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1. Introdução
O século XIX é palco de uma contradição linguística aparente: de um lado
é apontado como o período em que o português do Brasil chega a um ponto de
inflexão, na direção de suas características atuais; de outro lado, é reconhecido
como o período em que se fixa a moderna norma padrão recomendada pelos
manuais de gramática atuais. O primeiro movimento tem sido capturado por
meio do estudo de textos que refletiriam o vernáculo falado e foi sintetizado por
Tarallo (1993); o segundo movimento, ainda difusamente apreendido, é objeto
deste trabalho.1 O que se pretende é relativamente simples: comparar os dois
*
Doutor em Linguística, UNICAMP.
1
Note o leitor que este texto antecede os demais, que tenho produzido a respeito do tema. Sua
primeira versão é ainda de 1993 e foi escrita como um trabalho de final de curso de uma disciplina
do prof. Eduardo Guimarães, quando eu ainda cursava o doutorado. Uma versão posterior foi
apresentada no II Seminário do Projeto para a História do Português do Brasil, não ganhando
publicação por razões que me fogem. Em Pagotto (1998) os resultados que aqui se publicam
serviram de base para as reflexões acerca do processo político de construção normativa no Brasil.
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Pode-se ainda retirar desta passagem uma indicação de fontes de pesquisa muito interessantes
para a história do português do Brasil, como se vê.
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Na versão original do trabalho, foram apresentados os resultados de outros dois estudos
quantitativos: um sobre a posição do sujeito em relação ao verbo e outro, sobre o preenchimento
do sujeito. Tais resultados não apontaram para nenhuma diferença significativa entre os textos
constitucionais e, por razões de espaço, foram excluídos da versão que ora se publica.
Tabela 1 – Distribuição dos clíticos por contextos estruturais relevantes, nos dois textos constitucionais.
Constituição Próclise %
Império 29/37 7%
República 5/43 12%
Tabela 2 – Frequência de próclise nos dois textos constitucionais, com verbos simples de
sentenças não encaixadas, sem elementos “atratores”.
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Para não dizer que foi categórico, há um dado com ênclise nesse contexto, o que poderia revelar
hipercorreção, especialmente se considerarmos os resultados que vêm a seguir.
Oc. % Oc. %
Império 8 100 0 8
República 2 40 3 60 5
Total 10 3 5 13
Freq. %
Império 2/10 20
República 1/19 5
Freq. %
Império 0/11 0
República 0/9 0
Constituições Próclise
Freq. %
Império 7/7 100
República 2/5 40
3. Emprego de preposições
Nesta seção gostaria de explorar brevemente algumas construções
envolvendo o emprego de preposições: as construções com pronome relativo, as
encaixadas completivas nominais, expressões adverbiais sem preposição e o
emprego da preposição a.
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De lá para cá, vários trabalhos têm procurado reavaliar a mudança sofrida pelos clíticos. Ainda que
a época de implementação da mudança ou mesmo as estruturas relevantes sejam objeto de
discussão, penso que o ponto central que discutimos aqui ainda se mantém.
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O processo histórico e político implicado na alteração normativa foi objeto de vários trabalhos
posteriores e as hipóteses aqui apenas delineadas têm sido refinadas, numa investigação ainda em
curso. (cf. Pagotto: 1998, Pagotto: 2001, Pagotto e Duarte: 2005, Pagotto: 2008, Pagotto: 2011,
Cavalcante, Duarte e Pagotto: 2011.
4. Algumas curiosidades
Por fim, gostaria de indicar dois ou três casos que me chamaram a
atenção, mas aos quais não me é possível estabelecer o estatuto adequado.
Penso que revelam mais uma vez a diferença entre uma norma e outra, que
teria se estabelecido ao longo do século XIX.
4.4. Menos
O emprego de menos como denotativo de exclusão, aos nossos ouvidos
de hoje faz novamente soar a constituição do Império como uma conversa de
esquina (elas ainda existem?):
Império:
Art. 27
Nenhum Senador, ou Deputado, durante sua deputaçao, póde ser preso
por Autoridade alguma, salvo por ordem orden da sua respectiva Camara,
menos em flagrante delito.
e é evitado na constituição da República:
República:
Art. 20 – Os Deputados e Senadores, desde que tiverem recebido
diploma até sua nova eleição, não poderão ser presos, nem processados
criminalmente, sem prévia licença de sua Camara, salvo em caso de
flagrancia em crime inafiançavel.
7. Conclusão
O que pudemos constatar na análise dos dois textos constitucionais escritos
no século XIX é que há uma diferença quanto ao uso de uma série de construções,
em especial aquelas que envolvem os clíticos pronominais. Em alguns casos, pode-
se mesmo detectar uma inversão nos valores atribuídos a tais formas linguísticas. É
o que ocorre com a forma aonde, ou com o clítico em começos de sentença, que
passam a ser considerados impróprios nos textos escritos, não por serem arcaísmos
propriamente, mas por se lhes atribuir um valor inferior ou popular, o que motivaria
sua exclusão da norma recomendada. É no século XIX, portanto, que se dá a consti-
tuição de uma nova norma culta que, obviamente, não abandona todos os traços
da norma anterior.
Paralelamente a esse processo de mudança de valores para as formas
recomendadas para a escrita, há o processo de mudança operado no português do
Brasil, que veio dar nas características que hoje assume. Importante a destacar é
que, no mais das vezes, a constituição dessa nova norma não se dá pela incorporação
das mudanças que se processavam na gramática brasileira. Ao contrário, vários
traços incorporados a essa nova norma parecem ir na direção oposta àquela que
seguia o português brasileiro. Assim é com os clíticos, com a forma aonde, com a
variação na presença de preposição em relativas e completivas, com a variação no
emprego de infinitivos com se apassivador, ou no emprego de certos itens lexicais.
Foi justamente esse processo de constituição da norma no Brasil, na direção
oposta aos rumos tomados pela língua, que permitiu construir a unidade da língua
escrita entre Brasil e Portugal, que hoje em dia é ponto de honra para a manutenção
da norma padrão idealizada como bom uso nas gramáticas normativas brasileiras.
Não se pode ignorar que esse processo de normatização tem estreita
relação com o momento histórico que se vivia no século XIX, em que a construção
de uma identidade nacional precisava acomodar um passado e um presente
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