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2066
2066 começou e acabou numa sexta-feira. Agosto, mês de cachorro louco. Agosto de 2066.
Na cidade Universitária, junto com o seu amigo Olívio Jekupê, pegava o ônibus pro Jaçanã. Jekupê
é mestiço na língua do guarani. Olívio Jekupê estudava filosofia. Pelo caminho, já na Cardeal,
Olívio contava a história do Jaxy Jaterê protetor das florestas. Como eles eram escravizados, os
africanos sempre tentavam se vingar dos seus proprietários. Faziam das suas. E quando iam ser
castigados por seus atos, diziam que não tinha sido eles, e que era arte do negrinho de uma perna
só. Na época eles pegavam o nome Jaxy Jaterê e juntavam com a história africana. E como os
africanos não sabiam pronunciar Jaxy Jaterê, pronunciavam Saci-Pererê.
A história do Jaxy Jaterê era um livro muito gostoso que um dia ele ia publicar em português
e guarani. E chegando nas escolas e nas cidades, as pessoas iam ver a língua guarani. E nas aldeias
as crianças iam ler e escrever nas duas línguas.
Já na Doutor Arnaldo, ele disse que Jaxy Jaterê era o protetor das florestas, uma entidade das
nossas, e resumindo tudo, era o Saci indígena. E que nas aldeias que são guaranis, todo mundo
conhecia aquela história. Inclusive, se fossem no Paraguai, porque eles falam a língua guarani, lá
eles conhecem a história do Jaxy Jaterê. E se contarem a história do Saci, o povo do Paraguai não
vai saber, porque essa história foi criada, e fizeram uma grande confusão. E que podíamos dizer
que são duas entidades que protegem a floresta, a entidade indígena Jaxy Jaterê, e a entidade
africana Saci-Pererê.
E defendia o termo literatura nativa. Assim. Tinha três filhos que aprendiam a cultura guarani,
falavam a língua guarani, e iam nos rituais das noites pra aprender as histórias. Um dia quando
eles fossem escrever, não escreveriam com o pensamento da cidade, escreveriam com pensamento
da aldeia. Isso seria a literatura nativa. Já chegando na Consolação disse mais. Que não poderia
escrever uma literatura sobre os índios xavantes, porque não sabia como eles viviam, não sabia a
língua, e nunca tinha ido em uma aldeia xavante. Então não poderia criar uma ficção, só via os
xavantes na televisão, nas revistas e nos jornais. Caso fizesse, quando um xavante lesse, mesmo
que fosse o Hyparãdi Xavante, ia dizer:
- Não, isso não tem nada a ver com a nossa realidade. Literatura nativa era aquele conceito lá.
Centro, iam descer. Olívio Jekupê ia passar nuns parentes na aldeia do Pico do Jaraguá. De lá
ia pra aldeia Krukutu, na terra indígena de Tenondé Porã, pro lados de Parelheiros. Nas férias,
quando podia, ia ver uns aparentados lá pros lados do Paraná. Cada um tomou um rumo.
Foi pros lados da República, ia passar direto, mas entrou na Barão. Deu de cara com
marreteiros africanos. Vendiam batas, camisas, blusas, calças e acessórios diversos. Outros
vendiam máscaras africanas e estatuetas em pau de ébano. Parou pra ver e começaram a conversar.
Disse ser estudante de línguas, e que no Brasil não existia o falar crioulo, nem as línguas africanas.
Eles não. Falavam português, inglês, francês, espanhol, italiano e alemão. Até árabe eles falavam.
E também o fulani, o wolofe, o quimbundo, o quicongo e o umbundo.
E disse que como homem negro, via com bons olhos a chegada deles no Brasil. Uma segunda
colonização. Vinham como trabalhadores livres, não como escravos. Quebravam preconceitos, e
ajudavam o próprio povo negro do Brasil a encontrar com o seu passado e com a sua origem.
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Um bem escuro, o mais alto, disse que viera de Gana, e que sempre estudara inglês. Que fora
pra Inglaterra, Estados Unidos, e por fim caíra no Brasil. Não se conformava, candidato a professor
de inglês, não era aprovado nas entrevistas por brasileiros brancos em péssimo inglês. Como?
Como podia aquilo, como? Só no Brasil! Só no Brasil! Podia ser professor deles. Isso sim!
O outro, que se apresentou como Fily Kanouté, reclamou. Senegalês, estudara na França, fora
pro Quebec, depois se jogara pro Brasil. Mandava currículos, era chamado e reprovado nas
entrevistas.
Ele disse que passava pelos mesmos problemas. Queriam saber como aprendera aquelas
línguas, sendo brasileiro e filho de mãe analfabeta. Despediram-se, ficou de voltar um outro dia
pra comprar peça de um griot e conversar um pouco mais. Tinha que ir, tinha pressa.
Saiu dali e desceu a São João. Decadências. Comércio falido, fechado. Aqui e ali lojinhas de
africanos na venda de artigos. Paredes pichadas, gente dormindo pelas calçadas. Passando em
frente a uma lanchonete dessas da moda viu a cena. Na porta dois mendigos reviravam o lixo. Um
segurava e arregaçava a bocarra preta do saco plástico. O segundo ia metendo a mão dentro,
agarrava o que desse, limpava na roupa e enfiava numa tira colo. Outras vezes, metia a mão,
agarrava o que desse, não limpava na roupa, arregaçava a bocarra e engolia. Do nada surgia um
terceiro. Andrajoso, rescendia nauseabundo, carregando saco às costas, aproximou-se e perguntou:
- Qué qui tá saino aí?
- Hamburguer!
- De novo?! Então num quero! Pachorrento, deu alguns passos, achou pituca pelo chão,
apanhou, acendeu e foi pelos caminhos.
Dali atravessou o Anhangabaú, pegou o metrô até o Brás, e o trem até São Miguel. Ia pra escola
dar aulas de língua portuguesa pr’aquela molecada infernal.
Extra! Extra! Extra! No outro dia pela manhã jornais do mundo inteiro gritavam manchetes. A
nave Da Vinci entrara em queda livre na atmosfera da terra. Um ano antes fora lançada do
Cazaquistão, cheia de experimentos científicos e suprimentos pros cosmonautas que já estavam na
Estação Espacial Internacional a 420 Km de distância. Treinados pela NASA, entre outras
pesquisas que faziam, levavam coletâneas de micro organismos tirados das selvas, dos desertos,
das geleiras dos polos, e dos fundos dos oceanos. Bactérias e fungos colocados em placas pra se
desenvolverem em colônias, eram levados ao espaço, pra que os pesquisadores observassem como
se desenvolviam naquelas condições.
A missão espacial era composta por um astronauta russo especializado em astronomia. Por
um chinês perito em nanotecnologia. Um hindu com pós doutorado em biologia molecular. Uma
alemã com trabalhos em biofísica. E um estadunidense versado em física-quântica.
A fim de que a América do Sul participasse da conquista espacial, o Brasil fora convidado
a fazer parte daquele consórcio internacional. De última hora, porém, teve bate-boca entre os
ministros militares, o da Ciência e Tecnologia, o do Planejamento e o da Economia. E tudo
terminou em acusações de todos os lados, desvios de verbas, Comissões Parlamentares de
Inquéritos e pizzas.
Depois da quarentena teve festas, desfiles, cortejos e comemorações em Moscou, Pequim,
Berlim, Nova Delhi e Washington transmitidas em telões pra Brasília.
A vida voltara ao normal quando certa manhã Ivanovicth, o cosmonauta russo, sentiu-se
abafado por espirros e tosses convulsivas. Acamado, teve má aparência de lesões e manchas negras
na pele, feito quem tinha doença infecto contagiosa de facílima transmissão. Depois vieram as
febres, fadigas e dores musculares. Já morrinhento ficou congestionado de catarros, com dores de
cabeça e falta de ar. Achacoso, tossia sangue, tinha náuseas e vômitos. Em seguida padeceu
incômodo de inchaço dos gânglios que ficaram grandes como ovos de galinhas nas virilhas, axilas
e pescoço.
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e os bloqueios econômicos, pior. Ninguém entrava, ninguém saia. Nem por terra, nem por água,
nem por ar.
No dia em que a terra parou os setores primários, secundários e terciários, aviões e veículos
não transitavam mais entre as cidades. Assim, por não ter mais como carregar, navios petroleiros
ficavam ancorados ao redor do mundo. Plataformas já transbordavam, os oleodutos estavam
congestionados, e os estoques das refinarias abarrotados. Não tinha mais espaços pra estocar
petróleo bruto. Sem o fluxo comercial, e pela baixa demanda de petróleo pelo mundo, os armazéns
de terra e as tubulações ficavam lotadas.
E pela primeira vez na história da Igreja, numa Sexta-Feira Santa, sozinho, o papa rezou
missa na praça de São Pedro vazia, dando bençãos e indulgências plenas a um bilhão e trezentos
milhões de católicos pelo mundo, perdoando a todos os seus pecados.
E pela primeira vez em 1400 anos, que o Ramadam inteiro, quando um bilhão e seiscentos
milhões de muçulmanos faziam jejum absoluto do nascer ao pôr do sol, não podiam fazer a
peregrinação a Meca e sete vezes girar em torno da pedra da Caaba.
dia, já indiferentes aos centenares de roedores que pululavam pelos caminhos, ronronavam
empanzinados pelas calçadas e telhados.
Diz que no Círculo do Anel de Fogo do Pacífico, os sinais caiam do céu pra todo mundo
ver. Na Ásia, pela primeira vez na vida, vulcões entraram em erupção ao mesmo tempo.
Ao sul da principal ilha do Japão, na cordilheira de Kirishina, a menos de 2 quilômetros de
Tóquio, o vulcão Shinmoe, adormecido por 52 anos, despertava cuspindo cinzas e pedras a uma
distância de 3 km de altura. Uma área de quilômetros em volta da montanha foi isolada. Cidades,
campos e estradas ficaram cobertos por camadas de 5 centímetros de fuligem. Os trens também
paravam, porque os trilhos estavam cobertos de cinzas e pedras.
As escolas fechavam, os moradores usavam máscaras pra se proteger das cinzas, e muitos
eram levados pros abrigos. Pessoas relatavam não conseguir dormir por causa do barulho das
pedras caindo nos telhados durante a madrugada.
Outro vulcão assustando a Ásia, o Bromo, ficava na ilha de Bali, na Indonésia, e atirava
cinzas a lavas a uma distância de 5 quilômetros. Pior, pior mesmo, foi o Anak Krakatau, também
chamado Anak Krakatoa. Num sábado de madrugada entrou em erupção após violenta explosão
ouvida em Jacarta, capital, a 150 km de distância do vulcão.
Estavam sendo aguardados também, violentos terremotos na cidades de Palu e Donggala,
na ilha Celebes, onde além dos tremores aconteciam gigantescos tsunamis. E a Rede Sismográfica
Global captava também um abalo sísmico, a 10 km de profundidade e a 173 km a leste-sudeste de
San Jose del Cabo, México, numa quarta-feira, às 5:46 da manhã.
Com as notícias, muitos diziam que eram os sinais do fim dos tempos. Que o mundo uma
vez, na geração do Noé, tinha se acabado em água. E que agora não. Ou o mundo se acabava em
fogo e ranger de dentes, ou se acabava de vez todo mundo no bafo pestilento do vírus. E que não
era bolinho não. E que não tinha pra onde correr, nem onde um cristão se esconder. E tudo se
acabava, e não ficava ninguém pra contar a história.
Uma noite o prefeito falou em rede. Junto com a sua equipe tinha instalado o Plano de
Contingência do Serviço Funerário. Seguinte: Estruturas estavam sendo montadas nos cemitérios,
próximas aos locais das sepulturas. E com os novos geradores de energia, os enterros noturnos
poderiam ocorrer a partir das 18 horas nos vários cemitérios da cidade. Como estavam em situação
de emergência, contratavam 1600 coveiros pra trabalharem de dia, e outros 1600 pros trabalhos
noturnos. Implantava também o serviço de geoprocessamento de corpos pra um rápido
rastreamento, localização, recolha e encaminhamento de cadáveres pela cidade.
Além do mais, tomava outras medidas necessárias. Mandava abrir mais 65 mil novas covas
e sepulturas. E comprava novas câmaras refrigeradas pra armazenar folgadamente, até 5 mil corpos
por dia, pra atender ao crescente número de mortes provocadas pela pandemia.
E disse mais, que tudo fazia pra amenizar a dor das famílias que perdessem um dos seus
entes queridos. Por isso o Plano de Contingência do Serviço Funerário, era um plano comparável
aos melhores planos do gênero de qualquer país do primeiro mundo. E detalhou. Além de aumentar
o número de valas e covas individuais, mandava construir milhares de jazigos familiares, com até
quinze vagas pra melhores e mais amplas acomodações. Tudo pra que as famílias pudessem dar
um sepultamento digno aos entes queridos que, infelizmente, fossem perdidos durante a crescente
demanda de vagas provocadas pela pandemia.
Afora isso, também iam viabilizar a construção de cemitérios verticais em terrenos do
município. E a grande novidade, eram as gavetas de biossegurança. Especialmente projetadas pro
sepultamento dos corpos das pessoas mortas pela infectocontagiosa trazida pelo vírus na
pandemia. Iam instalar mais de 65 mil com tecnologia de redução do gás sulfídrico, ou sulfeto de
hidrogênio, resultante da decomposição dos corpos.
E esmiuçou mais ainda os planos da área mortuária. Adquiriam mais de 260 câmaras
refrigeradas que serviriam de apoio pro armazenamento temporário das urnas funerárias. Cada
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câmara com a capacidade de abrigar até 50 urnas e, caso necessário, através de dispositivos
tecnológicos de última geração, poderiam ser ampliadas o quanto fosse preciso.
Inovando sempre, o serviço de abrir as milhares de novas valas e covas, passava a ser feito
com a utilização de retroescavadeiras, e que se necessário fosse, tinham capacidade pra trabalhar
24 horas por dia, e enterrar a todo contento. E mais. Além das urnas funerárias, a administração
adquiria sem licitação, mais de 70 mil sacos reforçados pro deslocamento de corpos pela cidade.
E como se não bastasse, o número de carros da frota funerária pro traslado de corpos que era de
32 passou a 157 veículos, afora os autos saindo das oficinas de reparos. E a capacidade de
sepultamentos pulou de 340 pra dois mil e tantos corpos por dia, podendo ainda ser ampliada. As
lojas funerárias tinham atendimento de plantão com funcionários muito bem treinados e
preparados. Além das autorizadas e das licenciadas, já estavam instalando mais de 175 novas
agências próximas aos hospitais de referência, clínicas médicas cadastradas e casas de repouso
conveniadas.
E que o vírus estava se espalhando por todas as regiões e bairros da cidade, que ficassem
em casa, e que o pior ainda estava por vir. E deu boa noite a todos finalizando:
- Descansem em paz.
A cada canto do mundo, por sua virulência e mutação, a pandemia apresentava diferentes
síndromes através de seus inúmeros sintomas. A cada canto do mundo davam um nome.
Oficialmente foi chamada de Doença da Estação Orbital. Como todos temiam o contágio, temiam
mesmo até pronunciar o nome. Ao invés de Doença da Estação Orbital, quando chegava nota de
falecimento de alguém, querendo saber o motivo do passamento, perguntavam:
- Morreu de quê?
- De doença da Lua.
- De doença do Espaço.
- De doença da Estação.
- Daquela doença.
- Daquilo que nem digo o nome.
Naqueles dias, parecia o fim dos tempos, e que o mundo ia se acabar. Tempo de prodígios
e fatos sem par. Centenas e mais centenas de patos juntos com outros pássaros, tombavam dos
céus pelos campos da Dinamarca. Milhares e milhares de andorinhas que migravam da África pra
Europa, eram mortas por ventos quentes que atingiam a Grécia. Os pássaros eram encontrados
pelas varandas dos apartamentos de Atenas, aos montes em torno de um lago próximo ao porto de
Nauplia, no Peloponeso, e também aos milhares ao norte do Mar Egeu. Centenas de aves em
revoadas, caiam na Turquia, no distrito de Nehil Sazliginde. E garças reais na cidade de
Yuksekova, na fronteira com o Irã.
Bandos de estorninhos perdendo o equilíbrio, colidiam entre si, e despencavam sobre a
eterna cidade de Roma, principalmente pela Porta Angélica, Burgo Vittorio, Burgo Pio, e pela Via
da Conciliação, impedindo acessarem o caminho do Vaticano. Aí foram ver. Veterinários fizeram
exames nas aves. Não tinham dúvidas. Era o tal do vírus da pandemia. Altamente contagioso, e
que além de contaminar as aves, contaminaria também outros animais e os seres humanos.
Então começaram a dizer que tinha chegado o tempo do apocalipse. O tempo do tempo
final. E que aquilo era um sinal da vinda da Besta, junto com os Cavaleiros do Apocalipse. Era um
aviso, vinha vindo, vinha vindo. Era um sinal. As aves pingavam nas ruas de Roma pra que
ninguém, mas ninguém mesmo, achasse os caminhos do Vaticano, e falasse ou ao menos visse o
papa, nem que fosse de longe. E que era um sinal. E que as avezitas desabavam mortas das nuvens
e dos céus, porque lá pelas profundas não existiam pássaros. Era só um sinal. Depois viriam outros,
e outros piores, piores ainda do que as dez pragas do Egito. Era só gente rezando, rezando e se
trancando em casa.
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Dizem que aquela foi uma oportunidade de ouro pra paz, dada pela pandemia e pelo vírus
pelo mundo. Por aqueles dias as guerras foram interrompidas e os grupos desarmados em
Camarões, República Centro Africana, Colômbia, Líbia, Myanmar, Filipinas, Sudão, Síria,
Ucrânia e Iêmen acataram a proposta de silenciar os canhões.
O apelo a um cessar fogo imediato em todos os cantos do globo, tinha como objetivo
mobilizar cada grama de energia pra dar espaço às ações diplomáticas, e ajudar na mobilização
pra derrotar a Doença da Estação Orbital.
Parece que por aqueles tempos, ficar em mansões nas praias ou em castelos pelos campos,
já não bastava pra se isolar do vírus. E a tendência naqueles momentos era os milionários irem
pros seus iates de luxo cercados por famosos e personalidades da moda, da tecnologia e do mundo
dos esportes. Por mares e oceanos, bilionários navegavam iates na esperança de enfrentar o vírus
com conforto.
O super iate Pégasus, embarcação de luxo, estava ancorado em Canouan, nas ilhas
Granadinas pertencentes a São Vicente. O multi-bilionário russo Andrey Alexey, dono de um
clube de futebol europeu, navegava com o seu Sunshine, e oferecia a um grupo seleto de amigos,
isolamento cinco estrelas nas águas de Saint-Barts, também conhecida como Jóia do Caribe. Um
outro moscovita por nome Vladimir Bóris Nikolay, vice presidente do sindicato dos químicos da
Rússia, em seu iate batizado Netuno, navegava por Antígua e Barbuda, no encontro entre o
Atlântico e o mar do Caribe, país conhecido por suas praias paradisíacas com recifes de coral,
florestas tropicais e resorts. Navegava também por aqueles tempos o Albatroz, iate do tamanho de
um campo de futebol, e de propriedade do banqueiro e empresário Jonathan W.J.Jr, sempre
avistado ancorado com sua belonave no Golfo do México. Já o Dragon Fly, capitaneado pelo sócio
fundador de uma gigante do setor de acessórios pra computadores Ygor Dimitri, era visto
flutuando entre a Bahamas e o Caribe.
Certa feita, um deles, em entrevista ao New York Times, o mais importante jornal do
mundo, sobre a questão da pandemia, respondeu:
- Sou contra as barreiras sociais. Estamos todos no mesmo barco.
Com o vírus, com a pandemia, e principalmente, com as igrejas fechadas, aqui e ali
começavam a surgir profecias apocalípticas. Que o mundo não estourara com o Bug do Milênio
no 2000. Mas que ali, exatamente 66 anos depois, nem mais nem menos, o Bug voltava e
provocaria verdadeiro caos bíblico na humanidade. E que o Vaticano fizera previsão nostradâmica
divulgando textos com os segredos de Fátima, a visão mais profética das aparições modernas, e
comparável às Sagradas Escrituras. E que era pro povo deixar de acreditar em falsos messias e
falsos profetas que encenavam grandes prodígios e maravilhas pra enganar os incautos.
O Vírus chegava aos presídios. Parecia mesmo até a peste da Idade Média. Pra população
carcerária, o vírus representava uma condenação à morte. Os efeitos do vírus dentro do sistema
prisional eram devastadores pra quem estava no cativeiro, ou pras suas famílias.
As visitas foram suspensas por todos os estados, e a proibição era vista como abandono
pela população carcerária. Nos outros países, por conta do vírus, queriam libertar somente os
presos de crimes não violentos e os de grupo de risco por diabetes, hipertensão, doenças
respiratórias, idosos e soropositivos.
No Brasil, o Ministro da Justiça e Segurança Pública queria isolar os presos infectados em
contêineres metálicos. Já o Conselho Nacional de Justiça, e o Supremo Tribunal Federal
consideraram a proposta ilegal, e que, ao contrário, deveriam ser criadas e equipadas por todo o
país as celas enfermarias, e que não tinha motivos pra se preocuparem com a pandemia nas prisões.
Deputados propunham, sem votação e em caráter de urgência urgentíssima, a liberação de verbas
e mais o auxílio dos fundos disponíveis em reservas orçamentárias pras situações emergenciais de
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Por aqueles dias o Presidente do Sindicato do Pessoal de Limpeza, em entrevista, disse que
todo o empenho, técnica e pericia dos cirurgiões e clínicos, não era nada sem o trabalho deles. E
que o sucesso de cirurgias, transplantes e de quaisquer outros procedimentos médicos, dependiam
sim, do bom trabalho executado por eles. Só que além dos equipamentos de segurança individual,
que eles não recebiam, faltavam itens como panos, sabões, detergentes, desinfetantes, vassouras,
rodos, papel higiênico e outros produtos básicos de higiene e de limpeza. E que por medo do
contágio da pandemia nos hospitais, e por estarem com quatro meses de salários atrasados, vários
funcionários tinham desaparecido, e muitos pediam demissão mesmo sem justa causa e sem
receber os seus direitos trabalhistas, ou simplesmente abandonavam o posto de serviço. Sumiam.
Secretarias de Saúde lamentavam as mortes de seus profissionais e do pessoal de apoio, e
anunciavam a chegada de 200 toneladas de equipamentos pros meses seguintes.
Diz que aquela pandemia era pior do que aquele onze de setembro, pior. Veio numa
explosão silenciosa e se alastrou pela sociedade de forma aleatória e vil. No começo os enterros
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eram feitos em um dia por semana, depois passavam a cinco dias, depois diariamente. Naquele
tempo um mês parecia um ano. Funcionários vinham protegidos por macacões brancos, máscaras,
capacetes e tubos de oxigênio, pareciam até astronautas. O corpo era trazido, e todos ficavam atrás
de uma linha vermelha. Dali até o féretro eram dez passos. Era terminantemente proibido tocar
nos caixões de madeira envelopados onde iam os corpos. Os que tentassem burlar as determinações
eram fortemente contidos por soldados armados com pistolas de choque, e depois arrastados pra
fora. Num grupo de até três pessoas, faziam uma vigília de no máximo dez minutos. Murmuravam
orações e choravam. Outros faziam silêncios. Nem mais um minuto. Eram surdos aos gritos,
súplicas e desmaios dos parentes, e os corpos eram levados. Morria muita gente, muita gente.
Sobreviventes tampavam a boca e o nariz com material feito de pano ou de papel quando andavam
pelas ruas. Quando um corpo cujos familiares não tinham recursos pra arcar com os funerais, ou
não tinha ninguém que aparecesse e dissesse:
- Eu conheço e amo essa pessoa, e trato do seu funeral. Era levado pras valas de Hart Island,
a leste do Bronx. Ali, nos últimos duzentos anos, tinham sido sepultados os residentes de Nova
Iorque que não tinham ninguém próximo, não eram reclamados pelas famílias, e nem tinham
parentes com recursos pra pagar os funerais. Segundo os anais, na Guerra Civil de 1864, Hart
Island era local de treino pro regimento de soldados negros do serviço de tropas da união.
Desde então, a ilha já fora usada como campo de prisioneiros, hospital psiquiátrico,
cemitério, centro de acolhimento pra pessoas sem abrigo, reformatório, prisão e centro de
reabilitação pra toxicodependentes. Certa feita viabilizavam projeto de um parque de diversões pra
funcionar por ali, mas não deu muito certo não. Durante a Guerra Fria, Hart Island recebeu uma
base de lançamento de mísseis balísticos.
Diz que no passado o trabalho de abrir as valas e enterrar os caixões costumava ser feito
pelos prisioneiros da penitenciária de alta segurança de Rickers Island. Mas com o aumento do
número de mortes, obrigou as autoridades locais a contratar os serviços funerários de empresas
altamente especializadas.
Naqueles dias quem viu, viu, sabe. Parecia até que o mundo, o empírio, a natureza, e tudo
que era telúrico e que vivia debaixo do sol, da lua, e sobre a face da terra, queriam renascer e
começar uma outra criação melhor. Com a redução do tráfego e da poluição do mundo, as flores
silvestres reapareciam. Pelas margens das estradas e calçadas vazias, milhares de espécies de flores
silvestres e urbanas começavam a brotar e a inundar cidades ao redor do mundo. Esvoejavam
abelhas, borboletas, pássaros e insetos.
Aproveitando que não tinha gente, feito um bicho quando era caçado, a humanidade estava
escondida com medo da pandemia e do vírus, os bichos do mundo inteiro resolviam andar por aí.
No Japão, os cervos voltavam a perambular por lá. Pros lados da Tailândia e da Índia,
famílias pachorrentas de elefantes cruzavam novamente as estradas. No Nepal os rinocerontes. Já
pros lados da Austrália, na cidade de Adelaide, cangurus saltitavam pr’ali e pr’aqui. Famílias
de leões e de hienas zanzavam pelas praças e parques da África do Sul. Charmosos, javalis e patos
desfilavam pelas ruas de Paris. Já em Londres eram as ovelhas, e as cabras no País de Gales. Em
Veneza, sem os barcos a diesel circulando, reapareciam os peixes, os cisnes, e os patos.
Do outro lado do mundo, nos Estados Unidos, coiotes reviravam as praias de São
Francisco. No Arizona os javalis. E no Alaska, ursos saiam em bandos pra pescar salmões nos rios.
Focas e leões-marinhos dormitavam pelos caminhos de Mar Del Plata. E no Chile, pumas desciam
das montanhas, e vinham passear nos quintais das casas de Santiago e Valparaíso. E pra terminar,
num zoológico lá da China, depois de muitos anos de cativeiro, ursos pandas começaram a
procriar. Parecia até que o Noé vinha vindo de novo.
sisuda de instalação militar, o lugar contava com apartamentos decorados, e que, segundo a
incorporadora, ofereciam proteção contra uma variedade de catástrofes sem perder o charme e o
estilo. Ainda segundo os empreendedores, cada apartamento contava com 125m² de espaço
customizado pelos ocupantes. Nas áreas comuns um festival de mimos em bares, restaurantes,
cinemas, serviços médicos, fitness e segurança. O preço era guardado a sete chaves, até porque,
os ocupantes eram selecionados através de convite.
Já nos Estados Unidos, a empresa Eva Corporation, atendia em um primeiro momento, e
exclusivamente, corporações que buscavam local seguro pra salvaguardar seus arquivos com
memória de dados, em caso de um ataque nuclear. Investimentos em milhões foram feitos pra
equipar o complexo com tudo o que tinha de mais moderno na época em termos de conforto e
segurança. Viram que era bom. Daí as ideias foram direcionadas pros seres humanos. No início da
ampliação dos investimentos temiam apenas os conflitos sociais, e até mesmo um surto de ebola.
Os ataques de 11 de setembro também ampliavam os negócios. Mais tarde, ali pelo ano de 2020,
com o surto do Corona-Vírus, vulgo Covid 19, o mercado também aqueceu, e muito. Mas nada,
nada, nada parecido com aquela pandemia, aquele vírus, aquela catástrofe. Nada, nada, nada
parecido. O céu era o limite. As vendas explodiam em milhões. Somente pros preparados, ou seja,
pr’aqueles que investiam tempo e dinheiro pra não serem pegos de surpresa por uma catástrofe de
proporções faraônicas.
Eram bunkers de luxo, onde os ricos e super ricos pudessem se proteger mesmo no caso de
uma hecatombe nuclear de proporções inimagináveis. A ideia era proteger física e mentalmente os
clientes, e caso fosse necessário, poderiam ali ficar sem vir à superfície por até cinco anos
consecutivos.
Acessado apenas por um intrincado e sofisticadíssimo sistema de túneis e elevadores,
controlados por supercomputadores com senhas de segurança, e leitura biométrica de íris e retina.
O sítio tinha redoma de cobertura da robustez de um prédio, e era resistente a ventos de até 800
km/ hora. E, se fosse preciso, fora projetado pra suportar terremoto de muitos graus de magnitude
na escala Richter, pior até do que aquele que destruiu São Francisco. Parecia cidadezinha
subterrânea.
Quando começou a grassar a pandemia, chegavam os novos moradores com os seus
secretários, mordomos e pajens. Como não estavam funcionando o dinheiro eletrônico ou cartões
de crédito, alguém trouxe uns trocados no bolso pras despesas miúdas e pequenos contratempos.
Dias depois foram ver, um hóspede aparecia doente. O vírus se multiplicava no dinheiro atraído
pela textura, pelo cheiro e pela tinta do papel.
Com a pandemia e o vírus, a morte vivia por todos os lados. Diz que numa tarde de terça
calorenta de verão, em Nova Iorque, no bairro do Brooklyn, moradores se queixavam do cheiro
desagradável pela vizinhança. Foram ver. Eram três caminhões estacionados perto de uma agência
funerária, com dezenas de cadáveres cada um. Procurado, o proprietário daquela casa do ramo
disse que não tinha tempo de preparar tantos corpos que chegavam de todos os lugares, pois
trabalhava sozinho, seus funcionários pediam demissão, não conseguia contratar mais ninguém, e
o sistema refrigerado dos caminhões parara de funcionar. E que devido à pandemia e ao vírus,
sobrecarregava enormemente a capacidade das agências funerárias e cemitérios. E que já tinha
telefonado, tudo estava se resolvendo, a carga toda ia ser repassada pros outros dois caminhões
que já chegavam. De qualquer forma, ele seria autuado pelo Departamento de Saúde por
tratamento inadequado de cadáveres.
Diz que naqueles dias um mês parecia por um ano, e nos asilos e casas de repouso dos
bairros de altíssimo padrão da cidade, encontravam pilhas e mais pilhas de corpos de idosos pelos
quartos, salas, varandas, cozinhas e até pelos corredores e escritórios. Os lares de idosos corriam
grande risco, pois um simples contato com o vírus, causava grande número de mortes, se não
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detectado imediatamente. Pediam quarentena, mas os asilos precisavam de funcionários, que saiam
de suas casas sem fazerem os testes de contaminação.
E assim, de repente, do nada, corriam notícias de que os velhos, clássicos portadores de
doenças crônicas como os ratos da Idade Média, eram hospedeiros preferenciais do vírus, e agentes
principais da pandemia e da contaminação. Com as notícias, carros paravam pelas avenidas e
rodovias, abriam as portas, tiravam cadeiras de rodas, colocavam ali os seus velhos sentados e
sumiam. Com andadores velhotas e velhinhos claudicavam pelas praças. Apoiados em bengalas,
e tentando atravessar as ruas, idosos eram propositalmente atropelados. Com medo, apavorados, e
procurando refúgios, muitos ficavam pelos cantos, debaixo das marquises e não atravessavam as
vias públicas. Estes então passavam a ser alvejados.
Diz que os bichos andam com os seres humanos pelo meio do mundo, desde o tempo em
que os bichos falavam. E metiam em ladainhas que o gato às vezes era visto como um Deus, e já
outras vezes como bicho de agouro, portador de más notícias e presságios. E que segundo os
hebraicos e os povos da Babilônia, por suas semelhanças físicas e comportamentais, o gato teria
nascido do espirro de um leão. E davam em quatro dedos de prosa que pros lados do Egito antigo,
no tempo dos faraós, com o corpo de mulher e cabeça de gato, andava ali pelos telhados a Bastet,
deusa da fertilidade e do amor materno
E arengavam ainda em uma ou duas palavrinhas que a Idade Média era um tempo marcado
pela bruxaria, pela superstição, pelo Tribunal da Inquisição e pela Mesa da Consciência. Desta
feita, o gato, animal solitário e independente, passou a representar a sabedoria e a proteção.
E davam à língua os mais antigos e versados em rezações, que o gato preto macho passou
a ser utilizado nos sabás e rituais de magia como personificação do Demônio. E assim, os olhos
vibrantes e brilhantes dos gatos durante a noite, assustavam e eram vistos como símbolos do mal.
Naqueles tempos de superstição, ignorância e atraso, o Tribunal da Inquisição perseguia não
somente as bruxas, mas igualmente os gatos.
E metiam o bedelho em dizendo que naquelas quadras dos anos de 2020, o povo ainda
estava muito atrasado, desinformado, e acreditava em coisas do Arco da Velha, hoje mais não. Foi
quando os gatos foram acusados de serem os portadores da pandemia e dos vírus que matavam
tanta gente. E a fim de se redimirem, numa sexta-feira, à meia-noite, tinham que sacrificar um gato
preto, e lavar com o seu sangue uma tumba por trás dos muros de um cemitério, ou numa
encruzilhada no meio das matas, a fim de abrir os caminhos pra doença ir embora. Aí foi um Deus
nos acuda. Era gato correndo pra lá, gato correndo pra cá. Em 2066 as coisas não foram diferentes.
Chegava gente de todo canto, todo canto, todo canto. De todo canto chegava gente.
Hospitais de campanha eram construídos em estádios de futebol e ginásios de esportes. O caos era
devido ao avanço e ao aumento não previstos da doença. Profissionais contaminados iam pro
afastamento. Diários Oficiais chamavam os aprovados em concursos dos anos passados e
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2066 Luís Fulano de Tal
retrasados. Na urgência faziam admissões por contratos. Estudantes do último ano, mesmo sem
residência médica, eram chamados. Como a situação apertava, além dos residentes, chegavam os
quintanistas e os quartanistas.
Não negavam atendimentos, mas pouco podiam fazer sem os equipamentos de respiração.
Escolhiam quem tinha mais chance de sair. Entre uma pessoa com muitas comorbidades e um
quadro incapacitante, o equipamento ia pra outro paciente. Pro pessoal de apoio, técnicos, médicos
e enfermeiros faltavam equipamentos de proteção individual. O pouco que tinham faziam
vaquinha pra comprar.
Curar quando possível, aliviar quando necessário e consolar sempre era a máxima dos
médicos. Mas para aquela pandemia, não existia tratamento cientificamente eficaz disponível em
nenhuma parte do mundo, estavam à procura de uma solução. Causava pneumonia grave e
insuficiência respiratória. Na empreitada eram fundamentais além de estruturas e equipamentos a
presença diuturna de médicos ao lado de enfermeiros cuidando de cada um dos doentes.
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2066 Luís Fulano de Tal
Chegavam com falta de ar. Paramentados do jeito que podiam, médicos vinham examinar.
Muito chiado, esforço respiratório, falta de apetite, e sem sentir o cheiro e sabor dos alimentos por
mais de três dias. Antônio, José, José, Antônio 47 anos, motorista e sem problemas de saúde. Após
aplicação de bronco dilatadores, apresentou alguma melhora. Tomografia em vidro fosco. Coleta
de material e teste rápido. Sem alta. Oxigenação e pressão baixas. No dia seguinte, o médico de
plantão voltou a usar bronco dilatadores. No outro dia bronco dilatadores paravam de fazer efeito.
Estava já com cinco dias sem ver a família, que vinha todos os dias receber notícias. Sugeriam
chamada de vídeo entre a família e o doente.
Piora muito rápido. Entubado, é colocado em ventilação mecânica, e com uso de drogas
vasoativas pra subir a pressão arterial. Um, dois, três, quatro dias. Regulam parâmetros do
ventilador, ajustam drogas, corticoides. Colhem isso, colhem aquilo, exames. Suspendem a dieta.
Novos parâmetros.
Chega alguém da família. A médica brinca. Botar o gato no telhado. Deixa eles se
despedirem pelo vidro da porta da sala de emergência. São quatro e cinco da madrugada. A equipe
desiste. Não tinham mais o que fazer. Às quatro e trinta e dois ele falece. Toda a equipe em volta.
Ficaram falando com ele até partir. Pensa. Deve ser horrível morrer com falta de ar.
Às 5 da manhã vai tomar um café, uma água e respirar. É a primeira vez que se
desparamenta. Tira o capote, a máscara de proteção facial, a N95, a máscara cirúrgica, as duas
luvas e as botas. Vai pro chuveiro, Sai. Passa pela sala do conforto médico. Nas comunicações o
governador dizia que tudo ia acabar bem. O Secretário de saúde dizia ter em mãos os números e
os dados oficiais da pandemia. E que toneladas de equipamentos estavam chegando já pelas
próximas semanas. Sai.
Além dos pulmões, médicos observavam reflexos nos rins, fígado, coração, cérebro e
intestinos de consequências devastadoras. Tinha ferocidade, era arrasadora. Aquela pandemia
deixava todos de joelhos.
A maioria dos pacientes graves era acometida por microtrombos. Na circulação pulmonar
não permitiam o sangue chegar aos pulmões, pra remover o carbono e levar o oxigênio. Os
pacientes ficavam com o sangue coagulado de forma anormal. Os coágulos sanguíneos
bloqueavam a circulação nos pulmões e outros órgãos. Os pulmões eram atacados primeiro. O
vírus matava as células dos alvéolos, e fazia com que eles se rompessem. O pulmão ficava
inflamado, e a circulação dos vasos do sistema respiratório era afetada, o que por si só já podia
matar. Sofriam embolia pulmonar. Os microtrombos afetavam tão intensamente a circulação, que
seus efeitos eram visíveis em necroses nas mãos e nos pés dos pacientes.
Tudo era extremamente grave e complexo. Aquilo tudo parecia a ponta de um iceberg.
Além de terem complicações seríssimas do baço, apresentavam necrose dos gânglios linfáticos,
responsáveis pela produção das células de defesa.
Começavam a surgir casos de hemorragias nos rins bombardeados pelo vírus. Necessidades
urgentes de diálise e oxigenação extracorpórea por membrana, equipamento que evitava
intoxicação pelo gás carbônico acumulado devido à má oxigenação causada pela doença. A técnica
consistia em usar uma bomba pra fazer circular o sangue por um pulmão artificial fora do corpo,
regressando depois à corrente sanguínea.
Viam. O sistema imunológico era atacado numa reação descontrolada chamada tempestade
imunológica, causando inflamação generalizada. Situação crítica. Médicos e enfermeiros
reclamavam de falta de equipamentos, macas e máscaras. Situação crítica, não tinha espaço pro
pronto-atendimento. Parentes traziam pacientes nos braços, tentavam invadir unidades médicas
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2066 Luís Fulano de Tal
pra conseguir um leito. Seguranças eram chamados, ouviam desafios, desaforos e desacatos.
Situação crítica.
Terapias que eram boas pra um paciente, não eram boas pros outros, nenhum doente se
comportava da mesma maneira. Não existia uma receita única pra tratar a todos. O tratamento
tinha que ser individualizado. Os procedimentos eram conforme a genética de cada pessoa, e a
existência ou não de comorbidades como diabetes e hipertensão importavam muito.
Com o tempo também chegavam pacientes não idosos e que não tinham comorbidades.
Com mais de vinte dias de terapias ainda estavam em estado grave.
Febre, muita febre. Várias sedações pra melhor adaptação ao respirador mecânico, conforto
e diminuição das dores. Febre, muita febre. Os que estavam lúcidos relatavam cansaço e dor nas
costas ao respirar. Deprimiam pelo isolamento, tosse desesperadora. Não aceitavam a dieta
oferecida pela dispneia, falta de paladar e olfato. Medicamentos diversos e antibióticos. De nada
adiantavam tantos investimentos e cuidados intensivos. No fim o vírus vencia. A morte vinha
rápida e sofrida. A saturação ia caindo, e a pressão arterial diminuindo, mesmo com doses
altíssimas de drogas vasoativas. Passavam algodão nos olhos pra secar líquido que parecia lágrima,
mas não era.
Seguindo protocolo, diferente do óbito comum, perfumavam o corpo como uma forma de
amor, respeito e dignidade. Mesmo sabendo que os familiares não teriam aproximação, velório,
nem tempo pra chorar. Fechavam aquele saco preto. Escreviam na etiqueta: Risco biológico. Nível
três. Acabava o trabalho. Quatro homens vestidos como astronautas vinham buscar o corpo pra
sepultá-lo. Era enterrado sem nenhuma placa dizendo que em vida tinha sido bom filho, irmão,
pai, marido ou amigo. Nada.
O micro organismo sobrevivia horas ou dias na superfície de objetos como telefones, mesas
e botões de elevadores. Podia ser transmitido pelo toque, por um aperto de mão, ou pelas gotículas
de saliva enquanto a pessoa falava ou tossia.
Infectologista, ela entrava em contato direto com os pacientes contaminados. Estava
vestida com o privativo, roupa de trabalho que ficava dentro do hospital, sapatos especiais e touca
nos cabelos. Punha avental descartável, luvas e capacete com viseira transparente. Enfermeiros e
fisioterapeutas respiratórios corriam pra se paramentar com equipamentos de proteção contra a
contaminação.
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2066 Luís Fulano de Tal
No seu plantão corria os leitos de terapia intensiva. Via nas fichas: José,73. Adão,65.
Renan,36. Adauto,43. Vitor,27. Vanessa,22. Andreza, 16. Era possível perceber que o vírus não
poupava os mais jovens. Não existiam altas, e só surgiam vagas pra usar a cama e o ventilador
quando alguém morria.
Além do vírus, um outro grande problema surgia lá fora. Médicos e paramédicos passavam
a ser vistos como pragas que poucos queriam ter ao seu lado. Pelas ruas passavam a ser atacados,
xingados, empurrados e escurraçados. E, se possível, gostariam de marcar cada um com uma
grande letra escarlate no peito. Pra disfarçar e se livrarem dos ataques, passavam a vir trabalhar
sem uniformes e vestidos civilmente. Inauguravam linha de ônibus exclusiva pra trazer e levar
funcionários. Os ônibus eram apedrejados. Contratavam seguranças pra escoltar equipes médicas
até os seus carros.
Chegando no seu apartamento foi interpelada pelos vizinhos que vociferavam:
- Se um caso for confirmado no nosso prédio, você será responsabilizada.
Pela manhã, foi pegar o carro na garagem pra ir pro seu plantão. Viu, estava todo pichado:
Rata contagiosa. Rata contagiosa. Rata contagiosa. Caiu em choque. Por depressão foi
afastada das suas funções.
E aí, do nada, naqueles dias parecia que o mundo ia se acabar. Quem viu, viu. Fim dos
tempos. Apocalipse. Inesquecível feito uma guerra ou uma bomba nuclear. Vinha do Oriente pro
Ocidente, do nascente pro poente, do Hemisfério Norte pro Hemisfério Sul. Da Ásia, Oceania pra
Europa. Da Europa pra América do Norte, América Central e Caribe. Do Caribe pra América do
Sul e pro Brasil.
Fugindo da pandemia e do vírus, massas humanas dispersadas em diásporas e êxodos
migravam em caminhos pro sul. Todos queriam chegar na Patagônia, Terra do Fogo, Fim do
Mundo. Os continentes se mexiam, as américas mudavam de lugar.
Do Canadá, massas humanas fugiam pros Estados Unidos. Olhando aquilo tudo, mexicanos
nem acreditavam no que viam. Tentando alcançar Ciudad Juarez, extensas filas humanas
chegavam em El Paso. Abandonando a Alta Califórnia e Costa Oeste, multidões faraônicas vinham
no caminho de Tijuana. Atravessando o Rio Grande em barcos e lanchas, mundaréu de gente fugia
tomando o caminho de Monterrey. Na ânsia de desembarcar em Mérida, Tampico ou Vera Cruz,
embarcações de todos os calados zarpavam da Costa Leste. De Miami fugiam pra Cuba. Do
México, em fuga, multidões bíblicas demandavam os caminhos da Guatemala, Belize até o
Panamá. Na fuga da pandemia que ali já vinha, nacionalidades inteiras fugiam pra longe das
Bahamas e do Mar do Caribe.
Populações fronteiriças colombianas, equatorianas, peruanas e bolivianas, fugindo do
vírus, abandonavam as cidades limítrofes e penetravam bem fundo na selva amazônica.
Venezuelanos chegavam por Roraima. Uruguaios, paraguaios e chilenos tomavam o rumo da
Argentina.
Do Platô das Guianas, populações espavoridas abandonavam Georgetown, Paramaribo e
Caiena tentando alcançar o Brasil. Já em São Jorge, na divisa, tinham que atravessar o rio Oiapoque
pra chegar no estado do Amapá, e na primeira cidade ao norte do país, Oiapoque. Pra evitar a
contaminação a ponte binacional foi explodida. Vigilantes, lanchas militares subiam e desciam o
rio, subiam e desciam, subiam e desciam.
Vendo a cena, apavorados, moradores tomavam rumo da BR 156, na esperança de viagem
de 600 Km até Macapá, capital, e de lá pra qualquer canto do mundo. Vencendo mais de 100 Km
de estrada de terra, pinguelas, buracos, lamas e atoleiros, ficavam pelos caminhos. A ponte sobre
o rio Cassiporé tinha sido dinamitada.
No Pará, multidões ensandecidas abandonavam Belém e região, e atravessavam a baia do
Guajará Mirim buscando a rodovia Belém-Brasília. Lançando bombas, aviões militares destruíam
quilômetros e mais quilômetros dos caminhos, e ninguém conseguia chegar nem na divisa com o
Maranhão. Isolamentos.
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2066 Luís Fulano de Tal
Caos. Desplantes. Sociedade toda desorganizada. Correrias. Gritarias. Todos corriam pra
todos os lados. Caos. Tropelias. Trombas de gente pra lá e trombas de gente pra cá.
Conglomerados. Torvelinhos humanos. O Vírus não tocava só idosos. Distúrbios. Barafundas.
Berreiros. Gritos. Atropelamentos. Em fuga, via láctea de gente invadia ruas e calçadas. O vírus
matava qualquer um de zero a cem. Labirintos. Caos. Tumultos insurgentes. Morriam bebês,
crianças, adultos e velhos. Abundância de gente. Avalanches. Distúrbios. Arruídos. O vírus levava
sem diabetes. Ruma de gente. Gente a granel. Nuvens de gente. Amontoavam. Tocava não
asmáticos e não hepáticos. Alvorotos. Bandos. Abraçava não neurológicos e não hematológicos.
Colunas. Falanges. Tropelias. Arrastava não pneumopatas e não renais. Enxames. Rolos humanos.
Maçarocos. Babel. Quiproquós. Contaminava magrinhos, esbeltos, não cardíacos e não
imunodepressivos. Vozerias, berreiros e tumultos.
Legiões arribavam da oeste. Formigueiros de gente da leste. Enxames humanos da norte.
Turmas agigantadas. Bandos. Confluiam. Concorriam. Colunas. Falanges. Procuravam caminhos
pro sul. Atravessavam o Tietê. E iam. Iam. Enxurradas. Cortiços humanos. Baldear o Pinheiros.
Necessário. Implodidas as pontes. Tiros. Tiros. Metralhavam. Tiros. Tiros. Fuzis. Tiros. Tiros.
Fuzilavam. Tiros. Atingidos. Feridos. Mortos. Nuvens de mortos. Aos montes. Mortos. Olhavam.
Miravam. Viam. Ninhos de metralhas. Arquibancadas do Jóquei. Telhados das casas. Casarões.
Mansardas. Tiros. Mortos. Mais mortos. Solução. Amarravam os mortos em x. Pés com mãos.
Mãos com pés. Lançavam nas águas. Boiavam. Fileiras. Pontes. Pontes. Mais pontes. Mil pontes.
Mortos abriam os caminhos e carregavam os vivos. Conduziam. Transportavam. Fúrias. Rolos
humanos. Turmas agigantadas. Atravessavam. Baldeavam. Passavam. Colunas. Falanges.
Legiões. Invadiam pistas. Invadiam casas. Tombavam por cima. Mortos silenciavam metralhas e
calavam fuzis no peito. E Iam. Iam. Aos montes. Gente a granel. Enxameavam. Chegavam. Palácio
do governo. Vazio. Completamente. Vazio. Não ficava um pra contar a história.
E já iam em frente quando alguém gritou:
- Olha lá, gente! Olha aquilo! Vê lá! Viam.
Um pessoal tinha ficado pra trás. Aproveitando o pandemônio, frequentavam os melhores
restaurantes, e comiam e bebiam o que bem quisessem. Saiam das agências pilotando potentes
motocicletas e dirigindo só importados. Mergulhavam nas piscinas dos clubes, brincavam e
pulavam nas camas dos hotéis estrelados. Só vestiam das marcas e das grifes. Dos bancos saiam
com pacotes e faziam aleluias de dinheiros.
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2066 Luís Fulano de Tal
Quem era aquela gente, quem? Eram africanos, indígenas, mestiços em geral e seus
descendentes fogoiós, saraúbas, tostados, sapecados e queimados de praia, associados aos
mendigos, indigentes e andarilhos. Eram imunes à pandemia e ao vírus. Vieram cientistas, lentes
e ilustrados. Com afinco fizeram estudos, testes e observações minuciosas. Concluíam. Era da
massa do plasma do sangue, nos seus corpos os vírus não conseguiam se desenvolver. Não
penetravam nas células. Os mendigos, indigentes e andarilhos eram livres do contágio porque deles
guardavam distância, nunca eram beijados, nunca eram abraçados e ninguém jamais apertava as
suas mãos.
A mezinha, o antídoto, o remédio nascia a partir de uma gota do plasma da massa do sangue de
cada um deles. Então, pra salvarem a humanidade, fizeram negociação. Doavam do sangue em
troca de cidadania plena e de uma habitação. Trato é trato. Feito. Foram.
Como um evangelho, a boa nova corria o país. Todo mundo sonhava morar e ter casa.
Largavam pra lá as palafitas, as malocas e os mocambos do norte, nordeste. As cafuas, os casebres,
e as casas de taipa sem reboco de Minas. E as cobertas de palha, piso de lama e alevantadas com
tábuas velhas, restos de caixões e outros materiais desprezíveis lá no sul. Os aterros e os morros
fluminenses.
Deixavam pra trás escarpas, planuras, terrenos insalubres, e os espaços desaproveitados
pelas municipalidades. Abandonavam logradouros públicos, praias, terrenos de propriedade
desconhecida e áreas não urbanizadas ou interditadas pelos Serviços de Saúde. Davam de costas
aos pântanos, alagadiços e charcos, terrenos incultos, beirais e espaços públicos inutilizados.
Estavam cansados de perambular por vielas e ruas estreitas, alinhavadas por calçamentos
de paralelepípedos com as junturas de capim e tiririca. Verdadeiros labirintos de buracos e crateras,
com passeios de lajes sólidas, altas, fendidas, desbeiçadas e desconjuntadas. E outros muitíssimos
logradouros das cidades interditados pelas Repartições de Higiene, em ruas com habitações
infestadas de pulgas, piolhos, percevejos e ratos.
Davam o chega pra lá e o adeus a largos despidos de troncos e folhagens, e falhos de
sombras consoladoras e amigas. E com o chão triste, escuro, irregular e sem varrição. Às
edificações feias, gebas e sem gosto arquitetônico. Aos casarios reles, em construção de baixo teto
e telha de canal.
Renunciavam às casas térreas, em prédio de um só pavimento, mostrando as platibandas
nuas e sem adereços. E aos casebres desordenados, feios, com telhados rugosos e encardidos.
Próximos a praças com jardins selvagens, sem grandes perspectivas e com ruazinhas desajeitadas
e tortas.
Abdicavam de quartos minúsculos, tabiques e casitas de quintal enfiados em ruelas e becos,
sem número e aos fundos. Das ruas de poucos metros de largura, cheias de sulcos, cheirando a
mofo, pau de galinheiro, sardinha frita e suor humano. E das ruelas infestadas de sobradões de cal
grisalha e rebocos desbeiçados. Paredes descascadas e roídas pela lepra dos tempos, telhados
suando limos e beirais brotados de cogumelos. Casas sombrias, úmidas e em fundos apodrecidos.
Prédios seculares, sem demão de tinta, sem um mínimo conserto, e com as esquadrias cumbas e
estaladas pela idade. Com vidros partidos e remendados por imundos pedaços de papelão. E com
sacadas mostrando ferros retorcidos, e corrimãos destruídos de cupim.
E davam asas aos pés pra fora de sobrados transformados em casas de aluguel, retalhados
em cubículos, compartimentos e divisões sem ar e sem luz. Mocambos em curvas de caminhos, e
modestíssimas casas de rótulas, com bico de chalé entortado, e as cumeeiras em madeiras
carcomidas.
Arribavam de barracos com interiores sombrios, sem conforto, e com paredes frias,
manchadas, úmidas, enodoadas e forradas de papeis esmolambados. E com os assoalhos podres,
tetos de telhas vãs, e o mobiliário de estilo e tradição miserenta. Em cômodas de gavetas perras e
maçanetas quebradas, cadeiras de palhinhas tortas, mesas de pinho ensebadas, baús amassados,
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2066 Luís Fulano de Tal
oratórios pintados de amarelo e recheados de papel, tachos velhos, e sofás de encosto com molas
saltitantes.
Não queriam mais tratar com choças que quando chovia a água penetrava dentro pelas
frestas dos tapumes, encharcava o chão e fazia poças. E quando era sol, o zinco aquecia,
incendiava, e cada barraco era um forno, onde ninguém ficava porque morria. E quando fazia pé
de vento tudo ficava em molambos, os barracos se desmanchavam, tombavam e deslizavam
montanha abaixo.
Lançavam às urtigas viver em casinholas sem luz, sem ar e sem conforto, enfiadas em
cortiços esparramados, sujos, feios, miseráveis, e junto a logradouros desamparados pelos gestores
públicos. Em lugar feito de material cansado e antigo de caibros velhos, decrépitos portais, portas
em desaprumo, gradis tortos e telhas enegrecidas pela umidade e pelo tempo. Com arruamento em
desalinho, chinfrim, chué, e com casolas à esquerda e casitas à direita, à esquerda e à direita. E aos
fundos, em galeria avarandada, agachada em terreno escuro, demoravam as latrinas, sempre
repletas, disputadíssimas e repugnantes.
Mudavam a casaca de lugares condenados pelas Juntas de Higiene Pública, pelas
Sociedades de Medicina e Cirurgia, pelas Diretorias de Saúde Pública, e por não estarem inseridos
e nem contemplados pelos Distritos e Legislações Sanitárias.
Davam o larga! O acaba! das vielas, becos sem saídas e passadiços. Chavasqueiros e casas
esconsas. Calógios, zungos ou retretas. Batiam em retirada de betesgas, jaças, dormidas, e
aranhóis. Choças, cubatas, coiós e mocambos. Tugúrios, cochicholos, taperas e palhoças que só
conheciam a higiene do sol, das chuvas ou dos urubus.
Às carreiras, e já bem sabendo pra onde ir, carregavam como podiam móveis disformes,
matulas, caçoletas e palanganas. Davam chegadelas com arcas, balaios e panacus nas costas. De
saída, andejavam pelos caminhos com broaqueiras, mocós e bocós entulhados. Mudando de rumo
carregavam fardeis, canjirões, cuias, cabaças, potes, trolhas e tresmonhados. E todas as suas alfaias
em baús, fardos, pacotilhas, trastes, contências sacos e bocetas.
Num continuum, favelados vinham de cima pra baixo, traziam na rede velho pai de santo
e toda a liturgia da macumba por livrá-los de feitiços, inveja, encosto, azar ou olho grande, junto
com agogôs, tamborins, pandeiros, cavacos e pinhos.
Deixavam os barracos de folhas de zinco, caixotes, dobradiças, pregos e arames colhidos
das ruas e tirados do chão. Feitos com tábuas remendadas, latas velhas e folhas de papelão.
Saltavam fora dos barracos engendrados com sobras, restos e fragmentos. E alinhavados
com materiais repudiados, incompletos e ocos. Ajuntados com outros proscritos, deixados de lado
e lançados por terra. Tudo por partes, capengas e mancos. Porosos, feitos ao acaso, a varejo e aos
bocados. E dos desprojetados em bifurcações, nacos, aparas, lascas e destroncos. Feitos com
vestígios e fragmentos, resíduos, destroços e arruinarias tiradas aos escombros.
Davam o escapula de barracos feitos com serraduras, escoras e refugos atados com
rebotalhos, ruínas, bagaços e rapalhas. Enfeixados com alimpaduras, sobejos, burusos, babugens
e outros escorralhos. E dos ajuntados de troncos, cepos, troços e comeduras. Detalhados com
garafunhos dos caminhos, brenhas, serrabulhadas e desmontes da Arca de Noé.
E desencaminhavam dos configurados com borrazes, triquestoques, garabulhas e outros
materiais não levados em conta ou consideração. E demoviam-se dos barracos com peça interior
unitária, e ornados à noite com fachadas fragmentadas e cortinas de retalhos. Surgidos de materiais
instáveis, precários, efêmeros e colhidos do lixo. Nascidos pelas praias, pelos bairros, pelos morros
e pelas margens das matas nas encostas da serra da noite pro dia, enquanto a cidade dormia.
Desembestavam e voavam fora dos barracos que viçavam como matos nos terrenos baldios
das cidades. Entouçados pelos campos e descampados, e feito ervas daninhas, trepados nas
encostas dos morros, e crescidos por entre as pedras dos calçamentos. Brotados em terrenos
abandonados, de propriedade duvidosa, do governo, do Exército, da Marinha, ou de litígio de
loteamento não concluído. Saídos debaixo das pontes, das passarelas, dos beirais dos canais, ao
longo das ruas e por sobre terrenos baldios, incultos, lagos, lagoas, rios e o mar.
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2066 Luís Fulano de Tal
Não pensavam mais em barracos alevantados com tábuas, caixotes, e telhas velhas e
alquebradas. Cobertos de zinco, em amontoados de tapumes, acabados com latas velhas, em piso
de terra úmida, alevantados em áreas interditadas pelos Serviços de Endemias, e tendo como
endereço, nome de rua e número de lugar nenhum.
Num santiamem davam à canela barracos com buracos nas paredes e nos tetos, colados nas
escadarias das ladeiras, e vizinhos de sumidouros onde eram lançados os dejetos, e às margens das
valas e fossas rasas, arrebentadas, cobertas de capim, vomitando matérias fecais, onde reinavam
moscas, mosquitos e muriçocas.
Passavam como quem não queria coisa com morro pipocado de barracos sem higiene e sem
conforto, em ruelas abandonadas, sem calçamentos, estreitas, tortuosas, sem rumo, lamacentas e
sujas dos entulhos lançados. Em dias de chuvas formavam charcos. E pra melhorar o vai e vem, o
vai e vem, moradores colocavam aqui e acolá pedaços de paus e colchões velhos. Vizinhos do lixo
onde juntavam varejeiras azuladas, vermelhudas, verdolengas, ratos, mosquitos e até cobras que
serviam de diversão pras crianças.
Largavam pra trás e arrevesavam o Buraco Quente, favela onde água era coisa rara, e só
tinham quando colhiam da chuva, ou quando iam lá longe buscar. Faziam balanças de latas
despenduradas em paus e transportadas nos costados. Crianças carregavam latinhas e tomavam
banho tirando água do barril e jogando de caneco.
Na Buraqueira já não. Na Buraqueira desciam trezentos e cinquenta e dois degraus, e iam
apanhar na biquinha ao lado do cemitério. Duas bicas. Duas filas. Cada lata era um barraco, e cada
barraco era uma lata. Era grande o respeito pelas latas alheias, ninguém mexia. Carregavam
também em barris nos lombos dos burros, ou puxavam por cordas. Lá, quem não tinha banheiro,
tomava banho no quintal. Crianças faziam de chuveiro latas furadas e suspensas por carretilhas.
Os homens tomavam banho de calção. As mulheres só tomavam de noite, ou dentro dos barracos
com bacia. Onde lavavam as roupas, os pratos e preparavam a cozinha. Faziam filas subindo e
descendo com baldes e bacias cheias de roupas. Subiam e desciam. Subiam e desciam.
Ali, acolá ou pr’ali as águas desciam as ruelas e os becos dos morros, se infiltravam na
terra, e escorriam pras ruas das cidades aos seus pés. Já pro fim, olhando bem, concluiam.
Teimosas vivendas. Quilombos urbanos. As favelas eram como as casas dos antigos escravos.
Daí, foram morar nas alamedas, ruas e avenidas dos bairros mais bacanas das cidades. Onde
tinha de um tudo. Boulevards, sedes administrativas, salões, vivendas, edifícios públicos, solares,
hotéis e câmaras. Prédios, bancos, compartimentos, museus, gabinetes e escritórios. Cartórios,
estabelecimentos de comércio e lojas. Capitólios, igrejas, juris e teatros. Confeitarias e
restaurantes. Escritórios de representações, cinemas e lojas de departamentos. Aí teve festas nas
praças, e as gentes chorando de contentamentos cantavam:
Em Washington, fizeram bailes nos salões principais e nos gramados da Casa Branca. Em
Londres, teve mais festas nas dezenove salas de estado do Buckinghan, e com direito ao uso dos
78 banheiros.
Tempos depois desses acontecimentos que mudaram o mundo, e aqui ligeiramente
narrados, ele se apresentou como candidato a uma vaga de emprego:
- ...
- O seu currículo é muito bom, muito bom mesmo, e o seu perfil se encaixa perfeitamente
na vaga. E qual o endereço do senhor mesmo?
- Ah... é aqui na Angélica... perto da Praça Lisboa ...
E viveram felizes para sempre.