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Ano 5 - Nº 23 - Dezembro de 1986


COMUNICAÇÕES do !SER ISSN 0102-3055

Sumário

APRESENTAÇÃO 3

Frei Leonardo Boff


A Igreja dos pobres
4

Rubem César Fernandes


Polônia- a desobediência pela fé 17

Katia Karan Toralles e


Márcio de Matos Caniello
Horror e religião - um estudo
antropológico do filme de terror 25

Marion Aubree
A penetração do "protestantismo
evangelizador" na América Latina 35

Severo Gomes
Procópio Ferreira de Camargo,
uma inteligência aguda e pouco comum 45

VITRAL 47

PUBLICAÇÕES RECENTES & LEITURAS 56

NOTÍCIAS 64
Comunicações do ISER

Comissão Editorial: Rubem César Fernandes (coordenador)


Pedro A. Ribeiro de Oliveira
Waldo Cesar
Pedro Celso Uchõa Cavalcanti
Caetana Damasceno
Secretário de Redação: Flávio Lenz
Revisão: Flávio Lenz e Jorge Moutinho Lima
Programação Visual: Cecilia Leal de Oliveira
Arte-final: Eduardo Chor
Composição: JP Composição e Artes Gráficas Ltda.
Distribuição: Henry Decoster (ISER)

Redação:
Rua lpiranga, 107 - Laranjeiras - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Fone: 265-5635 - CEP 22231 - Caixa Postal 16011

Preço por exemplar avulso: Cz$ 30,00


Assinatura anual (6 números): Cz$ 150,00
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APRESENTAÇAO

Muito se falou e escreveu sobre Frei América Latina", de Marion Aubree,


Leonardo Boff em 1985 e parte de 1986. pesquisadora francesa que tem estudado
Agora, quase um ano depois do sábado da os cultos afro e os pentecostais. É um
Páscoa de 1986, quando Frei Boff foi tema que há de voltar nas
"plenamente absolvido", ler suas próprias COMUNICAÇÕES.
palavras ganha novos sentidos. A polrtica
vaticana, suas repercussões, os motivos No VITRAL, dois blocos sobre um mesmo
da obediência são alguns dos assuntos assunto - a religião e o tempo - levaram a
por ele tratados aqui. Em seu seção para as chamadas de capa. Um
texto-entrevista, Frei Boff escreve também transcreve e comenta notfcia de uma
sobre sua famnia, sobre os pobres, o médium brasileira que, a pedido do Palácio
socialismo e a democracia, e outros temas de Buckingham, encarregou-se da missão
mais, de uma forma clara e aberta, como é de minorar o gelado inverno inglês. Esta
de seu estilo. médium, da Fundação Cacique Cobra
Coral, de Guarulhos, presta serviços
Em "Polónia - a desobediência pela fé", também no Brasil, onde a repercussão na
Rubem César Fernandes relata uma imprensa não tem sido tão grande como
romaria de que participou, em 1986, na em Londres. O outro bloco é sobre a "Hora
Polónia, tendo como viés o processo Brasileira de Verão", que no Pará causa
"mágico" de insubmissão do povo polonês tantos transtornos que dá notfcias e
às autoridades. comentários de jornal, inclusive do
arcebispo de Belém.
"Horror e religião - um estudo
antropológico do filme de terror" é um Ainda nesta edição, prestamos uma
trabalho de conclusão de curso de dois homenagem a Procópio Ferreira de
antropólogos, que analisam o filme de Camargo, sociólogo que nos deixou
terror, tendo como referência Nosferatu: importantes contribuições. O pequeno
uma sinfonia do horror, a partir da texto de Severo Gomes, seu amigo, foi
dicotomia Sagrado/Profano. escrito poucos dias após a morte de
Procópio,e publicado na Folha de S. Paulo.
Outro artigo deste número é "A penetração
do 'protestantismo evangelizador' na F!AvioLenz

3
A Igreja dos pobres

Originalmente encomendada para a edição o pai


de janeiro da revista polonesa Kultura, esta
entrevista chega ao público brasileiro, Meus avós vieram da Itália do Norte no
através de COMUNICAÇÕES DO /SER, final do século passado. Eram agricultores.
por tratar de aspectos de interesse para o Meu pai estudou com os jesurtas. Depois
Brasil. Por um lado, a vida pessoal de Frei deixou o seminário e se transformou num
Boff, suas palavras sobre seu pai, seus grande educador popular. Na minha região
irmãos, e sobre a infância em terras só se falava alemão e italiano; havia
catarínenses habitadas por imigrantes muitos analfabetos. Meu pai ensinava
alemães e italianos e por descendentes português aos adultos. Obrigou todas as
pobres de fndios e negros da região; por fammas a comprarem aparelhos de rádio;
outro, suas opiniões a respeito do assim, podiam ouvir o português e se
"socialismo real", no qual aponta avanços comunicar. Depois abriu uma escola de
e atrasos, e sobre a "democracia contabilidade para formar os primeiros
fundamental", que para ele está mais contadores da região, que era de selvas
próxima do "ideário original do ainda não penetradas pela colonização
cristianismo". sistemática. Abriu uma biblioteca popular e
Porque Frei Boff prefere conversar e obrigou todos a lerem romances e livros
depois escrever, ele mesmo, o texto de sobre o Brasil.
suas entrevistas, o encontro da manhã de
17 de outubro de 86 com Rubem César Minha famma era profundamente religiosa.
Fernandes e Henryk Siewierski, no Meu pai sabia grego e latim aprendidos no
convento franciscano onde mora, em seminário. Lia sempre a Blblia. Mas seu
Petrópolis, terminou com a formulação de cristianismo possura uma forte nota
perguntas que orientassem a entrevista. anticlerical. Os padres eram todos
Dois dias depois o manuscrito estava alemães; eram duros com os imigrantes
pronto, e nele foram apenas italianos, e cobravam o dfzimo
acrescentados subtrtulos, como marcas rigorosamente. Meu pai, como professor,
divisórias, indicando os temas das era muito respeitado pela população. Ele
perguntas. queria que o dfzimo fosse recolhido e
doado às famnias pobres, descendentes
de fndios e de negros da região. Muitos

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colonos fi zeram 1sso, lembrando-se da libertação, que é um esforço no sentido
também da exigência dos padres alemães. de articular o discurso da fé com o
Meu pai infundi u em toda a famnia um discurso da sociedade na perspectiva dos
grande senso de justiça e de amor à figura oprimidos. Minha irmã religiosa trabalhou
de Jesus. Já naquela época, apresentava durante 15 anos na Amazônia, no coração
Jesus como libertador e amigo dos pobres. da selva. Quando há anos eu estive por
Éramos onze irmãos. Na escola, nos aquelas partes, fiquei profundamente
obrigava a sentar sempre junto a alunos impressionado com sua opção. Trata-se
negros, pois ninguém queria sentar com de uma região selvagem, longe de
eles. Era padrinho de quase todas as qualquer comunicação, com estradas que
famOias de negros e fndios. Sempre somente funcionam seis meses ao ano,
defendeu suas terras, invadidas pelos habitada por pessoas pobres, mestiços de
colonos italianos e alemães. Por causa indfgenas brasileiros, bolivianos e brancos.
disso, foi até ameaçado de morte por parte Af dirigiu uma pequena escola e
de algumas famnias italianas. Mas os evangelizou as populações no interior da
pobres (negros e fndios) diziam: "Temos selva. Caminhava a pé cinco, oito horas
Deus no céu e o sr. Mansueto na terra". por dia pelo interior da floresta ou subia os
Mansueto era o nome de meu pai. Foi a rios durante dias seguidos.
pessoa que mais me influenciou em toda a
minha vida. Era extraordinariamente Nossa vocação religiosa surgiu do
inteligente. No interior do Brasil, no Estado ambiente de famnia, ambiente religioso e,
de Santa Catarina, perto dos limites com a ao mesmo tempo, politicamente crRico.
Argentina e o Paraguai, longe de qualquer Mas nem todos os irmãos guardaram este
contato com a civilização, lia Hegel, os espfrito religioso. Tenho uma irmã que não
filósofos gregos, São Boaventura e a crê, mas é profundamente humanitária:
Divina comédia. Transmitiu a todos nós a dirige um hospital e ar atende gratuitamente
sede de saber e o amor aos pobres. Seu todos os doentes pobres. Um outro irmão
lema, que eu coloquei como dedicatória na tirou dois graus acadêmicos em Louvain
minha tese doutoral em alemão, era: em econometria e economia pura. Foi
"Quem não vive para servir, não serve professor na universidade e pesquisador.
para viver". De repente, abandonou tudo e se fez
cobrador de ônibus. Agora é empregado
numa pequena fazenda. Não quer mais
Os irmãos participar do sistema de exploração
capitalista. Decidiu viver à margem da
Entre os irmãos, somos dois sacerdotes e cultura dominante. Não acreditava em
teólogos e uma religiosa. Meu irmão nada. Deixou-se converter aos cristãos
Clodovis Boff é padre servita. Estudou em batistas. Hoje somente estuda as
Louvain. Escreveu vários livros, um dos Escrituras e procura viver uma vida
quais já é um clássico da teologia da ecológica, trabalhando, rezando e sendo
libertação: Teologia e prática. Teologia do amigo dos camponeses pobres.
polftico e suas mediações. É um texto Eu entrei no seminário franciscano com a
extremamente diffcil e sério, porque tenta idade de 11 anos. Fiz todos os meus
fundar, criticamente, o discurso da teologia estudos no Brasil. Depois, com 26 anos

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cursei a pós-graduação em teologia e uma teologia acadêmica, quer dizer, feita
filosofia na Universidade de Munique. dentro das faculdades de teologia; ela é
Quem me entusiasmou ao estudo foi feita a partir da prática pastoral nos meios
aquele que hoje é Cardeal de São Paulo, pobres. Eu, por exemplo, trabalho há anos
Paulo Evaristo Arns. Foi meu professor de numa favela. Ar existem 230 famntas que
patrologia e pedagogia nos meus tempos vivem exclusivamente da· catação do lixo:
de estudante de teologia em Petrópolis. Ele As pessoas se misturam com os porcos,
sempre me incentivou ao trabalho os urubus e os cachorros para catar tudo
Intelectual, e ainda hoje incentiva. Quis me o que é aproveitável: papel, caixas de
acompanhar em Roma quando fui papelão, piásticos,latas de·conserva,
convocado pelo Card~al Joseph Rat:zinger. roupas e alimentos que são
Conseguiu entrar na Congregação para a reaproveitados. Eu me reúno com aquela
Doutrina da F6, e 14, na minha presença, gente todas as sextas-feiras à noite.
jvntQ com o Cardeal Alorslo Lorscheider, lemos a Bfblia. Comentamos e cantamos.
cQl'lversQu com o Cardeal Rat:zlnger e Depois, colocamos os problemas comuns
defendeu a legltlfllldade da teologia da da comunidade e procuramos .
libertaçllo. Eu procufo dlilldlr minha vida comunitariamente resolvê-los. Assim jé
entre ó ensino da teologia, o trabalho construrmos urna escola em mutlrAo, um
pastoral na periferia dà cidade de salão para reuniões e festas . Montamos jâ
Petrópolls, a coorc;lenaçAo das publicaçOes uma pequena indústria de confecção de
religiosas da Editora Vozes (t\ a maior roupa&. Aos domingos ternos a missa. Os
edltorâ católica da América Latina) e a encarregados das mlssae preparam oa
produção de textos. Somos poucos padres cânticos, enfeitam o salao e dão
no Brasil. Deverramos ser pelo menos catequese às crianças. é uma pequena
1oo.OOo, em razão dos 120 mllhOe~ de comunidade composta dos condenados o•
católicos. Mas possufmos, M verdade, t~rra. Quando os vernos misturados com
aplhas 18.000, metade dos quais sAo 0$ ànlmals, eles mesmos parecendo
estrangeiros. Temos também um bom animais, disputando o resto do que fól
número de sacerdotes poloneses que jogado fora, sentimos uma imensa
vieram nos últimos anos nos ajudar na comiseração. Entendemos o sentimento
pastoral popular. de Jesus, que disse: Misereor super
turbas: tenho misericórdia e pena por
estas multidões. Hoje, entretanto, eles não
Teologia e prática pastoral se consideram catadores de lixo.
Consideram-se trabalhadores que com
Devido à carência dé quadros ministeriais, seu trabalho ganham dignamente o pão
cada teólogo é simultaneamente um para a famRia e o sustento para si próprios.
pastor. Não se concebe um professor de Protestam contra os jornais que publicam
teologia que não esteja ligado à pastoral fotografias sobre sua situação, sem
das paróquias ou dos movimentos mostrar o trabalho que fazem . Quando
cristãos. Especialmente os teólogos da recebo visitas de estrangeiros e os levo
libertação possuem uma profunda inserção para ver a Comunidade do Lixo (assim é
nos meios populares - é condição de sua chamada), devo antes pedir licença para
teologia da libertação. Esta teologia não é permitir filmagens ou fotografias. Recebem

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todos com carinho, mas querem ser as comunidades eclesiais. é uma
reconhecidos como pessoas humanas, experiência dolorosa de cansaço, mas
oprimidas sim, mas conscientes de sua extremamel')te gratificante, pois o povo nos
dignictade. devolve o sentido existencial da fé, da
esperança, da alegria de viver com
Acompanho em nfvel nacional as pouqufssimas coisas. O contato direto
comunidades eclesiais de base. Tenho a com a natureza, ainda não tocada pela
oportunidade de conhecer multas agressão cientffico-técnica do homem,
situaç6es de exploração e miséria. Para possui grande força terapêutica ~
se t~r uma idéia, temos cerca dé 32 integração e de equillbrto. Q~ando so
mllhOes de menor~s abandonados: isso anda pela floresta, tendo açlma de si
equivale à população de toda a Argentina. Arvores de 80, 90 metros de altura,
Corno fazer dá fé crlstâ, que estA presente sente-se a fragilidade da existência
de forma capilar no tecido social brasileiro, humema. Sentimo-nos oomo pequenos
um f(ltot de humaniza9Ao e libertação? é a bichinhos sem signlflcaçAo, Qualquer
partjr da expQrlênci~ da opressão social e animal nos pode devorar, qualquer fruta
econOmica qu~ i!é ,jiten~ f1 teologia da· pode cair em nossao cabeç~s. qualquer
llbertaçAo. Só entendem esta teologia os serpente pode-nos morder mortalmente. E,
pobres e as pes~oae que têm fome e sede apesar disso, s6 nós pensamos, emamos,
de ju$tiça. Não Podemos, entre nós, admiramos as maravilhas da terra e nos
imaginar um teóloi)Q quê faça somente elevamos ao autor de tudo, o P81 celeste,
teologia. Ele é um militante cristão que, que tudo encerra em seu plano de glória.
junto com o povo, procura trabalhar na
organização de grupos de n~flexAo/ação,
de cfrculos blbllcos, dt com~Jnldade, Quem são os pabres?
eclesiais de base, de nCici(K)s sindicais,
centros de defesa e promoção ~ó!l direitos A teologia da libertação possul.uma,
humanos. Esta experiência subjaz Anossa percepção própfia do pobre. Etn primeirÇ>
reflexão teológica. ~ uma reflexão que lugar, 9 pobre só~lo~econômico; ~ aqúel~ l
deve Incorporar conhecimentos de privado dos meios necess~rlos à:
sociologia, politica, ldeolog1a e pedagogia subsistência. Aqui não estao apenas os
para poder compreender a realidade da proletários. No Brasil, como de re~to na
pobreza-injustiça e ver os caminhos América Latina, constitui-se um privilégio
viáveis de superaçao a partir dos próprios ser proletário e entrar no processo de
oprimidos. exploração capitalista. Pelo menos a
pessoa recebe o salário mfnimÇ>, possui .
Sempre nos meses de janeiro e fevereiro, garantías sociais, de saúde e de
que correspondem às nossas férias de aposentadoria. A grande maioria dos
verão, aceito fazer uma inserção mais pobres está fora do processo produtivo:
prolongada em alguma Igreja local. Assim, nao ganha salários fixos, não possui
nos últimos anos ter:~ho ' ldo ao Acre. Af, nenhuma garantia, vive à margem da
durante dois meses, fico no melo das- sociedade. No Brasil sâo mais de 30
comunidades de base, ando pelo Inferno milhões de pessoas, afora os
verde das florestas amazônlcas, visitando assalariados. Deve-se acrescentar ainda

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os demais oprimidos por vários tipos de discutidos à luz da fé e da teologia da
discriminação, como os negros (há no libertação. Desses encontros participfm
Brasil cerca de 40 milhões de negros), os bispos, padres, teólogos . Eu já participei
índios, as mulheres. Quando a teologia da duas vezes de encontros dessa ordem . É
libertação fala de pobres inclui toda esta impressionante ver as mulheres
gama de oprimidos que merecem participar marginalizadas participarem dos grupos de
da vida e da liberdade, porque são filhos e reflexão, fazerem orações e organizarem a
filhas de Deus desfigurados, os celebração . Mais e mais fica claro que a
humilhados e ofendidos do sentimento questão da prostituição é uma questão
popular. E aqui surge de novo a questão política, da forma de sociedade que
que para nós é o tormento da consciência possuímos. Ela explora a força de trabalho
de toda a nossa geração: como viver a fé e explora também a erótica das pessoas .
cristã num mundo de miseráveis? Muitas, a grande maioria das mulheres,
Evidentemente, só podemos vivê-la, estão na prostituição não porque querem,
, responsavelmente, de forma libertadora. mas porque simplesmente não lhes restou
Geralmente o pobre não confia um no outro caminho para sobreviver ou
outro. Ele tem introjetado dentro de si o alimentar os filhos senão entregar-se à
conceito de que nada vale ou de que a prostituição Em várias dioceses do Brasil
pobreza é querida por Deus ou produzida há uma bem-organizada pastoral da
pela própria natureza. Mediante a mulher marginalizada; elas possuem
partlcip_a ção nos crrculos blblicos e nas drculos blblicos, e em alguns lugares até
comunidades eclesiais de base, o pobre existem comunidades eclesiais de base
aprende que a pobreza não é querida por constituídas por prostitutas . A partir de
Deus, que corporifica uma injustiça, e mais experiências assim se pode compreender
ainda: que eles, os pobres, são os amados a frase de Jesus: as prostitutas que crêem
do Pai; eles, os pobres, foram os primeiros nos precedem a todos nós no Reino de
destinatários da mensagem libertadora de Deus . Curiosamente, quando fui
Jesus, e por eles, os pobres, se decide a convocado pelo Cardeal Ratzinger para
salvação ou a perdição de todos os responder, em Roma, questões sobre o
homens. Há uma canção das livro Igreja : carisma e poder, ocorreu uma
comunidades que é muito cantada e coincidência de datas: na mesma época
querida pelos membros da Igreja popular: se realizaria um encontro de mulheres
"Eu acredito que o mundo será melhor, marginalizadas, para o qual eu fui
quando o menor que padece acreditar no convidado como assessor. Escrevi ao
menor". Hoje, na pastoral de libertação da Cardeal Ratzinger que não poderia ir
Igreja, estão envolvidas as prostitutas, os naquela data, porque deveria estar com as
menores abandonados nas ruas e os mulheres marginalizadas. E elas possuem
favelados . Existe o movimento da mulher um privilégio evangélico sobre qualquer
marginalizada (prostituída), apoiada pela outro na Igreja; por isso renunciei a Roma
Conferência dos Bispos . Todos os anos, e fui atender as mulheres marginalizadas.
cerca de 70 prostitutas se reúnem, vindas O Cardeal Ratzinger, numa carta, deu a
do Brasil inteiro, junto com assistentes entender seu desagrado e seu parco
sociais, e organizam um encontro de uma senso evangélico. Estas realidades
semana, onde seus problemas são desafiam o pensamento teológico e

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pastoral. Como, no imenso processo de leigos nunca tiveram grande importância,
libertação, inserir também os zeros dado o caráter fortemente clerical da
económicos, aqueles que nada contam estrutura da Igreja. A partir dos anos 60,
para a história humana e que são os começou a surgir no Brasil, e também na
queridos de Deus? Uma libertação que América Latina, uma participação cada vez
não atende estes últimos não pode ser mais intensa dos leigos na pastoral
plenamente uma libertação cristã. Já há operária, universitária e no mundo rural.
cinco anos estamos cerca de 100 teólogos Como há uma falta crónica de ministros
e cientistas sociais da América Latina ordenados, os leigos tiveram que assumir
trabalhando numa coleção de mais de funções de coordenação e de animação de
50 tomos sob o trtulo Teologia e paróquias . Não é raro ver hoje religiosas
Libertaçáo. Nesta coleção se tenta dirigindo paróquias inteiras, fazendo tudo
sistematizar o discurso da fé, em conexão menos a administração da penitência e a
com toda a Tradição, na perspectiva da consagração da eucaristia . São milhares
libertação dos oprimidos . Até a presente os coordenadores de comunidades
data (meados de outubro de 1986), já eclesiais de base, especialmente
foram publicados seis tomos. E sairá a mulheres. Devemos ter no Brasil,
partir de agora, todos os meses, um atualmente, cerca de 180 mil comunidades
volume em espanhol (Buenos Aires e eclesiais de base . Dentro delas surgem
Madri) e em português (Petrópolis) com as vários ministérios leigos, ligados às tarefas
correspondentes traduções nas lfnguas internas da comunidade, como a
modernas. preparação para os sacramentos, a
catequese, a pastoral dos jovens etc., e
tarefas concernentes à atividade externa
As comunidades eclesiais da comunidade, como a alfabetização, a
de base conscientização política, a articulação com
as associações de bairro e os sindicatos,
No Brasil, o cristianismo possui uma a defesa dos direitos humanos etc . Ar se
presença fundamental na alma do povo. A abre um campo novo para a atuação dos
cosmovisão popular é religiosa. Mas se leigos, homens e mulheres. Os bispos do
trata de um cristianismo de colonização. Brasil sempre aprovaram as comunidades
Ele veio no bojo do projeto expansionista eclesiais de base . Desta forma, surgiu
europeu, reproduzindo os quadros da uma Igreja de base num duplo sentido:
Igreja européia. Entretanto, aqui, ao longo constitufda por pessoas da base da
do tempo, o cristianismo ganhou uma sociedade, os pobres e os trabalhadores,
expressão própria, pois incorporou e da base da Igreja, os leigos. Há
elementos dos indígenas e dos negros. uma convergência feliz entre a
Mais tarde, no final do século XIX, veio um Igreja-grande-instituição e a
outro tipo de cristianismo, baseado na Igreja-rede-de-comunidades. Os bispos e
centralização romana e com novas padres querem as comunidades, e estas
devoções, como a de Cristo Rei, o querem em seu meio os bispos e os
Sagrado Coração, Santa T erezinha etc. padres . Esta Igreja de base possui um
Este cristianismo desbancou aquele perfil próprio - é encarnada na c1Jitura
anterior, de cunho colonial e medieval. Os popular, por isso assume as

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características do povo: dramatiza as trecho do Evangelho. O Cardeal sentou no
leituras bíblicas; usa de símbolos tirados meio, junto com outras pessoas do poyo .
da vida; dá grande importância ao corpo; Esperou que chegasse a sua vez de falar.
enfatiza enormemente o aspecto Depois passou a palavra ao seu
comunitário e especialmente os cânticos, companheiro de lado. Somente no fim, a
onde se expressa a teologia latente na comunidade pediu que ele desse a
experiência cristã do povo pobre e bênção. Não são poucos os bispos que
profundamente cristão. Este tipo de Igreja contam a sua conversão por causa dos
não se entende como Igreja paralela, pobres . Como foram evangelizados por
mas como uma forma nova de ser eles, assumiram um evangelho mais
Igreja-comunhão-e-comunidade, unindo profético e simples e se tornaram mais
mais fé e vida, libertação e evangelho. pastores do que autoridades eclesiásticas.
Há também muitos religiosos e religiosas
que se inserem nos meios populares,
Os padres e os bispos vivem como o povo em grande pobreza,
na Igreja renovada rezam com o povo e o ajudam na sua
organização social, reforçando os
A Igreja popular, ou Igreja de base, movimentos populares e a
envolve todas as pessoas. O leigo é mais conscientização de seus direitos. Há
participante, pois é ele que leva avante a teólogos que vivem em casas modestas
comunidade, a expande e no meio do povo, e a partir desta situação
missionariamente cria outras procuram ensinar sua teologia. Outros
comunidades. Há dias encontrei um casal vivem meio ano na faculdade de teologia
de velhos às margens de um dos rios da lecionando e outro meio ano no meio do
Amazônia que me dizia estar feliz porque povo, num trabalho direto de pastoral. É
somente no último ano havia fundado 18 deste encontro entre pastoral e teologia
comunidades de base . Estavam tão que surge a teologia comprometida da
felizes, os dois, que compraram um barco libertação. Nota-se nestas comunidades
para subir e descer o rio e visitar as inseridas grande santidade política: no
comunidades, confirmando-as na fé e no sentido da denúncia evangélica e profética
entusiasmo. contra os opressores do povo; na forma
como coletivamente assumem com o povo
Os próprios bispos que assumem a Igreja a defesa dos posseiros das terras, o apoio
na base trânsformam seu estilo. Deixam aos índios na preservação de sua cultura e
seus títulos de honra e os sinais do poder na criação de uma pastoral popular nos
sagrado. Parecem camponeses como os meios pobres, evangelizando com
outros camponeses. Sentam-se na roda instrumentos pobres e buscando realizar
bíblica e esperam sua vez para comentar o nas comunidades a justiça que não se vê
trecho da Sagrada Escritura. Eu fiquei, na sociedade . Esta Igreja da base conta
certa feita, muito impressionado com o com mártires e profetas como nunca
Cardeal Aloísio Lorscheider. Fui com ele houve na história do Brasil.
numa imensa favela de cerca de 120 mil
pessoas. Chegamos a uma comunidade
de base e lá estavam comentando um

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Comunidades, instituição Deus, sempre lida e meditada ern todas as
e identidade eclesial circunstâncias, na referência às outras
comunidades com seus pastores e na
As comunidades eclesiais de base não celebração, sempre que possível, dos
querem nem podem ser uma alternativa à sacramentos. Nem sempre há a
Igreja-grande-instituição. Elas procuram possibilidade da recepção da eucaristia.
viver o espírito comunitário que esteve Mas o povo não deixa de ritualizar seus
muito presente no primeiro milênio do encontros com símbolos de comunhão que
cristianismo. Evidentemente que existe conferem à comunidade coesão e sentido
certa institucionalização dentro das de universalidade. Curiosamente, velhas
comunidades. A sua força reside na cantigas da fé, de cunho gregoriano, são
combinação entre o elemento tradicional e reassumidas pelo povo e preenchidas com
o elemento novo. Primeiramente aparece o novos conteúdos. de tal forma que se
novo: os leigos assumem sua vocação na perceba o antigo mas também o novo.
Igreja; ritualizam a vida de fé com Neste sentido há a recuperação da
celebrações religiosas bem criativas, memória religiosa dos negros, de seus
compreendem a fé como libertação de c~nticos de libertação, de seus redutos de
todas as opressões históricas, e Jesus resistência, bem como das tradições
Cristo como libertador integral. Os novos conservadas em velhos lugares de
mistérios revelam uma posição nova dos romarias, onde o povo sempre alimentou
leigos dentro da estrutura da Igreja, pois sua fé. O catolicismo popular brasileiro é
eles são cc-responsáveis por tudo na extremamente rico, pois foi pouco
comunidade. Por outro lado, reassumem controlado pelo clero. Mostra um sentido
as tradições, a via-sacra, o rosário, as forte da presença do Deus sofredor que
festas populares de cunho religioso dentro assume a causa e as dores dos escravos
de outra ótica, menos intimista e (em 1852, mais da metade da população
devocional e mais profética e encarnada do Brasil era constituída de escravos), da
na cultura local. Assim, por exemplo, o Virgem Maria e dos santos protelares,
povo gosta de fazer vias-sacras; junto com como São Francisco de Assis, São Jorge,
o mártir Jesus coloca todos os seus São Cosme e Damião e outros.
mártires e os que sofreram por causa da fé Particularmente, a religião dos negros e o
dentro de sua religião. O povo gosta de sincretismo grandioso que criaram com
fazer procissões e caminhadas . Aí faz elementos do catolicismo tradicional e
dramatizações da vida e do Evangelho seus próprios elementos africanos mostra
para atualizar a mensagem de Deus, a força de resistência contra a dominação
contida nas Escrituras. Não há vontade de dos senhores brancos. Graças à religião,
ruptura com a Igreja que nos vem da os negros conservaram sempre um
Tradição e é simbolizada pela figura do sentido de dignidade e de esperança,
Papa, muito querido por todo o povo. A porque sabiam que Deus é Deus dos
identidade das comunidades em seu humilhados e escuta os gritos dos cativos.
caráter eclesial é conservada na medida
em que tudo é visto e lido na perspectiva
da fé e das Escrituras. A identidade das
comunidades se encontra na Palavra de

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Diante do Prefeito da dos portadores do poder sagrado. Eu fui a
Congregação para a Doutrina da Roma com o espírito de diálogo. A
Fé (7 de setembro de 1984) Conferência dos Bispos entendeu que'não
se tratava apenas do julgamento de um
Em 1981 escrevi o livro Igreja: carisma e teólogo mas de toda uma linha de pastoral
poder. Era uma tentativa de pensar a e de teologia, assumida pela Igreja do
temática da libertação dentro da IgreJa. É Brasil. Por isso, o Presidente da
notória a centralização do poder sayrado Conferência dos Bispos (Dom Ivo
dentro da Igreja. Também não há muita Lorscheiter) e os dois Cardeais mais
sensibilidade para os direitos humanos. proeminentes do país, Dom Aloísio
Por detrás das comunidades eclesiais de Lorscheider e Dom Paulo Evaristo Arns,
base vigora uma imagem de Igreja mais quiseram me acompanhar no diálogo.
serviço que poder, mais comunidade que Conversaram até com o Papa para
sociedade. Descrevi a figura nova dos conseguir a permissão de estarem
padres e dos bispos e o mútuo presentes na sessão de diálogo e
aprendizado na Igreja, superando a divisão interrogatório. Houve démarches difíceis,
clássica entre Igreja docente e Igreja pois era totalmente inusitado que um
discente. Alguns grupos extremamente teólogo suspeito fosse acompanhado por
conservadores no Brasil, concentrados na pessoas de tanto peso eclesial. Finalmente
Arquidiocese do Rio de Janeiro, puderam entrar na Congregação e juntos
especialmente ao redor de om conversar com o Cardeal Joseph
bispo-auxiliar, um suíço de nome Karl Ratzinger. A conversa versou mais sobre
Joseph Romer, teólogo cheio de medos e um possível novo documento acerca da
conhecido zeloso da letra da ortodoxia, teologia da libertação, pois o primeiro,
condenaram o livro no Brasil, e não Líbertatis Nuntius, nos parecia, a todos,
contentes o levaram ao Cardeal Joseph insatisfatório, a partir da ótica
Ratzinger. Sem qualquer diálogo prévio, fui latino-americana.
convocado para responder a seis páginas
de incriminações, algumas baseadas no O fato de minha convocação a Roma
livro, outras montadas com frases tiradas despertou grande interesse nos meios de
de seu contexto próprio. O livro, na comunicação mundial. Na verdade, para a
verdade, não é um tratado sistemático, imprensa, não se tratava de um tema de
mas uma colação de estudos a propósito eclesiologia, mas, de fato, do julgamento
da renovação da Igreja a partir das bases de um teólogo identificado com a teologia
e das intuições do Vaticano li. O que se da libertação. O tema da libertação
queria atingir, não eram tanto as minhas interessa não somente à Igreja, mas à
idéias, mas o movimento da Igreja nas consciência mundial; dar a enorme
bases, que no Brasil envolve a maioria dos ressonância que ganhou a minha
bispos e éstá levando a uma grande convocação para Roma. Eu,
renovação eclesial. Tenho a impressão de pessoalmente, penso que foi uma
que as autoridades de Roma temem este oportunidade de evangelização
tipo de desenvolvimento de um modelo de extraordinária, por· via secular, acerca da
Igreja que supõe uma nova forma de missão do evangelho no mundo moderno:
participação, quer dizer, uma redefinição a favor dos pobres e contra sua pobreza

12
numa linha de libertação integral. dentro da Igreja e a se interessarem pela
teologia da libertação, que começou a ser
discutida através da opinião pública até
A punição e a obediência nos bares.

O gesto de Roma foi sentido como um


escândalo pela consciência eclesial Socialismo e democracia
brasileira. Durante 20 anos a Igreja criticou
a censura que os militares impunham à Não usamos muito em nossos ambientes
opinião pública, silenciando jornalistas e de Igreja a palavra "socialismo". Isso se
polfticos. Agora Roma, de forma deve às críticas que fazemos e devemos
semelhante, silenciava um de seus fazer aos vários socialismos reais que, na
teólogos. Tal fato desmoralizou, de certa perspectiva latino-americana, não atendem
forma, a atitude da Igreja brasileira face ao suficientemente às demandas populares.
regime militar. Houve grande mobilização Reconhecemos os avanços que o
da opinião pública, principalmente dos socialismo trouxe em termos da
membros das comunidades eclesiais de infra-estrutura de alimentação, moradia,
base, rejeitando a forma como fora imposto escola, saúde e lazer. Entretanto, o ser
o silêncio e o escândalo público que isto humano possui outras necessidades
significava no contexto brasileiro. Recebi fundamentais, enquanto ele é ser humano.
milhares de cartas de solidariedade do O socialismo real, assim me parece, fez a
mundo inteiro. Recebi também de várias revolução da fome - na verdade, nos parses
comunidades da Polónia. Não criticavam socialistas não se passa, geralmente,
Roma, mas apoiavam uma Igreja feita de fome; mas não se fez a revolução da
comunidades, que não poderia ser liberdade. O aspecto totalitário do partido
diminuída ou mantida sob suspeita por que ocupa todos os espaços da sociedade
causa de um teólogo que sempre apoiou (a economia, a política, a educação, o
este tipo de Igreja. lazer, a cultura, o esporte, enfim, tudo)
limita enormemente a expressão da
Eu, pessoalmente, me submeti ao silêncio. sociabilidade humana; cria a uniformização
Entend(que cabia antes resguardar a e a mediocrização das pessoas . Devemos
caminhada da Igreja com o povo do que assumir tudo o que de bom o socialismo
recusar-me à obediência e prejudicar as trouxe, mas sem jamais renunciar à prática
comunidades eclesiais de base. Prefiro, de participação em todos os níveis. Em
disse, caminhar com a Igreja do que nossos ambientes, preferimos falar de
caminhar sozinho com minha teologia. A democracia fundamental, de cunho
Conferência dos Bispos assumiu minha popular, diversa da democracia liberal
causa, levou as ponderações pastorais a burguesa, que é excludente pois limita a
Roma, solicitando uma revisão do caso. participação do povo organizado. No Brasil
Antes que completasse um ano fui se fala muito de comunhão e participação
plenamente absolvido, no sábado da como metas fundamentais da pastoral e da
Páscoa de 1986. A punição, sob certo ação social dos cristãos. Importa viver a
ponto de vista lamentável, ajudou muitos democracia como um espírito que deve
cristãos a discutirem os direitos humanos estar presente na famnia, nas relações

13
escolares, na prática da convivência do comunidades e os movimentos populares
cotidiano, na política, na economia, na vão ensaiando dentro de sua própria ._
produção cultural e na organização do organização . Penso que o ideá rio original
lazer. Democracia sempre pressupõe a do cristianismo está mais próximo deste
participação que permite a igualdade tipo de democracia plena do que qualquer
crescente das pessoas e a realização das versão moderna da democracia burguesa
potencialidades de seu ser social. Este ou dos socialismos reais . Estimo que os
tipo de democracia poderia ser um outro cristãos poderão oferecer uma
nome para um socialismo de natureza contribuição original para uma sociedade
democrática. Ele pouco existe, mas deve humana, tolerante, religiosa e aberta para
ser construído a partir da prática que as formas cada vez mais aperfeiçoadas .

14
Religião
esociedade
Uma publicação que procura mostrar a importância de todas as religiões no
contexto da sociedade brasileira. Anâlises de cientistas sociais, da
intelectualidade do clero e do público interessado em desvendar os desafios que
comandam a relação Religião-:Sociedade.

Números de 1986:
1311: Ciência e crença: os antropólogos e a religião. O medo do feitiço.
Homeopatia no Brasil. Igreja e Educação.
1312: Tempo e história no conflito de Canudos. O "mito Vargas". Umbanda.
Max Weber. Modernidade. Sagrado . .
1313: Escatologia e poder entre os Araweté. Um conceito sociológico de "igreja".
Igreja Católica e mfdia. O festim dos bruxos.

RELIGIÃO E SOCIEDADE é uma publicação quadrimestral do Instituto de


Estudos da Religião (ISER) e do Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira
Monteiro (CER).

Assinatura anual (3 números): Cz$ 270,00.

Pedidos de assinatura, números avulsos e catálogo para ISER- Rua


lpiranga, 107- Laranjeiras- Rio de Janeiro- RJ- CEP 22231 - Tel.:
265-5635.

Leia também Comunicações do /SER e Cadernos do /SER, ou assine


as três publicações por Cz$ 430,00.

15
9~
Polônia- adesobediência
pela fé
RUBEM CÉSAR FERNANDES
Antropólogo.

No dia 13 de dezembro de 1981, as forças Entender esse processo exige um certo


armadas polonesas tomaram de assalto o esforço da imaginação. Imaginem como
seu próprio país, numa das maiores e mais seria se, no Brasil, todas as rezas
bem-sucedidas manobras militares dos confluíssem em algum momento para um
últimos tempos . O "estado de guerra" único ponto; ele queimaria, sem se
(assim foi chamado oficialmente) consumir. Padres, pastores,
desbaratou as mil e uma associações civis mães-de-santo, médiuns, pajés, gurus,
de protesto que se aglomeravam sob o romeiros, !esteiros, benzedeiras, o grosso
nome de SOLIDARIEDADE, e fechou a dos fiéis concentrando-se em uma súplica
história da mais recente insurreição comum - que comoção tomaria conta do
polonesa. Cinco anos depois, o governo país! Foi assim durante a agonia de
do General Jaruzelski estã firme no poder, Tancredo. É assim a Polônia cinco anos
mas a "normalização" não vem. A depois do golpe. Com Tancredo marcou
geopolítica (no caso, vizinhos uma transição, a travessia em quarenta
superpotentes) voltou a se impor com a dias do regime autoritãrio para uma "Nova
força de um destino inexorãvel, mas o país República" - um rito de passagem pela
continua estranhamente insubmisso. A morte e ressurreição, uma
magià das palavras e dos movimentos que representação histórica do mistério que
em 1980 reencantaram as idéias de celebramos, ano após ano, na Semana
liberdade, independência nacional, Santa. Na Polônia, o mesmo rito é
autonomia sindical, autogoverno projetado numa longa duração, por
(idéias-força do Solidariedade) foi quarenta anos, ou quarenta vezes quatro,
estancada abruptamente em dezembro como uma imensa romaria.
de 1981 . A frustração poderia ter sido fatal,
como o foi em outros países do leste Em agosto de 1980, nos estaleiros do
europeu, mas na Polônia a magia Bãltico, onde o Solidariedade surgiu, os
continuou a funcionar. As forças da operãrios cantavam uma canção que
desobediência ressurgiram em um espaço começava assim: "Deus Nosso, Deus
mais profundo, que fora preservado pela Nosso, como esta greve custa a terminar!"
Igreja, e voltaram a se expandir, sob a Hoje ela é cantada nas igrejas, e as
forma solene das missas, procissões, pessoas não se espantam. O
rosãrios, novenas, romarias. Solidariedade foi assimilado pela memória

17
religiosa e os seus sinais já fazem parte do tampouco servia . "Vai te queimar o
conjunto barroco das liturgias . O "V" da ombro", insistiu Krzystof, um biólogo
vitória nos dedos, as marcas da católico que já fez três vezes esta romaria
repressão, o logotipo inconfundfvel, as mas não iria este ano. Emprestou-me uma
palavras-chaves, os personagens pequena mochila sueca superprática. Jan,
reaparecem normalmente nos templos . As meu hospedeiro, conferia com os amigos a
canções grevistas juntam-se a outras longa lista de coisas, materiais e
canções, de outros séculos, como mais espirituais, que eu não deveria esquecer.
um solfejo em um coro milenar, cujas Jan é judeu, convertido ao catolicismo,
vozes repetem, compasso a compasso, o economista não praticante que se dedica
desespero e a esperança condensados na prazerosamente a traduzir obras
paixão de Cristo. teológicas. Deixei para comprar filmes
fotográficos em Varsóvia, calculando que
Como eu sabia dessas coisas, e estou seriam mais baratos, mas me dei maL Não
tentando compreender o catolicismo havia filmes nas lojas. Jerzy, amigo de
comparando suas expressões no Brasil e Jan, jornalista, ex-diretor da Agência de
na Polónia, resolvi participar da Noticias polonesa, ex-funcionário do
peregrinação que vai de Varsóvia a Comitê Central do partido, resolveu o
Czestochowa neste ano de 1986. É uma problema para mim: comprou os filmes
caminhada tradicional, que se faz há 275 numa das lojas especiais para vendas em
anos, relacionando o centro politico ao dólar. (Jerzy é uma figura interessante. Há
centro religioso do pafs. três anos resolveu jogar tudo para o alto,
pediu uma aposentadoria precoce, e
converteu-se ao catolicismo. Ele havia
A preparação entrado para o partido ainda quase garoto,
ao final da guerra, onde lutara como
Fui envolvido pelos preparativos logo que partisan .) Pap1;3l higiênico também não se
cheguei. À informação de que pretendia encontra. Fui instruido para procurar
participar da romaria, os olhos de meus guardanapos de papel, que tampouco
interlocutores se acendiam e a conversa consegui achar. Quebrei o galho com
se precipitava, concentrando-se finalmente papel crepon, azul marinho, desses que se
nos cuidados práticos. É preciso proteger recorta para fazer bandeirinhas em festas
os pés com meias felpudas de lã, e vestir de São João. Esparadrapo, gazes, álcool e
dois pares a cada vez, para evitar as outros itens para uma farmácia pessoal
bolhas . Não há meias assim para comprar encontrei sem problemas . O comércio está
em Varsóvia, então o sr. Michal, um amigo melhor do que há alguns anos, quando
idoso, emprestou-me dois pares grossos e entrou em colapso total, mas a falta de
surrados, de sua reserva para o inverno. produtos e as filas continuam a enfernizar
Serviram-me bem, mas acabaram por se o quotidiano.
rasgar no caminho. Sapatos não quis
aceitar, acreditando nos meus tênis D. !rena, uma senhora de mais de oitenta
brasileiros (dois pares), que aliás também anos, médica conceituada na sua época,
se rasgaram. A bolsa de couro tinha um pedido especial a fazer: uma
pernambucana que sempre levo comigo cartinha e uma doação em dinheiro para

18
serem entregues no Santuário, para que lnteligentsia Católica, uma instituição cuja
N.Sr" de Czestochowa ajudasse na cura história remonta ao "Outubro Polonês",
de sua nora, gravemente enferma. D. de 1956. Muita água correu pelo moinho ,
Halina, esposa do sr. Michal, preparou-me deste "Clube". e de seu meio saíram
uns deliciosos pãezinhos recheados com diversos assessores do Solidariedade.
repolho para o primeiro dia de marcha. Tem um forte sentimento de identidade e
prefere fazer a sua própria missa na hora
Convidaram-me para caminhar com o da partida. Cerca de mil pessoas, entre
grupo do Clube da lnteligentsia Católica, romeiros (uns 500) e acompanhantes,
onde devia cumprir algumas formalidades: lotaram a pequena igreja dos jesuítas na
ser apresentado por um padre (do que fui cidade velha, às sete da manhã, para
dispensado), pagar 2.000 zlotys (quinze comungar pelas mãos do "Elefante"
dólares ·no oficial, três no paralelo), nove (apelido carinhoso do padre que nos dirige)
latas de cons erva (uma para cada dia de e ouvir a sua primeira mensagem. Nos
viagem), e assinar uma carta de princfpios. nove dias seguintes, a voz suave do
Ao me inscrever, numa sala cheia de "Elefante", um homem grande de gestos
romeiros que conversavam animadamente mansos, passaria constantemente pelos
entre si, percebi que o alvoroço dos nossos ouvidos. Suas orações podem ser
preparativos já era parte da romaria. muito longas (às vezes o grupo se
Acontecia com todos, cada um em seu ressentia, os pés doídos, de tanta
cfrculo mais próximo de relações. mansidão). São orações pausadas, ditas
Conselhos, objetos úteis, farnel, ex-votos, no tom de uma conversa íntima com Deus.
todo esse ofertório engajava os que Na primeira missa, "Elefante" falou-nos do
ficavam com aqueles que partiam, criando Messias cujo reino não viria por um
o sentimento comum de que partiam pelos assalto aos centros do poder, um Messias
que ficavam. Sem o perceber, eu já havia paradoxal que ensinou ser preciso primeiro
entrado no jogo. A própria cidade se humilhar e morrer, para nascer de novo
transpirava excitação. É como na véspera em liberdade. Este padre fora um dos
do carnaval no Brasil: as pessoas seguem poucos que conseguira visitar os presos
ainda à rotina costumeira, mas a festa já políticos em seguida ao golpe de 1981. Por
está no ar. Aceitei então o conselho várias essa razão, vários deles, já soltos, faziam
vezes recebido, e que vi escrito:" ... você agora a romaria com o grupo
deve ir como romeiro, confessar e "Amarelo-Branco-Amarelo". Sua presença
comungar. Se for como turista curioso, foi enfatizada na missa pela consagração
verá e escutará de tudo, mas na realidade de uma placa rústica, pregada na ponta de
não terá visto nem ouvido nada." É como um bastão, representando os presos e os
no carnaval, pensei: impossível exilados que não podiam, ainda, estar ali
compreendê-lo sem brincar. conosco. Esta placa nos acompanharia
pelos quase 300km de marcha, sempre
carregada por um sujeito barbudo e mal
A despedida encarado, que se abriu num sorriso infantil
quando lhe propus uma fotografia. A placa
Meu grupo, o "Amarelo-Branco-Amarelo", nos lembrava que desde 1982 os presos
representa, como disse, o Clube da políticos acompanham à distância a

19
romaria, caminhando em cfrculos e mais longo para chegarem em
rezando ritualmente no pátio da cadeia . Czestochowa também a 15 de agosto, na
festa de N.S~. Outras colunas jã estavam
Feita a missa, começa enfim a caminhada . a caminho, vindas de cidades mais
Safmos em passos largos, pois devemos distantes, e outras ainda preparavam a
nos juntar aos outros grupos que jâ estão partida . Ao todo, 31 cidades haviam se
se alinhando num bairro próximo . mobilizado para esta romaria, cobrindo
Tomamos o nosso lugar e continuamos, todo o território do pafs, como uma estrela
agora parte de uma longa coluna que cujos raios refluem sobre o seu centro. As
atravessa a cidade nas primeiras horas da mais longas colunas (dos portos no
manha. As calçadas estão cheias, as noroeste) levavam umas 13.000 pessoas
janelas mostram rostos sorridentes e caminhando mais de 600km em cerca de
braços que acenam ou fazem o "V" da vinte dias. A maior parte andou entre 200 e
vitória. Parece que a cidade amanheceu 400km, e a mais próxima percorreu ·
para nos ver passar, na alegria de uma apenas 30km . Participaram da marcha
desobediência que só faz sentido pela fé. quase 200.000 romeiros, 1.174 padres,
De quando em vez hâ alguém que chora, 1.432 seminaristas, mais de mil freiras,
deixando transparecer os paradoxos da quatro cardeais, 48 bispos, sendo que
alegria geral. Manifestações públicas estão apenas dois bispos fizeram a caminhada
proibidas, oposição polftica aberta nem por inteiro.
pensar, a religião é oficialmente
condenada. Todos lembram os tempos de Havia entre eles muitas crianças, bebês
perseguição ativa à Igreja, lembram as inclusive (estes em pagamento de
esperanças do Solidariedade e os tanques promessas). Somente na romaria de
nas ruas. Estão conscientes do domfnio Varsóvia contou-se 1.618 crianças
soviético que inibe qualquer projeto de menores de doze anos . Havia também
mudança substancial e no entanto pessoas idosas. A mesma romaria de
marcham insubmissos, e por isso se Varsóvia (quase 300km) entrou em
alegram, o "V" da vitória nas pontas dos Czestochowa comandada por um certo
dedos. As primeiras linhas do Hino irmão Adam, de 94 anos. A grande maioria,
Nacional (composto em 1797, em seguida no entanto, era formada de jovens,
à terceira partilha do pafs) dizem que "a universitários, secundaristas ,
Polónia ainda não morreu, porque nós trabalhadores . O grande "barato" na
estamos vivos" . Recriando o sentido do Polônia, hoje, é fazer romaria . Havia 1.152
hino no movimento das pernas, estrangeiros de 23 pafses, incluindo
caminhamos por mais de três horas pelas alguns, muito festejados, da Europa de
ruas de Varsóvia, na mais longa leste. Da Hungria veio um bom número,
despedida. legalmente; da T Checoslováquia, um
número menor, ilegalmente. No nosso
Éramos neste dia cerca de 40.000 grupo, uns dez rapazes e moças
romeiros . Um contingente menor (perto de carregavam uma bandeira tcheca, num
10.000) havia safdo na véspera, formado desafio provocador às autoridades do seu
este por estudantes universitários de pafs . Atravessaram a fronteira escalando
Varsóvia. Eles fariam um percurso um dia as montanhas do sul, e antecipavam

20
punições ao regresso, pois é claro que a 400 a 500 pessoas. Meu grupo, o
polícia caminhava conosco, em segredo. "Amarelo-Branco-Amarelo", estava af, e
vinha logo depois do "Amarelo-Branco",
Os números são estonteantes . Na semana grupo prestigioso, formado por artistas do
da ascensão de Maria, o santuário de cinema, teatro e televisão.
Czestochowa rezou 2.173 missas e
distribuiu 320.000 comunhões. Os Cada grupo tem o seu próprio sistema de
confessionários, colocados às dezenas som: uns dois ou três microfones que vão
em um pátio exterior (o alvoroço bem na frente, e que são ligados a um fio
impossibilitaria qualquer função litúrgica que corre ao longo de todo o grupo por uns
se estivessem dentro do templo), foram cem metros, tendo a cada dez metros um
tomados de assalto por levas e levas de alto-falante que é carregado por algum
romeiros. Um dos padres paulinos que voluntário. Este fio deve permanecer
cuidam do monastério fez a respeito o esticado, pois ele marca as fronteiras do
seguinte comentário: "Só quem passa os grupo. As pessoas caminham à direita do
dias a escutar as confissões pode ter uma fio, deixando a esquerda livre para os
idéia do poder espiritual que move esta carros e as carroças que passam. O som
romaria." funciona quase sem cessar, com rezas,
cantos, palestras, debates, brincadeiras,
avisos etc., levando sem pejo os ruídos
A caminhada humanos estrada a fora.

Quem conhece escola de samba Cada grupo é encabeçado por uma cruz
entenderá facilmente a organização pintada com as suas cores. É ela que
dessas peregrinações a Czestochowa. A marca o ritmo da caminhada. Todos
principal de Varsóvia é composta de 17 devem seguir atrás da cruz, e não é
romarias, como se fossem 17 escolas . As permitido ultrapassá-la sem alguma razão
romarias de número "1" a "16" são especial, assim como não se admite no
coordenadas pelos padres paulinos e carnaval que um figurante vá dançar em
seguem com eles um certo trajeto. A de outra ala. Entre um grupo e outro,
número "17" tem um estilo próprio, mais procura-se manter uma distância
intelectualizado, é chamada "acadêmica" e constante, de modo a que permaneçam
coordenada por um padre secular. A "17" visíveis no horizonte. Se a cruz caminhar
tem crescido muito nos últimos anos, e depressa ou devagar demais, um grupo
segue por isso um outro caminho. Cada pode entrar por dentro do outro,
romaria é dividida em grupos, como se confundindo as cruzes, os sons e as
fossem as "alas" das escolas de samba, pessoas. É importante, portanto, que a
cada qual com as suas cores ou o seu cruz sustente o seu ritmo, e que os 400 ou
nome. A romaria da cidade de Warmiríska, 500 romeiros que a acompanham não
por exemplo, dividiu os seus grupos percam o pé. Não é fácil manter essa
segundo os nomes das antigas tribos toada com tanta gente e por tantos
eslavas; as de Varsóvia são divididas em quilómetros. Nas escolas de samba há um
cores. A romaria "17" saiu este ano com pessoal uniformizado que é responsável
32 grupos, cada um composto de umas pela "harmonia"; eles seguram os

21
apressados e apressam os atrasados, costuma chover, às vezes muito, e o trem
para que não haja "buracos" entre as alas não pára, a roupa seca no corpo, e à ooite
e a cronometragem seja cumprida dorme-se em barracas ou em celeiros
conforme o regulamento. É uma função cobertos de palha de trigo . As estatísticas
irritante por natureza. Na romaria, são os não mencionam, mas vi diversos
seminaristas que cumprem este papel. desmaios, e soube, por ouvir dizer, de um
Ouvi muita reclamação contra esses senhor que morreu de um ataque cardíaco.
rapazes ("basta dar um distintivo que
viram logo policiais ..."), mas eram eles e
os enfermeiros (estudantes de medicina Polónia
voluntários) que seguravam a barra das
pessoas que caíam, fosse arrastando-as O segundo e o terceiro dia são os mais
pelos ombros até a próxima parada um par diffceis. O corpo resiste ao ritmo da
de horas à frente, fosse cuidando dos caminhada, dói, e as pessoas entram em
casos graves até que chegasse um auxmo crise . No meu grupo, saímos 500 e
motorizado. chegamos um pouco menos de 400.
Ultrapassada a primeira crise, corpo e
Caminhávamos, pois, como se alma tendem a se fundir em um esforço
formássemos um trem, um vagão atrás do concentrado, pontilhado apenas por
outro, chacoalhando para os lados e momentos esporádicos de dor e
avançando em ritmo constante. Quem insegurança. Prevalece no entanto o
pulasse fora, por uma pedra no sapato, um prazer do movimento contínuo. O xadrez
momento de exaustão, uma caneca de dos campos cultivados enchem os olhos
água ou uma maçã oferecida pelos com a mesma alternância que o rufdo dos
camponeses à beira da estrada, um xixi ou passos e o fluxo da respiração. As
um cocô, um auxnio a alguém que tivesse conversas são breves, os parceiros à
cardo, qualquer razão que fosse, quem direita e à esquerda mudam
safsse tinha de fazer um esforço redobrado paulatinamente. Não há tempo nem
para pegar o trem andando e alcançar de espaço para chamar a atenção sobre si
novo o seu lugar. Nessas circunstâncias, mesmo, a não ser para abrir uma crise. As
era vital manter-se no grupo, a despeito das pessoas se dizem "irmão", "irmã", "você".
dores que se fixassem pelo corpo. As Quem tira da mochila uma garrafa de água,
estatfsticas de uma enfermaria (para uma ameixa, um pedaço de pão, oferece-o
20.203 romeiros) dão uma idéia dos a quem caminha ao seu redor, que aceita e
estragos: 20.000 curativos e 3.250 retribui mais tarde a outros que
consultas médicas. Casos mais acontecerem de estarem ao seu lado. Não
freqüentes: 21.400 problemas nos pés, há "profundidades" na caminhada. Não há
como bolhas, contusões, luxações etc.; tampouco "multidão" ou "solidão".
1.780 problemas de pele - é verão, eles Caminha-se numa intimidade difusa que
são loiros ... ; 680 intoxicações alimentares não estimula contatos intensamente
-come-se pão com !ataria (que é levada pessoais. Há casamentos nascidos de
por caminhões aos lugares de pouso), romaria, mas não se namora nela, nem
frutas e sopas oferecidas pelos mesmo entre casais já formados. Não se
camponeses; 530 resfriados e anginas - fuma tampouco, e sobretudo não se bebe .

22
O episcopado declarou agosto um mês de dimensão temporal, povoada por entidades
abstinência, evocando a lembrança do essenciais . É o tempo dos heróis, dos
levante de Varsóvia (1º de agosto). dos arquétipos, do sentido da vida e da morte.
acordos de Gdarísk que fundaram o Viajando, rec riávamos o cenário de um
Solidariedade {31 de agosto), e da povo que se diz "polonês", e entrávamos
ascensão aos céus de Maria (15 de nele, transformados em personagens de
agosto) . Nesse mês a nação deve estar um outro mundo.
"sóbria". O "barato" da romaria não passa
pela embriaguez.
Maria
Há muitas versões desta viagem . Relato
uma que me foi dada por Barbara, esposa O excesso de simbolismo pode ser
de Jan: "Em um dado momento" - insuportável. Pode ser ridículo, também.
contou-me ela já de volta a Varsóvia- Uma mulher judia, psicóloga, de trinta e
"fui surpreendida pela nítida percepção de poucos anos, que se indagava sobre uma
que caminhava pela 'Polónia' de meus possível conversão ao catolicismo, pegou
sonhos . Nosso dia-a-dia é feio e um ónibus de volta já no terceiro dia.
decadente. As ruas e os prédios são mal Voltou para Varsóvia atormentada, como
cuidados, a natureza é poluída, o trabalho se houvesse caído em uma cilada: os pés
é frustrante, as pessoas estão tristemente feridos, e as entranhas
insatisfeitas . Não é assim a 'Polónia' que a nauseadas pela ingestão de uma dose
gente lê nos livros e canta nos hinos . Na excessiva de patriotismo. Os intelectuais
romaria, meus sentidos foram que se recusam à conversão (que aliás
transformados, e pude ver o meu pais. Os são poucos, mas bons) admiram o que se
campos verdes, o trigo maduro, os passa com a Igreja, aceitam convites para
camponeses vestidos em roupa de falar nas romarias, mas se assustam com
domingo a nos saudar, as capelas a bancarrota da cultura laica na Polónia do
enfeitadas à beira das estradas, a "estado de guerra".
solidariedade sem afetação das pessoas
ao meu redor, foi como se houvesse A romaria de Varsóvia não reunia mais de
penetrado no mundo dos romances 10.000 pessoas até o golpe de 1981, a
românticos que lia em minha maioria absoluta sendo formada de "gente
adolescência." simples". Fechadas as vias e as vistas da
oposição civil, as forças da resistência
Os livros românticos são do séc . XIX, os submergiram, reencontrando-se no drama
hinos que cantávamos eram de outros a um tempo simplório e grandioso da
séculos, a partir da Idade Média. Os Paixão de Cristo. Hoje não só a romaria de
gestos arcaicos, como o ajoelhar-se diante agosto tornou-se um evento nacional como
de cada igreja, ou o prostrar-se com o é através das romarias que as
corpo inteiro, o rosto e os braços abertos experiências recentes de organização
sobre a terra, as conferências popular são reapropriadas e dramatizadas.
insistentemente históricas e a própria A pastoral camponesa ganhou impulso
coluna humana serpenteando para além do com a organização da primeira romaria
horizonte introduziam-nos em uma outra nacional dos trabalhadores da terra, em

23
1982. Ela acontece em setembro, cruzes têm muitas cores e nomes. Mas é
celebrando as colheitas . Foi também em justamente porque as diferenças são ,
romaria que o Pe . Popieluszko lançou a preservadas que as romarias projetam um
pastoral operária, estritamente proibida cenário pleno da sensibilidade polonesa
pelo Estado, e temida por grande parte do atual, de tal modo que os romeiros podem,
episcopado . Isto foi em 1983. Um ano sem paranóia, imaginar-se uma nação em
depois, este padre foi raptado pela polrcia, movimento. Uma nação composta de filhos
torturado, morto, e seu corpo jogado no rio. e filhas de Maria, que escandalosamente
Seu túmulo (na igreja S. Stanislaw, em acreditam, hoje mais do que nunca, ser
Varsóvia) tornou-se por sua vez um novo dela a maternidade e o reino sobre toda a
centro de romarias, e a pastoral operária famnia humana.
foi irremediavelmente criada.
A ·imagem de Maria que os romeiros
O sentido polrtico de todo esse processo é encontram em Czestochowa tem duas
ambrguo e polivalente. Reconheci na cicatrizes no rosto, feitas por golpes de
romaria os sinais de uma disputa espada. Seus olhos, muito belos, tristes,
ideológica que permeia o pensamento profundos, transmitem uma luminosidade
político polonês desde os finais do séc. que parece vir do centro da terra. Sua
XIX : uma corrente de esquerda, associada capela é chamada "miraculosa". "É o
ao antigo partido socialista, e uma corrente coração deste povo", disse um literato
de direita, da chamada "nacional romântico do séc. XIX. "Ela deveria ter
democracia". A primeira prolonga o sentido sido destrurda em seguida ao levante de
universal e libertário do romantismo 1863, mas agora é tarde demais",
polonês ("pela nossa liberdade e pela escreveu o governador russo no final do
vossa!") ; a segunda é mais pragmática, e século. "Entreguei tudo a Maria",
dá um sentido exclusivista ao ardor confessou Wyszyríski, "primaz do
patriótico. A segunda corrente chegou a milêriio", lrder inconteste dos rumos
justificar o anti-semitismo; e até este, ainda seguidos pela Igreja polonesa no
que oculto, é parte ativa na romaria . pós-guerra. "Aqui sempre fomos livres!",
ecoou João Paulo 11 do alto dos muros do
Outras ambigüidades estão presentes. monastério para a multidão que veio
Não são poucos os católicos que se recebê-lo. Sob os cuidados de Maria, a
incomodam com a excessiva politização resistência polonesa sobreviveu ao golpe
dos rituais . Sentem falta da mrstica das e toma os caminhos da não-violência,
pequenas comunidades, que aliás também numa espiritualidade que se quer feminina.
se multiplicam nesses tempos, sobretudo Sua principal palavra de ordem, ouvida mil
entre a juventude. Há outros santuários na e uma vezes no decorrer da romaria, tem a
Polônia (os marianos são cerca de 400!) força enigmática das revelações: "Vencei
cujas peregrinações distinguem-se por o mal com o bem!".
outros gêneros de piedade . Os leigos
reclamam maior participação. Há
diversidade, contradições, polêmicas que
transparecem nas conferências durante a
caminhada, e de grupo para grupo. As

24
Horror e religião -
um estudo antropológico do filme de terror
KA TIA KARAM TORALLES MAR CIO DE MA TOS CANIELLO
Antropóloga Antropólogo

Introdução conexões entre o cinema de terror e as


religiões cristãs (pois tendo-se o cinema
Há alguns meses atrás, após assistirmos ocidental como veiculador da problemática,
a Nosferatu: uma sinfonia do horror, de as idéias religiosas só podem também ser
Friedrich Wilhelm Murnau (1889-1931), ocidentais), centrando-se a análise na
numa mostra de filmes do expressionismo linguagem cinematográfica expressionista
alemão, alguns questionamentos acerca da dicotomia Sagrado/Profano.
surgiram em nossas discussões acerca
do filme, principalmente como resultado da Algumas ressalvas devem ser feitas,
linguagem essencialmente simbólica em entretanto, antes de entrarmos em nossa
relação aos fenômenos sobrenaturais e análise. Primeiramente, tencionávamos
metaffsicos, e de sua conexão com o fazer uma análise do romance no qual
mundo profano. Eis exemplos desses Murnau se baseou, juntamente com seu
questionamentos: roteirista Henrik Galeen, para elaborar
Nosferatu, o clássico da literatura de
- Quando o sagrado - na acepção horror Drácula, do inglês Oram Stoker
durkheimiana apontada por (1847-1912), na medida em que ele
Evans·Pritchard como algo que está constituiria o que Lévi-Strauss chama de
"protegido e isolado por interdições" "mito de referência". Entretanto, foi-nos
( 1978:82) - imiscui-se com o profano, que impossfvel obtê-lo, mesmo com uma
é exatamente o caso do cinema de horror, estafante procura em bibliotecas e
há uma tentativa de se questionar esta livrarias.
dicotomia ou de afirmá-la?
Outra ressalva, que é mais um
-O horror, como oposição maniquefsta ao esclarecimento metodológico, é quanto à
sentimento religioso (cristão, no caso), nossa análise de Nosferatu como um
sendo apresentado numa obra de arte "estudo de caso": achamos válido tal
cruamente, vem criticar ou tomar uma procedimento na medida em que os filmes
posição conservadora em relação aos de horror por nós assistidos pareciam ter a
dogmas religiosos? mesma estrutura definidora; além disso,
sendo o filme um clássico do cinema, e
Este trabalho tem como proposta situar as estando engajado em um movimento

25
artrstico de _grande importância -o pela derrota na I Guerra Mundial"
exrressionismo alernão -, poderia (Gebauer, s/d: 2), situada numa depressão
fornecer-nos elementos dos mais diversos econômica e numa inflação galopante,'
em vários nrveis de interpretação gera uma transformação no cinema
(antropológica, da sociologia da arte etc.). alemão, transformação que é também uma
Por fim, poderramos tomá-lo como "mito de reação aos movimentos artrsticos da
n:iferência" na medida em que, segundo época, que prometendo as màiores
Dorothea Gebauer, "Até os dias de hoje revoluções acabavam em nada. E, se é
produziu-se uma série incontável de fitas verdade o que diz Pierre Leprohon em sua
de horror e vampiros que seguem a trilha Histoire du cinéma - "o cinema não é mais
de Nosferatu, mas nenhum deles que o verculo de expressões anteriores à
conseguiu captar o horror do filme original sua existência e não uma linguagem
mudo" (s/d: 7). susceptrvel de criar uma emoção estética
diferente" (1968:71) -,o cinema
Devemos esclarecer ainda que o expressionista alemão é uma reflexão
levantamento etnográfico para este sobre seu próprio tempo, os tumultuados
trabalho foi realizado a partir de nossas anos 20.
lembranças do filme e de alguma literatura
sobre cinematografia (vide bibliografia). A linguagem cinematográfica emergente no
Mas o essencial mesmo são nossas expressionismo é pungente; ela se baseia
impressões, já que "cinema é imagem - e "numa visão subjetiva do mundo, expressa
a imagem que se movimenta deve pela deformação e estilizações simbólicas"
impressionar por si e ser auto-explicativa" (Martin, 1971 :66). Não se cria um cenário
(Gebauer, s/d: 6), e além de tudo essa natural: ele é uma interpretação simbólica
impressão é marcante e inesquecfvel em da natureza, redimensionando-a de acordo
se tratando de cinema expressionista. com seus objetivos - no ·c aso de
Nosferatu, "a utilização de cenários
Finalmente, a análise antropológica sinistros onde o terror e o pânico se
propriamente dita é feita basicamente a libertam com naturalidade" (Martin,
partir da discussão elaborada por Mary 1971 :67). Afinal, o expressionismo não vê-
Douglas em seu livro Pureza e perigo, cria visões.
sendo paralelamente realizada com
bibliografia antropológica a ser citada No Kammerspiel, tipo de filme
durante o texto. essencialmente expressionista, como em
toda a arte expressionista o sentimento
deve sobrepujar a natureza, e a incrrvel
1. O Cinema utilização de sfmbolos emergentes do ego
Expressionista Alemão artrstico é seu caráter definidor. Como
disse Edschmid, grande teórico do
O expressionismo na Alemanha situa-se expressionismo, "O mundo está à nossa
como uma resposta artrstica às condições volta, seria absurdo reproduzi-lo tal qual é,
materiais vividas pelos alemães no pura e simplesmente" (Eisner, s/d: 13).
começo do século XX. A frustração de
uma "geração profundamente marcada Especificamente em Murnau, a

26
linguagem expressionista é mais Ellen) vive um casamento feliz. Hutter é
impressionante; uma estilização mais empregado do corretor de imóveis Knock,
superficial e mesmo decorativa é por ela que certo dia o manda visitar o Conde
rompida. Seu gênio cria "as imagens mais Orlock, chamado Nosferatu, para fechar
perturbadoras da cinematografia um negócio (venda de uma casa em
germânica" (Eisner, s/d: 59). Bremen para o conde).

Enfim, o cinema expressonista é uma O conde tem seu castelo na Transilvânia,


forma de interpelar o mágico - esta para onde Hutter se dirige a cavalo. A
dimensão do sagrado -através de uma caminho ele hospeda-se num vilarejo onde
linguagem fortemente simbólica que tem os moradores, sabendo do seu intuito de
como ponto orientador buscar o mais visitar o conde, assustam-se e o previnem
profundo "sentido metafisico" dos eventos. contra a "terra dos fantasmas", lugar onde
No seu claro-escuro tão caracterfstico mora Nosferatu. Durante a noite, em seu
reside uma cosmovisão de tudo que pode quarto, Hutter acha alguns livros sobre
ser chamado furta-cor: a vida e sua vampiros e os lê com desdém. Enquanto
transcendência. está dormindo, numa cena exterior os
animais aparecem inquietos, o vento uiva,
os cavalos fogem, e aparecem chacais
2. O filme · grunhindo.

Nosferatu: Eine Synphonie des Grauens Na manhã seguinte ele procura um guia
foi produzido no ano de 1922 pela para acompanhá-lo ao castelo e ninguém
Decla-Bioscop. Foi dirigido por Friedrich se dispõe; acaba indo para lã sozinho. À
Wilhelm Murnau sobre o roteiro de Henrik certa altura do caminho aparece uma
Galeen, numa adaptação de Drácula, de carruagem negra sem cocheiro, que num
Bram Stoker. Tem a fotografia de Fritz recurso de câmera - o tour de manive/le -
Arno Wagner e cenário de Albin Grau. No se aproxima com rapidez de Hutter; ele
elenco, entre outros, aparecem Max entra e é transportado para "o pafs dos
Schreck, Gustav von Wangenheim e fantasmas", no Cárpatos.
Grete Schõder.
Chegando ao castelo, que se localiza no
Achamos necessária uma breve descrição alto de uma escarpa rochosa, jâ à noite,
do filme, que, apesar de descaracterizada depara com uma enorme porta que se abre
pela falta óbvia dos recursos artfsticos de sozinha. No pátio do castelo aparece a
realização e expressão, deve ajudar na figura de Nosferatu (é completamente
compreensão de nossa análise. Esta calvo, tem orelhas pontiagudas, veste-se
sinopse tem o objetivo de situar as nossas com uma capa negra, além de ter as
interpretações posteriores, somente. unhas enormes e ser corcunda). Quando
se encontram, o Conde Orlock diz que já é
••• noite e todos os seus criados já foram
dormir, por isso foi esperâ-lo sozinho
O filme passa-se na cidade de Bremen, (estes na verdade nunca aparecem).
onde um casal de classe média (Hutter e Hutter acompannha-o e entra no castelo.

27
Um banquete espera por ele, que senta-se caixões cheios de terra em uma
à mesa. Orlock o acompanha, mas sem carruagem; no final entra em um dele,s, e a
comer; fica apenas a olhá-lo. Durante o carruagem segue caminho.
banquete, Hutter fere-se com uma faca ao
cortar um pão, e o conde, vendo o sangue Hutter por fim consegue fugir do castelo, e
escorrer, exclama: "Seu sangue é socorrido, exausto, por algumas
precioso!", e imediatamente põe-se a pessoas. Enquanto isso, no porto, a
chupá-lo. Após isso, o conde assina o "carga sinistra" é inspecionada, e quando
contrato, que ao ser tirado da bolsa por aberto um dos caixões, saem dele ratos
Hutter deixa entrever o retrato de sua que mordem um dos marinheiros. Acabam
mulher, que Nosferatu olha com extremo por fechar o caixão, e transportam todos
interesse e pergunta quem é. Logo depois eles até o navio.
levantam-se da mesa e Nosferatu parte
em direção a Hutter, que, em pânico, Durante a viagem, Nosferatu mata um por
afasta-se até cair sentado em uma um os marinheiros para alimentar-se de
cadeira. É madrugada e o galo canta; sangue. Paralelamente, em Bremen,
Nosferatu larga Hutter e se recolhe. notrcias de uma peste que segue o
itinerário do navio assustam seus
Hutter acorda e põe-se a ler a Bfblia e habitantes e especialmente um estudioso
rezar com o crucifixo; depois vai escrever de animais e plantas carnfvoras.
para sua mulher, dizendo que tudo está
bem e que ele está somente um pouco Ao aportar em Bremen, o capitão do navio
cansado. Enquanto escreve, percebe que é encontrado amarrado ao timão e morto,
seu pescoço está marcado por dois apresentando duas marcas no pescoço. O
oriffcios. médico Sievers constata a peste que se
alastra por toda a cidade (féretros
Nesta noite, Orlock aproxima-se de Hutter aparecem a todo momento). Também
para sugar-lhe o sangue, enquanto em Hutter regressa a Bremen. Ellen pressente
Bremen, Ellen (que é sonâmbula} acorda o envolvimento do seu marido ao encontrar
torturada por pesadelos e grita por seu na bagagem um livro de vampiros, onde
marido, como que pressentindo o perigo. O consta que uma mulher de coração puro é
grito chega aos ouvidos de Nosferatu, que capaz de impedir o vampiro de voltar ao
é obrigado a soltar sua vftima. seu caixão "de terra pagã" antes do
amanhecer, liquidando-o. Nosferatu se
Na manhã seguinte, Hutter levanta-se alojara em uma casa que fica à frente da
assustado, vai andar pelo castelo e chega janela de Ellen, que, após aterrorizar-se
ao porão, onde encontram-se alguns com sua imagem durante dias, convida o
caixões. Abre um deles e, aterrorizado, vê monstro a visitá-la e oferece-lhe seu
o conde Orlock dormindo. Sai correndo pescoço, distraindo-lhe até o dia
pelo castelo e não consegue encontrar amanhecer. O sol matutino faz com que o
uma safda; desespera-se e vai para o seu vampiro se desfaça em cinzas. Hutter, que
quarto. Anoitecendo, o conde levanta-se e acorre juntamente com o médico, encontra
o tranca em seus aposentos. De lá Hutter sua esposa agonizando. Knock, o parceiro
olha para o pátio e vê o conde empilhando do monstro, morre num manicómio na

28
mesma hora que seu mestre. A dicotomia Sagrado/Profano constitui,
enfim, para Durkheim, uma manifestação
(Esta sinopse foi baseada na citada por da "vontade de cognição" imanente ao
Gebauer em Murnau Mayer Veidt e por homem que vive em sociedade; ela é uma
nós completada. As imprecisões de "categoria de pensamento" emergente das
detalhes devem ser perdoadas pelas formas concretas da vida social. A
razões já citadas na introdução.) dialética durkheirriiana da relação entre
Sagrado e Profano deve ser definida por
suas próprias palavras: "Pois o que define
3. Definição de Conceitos o sagrado é o fato de ser acrescentado ao
e Problemática real; ora, o ideal corresponde à mesma
definição: não se pode portanto explicar
Antes de começarmos a desenvolver a um sem explicar o outro." (1973:528.)
análise propriamente dita, cremos ser
necessário esclarecer os conceitos Mais tarde, Evans-Pritchard vem
utilizados, em cima dos quais ela se nutre evidenciar um pouco mais essas
e se desenvolve até apontar para as questões. Diz ele que, para Durkheim, o
conclusões. Sagrado é uma categoria ampla
identificada por estar circunscrita por
Dizia Durkheim (1973:507-547) que o interdições, e que o Profano é onde se
Sagrado caracteriza-se pela interdição, e aplicam estas interdições, ou seja, a
que, por contraste, Sagrado e Profano se própria sociedade. Enfim, que "tudo, o real
autodefinem. São esferas opostas e só e o ideal, pertence a uma de duas classes
pensáveis relativamente, mas apesar opostas, o Profano e o Sagrado."
disso são estanques nas representações (1978:82.)
coletivas. Além disso, escreve José
Carlos Rodrigues ( 1983:27): "Durkheim É baseando-se nestas noções que Mary
reconhece duas formas diferentes de Douglas vai problematizar a questão da
manifestação do Sagrado: o Sagrado Puro poluição. Partindo da dicotomia
e o Sagrado Impuro. Ambas se relacionam Sagrado/Profano relacionada com os
com o Profano da mesma maneira: é-lhes pares opostos Purezallmpureza e
vetado qualquer conta to. Todavia, inspiram Sobrenatural/Natural, ela vai propor que
reações diferentes: em um caso, o "nosso comportamento de poluição é a
respeito; no outro, o horror. O Puro e o reação que condena qualquer objeto ou
Impuro são variedades de um mesmo idéia capaz de confundir ou contradizer
gênero e não estabelecem solução de classificações ideais" ( 1976:50). E mais:
continuidade no terreno da sacralidade. que a ordem se define através do
Contudo, não podem ser postos em segregamento dos elementos das relações
contato: existe entre o Sagrado Puro e o dicotõmicas e que o caos (a desordem por
Sagrado Impuro uma repelência igual à excelência) advém do seu contato
que separa o Sagrado do Profano. O eventual, no sentido de materialização em
contraste entre eles é o mais extremo ambigüidade do dicotómico. Ou seja:
possfvel: o Impuro nega e contradiz o quando se imiscuem o Sagrado e o
Puro." Profano, o Sobrenatural e o Natural, o que

29
se gera é uma confusão, um aparência tão estarrecedora. Logo o
desordenamento, uma dessistematização. prenúncio começa a se confirmar quando
Em contrapartida, a sociedade lança mão Hutter aceita ir até a Transilvânia, local
de regras e estratégias para o recontrole, o distante, para vender uma casa a um
reordenamento ideal. desconhecido conde, Nosferatu.

Ora, a temática dos filmes de terror é Uma longa distância é percorrida a cavalo;
ex atamente esta: o sobrenatural em o destemido Hutter vai em busca do
contato com o natural; o caos impetrado desconhecido: ar temos uma primeira
pela intrusão daquilo que Durkheim chama dicotomia representada largamente, a
de "Sagrado Impuro" na soCiedade, no Alemanha ordenada está longe de se
mundo profano inspirando uma reação de contagiar com essas terras estranhas dos
horror. É basicamente a morte "agredindo Cárpatos. Dirramos que esta viagem é
em sua casa" os vivos. O que é interditado equivalente àquela do herói conquistador
se nos apresenta e "toca", por assim clássico que, saindo sozinho de seu pars
dizer, o profano, poluindo-o, enfim. (o conhecido), lança-se numa aventura de
coragem ao estranho e, quando menos,
A nossa pergunta central situa-se, exótico.
portanto, ar: nos filmes de horror se afirma
o caos como coisa imutável, ou sua No entanto, essa solidão não é absoluta;
solução se dá no reordenamento da ela é intermediada pelo "último reduto" do
sociedade? E se ela se dá dessa forma, conhecido: os aldeões da Transilvânia. Ar
como é atingida a ressistematização, e o realmente se materializa a anomalia, e o
que se manipula para tal? E ainda, como horror começa a ser desperto: os aldeões
se situa a Religião Cristã simbolicamente previnem nosso herói do perigoso contato
nesta problemática? É a isto que com "a terra dos fantasmas". A partir de
tentaremos responder com a nossa então, !erramos expressa a idéia de
análise de Nosferatu. circunscrição do Sagrado e,
analogamente, o medo do impuro. Ora, o
medo da "terra dos fantasmas" não é pela
4. Nosferatu: um Estudo de Caso sua existência, já que ela própria, onde
está, assegura o não-contato com o que
Quando o filme logo de inrcio nos chamarramos de Profano. O medo dos
apresenta uma Bremen burguesamente aldeões é pelo contato, ou seja, pelo
ordenada, transparece o controle completo imiscuir-se dos homens vivos neste
das dicotomias: tucjo está em seu lugar, o terreno impuro de uma alma morta que
casal vive feliz seu casamento cristão. insiste em habitar seu corpo. É o medo,
enfim, da ambigüidade, do ajuntamento do
Entretanto, o germe da poluição já habita que deve ser segregado, da desordem que
nossa Bremen: ao lado mesmo da retidão confunde.
e beleza de Hutter, apresenta-se o feio e
estranho Knock, seu patrão. E Mas Hutter - numa atitude já esperada de
prenuncia-se algo de anõmalo em suas qualquer desses heróis tão etnocêntricos
atitudes tão estereotipadas e em sua - não teme nada. Mesmo diante dos

30
prenúncios de horror na noite em que ele Queremos nos ater um pouco ao
dorme na aldeia e que simbolizam a força simbolismo inerente a Nosferatu: como
aterradora do "Sagrado Impuro" - até a dissemos acima, ele tem as
naturez a modifica-se, numa atitude mesma caracterfsticas próprias do mal, este
de alarme, tentando mostrar aos homens o definido no âmbito de nossa cultura cristã
perigo desse contato -, ele não se abala. ocidental. O mal é o feio, o sujo, o
demonfaco. É aquele que se identifica com
A coragem do nos so herói faz com que os ratos e com a morbidez e que, com seu
ele, mais uma vez, não tema o poder, espalha a peste quando sai de seu
desconhecido. Na sua viagem para a pafs distante e vem a caminho da bela,
"terra dos fantasmas" é que finalmente vão próxima e limpa Bremen.
ficar explfcitas as categorias polares em
ruptura: a viagem é extenuante e passa-se Quando, por fim, o conde chega à cidade,
numa paisagem fria e aterradora. Uma a confusão se estabelece na sua
soturna carruagem preta vem apanhar totalidade. A morte invade completamente
nosso branco Hutter para levâ-lo até o a cidade, e o que se tem é a desordem
castelo completamente isolado (situa-se no estabelecida: casas são fechadas, uma fila
alto de uma escarpa rochosa). Af é que o infindâvel de féretros é a realidade que
gênio de Murnau simboliza a enorme perturba e amedronta. Agora que o
distância, jâ expressa em termos do Sagrado Impuro lança-se ao contato com o
Sagrado/Profano, entre o Puro e o Impuro: Profano, estabelecendo o completo caos,
quando se abre a porta do castelo e emerge só um sentimento pode advir: o horror. O
a imagem aterrorizante de Nosferatu, a ambfguo agride a ordem, e o poder imenso
oposição mesma dos sfmbolos de pureza, é da morte manipulada pelo mal parece ser
que temos certeza de uma coisa: a calva, indestrutrvel pelos homens. Mas o é, de
as enormes unhas e o olhar penetrante e fato?
mesmo morto simbolizam o que de impuro A resposta estâ no próprio Livro dos
existe no Sagrado, e o nosso sentimento é vampiros, que Ellen encontra entre as
de horror. roupas do seu marido: só uma mulher de
coração puro poderâ fazer com que o
O jogo simbólico expresso quando da monstro esqueça-se de sua hora de se
estada de Hutter no castelo de Nosferatu recolher (ele não pode, como se sabe,
é genial: opõem-se a cada instante os entrar em contato com o claro; seu reino é
sfmbolos do puro e do impuro, do Sagrado a escuridão; a noite, o seu dia), e ela se
e do Profano. Hutter come, Nosferatu suga lança neste sacritrcio oferecendo-se para o
o seu sangue; Hutter é belo, Nosferatu é vampiro que, esquecendo-se da hora d!il "o
horrfvel. E quando o jovem corre real galo cantar", tão entretido que estâ em
perigo de vida, o sfmbolo oposto ao mal sugar todo o sangue puro desse protótipo
aterrorizante, numa comunicação mesmo de Nossa Senhora, desaparece em
transcendente, o salva: sua esposa bela, cinzas. O sol, com sua luminosidade
branca, sensfvel e de "coração puro" atrai redentora; transforma o monstro em pó. Ao
a atenção, como que numa atração de mesmo tempo, numa ligação sobrenatural,
pólos opostos, do negro e maléfico seu comparsa Knock morre num
vampiro, e Hutter estâ salvo. manicómio.

31
O final do filme é melancólico e no entanto Sagrado/Profano, Puro/Impuro,
aliviador: depois do sacriffcio do Profano Ordem/Desordem, Morte/Vida num caos
Puro que se diviniza, a sociedade está realmente completo. Dirfamos que o filme
livre do caos; o Sagrado é remetido ao seu de horror provoca o comportamento de
lugar e circunscrito definitivamente. A poluição no mais alto grau porque lida com
morte não mais polui, ela volta a seu a ruptura completa dos sistemas
devido lugar, remetida que foi pela força referenciais de classificação e ordenação.
maior do divino, do puro, da potência
cristã. A cidade de Bremen está limpa, até O evento da ambigüidade extrema não é
do germe profano da impureza, e a gratuito. O caos também construido
reordenação ideal, sem ambigüidades, é simbolicamente por essas imagens
uma realidade. impressionantes, provocando em quem vê
o filme o sentimento psicológico
aterrorizante, não é nada mais nada .
Conclusões menos que uma afirmação da ordem ideal.
É a aceitação mesma da dicotomia, da
Para pensarmos um pouco mais circunscrição do Sagrado e da
profundamente Nosferatu, tomaremos necessidade de pureza (a poluição é
como base a afirmação de Mary Douglas ambigüidade e, como tal, desordem). E
supracitada (1976:50) que diz que o nosso menos não poderia ser: numa Alemanha
comportamento de poluição é uma reação derrotada pelo caos, que é uma guerra, a
ao caos. O filme tem uma estrutura básica ordem precisava ser cada vez mais
que pode ser resumida no seguinte afirmada. Mas a esperança de ordenação
esquema: ordenação da sociedade ideal não é fácil: como numa guerra, é
(Bremen burguesa) I germe da desordem função de um sacriffcio.
presente (Knock) I viagem do herói em
busca do desconhecido (Hutter) I o Mas como esta ordem é reatingida?
Sobrenatural circunscrito mas ambfguo Através da emergência da religião. Tudo o
(Nosferatu) I viagem "pestilenta" do que Ellen representa é do instrumental
vampiro para Bremen I caos completo (o simbólico do Cristianismo: o coração puro,
Sagrado Impuro em contato com o a virgindade de espfrito, as premonições, o
Profano) I sacriffcio do Profano Puro contato transcendennte com o Sagrado
(EIIen, que simboliza a religião cristã) I Puro. Enfim, ela é a representação mesma
reordenação ideal. Ou seja: o caos é da Virgem Maria - representação esta
provocado pelo contato das duas esferas concretizada quando ela se diviniza,
dicotômicas. O que há é a falta de santificando-se pelo sacriffcio. Este
referencial classificatório; a reação é de sacriffcio altrufsta, o agente próprio da
horror pela confusão e tentativa de reordenação, então, é aquilo que de basilar
"limpeza" da poluição que é somente tem o Cristianismo: o amor ao próximo.
ambigüidade. Além do mais, não é Então o caos é rompido pelo sacriffcio
somente uma oposição que entra em cristão, poderoso ordenador: a religião
contato: a relação é de infinitesimal seria portanto a classificadora por
ambigüidade, é o perpassar de excelência.
dicotomias, a superposição de

32
Formalmente poderfamos pensar essas primeiro é de âmbito concreto
elaborações em termos de um sistema (representado no diagrama pelo quadrado
cartesiano, onde os eixos são as duas pontilhado interno); é o modelo consciente
dicotomias primordiais, tão privilegiadas (Lévi-Strauss, 1975:318), manipulado pelo
por Mary Douglas e mesmo Durkheim: diretor do filme: Nosferatu (Sagrado
Sagrado/Profano e Pureza/Impureza. Impuro) e Knock (Profano Impuro), numa

Deus SAGRADO Demónio


ro (X> ro
r- I
! I
I Slmbolos cristãos Nosferatu I
i --1
PURO I I IMP URO
oo I ro
--------------~--------~--------~------------
o
I
I
L _ _ _ _ _ _I

Ellen Knock
I
L_ J
(X> ro (X>

a mulher de coração puro PROFANO a maldade humana


(Virgem Maria) (o louco, o bandido}

O ponto zero (O) é o indefinido; é o caos e ligação transcendente, que atesta o


o sacriffcio ao mesmo tempo. É a definição caráter de circunscrição do Sagrado
mesma de zero: o tudo e o nada juntos versus Sfmbolos Cristãos (representando
como possibilidade de infinita o Sagrado Puro, que por não poder ser
ambivalência. Lá se encontra a própria materializado, é simbolizado) e Ellen
dinâmica do filme, é o Jocus de sua (Profano Puro). O que se sente por cada
problemática e de sua solução, ou seja: um também é diverso e dentro de
onde se encontram o Sagrado e o Profano, gradações: Nosferatu (horror), Knock
o Puro e o Impuro, é que se gera o caos; é (estigma: ele é internado num manicómio),
no mesmo ponto, entretanto, que este é Sfmbolos Cristãos (respeito), Ellen
rompido, com uma nova ordenação, (veneração).
através do sacriffcio.
O segundo nfvel é parte do modelo
Além disso, o filme é a relação de inconsciente (Lévi-Strauss, 1975:318); é o
oposições polares em dois nrveis: o que é emergente do inconsciente colativo.

33
Não está explícito, mas latente. Em derrota inevitável. (... ) Aceitar a vida e, ao
linguagem matemática, é a junção dos mesmo tempo, aceitá-la como uma ·-
eixos no infinito, são as polaridades no derrota, só é pos sível sob a condição de
infinito. Enfim, são as representações admitir um sentido que não seja totalmente
como categorias de pensamento, os imanente à história humana, isto é, sob a
conceitos: o Sagrado Puro (Deus) e o condição de admitir a ordem do Sagrado"
Profano Puro ("a mulher de coraç ão puro" (1977). Neste sentido, Nosferatu, como
- Virgem Maria) versus o Sagrado Impuro todos os filmes de horror, se constitui num
(o Demõnio) e o Profano Impuro (a rito de afirmação da Igreja, só que
maldade humana estereotipada: o "louco" operando inversamente seus
e o "bandido"). (Representado no componentes.
diagrama pelo quadrado pontilhado
externo.)
Bibliografia

A conexão entre o Sagrado e Profano é AGEL, Henri. El Cine y lo Sagrado. Madrid,


garantida com a morte: nas religiões Editorial Rialp, 1960.
cristãs, após a morte, o que era Profano DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo,
Puro se diviniza, e o que era Profano Perspectiva, 1976.
Impuro en<:!emoninha-se. Isso atesta o _ DURKHEIM, ~mi/e. Formas elementares da vida
caráter determinante da dicotomia religiosa. São Paulo, Abril Cultural, 1973.
Puro/Impuro como verdadeiramente (Coleção Os Pensadores, v. XXXIII.)
estanque nas representações. Já a EISNER, Lotte. O "Écran" demonfaco. Lisboa,
dicotomia Sagrado/Profano tem um sentido Editorial Aster, s/d.
diverso: o Profano transforma-se em EVANS-PR/TCHARD, E. E. Antropologia social
Sagrado com o advento da morte. O da religião. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1978.
caráter de circunscrição do Sagrado vem, GEBAUER, Dorothea. Murnau- Mayer- Veidt:
então, neste sentido: ele é esperado por três destaques do cinema expressionista
ter-se desmaterializado. alemão. Institutos Goethe do Brasil, s/d.
GREVE, Ludwig et ai. Hãtte lch Das Kino: die
Concluindo, diríamos que o filme de horror Schriftsteller und der Stummfilm. München,
Kommission Kõsel Verlag, 1976.
é a afirmação mesma da religião: mostra
um caos, horrorizando-nos, para rompê-lo HERZOG, Werner. Stroszek/Nosferatu: Zwei
Filmerzãlungen. München, Hanser Verlag, 1979.
"via sacralização", tranqüilizando-nos.
KOLAKOWSKI, Leszek. "A Revanche do Sagrado
Afirma a ordem advinda das dicotomias e,
na Cultura Profana" . Religião e Sociedade, 1,
num resgate moral, privilegia a Pureza maio de 1977.
Onipotente.
LEPROHON, Pierre. História dei cine. Madrid,
Ediciones Rialp, 1968.
O filme realiza mesmo a dialética da
L~VI-STRAUSS, Claude. Antropologia
existência das religiões: o Profano oposto estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
ao Sagrado, mas em relação constante, 1975.
eventualizada pelos· ritos. O filme MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica.
materializa, enfim, o que Kolakowski Lisboa, Prelo, 1971 .
propõe: "A religião é a maneira pela qual o RODRIGUES, Jos~ Carlos. Tabu do corpo. Rio
homem aceita sua própria vida como de Janeiro, Achiamé, 1983.

34
A penetração do ''protestantismo
evangelizador " na América Latina
MARION AUBREE
Pesquisadora

Numerosos estudos de sociedade Brasil e na Colômbia). Neste caso, a


realizados atualmente têm como tema a religião objetivava a sustentação de uma
importância do fato religioso na -América identidade cultural que possibilitasse aos
Latina. Dão, também, grande destaque ao recém-chegados uma adaptação gradual
papel político particularmente importante (sem o estremecimento total de seu
desempenhado pela Igreja Católica em universo simbólico) à nova forma de vida.
regimes autoritários . Enfatizam, Conseqüentemente, os membros das
igualmente, o poder que ela assumiu, denominações que compunham esta
como última instituição de resistência a categoria assumiam uma atitude que,
governos que se apoderaram do aparelho praticamente, não se revestia de
do Estado, revestindo-se de poder proselitismo. É nisso que eles se
absoluto e arbitrário em seus respectivos distanciam totalmente das novas seitas e
países . Hoje, neste estudo, pretendo grupos- objeto deste estudo-, que têm o
destacar outro fenômeno religioso que objetivo explícito de espalhar as "Boas
ocorre em todo o subcontinente; embora Novas" bíblicas, a fim de que a Verdade
muito menos evidente, nem por isso deixa (universal e atemporal) seja conhecida e
de ser um movimento de grande que seja adotada uma ética particular e
profundidade . Refiro-me à difusão modo de vida específico decorrentes
extremamente rápida, especialmente em dessa revelação.
populações de baixa renda, daquilo que se
convencionou chamar de "protestantismo Esses grupos se apresentam sob formas
evangelizador", cuja característica, diversas, que podem classificar-se em três
segundo Costas 1 , é "uma ação evangélica categorias essenciais :
dinâmica e agressiva".
1) As seitas de revelação;
A corrente protestante reformada cresceu 2) As seitas pentecostais;
gradativamente na América Latina a partir 3) As "missões para a fé" e outros grupos,
do início do século XIX, quer através da cujos membros estão diretamente ligados
implantação de "missões", quer devido ao ao5 E.U .A., especialmente no que diz
estabelecimento de grupos de imigrantes respeito a salário .
de países de religião protestante
(especialmente os alemães, no sul do

35
1) As Seitasde Revelação "Réveillez-vous" etc.).

São constiturdas, essencialmente, pelas O crescimento dessas seitas é contínuo,


Testemunhas de Jeová, pelos Adventistas embora não tenha nada de espetacular
do Sétimo Dia e pelos Mórmons. proporcionalmente à população (que
Originaram-se de "revelações" (ocorridas, também aumenta), e a proporção
em geral, no século XIX e nos E.U.A.) mantenha-se estável. Tais grupos estão
feitas por seu deus a uma determinada distribuídos de forma desigual, por quase
pessoa, a respeito de particularidades todos os parses da América Central e
quanto à interpretação da Brblia ou à América do Sul, com exceção das
vontade suprema de Deus. Essa pessoa, Testemunhas de Jeová, que foram, em
fundadora da seita, podia fazer parte da diversas ocasiões, expulsas por alguns
hierarquia religiosa ou podia ser apenas governos (como a Argentina e a
um crente humilde mas fervoroso, e Nicarágua) .
sempre provinha de um grupo evangélico
(de qualquer das várias denominações A preferência das populações da América
existentes) do qual em seguida se Latina por essa categoria religiosa vai, em
afastaria, a fim de "renovar" a doutrina: ela primeiro lugar, para os Adventistas, depois
deveria ser fiel à revelação, o que para as Testemunhas de Jeová e por
implicaria a fundação de uma seita último para os Mórmons. No entanto,
espedfica. deve-se assinalar que certas
caracterrsticas doutrinárias desses grupos
Graças à organização que têm e a uma podem favorecer sua aceitação ou sua
doutrina unificada, esses grupos são, em rejeição a nrvel da cultura na qual eles se
geral, muito bem estruturados e, inserem. Assim, no nordeste do Brasil, as
atualmente, estão pouco sujeitos a Testemunhas de Jeová não têm boa
"desvios" ou "criações" religiosas de aceitação, devido a duas particularidades:
caráter individual (especialmente entre as 1!!) O pacifismo, que leva à recusa da
Testemunhas de Jeová e os Mórmons) . A prestação de serviço militar por parte dos
doutrina e ética de vida que preconizam adeptos da seita; estes recebem, então, o
revestem-se das mesmas características rótulo de "traidores da pátria", aplicado por
em todos os países em que se implantam. uma sociedade que está buscando
Por outro lado, é muito forte e totalmente consolidar sua "identidade nacional". 2ª) A
expl[cita e aberta a dependência em recusa de transfusão de sangue, que já
relação às sedes sociais e matrizes levou à morte de duas ou três crianças,
instaladas nos E.U.A. sob responsabilidade de seus pais - fato
inteiramente inadmissível aos olhos do
São as Testemunhas de Jeová que estão "brasileiro médio". Na mesma região os
mais ligadas à matriz norte-americana e a Mórmons, adeptos da poligamia Oá
seus correligionários em todo o mundo, proibida para eles nos E.U.A.), são bem .
através de uma série de casas vistos pelos homens porque vêm legitimar,
publicadoras e livros, publicados de forma religiosa, aquilo que
regularmente em 26 l[nguas (na França, freqüentemente já é uma situação de fato.
chamam-se "La Tour de garde", Note-se·também, em relação a esta seita,

36
que é claramente visível a discriminação manifestações emocionais bastante
em relação aos negros 2 . Não esqueçamos intensas, cujas principais formas de
ainda que as três seitas visam mais a expressão se desenvolvem no próprio seio
classe média e demonstram certo elitismo da comunidade. Essa dimensão
social. comunitária se reveste de grande
importância: 1) De um lado, no meio rural,
em regiões em que as estruturas sociais
2) As Seitas Pentecostais preexistentes (comunidades indfgenas, '
especialmente no México, na Guatemala e
Essas seitas deram origem a uma espécie nos países andinos) enfrentam
de "enchente" evangélica, estudada por dificuldades frente à invasão de seu
diversos autores, particularmente nas universo simbólico por parte de uma
duas últimas décadas; no Brasil de 1970 a quantidade excessiva de elementos
1980 seu crescimento global foi de heterogêneos, que chegam continuamente
209,33%, isto é, uma média anual de mais em ritmo demasiado r(lpido - o que impede
de 20% em relação à população total do sua rearticulação com o substrato cultural
pafs 3 • Caracterizam-se por aspectos autóctone. 2) Por outro lado, no meio
espedficos de doutrina, que as distinguem urbano, onde as migrações, JUntamente
dos grupos protestantes tradicionais - com a especulação imobiliária, contribuem
chamados denominações históricas, como para o desmantelamento das tentativas de
os batistas, presbiterianos, luteranos, reconstrução de identidades coletivas em
metodistas etc . Costumam ter boa novos ambientes (bairros, por exemplo).
aceitação nos locais em que os grupos Devido à sua doutrina reavivalista e a uma
tradicionais estão estagnados ou, às ética bastante exigente imposta aos
vezes, até em regressão. adeptos, o pentecostalismo apresenta um
quadro de referências rfgidas no que diz
Essas especificidades doutrinais são: a respeito aos diversos tipos de
doutrina da predestinação, que transforma comportamento "no mundo". Sob esse
todo pentecostal num "eleito de Deus", e o enfoque, ele transmite segurança a seus
papel ativo atribuído ao Espírito Santo - adeptos, que- além do mais- recebem
conside rado o mensageiro entre Deus e os compensações mfsticas através da
homens - especialmente através da manifestação dos "dons do Espírito
atribuição dos "dons do Espírito Santo". Santo".
São estes dons que permitem: falar línguas
estranhas (ou estrangeiras), interpretá-las, Sua ética se baseia em três eixos
anunciar o Evangelho (o que significa a importantes:
conversão de muitas pessoas), efetuar
curas através da oração, profetizar, 1) Louvar a Deus, apesar de todos os
possuir conhecimento intuitivo dos fatos, obstáculos, e louvá-lo em qualquer
discernir os espíritos (isto é, conhecer o circunstância (feliz ou infeliz), visto que só
pensamento de outras pessoas) e efetuar a ele pertence o conhecimento do que é
milagres. bom ou mau para a salvação da álma e
para a vida eterna -o que, em prindpio, é
A efetivação desses dons dá margem a a única coisa à qual os pentecostais dão

37
importância. comunidade (onde entra em jogo o dom
terrível do "discernimento dos espíritos").
2) Submeter-se à autoridade, pois, Nos casos graves, como adultério,
segundo sua doutrina, "toda autoridade libertinagem sexual ou participação em
provém de Deus". Pelo menos no nordeste outros cultos, há o risco de expulsão
do Brasil, onde trabalhei mais, esse sumária do convívio com a comunidade.
princípio implica a submissão: ao pastor ·
(na comunidade), ao patrão (no trabalho), Através desses três elementos pode-se
ao governo (na sociedade), e, por parte da notar o seguinte: o pentecostalismo, que
mulher, ao marido (na famnia) -o que se se define como "uma doutrina moderna
baseia explicitamente no conteúdo de com o fito de acabar com as superstições
certas epístolas de Paulo. do povo" 6 , recorre, para essa
"modernização'; a certos valores que se
3) Respeitar as proibições - Neste ponto, contam entre os mais reacionários da·
gostaria de destacar particularmente que sociedade ocidental (apologia da
essas proibições se aplicam a numerosos autoridade, sujeição do corpo ao espírito,
detalhes da vida quotidiana (social ou rejeição do que é diferente).
pessoal), tendendo para uma ruptura total
com o substrato cultural nativo e com os Além disso, o evangelismo pentecostal
costumes daí decorrentes. Esse fato foi tem como característica uma
confirmado não somente pelos estudos hiperatividade proselitista, que através de
que realizei na região nordestina, 4 como "cruzadas de evangelização" se organiza
também pelos de outros pesquisadores - para atingir pessoas que não conhecem
especialmente na América Central, 5 onde ainda as "Boas Novas" (nas zonas rurais,
as seitas não se cansam de estigmatizar a bairros urbanos recentes, hospitais e
Tradição, isto é, o conjunto de crenças e prisões) . Essas cruzadas assumem duas
atos sociais fundados na tradição indígena. formas: as visitas porta-a-porta, praticadas
por grupos de dois ou três fiéis que tentam
O sistema de proibições coloca ênfase converter seus concidadãos através da
especial na disciplina do corpo, palavra evangélica e da oração; ou então a
considerado obstáculo .à elevação tribuna evangélica das praças públicas,
espiritual - fato que ocorre mais que possibilita a evangelizadores
intensamente nessas seitas do que no experimentados (muitas vezes
resto da cristandade. Conseqüentemente, remunerados pela seita para essa tarefa
o estandarte desses grupos é a específica) discorrerem em tom
austeridade, o que resulta inevitavelmente freqüentemente apocalíptico sobre temas
nesta atitude: eliminar, de forma tais como: a corrupção dos costumes, as
draconiana, qualquer idéia de prazer, do desgraças que caem sobre aqueles que
qual o corpo é a fonte, direta ou não conhecem a Verdade, e a alegria dos
indiretamente. Para tal, é estabelecido um que, por fim, a descobrem - tudo com
código de bons costumes, ao qual devem apoio de numerosas citações bíblicas.
submeter-se os fiéis, sob pena de
incorrerem na ira da hierarquia ou de É nesta segunda forma de atuação - as
serem objeto de uma denúncia no seio da cruzadas - que aparece a agressividade

38
mencionada por Costas, manifesta, vieram do exterior e todas as demais
sobretudo, nos ataques ao inimigo contra o foram fundadas por brasileiros. Quanto à
qual é necessário lutar a fim de derrotá-lo. Argentina e ao Chile, 19 seitas (do total de
O inimigo é Satã, e todos devem 25) originaram-se lá mesmo. Atualmente,
reconhecer de antemão as artes de que no Brasil, todas ostentam característica
ele dispõe para enganar os pobres seres nacional.
humanos, utilizando-se de recursos e
formas de expressão variadíssimas. De Essa tendência à cisão é engendrada pelo
acordo com o discurso pentecostal, é desenvolvimento simultâneo (embora
assim que ele atua na América Latina, paradoxal) de tendências à padronização
assumindo, dependendo das regiões, a dos indivíduos, tendo como referência
forma de guerrilheiros marxistas (cf. os idênticos modelos éticos, e pelo
discursos dominicais do incitamento ao desenvolvimento das
presidente-general Rios Montt, na potencialidades individuais no seguinte
Guatemala), de comunistas ou de sentido: a busca/atribuição dos dons do
extremistas políticos. Esse inimigo também Espírito Santo e a subseqüente
varia de acordo com a época: no Brasil, há valorização aos olhos dos correligionários.
1Oou 15 anos, eram os comunistas, e
agora são, sobretudo, os chefes de cultos Para termos uma idéia mais precisa sobre
afro-brasileiros (tradição esta a dinâmica desses grupos vejamos alguns
profundamente enraizada em meios dados relativos ao Brasil. Em 1980, a Igreja
desfavorecidos) que são alvo de ataques Católica tinha 42.660 igrejas e dispunha de
verbais dos pastores e também, 8.631 padres para atuação nessas igrejas.
ocasionalmente, dos fiéis. No mesmo ano, os cultos evangélicos 8
abrangiam 20.338 igrejas, com 18.654
As seitas pentecostais latino-americanas pastores, fora a grande quantidade de
se baseiam no princípio da congregação: diáconos, presbíteros e auxiliares -todos
com raras exceções e ao contrário das brasileiros. É, pois, claramente, um
seitas de revelação, elas são, por isso, movimento popular e, nesse sentido, pode
independentes e dirigidas por uma ser comparado às Comunidades Eclesiais
hierarquia autóctone. Pode-se dizer que de Base (CEBs) provindas da teologia da .
essa independência é proporcional ao libertação, elaborada pela Igreja Católica.
espaço de tempo decorrido desde sua Estes grupos estão florescentes na
fundação. Em geral, as seitas-mãe se América Latina e, em 1980, somente no
instalaram no subcontinente, na metade Brasil, chegavam a mais de 60.000. 9
deste século, porém devido a cisões
cismáticas deram origem a numerosas
ramificações, que atualmente chegam a 3) As Missões para a Fé
constituir 37 grupos, somente no Brasil
(onde estão, aproximadamente, 65% dos Como o nome indica, o objetivo primordial
protestantes latino-americanos). Segundo desse grupo é levar os latino-americanos a
Ch. LaLLive d'Epinay7 , no Chile conhecerem a Bíblia e o Evangelho- isto
contam-se 17 cisões, e na Argentina, 8 é, a conhecerem a exegese feita por eles
(em 1975). No caso do Brasil, apenas seis sobre o Evangelho e a Bíblia em geral. Não

39
nos esqueçamos de que a América Latina dos países nos quais se instalam. O
foi colonizada, há quase cinco séculos, por objetivo visado não é prioritariamente-a
reis muito católicos, para os quais a implantação de igrejas, mas a conversão e
catequese dos índios era a desculpa moral união dos grupos atingidos por essa
para a conquista; por isso, o conhecimento pregação a seitas Já existentes
das Escrituras bfblicas constitui hábito ' (freqüentemente, denominações
familiar para a maioria da população - ou tradicionais ou seitas fundamentalistas já
pelo menos não é coisa desconhecida. enraizadas).
Trata-se, pois, sem dúvida alguma, de
difundir uma interpretação específica, que Os missionários dessas organizações
representa, de certa maneira, a "reforma trabalham em grupos de duas a cinco
da Reforma". É que a maioria desses pessoas, cujo sustento é garantido por
grupos originaram-se do movimento de salários remetidos diretamente das sedes
renovação que sacudiu - às vezes nacionais (em geral, nos E.U.A.), o que dá
brutalmente - a poeira do protestantismo aos missionários grande capacidade de
clássico nos E.U.A., na primeira metade ação e independência financeira, em
do século XIX, e cujo objetivo era a relação à conjuntura do país no qual
"cristianização do mundo"10 . E é essa operam .
tarefa -colossal que eles estão agora
tentando levar a bom termo, ao Algumas dessas missões evangelizadoras
percorrerem as regiões mais distantes do não se apresentam como entidade de
continente em busca de grupos humanos caráter religioso e conseguem disfarçar
extremamente isolados - inclusive aqueles sob forma pseudocientífica sua atuação
que até um passado recente estavam religiosa, a fim de serem mais bem aceitas
protegidos dessas invasões alógenas pela população autóctone (governantes e
devido às condições de seu meio governados). É o caso da Wycliffe Bible
ambiente . Com efeito, as "missões para a Translators, cujo alvo há cerca de 50 anos
fé" percorrem a Amazônia em todos os é traduzir a Bfblia em todos os idiomas
sentidos, desde o fim da década de 60. vernáculos do continente americano. Os
Além disso, já se instalaram no Chiapas métodos específicos de expansão dessa
mexicano há várias décadas. No Brasil, organização foram analisados por David
em 1976, havia 167 missões desse tipo. Stoll, 1 2 que mostra o seguinte: sob a
cobertura de auas siglas (WBT/SIL-
Essa espécie de apostolado exige Summer lnstitute of Linguistics), aquele
recursos vultosos, fornecidos por organismo, desde a década de 40,
simpatizantes e por organizações conseguiu ser reconhecido como
norte-americanas - religiosas ou não - às instrumento de pesquisa da Universidade
quais se faz um apelo: o de "plantar o de Oklahoma, por parte de diversos
estandarte do Reino de Deus" 11 onde quer governos da América Latina (Peru,
que dele haja necessidade imediata. Colômbia, México, Brasil, entre outros),
Conclui-se dai que, ao contrário das duas tendo assinado com os ministros da
outras categorias, essas organizações Educação desses pafses acordos em que
colocam em segundo plano a entrega de lhe eram concedidas todo tipo de
responsabilidades importantes a pessoas facilidades, a fim de se instalar entre as

40
populações indígenas. No entanto, entre Conclusão
1975 e 1980 a maioria daqueles países
reagiram e deixaram de renovar tais As três categorias evangélicas em
acordos, ao expirar a data de sua vigência. questão neste estudo dão prioridade a
Há, para tal, uma razão precisa, que foi suas especificidades e, por isso, podem
destacada por Bernard Arcan: " ... pode-se entrar em concorrência, uma vez que
dizer que o trabalho do SIL tem pouco a estejam atuando num mesmo local. Apesar
ver com crenças religiosas e mitologia e, disso, é idêntica a visão que têm sobre a
na realidade, muito a ver com economia e construção do "Reino de Deus" e sobre o
política" .13 Acontece que muitas tribos processo e a ordem social que devem
indígenas vivem em regiões consideradas conduzir à sua efetivação. É uma visão
ricas em produtos minerais ainda que participa diretamente do sistema do
inexplorados; assim, os membros do qual elas se originam: capitalismo liberal,
WBT /SI L parecem ter função dupla: além baseado na competição entre os
de pioneiros do evangelismo militante, uma indivíduos (ao qual, aliás, o protestantismo
vanguarda eficaz de um tipo de penetração está intrinsecamente ligado, conforme bem
muito menos espiritual. demonstrou Max Weber).

Resumindo, pode-se dizer que as Ao fazermos uma análise macroscópica


"missões para a fé" são pequenos grupos do fenômeno "protestantismo
de penetração móveis e eficazes, que se evangelizador" na América Latina, ,
localizam em regiões (frentes agrárias e deparamos com uma divisão implfcjta da
zonas subpopuladas) onde as Igrejas mais Tarefa, abrangendo a maior extensão
importantes àinda não tiveram tempo ou possfvel de espaço geográfico e social. Às
recursos para se implantarem. Entretanto, seitas de revelação e aos pentecostais
em regiões de maior densidade cabem as cidades, os povoados fundados
demográfica, ou historicamente mais há mais tempo e zona rural adjacente; às
antigas, algumas denominações missões, cabem as novas zonas de
evangélicas tradicionais podem solicitar a desenvolvimento agrário e as regiões
colaboração das "missões" para distantes, que exigem instrumentos de
campanhas de reavivamento e cruzadas mobilidade e certa denúncia ao conforto da
de envergadura mais ampla. Neste último vida quotidiana. No plano social, as seitas
caso, os membros das "missões" prestam de revelação, como já sabemos, se
contribuição suplementar, pois têm dedicam deliberadamente à classe média;
especialização na condução de reuniões os pentecostais atuam de preferência nas
envolvendo grande número de pessoas e, camadas desfavorecidas da sociedade, e
às vezes, na manipulação e as missões abrangem todos os grupos
condicionamento psicológico de grupos sociais, para, em seguida, orientar os
numerosos (como pude observar convertidos para diversos grupos
pessoalmente em 1981, em Belém do religiosos.
Pará).
Falta, agora, vermos em que consiste a
Tarefa e quais são suas implicações, uma
vez que, segundo os princfpios desses

41
grupos, na esfera religiosa busca-se de suas respectivas polrticas econômicas
explicitamente (especialmente através do ultraliberais na eliminação de qualquer
discurso sobre a modernidade) contestação de carãter social no seio das
desvalorizar a esfera social e cultural e, classes produtoras. Assim, elas perderam
implicitamente, a esfera pol(tica. toda e qualquer forma de expressão
polftica frente a situações que se
Já destaquei, no inicio deste estudo, que o degradaram rapidamente até atingir limites
protestantismo não constitui novidade na intolerãvels - não somente devido a
América Latina. O que Impressiona é desigualdades Internas, mas também pela
constatar a amplitude que esse movimento dependência que esses parses tinham do
tomov, nas duas últim~s décadas, assim capitalismo Internacional. Por outro lado,
como a multiplicação de agentes externos durante o mesmo perlodo, a maior parte
nele envolvidos. Segundo o Misslon dos movimentos de resistência armada, de
HandboOk (1980), os anos 60 e 70 batem natureza marxista, foram combatidos e
um recorde no envio de missionários para derrotados, se não aniquilados pela prática
a América Latina. Para Isso, há duas da tortura ou pelo exmo.
séries de razOes, estreitamente
imbricadas: endógenas e exógenas. Dentro desse quadro, numeroslsslmas
pessoas foram levadas a se juntar a
Por um lado, desde os anos 50, a organizações religiosas que lhes
crescente difusão da Ideologia marxista proporcionaram, às vezes, ajuda para a
entre a inte/ligentsia latino-americana fez sobrevivência imediata - além do conforto
com que os populismos antigos moral baseado na fé no advento de um
derivassem para opções de governo mais mundo melhor (num futuro indeterminado)
claramente socializantes. Com isso, do que esse no qual as pessoas
chegaram ao poder homens capazes de vegetavam 14 . Essa busca abriu, portanto,
abalar a velha ordem pós-colonial através campo novo e promissor para a atividade
de reformas de base, que representavam dos apóstolos daquilo que se poderia
uma tentativa de redistribuição de chamar de "cristianismo bem
riquezas. Entre outros, foi o caso do temperado" .15
presidente João Goulart, no Brasil, e de
Salvador Allende, no Chile. Ambos foram O movimento que se originou no exterior
derrubados por violentos golpes de está, pois, igualmente ligado a essa série
Estado, fomentados por militares de transformações politicas no seguinte
respectivamente brasileiros e chilenos, sentido: os governos populistas não
aos quais o Pentágono emprestou sua contestavam de forma alguma a
mais vasta colaboração (o que está hegemonia pol(tica do grande vizinho, nem
amplamente comprovado em ambos os o modelo de desenvolvimento que ele
casos). ostentava e, de certo modo, favorecia. O
advento de governos decididos a mudar
Portanto, nesses e em out-<))s palses, os um pouco esse estado de coisas, entre os
numerosos regimes autoritár~s que se quais alguns provindos do próprio cerne da
apossaram do poder, especl~lmente entre instituição militar (por exemplo, Velasco
1964 e 1976, buscaram o desenvolvimento Alvarado no Peru ou Torres, na Bolfvia),

42
parece ter produzido nos E.U.A. esta Vemos, pois, que existe determinado tipo
reação: a necessidade de ampliar a base de protestantismo - ao qual me referi de
de sustentação ideológica do sistema que forma bem precisa neste trabalho - cujo
casava com seus interesses, para atingir avanço em toda a América Latina é
camadas mais amplas da população, já inegável. Esse protestantismo está
que certas elites não eram mais confiáveis implicado, de forma particularmente ativa,
nesse sentido. Nos parses em que a no processo dialético entre "crer" e
religiosidade constitui um sentimento "fazer-crer" (temas estudados pelo
difuso mas onipresente, a dimen§ão . saudoso Michel de Certeau) e nos riscos
religiosa não seria a melhor forma de de todo tipo que o sustentam.
penetração entre as massas? E a ética
puritana dos grupos aqui estudados nâo
seria Igualmente o melhor fator de
reordenação da sociedade? Foi essa ética Notaa
que valeu aos E.U.A, uma parcela das 1Ct. "Traditlon and Reconstructlon ln Mlsslon",
riquezas que eles exibem às vistas dos Occaalonal Bulletln, vol. I, n91, janeiro 1977,
"danados da terra". Desse tipo de p. 5.
pensamento proveio o Imponente 2 Ver M.F.cte ANDRADE QUINTAS: "Os mónnons
contingente de "soldados de Deus" em Pernambuco: uma sociedade fechada",
enviados ern missão ao continente Clênc!a e Trópico, vQI. 4, n9 1, 1976, p. 37-71.
latino-americano nos últimos 20 anos, com
3FERNANDES, R.C. : "As missões protestantes em
a conseqüente colheita de almas obtida.
números", Caderno11 do ISER, n9 10, 1981 .
A imbricação atual do fato polftico, religioso
e, acessoriamente, económico não 4Cf. AUBREE, Marion: "Les nouvelles trlbus de la
constitui apenas um enfoque de chrétienté", Ralson Présente, n2 72, 1984, p. 74
antropólogos com interesse por esse e75.
problema. Para demonstrar esse ponto, 5 Ver, entre outros, LE BOT, Yvon.
terminarei este estudo com a citação de
um parágrafo da longa carta do 6 Segundo um de meus interlocutores, pastor no
lnternatfonal Love Lift, à qual já havia Recife e oriundo de classe popular. ·
anteriormente feito referência: 7 Rellglon,dynamlque soclale et dépendance,
Paris, 1985,
"Graças a esse esforço maciço,
poderemos, como cristãos, ajudar nossos 8 Estes números compreendem tanto os cultos
irmãos, mas poderemos também nos opor tradicionais como os pentecostais; entretanto, é
à desinformação queêampeia e aumenta, importante assinalar que, atualmente, os
pentecostais constituem 60 a 65% do movimento
poderemos proclamar a verdade dos fatos evangélico.
e dar apoio ao atual governo guatemalteco.
Agindo assim, minaremos a posição dos 9
No entanto, a porcentagem de protestantes na
marxistas e enfraqueceremos a habilidade população global era, então, de 7,5%; a de
católicos atingia a 89%.
com a qual eles buscam se apossar de
ricos campos petrolrferos, de jazidas de 10VerJOHNSON, P.E. A shopkeeper's
titânio e de outros recursos preciosos ... "! Mlllenlum, Nova Iorque, 2~ edição, 1979.

43
11 Era nesses tennos que se expressava em 1982 a das razões da aceleração do desenvolvimento do
organização lnternational Love Lift, numa pentecostalismo no Brasil.
carta/apelo para obtenção de fundos em beneficio
15
da Guatemala do general Rios Montt. Nesse Na obra citada anterionnente, JOHNSON insiste
documento fundem-se estreitamente o discurso em que se dê ênfase à temperança, como virtude
religioso com o discurso politico. principal do "movimento de Rochester" e da
corrente evangélica que dele se originou.
12
"Words can be used in so many ways", in: Is
God an American? S. HUALKOF & P. AABY
(ed.), p. 23-39, 1980. Este trabalho foi apresentado no Colóquio Le
relfgieux et le politique dans le monde
1
3Na mesma publicação:"God is an American", contemporaln, Paris, fevereiro de 1986, e seril
p. 77-89: publicado em livro com o mesmo tflulo.
14 Traduçáo do francfJs: Maria Luiza Cesar
Eiemento este que constitui principalmente uma

44
Procópio Ferreira de Camargo,
uma inteligência aguda e pouco comum
SEVERO GOMES
Senador

Manuel Bandeira, escrevendo a respeito pai pediu que terminasse o curso


de Zeca Patrocfnio, filho de José do universitário. Entendia o coronel Ageo
Patrocfnio, fez uma aguda distinção: as (Guarda Nacional) que ele deveria entrar
pessoas dotadas de inteligência incomum, para a Igreja com cacife, já formado em
mas incapazes para a gerência de tais Direito e Filosofia.
dotes, e, na outra ponta, as inteligências
medfocres, mas associadas à eficácia na Foi assim que se tornou dominicano, com
administração e no marketing do seu o nome de frei Clemente, ao tempo em que
pequeno acervo intelectual. eram o mestre de noviços frei Domingos
Maia Leite e o submestre frei Benevenuto
Zeca Patrocfnio pertencia à primeira de Santa Cruz. Continuo a escrever com o
categoria. Os seus melhores momentos mágico sentimento de quem fala de
ficaram na memória dos contemporâneos, pessoas que estiveram por perto nos
ou se perderam no éter. Na segunda, as melhores e nos piores dias da vida. Eles
inteligências cartoriais que podem queriam santificar o profano. Não durou
responder à repetitiva pergunta: por que é muito, e frei Clemente voltou a ser
que fulano de tal está na Academia Procópio.
Brasileira de Letras?
Convivemos na escola, nas ruas,
Por ar, começo a falar de Cândido andamos em lombo de burro pelos
Procópio Davidoff Ferreira de Camargo. espigões das serras do Mar e da
Conheci-o desde os primeiros dias da Mantiqueira, e fizemos exames de
adolescência. Naquele tempo ele vivia um consciência nos botequins.
movimento pendular - como Santo
Agostinho - entre o misticismo e as aulas Em sua casa, conheci há mais de vinte
de dança de Madame Possas Leitão. anos Octavio lanni, Ruth e Fernando
Aprendeu com mestria o tango, o fox-trot e Henrique Cardoso, Carmen Junqueira,
o lambeth-walk. Melanie e Paul Singer, Abel Barros Lima e
Beatriz Munis e Souza. Brincamos,
Mesmo disfarçando a vida inteira, nunca bebemos e cultivamos a irreverência, com
saiu da mão de Deus. Só não entrou aquele fermento da irresponsabilidade que
precocemente para o convento porque o anuncia as primaveras da alma.

45
No começo do governo Geisel, quando a requintada ironia tornaram diffcil o
extrema direita desafiava o poder, com o marketing da inteligência.
recrudescimento das torturas e os
assassfnios, Procópio se comunicava Teve uma longa vida acadêmica, como
quase diariamente comigo, informando professor na USP, na PUC de Campinas e
sobre as prisões e violências. Foi a sua na antiga Escola Livre de Sociologia e
arriscada missão que me permitiu informar Polftica. Foi pesquisador do Cebrap
e pedir providências ao presidente da (Centro Brasileiro de Análise e
República para os que estavam caindo Planejamento) e deixa uma importante
nas garras do 001-Codi, como Francisco obra publicada. Nada obstante, a sua
de Oliveira, Paul Singer, Frederico criativa vida acadêmica não guarda
Mazzuchelli e tantos outros. relação com a inteligência e o saber do
descuidado administrador de si mesmo.
Mas voltemos para o começo desta
crOnica. Procópio foi dotado de agudfssima O que melhor pensou está na memória dos
inteligência. Torturou-se entre a que com ele conviveram, ou no éter.
Escolástica e o Marxismo, mas os Deixou-nos na noite do dia 23. Como disse
estóicos deitavam e rolavam no seu Eucrito: "Se a sala está esfumaçada,
subconsciente. O seu espfrito crftico e a eu saio".

Transcrito da Folha de S. Paulo, 26101187.

46
VITRAL

O tempo câ.•• é mais teimoso, se o Governo ou os


paraenses, ou se dá empate.
As notas que seguem foram escritas em
janeiro de 86. Naquele verão, que marcou F/avioLenz
a volta da "Hora Brasileira de Verão",
trnhamos acabado de criar o Vitral. No
entanto, como o primeiro número de A zorra do tempo
COMUNICAÇÓES que publicou a nova
seção só veio a lume em maio, simpático e Esta é sobre o tempo. Aqui. em Belém o
ventoso mês de outono, a redação tempo do relógio está uma "zorra", pois
arquivou as notas para os "próximos simplesmente vigoram os dois horários,
números". Agora, debaixo dos simultaneamente! Há rE:)partições e
freqüentes 40 graus cariocas, que se companhias (como os Correios e as de
estendem até mais tarde por causa do transporte aéreo) que só reconhecem e se
horário de verão, lembramo-nos delas e regulam pelo oficial. Mas há outras, como
nos perguntamos: "Como estarão os a Universidade, que usa os dois: nas
paraenses lidando este ano com a HBV?" reuniões com Pró-Reitor, Reitor etc.,
"Continuam atuais as broncas de Anarza segue-se a hora prevista no convite, com
Vergolino e de Dom Alberto Ramos?" o adenda "HBV" (Hora Brasileira de
(Confira abaixo.) Verão); as aulas, porém, ficaram no
horário antigo. Serviços como médicos e
Resolvemos verificar. Sob o pretexto de demais profissões liberais ficaram no velho
que estávamos telefonando para uma horário "apelidando-se" de novo. A Igreja
repartição de Belém, que não respondia, protestou, na coluna de Dom Alberto
perguntamos à telefonista de informações Ramos n'O Liberal de 12/01 /86. Quanto ao
locais que horas eram por lá. Ela povo, propriamente dito, continua naquela
respondeu: "No horário de verão são dez parcimónia nortista e diz que essa hora é
para as três; no horário antigo, dez para as "pra inglês ver" .
duas."
Aqui em casa a "zorra" é maior. Como a
Não foi preciso mais nada. Leia abaixo casa é de altos e baixos, o relógio de cima
para saber por quê. E para descobrir quem é no "novo" e o de baixo (pelo qual se guia

47
a cozinheira) é no velho". Pode?! havia sido encaminhada ao Ministério das
Minas e Energia.
Temos ou não temos razão de estudar o
tempo daqui? Dois meses se passaram, as águas
continuaram a jorrar, e a população urbana
Nas cidades menores do interior nem se acomodou mais ou menos a ter a
tomaram ciência do problema ... preocupação de perguntar se era a hora
de verão ou de inverno todas as vezes
É uma piada, não? que tinha de marcar qualquer
compromisso.
Anafza Vergolino
O comércio, os colégios, as fábricas
adaptaram-se mais ou menos. A aula que
começava às 7 passou a dizer-se que
Ainda a hora de verão começava às 8, a missa que começava às
no inverno chuvoso 6:30 passou para as 7:30 etc.

Quando foi anunciado que o governo Mas os quartéis e as repartições federais


federal mandaria adiantar os relógios uma tiveram que seguir o absurdo "horário de
hora no início de novembro, o ilustre verão". O soldado, o funcionário, o
cronista Ivo Loureiro, por A Província do operário passaram a acordar uma hora
Pará, e este modesto rabiscador, por O mais cedo, com o tempo ainda escuro, e a
LIBERAL e a Voz de Nazaré, ambos a 6 gastar mais uma hora de energia elétrica, e
de outubro, sem nenhum entendimento a sair de casa ainda nas trevas, com o
prévio, manifestamos com argumentos perigo de serem assaltados.
quase semelhantes, os inconvenientes
que essa "Hora de Verão" acarretaria para Dois meses se passaram e finalmente o
a Amazônia, em plena época chuvosa, que Ministério deu o ar de sua graça com o
nós intitulamos de inverno. ofício ONAEE/OG/nº 1746/85, com a data
de 26 nov. 1985, muito embora o carimbo
Nossos parlamentares, fatigados de suas bem legível dos Correios mostre "S.H.S.
viagens a Brasnia, não atinaram para os 27.12.85- Brasnia, BSB", e tenha sido
incômodos que tal medida iria acarretar colocado na caixa postal do Arcebispado
para o nosso pobre povo. no dia 3 deste ano.

Aproveitando o ensejo de encontrar-me Tanto tempo, para esta resposta: "Do


com o Exmo. Sr. Presidente da República, Diretor-Geral do Departamento Nacional
por ocasião da inauguração do porto de de Águas e Energia Elétrica" - DNAEE, ao
Vila do Conde, entreguei-lhe um Arcebispo de Belém".
expediente com o recorte dos dois artigos
sobre a hora do verão. "Acuso o recebimento de correspondência
dirigida originalmente ao Exmo. Sr.
Poucos dias depois, um telegrama do Presidente da República, em que V.Ema.
secretário particular de S. Excia. se reporta ao horário de verão e seus
comunicava-me que a correspondência efeitos na região Norte.

48
"Sobre o assunto apresento os seguintes repartições que geralmente não acendem
comentários: luz no fim da tarde, talvez ainda tenham
que a utilizar, pela manhã, na hora da
- O horário de verão foi implantado em chegada.
todo o território nacional com base nas
informações de que a medida Não duvido que a mudança horária dê
represel')taria ganhos, em maior ou menor resultado noutras regiões do Brasil, mas
grau, para todas as regiões do Pafs; aqui, no Pará, duvido muito ...

- Paralelamente à adoção da medida, foi Dom Alberto Ramos


montado um sistema de acompanhamento Transcrito de O Libera~ 12101186.
e avaliação dos resultados que certamente
servirã de base para a tomada de decisão,
no próximo ano, quanto à uniformização 01,1
diferenciação de critérios para o horário de O tempo lá...
verão nas diversas regiões do Brasil;

- No atual perfodo, qualquer modificação, inglês chama médium


sem uma avaliação precisa de resultados, para mudar tempQ
com certeza traria maiores problemas que
eventuais benetrcios .. F/orianópolis - O súbito e imprevisto
aumento da temperatura na Europa -
"Aproveito a oportunidade para reiterar a principalmente em Londres - fez com que
V.Ema. protestos de estima e desde a semana passada os ingleses
consideração. passassem a observar com mais
interesse o trabalho da Fundação Cacique
(a) Getúlio Martins de Paula Fonseca Cobra Coral, uma instituição espfrita com
- Diretor-Geral". sede em Guarulhos, na Grande São Paulo,
que gratuitamente presta serviços a
Aguardo com muito interesse o resultado governos e empresas e que garante fazer
desse sistema que foi montado. Gostaria alterações de fenômenos meteorológicos.
de saber quais as repartições que, em
nosso Estado, estão fazendo parte desse A pedido do Palácio de Buckingham, feito
esquema. A demonstração deve patentear no dia 14, a médium Adelaide Scritori, que
que hã economia tanto para o governo incorpora o cacique, iniciou a operação
como para o povo. Europa, com a missão de elevar a
temperatura no continente. Na sexta-feira
Enquanto não chega o fim de fevereiro, as o jornal londrino The Guardian registrava,
pessoas que estão sujeitas ao famigerado surpreso, em sua primeira página, a
horãrio continuam a chegar em casa uma temperatura de um grau positivo, o que
hora mais cedo, quando ainda está claro, contrariava todas as previsões da
ªpesar de o rádio estar dizendo que já é meteorologia. "Nossa preocupação é fazer
noite, e vão, naturalmente, ligar a televisão, o degelo paulatinamente, para evitar
para gastar mais energia elétrica. As inundações", explicou o relações-públicas

49
da fundação, Osmar Santos, uma espécie Osmar Santos. Ele afirma que a médium
de porta-voz da médium Adelaide. poderia ter preferido deslocar as massas
para o Oceano Atlântico, mas o fez em
Trabalho reconhecido direção ao Sudeste em virtude da
estiagem que, por pouco, não leva a região
E;ssa não é a primeira vez que o trabalho
ao racionamento de energia. Apesar de
da fundação coincide com alterações
reconhecer que esse deslocamento
surpreendentes da temperatura. Para a
acabou causando inundações no Sudeste,
Comissão de Defesa Civil do Estado de
Osmar Santos diz que "o racionamento ou
Santa Catarina (Cedec) não é novidade
a enchente em Santa Catarina teriam sido
pedir ao cacique que intervenha no tempo.
muito piores".
Ontem, por exemplo, encerrou-se a
Operação Concórdia, que visava acabar
com a estiagem que assolava a região
Mais consciência
Oeste, com graves prejurzos para a A médium Adelaide Scritori cobra "mais
agricultura. A ajuda foi solicitada pelo consciência da população, que estâ
governo do estado - com quem a destruindo o Brasil e o planeta". Para ela, é
fundação mantém convênio desde as uma aberração o fato de em Santa
enchentes de 1983 - no dia 9, e no dia 14 Catarina, por exemplo, estarem sendo
a Cedec enviava telex à médium derrubadas 15 mil Arvores por dia, "o que é
informando que "a situação estã um requerimento para novas enchentes".
praticamente normalizada, com um As cobranças do cacique são feitas de
acumulado de aproximadamente 80 modo enérgico: em agosto e setembro do
milrmetros nas últimas 72 horas sobre a ano passado, quando Florianópolis passou
região atingida". por um perrodo de racionamento d'água, a
médium exigiu, por teleJÇ que o governo do
Casos como esse também foram Estado fizesse um relato sobre como
registrados pelo jornal inglês Daily estavam as obras do novo reservatório do
Telegraph, que no último dia 9 publicou Rio Aririú, que deve resolver o problema
uma reportagem de mil palavras a respeito de abastecimento da capital de Santa
do trabalho da fundação, o que atraiu o Catarina para além do ano 2000. Quando
Palâcio de Buckingham e a própria BBC, soube que o cronograma estava sendo
que enviou sua correspondente no Brasil cumprido, a médium parabenizou o
até Guarulhos. São relatos governo. Dias depois, voltou a chover e
impressionantes: no dia 7 de dezembro acabou o racionamento.
passado, o governo de Santa Catarina
recebeu o alerta de que o deslocamento de - Eu não creio em bruxas, mas que elas
massas polares sobre o Sul do pars existem, existem - diz o governador
poderia provocar novas enchentes no rio Esperidião Amim, que nas enchentes de
ltajar-açu, com a previsão de que o rio 1983 aceitou a ajuda proposta pela
subiria até 14,80m. Através dos trabalhos fundação para tentar diminuir o nrvel dos
da médium Adelaide, as massas "foram rios. Como a experiência deu certo, o
desviadas para a regíão Sudeste, e a governo do estado assinou um convênio
chuva que cairia em Santa Catarina com a fundação, e, sempre que há
acabou caindo naquela região", relata transtornos meteorológicos, a Cedec

50
aciona os serviços do cacique, que são poderes.
feitos sem qualquer ônus para o estado.
Esperidião Amin, que é "católico apostólico Não que duvide. Pelo contrário. A razão, a
romano" e por pouco não foi padre, afirma ciência parecem demasiado limitadas para
que não pode dar um "atestado de dar conta dos muitos poderes alternativos
eficiência da Fundação, mas o certo é que - para usar um termo da época - que
seus membros estão cheios de boas explodem por todo o planeta, mexendo
intenções". com a mente ou com as nuvens. Alguns
seres humanos até concentram muitas
Transcrito do Jornal do Brasi~ 20101/87. forças ocultas, como nos relatos de A
casa dos Espfritos, de Isabel Allende; mas
também a imprensa, que melhora o seu
Que tantos são os poderes ocultos dia-a-dia de desgraças, narrando simples
descobertas tecnológicas ao lado de
Dizem que há uma diferença entre mistério imensos mistérios de hoje e de amanhã.
e absurdo: o primeiro determina coisas
transcendentais - ou não - que estão Acho até um barato, uma beleza, voando,
ocultas, lrreveladas, ou se manifestam nesta noite de grandes nuvens escuras,
sem que as possamos explicar; mas que enquanto leio estes e outros absurdos, por
nem por isto estariam fora de uma certa enquanto à velocidade de cruzeiro de jatos
ordem, de uma realidade que ainda escapa comuns, mas com a·perspectiva teórica de
ao presente conhecimento dos homens. O um dia os meus descendentes correrem
absurdo ... é o absurdo. Anda ar pelos como a luz em navios espaciais de velas
contos fantásticos (a voz que pede um de mil quilómetros, de estrela em estrela
cigarro ao pirotécnico Zacarias, na estória (cf. Jornal do Brasil, 25/1/87). Estamos em
de Murilo Rubião, e que não passa de um outra fronteira fantástica, que obscurece
coelho que fala e pode se transformar em as revelações e utopias da ficção
qualquer outro bicho); e também caminha cientffica. Mas não disse Samuel L. Delary
com a gente no dia-a-dia da vida, que "virtualmente todos os clássicos de
sobretudo depois do Cruzado 11. E alguns ficção especulativa são mrsticos"?
absurdos talvez atê estejam presentes em
alguns mistérios ...
Deus deve ser um divertido criador, cheio
A verdade é que estas distinções não dão de artimanhas e truques, que se revela
conta de alguns fatos, como o desta também - ou sobretudo - aos fracos e
médium brasileira que a convite de pequeninos, confundindo os sábios e
ingleses do Palácio de Buckingham parece entendidos. Se juntarmos todos esses
que andou mudando o tempo na Europa. pedaços de vida, luzes e formas, tempos e
Não muito, para não provocar um degelo eternidade - o que sabemos e o que
violento (ou porque os poderes não dão apenas imaginamos-, descobriremos o
para mais?). Mistério? Absurdo? Fora o mundo da graça, a força dos mitos e
que a médium andou fazendo pelo Brasil, simbolismos, cujos sinais, objetos,
para espanto de governadores, que não palavras manifestam "as coisas que o olho
crêem mas se submetem aos se111s . não viu e o ouvido não ouviu" (I Corfntios,

51
2,9). "reportagem de mil palavras", casos como
o de Santa Catarina (o que mobilizou._
E bem-aventurados os que não viram e Buckingham e a correspondente da BBC
creram. aqui), para que a matéria de 800 palavras
sobre o assunto surgisse numa coluna
WaldoCesar inteira do jornal carioca. Outra
(Rio-Recife, 27101/87) coincidência?

Não se pode saber com precisão: talvez o


JB já tenha publicado algo sobre o tema, e
Coincidências na imprensa haja mesmo muitos leitores desatentos por
aqui. Mas é de chamar a atenção o
A leitores razoavelmente atentos aos ceticismo da reportagem brasileira: logo
jornais, e a notfcias relacionadas com abaixo do entretrtulo "Trabalho
religião, misticismo, ciência, não teriam reconhecido", onde se relatam os causos
passado despercebidas informações catarinenses (aparentemente utilizando-se
sobre uma médium brasileira que, através das matérias inglesas), pode-se ler o
de uma fundação espfrita, fornece serviços seguinte: "Essa não é a primeira vez que o
na área dos "transtornos meteorológicos", trabalho da fundação coincide - o grifo é
minimizando-os. E mais: que a Fundação meu - com alterações surpreendentes da
Cacique Cobra Coral tem um convênio temperatura." Donde mais umas
assinado desde 1983 com o governo de interrogações para este breve escrito.
Santa Catarina, onde governa Espiridião Afinal, quem reconhece o trabalho de
Amin (um católico apostólico romano que Adelaide Scritori? Nossa imprensa, que
não crê nas bruxas mas que acha que julga que tudo se trata de coincidência e
elas existem, segundo suas próprias que descobre os causos brasileiros depois
declarações), exatamente para diminuir as das investigações da imprensa inglesa? o
perturbações climáticas que costumam Governador Espiridião Amin, que apesar
assolar aquela região. do convênio e dos resultados afirma que
não pode dar um "atestado de eficiência da
Foi preciso, no entanto - ou trata-se de Fundação, mas o certo é que seus
simples coincidência?-, que o jornal membros estão cheios de boas
londrino The Guardian registrasse, intenções"? o Palácio de Buckingham, que
"surpreso, em sua primeira página", atrafdo pela matéria do Daily Telegraph
mudanças de temperatura no rigoroso solicita os serviços da fundação? a
inverno de lá, devidas aos serviços da imprensa inglesa, que publica matérias
médium (solicitados pelo Palácio de sobre o assunto e até registra com
Buckingham), para que notfcias sobre os surpresa, "em sua primeira página", os
trabalhos da fundação no Brasil acontecimentos decorrentes dos serviços
chegassem às páginas do Jornal do Brasil. da médium?
Ou, por outra, que o Daily Telegraph
"também" - segundo o Jornal do Brasil, Mais uma vez é diffcil saber.
que no entanto não diz quem antecedeu Provavelmente trata-se apenas, do lado de
esse outro jornal inglês - noticiasse, numa lá, do célebre fascfnio do Velho Mundo

52
pelo misticismo "de nossa gente", além de importante seminário latino-americano, que
um desespero natural pelo rigor de um reuniu organizações privadas que se
inverno gelado. (Apesar de que bruxos e dedicam a organizar e executar projetos
Grã-Bretanha, como se sabe, combinam.) de desenvolvimento social em diversas
Do lado de cá, tampouco deve ser muito localidades da América do Sul e Central.
importante tudo isso. Trata-se apenas, Ou seja, fazem aquilo que os governos
certamente, do dever de informar, de deixam de fazer, ou por incompetência ou
fazê-lo antes tarde do que nunca, da por falta de recursos.
atenção às insistentes transmissões via
telex de notfcias de agências Dentre os vários projetas apresentados, o
internacionais, da leitura atenta dos jornais que mais me sensibilizou foi o de um grupo
estrangeiros, de uma coluna vaga no jornal peruano (Centro de Investigação e
daquele dia etc . etc. Promoção Amazônica), que editou uma
cartilha intitulada Aprendendo a Conhecer
Contudo, há mais uma coisa de que não os Problemas 'Ecológicos e o Manejo das
devemos nos esquecer: é já de longa data Terras de Selva. Este trabalho se dedica
que "trabalhos (de natureza diversa) especialmente aos agricultores das
reconhecidos" fora do Brasil passam a ter, regiões andinas que participam de projetas
só então, o reconhecimento e a de colonização da floresta amazõnica e
repercussão devidos, aqui. que não podem manter os mesmos
métodos de cultivo de sua tradição, sob
Mas não tem nada, não: qualquer dia pena de destrufrem o solo e o complexo
desses a gente cresce, por suposto, e ecossistema daquela região. A cartilha é
deixa de se envergonhar dos nossos fartamente ilustrada e detalha todas as
dribles, gingas e recursos, inclusive os formas de exploração de regiões tropicais,
mfsticos, para assumi-los e reconhecê-los. respeitando sempre o equilfbrio do
meio ambiente. Assim, estabelece critérios
F/avioLenz cientrticos acessfveis ao pequeno
••• agricultor para se definirem as áreas de
proteção permanente (reserva florestal),
ONGs são notrcia em Resende áreas de manejo sustentado da floresta e
áreas de vocação agropecuária
O recente encontro de representantes de propriamente dita.
ONGs em Resende fez notfcia na cidade.
É o que se vê no texto abaixo,transcritodo São trabalhos como este que renovam a
jornal A Lira, edição de 17/01 a 23/01 de esperança na capacidade humana de
87, onde o autor assina a coluna "Saúde consertar esse mundo antes que seja
do Campo". tarde.

Um Encontro Também estiveram presentes ao encontro


Internacional em Resende representantes da Bolfvia, Venezuela,
Chile, Equador, Argentina, Colômbia,
Durante os dias 12, 13 e 14, o Hotel Paraguai, além de vários brasileiros,
Fazenda da Serra foi palco de um totalizando 34 pessoas de 24 Centros,

53
entre eles o resendense Waldo César, Juventude e raci smo
jornalista, sociólogo e consultor de Ação
para o Desenvolvimento da FAO (Nações Marília Schüller, representante da
Unidas) para a América Latina. Este Comissão de Combate ao Racismo da
programa da FAO (que se dedica à Secretaria-Geral de Ação Social da Igreja
agricultura e alimentação) coopera com Metodista, enviou à redação do ISER um
encontros desta natureza com o objetivo relato sobre a Conferência de Juventude
de fortalecer organismos realizada em Harare, Zimbãbue, de 1º a 5
não-governamentais nos seus programas de julho de 1986. O tema foi Solidariedade
de ajuda a setores marginalizados da em ação a favor da África do Sul e
população dos países latino-americanos. E Namtbia, discutido por 80 joven s de 25
tome ajuda, uma vez que 40% dos pafses diferentes.
habitantes deste continente vivem em
estado de extrema miséria. Organizada pelo Programa de Combate ao
Racismo do Conselho Mundial de Igrejas e
Segundo Waldo César, encontros como pelo Conselho de Igrejas Sul-Africanas,
estes abrem imensas perspectivas de esta conferência foi concebida a partir do
cooperação e de impacto junto a governos princfpio de que, devido às mudanças
e a obras sociais em geral, não somente urgentes exigidas pela maioria negra dos
na região onde acontecem mas também dois pafses em questão, uma Conferência
nos pafses participantes, assim como de Juventude seria fundamental no sentido
entre outros organismos internacionais de de informar a Comunidade Internacional
cooperação ao desenvolvimento. Isto sobre a dinâmica da polftica na África
ocorre através do intercâmbio de Meridional e estabelecer ligações e canais
informações e também de sugestões para de comunicação entre a juventude da
projetos que seriam realizados com Comunidade Internacional e a juventude da
recursos humanos ou materiais África do Sul e da Namfbia.
canalizados através desses organismos.
O objetivo da Conferência era fazer
Os objetivos do encontro foram emergir reais e concretos programas de
plenamente alcançados e são definidos ação a serem desenvolvidos nos Estados
por algumas caracterfsticas bãsicas: limftrofes da África Meridional e mais
contribuir com o desenvolvimento do amplamente pela Comunidade
movimento popular e na mudança das Internacional, ali representada por pafses
sociedades latino-americanas; atuar desde de todos os continentes. Um dos
uma perspectiva institucional, profissional, problemas ressaltados na ocasião foi a
sem compromisso polftico partidãrio; ação repressora do regime racista de
combinar atividades de promoção de Botha, responsãvel pela prisão e tortura de
desenvolvimento com trabalhos de milhares de pessoas, intensificada com a
reflexão. instalação do Estado de Emergência como
alternativa para manter a hegemonia
Luiz Felipe Cesar branca no pafs. "Nós jamais seremos
detidos pelo regime de Botha", dizia uma
das canções de resistência entoadas em

54
Harare. Eis algumas das conclusões a que
chegaram os jovens reunidos em Harare:
Algumas posições adotadas durante a "Nós{ ...) confirmamos a fé no Cristo
Conferência foram o apoio às vftimas do crucificado e compartilhamos os
Apartheid, o isolamento e sanções a propósitos redentores de Deus em Jesus
serem impostas aos governos da África do Cristo.
Sul e da Namrbia, a criação de um
programa de continuidade da Conferência Nós sustentamos a libertação de Deus em
e a instalação de uma ampla red e de nossos atos de libertação.
informações, divulgadas pelo Programa de
Combate ao Racismo. Nós estamos juntos em nosso sentimento
d~ urgência no que respeita a África do Sul
Marília Schüller aproveitou o seu relato e a Namíbia, e nos sentimos compelidos,
para denunciar como uma conferência que pelo Espfrito Santo a trabalhar ativamente
trata do racismo também é vrtima do onde quer que estejamos, de forma
próprio racismo: os sul-africanos Michael. consistente.
Coetzes e Donavan Nadison foram presos
no Aeroporto Jan Smuts, em Conclamamos a juventude em todo o
Joannesburgo, ao retornarem da mundo para que envolva as Igrejas e
Conferência, ao passo que Edwin Arrison governos a esta grande tarefa."
foi detido no mesmo aeroporto sem ter
sequer o direito de participar dela.

55
-
PUBLICAÇOES
RECENTES
MICENIO SANTOS
Mestrando em Ciências Sociais tFCSIUFRJ

Nesta seção, COMUNICAÇÕES DO CHEETAHM, Erika.


/SER procura reunir os trtulos lançados Novas profecias de Nostradamus: 1985
recentemente no Brasil e no exterior na em diante.
área de estudos sobre religião, incluindo Tradução de Donaldson M. Garschagen.
livros, artigos em periódicos, teses de Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira,
mestrado e doutorado e pesquisas. A 1986. 254p.
intenção é fornecer uma bibliografia
atualizada e um panorama das tendências COMBLIN, José.
nesse campo. Antropologia Cristã.
Petrópolis, Editora Vozes, 1986. 272p.
Envie-nos 1 (um) exemplar de sua O autor nos apresenta na Antropologia
publicação mais recente. Cristã "uma visão geral da humanidade e
da libertação desde o ponto de vista
cristão". Não pretende esgotar o tema, e
nos lembra, da introdução até o último
capftulo, que os diversos aspectos da obra
serão mais bem discutidos e aprofundados
Livros
nos volumes seguintes da coleção
Teologia e Libertação.
ANDRADE MACEDO, Carmem Cinira de.
Tempo de gênesis. O povo das CUNHA, Manuela Carneiro da.
Comunidades Eclesiais de Base. Antropologia do Brasil.
São Paulo, Ed. Brasiliense, 1986.
São Paulo, Editora Brasiliense, 1986.
176p.
CAVALCANTI, Tereza Maria P.
O livro abre-se com a visão indfgena do
A lógica do amor- pensamento
homem branco e encerra-se com a visão
teológico de Carlos Mesters.
neobrasileira do fndio: olhares permeados
São Paulo, Ediç6es Paulinas, 1986.
pela estrutura simbólica e pela dominação
"A lógica não gera o amor, mas o amor
polrtica.
gera uma lógica nova", diz a autora,
citando Carlos Mesters, o maior biblista
brasileiro.

56
DUSSEL, Enrique. MELLO E SOUZA, Laura de.
Ética comunitária - liberta o pobre. O diabo na Terra de Santa Cruz.
Tradução de Jaime Classen. Petrópolis, Editora Companhia das Letras, 1986.
Editora Vozes, 1986. 286p. 408p.
"Deus e o Diabo sempre andaram juntos
FORSYTH, Frederick. por essas terras tropicais. Mas o primeiro
A alternativa do diabo. sempre levou vantagem, pois desde o
Editora Record, 1986. 437p. infcio Ele jã estava entronizado, enquanto
o Outro aparecia marginalmente nas curas
LARA, Tiago Adão. mágicas, patuãs, calundus e catimbós ..."
Caminhos da razão no Ocidente - a
filosofia ocidental, do renascimento aos NOGUEIRA, Carlos Roberto F.
nossos dias. O diabo no imaginário cristão: para
Petrópolis, Editora Vozes, 1986. 176p. desvendar o satanás.
A filosofia é para o autor "a melhor forma São Paulo, Editora Ática, 1986. 96p. (Série
de compreender es·te nosso mundo". As Princfpios, 101}
filosofias são "acesso privilegiado para a Paulatinamente - como assinala o autor -
compreensão de determinado mundo". o diabo foi ganhando maior importância,
Temas complexos e ditrceis, como o sem dúvida por constituir um excelente
racionalismo, empirismo, o idealismo, instrumento teológico e ideológico. Por
estruturalismo, fenomenologia, marxismo, ironia, dentro da trajetória do cristianismo,
são tratados com inteligência. o temor ao diabo superou, em muitas
épocas e até bem recentemente, a própria
MALAMUO, Bernard. veneração a Deus.
A graça de Deus.
Editora Companhia das Letras, 1986. RACHET, Guy.
216p. O rei Davi.
Tradução de Pina Bastos. Rio de Janeiro,
MARINS, José et ai. Editora Nova Fronteira, 1986. 415p.
Maria ·libertadora na caminhada da Um rei sensual, poeta, músico e muito
Igreja. sedutor: DAVI.
São Paulo, Edições Paulinas, 1986. 128p.
(Col. Pastoral e Comunidade, Nova Série, RA TIS, Pedro.
6) Jung, a gente se vê em Olinda.
São Paulo, Editora Brasiliense, 1986.
ME GALE, Nilza Botelho. 104p.
112 invocações da Virgem Maria no Todos os sfmbolos, valores, arquétipos e
Brasil. brigas de Jung vistos agora sob o sol de
Petrópo/is, Editora Vozes, 1986. 376p. Olinda. Uma visão bem brasileira.

57
SCHIMIDT, C6n. José Bonifácio & OAN TAS, Beatriz Góis.
Pe. COLING, Oscar João, orgs. De feiticeiros a comunistas: acusações
A formação presbiteral na opção pelos sobre o candomblé.
pobres. Dédalo, 23: 97, 1986.
Petrópolis, Editora Vozes, 1986.
KA BENGELE, Munanga.
Aspectos do casamento africano.
Arti gos publicados em Dédalo, 23: 163, 1986.
periódicos nacionais
PEREIRA, João Batista B.
A cultura negra: resistência de cultura ã
AZZI, Rio/ando.
cultura de resistência.
Do Bom Jesus sofredor ao Cristo
Libertador. Um aspecto da evolução da
Dédalo, 23: 177, 1986.
Teologia e da Espiritualidade católica no
PERLONGHER, Néstor.
Brasil. (Continuação.)
O ghetto e a boca: a territorialidade
Perspectiva Teológica, 46, 343-358,
homossexual.
1986.
Espaço e Debates, 6: 17, 1986.

PINTO, Frei Guilherme Ney, o.p.


Igreja e Estado em Minas Gerais.
A imoralidade da alma.
srntese, 38, 1986.
Dédalo, 23: 189, 1986.
CÂMARA, Airton Lugarinho de Uma.
RAMOS, Alcida Rita.
Além do tempo e da mente, a ~nsia da A "viagem" dos fndios -
eternidade. maldição ou bênção?
Humanidades, 3: 10, 1986. Humanidades, 3: 10, 1986.
CHIARA, Vi/ma.
VOGT, Carlos & FRY, Peter.
O simbolismo da mulher na iconografia
Os mestres da "lfngua secreta" do
profana e sagrada - um ensaio.
Cafundó e o paradoxo do segredo
Dédalo, 23: 73, 1986.
revelado.
Dédalo, 23: 301, 1986.
CUNHA, Manuela Carneiro da.
Sobre a escravidão voluntária: outro
discurso. Escravidão e contrato no Brasil
colonial.
Dédalo, 23: 57, 1986.

CUNHA, Mariano Carneiro da.


A feitiçaria entre os Nag6- Yoruba.
Dédalo, 23: 1, 1986.

58
Trabalhos apresentados no GT OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro.
"RELIGIÃO E SOCIEDADE" durante o Comunidade, igreja e poder - em busca de
X Encontro Anual da ANPOCS em um conceito sociológico de "igreja". (A sair
Campos do Jordão, de 21 a 24 de em Religião e Sociedade, nº 13/3, março
outubro de 1986. de 87.)

PEREZ, Léa Freitas.


CARVALHO, José Carlos de Paula.
Campo religioso e identidade social:
A abordagem da Antropologia profunda
reprodução étnica de um grupo de judeus
sobre a dissidência religiosa: imaginãrios e
em Porto Alegre.
transgressões da cristandade ocidental.
SANCHIS, Pierre.
CONCONE, Maria Helena Vi/las-Boas.
A romaria de Bom Jesus de Congonhas do
Umbanda ......-etomando a questão do
Campo: uma manifestação popular?
Personagem.

SOUZA, Beatriz Muniz de.


DELLA CAVA, Ralph.
Proposta de debate sobre o tema
A polrtica de comunicação de massas da
"seita-igreja".
CNBB desde 1962.
TAGLIAVINI, João Virgflio.
MAGGIE, Yvonne.
A reprodução social do clero - a origem
Bruxos e médicos: a constituição de um
sócio-cultural do clero e suas instâncias
campo religioso - anãlise de processos
socializadoras: os seminãrios.
criminais e a repressão às religiões
mediúnicas no Rio de Janeiro de 1890 a
VALENTE, Ana Lúcia F.
1940.
O negro na Igreja: o espaço concedido.
Um espaço reivindicado.
MAUtS, Raymundo Hera/do.
Catolicismo popular e pajelança na região
VIERTLER, Renate Brigitte.
do Salgado: as crenças e representações.
A comida dos esprritos e seu significado
MENEZES, Eduardo Diatahy Bezerra de. para a cosmologia dos Bororos Orientais.
A Igreja Católica e a proliferação das
"seitas".
(Publicado em Comunicações do ISER,
nº 20.)
MICHETOLO, Antonio Ricardo.
Igreja Católica, questão agrãria e
movimentos sociais no campo.

59
Leituras produções cientfficas, enciclopédias e
bibliografias afro-americanas. ConstQta
que a discriminação nos Estados Unidos
TERRA, J.E. Martins teve a vantagem de provocar nos negros a
O negro e a Igreja consciência da luta contra o racismo.
Edições Loyola, S. Paulo, 1984. Surpreende-se com o contraste entre as
fantásticas publicações afro-americanas e
Ultimamente, as Edições Loyola têm a penúria da literatura afro-brasileira.
oferecido ao público uma série de Apresenta reflexões sobre a Igreja e o
publicações de grande interesse sobre o negro no Brasil (p. 21-154), considerando
negro e as religiões afro-brasileiras. Nesta que a Igreja sempre defendeu o negro.
linha destacamos, entre outros trabalhos Discorda do ponto de vista de bispos
recentes, o de Valdeli Carvalho da Costa, latino-americanos reunidos em Puebla que
Umbanda. Os seres superiores e os afirmaram que "infelizmente o problema
orixáslsantos, S. Paulo, 1983; o de dos escravos africanos não mereceu por
Fransiska C. Rehbein, Candomblé e parte da Igreja a devida atenção
salvação. A salvação na religião nag6 A · evangelizadora e libertadora". Concorda
luz da teologia cristã, S. Paulo, 1985, e o apenas que "a Igreja não fez tudo o que
de Chester E. Gabriel, Comunicações dos podia ter feito para eliminar a instituição da
Espfritos. Umbanda, cultos regionais em escravatura na América Latina". Condena
Manaus e a dinâmica do transe mediúnico, "falsificações históricas" contra a
S. Paulo, 1985. Entre estes trabalhos Companhia de Jesus, e apresenta sfntese
inclui-se o de Martins Terra, que nos da história da escravidão da antigüidade
propomos resenhar e comentar. ao século XIX. Discute a ética cristã da
Consideramos o trabalho valioso, escravidão e a ação da Igreja na África,
sobretudo pelo excelente comentário da referindo-se à polftica dos jesuftas junto
bibliografia afro-brasileira, em que (p. aos reis de Portugal a favor da conquista e
155-293) são analisados cerca de 80 cristianização de Angola. Lembra que
tftulos clássicos ou recentes. governantes portugueses doaram como
fonte de rendimentos aos jesuftas, para
Na introdução, o autor justifica o livro a sustento das obras missionárias, sobas
partir de um convite para colaborar em que pagavam com escravos tributos aos
seminário sobre problemas pastorais na padres.
América Latina e sobre sincretismo
afro-brasileiro, após seguir curso de Discutindo a evangelização do negro no
pastoral catequética na Universidade de Brasil, critica o padre João Mira e
Loyola, em Nova Orleans. Informa que Hoornaert. Elogia a atuação dos jesuftas
realizou pesquisa bibliográfica em oito junto aos escravos, especialmente o
universidades de jesuftas nos Estados trabalho de educação profissionalizante e
Unidos, mostrando-se impressionado com a situação dos escravos nas fazendas dos
a quantidade e qualidade de estudos sobre jesuftas. Afirma que a fazenda de Santa
o negro. Apresenta visão panorâmica Cruz, no Rio de Janeiro, chegou a contar
destes estudos nos EUA, referindo-se a em 1759 com 1.500 escravos, e que a de
universidades, cursos, museus, Jaguari do Colégio do Pará em 1718

60
formava oficiais, numerosos negros colega e ex-aluno pe. Mira a propósito do
escravos, grandemente apreciados. livro A evangelização do negro no perfodo
Martins Terra (p. 104-113) sintetiza colonial brasileiro, Loyola, 1983,
estudos clássicos dos jesurtas pe. Antonil apresentando-lhe uma antftese. Trata-se
(1711) e do pe. Jorge Benci {1705), de uma monografia de mestrado
apresentando suas principais apresentada na PUC-RJ sob orientação do
recomendações sobre o tratamento aos pe. Bastos Ávila, SJ, escrita por um
escravos. Discute (p. 114-126) o tráfico descendente de negro que analisa a
de escravos realizado pelos jesurtas, relação escravo-missionário a partir da
rebatendo informações de Hoornaert, que ótica do escravo. Martins Terra critica pe.
denomina de "calúnias pombalinas". No Mira por ter adotado como fontes básicas
fim da primeira parte (p. 127-154), Hoornaert e Bastide. Rebate-lhe a crrtica à
refere-se à abolição da escravatura, à ortodoxia, fazendo inúmeras citações de
atuação da Igreja nesta linha, e fala de Antônio Vieira e de Serafim Leite.
Igreja e consciênci~ negra. Assistimos a uma polêmica entre jesuftas
sobre a atuação da Companhia de Jesus
Na segunda parte o autor afirma que, para em relação ao negro. Lamentamos que tal
ajudar os principiantes, resolveu publicar polêmica seja feita por alguém, como é
recensões, escritas para si, de livros rebatido no texto, "que se encontra
disponrveis. Sem ser exaustivo, comenta encastelado dentro de seu etnocentrismo
livros que considera bons e maus na aureolado de um tom apologético,
bibliografia afro-brasileira. Trata-se de querendo defender a Companhia de Jesus
recensão cuidadosa de obras importantes a todo custo". Aos leigos tal polêmica
sobre o tema, analisado segundo a visão parece úm tanto exagerada, imatura e
do autor. Apresenta crfticas contundentes ingênua, demonstrando o pe. Martins Terra
a vários trabalhos, como por exemplo à um ufanismo etnocêntrico na defesa
resposta de Juana Elbein dos Santos a irrestrita dos jesurtas.
Pierre Verger na revista Religião e
Sociedade, 8 (1982), que, segundo Na longa cntica ao pe. Mira, pe. Martins
considera (p. 285) , não responde a Terra (p. 249) refere-se ao fenômeno da
nenhuma das crfticas levantadas . "inculturação", neologismo, segundo eie,
cunhado pelos jesurtas na Índia.
Dedica mais de cinqüenta páginas a dois Caracteriza-o como "uma contraposição à
trabalhos recentes dos jesurtas pe. Valdeli aculturação", ou seja, "a imposição da
de Carvalho (p. 187-200) e pe. João cultura dominante sobre a cultura
Manoel Lima Mira (p. 221-261). Considera dominada". Afirma que "A moderna práxis
o livro do pe. Valdeli o melhor estudo sobre missionária pretende evangelizar sem
a fenomenologia do sincretismo na aculturar, transmitindo a mensagem cristã
perspectiva da teologia católica, dentro dos quadros e valores culturais do
apresentando longo resumo do livro. povo missionado". Considera que os
Aponta-lhe crrticas e sugestões de ordem jesuftas sempre a fizeram em toda parte.
gramatical, ortográfica e doutrinária. Preocupa-se também com a africanização
Martins Terra trava longa polêmica - que da Igreja e da teologia cristã e com a
nos parece excessiva - com seu amigo, procura de uma teologia negra. Conclui o

61
Leituras produções cientfficas, enciclopédias e
bibliografias afro-americanas. Constq.ta
que a discriminação nos Estados Unidos
TERRA, J.E. Martins teve a vantagem de provocar nos negros a
O negro e a Igreja consciência da luta contra o racismo.
Edições Loyola, S. Paulo, 1984. Surpreende-se com o contraste entre as
fantásticas publicações afro-americanas e
Ultimamente, as Edições Loyola têm a penúria da literatura afro-brasileira.
oferecido ao público uma série de Apresenta reflexões sobre a Igreja e o
publicações de grande interesse sobre o negro no Brasil (p. 21-154), considerando
negro e as religiões afro-brasileiras. Nesta que a Igreja sempre defendeu o negro.
linha destacamos, entre outros trabalhos Discorda do ponto de vista de bispos
recentes, o de Valdeli Carvalho da Costa, latino-americanos reunidos em Puebla que
Umbanda. Os seres superiores e os afirmaram que "infelizmente o problema
orixáslsantos, S. Paulo, 1983; o de dos escravos africanos não mereceu por
Fransiska C. Rehbein, Candomblé e parte da Igreja a devida atenção
salvação. A salvação na religião nagó A evangelizadora e libertadora". Concorda
luz da teologia cristã, S. Paulo, 1985, e o apenas que "a Igreja não fez tudo o que
de Chester E. Gabriel, Comunicações dos podia ter feito para eliminar a instituição da
Espfritos. Umbanda, cultos regionais em escravatura na América Latina". Condena
Manaus e a dinâmica do transe mediúnico, "falsificações históricas" contra a
S. Paulo, 1985. Entre estes trabalhos Companhia de Jesus, e apresenta sfntese
inclui-se o de Martins Terra, que nos da história da escravidão da antigüidade
propomos resenhar e comentar. ao século XIX. Discute a ética cristã da
Consideramos o trabalho valioso, escravidão e a ação da Igreja na África,
sobretudo pelo excelente comentário da referindo-se à polftica dos jesurtas junto
bibliografia afro-brasileira, em que (p. aos reis de Portugal a favor da conquista e
155-293) são analisados cerca de 80 cristianização de Angola. Lembra que
trtulos clássicos ou recentes. governantes portugueses doaram como
fonte de rendimentos aos jesuftas, para
Na introdução, o autor justifica o livro a sustento das obras missionárias, sobas
partir de um convite para colaborar em que pagavam com escravos tributos aos
seminário sobre problemas pastorais na padres.
América Latina e sobre sincretismo
afro-brasileiro, após seguir curso de Discutindo a evangelização do negro no
pastoral catequética na Universidade de Brasil, critica o padre João Mira e
Loyola, em Nova Orleans. Informa que Hoornaert. Elogia a atuação dos jesuftas
realizou pesquisa bibliográfica em oito junto aos escravos, especialmente o
universidades de jesurtas nos Estados trabalho de educação profissionalizante e
Unidos, mostrando-se impressionado com a situação dos escravos nas fazendas dos
a quantidade e qualidade de estudos sobre jesuftas. Afirma que a fazenda de Santa
o negro. Apresenta visão panorâmica Cruz, no Rio de Janeiro, chegou a contar
destes estudos nos EUA, referindo-se a em 1759 com 1.500 escravos, e que a de
universidades, cursos, museus, Jaguari do Colégio do Pará em 1718

60
formava oficiais, numerosos negros colega e ex-aluno pe. Mira a propósito do
escravos, grandemente apreciados. livro A evangelização do negro no perfodo
Martins Terra (p. 104-113) sintetiza colonial brasileiro, Loyola, 1983,
estudos clássicos dos jesurtas pe. Antonil apresentando-lhe uma antrtese. Trata-se
(1711) e do pe. Jorge Benci (1705), de uma monografia de mestrado
apresentando suas principais apresentada na PUC-RJ sob orientação do
recomendações sobre o tratamento aos pe. Bastos Ávila, SJ, escrita por um
escravos. Discute (p. 114-126) o tráfico descendente de negro que analisa a
de escravos realizado pelos jesurtas, relação escravo-missionário a partir da
rebatendo informações de Hoornaert, que ótica do escravo. Martins Terra critica pe.
denomina de "calúnias pombalinas". No Mira por ter adotado como fontes básicas
fim da primeira parte (p. 127-154), Hoornaert e Bastide. Rebate-lhe a crrtica à
refere-se à abolição da escravatura, à ortodoxia, fazendo inúmeras citações de
atuação da Igreja nesta linha, e fala de Antônio Vieira e de Serafim Leite.
Igreja e consciênci~ negra. Assistimos a uma polêmica entre jesurtas
sobre a atuação da Companhia de Jesus
Na segunda parte o autor afirma que, para em relação ao negro. Lamentamos que tal
ajudar os principiantes, resolveu publicar polêmica seja feita por alguém, como é
recensões, escritas para si, de livros rebatido no texto, "que se encontra
disponfveis. Sem ser exaustivo, comenta encastelado dentro de seu etnocentrismo
livros que considera bons e maus na aureolado de um tom apologético,
bibliografia afro-brasileira. Trata-se de querendo defender a Companhia de Jesus
recensão cuidadosa de obras importantes a todo custo". Aos leigos tal polêmica
sobre o tema, analisado segundo a visão parece um tanto exagerada, imatura e
do autor. Apresenta crrticas contundentes ingênua, demonstrando o pe. Martins Terra
a vários trabalhos, como por exemplo à um ufanismo etnocêntrico na defesa
resposta de Juana Elbein dos Santos a ir restrita dos jesuftas.
Pierre Verger na revista Religião e
Sociedade, 8 (1982), que, segundo Na longa crftica ao pe. Mira, pe. Martins
considera (p. 285), não responde a Terra (p. 249) refere-se ao fenômeno da
nenhuma das crfticas levantadas. "inculturação", neologismo, segundo ele,
cunhado pelos jesuftas na Índia.
Dedica mais de cinqüenta páginas a dois Caracteriza-o como "uma contraposição à
trabalhos recentes dos jesuftas pe. Valdeli aculturação", ou seja, "a imposição da
de Carvalho (p. 187-200) e pe. João cultura dominante sobre a cultura
Manoel Lima Mira (p. 221-261). Considera dominada". Afirma que "A moderna práxis
o livro do pe. Valdeli o melhor estudo sobre missionária pretende evangelizar sem
a fenomenologia do sincretismo na aculturar, transmitindo a mensagem cristã
perspectiva da teologia católica, dentro dos quadros e valores culturais do
apresentando longo resumo do livro. povo missionado". Considera que os
Aponta-lhe crfticas e sugestões de ordem jesurtas sempre a fizeram em toda parte.
gramatical, ortográfica e doutrinária. Preocupa-se também com a africanização
Martins Terra trava longa polêmica - que da Igreja e da teologia cristã e com a
nos parece excessiva - com seu amigo, procura de uma teologia negra. Conclui o

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livro propondo que não se dêem feições jesuítas com posições ideologicamente
africanas ao rito romano, mas que se irreconciliáveis.
procure criar um rito brasileiro, ou que se
adote aqui uma liturgia como a copta, com No calor da polêmica, talvez com certa
sacerdotes celibatários e outros casados, ingenuidade, o autor cita (p. 251-252) o
como existe em geral no clero oriental. curioso esforço de atuação de Santo
Inácio de Loyola junto ao rei de Portugal
Em diversas passagens (ver p. 296) D. João III e do Papa Paulo III para a
afirma que o sincretismo não surgiu na criação na África de um patriarcado da
América Latina e que é um problema trpico Etiópia. Pleiteia que o patriarcado e os dois
e exclusivo do Brasil, com o que não bispados auxiliares sucessores sejam
podemos concordar ao comparar o exercidos por jesurtas portugueses,
sincretismo no Brasil, por exemplo, com o garantindo ao padroado do rei de Portugal
de Cuba, do Haiti ou mesmo da Venezuela o direito de nomear sucessores. Tal ·
ou do Suriname e de Trinidad. Afirma - atuação - feita certamente com a intenção
erroneamente, ao nosso ver -que o "da maior glória de Deus", juntamente com
sincretismo afro-brasileiro é fenômeno outras no gênero - contribuiu para criar a
recente no Brasil, coincidindo com a imagem do Papa Negro e da discutrvel
revolução industrial, o êxodo rural e a ação polrtica da Companhia de Jesus em
marginalização do negro. No final da seus primeiros séculos. Comprova
conclusão, cita a opinião de Pierre Verger, também a dificuldade -ou talvez mesmo a
de que "tora de seu continente de origem, impossibilidade -de se conseguir uma
a religião é uma forma de afirmação de verdadeira prática de "inculturação" ou de
identidade para os africanos". ação missionária de evangelização sem
aculturação, que o pe. Martins Terra tenta
O livro não é novo e, .1mbora recente, já se defender. Parece que talvez seja mais
encontra esgotado, não tendo sido realista uma atuação ecumênica da Igreja
reeditado. Aborda temas de atualidade e Católica junto a instâncias religiosas
interesse sobre o negro, uma vez que afro-americanas que sejam tratadas e
quase não se dispõe da publicação de reconhecidas como tal e não
bibliografias comentadas sobre o assunto. simplesmente ignoradas, como tem
Na p. 158 o autor se propõe a apresentar acontecido.·
classificação por temas dos autores
analisados, o que não foi inclurdo na Sérgio Figueiredo Ferretti
presente edição. Seria interessante e
oportuna a elaboração de novo trabalho
como este, adotando posições mais
avançadas e compreensivelmente crrticas
sobre a atuação histórica da Igreja
Católica em relação aos negros, realizado
com a serenidade e objetividade que o
assunto merece. Talvez a obra não tenha
sido reeditada por externar polêmica entre

62
tSER CADERNOS DO ISER -CADERNOS J
ADERNOS DO ISER CADERNOS DO ISEl

CADERNOS DO ISER
Onde temas especiais relacionados à religião são tratados com profundidade .,
São publicados de 2 a 3 livros por ano.

Publicados em 1985:
Nº 17: A Igreja em flagrante - Catolicismo e sociedade na imprensa brasileira,
1964-1980, de Ralph Della Cava.
Nº 18: Umbanda e política, vários autores.

Publicados em 1986:
Nº 19: Os escolhidos de Deus - Pentecostais, trabalhadores e cidadania, de
Regina Novaes.
Nº 20: Brasil e USA : Religião e identidade nacional, vários autores.
Nº 21: Vovó Nagô e Papai Branco, de Beatriz Góis Oantas. (A sair)

CADERNOS DO ISER é uma publicação do Instituto de Estudos de Religião


(ISER) .

Assinatura anual: Cz$ 150,00.

Pedidos de assinatura, números avulsos e catálogo para ISER- Rua


lpiranga, 107- Laranjeiras- Rio de Janeiro- RJ- CEP 22231 - Tel.:
265-5635 .

Leia também Religião e SociedadeeComunicações do ISER,ou assine


as três publicações por Cz$ 430,00 .

63
NOTÍCIAS

UM BALANÇO DO ISER 1985/86 Algumas caracterrsticas distintivas do


ISER foram definidas neste segundo
perfodo: a principal delas foi a formação de
1. HISTÓRICO um núcleo de membros, composto de
cerca de 30 pessoas que, embora já não
O Instituto de Estudos da Religião (ISER) estejam sempre presentes, possuem a
é uma organização sem fins lucrativos, de aura que é própria aos"fundadores".
utilidade pública, com sede no Rio de Deste núcleo heterogéneo em suas
Janeiro. Criado em 1970, o ISER foi por competências e convicções veio o caráter
um curto tempo uma organização de pluralista da instituição. O fato de
teólogos, de natureza ecumênica e residirem em diferentes estados da
predominância evangélica. Chamava-se federação levou o ISER a organizar-se
então "ISET", Instituto Superior de tendo em vista uma rede de membros
Estudos Teológicos. Em suas rarzes estão dispersos pelo pars. O gosto pela
o interesse pela religião, a marca produção intelectual também é originário
ecumênica e o bom relacionamento com dos primeiros tempos. Embora muitos
órgãos protestantes nacionais e membros estivessem engajados em
internacionais. Em pouco tempo ampliou atividades de natureza "prática", viam o
seu quadro de membros, para incluir ISER como um espaço especialmente
universitários especializados na pesquisa dedicado à reflexão. Na década de 70,
dos fenômenos religiosos, fossem eles com efeito, o ISER foi sobretudo um ponto
membros de alguma igreja ou não. A de encontro de intelectuais que, além de
teologia continuou presente, mas como compartilharem uma certa especialização,
parte de um quadro mais amplo, cujos possufam laços biográficos comuns. Eram
contornos eram definidos na linguagem amigos. Encontravam-se duas ou três
das ciências sociais. O nome foi alterado vezes ao ano, por um fim de semana, para
para "Instituto Superior de Estudos da trocar idéias e afetos, e publicavam os
Religião", e tradições não-cristãs foram resultados dos seus debates em uma
incorporadas ao seu campo de interesses, brochura distribufda gratuitamente, sob o
com uma atenção especial para os cultos trtulo Cadernos do /SER. O clima fraternal
afro-brasileiros. desses encontros gerou um estilo

64
institucional sui generis , que acreditamos Neste relatório, discorremos sobre o
estar ainda presente em alguma medida, conjunto das atividades, a organização
apesar das mudanças ocorridas nos institucional e as idéias básicas que
últimos tempos. A ambiência caracterrstica animaram o !SER em 1986. Relatórios
desta segunda fase resultava, em parte, mais extensos e espedficos de cada
de dificuldades e perseguições sofridas programa foram feitos em separado,
por diversos membros fundadores nos estando à disposição dos interessados.
tempos mais árduos da ditadura.
Encontrar-se no !SER tinha, para eles, o
sentido de preservar uma dimensão de
2. ATIVIDADES EM 1985/86
sua liberdade. Resultou uma minicredo
ideológico que continua efetivo: o desejo
2.1 Promoção social
de uma democracia que tenha valia para A promoção social e a articulação com os
as classes populares, e uma desconfiança movimentos sociais tornaram-se uma
diante de tendências. totalitárias que são vertente importante das atividades do
encontráveis também nos meios de ISER. Prestamos serviços diversos a
oposição. movimentos que visam superar a miséria e
a opressão cotidianas da vasta maioria
Ao final dos anos 70, com a liberalização dos brasileiros. Via de regra, buscamos
do regime, o formato do !SER como "um situações onde a questão social seja
ponto de encontro" sofreu certo 'articulada com crenças e organizações
esvaziamento. Multiplicavam-se os religiosas, sejam elas católicas,
compromissos e as àtividades de cada protestantes, afro-brasileiras, ou outras. O
um, e já não havia tempo para trabalho social pode ser subdividido em
"encontrar-se", simplesmente. lnidou-se três tipos principais:
então a terceira fase, na qual estamos.
Mudou a diretoria em 1978, a sede foi Resposta a demandas especfficas feitas
transferida de Campinas para o Rio de por organizações populares ou que
Janeiro em 1979, e uma nova dinâmica foi trabalham junto às classes populares.
iniciada. Paulatinamente, o ISER Pedem acompanhamento de algum projeto
tornou-se, de fato, um "instituto", com uma em andamento, cursos breves de
programação e uma infra-estrutura capacitação, palestras, pesquisas, textos
permanentes. Diversificou também as para a reflexão, produção de vfdeos. A
suas atividades , integrando-se no universo maior parte das demandas é encaminhada
das "Organizações Não-Governamentais", para o programa de ASSESSORIA, mas
que operam nos interstrcios existentes elas se apresentam por outras vias a
entre as grandes instituições oficiais quase todos os programas do !SER.
(universidades, igrejas, estados, partidos,
empresas) e os movimentos sociais. O
nome foi alterado pela terceira vez: caiu o
"Superior", e o !SER passou a ser Uma linha tem~tica e constante de
chamado, simplesmente, Instituto de atuação. É o caso tfpico dos programas de
Estudos da Religião. NEGRITUDE, de MULHER ou da
CONSTITUINTE. O programa

65
NEGRITUDE está voltado para a estabelecida, tendo em vista um
problemática das relações raciais no desenvolvimento teórico. Mas há também
Brasil, com atenção especial para as suas pesquisas feitas para atender encomendas
manifestações nos contextos religiosos. O ou necessidades de ordem prática. Em
combate ao racismo desdobra-se então 1985/86 foram desenvolvidas as seguintes
·em uma série de atividades a n(vellocal, pesquisas:
regional, nacional, e pélas diversas
tradições religiosas. O programa
MULHER, de enfrentamento da Pesquisas inseridas num
discriminação feminina, esteve orientado programa geral:
em duas direções: uma articulação de
teólogas católicas e protestantes, e um O Catolicismo no Brasil Atual - um
programa sobre os problemas da conjunto integrado de mais de 20
prostituição, desenvolvido junto a um pesquisas, em busca de uma
grupo de prostitutas. O programa compreensão global da Igreja Católica no
C9NSTITUINTE agrupou seis entidades pafs;
não-governamentais, sob a coordenação
do ISER, tendo por objetlvo a participação Ecumenismo no Brasil - um conjunto de
populàr nos processos formadores de umá quatro pesquisas sobre a história recente
,nova constituição para o pa(s. do movimento ecuménico no pafs {1950
em diante);
Projetos de intervenção direta em
contextos populares. É o caso do Religião e Negritude - um conjunto de três
programa FAVELA E VIOLÊNCIA, que pesquisas sobre as expressões de
envolve a criação de um escritório de identidade étnica nas religiões brasileiras.
assistência jurfdica a moradores da favela
do Morro de Santa Marta, no Rio de
Janeiro. Este escritório, que conta com o Pesquisas isoladas:
trabalho de três advogados, é pensado
ademais como uma base experimental Maria Madalena e Pomba-Gira - crenças e
para a produção de material educativo práticas religiosas entre prostitutas
sobre os direitos dos moradores das cariocas;
. favelas. Um vfdeo sobre o problema está
em fase de conclusão. Uma História do Mangue - pesquisa sobre
um bairro tradicional da prostituição no Rio
2.2 Pesquisa de Janeiro;
As pesquisas produzidas pelo ISER
ocupam o seu quadro permanente de Diversidade Religiosa Brasileira - um
funcionários, bem como um número balanço crrtico da grande variedade das
considerável de sócios que, sem vrnculo manifestações religiosas no Brasil, com
empregatfcio, envolvem-se em projetos atenção especial para aquelas de maior
especfficos. Destacam-se no conjunto das impacto recente; um estudo que foi
pesquisas do ISER aquelas que despertado pela questão das "seitas";
obedecem a uma programação

66
ONGs no Brasil- um levantamento crrtico ISER-Vrdeo
das organizações não-governamentais de
promoção social atuantes no pafs; Em 1986 lançamos um novo programa,
com a produção de vfdeos em nfvel
As CEBs na Arquidiocese de Vitória - um profissional, dirigida aos circuitos de
vasto estudo das Comunidades Eclesiais distribuição alternativa.
de Base numa diocese importante para a
história das CEBs. Vfdeos conclufdos:
Constituinte: as novas regras do jogo.
20 anos de Caminhada. Retratos da
2.3 Comunicação diocese de Barra do Pirar e Volta Redonda.

Publicações Em fase de conclusão:


O ISER dedica-se com afinco à ârea das VI Encontro lntereclesial das CEBs.
comunicações. Em 1986 produziu Viol~ncia na Favela.
materiais de divulgação (panfletos,
cartazes etc.), revistas, livros, vfdeos. Estão em fase de produção vfdeos
dirigidos às comunidades de Nova lguaçu.
Rellgiáo e Sociedade - uma revista
quadrimestral, em formato de livro, em
nfvel de pós-graduação, dirigida a 2.4 Ensino e Capacitação
universitários e a intelectuais religiosos.
Esta revista é única em seu estilo na Uma série de cursos breves foram
América Latina. É propriedade conjunta do ministrados pelo programa ASSESSORIA,
IS ER e do CER, sendo que a sua dirigidos via de regra a grupos populares
coordenação editorial e a infra-estrutura ou a agentes de promoção social, em seus
redacional encontram-se no ISER; locais de trabalho ou de moradia. Outros
cursos, de extensão universitária, foram
Comunicações do /SER - uma publicação realizados na sede do ISER.
bimestral, em linguagem mais ágil e
acessfvel, favorecendo debates e a 2.5 Outros Programas
publicação de materiais voltados para a Judafsmo e Terceiro Mundo- o lugar
conjuntura; central do judafsmo nos progressos e nos
traumas da "modernidade" e os impasses
Cadernos do /SER - um coleção de livros; do seu relacionamento no 3º Mundo são
os objetos de pesquisa e debates a serem
Religião e Revoluçáo - uma nova coleção, desenvolvidos por este programa. Criado
iniciada em 1986, voltada para o confronto em 1985, foi pouco ativo em 1986.
das tradições religiosas com os Espera-se que retorne com maior energia
movimentos revolucionários modernos, no ano de 1987.
num total de treze volumes.
Presença do Sagrado - um núcleo de
reflexão sobre a vida religiosa, numa troca
franca e pessoal das experiências de cada

67
um de seus membros. Inclui católicos, projeto, e impõe regras rfgidas para as
protestantes, judeus, membros do prestações de contas. Um contador a meio
candomblé, simpatizantes do tempo e um assistente a tempo integral
zen-budismo. É portanto ecuménico, em garantem a exatidão das finanças e da
um sentido muito amplo, e não tem documentação legal. Um advogado presta
objetivos instrumentais. É um "ponto de serviços ao ISER regularmente.
encontro".
A diretoria, composta de sete pessoas,
Eventos - promoveu eventos significativos reuniu-se oito vezes no perfodo 85/86,
para a conjuntura sócio-religiosa, e sendo seus membros (sobretudo o
possibilitou a participação do ISER em presidente e o vice-presidente)
promoções conjuntas com outras constantemente consultados pelos
entidades. secretários-executivos. A diretoria tem
uma função importante no ISER: sendo
Marxismo e Religillo - o grupo de trabalho eleita pela assembléia dos membros a
dissolveu-se em 1986, mas a pesquisa por. cada dois anos, ela desfruta de uma
ele iniciada resultou na publicação de umà. autoridade e de um distanciamento que lhe
tese sobre a filosofia da religião em Marx. permitem dirimir as pendências eventu.ais
e -ãvaliar os rumos seguidos pela
instituiÇão.
3. ORGANIZAÇÃO
A Secretaria-Executiva funcionou a quatro
Em meados de 1986, a sede do !SER foi mãos, com um secretário-executivo e um
transferida para o Largo do Machado, em secretário-executivo-adjunto que dividiram
um prédio velho e modesto, no entanto entre si os trabalhos. O crescimento do
bem localizado e com maior espaço. ISER, sua estrutura descentralizada em
Agora, cada programa pode ter a sua sala, programas, a independência da instituição,
dispomos de uma sala de aula/auditório, e que requer grande número de acordos e
podemos organizar uma pequena convênios de duração variada, a
biblioteca especializada. Mantivemos polivalência dos projetas, tudo isto
ademais a sede antiga, uma casa vizinha representa um acúmulo de
ao Largo do Machado, que passou a responsabilidades para a
abrigar apenas dois programas: secretaria-executiva. A próxima gestão
publicações e vfdeo. Não foi fácil fazer deveria considerar este ponto, buscando
esta mudança no ano do Plano Cruzado, fórmulas conceituais e burocráticas que
quando o valor dos novos aluguéis sofreu ajustem a função à realidade atual do
grande acréscimo. A decisão se impunha, ISER.
no entanto, e conseguimos realizá-la sem
sacrificar o andamento dos projetas. Os programas possuem uma grande
autonomia. Seus coordenadores são
A secretaria está bem organizada, estimulados a buscar recursos, formar
atendendo com eficiência às necessidades equipe e desen'ílolver projetas cujos perfis
de todos os programas. A contabilidade - sejam adequados ao campo espedfico de
apresenta balanceies mensais, projeto por · atuação de cada um. São acompanhados

68
neste processo pela secretaria-executiva, entre as grandes instituições que
mas sua dinâmica vital ê assegurada por compõem a nossa sociedade. Seu
eles mesmos. Quase todos os potencial, sua criatividade e suas
coordenadores são remunerados. limitações são expressivas dessa
situação.
Olhando-se o conjunto dos programas,
obtêm-se o perfil institucional aluai do
!SER. Seu núcleo dinâmico é formado pela 4. RELAÇÕES EXTERNAS
secretaria-executiva e os coordenadores
de programas. Os últimos formam equipes Nos últimos anos o ISER consolidou sua
que crescem ou diminuem em função do imagem como instituto perito em assuntos
andamento dos projetos. Estas equipes religiosos, reconhecido no Brasil e no
são formadas, via de regra, a partir dos exterior. São hoje inúmeras as visitas de
sócios do ISER. Cada equipe, por sua professores, pesquisadores ou jornalistas
vez, mobiliza uma rede de pessoas que em busca de informações ou orientação
são vinculadas voluntariamente aos para seus estudos e trabalhos. Também
projetos em andamento. aumentaram e consolidaram-se os
contatos institucionais com outras
A dinâmica do trabalho cria uma organizações não-governamentais e
ambigüidade estrutural que deve ser religiosas, refletindo-se inclusive em
considerada pela próxima gestão: o !SER ê pedidos de pesquisas financiadas pelo
formado, estatutariamente, pelos seus Conselho Nacional das Igrejas Cristãs e
membros, recebidos pela diretoria e pela CNBB.
referendados pela assembléia a cada dois
anos. Mas as equipes formadas para a Também na área acadêmica firmou-se a
realização dos projetos tornam-se na posição do IS ER. Destaca-se af sua
prática as condutoras das atividades. Hã participação na Associação Nacional de
pessoas que colaboram intensamente corr Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências
o !SER sem serem membros estatutários, Sociais, em cujos grupos de trabalho -
e há membros que pouco sabem do notadamente o grupo "Religião e
dia-a-dia do ISER. Alguma fórmula Sociedade" - seus membros têm tido uma
regimentar deverá ser criada para garantir presença marcante. Expressão desta
o equilrbrio entre a continuidade e a participação foi a eleição de seu secretário-
mudança na composição da executivo para o Conselho Fiscal da
assembléia-geral. ANPOCS.

O conjunto dos projetos delineia o lugar Um novo conjunto de relações são


institucional do IS ER. Estã relacionado aquelas que estão sendo estabelecidas
com universidades, com instituições com órgãos públicos. O advento da "Nova
religiosas de várias confissões, e com República" possibilitou uma abertura do
setores organizados dos movimentos Estado às ONGs. O convênio de
populares. Faz trabalho clentffico e pesquisas com a FINEP e a aprovação de
também educação popular. é portanto uma um projeto pelo Ministério da Justiça são
pequena organização que se movimenta fatos a destacar. Também promissoras

69
são as relações do !SER com a Prefeitura sentido da diversificação das fontes, de
do Rio de Janeiro, no sentido de modo a assegurar sua autonomia. Essa
estabelecer um convênio de consultaria diversificação requer muito trabalho, pois
sobre assuntos religiosos. torna-se complexa a rede de relações que
envolve os projetes do ISER e as
Enfim, resta destacar que o IS ER está diferentes agências de ajuda - mas este é
iliscrito como entidade filantrópica no o preço que arcamos para assegurar
Ministério da Educação e foi reconhecido nossa autonomia face às diferentes
como entidade de utilidade pública pelo instâncias com as quais nos relacionamos.
Estado do Rio de Janeiro. O status de Devido ao processo de financiamento por
"utilidade pública", a nrvel federal e meio de projetes, hã variações
municipal, será obtido nos próximos orçamentárias a cada ano, tornando-se
meses. O registro como entidade com fins diffcil uma previsão segura. É necessário
culturais foi solicitado ao Ministério da criar compromissos de cooperação mais
Cultura. Essas medidas, que consolidam o longa, de modo a assegurar a estabilidade
estatuto jurfdico do ISER diante dos financeira dos projetos.
poderes públicos, refletem o bom conceito
que seus trabalhos permitiram alcançar. O quadro das fontes de financiamentos
mostra como está-se dando a polftica de
O relacionamento entre ONGs diversificação nos dois últimos anos:
(Organizações Não-Governamentais de
Pesquisa e Promoção Social) ganhou 1985
grande impulso nas prioridades do ISER
nos últimos anos. Participamos ativamente • Area ecuménica e protestante (E.M.W.,
do esforço de criação de redes informais Christian Aid, W.A.C.C ., Conselho Mundial
de ONGs, da reflexão sobre o tema, e de de Igrejas, N.C.C.C., Global Ministries,
projetes comuns. C.E.S.E. e outras entidades do Brasil):
25%.

5. FONTES DE • Area católica (A.M.A., MISEREOR,


SUSTENTAÇÃO ECONÔMICA Broederlijk Delen, C.N.B.B. e outras
entidades do Brasil): 23%.
O IS ER não tem renda patrimonial.
Funciona em locais alugados e só tem • Area não-confessional (NOVIB,
como patrimônio seus móveis e Fundação FORD, CNPq): 39%.
equipamentos de trabalho. Sua
sustentação processa-se através de • Fontes próprias (receitas financeiras,
projetes periodicamente encaminhados a contribuições de sócios, venda de
fundações e organismos nacionais e publicações, anuidades, taxas de cursos
internacionais de ajuda. Durante muito etc.): 13%.
tempo o ISER dependeu quase que
exclusivamente da ajuda concedida por • 25% do total vieram do Brasil
organismos ecumênicos ou protestantes, e 75% do exterior.
mas sua diretriz politica atual caminha no

70
1986 cientifica e a assessoria a movimentos
sociais. Há diferenças profundas entre
• Área ecumênica e evangtJ/ica (E.M.W., as diversas áreas religiosas: entre o
Christian Aid, Diakonia, Conselho Mundial catolicismo, o protestantismo, o judafsmo,
de Igrejas, Igreja Presbiteriana - U.S.A., o afro-brasileiro etc. Há ainda diferenças
Lutheran World Relief, N.C.C.C., W.A.C.C. , polrticas e ideológicas quanto ao
C.E.S.E.): 46%. relacionamento com os movimentos
sociais e o Estado.
• Área católica (MISEREOR, A.M.A.,
C.N.B.B. e contribuições diversas do Ao invés de buscar uma "sfntese" de
Brasil): 8%. todas estas perspectivas, ou de tentar
definir um suposto "mfnimo denominador
• Área n!Jo-confessional (FINEP, comum", orientamos o trabalho global do
Fundação FORD, Ministério da Justiça, ISER por um outro prindpio: nossa
CNPq, OXFAM e Maison des Sciences de questão central é como equacionar as
I'Homme): 24%. diferenças, sem negá-las e sem deixar que
se transformem em conflito desagregador.
• Fontes próprias (receitas financeiras, Cada programa é convidado a formular a
venda de publicações, contribuições de sua própria solução especifica para este
sócios, locação de equipamentos, taxas problema, e a secretaria-executiva é
de cursos etc.): 23% chamada a criar meios de comunicação
interna que favoreçam a manifestação
• 49% do total vieram do Brasil positiva das diferenças. As publicações e
e 51% do exterior. os demais programas do ISER refletem
esta preocupação, dando mais destaque
aos debates que às teses dogmáticas.
6. ORIENTAÇÃO Neste sentido, buscamos atualizar uma
polftica cultural democrática que faça
Os programas do ISER são heterogêneos. sentido no contexto da sociedade
Há diferenças marcantes entre a pesquisa brasileira.

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