por meios de aferição verificável de qualquer pendor sobrenatu-
ral na vida dos humanos.

Teleologia

A teleologia investiga a noção de finalidade dos seres e das coisas, pressupondo


a ideia de um propósito para a existência da Humanidade e do Universo. Para
o ateísmo, a ausência de um Ser inteligente, energia, força ou «algo», pressu-
põe a inexistência de um propósito teleológico: não existindo algo ou alguém
a conduzir a criação ou a extinção do ser humano e do Universo, não existe
igualmente uma finalidade ou propósito último. Todos os processos que podem
pressupor essa condução, resultam da simples composição e funcionalidade
física do mundo material.

Cosmologia

O argumento cosmológico defendido pelos teístas, refina o argumento teleoló-


gico, afirmando que a composição e funcionalidade do Universo apresentam
variáveis físicas de tão evidente perfeição, cuja adequação a uma finalidade úl-
tima, só pode ser entendida em função de uma Presença Primeira de que o Cos-
mo é parte. Se alguma dessas variáveis (por exemplo: força da gravidade, elec-
tromagnetismo, força fraca e forte) não existisse ou fosse diferente da realidade
que se conhece, este Universo em que vivemos era absolutamente impensável.
Os ateus, pelo contrário, não acreditam na ori-gem premeditada e pré-determi-
nada dessas variáveis, recusando-se a assumir que elas existam devido a uma
qualquer intencionalidade metafísica ou divina como é denominada.

Ontologia

De Santo Anselmo a Alvin Plantinga, teólogos e filósofos teístas utilizam fre-


quente-mente argumentos ontológicos para justificar a existência de Deus; de
acordo com estes argumentos, pelo simples facto do homem ser o único animal
à face da Terra com a capacidade para equacionar uma «ideia de Deus», permi-
te-lhes justificar a presença dessa ideia na mente humana (tal como se ela esti-
vesse pré-programada desde a conceção) como um sinal da existência de Deus.

253
Os ateus consideram injustificada essa asserção, encontrando a resposta para a
presença de uma «ideia de deus» em razões de inscrição social ou biológica.

Moralidade

Para alguns teístas, se Deus não existisse, o mundo seria um caótico deserto
moral, onde campearia a total permissividade e desordem. Só a existência de
Deus (também Ele, um ser moral) permite a conceção de um ser humano que
deseja o puro bem e contribui, de forma abnegada, para o desenvolvimento
harmonioso da sociedade a que pertence. Os ateus rejeitam a natureza divina
da moralidade, apontando para as diver-sas contradições, como a da existên-
cia do mal, num mundo criado por um Deus bom, a verificável oposição de
conceitos de moralidade, em religiões diferentes, etc. Assim, para o ateísmo,
a moralidade não passa de uma convenção social adotada por conveniência
ou necessidade da comunidade e dos indivíduos que a compõem – a qual tem
variado ao longo do tempo, em função do contexto histórico, político, religioso,
intelectual, económico, etc.

Historicidade

Enquanto para os teístas a herança histórica constitui um repositório de elemen-


tos que permitem justificar a existência de Deus (produção de livros sagrados,
testemunhos escritos de pessoas que experienciaram o divino, etc.), para os
ateus, pelo contrário, é a própria leitura crítica dos dados históricos que não
permite corroborar a existência de Deus, devido aos seus seguintes aspectos:
falibilidade ou infiabilidade dos testemunhos, relatos que contrariam a lei natu-
ral que rege os fenómenos físicos, ausência de provas materiais para legitimar o
facto descrito, interpolações propositadas ou acidentais de documentos históri-
cos, falsificações, condicionamentos culturais, económicos ou políticos dos tes-
temunhos, ausência de corroboração por parte de partes não interessadas, etc.

Evidencialismo

Para alguns defensores do teísmo, é a própria natureza real e material de cer-


tos fenómenos que permite justificar a existência de Deus: êxtases místicos de

254
santos, milagres, exorcismos, aparições fantasmagóricas e todo um conjunto de
experiências místicas/metafísicas/mistéricas são paradoxalmente apresentadas
como provas naturais da divindade. Mais uma vez, os ateus recusam a valida-
de dessas provas, desmentindo-as através de justificações providenciadas pelas
mais variadas disciplinas científicas: Psicologia, Biologia, Física, Química, etc.
Para os ateus, qualquer relação causa/efeito que pretenda explicar um fenóme-
no, dispensa que se coloquem entidades abstratas, indefinidas, intangíveis e
imensuráveis, na equação dessa explicação.

Utilitarismo

Dada a finitude existencial do ser humano, os argumentos teístas que defendem


a continuação da vida para além da morte, revelam-se mais apelativos e recon-
fortantes do que os providenciados pelo ateísmo que defende a extinção da per-
sonalidade. Blaise Pascal (1623-1662) deu corpo a esse argumento, afirmando
que, mesmo tendo dúvidas acerca da existência de Deus, um indivíduo teria
mais a ganhar, apostando e vivendo como se Ele existisse, porque as recompen-
sas dessa aposta, em caso de ganho, seriam mais proveitosas para os teístas do
que para os ateus. Dado que esta justificação se encontra fundada numa atitude
oportunista e não numa atitude inquisitiva, os ateus recorrem precisamente a
ela para demonstrar como o interesse pessoal dos crentes é capaz de criar ou
sustentar uma realidade metafísica, apenas para justificar as suas ansiedades
existenciais e não como resultado de uma autêntica busca da verdade.

Estética

Ao longo da História da humanidade, a religião tem servido para potenciar


a criação de beleza ritual, musical e plástica: sinfonias, templos, celebrações
litúrgicas, esculturas, pinturas e todo um conjunto de manifestações artísticas
impõe-se aos sentidos das pessoas, criando deslumbramento e submissão devo-
ta. Defendem os teístas que a quantidade e a qualidade de recursos materiais e
humanos colocados ao serviço da construção desses monumentos e imagética,
é justificada pela existência das divindades para os quais os mesmos foram de-
dicados. O ateísmo refuta essa asserção e não vê porque se deva atribuir mérito
divino a realizações humanas – por mais bela ou sublime estética de que se
revistam.

255
A Filosofia do Ateísmo

Enumeradas algumas razões para a descrença em deus, é necessário esclarecer


que o ateísmo, tal como todas as filosofias ou religiões, não possue, no endou-
trinamento, uma pureza que seja obrigatoriamente perfilhada por todos os seus
aderentes ou simpatizantes. Assim, existem ateus que podem ser materialistas
ou dualistas, assumindo a asserção de certos milagres, justificando-os de forma
não religiosa, podendo chegar a defender aspetos morais de doutrina religiosa
a priori, entre outros aspectos.
Existem ainda ateus que, não aceitando a aceção mais convencional de um deus
(ou seja, a de um ser divino, sobrenatural), ainda assim não descartam a hipóte-
se da existência de domínios de conceção próxima, sob a forma de uma força,
energia ou «algo», incognoscível ou impercetível para a mente humana. Qua-
lificar essa posição de «ateísta» parece não ser a mais correta, ajustando-se-lhe
melhor a designação de agnosticismo (incapacidade do ser humano de alcançar
a verdade ou a compreensão do absoluto divino).
Não estando ainda congregados em qualquer instituição que defenda uma fór-
mula coerente ou exclusiva de «ser ateu», também a forma de estar no ateísmo
pode ser diversa e gradativa – manifestando-se quer através de uma recusa fun-
damentalista e absoluta de que deus existe, quer através de uma recusa tolerante
e moderada, aberta a aceitar o teísmo assim que provas ou factos consistentes
permitam a confirmação. No que diz respeito à sua forma de estar, podemos
igualmente distinguir os ateístas ativos (defensores militantes e prosélitos do
ateísmo, enquanto opção preferencial e a-religiosa de vida em sociedade) dos
ateus passivos (defensores do seu ateísmo, mas indiferentes às opções religio-
sas, irreligiosas ou a-religiosas da sociedade em que vivem).
Também a forma de chegar ao ateísmo não segue um padrão único, refletindo
formas diferentes e pessoais com que cada pessoa interpreta e experiencia a
vida: para alguns ateus terá sido através do inquérito filosófico ou de um envol-
vimento pessoal e existencialista que constataram ou assumiram a inexistência
de deus; para outros, terá sido através do inquérito científico da realidade; para
outros ainda, terá sido a interpretação dos factos históricos; para outros, a soma
desses e de outros factores. Nos casos mais extremos, a adopção do ateísmo
poderá ter surgido como uma reação de negação relativamente ao teísmo ou a
diversificados enquadramentos de natureza religiosa e seus valores. Quer isto
dizer que o ateísmo pode surgir como um processo sereno e gradual, através da

256
análise crítica, ou como uma reação brusca e revoltada, direcionada contra os
valores ou instituições teístas.
Conclui-se assim que o ateísmo é essencialmente uma filosofia de refutação e
não uma filosofia de confirmação; ou seja: ele constitui muito mais uma res-
posta (sempre negativa) às asserções produzidas por aqueles que defendem a
existência da Divindade, do que propriamente uma filosofia independente que
pugna por determinados valores e princípios (como o humanismo secular, por
exemplo). Pode concluir-se do exposto que o ateísmo se compreende e justifica
unicamente por oposição ao teísmo. Neste sentido, o ateísmo pode ser entendi-
do como uma filosofia de resposta.

Evolução histórica do Ateísmo

Período Clássico

Desde tempos remotos que a Humanidade se habituou a justificar a ordem cós-


mica em que vivia (e tinha dificuldade em compreender) pela existência de
deuses. Coadjuvada por sacerdotes e místicos, a elite política alicerçou cidades
e reinos em estruturas hierárquicas que privilegiavam a existência de deuses
como extensões do seu próprio poder. Em regimes pautados pela fragmentação
política e territorial, pela diversidade social, pela cultura empírica e matemáti-
ca, pelo comércio e pela existência de uma atitude crítica e cética, começou a
existir, senão uma propensão para questionar a existência de deus, pelo menos
para justificar, empírica ou matematicamente, os fenómenos que até então lhe
eram atribuídos. Diágoras de Melos, Epicuro, Lucrécio e outros tantos autores
gregos e romanos, devido às suas acérrimas censuras à superstição do devocio-
nismo pagão das sociedades em que viveram, acabaram por ganhar dos seus
contemporâneos a denominação de «impiedosos» e «ateus», mas mais por ra-
zões de inconformidade com as crenças seguidas pelos seus concidadãos do
que propriamente por se oporem à conceção de divindades. Os regimes políti-
cos em que viveram, oscilavam entre a aceitação e a perseguição de filosofias
de um certo pendor ateísta, e aqui o termo deve ser entendido pela contravenção
com as crenças instituídas – sendo de realçar o caso de Sócrates, o grande fi-
lósofo grego, que foi condenado à morte por impiedade, mas acusado também
por introduzir novos deuses.

257
Período Medieval

Com a desintegração progressiva do Império Romano e a assunção do Cristia-


nismo a religião do Império, veio a configurar-se, no Ocidente, uma instituição
– a Igreja Católica Romana – que, pelos séculos seguintes, irá controlar e mar-
car o pensamento e toda a ação político-religiosa da que viria a ser denominada
civilização ocidental.
Com o desvanecimento da filosofia, emerge a teologia; Deus passa a estar no
centro de qualquer debate ou reflexão sobre o mundo e, durante séculos, o pen-
samento escolástico (método de argumentação que conciliava a fé com a razão)
apresentou-se como a forma inquestionável de chegar à verdade. Impondo es-
sas suas verdades por meios militares (Cruzadas) ou coercivos (Inquisição), fê-
-lo em diferentes contextos de convi-vência religiosa diversificada (com o Islão
e com o Judaísmo), mas também na perseguição e banimento de movimentos
denominados heréticos do seio do próprio Cristianismo (Gnósticos, Valdenses,
Cátaros, Protestantes, etc.).
Porém, a natural erosão dos tempos haveria de provocar também reconfigu-
rações estruturais da Igreja Católica e esta foi perdendo gradualmente poder,
não só para a diversidade religiosa que se foi impondo, mas também, para os
poderes políticos fidelizados – que se foram autonomizando e transformando
cada vez mais em poderes seculares. Com a perda desta influência hegemónica
da Igreja Católica, o ateísmo pode emergir e afirmar-se como uma corrente
de pensamento viável, algo que, rara e episodicamente, aconteceu no período
medieval.

Renascença e Iluminismo

A Renascença possibilitou a redescoberta dos autores clássicos greco-romanos


e, como acima afirmado, uma cada vez maior secularização do poder político
(reflectido em obras de referência como O Príncipe de Maquiavel). A redesco-
berta desses autores trouxe, não só a mesma postura de inquiração da natureza
e do mundo, baseados na razão, como também, uma contestação aos poderes
religiosos instituídos: no primeiro caso, o surgimento da inquirição científica
(Francis Bacon) e, no segundo caso, o surgimento e implantação da Reforma
Protestante (Martinho Lutero). Da mesma forma que Copérnico desafiou a per-
ceção comum, com as suas teses sobre o heliocentrismo, também as tradições

258
clássicas e protestantes descentraram a endoutrinada «verdade» da Igreja Ca-
tólica, dando origem a uma fragmentação religiosa, cultural, política e militar
da Europa. Essa fragmentação fratricida (guerra entre protestantes e católicos)
descredibilizou a religião e fez emergir um pensamento secular mais acentua-
do. Também na área da ciência, especialmente através da obra de Isaac Newton,
percebeu-se que a natureza era explicável através de leis e relações mecânicas
de causa/efeito, compreensíveis através da linguagem matemática, dispensando
assim qualquer elaboração de ordem teológica e de intervenção divina. A reli-
gião e o espiritual retraíam-se e o ser humano, através de explicações puramen-
te naturais, emergia. Surgia assim o Iluminismo, a filosofia que pretendia «dar
luz» a explicações então obscurecidas pela penumbra místico-religiosa. Auto-
res como Voltaire, Holbach, Diderot, Hume, Meslier, La Metrie, entre outros,
quando não eram claramente ateístas (Holbach), eram pelo menos, claramente
anticlericais (Voltaire).

Ateísmo Moderno

Após a secura do medievo feudal europeu, os pensadores iluministas ansiaram


pelo surgimento de uma «República das Letras» (ou seja, uma sociedade regida
pela cultura das Luzes e pelo comércio do livre pensamento). Contudo, o que
se seguiu, foi o Despotismo Iluminado – um conceito de exercício de poder que
misturava o desejo de progresso e cultura com atitudes absolutistas, aristocráticas
e conservadoras (por exemplo: Catarina da Rússia, Frederico da Prússia e o
próprio Marquês de Pombal) que culminam em Napoleão e as guerras que
empreendeu em inícios do século XIX. Este século foi particularmente fértil
em ideias que, contrariando o romantismo vigente, propuseram alternativas
materialistas – como o Positivismo (que defende a construção do conhecimento
humano alicerçado em bases científicas e empíricas, e recusando o que não
possa ser demonstrado experimentalmente) e mais importante para a história do
ateísmo, as teses de Ludwig Feurbach, descritas na Essência do Cristianismo:
deus é uma projeção mental daquilo que a Humanidade almeja – o supremo
amor, a suprema perfeição, a suprema bondade, o supremo conhecimento, a
imortalidade, etc.; desta forma, mais do que uma realidade, deus apresenta-
se como uma aspiração abstrata a conceitos subjetivos de perfeição. Para
Sigmund Freud, pelo contrário, deus e a religião são sintomas de uma neurose
coletiva, um refúgio idealizado, para tudo aquilo que a Humanidade receia.

259
Friedrich Nietzsche, por sua vez, anunciava, em Assim Falou Zaratustra, «a
morte de Deus»: ou seja, a morte de um sentido religioso para a vida, o qual
seria substituído pela vontade individual e heróica do ser humano do futuro, o
«super-homem» (Ubermensch). O século XIX foi também o século de Charles
Darwin, biólogo inglês que, ao propor a teoria da evolução natural, permitiu
remover deus do seu último reduto: o da Criação. Pode-se por isso dizer que,
ao providenciar um vasto argumentário filosófico, biológico, antropológico,
psiquiátrico, etc., para justificar a inexistência de deus, o século XIX é, por
excelência, o século do ateísmo moderno.

Ateísmo Revolucionário

O final do século XIX e o início do século XX ficaram marcados por uma for-
te consciência política e social, a qual inevitavelmente se transportaria para o
campo da discussão religiosa. Com uma Europa em crescente industrialização,
a torrente de operários que se começava a aglomerar nos principais centros
urbanos para pôr em movimento a grande máquina do progresso não conseguia
encontrar na cidade a qualidade de vida almejada. Marx contestava o mode-
lo capitalista vigente e idealizava uma sociedade sem classes sociais (utopia
que só poderia ser obtida através da iniciativa revolucionária do proletariado)
e classificava a religião, como um instrumento de poder ao serviço das clas-
ses exploradoras. Assim, o que interessava essencialmente a Marx era atacar
a origem do problema no seu todo – a organização económica e social – e não
um dos sintomas que reforçava a submissão popular (a religião). Por outra via,
também o francês Pierre-Joseph Proudhon, defensor do anarquismo, condenava
a sujeição do indivíduo às instituições hierárquicas do Estado e da sociedade
– entre as quais se inseria também a religião e as igrejas. Neste sentido, o que
há a salientar de relevante na reivindicação socialista e revolucionária para a
história do ateísmo é a sua cada vez maior preocupação com os aspetos mate-
riais da existência humana em detrimento dos aspetos espirituais e metafísi-
cos até então prevalecentes. As doutrinas radicais de esquerda (comunismo e
anarquismo), quando não explicitamente ateias, eram claramente anticlericais.
Essa posição encontrou a oposição das doutrinas radicais de direita (fascistas e
nazis) que defendiam o conservadorismo social e a conformidade com a ordem
pré-estabelecida. Com as duas grandes Guerras Mundiais, o debate teológico
ficou em suspenso (utilizado apenas como arma de arremesso no período da

260
Guerra Fria, entre os devotos cristãos do mundo capitalista da Aliança Atlân-
tica e os ateus comunistas aderentes ao Pacto de Varsóvia). As reivindicações
sociais do ateísmo russo deixaram de se fazer ouvir quando foram tomadas pelo
totalitarismo do aparelho comunista soviético. Desde então, o debate sobre a
existência de Deus, continuou sob os auspícios da reflexão introspectiva do
Existencialismo (Camus e Sartre) ou pela reflexão analítica e lógica do Neopo-
sitivismo (Carnap e o Círculo de Viena).

O Novo Ateísmo

Com o ataque às Torres Gémeas em Nova Iorque, no dia 9 de setembro de 2001,


o debate sobre os malefícios da religião (e no caso em apreço, do terrorismo
justificado pelo fundamentalismo islâmico) emergiu na praça pública. Autores
como Richard Dawkins, Christopher Hitchens ou Sam Harris, escreveram libe-
los acusatórios dirigidos a todas as religiões para além da Islâmica – atacando
até mesmo, o Cristianismo moderado. Destes autores, emerge essencialmente
o argumento de que a religião é um malefício em si mesmo, independentemen-
te das atitudes positivas ou negativas dos seus seguidores. Para estes «novos
ateístas», qualquer religião é obscurantista e qualquer conceito de deus é, não
só desnecessário, como negativo. Enfatizando o papel da ciência, enquanto ca-
minho exclusivo para a obtenção da verdade, nada mais existe do que uma
explicação materialista da realidade. Dado o sucesso mediático obtido por estes
autores e a sua mensagem, a abordagem filosófica do ateísmo, foi sendo subs-
tituída pela abordagem política e científica que caracteriza o «novo ateísmo».

Ateísmo nas Tradições Orientais

Para além da tradição ocidental, também no Oriente se desenvolveram refle-


xões sobre a inexistência de deus. Contudo, apesar da heterogeneidade reli-
gioso-filosófica existente no Continente asiático – e que permitiu a emergência
de pensamento ateísta em escolas como a Charvaka e algumas correntes do
Budismo – o pensamento oriental pauta-se por ser maioritariamente teísta. Esse
teísmo tem, no entanto, a particularidade de privilegiar formas menos persona-
lizadas de deus: a divindade é essencialmente uma emanação, um avatar, uma
energia, uma força ou «algo» que, não tendo a história e a personalidade dos

261
deuses ocidentais é, por via dessa indefinição ou incoerência, menos propensa a
originar correntes de pensamento dogmático ou fundamentalista.

Ateísmo em Portugal

Portugal Medieval

Apesar de comemorar a independência de 1143, só em 1179, através da bula


papal Manifestis Probatum, Portugal foi reconhecido como um reino católico
de pleno direito. Dado que a legitimidade para reinar não existia fora de um
contexto religioso, a identidade portuguesa ficou marcada, desde a sua génese,
por uma forte adesão ao teísmo – um teísmo marcado pela própria expansão
do país para sul, no qual se exacerbava a dualidade entre o fiel português (o
cristão) e o infiel ocupante (o mouro). Dado que essa expansão de Portugal foi
feita num contexto de cruzada, liderada pelas Ordens Militares Religiosas, aqui
implantadas desde o século XII (os Templários e Hospitalários, de origem es-
trangeira; Calatrava e Santiago, de origem hispânica; e Avis e Ordem de Cristo,
de génese portuguesa), a subordinação da organização militar a uma hierarquia
e a um código moral religioso infiltrou-se no código genético das próprias insti-
tuições políticas. Neste contexto, dificilmente o ateísmo poderia proliferar: ser
ateu significaria negar a ordem terrena e espiritual que marcava o avanço e a
consolidação identitária do próprio País.

Portugal dos Descobrimentos

No início do século XV, Portugal enceta o seu processo ultramarítimo de ex-


pansão, habitualmente referido por período dos Descobrimentos Portugueses.
As «descobertas» que tiveram lugar não foram feitas de uma forma neutral e
baseadas na assimilação de novos factos que permitiram originar uma nova
interpretação do mundo: elas visavam a exploração económica e a aculturação
dos povos «descobertos», de acordo com os ditames expansionistas e de pro-
selitismo da Igreja Católica, através da adesão por incorporação a uma vontade
e a uma doutrina que se impunha (bula Romanus Pontifex de 1455), sobre-
pondo-se à realidade religiosa dos povos contactados. Sob o braço armado e

262
doutrinal da Inquisição, Portugal exacerbou e deslumbrou-se com a sua «voca-
ção missionária», parecendo querer servir mais a Igreja do que o seu rei. Esta
devoção cega culminou no desastre do Sebastianismo. Mais uma vez, como
se percebe, este contexto continuava a inviabilizar qualquer questionamento
filosófico ateísta no País.

Portugal Iluminista

A partir do século XVIII, a atitude da mentalidade europeia (essencialmente


alemã, inglesa e francesa) começou a fortalecer cada vez mais o primado da
razão humana, olhando para o mundo com uma visão cada vez mais cética e
crítica – Iluminismo. Em Portugal, também não faltaram alguns espíritos bri-
lhantes e iluministas; no entanto, estes desenvolviam as suas actividades con-
dicionados essencialmente por quatro factores: a localização periférica do País
em relação aos centros intelectuais europeus; a vigilância castrante exercida
pela Inquisição Católica, nos mais variados domínios de conhecimento; os pre-
juízos económicos e sociais causados por um período de guerra intermitente
com Espanha; por último, o monolitismo educativo exercido pelo monopólio
jesuíta – que era dominante nas instituições educativas em Portugal. Assim, de
todos os iluministas portugueses, aqueles que ainda conseguem ter uma maior
liberdade de pensamento e questionamento, são os que exercem a sua atividade
no estrangeiro – os denominados «estrangeirados» (Jacob de Castro Sarmento,
António Nuno Ribeiro Sanches, Cavaleiro de Oliveira, Luís António Verney,
entre outros). Em Portugal, a Inquisição continuava a cercear o debate intelec-
tual – e como consequência, a possibilidade de florescimento do argumentário
ateísta era remota.

Portugal, Crise e Romantismo

Em 1807, as tropas de Napoleão invadem Portugal. Associados aos valores se-


culares que apregoavam no seu país – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – os
ocupantes franceses não aplicaram esses valores no nosso, espalhando apenas
a destruição e o ressentimento na população católica nacional. A sobranceria
francesa e o grau de hostilidade com que o invasor lidou com as populações
locais causou graves danos a tudo aquilo que o seu programa ideológico pu-
desse trazer de positivo para a causa do ateísmo e do livre-pensamento em

263
Portugal. D. Miguel, expoente máximo do conservadorismo religioso e absolu-
tista emerge como rei, apoiado pela população ressentida. A burguesia liberal,
mais condescendente em matéria religiosa, só irá retomar o trono em 1834. Na
Europa, começava a despontar o espírito romântico, apologista de um misti-
cismo naturalista e da emancipação artística e emocional do indivíduo. Contu-
do, em Portugal, essas potencialidades criativas mantinham a sua matriz cristã.
Só em 1871, no âmbito das propaladas Conferências do Casino, se questiona
abertamente a religião: Antero apresenta as Causas da Decadência dos Povos
Peninsulares, atribuindo responsabilidades por essa decadência ao catolicismo
jesuíta. Contudo, o ataque é feito à instituição da religião (Catolicismo) e não
à filosofia da religião (Cristianismo) vigente. Portugal permanece acomodado
à sua matriz cristã e o ateísmo permanece circunscrito a pequenos grupos de
debate filosófico.

Portugal, Revolução e República

Numa fase inicial, o século XX português parece ser marcado pelo aparecimen-
to de ideias progressivas e modelos políticos democráticos – Positivismo e Re-
publicanismo. A recepção do Positivismo em Portugal foi tardia, mas profícua,
contribuindo larga-mente para difundir (especialmente pela via da intervenção
política e científica) ideais ateístas e/ou laicos, nas principais instâncias do Es-
tado e da sociedade. Contudo, a sua fraca difusão entre as classes populares
relegava para as elites burguesas e urbanas a adesão a esta filosofia. Apesar
da fraca industrialização do País, ainda assim surgiram ideias ateístas asso-
ciadas aos movimentos doutrinários de inspiração socialista (comu-nismo e o
anarquismo) perfilhadas pelo emergente proletariado urbano que trabalhava na
indústria. Contudo, as crises internacionais que despoletaram as duas Gran-
des Guerras Mundiais, cercearam os movimentos liberais e fizeram emergir as
grandes ideologias totalitárias, nacionalistas e conservadoras (nazismo e fascis-
mo), inimigas do livre-pensamento e de qualquer contestação ateísta.

Portugal no Estado Novo

Perante a falência política do Estado liberal em Portugal, os eternos padrões cí-


clicos da predisposição colectiva para a crença ou descrença, repetem-se: quan-
do as instituições conservadoras e religiosas falham, os arautos do progresso

264
materialista e pró-científico marcam a sua presença, afirmando os seus virtuo-
sismos; quando as instituições liberais falham, retorna o conservadorismo, a
religiosidade e a superstição. O idealismo católico (apologista da autoridade
incondicional) e o pragmatismo militarista (sustentáculo da dominação institu-
cional do Estado), facilmente convergem e se mimetizam no chamado «Estado
Novo» – o regime político instaurado por Salazar, pautado por ser antiliberal,
antissocialista, anticomunista, anterrepublicano, antiparlamentar, conservador
e católico. Com a imposição da censura a qualquer forma ideológica de dis-
sensão, o ateísmo desaparece do espaço público, sendo encarado como uma
filosofia antinatural e antipatriótica.

Portugal Contemporâneo

Chegados a 1974, com o fim do Estado Novo e a emergência da democracia,


não só aumenta a oportunidade para o surgimento de posições ateístas, como
também de posições teístas diferentes da católica: de acordo com o Censos de
2011, o número de católicos em Portugal decresceu de 7,35 milhões para 7,28
milhões, em relação ao Censos de 2001, distribuindo-se essa diminuição por
aqueles que declararam não ter religião (ou seja, 615 mil portugueses) e aque-
les que aderiram a outras religiões (348 mil portugueses). Subsiste a dúvida de
saber se os 615 mil portugueses «sem religião» são todos ateus e se, entre os
745 mil portugueses que, no inquérito, se negaram a responder a esta questão,
se podem incluir também alguns milhares de ateus. Assim, apesar de se poder
inferir que o número de ateus em Portugal se situe na ordem do meio milhão
de pessoas e que o Catolicismo é a tradição religiosa seguida pela esmagadora
maioria dos portugueses, não só esse número não define a qualidade do cato-
licismo em causa (muitos portugueses podem afirmar-se nominalmente católi-
cos, mas vivem de acordo com uma filosofia secular), como o próprio número
de ateus ou «sem religião», está a aumentar de forma lenta mas progressiva.

Ateísmo no Mundo

Segundo um estudo de Phil Zuckerman, existem cerca de 500 a 750 milhões de


pessoas no mundo que não acreditam em Deus. Os países com maior número de
ateus são, respectivamente, Japão, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Taiwan,
Israel e grande parte das nações europeias. Por outro lado, o ateísmo é pratica-

265
mente inexistente em África, América do Sul, Médio Oriente e Ásia. Zucker-
man refere que a maior parte das nações caracterizadas por elevados graus de
segurança social e individual, têm as maiores taxas de ateísmo e, inversamente,
nações caracterizadas por baixos níveis de segurança social e individual, são
as que possuem a maior taxa de crentes. Conclui ainda o autor que altos níveis
de ateísmo estão fortemente correlacionados com elevados níveis de saúde pú-
blica, baixas taxas de pobreza e igualdade de género. Em muitas sociedades, o
ateísmo é crescente, mas nos países pobres e subdesenvolvidos – aqueles que
possuem as mais altas taxas de natalidade – o ateísmo é praticamente inexis-
tente.

266
Orixás
Tradições de raiz Afro-Brasileira

João Ferreira Dias


Orixás

Tradições de raiz Afro-Brasileira

s devotos das religiões dos Orixás, albergados sob diferentes denomi-


O nações como Candomblé, Xangô, Batuque, Umbanda, Santería, Regla
Ocha, e outras, em função das variações religiosas resultantes dos processos de
transnacionalização sincrética dos cultos, com especial enfâse entre os séculos
XVIII e XIX, encontram-se na região do Golfo do Benim, América no Sul,
com presença determinante no Brasil e Cuba, mas com recente implantação
também em países como o Uruguai, Argentina, Estados Unidos da América e
Europa (com destaque muito significativo, em Portugal, e, em segundo plano,
em Espanha).

Origens

O culto dos Orixás é originário do Golfo do Benim, particularmente no espaço


de que, hoje, fazem parte a Nigéria, Togo e República do Benim, e que corres-
pondem às geografias culturais Yorùbá e Ewe-Fon (ex-Daomé). Há registo da
presença destes povos, nesta região, pelo menos desde o século XI, período
inicial da construção das primeiras comunidades organizadas. No entanto, sa-
bendo que determinados cultos, em particular o de Ògún (deus da metalurgia),
estão associados ao uso do ferro, podemos pressupor que, em idades anteriores
à Idade do Ferro, já existiam tais cultos na região, particularmente os ligados
aos cultos de Nàná Búrúkú, Brukung e Ọbalúwàiyé-Sàkpátá. Diferentes vagas
migratórias e cruzamentos culturais foram essenciais na constituição de uma
noção alargada de partilha religiosa, consolidada apenas com aludida passagem
do século XVIII para o século XIX e a emergência de uma identidade Yorùbá,
numa altura em que os cultos estavam longamente estabelecidos na região e os
posteriores reajustes de natureza sincrética de diversa origem que tiveram lugar
em contexto da escravatura.
No Brasil, as religiões dos Orixás estão concentradas no Candomblé (jeje-na-
gô), a mais emblemática das formas religiosas de culto, fecundada na Bahia,
em finais de 1700, a partir das organizações de negros em ordens religiosas de

269
origem católica. Nesse contexto, a convivência entre africanos possibilitou a
estruturação de um culto. Similar processo ocorreu no Pernambuco, dando ori-
gem ao chamado Xangô do Pernambuco, no Rio Grande do Sul, dando origem
ao Batuque, e, no Maranhão, com o Tambor de Mina. Ainda no Brasil, no Rio
de Janeiro do começo do século XX, as tradições religiosas africanas foram
mescladas com o kardecismo, cultos ameríndios e o catolicismo popular, dando
origem à Umbanda, religião estilizada em padrões europeus e no mito do «bom
selvagem», e que pretendia, inicialmente, afastar-se das práticas africanas, na
época condenadas e proibidas.
Em Cuba, mas também na República Dominicana e Porto Rico, a leva de es-
cravos de origem yorùbá, no mesmo período da instituição do Candomblé, e
o processo de ordenação cultural e religiosa deu origem à Santería (também
designada por Lukumi e Regla Ocha), termos usados pelos colonos espanhóis
para, pejorativamente, designar as práticas religiosas africanas na região.

Figuras centrais e fundadoras

Em religiões, cujas origens históricas não se traçam por personalidades nem


por eventos fundacionais, mas através processos múltiplos, não é fácil encon-
trar figuras fundadoras. As religiões dos Orixás não se fundam em revelações
divinas a determinados sujeitos. São simplesmente cultos com origens num
passado muito distante e que se foi perpetuando numa reprodução testemunhal
que aconteceu em contextos culturais marcados pela oralidade e através de ge-
rações. No entanto, ficou a memória de alguns nomes considerados de impor-
tância na consolidação destas religiões, em particular nas Américas.

Ìyá (Mãe) Adetá

Originária da cidade de Kétu, estabeleceu o culto a Ọ̀ ṣọ́ọ̀sì (Oxóssi), deus da


caça e protetor da cidade de Kétu, na Bahia, em finais do século XVIII, lançan-
do as bases para a implementação do que viria a ser o Candomblé.

270
Ìyánásò Oká (ou Ìyá Násò Oká)

Sacerdotisa-mor do culto de Ṣàngó (Xangô), no Palácio de Ọ̀ yọ́, capital do im-


pério Yorùbá, foi responsável pela implementação do culto àquele Òrìṣà (Ori-
xá) na Bahia, no começo do século XIX, sendo em torno desta que se formou o
Candomblé da Barroquinha, motivo pelo qual o templo Casa Branca do Enge-
nho Velho é denominado, em yorùbá, como Casa de Mãe Násò Oká. Batizada,
segundo os costumes da sociedade esclavagista da época, como Francisca da
Silva. Em 1837, regressou a África, desta vez a Uidá, no vizinho e rival Daomé,
onde fundaria um templo e ali permaneceria até à sua morte.

Bámgbóṣé Obitikò

Um dos nomes masculinos mais emblemáticos da história do Candomblé. Nas-


cido em Ọ̀yó ,̣ por volta de 1820, e chegou ao Brasil como escravo, tendo sido
comprado pelo português Manoel Martins de Andrade, e batizado como Rodol-
pho Martins de Andrade, em 26 de dezembro de 1850. Foi uma figura central na
consolidação do culto de Xangô, no Brasil, mas também da ordenação e expan-
são do Candomblé, em particular na Bahia e no Rio de Janeiro. Seria Bamboxê
(grafia portuguesa) o responsável pela introdução do sistema divinatório de 16
búzios, no Brasil, e pela sequência litúrgica do Candomblé.

Obá Sanyá

Batizado como Joaquim Vieira da Silva, foi contemporâneo de Bamboxê e


grande auxiliar de históricas figuras do Candomblé, como Ìyá Marcelina Oba-
tosin, e Ìyá Aninha, na viragem do século XIX para o século XX. Foi, igual-
mente, vital na consolidação dos cultos africanos aos Orixás, no Pernambuco,
razão pela qual recebem, naquela região, o nome de Xangô, em decorrência da
divindade à qual Obá Sanyá estava consagrado.

Bàbá Tàlábí

Originário de Kpeyin Vedji, cidade localizada a noroeste de Abomey, aportou


em Salvador em 1795, na condição de escravizado. Após ter curado o seu pro-

271
prietário, a partir da medicina africana, ganhou a liberdade (alforria), tendo-se
dedicado ao comércio. Em 1820, na cidade de Cachoeira, no interior baiano,
participou na fundação de um templo dedicado a Ajunsun, divindade daomeana
da terra e das doenças. Em 1836, Bàbá Tàlábí, com o intuito de consolidar as
bases do culto a Ajunsún, na Bahia, adquiriu a sua primeira propriedade, na
Rua das Grades de Ferros, em Salvador, comprando a liberdade dos seus neó-
fitos. Em 1846, mudou o seu templo para o local onde até hoje está a Casa de
Oxumarê.

Calendário Yorùbá

Não apenas diferindo no que concerne a cada cidade ou país, mas também a
cada templo, possuindo cada qual o seu próprio calendário litúrgico, expressan-
do a grande autonomia das religiões dos Orixás. No entanto, é possível apre-
sentar o Calendário Yorùbá nativo, atual, organizado em função do calendário
gregoriano (ocidental):

Sere / Janeiro.
Erele / Fevereiro – mês dedicado ao Olókun, divindade dos mares e
águas profundas.
Erénà / Março – mês dedicado a Odúdùwà, herói fundador da cultura
Yorùbá, e a Ọ̀ ṣọ́ọ̀sì, deus da caça.
Igbe / Abril – mês dedicado a Ògún, deus da metalurgia e das atividades
agrícolas e da guerra, e a Ọ̀ ṣun, deusa da fertilidade, das
águas puras, da beleza e do amor.
Èbìbí / Maio – mês dedicado aos ancestrais, quando são louvados e
recordados os grandes fundadores das linhagens
familiares.
Okudu / Junho – Ano Novo Yorùbá. Mês dedicado a Ọmọlú, divindade
das doenças e da terra, a Ọ̀ sọ́nyìn, senhor da medicina
herbalista, e a Yèmọnjá, senhora das águas, do lar e
matriarca Yorùbá.

272
Agẹmo / Julho – mês dedicado a Ọrúnmilà, deus da adivinhação, a Oko,
senhor da agricultura, a Èṣù, deus das trocas e
comunicação, e a Ṣàngó, deus do império, do fogo e
da justiça.
Ogun / Agosto – mês dedicado a Ọbàtálá-Òrìṣàńlá, deus da criação, da
atmosfera, o grande Orixá, pai de todos os deuses.
Òwéré / Setembro.
Ọwara / Outubro – mês dedicado a Oyá, deusa dos ventos, do relâmpago
e da transição dos espíritos para o Ọ̀ rún, o mundo-
outro, e a Ọ̀ ṣun, deusa da fertilidade, do amor, da
riqueza e das águas doces.
Bèlu / Novembro.
Òpé / Dezembro – mês dedicado a Obajulaiye, divindade da riqueza,
cultuado apenas em África.

Símbolos

Os símbolos nas religiões dos Orixás são inúmeros, uma vez que cada divinda-
de possui os seus, ligados às suas caraterísticas identificadoras. Entre os vários
exemplos, temos o Ofá (arco e flecha) de Ọ̀ ṣọ́ọ̀sì, o abebe, o espelho-leque de
Ọ̀ ṣun e Yèmọnjá, o qual remete para a beleza feminina, o Òpàṣòrò, o cajado
de Òrìṣàńlá, no qual este se apoia e que usou para a criação do mundo, o Oṣe,
o machado duplo de Ṣàngó, que representa a justiça que corta para ambos os
lados, o Oge, pilão, símbolo de Òṣògiyán, o qual usa este para pisar o inhame e
fornecer este alimento vital na alimentação yorùbá aos seus devotos, o èrùkèrè
de Oyá, um objeto feito de rabo de cavalo que a deusa usa para espantar os es-
píritos nefastos, entre muitos outros objetos. No entanto, no Brasil, um templo é
identificado pela bandeira branca de Òrìṣàńlá, sem qualquer símbolo, colocada
no topo.
No caso da Umbanda, religião fortemente sincrética, a Cruz de Cristo é um
símbolo de grande importância.

273
Lugares sagrados

Nas diversas religiões dos Orixás, vários são os lugares sagrados. Em primeiro
lugar, os templos edificados e sacralizados para as práticas religiosas; os diver-
sos altares que passam pelos mesmos rituais; a Natureza no seu estado mais
puro; e, por fim, determinados lugares emblemáticos das origens religiosas,
como o rio Ọ̀ ṣun, na cidade de Òṣogbo (Nigéria); o rio Ògùn, em Abẹ́òkúta,
morada de Yèmọnjá; o templo de Ṣàngó, em Ọ̀yó ;̣ e todos os demais templos
no território africano. No Brasil, lugares como a Lagoa do Abaeté, o Dique
do Tororó ou a Pedra de Xangô, em Cajazeiras, são lugares emblemáticos dos
devotos dos Orixás.

Principais caraterísticas

De um modo geral, existe uma série de caraterísticas que identificam as reli-


giões dos Orixás. Em primeiro lugar, a própria ideia de culto aos Orixás, deuses
africanos extremamente popularizados na cultura brasileira, através da música,
das artes e das letras. São, também, religiões iniciáticas, o que significa que
a pertença a tais religiões bem como o acesso a determinados conhecimentos
depende da iniciação religiosa. São, igualmente, religiões extremamente hie-
rarquizadas e com funções claras e demarcadas, em que o poder máximo se
encontra nas mãos de um sacerdote ou sacerdotisa, chamados de Bàbálóòrìṣà,
Ìyálóòrìṣà (Pai ou Mãe-de-Santo, Zelador, Padriño), ou outras formas parti-
culares. Do mesmo modo, são religiões eminentemente práticas, marcadas
pela ritualidade, como meio de relação com as divindades, sejam oferendas ou
sacrifícios, bem como as comemorações públicas, que incluem momentos de
transe ritual, altura em que os deuses tomam conta do corpo dos devidamente
iniciados para tal. A comunicação com as divindades e as mensagens recebidas
chegam por via dos sistemas oraculares, sendo que no Candomblé são usados
os 16 búzios. São religiões onde a dança e a música, conjugadas, reatualizam
e contam as passagens míticas das divindades. Cada divindade possui os seus
cânticos de louvor, em língua africana-yorùbá (com exceção da Umbanda), e
ritmos sagrados.
Aspeto importante é, ainda, a noção de vida e morte como um continuum, em
que os rituais fúnebres desfazem o feito pela iniciação, e preparam a alma para
a vivência post-mortem, a qual pode ou não regressar, encarnando numa pes-

274
soa da família. São religiões éticas, isto significa que não possuem uma noção
de pecado, inferno, céu ou salvação, sendo baseadas na ideia de compromisso
social e respeito.
Nos casos das religiões dos Orixás, no Brasil, a questão de género não confi-
gura qualquer problema, uma vez que existem papéis para homens e para mu-
lheres, o sacerdócio é universal, e qualquer identidade de género-sexual tem o
seu correspondente nas divindades, como Òṣùmàrè, o deus hermafrodita e das
transformações, ou Lògúnede, que possui uma identidade bissexual.
Como já mencionado, a Umbanda possui características próprias, uma vez que
mais sincretizada com o Catolicismo e com o Kardecismo, adquirindo, dali,
inúmeros princípios religiosos, seja a devoção mariana, dos santos, o culto de
Jesus ou a conceção de alma e karma. Regra geral, tem uma visão menos «afri-
cana» das divindades, uma vez que estas se encontram fortemente associadas
aos santos católicos, e onde a enfâse é colocada nas consultas mediúnicas com
espíritos dos índios brasileiros (caboclos), de marinheiros, de vaqueiros (boia-
deiro), de antigos escravos (pretos-velhos) ou marginais (exús e pomba-giras).
Nas religiões dos Orixás, em África, não é comum a individuação das divin-
dades, sendo que o culto é prestado ao Orixá protetor do agregado familiar e
da vila ou cidade. No Novo Mundo, devido às desestruturações familiares, os
Orixás passaram a estar consagrados no sujeito iniciado, pelo que cada pessoa
se liga a um Orixá, chamado «de cabeça», e, pelo menos, a outros dois, que
compõem a tríade de proteção dos iniciados, e que se chamam ajuntó.

Textos Sagrados

As religiões dos Orixás não vivem de literatura considerada sagrada. Apesar


de um vasto corpus mitológico, com dezenas de mitos, que vão de mitos de
criação do mundo até a relações amorosas e disputas entre divindades, o saber
religioso é eminentemente oral e encontra-se vinculado à prática. É, essencial-
mente, pelo que é feito, pelos rituais, pelos estágios iniciáticos, que se confi-
gura a vivência religiosa, embora os mitos sejam utilizados como ferramentas
referenciais para compreender o carácter dos deuses, e dos que a eles estão
consagrados por nascimento.

275
Principais Orixás

Èṣù (Exú) – Senhor dos caminhos, das trocas de toda a natureza, desde o
comércio ao sexo.
Ògún – Senhor do ferro, da metalurgia, da guerra, da agricultura. Princípio
da tecnologia.
Ọ̀ ṣọ́ọ̀sì (Oxóssi) – Senhor da caça e da fartura, grande provedor dos
alimentos.
Òsànyín (Ossain) – Senhor das plantas e da medicina.
Ọmọlú (Omolu) – Senhor da terra, do sol e das pestes.
Òṣùmàrè (Oxumarê) – Senhor do arco-íris, das transformações, da chuva,
das estações. A cobra que sustenta o mundo.
Yèwá – Senhora da visão, da beleza, do por do sol, das lagoas e do rio com
o seu nome.
Nàná Búrúnkú (Nanã Burunku) – Senhora do portal da morte, e das lamas
de onde Òrìṣàńlá moldou os seres vivos.
Ìroko (Irôcô) – árvore-Orixá, a primeira árvore na terra.
Lògúnede – Orixá da juventude, da caça e da pesca, filho de Oxóssi e Oxum.
Ọ̀ ṣun (Oxum) – deusa das águas doces, da beleza feminina, da fertilidade e
do amor.
Yèmonjá – Senhora do lar, da maternidade, de todas as águas, sendo cultuada
no Brasil, no mar.
Oba (Obá) – deusa dos excessos, da proteção da mulher, grande guerreira.
Oyá – senhora dos ventos, tempestades, do rio Níger, dos raios e que
encaminha as almas para a sua morada.
Ṣàngó (Xangô) – senhor do império, da força, da justiça, do trovão e do
fogo.
Ibeji – gémeos, princípio da fertilidade e protetores das crianças.
Òrìṣàńlá – o grande Orixá, pai de todos os deuses. Na sua feição velha,
Òṣòlúfọ̀n (Oxalufan) representa a criação do mundo, o velho curvado
em seu cajado, senhor da sabedoria, do ar, do fresco. Em sua feição
jovem, Òṣògiyán (Oxoguian), representa a guerra pela paz, a justiça,
a revolução transformadora, a provedoria dos inhames.

276
Religiões dos Orixás em Portugal

A primeira religião dos Orixás a chegar a Portugal foi a Umbanda, em 1975,


através da sacerdotisa Virgínia de Albuquerque, entretanto falecida. Dali, saiu a
geração seguinte de sacerdotes e sacerdotisas de Umbanda e alguns que viriam
a rumar ao Brasil para se iniciarem no Candomblé. A primeira Mãe-de-San-
to (Ìyálóòrìṣà) de Candomblé, em Portugal, na década de 1980, foi Albertina
(Tina) de Oyá, também ela já falecida. Na década de 1990, começaram a sur-
gir os primeiros sacerdotes brasileiros, nomeadamente Daniel de Yèmọnjá, do
Candomblé Xambá. A partir do novo milénio, deu-se um crescimento exponen-
cial destas religiões, contando com largas dezenas de templos, que se encerram,
reabrem, e novos que vão sendo instalados. Apesar da institucionalização do
Candomblé, em 2010, através do registo da Comunidade Portuguesa do Can-
domblé Yorùbá, altura em que esta religião se oficializa, a tendência descen-
tralizadora mantém-se, sendo impossível contabilizar o número de sacerdotes
bem como as suas práticas e ilicitudes, um problema que caracteriza fortemente
estas religiões em Portugal.

277
Cronologia
Momentos para uma História das Religiões

(até ao 11 de setembro de 2001)


Momentos para uma História das Religiões
(até ao 11 de setembro de 2001)

• c. 78.000 aEC (antes da Era Comum)


O mais antigo enterro ritual com pigmento de ocre.

• c. 35.000 aEC
As mais antigas figurações femininas, «Vénus».

• c. 32.000 aEC
Pinturas rupestres de Chauvet (França).

• c. 20.000-10.000 aEC
Gravuras rupestres do Foz Côa (Portugal).

• c. 17.000 aEC
Pinturas rupestres de Lascaux (França).

• c. 9000 aEC
Göbekli Tepe (Turquia), o mais antigo templo conhecido.

• c. 6700 aEC
Çatal Hüyük (Turquia), o mais antigo assentamento urbano conhecido.

• c. 3200 aEC
A Escrita Cuneiforme surge na Suméria.
Pela mesma época são desenvolvidos os Hieróglifos, no Egito.

• c. 3000 aEC
Desenvolvimento de centros urbanos ao longo do rio Indo.

281
• c. 3000 aEC
Os mais antigos Zigurates conhecidas, na Suméria.

• c. 2800-1900 aEC
Civilização do Vale do Indo / Civilização Harappan (Harapa).

• c. 2600 aEC
Construção das Pirâmides de Guiza (Gizé), no Egipto.

• c. 2400/2300 aEC
Textos das Pirâmides.

• c. 2200 aEC
Versões mais antigas conhecidas dos textos religiosos sumérios
(Descida de Inanna ao Mundo Inferior).

• c. 2100-2050 aEC
Redação do Código de Ur-Nammu, o mais antigo código de leis escrito
da Suméria.

• c. 1900 aEC
Código de Lipit-Ishtar.

• c. 1800 aEC
Abraão, um dos três patriarcas do Judaísmo.

• c. 1780 aEC
Código de Hammurabi.

• c. 1550 aEC
Sistematização do Livro dos Mortos do Egito.

282
• c. 1500 aEC-500 EC
O Período Védico, na Índia.

• c. 1500-1100 aEC
É escrito o Rig-Veda.

• c. 1400 aEC
Redação da versão conhecida do Ciclo de Baal, Ugarit (Síria).

• c. 1020-1000 aEC
Reinado de Saul, primeiro rei de Israel.

• c. 1010-970 aEC
Reinado de David: o segundo rei de Israel.

• c. 970-930 aEC
Reinado de Salomão (filho de David).
Construção do Primeiro Templo de Jerusalém.

• c. 800-500 aEC
Movimento Profético, em Israel.

• c. 700-800 aEC
Redação da Teogonia de Hesíodo.
Redação da Ilíada e da Odisseia de Homero.
Escola Charvaka surge na Índia, em contravenção com a autoridade
tradicional dos Vedas.

• c. 628-551 aEC
Zaratustra, profeta persa, fundador do Zoroastrismo.

283
• c. 600-400 aEC
Sistematização escrita da Torah (ou Pentateuco)

• 599-527 aEC
Mahavira, o último tirthankara, segundo a tradição do Jainismo.

• 586 aEC
Destruição do Primeiro Templo de Jerusalém.

• 566-486 aEC
Siddharta Gautama, o Buda histórico.

• 563-483 aEC
Confúcio, figura central do Confucionismo.

• 539 aEC
Início da construção do Segundo Templo de Jerusalém.

• c. 500-600 aEC
Lao Tzé, filósofo, figura primeira do Taoísmo.

• c. 500-400 aEC
Composição da versão existente do Bhagavad-Gîtâ.

• c. 483 aEC
Possível data do primeiro concílio, onde discípulos de Buda
sistematizaram os seus ensinamentos.

• c. 300 aEC
O Budismo chega ao Sudoeste Asiático.

284
• c. 200-100 aEC
A Septuaginta (tradução da Bíblia hebraica para o grego koiné) é
composta no ambiente cultural de Alexandria.

• c. 200 aEC-400 EC
Era de grande influência do Budismo, na Índia.

• c. 206 aEC-220 EC
O Confucionismo teve o seu apogeu na China, durante a Dinastia Han.

• 167-37 aEC
A revolta dos Macabeus com a finalidade de assumir controlo de
Jerusalém.

• c. 6 aEC-c. 30 EC (Era Comum)


Jesus, figura central do Cristianismo.

• 1 EC-100 EC
O Mitraísmo espalha-se pelo Império Romano.

• c. 1 EC-c. 100 EC
O movimento Mahaiana começa na Índia, com as suas crenças associadas
à figura do Bodhisattva (da Compaixão).

• 42-62 EC
Paulo inicia a sua viagem missionária pela Ásia Menor (Anatólia), Grécia
e Roma, expandindo o Cristianismo.

• c. 45-c. 90 EC
Os textos pertencentes ao Novo Testamento terão começado a ser
organizados e compostos por vários autores.

285
• 50 EC
O Budismo chega à China.

• C. 50-160 EC
Codificação do Talmude.

• 64 EC
Primeiras perseguições aos Cristãos, em Roma.

• 70 EC
Destruição do Segundo Templo de Jerusalém.

• c. 185 EC
O Cânone cristão: dos muitos Evangelhos que circulavam, apenas quatro
são escolhidos para integrarem a Bíblia, por Irineu de Leão (130-202
EC).

• c. 200-300 EC
Composição de Vishnu Purâna e do Vâyu Purâna.

• c. 216-276 EC
Vida de Maniqueu, filósofo e profeta persa, e fundador do
Maniqueísmo.

• 224 EC
Zoroastrismo torna-se na religião do Estado Persa, durante a dinastia
Sassânida.

• c. 251-356 EC
Santo Antão, ermita egípcio e fundador do monaquismo cristão.

286
• c. 300 EC
A Arménia é a primeira nação a adotar o Cristianismo como Religião de
Estado.

• 313 EC
Édito de Milão / Tolerância de Constantino I e Licínio (Império
Romano).

• 325 EC
Concílio de Niceia (redação do «Credo de Niceia»).

• 391 EC
O Cristianismo torna-se a religião oficial do Império Romano.

• 393 EC
Concílio de Hipona: estabelecido o Cânone do Novo Testamento, com
os 27 livros.

• 470-543 EC
Bodhidharma, fundador da meditação budista tradicional, na China.

• 503 EC
Clovis, rei dos Francos, converte-se ao Cristianismo.

• 570 EC
Maomé nasce, na cidade de Meca.

• 610 EC
Maomé recebe a sua primeira revelação no Monte Hira.

287
• 622 EC
Maomé inicia a Hégira de Meca para Medina, delimitando assim o
Calendário Islâmico.

• 630 EC
Conquista não violenta de Meca.

• 632 EC
Maomé morre, em Medina.

• c. 650 EC
Codificação do Alcorão por ordem do Califa ‘Uthman.

• 656-661 EC
Califado de Ali (n. 599), primeiro califa dos Xiitas, assassinado na
mesquita de Kufa, An-Najaf (Iraque).

• 712 EC-756 EC
O Taoísmo torna-se na religião oficial da China, com o imperador
Xuanzong.

• 708 EC-720 EC
É escrito o Kojiki, uma das fontes do Xintoísmo.

• c. 807 EC
Imbe-no-Hironari escreve o Kogo Shui, uma coleção de mitos que estão
na base do Xintoísmo.

• c. 900 EC
Codex de Aleppo, o mais antigo manuscrito com o cânone bíblico.

288
• 1000-1500 EC
«Genocídio de Ghazni» – terão sido massacrados vários milhões de
hindus.

• 1054 EC
Cisma do Oriente – Separação da Igreja Católica Apostólica Romana e
da Igreja Católica Apostólica Ortodoxa.

• 1075-1122 EC
Reforma Gregoriana: O papa Gregório VII decreta uma série de reformas
na Igreja católica romana.

• 1095-1099 EC
Primeira Cruzada, no intuito de retomar Jerusalém.

• c. 1232-1834 EC
Inquisição: O papa Gregório IX cria o Tribunal Eclesiástico para suprimir
a heresia.

• 1122 EC
Arranque da construção do templo hindu em Angkor Wat.

• 1147-1149 EC
Segunda Cruzada, pregada por São Bernardo de Claraval.

• 1189- 1192 EC
Terceira Cruzada, pregada pelo papa Gregório VIII.

• 1208 EC
Perseguição aos Cátaros, movimento cristão de ascetismo qualificado
como heresia, pela Igreja Católica.

289
• 1209 EC
Nasce a Ordem dos Franciscanos.

• 1216 EC
Nasce a Ordem dos Dominicanos.

• 1217-1221 EC
Quinta Cruzada, pregada pelo papa Inocêncio III.

• 1228-1229 EC
Sexta Cruzada, incentivada pelo imperador do Sacro Império, Frederico
II de Hohenstauffen.

• 1248-1254 EC
Sétima Cruzada, liderada por Luís IX de França.

• 1271 EC
Oitava Cruzada, novamente liderada por Luís IX de França.

• Século XIII EC
O Zohar, um conjunto de comentários místicos da Torah, texto
fundamental da Cabala.

• 1337-1453 EC
Guerra dos Cem Anos, em França, onde se destaca o papel importante
de Joana D’Arc (condenada e morta, e depois canonizada pela Igreja
católica).

• 1357-1419 EC
Tsongkhapa – reformador do Budismo Tibetano.

290
• 1391-1478 EC
Gendun Drub, o primeiro Dalai Lama.

• 1459 EC
Primeira edição latina do Corpus Hermeticum.

• 1469-1538 EC
Vida de Guru Nanak, fundador do Siquismo (Sikhismo).

• 1480 EC
Edição das 900 teses e discurso sobre a Dignidade do Homem de Pico
Della Mirandola.

• 1492
Expulsão de judeus e muçulmanos de Castela e Aragão (Espanha).

• 1497
Conversão forçada dos judeus em Portugal, dando origem aos Cristãos-
novos.

• 1500
Celebração da primeira missa no Brasil.

• 1501-1503
Redacção de Enchiridion Militis Christiani, por Erasmo de Roterdão.

• 1517
Afixação das 95 teses de Martinho Lutero na porta da Catedral de
Wittenberg (Vitemberga).

291
• 1517
Aprovação da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos como parte da
Ordem de São Francisco de Assis, pelo papa Leão X.

• 1520
Publicação das principais obras de Martinho Lutero: Para a Nobreza
Cristã da Nação Alemã; Acerca do Cativeiro Babilónio da Igreja; Acerca
da Liberdade de um Cristão.

• 1521
Excomunhão de Martinho Lutero da Igreja Católica, pelo papa Leão X.

• 1521
Escrita da Defesa dos Sete Sacramentos, por Henrique VIII de Inglaterra.

• 1522
Início da tradução da Bíblia em Alemão, por Lutero, publicando-se o
Novo Testamento.

• 1522
Redação do tratado A Claridade e Certeza da Palavra de Deus, por
Ulrich Zwingli.

• 1527
Separação da Igreja Católica de Roma da Dinamarca, oficializada pelo
Parlamento de Odense (Dinamarca).

• 1524
Declaração da remoção de imagética religiosa das Igrejas em Zurique.

292
• 1525
Abolição da missa pelo concelho da cidade de Zurique e criação do
movimento Anabaptista, ala «radical» do Protestantismo.

• 1529
Encontro de Lutero com o reformador suíço Ulrich Zwingli.

• 1530
Publicação da Confissão de Augsburg, entre Católicos e Luteranos.

• 1533
Contestação à Igreja Católica na Inglaterra, no seguimento da anulação
do casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão, pelo Arcebispo
de Canterbury.

• 1534
Fundação da Sociedade de Jesus, por Inácio de Loyola, no seguimento
da Contrarreforma.

• 1536
Publicação de Institutos da Religião Cristã, por João Calvino, em Basle
(Basileia), Suíça.

• 1534
Separação entre a Igreja Inglesa e a Igreja Católica Romana.

• 1535
Execução de Thomas Moore, opositor da Reforma Inglesa.

• 1536
Estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) em Portugal.

293
• 1537
Luteranismo torna-se a religião nacional da Dinamarca e é imposta na
Noruega, então território dependente da Dinamarca.

• 1541
Catecismo de Genebra, o Consenso de Zurique.

• 1545-1563
Concílio de Trento.

• 1549
Chegada de Francisco Xavier a Kagoshima, estabelecendo-se a primeira
missão cristã no Japão.

• ca. 1550
Comentário Yoga-Vârttika ou Yoga-Sûtra, por Vijnâna Bhikshu.

• 1555
Tratado «Paz de Augsburgo», entre Carlos V e uma aliança de príncipes
luteranos.

• 1562-1563
1.ª Guerra da Religião.

• 1563
Publicação dos Trinta e Nove Artigos de Religião, da Igreja de Inglaterra
(Igreja Anglicana).

• 1563
Desembarque do missionário jesuíta Luís Fróis, em Yokoseura, Nagasaki.

294
• 1565
Desembarque de Luís Fróis, em Quioto, a então capital do Japão.

• 1566
Publicação do Catecismo Romano, pelo papa Pio V.

• 1567-1568
2.ª Guerra da Religião.

• 1568-1570
3.ª Guerra da Religião.

• 1569
Publicação da tradução francesa de Theologia naturalis, por Michel de
Montagne.

• 1572-1573
4.ª Guerra da Religião.

• 1574-1576
5.ª Guerra da Religião.

• 1577-1578
6.ª Guerra da Religião.

• 1579-1580
7.ª Guerra da Religião.

• 1582
Reforma do calendário pelo papa Gregório XIII (Calendário Gregoriano).

295
• 1583
Estabelecimento da primeira igreja católica chinesa perto de Cantão, por
Matteo Ricci.

• 1584-1586
Envio da primeira embaixada de «dáimios» cristãos à Europa.

• 1585-1598
8.ª Guerra da Religião.

• 1587
Expulsão dos missionários do Japão.

• 1589
Estabelecimento do Patriarcado de Moscovo.

• 1572
Massacre do Dia de São Bartolomeu, em França.

• 1594
Fundação do Colégio de São Paulo, em Macau, pelos Jesuítas.

• 1597
Morte dos 26 mártires em Nagasáqui, Japão, por ordem de Toyotomi
Hideyoshi.

• 1598
Édito de Nantes, garantindo «tolerância» aos Protestantes franceses, por
parte de Henrique IV.

296
• 1600
Queima na fogueira de Giordano Bruno.

• 1611
Publicação da Bíblia King James.

• 1614
Edição do Primeiro Manifesto Rosacruz: Fama Fraternitatis R. C.

• 1614
Édito de Exclusão de Tokugawa Ieyasu, interditando a presença da
atividade cristã no Japão.

• 1615
Edição do Segundo Manifesto Rosacruz: Confessio Fraternitatis R. C.

• 1616
Edição do Terceiro Manifesto Rosacruz: As Bodas Alquímicas C. R. C.

• 1622
Canonização de Inácio de Loyola pela Igreja Católica.

• 1633
Condenação de Galileu pela Inquisição, em Roma.

• 1639
Édito de Exclusão dos Portugueses de Tokugawa Iemitsu.

• 1643
Aprovação da Confissão de Fé de Westminster, pelo Parlamento inglês.

297
• 1648
Paz de Vestfália (Tratados de Munster e Osnabruck), pondo termo à
Guerra dos 30 Anos.

• 1650
Composição do Gheranda-Samhitâ, manual de Hatha-Yoga.

• 1685
Revogação do Édito de Nantes, por Luís XIV, expulsando os
Protestantes de França.

• 1687
Redação de Philosophia naturalis principia mathematica, por Isaac
Newton.

• 1710
Publicação dos Estatutos da Fraternidade dos Rosacruz de Ouro.

• 1710
Redação do ensaio Teodiceia, por Leibniz.

• 1714
Publicação de Princípios da Natureza e Graça, Baseados na Razão, por
Leibniz.

• 1717
Aparição de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, no Brasil.

• 1717
Criação da Grande Loja de Londres, institucionalizando a Maçonaria
Especulativa / Maçonaria Moderna.

298
• 1719
Fundação da Igreja Reformada, na Dinamarca.

• 1722
Expulsão dos missionários católicos da China, pelo Imperador
Yongzheng.

• 1723
Publicação das Constituições de Anderson, documento fundador da
Maçonaria moderna.

• 1724
Proscrição do Imperador Yongzheng contra o Cristianismo.

• 1734
Redação das Cartas Filosóficas de Voltaire.

• 1738
Bula In eminenti apostolatus specula do Papa Clemente XII, proibiu
os católicos de se tornarem maçons.

• 1739-1740
Publicação do Tratado da Natureza Humana, redigido por David Hume.

• 1748
Publicação de O Espírito das Leis, por Montesquieu.

• 1750
Composição do Mahânirvâna-Tantra.

299
• 1754
Redação do Discurso sobre a Origem e Base da Desigualdade entre
Homens, por Jean-Jacques Rosseau.

• 1759
Expulsão dos Jesuítas do Império português, pelo Marquês de Pombal.

• 1762
Publicação do Contrato Social, por Rosseau.

• 1763
Publicação do Tratado sobre a Intolerância, por Voltaire.

• 1764
Expulsão dos Jesuítas de França.

• 1767
Expulsão dos Jesuítas do Império espanhol.

• 1773
Dissolução da ordem dos Jesuítas, pelo papa Clemente XIV.

• 1779
Primeira publicação de Diálogos sobre a Religião Natural, por David
Hume.

• 1789
Criação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no
seguimento da Revolução Francesa.

300
• 1794
Supressão do Catolicismo em França.

• 1795
Criação da sociedade protestante Associação Orange, na Irlanda do
Norte.

• 1797
Fundação da Sociedade Missionária Holandesa, em Roterdão.

• 1800
Fundação da Societas Rosicruciana, na Escócia.

• 1813
Criação da Grande Loja Unida de Inglaterra.

• 1814
Restabelecimento da Ordem dos Jesuítas, pelo papa Pio VII.

• 1820
Primeira visão / aparição a Joseph Smith, fundador d’A Igreja de Jesus
Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

• 1822
Eliminação da Maçonaria, na Rússia.

• 1827
Entrega e tradução do Livro de Mórmon a Joseph Smith.

301
• 1828
Fundação da organização Brama Samaj, no decurso do movimento
religioso brahmoísta em Bengali, por Rahmohun Roy.

• 1830
Fundação d’A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

• 1834
Extinção das Ordens Religiosas em Portugal

• 1843
Primeira previsão da segunda vinda de Jesus Cristo por Guilherme Miller,
iniciador do Movimento Millerita que está na base dos Adventistas do
Sétimo Dia.

• 1844
Primeira conversão à Fé Bahá’í.

• 1845
Nascimento da Convenção Batista do Sul, coordenando-se as várias
organizações batistas, nos EUA.

• 1848
Construção da primeira igreja protestante na China.

• 1848
Redação de Discurso sobre o Espírito Positivo, de Augusto de Comte,
uma das figuras centrais do Positivismo.

• 1858
Primeira aparição de Nossa Senhora de Lourdes, em França.

302
• 1859
Publicação da Origem das Espécies, por Charles Darwin.

• 1860-1865
Fundação da Societas Rosicruciana in Anglia.

• 1863
Autoproclamação de Baha’u’llah como profeta de Deus.

• 1863
Fundação da Conferência Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, nos
EUA.

• 1869-1870
Concílio do Vaticano I.

• 1875
Criação da Sociedade Teosófica, por Helena Petrovna Blavatsky.

• 1879
Fundação, por Charles Taze Russell, da Sociedade Torre de Vigia de
Bíblias e Tratados, que dará origem às Testemunhas de Jeová.

• 1881
Surgimento da primeira Loja de Maçonaria Feminina, em Portugal
(Loja Feminina de Adoção).

• 1882
Publicação da Gaia Ciência, por Frierich Nietzche.

303
• 1885
Reconhecimento da autocefalia da Igreja Ortodoxa Romena, por
Joaquim IV.

• 1886
Muhammad Shah (Aga Khan III) recebe o título de «Sua Alteza».

• 1888
Criação da The Hermetic Order of the Golden Dawn.

• 1893
Realização do Parlamento Mundial de Religiões, em Chicago.

• 1897
Fundação da Missão Ramakrishna (atualmente, Missão Ramakrishna –
Vivekananda), por Swami Vivekananda.

• 1905
Fundação do Conselho Nacional das Igrejas, nos Estados Unidos da
América.

• 1906
Reavivamento da Rua Azusa, em Los Angeles, liderado por William
Joseph Seymour, origem dos movimentos pentecostais.

• 1909
Criação da Rosicrucian Fellowship.

• 1911
Lei de Separação da Igreja e do Estado Português.

304
• 1911
Criação da Convenção Geral das Assembleias de Deus, no Brasil.

• 1913
Criação da Sociedade Antroposófica.

• 1913
Início do Movimento das Assembleias de Deus.

• 1913
Publicação de Sâdhanâ: The Realisation of Life, por Tagore.

• 1917
Primeira aparição da Virgem Maria em Fátima, Portugal.

• 1931
Adoção da designação Testemunhas de Jeová por parte da Sociedade
Torre de Vigia.

• 1931
Aparição da Virgem Negra de Częstochowa, na Polónia.

• 1939
Publicação de Esboço para uma Teoria das Emoções, por Jean-Paul
Sartre, pioneiro do «existencialismo».

• 1945
Descoberta da Biblioteca de Nag Hamaddi, no Egito.

• 1945
Escola internacional da Rosacruz Áurea (Lectorium Rosicrucianum).

305
• 1948
Assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

• 1948
Fundação do Conselho Mundial das Igrejas.

• 1959
Fuga do Dalai Lama do Tibete na sequência da invasão chinesa.

• 1962-1965
Concílio do Vaticano II.

• 1973
Assinatura da Concórdia de Leuenberg, unindo a comunidade de Igrejas
Protestantes europeias, com exceção da Finlândia.

• 1977
Fundação da Igreja Universal do Reino de Deus, no Brasil.

• 1978
Declaração de Chicago sobre a Inerrância Bíblica, documento central
dos cristãos evangélicos fundamentalistas.

• 1981
Tentativa de assassinato do Papa João Paulo II.

• c. 1990
Osama bin Laden funda a Frente Internacional pelo Jihad contra os
Judeus e Cruzados, mais conhecida como Al-Qaeda.

306
• 1992
Destruição de uma mesquita em Aodhya, Índia, por «radicais hindus».

• 1993
2.ª Edição do Parlamento Mundial de Religiões.

• 2000
Carta pela Compaixão Universal, em Cracóvia (Polónia).

• 2001
Ato terrorista nos EUA, conhecido por «11 de Setembro».

307
Os textos apresentados neste volume são a compilação do que o
visitante encontra como conteúdos de natureza descritiva de cada
uma das tradições neste Observatório das Religiões. Não são textos
de carácter proselitista, mas apenas a forma de transmitir o fun-
damental de cada uma das tradições para que, assim municiados,
cada cidadão possa ter um olhar mais rigoroso e esclarecido sobre
um campo do conhecimento que é marcado pelo preconceito, pelas
ideias feitas.
Aos autores destes textos o mais sincero e imenso agradecimento
por terem colocado à disposição de todos nós o seu conhecimento.

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