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EM AMBIENTE VIRTUAL – 11 a 13 de maio de 2021

Reformismo ilustrado e o status político dos pardos livres na América ibérica,


c.1750-18081

Priscila de Lima Souza2

Introdução

Esta comunicação trata dos debates acerca da condição legal e política dos pardos livres que
ocorreram na América ibérica ao longo da segunda metade do século XVIII até o ano de 1808. Isto
é, do contexto de centralização do poder régio sob princípios da Ilustração até a deflagração da crise
desencadeada pela invasão da Península Ibérica pelas tropas napoleônicas. Identificados aos grupos
mestiços e ligados à escravidão, os pardos formavam parcela significativa das populações
americanas e eram submetidos a um estatuto jurídico marcado por exclusões que visavam cerceá-
los do acesso a privilégios e posições de prestígio e poder. O ponto central da discussão é
demonstrar que, ao longo da segunda metade do século XVIII, ocorreu uma transformação
fundamental nas expectativas dos súditos pardos. Se desde o século XVII os processos de mudança
de status eram estruturados como sendo uma exceção e não questinavam a estrutura desigual que
informava aquelas sociedades, a partir desse momento surgem ideias quanto à equiparação jurídica
e moral entre eles e as pessoas brancas.
É preciso esclarecer que não se tratava de aspirações por igualdade plena, já que a
escravidão e o estatuto dos pretos/morenos em geral não estavam em causa. Apesar da
contemporaneidade com a Era das Revoluções, o campo de expectativa ainda se mantinha
vinculado aos valores fundamentais do Antigo Regime. Assim, busca-se analisar os fatores que
influenciaram a emergência de posicionamentos que defendiam a transformação do status dos
pardos em súditos habilitados. Entre eles, destaca-se a legislação promulgada pelas monarquias

1
Texto apresentado no 10º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, em ambiente virtual (UNIFESP e
UNESP), de 11 a 13 de maio de 2021. Anais completos do evento disponíveis em
http://www.escravidaoeliberdade.com.br/
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Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. E-mail: cila_lima@yahoo.com.br. Pesquisa desenvolvida
com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) entre os anos de 2013-2017.

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ibéricas após a década de 1760 e que permitia mudanças legais no estatuto jurídico de alguns grupos
sociais. No caso português, se trata do alvará de 16 de janeiro de 1773 e, no caso espanhol, do
conjunto de leis denominado como Gracias al Sacar, de 1795.
A estrutura imperial dos reinos ibéricos e os processos sociais compartilhados tornam viável
e coerente o emprego da abordagem comparada de um problema comum, qual seja, as pressões por
mudança do estatuto jurídico dos pardos. Ao fim da comunicação, espera-se demonstrar que as
respostas fornecidas pelas monarquias foram distintas entre si, o que abre caminhos para pensar as
particularidades de cada sociedade em tela.

Os pardos da Ibero-América: estatuto jurídico e condição social

A mestiçagem constituiu um dos fenômenos sociais mais característicos da América ibérica,


imprimindo traços específicos à estrutura sociojurídica que ordenava aquela ampla configuração
social. O crescimento demográfico e as funções sociais desempenhadas por essas populações desde
o século XVII dotaram-nas de um significativo peso político, sobretudo durante as décadas finais do
século XVIII. O equilíbrio de poder que caracterizava as sociedades coloniais dependia do controle
social exercido sobre essas populações, daí a necessidade de submetê-las a um estatuto jurídico
específico. Nas regiões onde a escravidão africana foi relevante, uma série de estigmas sociais e de
restrições jurídicas foram impostas aos grupos mestiços em decorrência da infâmia gerada pelo
cativeiro. Estabelecidas nos territórios espanhóis a partir do final do século XVI e de meados do
século seguinte nos domínios portugueses, as leis de inabilitação excluíram os mulatos e seus
descendentes das funções sociais de prestígio e do recebimento de honras e dignidades. Resultado
das relações sociais, a legislação cumpria a função de assegurar o diferencial de poder entre brancos
e pessoas de origem escrava.3

3
As referências sobre as relações de poder entre os grupos sociais seguem algumas das proposições de Norbert Elias.
ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008, pp.77-112; ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L.
Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Trad. Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 19-50.

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A intensificação dessas restrições, porém, ocorreu ao longo do século XVIII e as


transformações internas às sociedades coloniais ajudam a explicar o fenômeno.4 As mudanças de
status vivenciadas por famílias e indivíduos pardos ao longo do tempo, somadas ao crescimento
demográfico do grupo, afetavam diretamente os grupos de poder local, tornando evidente a
permeabilidade do sistema social. A dedicação ao artesanato, ao pequeno comércio e às artes, os
serviços prestados ao Estado nas milícias e a incorporação da conduta moral dominante foram
fatores que contribuíram para a ascensão social de famílias e indivíduos pardos.5 Plenamente
integrados à cultura política dominante, pressionavam as Coroas para terem acesso a cargos e
privilégios, o que aprofundava ainda mais a mudança de status em curso. As monarquias, por vezes
arbitrando contrariamente aos interesses das elites locais, jogavam um papel importante na
configuração dos equilíbrios de poder internos à sociedade colonial. Na passagem para o século
XIX, somavam-se ao quadro interno as tensões relativas à Era das Revoluções, o que potencializou
significativamente o papel dos pardos.

Mudança de status por meio da graça régia

Nas sociedades de tipo corporativo, a posição desigual ocupada pelos grupos na estrutura
social era justificada como algo natural. A mobilidade era entendida como algo excepcional e
condicionada à passagem do tempo. No entanto, os reis tinham o direito de transformar o status dos
vassalos beneméritos – uma forma de emendar a lei para casos específicos.6 Dentro dessa lógica, os

4
LOCKHART, James; SCHWARTZ, Stuart. A América Latina na época colonial. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, p. 367-371; MATTOS, Hebe Maria. “Black troops” and hierarchies of color in the Portuguese Atlantic
world: the case of Henrique Dias and his black regiment. Luso-Brazilian Review, v. 45, n. 1, pp. 6-29, 2008; TWINAM,
Ann. Purchasing whiteness: pardos, mulatos and the quest for social mobility in the Spanish Indies. Stanford: Stanford
University Press, 2015, p. 102; SOUZA, Priscila de Lima. “Sem que lhes obste a diferença de cor”: a habilitação dos
pardos livres na América portuguesa e no Caribe espanhol (c. 1750-1808). Tese – Doutorado em História. São Paulo:
Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 2017, pp. 52-62.
5
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005;
TWINAM, Ann. Purchasing whiteness…, pp. 81-150.
6
RODULFO CORTES, Santos. El régimen de “las Gracias al Sacar” en Venezuela durante el periodo hispánico.
(Tomo 1). Caracas: Biblioteca de la Academia Nacional de la Historia, 1978, pp. 101-106; HESPANHA, António
Manuel. A mobilidade social na sociedade de Antigo Regime. Tempo, v. 11, n. 21, pp. 121-143, 2006.

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súditos pardos que comprovassem as suas qualidades distintivas e os serviços prestados ao Estado
teriam a possibilidade de obter privilégios que lhes eram negados em razão da inabilitação. Os
cargos na baixa burocracia das cidades e nas milícias coloniais foram vias típicas de ascensão para
esses indivíduos e suas famílias. No entanto, era comum que funções sociais de maior prestígio
fossem objeto de disputas entre pardos e brancos, o que quase sempre redundava em demandas e
mais demandas dirigidas aos Conselhos de Estado. Cabia às Coroas a função de arbitrar os
conflitos.
Tanto pardos como brancos recorriam aos reis a fim de lograr a função almejada ou
preservar uma posição já alcançada. As contestações invariavelmente assentavam-se na vinculação
dos pardos à impureza de sangue e a condutas moralmente desviantes dos padrões dominantes.7
Nessas situações, os pardos necessitavam de permissão régia para que pudessem desempenhar
determinados ofícios, o que recebia o nome de “dispensa”. Esta consistia em mecanismo de isenção
das leis gerais e concedido como uma exceção. A prática era corrente no império espanhol e
remontava ao século XVII, mas foi paulatinamente normatizada a partir da ascensão dos Bourbons.
Muitas dessas dispensas eram condicionadas ao pagamento de taxas.8 A formalização e frequência
dessa figura jurídica na monarquia portuguesa não são equiparáveis ao caso espanhol. Somente
corporações dotadas de grande prestígio e poder tendiam a ser mais exigentes quanto a esse
quesito.9
Na América espanhola, as dispensas tinham um duplo efeito. Ao mesmo tempo que
possibilitavam o acesso de pardos a cargos e funções sociais, reconheciam e perpetuavam a
vinculação do grupo à impureza de sangue. A linguagem dos estigmas era reproduzida pelos

7
PESSOA, Raimundo Agnelo Soares. Gente sem sorte: Os mulatos no Brasil colonial. Tese – Doutorado em História.
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 2007; SOUZA, Priscila de Lima. “Sem que lhes obste a
diferença de cor”..., pp. 74-100.
8
RODULFO CORTES, Santos. El régimen de “las Gracias al Sacar”…, pp. 115-116.
9
OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Suplicando a “dispensa do defeito da cor”: clero secular e estratégias de
mobilidade social no Bispado do Rio de Janeiro – século XVIII. In: XIII Encontro de História Anpuh-RJ. Rio de
Janeiro: Seropédica, 2008; RAMINELLI, Ronald. Impedimentos da cor: mulatos no Brasil e em Portugal c. 1640-1750.
Varia História, Belo Horizonte, v. 28, n. 48, pp. 699-723, jul./dez. 2012; STUMPF, Roberta. Formas de venalidade de
ofícios na monarquia portuguesa do século XVIII. In: STUMPF, Roberta; CHATURVEDULA, Nandini (Orgs.).
Cargos e ofícios nas monarquias ibéricas: provimento, controle venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: CHAM,
2012, pp. 279-298.

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próprios requerentes. Assim o fez Juan de la Cruz y Mena, morador da cidade de Bayamo, que,
buscando o ingresso de seus seis filhos na Universidade de Havana, solicitou ao rei “se digne Su
Majestad católica dispensarles estos precisos defectos americanos”.10 Por sua vez, nos pedidos de
dispensa encaminhados ao Conselho Ultramarino por pardos da América portuguesa havia um tom
de incerteza em relação aos impedimentos legais. Ao serem proibidos de atuar como procuradores
na Bahia, Miguel Mendes de Vasconcelos e seu filho homônimo defendiam que naquela capitania
“só se olha para o préstimo das pessoas e não para as cores, para o procedimento e não para um
acidente”.11 Os precedentes de outros procuradores e advogados pardos que atuavam nas capitanias
de Pernambuco e da Bahia também confirmavam as desconfianças dos requerentes. 12 Talvez a
normatização das práticas legais no universo hispânico ajude a entender o contraste entre as
experiências ibero-americanas.13

As reformas sociais

Com o duplo objetivo de recuperar a pujança imperial e dotar as respectivas monarquia de


maior poder, as reformas elaboradas a partir dos reinados de Carlos III (1759-1788) e D. José I
(1750-1777) são objetos de um amplo conjunto de estudos.14 Alguns temas são preponderantes,
destacando-se questões como a fiscalidade, a modernização e expansão dos exércitos, as lutas entre
o poder secular e o religioso e as reformas educacionais. As chamadas reformas sociais, por sua
vez, contam com um repertório de análises mais discreto. Elas se referem às leis dirigidas a aspectos
da estrutura social ibérica, interferindo na configuração dos estatutos jurídicos dos grupos sociais.

10
Cf.: AGI, Santo Domingo, leg. 1357. 1761-1764.
11
Cf.: AHU-Bahia (Avulsos), cx. 83, doc. 33. Anterior a 23 de setembro de 1743.
12
Uma análise detalhada desses requerimentos em SOUZA, Priscila de Lima. “Sem que lhes obste a diferença de cor”...
13
ELKINS, Stanley M. Slavery: a problem in American institutional and intellectual life. Chicago/London: The
University of Chicago Press, 1992; DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 258-259.
14
FALCON, Francisco José Calazans. A Época Pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo:
Ática, 1982; HALPERÍN DONGHI, Tulio. Reforma y disolución de los imperios ibéricos, 1750-1850. Madrid: Alianza
Editorial, 1985.

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Aqui, atenta-se particularmente para os efeitos do alvará de 16 de janeiro de 1773 e para as Gracias
al Sacar sobre as discussões acerca do estatuto jurídico e político dos pardos.
O alvará de 16 de janeiro de 1773 instituiu a lenta e gradual abolição da escravidão em
Portugal e Algarves, determinando a imediata libertação dos indivíduos cuja escravidão remontasse
às bisavós e daqueles que nascessem a partir daquela data. Uma de suas cláusulas tratava dos
libertos e determinou que eles seriam considerados “habilitados para todos os ofícios, honras e
dignidades”. Desse modo, promovia o fim das máculas e restrições legais que incidiam sobre os
libertos e aos seus descendentes. Suas justificativas eram a necessidade de inserção econômica dos
libertos e a equiparação da corte portguesa às nações mais avançadas da Europa, as quais
consideravam a escravidão fator de desumanidade e incivilização.15
As Gracias al Sacar, de 10 de fevereiro de 1795, permitiam a compra de setenta e uma
mercês pelos súditos hispano-americanos. Dentre elas, estava a dispensa da qualidade de pardo ou
quinterón16, o que implicava isenção das restrições legais impostas ao grupo para aqueles que a
adquirissem. O aumento da arrecadação monetária da monarquia17, o reconhecimento da tradição
das dispensas18 e o controle do poder das elites criollas19 têm sido apontadas como as principais
causas da inclusão dos pardos nas cédulas de 1795.
Para além dos objetivos pontuais, essa legislação integrava um programa de reorientações
políticas das monarquias ibéricas ligado à consolidação do Absolutismo. Centralização e reformas
inspiradas em preceitos caros à Ilustração foram os dois eixos do processo. O fortalecimento das
monarquias em relação às corporações dotadas de grande poder – mormente as ligadas à alta
nobreza e à Igreja – passava pelo controle de seus privilégios e imunidades. Se a investida direta

15
Cf.: Alvará com Força de Lei de 16 de janeiro de 1773. In: LARA, Silvia. H. Legislação sobre escravos africanos na
América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Dir. e Coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de
Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. p. 359.
16
De acordo com a complexa classificação étnica hispano-americana, este seria o último grau de mestiçagem. Portanto,
os filhos de um quinterón com branco dariam origem a uma descendência fora das castas de negros. SOUZA, Priscila
de Lima. “Sem que lhes obste a diferença de cor”..., pp. 40-41.
17
RODULFO CORTES, Santos. El régimen de “las Gracias al Sacar”…, Tomo 1, pp. 105-108.
18
TWINAM, Ann. Purchasing whiteness…, pp. 3-34.
19
KING, James. The case of Jose Ponciano de Ayarza: a documento on Gracias al Sacar. The Hispanic American
Historical Review, v. 31, n. 4, pp. 640-647, 1951, p. 644.

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sobre o status social de algumas corporações esbarrava em pactos políticos há muito estabelecidos,
alterações em outras dimensões surtiam o efeito esperado. A complexa rede de interdependências
que conformava as sociedades ibéricas possibilitava transformar aspectos do sistema através da
manipulação de alguns de seus componentes. Não por acaso a habilitação legal de grupos sociais foi
uma tendência da época, pois afetava diretamente os monopólios exercidos pelas corporações
ligadas aos grupos de poder tradicionais. Assim, a orientação política do Absolutismo era promover
certa homogeneização do corpo social mediante a transformação de todos em súditos, sem que isso
significasse o estabelecimento de uma sociedade igualitária. As distinções persistiam como
fundamento da estrutura social, mas o seu estabelecimento e controle seriam prerrogativas régias.
Essa perspectiva de racionalização sobre o corpo social era um dos pontos de convergência com os
princípios da Ilustração.20
A legislação que reiterava o direito régio de transformar a natureza dos súditos causou
impacto considerável nas sociedades coloniais, as quais já passavam por processos de mudança
internos. Assim, o alvará de 16 de janeiro de 1773 e as Gracias al Sacar foram incorporados às
lutas entre indivíduos pardos e membros das elites locais, o que contribuiu significativamente para o
aprofundamento das discussões sobre o estatuto jurídico dos pardos.

Demandas por equiparação e o status político dos pardos

Tanto o alvará de 1773 como as Gracias al Sacar foram alvos de diferentes interpretações
ao serem divulgados entre a população colonial, gerando expectativas que estavam ausentes ou
indefinidas nos textos legais. Quanto ao alvará lusitano, um primeiro aspecto significativo foi o seu
entendimento como uma lei destinada também à América poucos meses após a sua publicação.21

20
GUERRA, François-Xavier. Modernidad e Independencias: ensayos sobre las revoluciones hispânicas. Madrid:
Editorial Mapfre, 1992, p. 23; HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade
e do poder. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). v. 4. Lisboa: Editorial
Estampa, 1993, pp. 121-155.
21
SILVA, Luiz Geraldo. “Esperança de liberdade”: Interpretações populares da abolição ilustrada (1773-1774). Revista
de História, São Paulo, v. 144, p. 107-150, 2001; LIMA, Priscila de. De libertos a habilitados. Interpretações populares

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Um segundo aspecto central dos sentidos conferidos ao alvará foi a sua transformação em medida
que habilitava os pardos para todos os empregos, honras e dignidades. Silenciava-se, desse modo, o
seu caráter emancipacionista, o que é compreensível ao se considerar o aspecto estrutural da
escravidão na América portuguesa.22 No caso espanhol, o texto legal era sintético e limitava-se a
indicar o preço a ser pago para adquirir a dispensa das qualidades de pardo e quinterón. Deixava-se,
desse modo, uma significativa margem para interpretações.
A nova legislação deu lugar a muitas demandas por parte dos súditos americanos. De um
lado, os pardos buscavam obter cargos e privilégios e, de outro, as elites locais manifestavam forte
oposição às suas aspirações. Além disso, integravam o jogo de forças membros de instituições da
administração colonial, como os juizes das Audiências e governadores, além dos conselheiros de
Estado e da própria monarquia. Nas informações geradas a partir de múltiplas perspectivas e
interesses, o que estava em causa era a pertinência dos critérios de inabilitação e, por consequência,
a própria estrutura social colonial.
Os requerimentos encaminhados por indivíduos pardos seguiam fórmulas tradicionais,
ressaltando de modo circunstanciado as qualidades pessoais que tornavam o candidato merecedor
da graça régia. A novidade presente nos requerimentos, porém, eram as expectativas quanto à
habilitação plena dos pardos assentadas no alvará de 1773 e nas Gracias al Sacar. Ao ser
contestado pelas elites locais da vila de Alcântara, capitania do Maranhão, o pardo Vicente Ferreira
Guedes pautava-se no alvará de 1773 para sustentar a predominância do mérito e das capacidades
individuais sobre as qualidades de nascimento.23 Miguel Ferreira de Souza alegava que os pardos e
pretos “foram admitidos como vassalos leais de Vossa Majestade com todos os empregos e honras
do Seu Real Serviço” pela “piedade” do rei D. José I”.24 Já Luiz Gonzaga das Virgens, acusado e
executado como um dos cabeças da Conjuração de 1798, acreditava que por meio do alvará de 1773
“habilita Sua Majestade aos ditos homens pardos manumissos para que sejam dignos de uma radical

dos alvarás antiescravistas na América portuguesa (1761-1810). Dissertação – Mestrado em História. Curitiba:
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Paraná, 2011, pp. 81-87.
22
MARQUESE, Rafael de Bivar. A Dinâmica da Escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos
XVII a XIX. Novos Estudos. São Paulo, n. 74, 2006.
23
Cf.: AHU-Maranhão, cx. 61, doc. 5559. Maranhão, 21 de janeiro de 1784.
24
Cf.: AHU-Minas Gerais, cx. 142, doc. 23. Mariana, 19 de junho de 1796.

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e genérica introdução nos atos e ministérios públicos e civil”. 25 Joseph María Cowley, morador de
Havana, entrou com um pedido de dispensa do “defecto” de pardo “a fin de poder, y sus sucesores,
ejercer los encargos y comisiones que las desempeñan personas blancas del estado llano”. 26 Para
Francisco de la Cruz Marques, da Província de Cumaná, a dispensa destinava-se “para que no le
sirva de impedimento esta diferencia o nota de color para el uso, trato, alternativa para entrar en
religión, cursar letras en medicina, vestir hábitos clericales, ascender al sacerdocio”.27
Longe de serem instrumentos objetivos, as leis eram alvos de múltiplas leituras e interesses.
Ademais, não havia uma política homogênea atrelada a esses dispositivos legais. É curioso que a
coroa portuguesa e seus conselheiros raramente negassem enfaticamente a tese conforme a qual o
alvará de 1773 havia habilitado os pardos da América portuguesa. No caso espanhol, o impasse era
se as dispensas previstas pela lei de 1795 tornavam o requerente e sua descendência totalmente
habilitados para todos os ofícios e honras ou se apenas garantiam a dispensa individual e restrita ao
exercício de ofício específico. Na passagem para o século XIX, a questão parda constituía um
problema político comum enfrentado pelas monarquias ibéricas. Suas respostas, no entanto,
seguiram caminhos diferentes.
As tensões envolvendo o estatuto jurídico dos pardos hispano-americanos evoluíram
rapidamente, e, cerca de uma década após a promulgação das Gracias al Sacar, discutia-se se os
pardos deveriam ou não ser igualados aos brancos. As pressões exercidas pelos pardos, os protestos
das elites locais e as resoluções da Coroa – muitas vezes conflitantes – contribuíram para essa
radicalização. O caso da Capitania Geral da Venezuela é um bom termômetro para entender o
encaminhamento da situação, pois ele foi referencial nas resoluções do Conselho de Índias. Desde a
década de 1780, indivíduos pertencentes ao “grêmio dos pardos” buscavam acesso a cargos e
privilégios monopolizados pelos brancos que gozavam do status de nobreza local. 28 Com a

25
Cf.: Autos da Devassa da Conspiração dos Alfaiates. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1998, Vol. I, p. 226.
26
Cf.: AGI, Santo Domingo, leg. 1493. 1797.
27
Cf.: Representación de 12 de marzo de 1806; petición de 26 de septiembre de 1807. In: RODULFO CORTES, Santos.
El régimen de “las Gracias al Sacar”…, Tomo 2, pp. 260-265.
28
Cf.: Petición de Juan Gabriel de Landaeta de 14 de febrero de 1788. In: RODULFO CORTES, Santos. El régimen de
“las Gracias al Sacar..., Tomo 2, pp. 71-72; Petición de Diego Mejías Bejarano de 22 de julio de 1793. In: RODULFO
CORTES, Santos. El régimen de “las Gracias al Sacar..., Tomo 2, p. 38.

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promulgação da lei de 1795, essas expectativas pareciam plenamente realizáveis e contribuíram


para ampliar as pressões exercidas pelos pardos. As resoluções régias favoráveis a algumas
demandas aprofundaram ainda mais as tensões atinentes aos efeitos das Gracias al Sacar. As elites
locais manifestavam o descontentamento com a monarquia por esta permitir que pessoas impuras de
sangue se tornassem aptas para todas as funções até então “propias de un hombre blanco limpio”.
Para os membros do Cabildo de Caracas, “este tránsito [...] es espantoso a los vecinos y naturales de
América”.29 As considerações sobre a lei de 1795 destacavam os seus efeitos para a estabilidade
política das colônias. Para um fiscal do Conselho de Índias que avaliou a situação da Venezuela, os
pardos não deveriam ser agraciados com a habilitação plena e familiar, pois isso desestruturaria a
“clasificación de clases” que sustentava o domínio monárquico na América.30
Em 1802 um pedido curioso chegou ao Conselho de Índias. Tratava-se de uma carta do
provincial dos Franciscanos da Guatemala, solicitando que os pardos e zambos31 tivessem acesso a
todos os privilégios usufruídos pelas pessoas pertencentes à “nobleza comun”, podendo, assim,
“distinguirse y hacerse merecedores con Vuestra Majestad de la investidura de maiores empleos y
honores”.32 Essa manifestação é importante, pois, somada aos demais casos, levou à formação de
uma consulta geral aos órgãos consultivos da Coroa para decidir “si se han de igualar los pardos y
mulatos con las demás clases de españoles”. A Contadoria33 e o Conselho de Índias seriam
responsáveis pelo futuro dos pardos. No entanto, nunca se chegou a um parecer final em
decorrência da invasão da Espanha pelas tropas napoleônicas em fevereiro de 1808. Alguns
encaminhamentos, contudo, já estavam em curso e contêm elementos importantes para
compreender as linhas gerais das discussões.

29
Cf.: Informe del Ayuntamiento de 28 de noviembre de 1796…
30
Cf.: Consulta de julio de 1806. In: RODULFO CORTES, Santos. El régimen de “las Gracias al Sacar”…, Tomo 2,
p. 254.
31
Designativo étnico para as pessoas de origem indígena e negra.
32
Cf.: AGI, Guatemala, leg. 919. Documento transcrito e disponibilizado por MATTHEW, Laura E. “Por que el color
decide aquí en la mayor parte la nobleza”: una carta de Fr. José Antonio Goicoechea, Guatemala, siglo XIX.
Mesoamérica, n. 55, pp. 153-167, 2013.
33
Órgão pertencente ao Conselho de Índias e dedicado à análise dos assuntos ligados à Fazenda Régia.

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As considerações eram de ordem econômica e política.34 Para a Contadoria, a habilitação


dos pardos teria implicações significativas para o Tesouro. Tendo em vista que mulatos e pardos
eram sujeitos a tributos específicos e que o peso demográfico do grupo era significativo em muitas
regiões, a transformação do estatuto jurídico resultaria também em isenções fiscais. 35 Em uma
época marcada por crescentes gastos com o aparato defensivo do império, prescindir dessa fonte de
recursos não parecia algo razoável. Já as considerações políticas correlacionavam a soberania régia
ao equilíbrio de forças na América. Argumentava-se que era prerrogativa inquestionável do rei
dispensar os vassalos beneméritos das “disposiciones de las leyes y los estatutos de los cuerpos
civiles”. Era uma resposta clara aos protestos de corporações como os cabildos e as universidades,
os quais buscavam fazer prevalecer as suas autonomias e privilégios em detrimento da orientação
mais centralizadora da monarquia. Para os contadores, era necessário encontrar um “medio
prudente” para resolver o problema. Do ponto de vista dos consultores régios, a igualdade entre
pardos e brancos não deveria ser outorgada, mas, ao mesmo tempo, era fundamental a continuidade
da política de favorecimento dos pardos beneméritos. Alertava-se para as “consecuencias funestas”
decorrentes da extinção das dispensas, sobretudo em relação à fidelidade de “unas gentes [...] que
son absolutamente necesarias para la conservación y fomento de aquellos dominios”.
O realismo presente nessas observações não era exclusivo dos membros da Contadoria.
Alguns anos antes, os pardos de Caracas interrogavam a Coroa sobre os efeitos da possível
derrogação das Gracias al Sacar sobre os vínculos com a monarquia: “que aliciente u estímulo
bastante poderoso se les podrá ofrecer para que abracen sus intereses y los defiendan como
próprios?”.36 A época tornava a questão anda mais delicada. Em 1808, o mundo colonial já tinha
sido palco de duas revoluções emancipacionistas e o caso de Saint-Domingue demonstrava as
potencialidades dos grupos sociais subalternos nesses processos. Além disso, o Caribe espanhol
vinha sendo assolado por sublevações e revoltas inspiradas nos novos ideais desde meados da

34
Cf.: AGI, Guatemala, leg. 743. Janeiro de 1808.
35
McLEOD, Murdo J. Aspectos de la economia interna de la América española colonial: fuerza de trabajo, sistema
tributário, distribución e intercambios. In: BETHELL, Leslie (Ed.). História de América Latina. (Vol. 3 - América
Latina colonial: economía). Barcelona: Editorial Crítica, 1990, pp. 148-190.
36
Cf.: Representación del gremio de pardos libres de 9 de junio de 1797..., p. 120.

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década de 1790. Diante desse quadro, o parecer da Contadoria visava ao estabelecimento de regras
objetivas quanto à concessão das dispensas. Recomendava-se que elas habilitassem para todas as
funções civis, mantendo os âmbitos político e religioso sob o monopólio das elites criollas. A
transformação do estatuto jurídico seria exclusivamente individual e dependeria, além do
pagamento, dos méritos pessoais de cada candidato. Assegurava-se, portanto, a tradição das
dispensas estabelecida desde o século XVII e a vinculação dos pardos com os ideais de impureza de
sangue e do “defeito”.
As notícias sobre o alvará de 1773 começaram a circular na América portuguesa logo após a
publicação da lei em Portugal, sendo incorporada às disputas locais por cargos e privilégios. No
entanto, assim como na América espanhola, foi a partir da década de 1790 que o teor das discussões
sofreu alterações significativas, o que transformou a questão parda em assunto de primeira ordem
para a administração colonial. A crença conforme a qual os pardos estavam habilitados para “todos
os ofícios, honras e dignidades” rompeu os limites das capitanias costeiras e disseminou-se por
várias regiões do interior. Ademais, as demandas ultrapassaram a esfera dos interesses individuais e
ganharam conotações cada vez mais coletivas, transformando os pardos em um grupo de pressão
específico e reconhecido como tal. O aumento das pressões exercidas pelos pardos foi proporcional
ao crescimento das contestações por parte das elites locais, que cerraram fileiras a fim de endurecer
as restrições legais contra o grupo. Embora a dinâmica sociológica das disputas entre pardos e
brancos fosse muito semelhante ao que ocorreu nos espaços espanhóis, os encaminhamentos da
questão na América portuguesa foram diversos.
Devido aos limites espaciais deste texto, me aterei aos casos das capitanias da Bahia e de
Goiás para discutir a configuração das lutas políticas relacionadas aos debates sobre o estatuto
jurídico dos pardos. Nessas localidades, os pardos articularam-se coletivamente a fim de obter o
reconhecimento do que acreditavam ser o novo status do grupo, precisamente o de habilitados.
Entre fins da década de 1790 e o início do século XIX, Vila Boa, em Goiás, e Salvador, na
Bahia, foram palco de tensões envolvendo indivíduos pardos, integrantes das elites locais e
governadores. Em Goiás, as turbulências políticas emergiram em razão da suposta proteção

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conferida pelos governos da capitania aos pardos desde a década de 1780.37 Os governadores Luis
da Cunha Meneses (1778-1783) e D. João Manuel de Menezes (1800-1803) eram denunciados por
apoiarem a inserção de indivíduos pardos ou que eram cônjuges de pardas na câmara municipal
para exercerem cargos como os de tabelião e vereador. Além disso, fomentavam a expansão das
milícias de pardos e pretos e os privilégios devidos a seus oficiais. Para as elites locais, a condição
mestiça dos pardos constituía um “defeito da natureza”, o que justificaria a sua exclusão dos cargos
de maior prestígio e poder.38 O governador D. João Manuel de Menezes contrapunha-se aos
protestos dos camaristas de Vila Boa com base no alvará de 1773, que teria extinguido a
inabilitação parda. Para ele, as restrições que recaíam sobre os pardos eram frutos de
“preocupações” baseadas no “quimérico acidente do defeito da cor”.39 Em representação enviada ao
Príncipe Regente em 1803, os pardos argumentavam “que não deverão ser tratados os suplicantes
como inábeis para qualquer Emprego da República, a bem do Estado, sendo que tenham a
capacidade e inteligência precisa para os exercer, só pelo defeito da cor”. As leis de habilitação dos
libertos e dos cristãos-novos eram explicitamente citadas para embasar a demanda. 40 Na pequena
configuração social de Goiás, o novo estatuto jurídico dos pardos aparecia como um dado objetivo e
irrefutável em razão das leis decretadas no reinado de D. José I. A legislação confirmava o processo
de mudança de status já em andamento; era o reconhecimento das capacidades e merecimentos dos
“vassalos mais úteis ao Estado”.
Em Salvador, alterações na estrutura de comando das milícias de pardos foram o estopim de
uma crise institucional que levaria à formulação de uma resposta contundente por parte da Coroa.
Como se sabe, os postos militares constituíam uma das principais vias de diferenciação social para
pardos e pretos, pois, além de viabilizarem o exercício de poder sobre os seus pares, signifcavam
acesso a signos de distinção e privilégios.41 Ao verem os seus “direitos” atacados, os integrantes do

37
SOARES, Márcio de Souza. Pretos e pardos na fronteira do Império: hierarquias e mobilidade social de libertos na
capitania de Goiás (século XVIII). In: Anais do IV Seminário de Pesquisa do ESR, Campos dos Goytacazes, 2011.
38
Cf.: AHU-Goiás, cx. 45, doc. 2650. Vila Boa, 2 de março de 1803.
39
Idem.
40
Cf.: AHU-Goiás, cx. 47, doc. 2700. Vila Boa, 5 de fevereiro de 1803.
41
MCALISTER, Lyle. The “fuero militar” in New Spain, 1764-1800. Gainesville: University of Florida Press, 1957;
KLEIN, Herbert S. The colored militia of Cuba: 1568-1868. Caribbean Studies, v. 6, n. 2, pp. 17-27, 1966; RUSSELL-

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Quarto Regimento de Milícias, composto por homens pardos, recorreram à monarquia por meio de
requerimentos. Conjuntamente à defesa de seu papel para a manutenção da sociedade colonial,
denunciavam a soberba dos brancos, que acreditavam “com sinistro entusiasmo que a cor branca
influía nos indivíduos alguma virtude, ou merecimento”.42 Além disso, questionavam a manutenção
da inabilitação legal após o alvará de 1773. A contenda envolvia ninguém menos que D. Fernando
José de Portugal, que governava a Bahia desde 1788 e fora o responsável pela reforma militar.
Ligado aos grupos de poder locais e arraigado aos princípios tradicionais de diferenciação social,
para ele “não convém, contudo, em um país de conquista, em que esta gente compõe uma grande
parte da população, que seja demasiadamente igualada à classe dos homens brancos”.43 A
admoestação à rainha D. Maria I era embasada no exemplo recente da Conjuração de 1798, que,
conforme investigação conduzida por D. Fernando, teve como lideranças quatro homens pardos.44
Coube ao Conselho Ultramarino a tarefa de propor soluções para o problema sem arriscar a
estabilidade social. Para os conselheiros, o assunto exigia muito cuidado, sobretudo “na presente
época”. No início do século XIX, era impossível para as administrações imperiais ibéricas tratar as
questões coloniais desconsiderando os acontecimentos mais amplos da Era das Revoluções. Assim
como no caso espanhol, o controle das tensões sociais dependia da afirmação da soberania régia. No
entanto, os conselheiros portugueses foram além de seus contemporâneos hispânicos. Afirmavam
que “todos os seus fiéis vassalos, brancos, pardos ou pretos, recebem sem diferença dos acidentes
de que são dotados aquele feliz amor e agasalho, que não diminui, antes sim exalta a soberania do
trono”.45 Esse princípio da centralização monárquica, no entanto, não era respeitado na América,
pois os brancos manipulavam o ideário da impureza de sangue e do “defeito” para manter os pardos

WOOD, A. J. R. Escravos e libertos..., pp. 127-142; MATTOS, Hebe. “Black Troops”…; SILVA, Luiz Geraldo.
Gênese das milícias de pardos e pretos na América portuguesa: Pernambuco e Minas Gerais, séculos XVII e XVIII.
Revista de História, São Paulo, n. 169, pp. 111-144, julho/dezembro 2013.
42
Cf.: AHU-Bahia (Avulsos), cx. 206, doc. 35 e 41. Lisboa, 28 de junho de 1797.
43
Cf.: AHU-Bahia (Castro e Almeida), cx. 99, doc. 19326. Bahia, 4 de abril de 1799.
44
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Conflitos raciais e sociais na sedição de 1798 na Bahia. In: II Centenário da Sedição
de 1798 na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia: Secretaria da Cultura e Turismo, 1999, pp. 37-49; VALIM,
Patrícia. Da sedição dos mulatos à conjuração baiana de 1798: a construção de uma memória histórica. Dissertação –
Mestrado em História. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 2007.
45
Cf.: AHU-Bahia (Avulsos), cx. 217, doc. 4. Lisboa, 13 de janeiro de 1800.

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e pretos subordinados e desprezados. A radicalidade do discurso é evidente. Atacava-se


explicitamente os critérios tradicionais de diferenciação social, sobretudo a ideia de “defeito da
natureza” associada aos pardos.
As recomendações do Conselho tiveram acolhida positiva e foram incorporadas à legislação
régia. Ainda que o objetivo principal do alvará de 17 de dezembro de 1802 fosse dotar as milícias
de maior aprimoramento técnico, ele continha aspectos políticos diretamente relacionados às
tensões envolvendo os milicianos pardos. Por meio desse dispositivo legal, garantia-se o acesso dos
pardos e pretos aos postos superiores das milícias, uma demanda cara a muitos pardos e gatilho das
contendas soteropolitanas. Ademais, declarava-se que a “diferença de cor” entre os vassalos não
constituía critério válido para o estabelecimento de “diversos direitos entre aqueles em que se não
dá a uniformidade deste acidente”.46 Essa passagem negava explicitamente os fundamentos
tradicionais da inabilitação ligados as referenciais do “defeito” e da impureza de sangue, reforçando
as percepções conforme as quais os pardos estavam, de fato, habilitados.

Considerações finais

Na passagem para o século XIX, a inserção social dos pardos constituía desafio comum às
monarquias ibéricas e estava diretamente relacionado à estabilidade do mundo americano. Não se
tratava exclusivamente de discussões sobre o status jurídico do grupo, mas sim de reflexões sobre
os aspectos político mais amplo. Estava em causa o próprio significado político daquele segmento
social. Tanto para a administração espanhola quanto para a portuguesa, as respostas conferidas à
questão parda tinham o potencial de desestabilizar o sistema social. Não surpreende, portanto, que
ambas as Coroas tenham correspondido a parte de seus anseios por habilitação. No entanto, o
alcance dessas medidas seguiu orientações diferentes. No caso espanhol, em linhas gerais, o direito
à habilitação baseou-se na tradição das dispensas conferidas a título individual e outorgadas como
exceções. O condicionamento da habilitação ao processo de dispensa, por sua vez, reiterava a

46
Cf.: AHU-Bahia (Castro e Almeida), cx. 131, doc. 25846.

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vinculação dos pardos à impureza de sangue. No caso português, a questão não teve um
encaminhamento objetivo, como parece ter sido a tendência espanhola. Sem derrogar positivamente
a inabilitação dos grupos ligados à escravidão, a Coroa, no entanto, fomentava os seus processos de
mudança de status. Ao declarar que a cor constituía mero acidente e não um “defeito da natureza”,
como no alvará de 1802, minava-se as bases do sistema de hierarquização social. O porquê dessa
divergência entre as monarquias ibéricas é uma questão extremamente instigante e que merece um
estudo específico.

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