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LITOR

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NÚME
RO 5 - 20
23

Debatendo o ‘Novo’ Ensino médio


BIÊNO 2022-24
GESTÃO
Resistir e Conquistar
Editor Coordenadora Geral Roberta Raquel
Michel Goulart da Silva Coordenador Geral Alessandro Eziquiel da Paixão
Editor Assistente Secretária Geral Carolina Fontoura Cartana
Alessandro Eziquiel da Paixão Secretária Geral Letícia Pinto Rabelo Adjunta
Revisão Tesoureiro Geral Fernando José Braz
Maître Assessoria Acadêmica Tesoureiro Geral (Alda) Aldalúcia Tereza da Rosa Adjunta
Diagramador Secretário de Comunicação e Formação Política e Sindical
André Altmann Herlon Iran Rosa
Capa Adjunta
André Altmann Michele Leão de Lima Ávila
Secretário de Assuntos Legislativos Jurídicos
Expedição Ivan Furmann
SINASEFE Litoral Adjunta
Rua Pedro Honorato Amorim, n 169, (Rosi) Rosiane Magalhães de Lima
apto 101 Centro, Secretário de Pessoal
Camboriú/SC, 88340-215 Keli Castro Carneiro
Tel.: (47) 3365-1982 Adjunto
www.sinasefe-ifc.org Fabio Alves dos Santos Diasrneiro
Secretária de Representação Unidades Araquari/
Distribuição Gratuita São Francisco/São Bento do Sul
Andressa Torinelli

P861 Secretária de Representação Unidades Araquari e


Potemkin, nº 5 (mai. 2022) / Sinasefe Litoral - Camboriú,
São Francisco do Sul Mário
SC:
Sinasefe Litoral, 2023. Sérgio Cardoso da Silva
55 p. : 22cm
Secretária de Representação Unidades Camboriú/Brusque
Anual
vol. 1, n. (mai. 2023) Rodolfo Augusto Bravo de Conto
ISSN 2674-8762
Disponível em: https://www.potemkin.sinasefe-ifc.org Adjunto(a) Débora de Fátima Einhardt Jara
Secretária de Representação Reitoria/Unidade Blumenau
1. Ensino profissional. 2. Formação profissional. 3. Institu-
tos Federais. 4. Sindicatos - Periódicos. Renato de Souza Muniz
CDU 371.425 Adjunto(a) Leandro Regis
APRESENTAÇÃO
O capitalismo em crise e a
formação política dos trabalhadores
por Michel Goulart da Silva
Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Realizou pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação e
no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Atua como Técnico em Assuntos Educacionais no Instituto Federal Catarinense (IFC).

Estamos publicando mais uma edição O Brasil não escapa desse cenário de os interesses econômicos privados que
da revista Potemkin. Essa edição é tripla crise - econômica, política e embasam essa reforma e seus desdo-
publicada ainda em meio às conse- sanitária. O número de mortos da cri- bramentos e como isso vem impactan-
quências da crise econômica, que im- se sanitária e os dados de variantes do na vida de trabalhadores e da ju-
pactou o mundo nos últimos anos, e da e novos casos ainda crescem, mesmo ventude.
pandemia provocada pela Covid-19, que em menor velocidade. Em âmbi-
que ainda contamina e leva à morte to econômico, inflação e desemprego Espera-se que essas reformas sejam
pessoas em todo o mundo. Os capita- continuam a assolar o país, diante revogadas pelo novo governo, ainda
listas, diante disso, procuram, de todas de uma classe trabalhadora que tem que seja preciso muita mobilização
as formas, superar a crise, mesmo que poucas perspectivas de reajuste sala- para garantir essa medida. Na cam-
seja preciso expor os trabalhadores à rial e melhoria em suas condições de panha eleitoral e mesmo no governo
contaminação ou mesmo levando o vida. E politicamente o novo governo, de transição, pode-se ver as contra-
mundo a mais uma guerra. encabeçado por Lula, não deve con- dições que marcarão o futuro governo,
seguir superar a crise institucional que mostrando a necessidade de lutar pela
O tema da guerra é justamente o tema atravessa o país há anos. Esta edição independência dos sindicatos e demais
do artigo que abre esta edição da re- da revista é publicada justamente no entidades no sentido de garantir os in-
vista. A guerra na Ucrânia é expressão momento final do governo Bolsonaro teresses da maior parte da população.
tanto dos interesses do imperialismo, e diante da perspectiva de mudanças
representados pela OTAN, como da que talvez possam ser trazidas por um Esta edição da revista marca também
burguesia russa, representada pelo novo governo do PT. o fim dos trabalhos da equipe edito-
governo Putin. Os dois lados, ambos rial que vem trabalhando na Potem-
reacionários, procuram suas próprias Entre os marcos dessa crise, especial- kin desde sua primeira edição, tendo
saídas para resolver a crise. Para tan- mente nos governos de Temer e de Bol- recebido o inestimável apoio de todas
to, passados meses desde seu início, sonaro, estão uma série de reformas de as gestões que estiveram à frente do
o conflito segue, movimentando a in- caráter privatista e de ataque a direi- sindicato. Mesmo com essa mudança,
dústria de guerra, as tensões políticas tos dos trabalhadores, como a da pre- certamente a revista continuará a ser
e os acordos econômicos, mas ainda vidência e a trabalhista. Nesta edição expressão das reflexões teóricas de tra-
longe de garantir a superação da cri- da revista, dedicamos alguns textos a balhadores dos institutos federais, es-
se em sua face tanto econômica como uma de suas principais expressões na pecialmente do IFC, e continuará a ser
política. educação, a reforma do ensino médio. um instrumento de formação política
Procura-se mostrar, principalmente, dos filiados do SINASEFE Litoral.
SUMÁRIO

06
Reforma do Ensino Médio no Brasil:
precarizar o público para transformá-lo em mercadoria para o privado
por Marcio Bernardes de Carvalho

22
“No chão da escola e na consciência dos professores”: como não se constrói uma Reforma de ensino
por Amanda Hebling do Amaral

35
Uma nova guerra, uma velha lição
por Ricardo Scopel Velho

45
Um dicionário para pesquisadores do ensino de sociologia
por Fabio Braga do Desterro

50
Notas sobre a Revolução Brasileira
por Renan Eduardo da Silva e Marlene Tirlei Koldehoff Lauermann
6

REFORMA DO ENSINO MÉDIO NO BRASIL:


PRECARIZAR O PÚBLICO PARA TRANSFORMÁ-LO
EM MERCADORIA PARA O PRIVADO
por Marcio Bernardes de Carvalho
Pedagogo, historiador, Mestre e Doutor em Educação. Professor substituto do Instituto Federal Catarinense – IFC, Campus Camboriú.
E-mail: marciojr8@yahoo.com.br e marcio.bernardes@ifc.edu.br

RESUMO
Este artigo tem por objetivo apresentar como tal (Contra) Reforma do Ensino Médio no Brasil (Lei
13.415/2017) impacta a educação estatal (pública) brasileira assumindo a categoria totalidade como
central para eleição das fontes, análise e exposição. Serão três subdivisões centrais para a exposição. A
primeira delas é uma rápida pesquisa de tipo revisão bibliográfica que tem por objetivo apresentar e
analisar de forma crítica o conjunto das produções sobre o tema verificando autores e obras mais uti-
lizadas. Em um segundo momento a análise trará as características da Educação brasileira e do Ensino
Médio por meio de obras referenciadas pelo item anterior ao mesmo tempo que também realizo um
esforço de atualizar, de forma crítica, estas características. Este movimento será finalizado, neste segun-
do item, verificando como esta reforma (contrareforma) de 2017 atinge a educação estatal (pública).
Para finalizar este artigo propomos a reflexão da atuação dos trabalhadores da educação através da
resistência ativa proposta por Saviani (2020). Como autores centrais utilizamos Karl Marx, Dermeval
Saviani, Gaudêncio Frigotto e Marise Ramos para contextualizar, analisar e criticar o tema proposto.

Palavras-chave: Ensino Médio, Reforma, Brasil, Educação

ABSTRACT
This article aims to present how such a reform (or counter-reform) impacts Brazilian state (public) edu-
cation, assuming the category totality as central to the choice of sources, analysis and exposition. There
will be three central subdivisions for the exhibition. The first one is a quick bibliographic review type
research that aims to present and critically analyze the set of productions on the subject, verifying the
most used authors and works. In a second moment, the analysis will bring the characteristics of Brazi-
lian Education and High School through works referenced by the previous item at the same time that I
also make an effort to update, in a critical way, these characteristics. This movement will be finalized,
in this second item, by verifying how this reform (counter-reform) of 2017 affects state (public) edu-
cation. To conclude this article, we propose a reflection on the performance of education workers
through the active resistance proposed by Saviani (2020). As central authors we used Karl Marx, Der-
meval Saviani, Gaudêncio Frigotto and Marise Ramos to contextualize, analyze and criticize the pro-
posed theme.

Keywords: High School, Reform, Brazil, Education


7

PRIMEIRO MOMENTO: cimento como uma rica fonte de pesquisa e


1 Utilizarei “estatal (pública)”
atualização sobre nossos objetos. Não é pos-
RETOMANDO O CONJUNTO DE no feminino ou masculino para
sível tratar de um tema com tanto debate
PRODUÇÕES CONTEMPORÂNEAS indicar a educação financiada e
sem recorrer a uma atualização das últimas
gerida pelo estado em suas três
produções acadêmicas.
A Reforma do Ensino Médio materializada esferas (federal, estadual e mu-
através da Lei 13.415/2017 (BRASIL, 2017) nicipal). O conceito de “públi-
Elejo como primeira fonte de dados o Catálo-
tem sido uma pauta recorrente nas produções co” no Brasil é uma ilusão, pois
go de Teses e Dissertações da Coordenação de
acadêmicas nos últimos anos, bem como nos “o Estado ou o que estatal não é
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superi-
debates com profissionais da área. Talvez es- público ou do interesse público,
or (CAPES2 ) onde inseri no buscador os de-
tejamos vivenciando um momento histórico mas tende ao favorecimento dos
scritores “Ensino”, “Médio”, “Lei” e “13.415” interesses privados” (SANFE-
de popularização do debate sobre o Ensino
além de outros filtros que produziram os
3
LICE, 2005, p.91).
Médio no Brasil, não de forma positiva, mas
quantitativos expostos no quadro abaixo:
sim impulsionados por um ataque que pre-
2 Vinculada ao Ministério da
cariza ainda mais a educação estatal (públi-
Quadro I: Teses com descritores “Ensino”, Educação do Brasil.
ca) 1 brasileira.
“Médio”, “Lei” e “13.415” – 2018 a 2021

3 Banco de teses e dissertações


Ao delimitarmos um tema para reflexão,
da CAPES. Descritores: Refor-
análise e exposição é necessário retomar
ma; Ensino; Médio; Lei; 13.415.
questões basilares da produção científica.
Tipo: Tese de Doutorado. Ano:
Essa pontuação é centralmente política e se De 2018 a 2022 (25 de julho de
torna central na produção acadêmica pois Fonte: Formatado pelo autor com dados da
2022). Grande área do conhe-
devemos considerar a ciência como sendo “a CAPES (2022).
cimento: Ciências Humanas.
forma superior do processo de conhecimen- Área do Conhecimento: Edu-
to”, conforme descreve Álvaro Vieira Pinto Como o volume de produção poderia invia- cação. Área de avaliação: Edu-

(1979, p. 83), bem como enfrentar as dificul- bilizar a escrita deste artigo levando-se em cação; Área de Concentração:

dades impostas pela precarização centenária consideração o tempo de entrega e o núme- Educação; Nome do Programa:

da educação estatal (pública) brasileira. Para ro de páginas, elegi o ano de 2021 para a Educação.

Saviani (2009) é necessário passar do senso leitura dos títulos, resumo e introdução das

comum à consciência filosófica. Ao detalhar teses. É necessário pontuar que a busca neste 4 É importante salientar que ao

este movimento o autor define: catálogo da CAPES demonstra que tal ferra- realizarmos a busca no Catálogo

menta ainda não está devidamente atualiza- da CAPES as primeiras

informações disponíveis são


Passar do senso comum à consciência filosófica da para cumprir a função que anuncia. Ao
o nome do(a) autor(a), títu-
significa passar de uma concepção fragmentária, eleger dez (10) teses que tem em seu título
incoerente, desarticulada, implícita, degradada, lo da dissertação ou tese, data
e resumo 4 maior proximidade com os obje-
mecânica, passiva e simplista a uma concepção da publicação (ou defesa), tipo
tivos deste artigo não foi possível acessar
unitária, coerente, articulada, explícita, origi- (mestrado ou doutorado), ins-
o arquivo eletrônico de três (03) destas te-
nal, intencional, ativa e cultivada (SAVIANI, tituição de ensino e biblioteca
ses. A fragmentação como característica da
2009, p. 2). depositária. No link “detalhes”
educação brasileira também se expressa nas
o(a) pesquisador(a) poderá
subdivisões e sobreposições de responsabili-
Assim creio que justifico política e academi- acessar o resumo publicado na
dade institucional de disponibilização de um
camente a necessidade do estado de conhe- Plataforma Sucupira.
8

arquivo de pesquisa que deveria ser de fácil citada anteriormente, tal buscador eletrônico
acesso para a população e, principalmente, apresenta ao pesquisador centenas de teses
para os pesquisadores deste país. que sequer tratam de tal lei. O quadro abaixo
expressa o resultado da seleção das teses a
A seleção das teses a partir do seu título e partir da leitura do seu título.
resumo baixou o número total de teses do
ano de 2021 do quantitativo de 689 para Após a eleição das teses a partir dos critérios
10 teses. Justifica-se tal redução quantitati- já citados, este pesquisador tratou de buscar
va em virtude de o catálogo da CAPES não seus arquivos eletrônicos para proceder a
possuir filtros que correspondam a necessi- leitura da sua introdução, visando confirmar
dade do pesquisador. Por mais específico que sua proximidade com meu objeto, o que se
seja os descritores “Lei” “13.415”, que são confirmou nas teses onde o arquivo eletrôni-
a expressão da legislação de tal reforma já co estava disponível.

Quadro II: Teses sobre Ensino Médio e/ou sua reforma – 2021

5 Não foi possível encontrar o


6

arquivo eletrônico da tese no

sítio eletrônico disponibilizado

pela CAPES. Acesso em 25 de

jul. 2022.
7

6 Não foi possível encontrar o

arquivo eletrônico da tese no

sítio eletrônico disponibilizado

pela CAPES. Acesso em 25 de

jul. 2022.

7 Não foi possível encontrar o

arquivo eletrônico da tese no

sítio eletrônico disponibilizado

pela CAPES. Acesso em 25 de


Fonte: Formatado pelo autor com dados da CAPES(2022).
jul. 2022.
9

Realizada e finalizada mais uma etapa de Os dois autores com maior número de 8 Critério para avalia-

ção das referências. Ser autor(a)/


confirmação iniciei um procedimento de citações utilizam como teoria social o mate-
pesquisador(a) da área do Ensino
verificação das referências utilizadas pelos rialismo histórico e devem ser considerados
Médio brasileiro com artigos e/ou
autores utilizando um critério único8 para como contra-hegemônico pois a ideologia
livro publicado.
identificar quais as teorias sociais que dão dominante é da classe dominante (burguesia)
base para aquelas pesquisas. A opção teórica e estes autores são representantes dos inter-
9 As obras repetidas (mesmo autor e
é fundamental para avaliar o rigor científico esses da classe trabalhadora.
obra em diferentes pesquisas) foram
de uma pesquisa. É importante lembrar ao
contabilizadas como uma citação,
leitor que a ciência também é determina- Agora passo ao segundo momento da ex-
sendo assim temos diversas obras
da pelas relações sociais, e como pesquisa- posição, onde centro esforços na caracter- que se repetem na lista.
dores, cientistas e até mesmo professores da ização da educação brasileira.
classe trabalhadora devemos valorizar a pro- 10 Considera-se também como uma

dução do conhecimento científico e seu rigor SEGUNDO MOMENTO: citação, artigos e/ou livros escritos

teórico e de método. CARACTERIZANDO A entre dois ou mais autores.

EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Este procedimento resultou em 47 citações 9 11 De Gaudêncio Frigotto são estas

(nome do autor e obra 10 ) onde o autor Gau- Antes de avançarmos na exposição é as citações: 1. FRIGOTTO, G. Edu-

dêncio Frigotto aparece nove11 (09) vezes necessário tratar de algumas questões consi-
cação e trabalho: bases para debater

a educação profissional emancipado-


e Marise Ramos três 12 (três vezes) sendo os deradas, de certa forma, obviedades no cam-
ra. Perspectiva, Florianópolis, v. 19,
demais autores tendo duas ou somente uma po da pesquisa em educação. Para justificar
n. 1, p. 71-87, 2001. Disponível em:
citação. Ao organizar os nomes e sobrenomes tais questões é preciso recorrer novamente a
https://periodicos.ufsc.br/index.
dos autores por meio de uma nuvem de pala- Saviani (2015, p. 288):
php/perspectiva/article/view/8463.
vras13 temos o seguinte resultado na imagem
Acesso em: 12 out. 2019; 2. FRI-
abaixo: A essa altura vocês podem estar afirmando: mas
GOTTO, Gaudêncio (org). Educação

e Crise do Trabalho: perspectiva fi-

Imagem I: Nuvem de palavras com nomes dos autores referência das teses selecionadas – 2021 nal de século. Petrópolis, RJ: Vozes,

1998; 3. FRIGOTTO, Gaudêncio. A

produtividade da escola improdu-

tiva: um (re)exame das relações

entre educação e estrutura econômi-

co-social capitalista. 9. ed. São

Paulo: Cortez, 2010; 4. FRIGOTTO,

Gaudêncio. Concepções e mudanças

no mundo do trabalho e o ensino

médio. In: FRIGOTTO, Gaudêncio et

al. (org.). Ensino Médio Integrado:

Concepções e contradição. São Pau-

lo: Editora Cortez, 2005. p. 57-82; 5.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Reforma do

Ensino Médio do (des) governo de

turno: decreta-se uma escola para


Fonte: Formatado pelo autor com dados da CAPES(2022).
10

isso é óbvio. Exatamente, é o óbvio. E como O segundo obstáculo é político e pode ser [...] os ricos e uma escola para

é frequente acontecer com tudo que é óbvio, os pobres. Movimento – Revista de


verificado através da prática de descontinui-
ele acaba sendo esquecido ou ocultando, na Educação. Universidade Federal Flu-
dade nas políticas educativas. Para Saviani
sua aparente simplicidade, problemas que es- minense, ano 3, n. 5, p. 329-332,
(2014) é possível verificar tal obstáculo man-
capam à nossa atenção. Esse esquecimento, essa 2016; 6. FRIGOTTO, Gaudêncio.
ocultação, acabam por neutralizar os efeitos da
ifesto no conjunto de reformas gerais ou pon-
Teoria e práxis e o antagonismo
escola no processo de democratização. tuais impostas à estrutura educacional bra-
entre a formação politécnica e as
sileira. Contudo creio que se faz necessário
relações sociais capitalistas. Trab.
Para iniciar nosso caminho de obviedades acrescentar a análise precisa do Professor
Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 7,
retomemos ao que Saviani (2014) denomi- Dermeval Saviani a determinação da estrutu- suplemento, p. 67-82, 2009; 7. FRI-

nou de obstáculos para a construção de um ra política (executivo/legislativo/judiciário) GOTTO, Gaudêncio. Trabalho, con-

Sistema Nacional de Educação em nosso que interfere diretamente na organização hecimento, consciência e a educação

país. Para este autor o primeiro obstáculo é escolar e nas redes municipais, estaduais e do trabalhador: impasses teóricos e

econômico e se materializa na resistência federal. Uma estrutura política desqualifica- práticos. In: GOMEZ, Carlos Minayo

histórica à manutenção da educação pú- da que se apropria do estatal (público) para et al. 6. ed. Trabalho e conheci-

blica no Brasil (SAVIANI, 2014, grifo meu). fins privados e/ou eleitorais também é deter- mento: dilemas na educação do tra-

Em 2022 temos um exemplo que ajuda a ilus- minante. Cada nova negociação para a no- balhador. São Paulo: Cortez, p. 19-

trar bem tal afirmação, durante o debate so- meação de um ministro (secretário estadual 37, 2012; 8. FRIGOTTO, Gaudêncio;

CIAVATTA, Maria. Educação Básica


bre o aumento dos combustíveis no Brasil, ou municipal) impõe rearranjos ou reconfigu-
no Brasil na Década de 1990: subor-
causado pela adoção de Preço de Paridade rações da política, pois a gestão está centrada
dinação ativa e consentida á lógica
de Importação (PPI) que é a vinculação do no personalismo e não no planejamento e di-
do mercado. Educ. Soc., Campinas,
preço dos derivados de petróleo ao dólar, agnóstico da realidade do país.
vol. 24, n. 82, p. 93-130, abr. 2003;
ou seja, ao mercado internacional 14o Gover-
e 9. FRIGOTTO, Gaudêncio; MOTTA,
no Federal (Gestão Jair Bolsonaro) patro- Carvalho (2021) apresenta em sua pesqui-
Vânia Cardoso da. Por quê a urgên-
cina um debate público sobre a redução do sa que a média de dias de mandato de um
cia da reforma do ensino médio?
ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Ministro da Educação no Brasil 16 é de apenas
Medida Provisória nº 746/2016 (Lei

Circulação de Mercadorias e sobre Prestações 516 dias, ou seja, 17,2 meses. A ilusão de es- nº 13.415/2017). Educ. Soc., Campi-

de Serviços de Transporte Interestadual e tabilidade das políticas educacionais precisa nas, v. 38, n. 139, p. 385-404, abr./

Intermunicipal e de Comunicação) que se- ser denunciada e começar a fazer parte das jun. 2017.

gundo informações da Associação dos Do- reivindicações da classe trabalhadora, substi-

centes das Universidades Federais de Goiás tuindo as cartas de intenções e movimentos 12 De Marise Ramos são estas as

(Adufg-Sindicato)15 poderá retirar R$ 21 bil- voluntaristas de avaliação das políticas por citações: 1. RAMOS, Marise N. A

hões do ensino estatal (público) de estados uma pauta contínua e unificada. Pedagogia das Competências. 4.

ed. São Paulo: Cortez, 2011; 2.


e municípios. A subserviência aos interesses
internacionais do grupo dirigente que susten- Saviani (2014) identifica como terceiro obs- RAMOS, Marise N. Concepção de

ta o Governo Jair Bolsonaro usou como tática táculo a construção de um Sistema Nacional Ensino Médio Integrado. In: Semi-

nário sobre Ensino Médio pela Su-


não tratar da questão central (vinculação do de Educação como filosófico-ideológico que
perintendência de Ensino Médio da
preço dos derivados do petróleo ao mercado se manifesta na resistência no nível das
Secretaria de Educação do Estado
internacional) para criar um falso debate so- ideias. Para este autor:
do Rio Grande do Norte, 18., 2008.
bre o ICMS que vai gerar impactos diretos no
Curitiba. Anais [...]. Curitiba: Secre-
Além das limitações materiais e políticas, cum-
financiamento da educação brasileira. taria da Educação do Paraná, 2008.
pre considerar, também, o problema relativo à
11

mentalidade pedagógica. Entendida como uni- a lei aprovada em 1996, segundo Saviani
dade entre forma e o conteúdo das ideias edu-
(2016). A invisibilização da luta pelo Siste-
cacionais, a mentalidade pedagógica articula a
ma Nacional de Educação e a promoção de
concepção geral do homem, do mundo, da vida
pautas secundárias ou personalistas no legis-
e da sociedade com a questão educacional. As-
sim, numa sociedade determinada, dependendo
lativo também confirmam a precisão desta

das posições ocupadas pelas diferentes forças afirmativa. O legislativo é, majoritariamente, p. 1-26. Disponível em: http://foru-

sociais, estruturam-se diferentes mentalidades produto das determinações de uma realidade meja.org.br/go/sites/forumeja.org.

br.go/files/concepcao_ do_ensino_
pedagógicas. Na sociedade brasileira da segunda dominada pela ideologia burguesa, pela sub-
metade do século XIX, três mentalidades peda- medio_integrado5.pdf. Acesso em:
serviência ao capital estrangeiro e fetichismo
gógicas delinearam-se com razoável nitidez: as 29 jun. 2017; e 3. RAMOS, Marise
do capital. Mesmo nos pontuais momentos de
mentalidades tradicionalista, liberal e cientifi- Nogueira. Pedagogia das Competên-
aprovação de pautas centralmente benéficas
cista (SAVIANI, 2014, p. 40). cias. Dicionário da Educação Profis-
a classe trabalhadora a regularidade históri-
sional em Saúde. Todos os direitos
ca é de aprovação de pautas que beneficiam
Porém, mesmo que idealisticamente o pen- reservados. Fundação Oswaldo Cruz.
a burguesia bem como aprovação de retirada
samento liberal e o cientificista estavam, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim
de direitos e espoliação da classe trabalhado-
época, mais próximo do que intitulamos Venâncio, 2009.
ra (SAVIANI, 2014).
“modernidade”17 , mas que, tendo em vista o
13 Utilizei o suplemento Pro world
contexto econômico-social que a determina-
Para o autor existe uma equação que “ex- cloud do Microsoft Word.
va o que se compreendia como ideias libe-
pressa o significado da política educacional
rais estavam mais próximas de uma antítese
brasileira até os dias de hoje: Filantropia + 14 Mais informações consulte o sítio
imatura ao positivismo que renegava toda e
protelação + fragmentação + improvisação eletrônico do Instituto Brasileiro de
qualquer possível característica ou prática
= precarização geral do ensino no país” Planejamento e Tributação – IBPT.
alinhada aquela teoria. A descentralização
(SAVIANI, 2014, p. 40). Disponível em https://ibpt.com.
(municipalização da educação ou das políti-
br/entenda-como-funciona-a-polit-
cas públicas), mascarada com aparência de
ica-de-precos-da-petrobras-e-o-im-
É neste contexto que a Reforma do Ensino
democracia e liberdade é uma materialização pacto-nos-valores-dos-combustiveis/
Médio de 2017 (BRASIL, 2017) é imposta a
deste pensamento. Outro exemplo que ma- Acesso em 28 de jul. 2022.
rede estatal (pública). A crítica a esta refor-
terializa o cientificismo é a aproximação, à
ma sem o devido contexto pode criar uma
época, deste pensamento ao idealismo posi- 15 Fonte: Sítio Eletrônico da ADUFG-
aparência que na situação anterior estáva-
tivista de “desoficialização” (SAVIANI, 2014, Sindicato). Disponível em https://
mos numa condição favorável ou ideal para
p. 41) do ensino. www.adufg.org.br/noticias/2-no-
a formação da classe trabalhadora e isso não
ticias/10111-reducao-do-icms-im-
se comprova na realidade. A síntese aproxi-
Por fim, o quarto obstáculo está no âmbi- pacta-educacao-e-ameaca-aulas-ex-
mada é que a educação estatal (pública) já se
to legal e se materializa na resistência no tras-obras-em-escolas-e-salarios .
estrutura de forma precarizada e as reformas Acesso em 28 de jul. 2022.
plano da atividade legislativa. Ainda em
impostas pela burguesia não acompanham
2022 sofremos com a ilusão de uma legis-
do desenvolvimento técnico e tecnológico da 16 Período de 1930 a 2020.
lação avançada da educação brasileira, com
sociedade brasileira, nem contemplam as ne-
uma supervalorização da Lei 9.394/96 que
cessidades da classe trabalhadora criando um 17 Indico para referência do concei-
não se justifica historicamente, pois a primei-
ambiente onde os problemas estruturais (fal- to de modernidade sugiro a leitura
ra versão da proposta de LDB do período era,
ta de recursos humanos, materiais e financei- do livro A modernidade e os moder-
em certos pontos, muito mais avançada que
ros) se confundem as limitações organi-za- nos de Walter Benjamin (2000).
12

cionais (currículo, planejamento, disputas emblemáticos e também concretos, pois trata


internas nas instituições, divisionismo...) de limitação de recursos financeiros por 20
transformando o conjunto dos processos (de anos.
trabalho e educacionais) em momentos de
permanente debate e reflexão sobre as difi- O mesmo Frigotto (2016) afirmou que a
culdades políticas e operacionais, quase sem- reforma de Ensino Médio decretou uma es-
pre limitados a socialização das limitações e cola para ricos e outra para pobres. Sabemos
tentativa de improvisação de soluções locais, que a contradição entre o estatal (público) e
retirando a riqueza do debate sobre a totali- o privado é detectável em toda a história do
dade, o projeto societário, sobre a unidade processo de construção da estrutura educa-
da classe trabalhadora, entre outras questões. cional brasileira. Adiciono mais duas reflex-
Mas se torna necessário avançar um pouco ões antes de apresentar uma síntese.
mais nessa reflexão. Para Frigotto (2001, p.
72) vivemos um ambiente de: Para Marise Ramos (2014, p. 02) “a história
da dualidade educacional coincide com a
Reformas neoliberais, cujo escopo é de liberar história da luta de classes no capitalismo”,
o capital à sua natureza violenta e destrutiva, ou seja, não estamos tratando de um simples
abortam as imensas possibilidades do avanço
desvio na organização da política, ou algo
científico de qualificar a vida humana em todas
pontual, mas algo estrutural que se reflete
as suas dimensões, inclusive diminuído expo-
nas políticas e nas relações sociais.
nencialmente o tempo de trabalho necessário à
reprodução da vida biológica e social e dilatan-
do o tempo livre – tempo de liberdade, fruição, Já Vinícius Machado no capítulo18 Esvazia-
gozo. mento dos Conteúdos Escolares: a contrarrefor-
ma do ensino médio e a BNCC aponta o caráter
É necessário verificar que a datação da economicista da contrarreforma do Ensino
citação de Frigotto é anterior à posse de Luís Médio pois, segundo o autor:
Inácio Lula da Silva (2003) ou ao golpe que
destitui a Dilma Rousseff (2016). Mesmo que Em nossa exposição demonstramos que o esva-
ziamento dos conteúdos escolares se deu num
se contabilize um conjunto de políticas pú-
contexto de aprofundamento da crise estrutural
blicas para a educação como a criação dos
do capital e da guerra declarada pelas burguesias
Institutos Federais de Educação – IFs, é im-
imperialistas dos países do centro do capitalis-
portante verificar e constatar que a capaci- mo, bem como as frações da classe dominante
dade destrutiva de políticas equivocadas im- dos países periféricos, contra os trabalhadores

postas pelos governos Temer (2016 a 2018) em todo o mundo. Um fenômeno que se mani-

e Bolsonaro (2019 a 2022) anulou qualquer festa sob a forma da estagnação econômica,
de um nível mais elevado de desemprego, dos
possibilidade de avanço nas políticas que
défices públicos, dentre outras consequências 18 Livro Estudos de pedagogia
beneficiam o conjunto da classe trabalhado-
(MACHADO, 2022, p. 38). histórico-crítica: formulações sobre
ra. A chamada PEC do Teto de gastos (Emen-
ensino, currículo e prática pedagógi-
da Constitucional 95, aprovada em 2016)
Ao apresentarmos a citação acima é possível, ca organizado por Ana Carolina Gal-
que limita o crescimento de investimentos
nos limites deste artigo, fazer uma síntese do vão (2022).
em políticas sociais é um dos exemplos mais
13

contexto em que essa falsa reforma (contrar- Como materialistas necessitamos demonstrar
reforma) se impõe para a estrutura educa- como estas afirmações se refletem na reali-
cional brasileira. dade, assim sendo o gráfico abaixo poderá no
auxiliar neste exercício.
Os obstáculos expostos nas reflexões de Sav-
iani (2014), adensados a equação “Filant- Sobre os investimentos em educação materi-
ropia + protelação + fragmentação + im- alizados no quadro acima no orçamento do
provisação = precarização geral do ensino ministério, é preciso pontuar que não univer-
no país” (SAVIANI, 2014, p. 40) são uma salizamos a Educação Básica, o que realizam-
primeira parte da análise. os desde 1930 é um processo lento, gradual e
desorganizado de aumento da estrutura edu-
Já a segunda parte identifica que as reformas cacional centrada na organização do Ensino
neoliberais (FRIGOTTO, 2001 e 2016) e a Fundamental, o que na perspectiva da classe
dualidade educacional (RAMOS, 2014) são trabalhadora é uma avanço pontual pois o
elementos fundamentais para a compreensão que queremos é a universalizamos imedia-
da precarização da educação brasileira de ta da Educação Básica e Superior, e no que
forma geral bem como a especificidade do tange a perspectiva da classe dominante é (a
Ensino Médio entendendo, como afirma organização recortada do Ensino Fundamen-
Machado (2022) que se trata de um movi- tal) uma forma de garantir a formação da
mento de esvaziamento dos conteúdos esco- mão-de-obra para o capital e ao mesmo tem-
lares para transformar o direito a educação po limitar (pois o Ensino Médio e Educação
em mercadoria para a iniciativa privada. Superior estão ainda restritos como direito) a

Imagem II: Despesas efetivadas, incluindo restos a pagar – Ministério da Educação – 2010-2021

19 Gasto com educação recua pelo 5º

ano consecutivo e é o menor em dez

anos, mostra levantamento. Portal

G1. Disponível em https://g1.globo.

com/politica/noticia/2022/04/24/

gasto-com-educacao-recua-pelo-

5o-ano-consecutivo-e-e-o-menor-

em-dez-anos-mostra-levantamento.

ghtml. Acesso em 12 de ago. 2022.


Fonte: Portal19 G1 com informações do INESC e dados do Portal Siga Brasil
14

emancipação dos trabalhadores. A melhoria das condições objetivas de for-


mação da classe trabalhadora na esco-
Tanto a Educação Infantil como o Ensi- la estatal (pública) sem o crescimento da
no Médio estão, ainda, secundarizados nas consciência de classe e, por consequência,
reivindicações diárias das instituições que organização dos trabalhadores significa que
representam (ou deveriam representar) a não compreendemos o processo histórico de
classe trabalhadora. Estamos ainda fazen- formação da estrutura educacional e vamos,
do um movimento de unidade de propostas novamente, autorizar politicamente que a
através dos planos, mas que ainda está im- classe dominante, ao menor esboço de crise
pregnada de divisionismo. Este divisionismo do capitalismo, retome sua ofensiva (maior
não é algo proposto pela classe trabalhadora, e mais agressiva) contra a Educação Básica
mas imposto por uma realidade que cria um e Superior.
ambiente onde não é possível fazer tudo e
temos que escolher o que devemos fazer. Conter o avanço da destruição da escola de
Ensino Médio brasileira, de sua filantropia,
Quando assumimos, mesmo que de forma protelação, fragmentação e improvisação
inconsciente, que não é possível alterar esta através de uma vitória pontual eleitoral ou
realidade, se assume integralmente a narrati- até mesmo de mudanças significativas na
va hegemônica e organizamos nossa prática política ministerial sem que o conjunto dos
e nossas reflexões limitados pela ideologia trabalhadores da educação estejam se organi-
burguesa. zado e superando, dia-a-dia, as imposições
e dificuldades deste atual contexto é, por
A contraposição necessária, na perspectiva aproximação, um esforço ingênuo, pois
da classe trabalhadora, é o retorno a Marx qualquer ação (local ou nacional) de defesa
(2009, p. 109): dos interesses da classe trabalhadora exige
uma retaguarda organizada quantitativa da
As condições econômicas, inicialmente, trans- (com e pela) massa dos trabalhadores através
formaram a massa do país em trabalhadores. A
dos sindicatos.
dominação do capital criou para essa massa uma
situação comum, interesses comuns. Essa massa,
Mas então como podemos compreender o
pois, é já, face ao capital, uma classe, mas ainda
não é para si mesmo. Na luta, de que assinala-
significado da atual (Contra) Reforma do En-
mos algumas fases, essa massa se reúne, se cons- sino Médio (Lei 13.415/2017)? Retomemos
titui em classe para si mesma. Os interesses que Frigotto (2016, p. 331-332) para isso:
defende se tornam interesses de classe. Mas a

luta entre classes é uma luta política. Por fim, uma traição aos alunos filhos dos tra-
balhadores, ao achar que deixando que eles es-
colham parte do currículo vai ajudá-los na vida.
Necessitamos nos constituir e nos
Um abominável descompromisso geracional
identificarmos como trabalhadores, identifi-
e um cinismo covarde, pois seus filhos e netos
car e compreender nossos interesses comuns,
estudam nas escolas onde, na acepção de Des-
logo após é necessário pensar e agir como ttut de Tracy estudam os que estão destinados a
“classe para si mesmo”. dirigir a sociedade. Um (sic.) reforma que legal-
15

iza a existência de uma escola diferenciada para lação dessa habilidade com o conjunto do pro-
cada classe social. Justo estes intelectuais que cesso produtivo.
em seus escritos negam a existência das classes
sociais. Quando se junta prepotência do autori- Em 2022 encontramos em diversos estados
tarismo, arrogância, obscurantismo e desprezo
centenas (literalmente) de formas de organi-
aos direitos da educação básica plena e igual
zação do Ensino Médio que são a materiali-
para todos os jovens, o seu futuro terá como
zação da multiplicidade de formação de itine-
horizonte a insegurança e a vida em suspenso.
rários, que por óbvio não são fruto da es-
colha dos estudantes, mas sim das possibili-
A síntese do autor assinala a im-
dades de gestão local dos recursos (humanos,
portância da categoria luta de classes na
materiais e financeiros). Ao assinalar a po-
análise das contradições do processo de (des)
litecnia como possibilidade de contraponto
organização deste Ensino Médio imposto
em uma perspectiva da classe trabalhadora
pela classe dominante ao Brasil.
devemos considerar, por aproximação, a ex-
periência dos Institutos Federais de Educação
De forma complementar, cumprindo a
através do currículo integrado. Assim, tor-
função de apontar rumos, não só apontar os
na-se necessário refletir sobre este currículo
desafios da classe trabalhadora (o que por si
integrado.
só já representa uma grande contribuição ao
debate no campo educacional) acredito ser
Ramos (2008) nos alerta para os sentidos da
necessário retomar algumas reflexões de Sa-
concepção de Ensino Médio Integrado, ele-
viani (2007, p. 161):
gendo como perguntas da exposição o que

O horizonte que deve nortear a organização do


é integração? Logo após a autora questiona

ensino médio é o de propiciar aos alunos o domí- e existe uma integração, o que ela integra?
nio dos fundamentos das técnicas diversificadas Para esta autora, de forma sintética, estes são
utilizadas na produção, e não o mero adestra- os sentidos da integração: 1º. “a formação
mento em técnicas produtivas. Não a formação omnilateral”, 2º. “a indissociabilidade entre
de técnicos especializados, mas de politécnicos.
educação profissional e educação básica” e,
por fim, 3º. “a integração de conhecimen-
Politecnia significa, aqui, especialização como
tos gerais e específicos como totalidade”
domínio dos fundamentos científicos das difer-
(RAMOS, 2008, p. p.03-16).
entes técnicas utilizadas na produção moderna.
Nessa perspectiva, a educação de nível médio
tratará de concentrar-se nas modalidades funda- Assim, sugerimos que a proposta da classe
mentais que dão base à multiplicidade de pro- trabalhadora se paute pela politecnia e omni-
cessos e técnicas de produção existentes. lateralidade apropriando-se e melhorando a
experiência de currículo integrado do Ensino
Essa é uma concepção radicalmente diferente da
Médio dos Instituto Federais de Educação –
que propõe um ensino médio profissionalizante,
IFs.
caso em que a profissionalização é entendida
como um adestramento em uma determinada
habilidade sem o conhecimento dos fundamen-
O movimento que realizamos até o momen-
tos dessa habilidade e, menos ainda, da articu- to de verificar as produções acadêmicas do
16

atual momento, caracterizando e criticando com a análise de Marx (2011) em O dezoito


Brumário de Luís Bonaparte, quando mostra
a estrutura da educação brasileira através
que o lumpemproletariado serviu de massa de
de autores (e suas obras) que são a base das
manobra ao golpe de Luís Bonaparte, desferido
pesquisas encontradas determina, em nosso
em 2 de dezembro de 1851. Para desconstruir as
recorte de perspectiva da classe trabalhado- iniciativas do “Escola sem Partido”, proponho a
ra, os limites, desafios e necessidades para retomada da estratégia da resistência ativa, que
compreender a (Contra)Reforma do Ensino implica dois requisitos:

Médio (Lei 13.415/2017).


• que seja coletiva, pois as resistências individu-

Como terceiro e último momento, para fechar ais não têm força para se contrapor ao poder
dominante exercido pelo governo ilegítimo e
com coerência este movimento, acreditamos
antipopular;
que seja necessário explorar a reflexão de
Saviani sobre resistência ativa.
• que seja propositiva, isto é, capaz de apre-
sentar alternativas às medidas do governo e de
TERCEIRO MOMENTO: seus asseclas.
RESISTÊNCIA ATIVA
Podemos ver que esses dois requisitos corres-

A reflexão de resistência ativa em Saviani pondem ao duplo papel da educação: de re-


sistência e de transformação.
pode ser encontrada no livro A crise da de-
mocracia brasileira (LUCENA; PREVITALI;
LUCENA, 2017) e na entrevista conduzida A primeira obviedade da citação acima é ver-

por Hermida e Lira (2018). Nestes esforços ificar que a educação cumpre sim uma função

de reflexão sobre a realidade atual Saviani na luta política e que a classe trabalhadora

inicia por um tema conectado a todo o movi- necessita se posicionar e disputar cada es-

mento que concretiza o golpe contra a Presi- paço no plano micro (escola e universidade)

denta eleita Dilma Rousseff, a criminalização e no plano macro (esferas municipais, esta-

das forças progressistas e a eleição manipula- duais e nacional). Mesmo que em um primei-

da de Jair Bolsonaro, o tema em questão foi ro momento os ataques à democracia e as

a proposta de legislação vulgarmente conhe- forças progressistas tenham criando um am-

cida como Escola sem partido. biente de receio e medo de perseguições ou


de ataques políticos (ou até mesmo físico)

Saviani (HERMIDA; LIRA, 2018, p.785) ao contra aqueles que defendem a perspectiva

ser entrevistado assim expressa sua reflexão: da classe trabalhadora, se torna necessário
criar condições de superação deste momento
A articulação dos movimentos fascistas, corre- desde o chamado chão da escola/universi-
spondente à onda conservadora com o caldo dade.
cultural reacionário referido na resposta à ter-
ceira questão, foi reforçada pelo fundamental-
Visando aprofundar a reflexão no capítulo
ismo religioso assumido por diferentes seitas
do livro supracitado Saviani (2017, p. 207)
surgidas nos últimos 40 anos, dedicadas a ex-
assevera:
plorar a boa-fé das camadas mais desvalidas da
sociedade. Tal situação contém certa analogia
17

A atual conjuntura se constitui, pois, num mo- por característica a submissão (ideológica) e
mento grave que estamos vivendo no qual a
a dependência (econômica). Isto posto a re-
educação é desafiada duplamente: por um lado,
flexão do contexto me leva a sugerir que a
cabe–lhe resistir, exercendo o direito de deso-
tendência do nosso atual momento histórico
bediência civil, às iniciativas de seu próprio
abastardamento por parte de um governo que se
é um movimento da classe dominante para

instaurou por meio da usurpação da soberania conciliação entre classes para evitar uma
popular sobre a qual se funda o regime político ruptura ou um contragolpe da classe tra-
democrático. Por outro lado, cumpre lutar para balhadora que questione com profundidade
transformar a situação atual debelando a crise a exploração capitalista.
e assegurando às novas gerações uma formação
sólida que lhes possibilite o pleno exercício da
Assim o Ensino Médio brasileiro, na perspec-
cidadania tendo em vista não apenas a restau-
tiva tática do capital, deve se tornar majori-
ração da democracia formal, mas avançando
para sua transformação em democracia real. tariamente um produto comercial que coexis-
tirá em conflito com experiências estatais

A equação “Filantropia + protelação + frag- (públicas) diminutas quantitativamente que

mentação + improvisação = precarização por serem pontuais se tornarão a exceção que

geral do ensino no país” (SAVIANI, 2014, p. valida a regra geral.

40) precisa ser atualizada na perspectiva do


Ensino Médio, agregando a esta perversa rea- O abafamento das contradições ainda será

lidade a (Contra) Reforma do Ensino Médio sustentado por uma preferência as questões

(Lei 13.415/2017), os retrocessos da Gestão relativas ao Ensino Fundamental e um pro-

Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL) gressivo, porém20 irrisório investimento na

aprofundada com o período de pandemia de Educação Infantil (que possui uma estrutu-

COVID 19 (anos de 2020 e 2021) onde diver- ra nacional esfarelada em 5.570 municípios).
20 Que tendencialmente também
sos estados criaram os ambientes de consoli- será afetado por propostas liberais

dação da Lei 13.415/2017. Na outra ponta da estrutura temos a Edu-


como voucher ou terceirização pre-
cação Superior com matrículas estatais/pú-
carizada.

Minha crítica e análise deste atual momento blicas quantitativamente inferiores quanto

de crise do capitalismo mundial onde o Bra- analisadas as instituições


21
estatais/públicas 21 Fonte: CARVALHO, 2021, P.312.

sil cumpre o papel de país periférico e de- (2018 = 2.077.481)


22
e as privadas (2018 =

pendente (política e economicamente) das 6.373.274) . 22 Fonte: CARVALHO, 2021, P.313.

grandes corporações capitalistas é necessário


(para a burguesia) que o país esteja subjuga- Com o Ensino Médio estatal (público) tensio- 23 Fonte: Sítio eletrônico da

do para continuar a fornecer matéria prima nado e precarizado é fundamental aumentar ANPED. Carta aberta pela revogação

e outros recursos (riquezas naturais, recur- a denúncia em toda a sociedade sobre esta da Reforma do Ensino Médio

sos humanos de baixo custo, estrutura físi- situação. (LEI 13.415/2017). Disponível

em https://www.anped.org.br/
ca ...) para a produção destas corporações
news/carta-aberta-pela-revoga-
bem como é necessário usurpar os recursos A proposta de revogação Reforma do Ensino
cao-da-reforma-do-ensino-me-
da educação estatal (pública) para manter os Médio (Lei 13.415/2017)23 capitaneada por
dio-lei-134152017 . Acesso em 25
privilégios da classe dominante local que tem diversas organizações de ensino e pesquisa
de agosto de 2022.
18

é um primeiro passo, entendendo que se tor- al, institucional e midiática da burguesia. O


na uma bandeira de unidade que inclusive contraponto necessário é a classe trabalhado-
já foi questionada por integrantes do que ra organizada como resistência ativa em um
intitulamos “campo progressista” através primeiro momento e, em um segundo mo-
das páginas da Folha de São Paulo 24
bem mento, como como liderança revolucionária
como no Sítio eletrônico do Instituto Bra- das transformações, pois, como afirma Savia-
sileiro de Economia Aplicada no artigo do
25
ni (2014a, p. 44):
ex-secretário de Educação de São Paulo,
César Callegari 26 que problematiza a ausência A educação não está divorciada do meio social,
sendo, ao contrário, determinada pelas carac-
(ou não consenso) de um substitutivo. Uma
terísticas da sociedade na qual está inserida. E
análise lógico-formal sobre o questionamen-
quando, como na situação atual, a sociedade
to do autor do artigo pode até, num primei-
está dividida em classes cujos interesses são
ro momento, nos fazer crer que tal questão antagônicos, a educação serve aos interesses de
tem algum fundamento. Porém uma reflexão uma ou de outra das classes sociais fundamen-
sobre o conjunto das experiências de Ensino tais. Nessas condições, a função técnica da edu-

Médio no Brasil demonstra que o substituti- cação é sempre subsumida pela função política,

vo necessário a ser defendido pela classe tra- isto é, ainda que a educação seja interpretada
como uma tarefa meramente técnica, nem por
balhadora está instalado nos Institutos Fede-
isso ela deixa de cumprir uma função política.
rais de Educação – IFs, como já afirmei neste 24 Fonte: Sítio eletrônico da Fol-
Aliás, limitá-la à função técnica é uma forma
artigo. ha de São Paulo. Disponível em
eficiente de coloca-la a serviço dos interesses
dominantes. https://www1.folha.uol.com.br/

Mesmo assim, como sugestão, retomamos o opiniao/2022/08/revogar-a-lei-do-

movimento feito por Saviani (2009) no livro E continua o autor: ensino-medio.shtml

Escola e democracia ao propor uma reflexão


por meio da teoria da curvatura da vara. A A passagem da consciência ingênua à consciên- 25 Fonte: Sítio eletrônico do Institu-

proposta de novo Ensino Médio, na perspec- cia crítica implica, em síntese, certa margem de to de Economia Aplicada. Disponível

angústia ou de frustrações, uma sensação de im- em https://ibsa.org.br/revogar-a-


tiva da classe trabalhadora tem que inverter
potência que eu entendo como sendo o processo lei-do-ensino-medio/ . Acesso em 25
a curvatura da vara a tal ponto que consiga-
pelo qual se desfazem as ilusões. Essa sensação de agosto de 2022.
mos produzir uma proposta que supere a
de impotência corresponde exatamente ao es-
equação “Filantropia + protelação + frag-
facelamento da ilusão de poder. Ora, na posição 26 Secretário de Educação Básica do
mentação + improvisação = precarização anterior, na posição ingênua, idealista, o edu- Ministério da Educação, responsável
geral do ensino no país” (SAVIANI, 2014, cador acreditava-se com certos poderes, acredi-
pela construção do Pacto Nacional
p. 40), seja por meio da universalização da tava que ia transformar a sociedade, julgava
pela Alfabetização na Idade Certa
Educação Básica obrigatória para todos os possuir o condão de mudar a realidade pela
e pelas propostas do MEC comtem-
trabalhadores brasileiros, pela criação de um força de sua ação subjetiva. Na medida em que
pladas na Lei do Plano Nacional de
descobre que a educação é um fenômeno condi-
Sistema Nacional de Educação que se materi- Educação (2012), Secretário Mu-
cionado, determinado pelo modo de produção,
alize como uma ruptura profunda com nossa nicipal de Educação de São Paulo
pela estrutura da sociedade, pela correlação de
realidade atual caracterizada acima. (2013/2014). Quando implantou a
forças, pelo controle político exercido por meio
da dominação e hegemonia, esboroa-se toda Reforma Educacional: “Mais Edu-

Mas na luta de classes será necessário criar aquela ilusão de poder. Aqui, admito, há risco cação São Paulo”; pondo fim ao sis-

um contraponto à força financeira, materi- de se passar de um otimismo ingênuo para um tema de “aprovação automática”.
19

pessimismo, a meu ver, igualmente ingênuo, Mesmo que o controle dos meios de produção
acreditando-se, agora, que a determinação da
seja da burguesia, toda riqueza é produzida
sociedade, isto é, da classe dominante, é tal que
pela classe trabalhadora e por este motivo
retira da educação toda e qualquer chance de
devemos reivindicar o que é nosso, passan-
contribuir positivamente para a transformação
da sociedade. Entretanto, se a consciência dos
do também, pelas disputas dentro do Ensino

condicionantes objetivos, ao mesmo tempo em Médio e de toda educação brasileira.


que destrói o poder fictício, constrói um poder
efetivo, então resulta possível superar seja o
otimismo ingênuo, seja o pessimismo também
ele ingênuo, em direção àquilo que eu chama-
ria de entusiasmo crítico (SAVIANI, 2014a, p.
45-46).

Acreditando que a citação, mesmo que lon-


ga e não tradicional em artigos, cumpriu o
objetivo de objetivar e ilustrar o já analisado
e criticado anteriormente, finalizamos este
item sugerindo a resistência ativa com o devi-
do entusiasmo crítico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar é necessário reafirmar que ne-
cessitamos realizar a denúncia política sobre
a nossa atual (e histórica) precarização da
educação estatal (pública) reafirmando as já
citadas característica da nossa estrutura ed-
ucacional e priorizando a formação/organi-
zação dos trabalhadores como classe para a
resistência ativa com entusiasmo crítico.

Como diria o poeta, “na luta de classes, todas


as armas são boas: pedras, noite e poemas”
(Paulo Leminski), assim sendo a formação/
organização da classe trabalhadora necessita
que a escola/universidade seja considerada
com o local privilegiado do saber sistema-
tizado construído historicamente pela hu-
manidade. Este saber precisa ser apropriado
pela classe trabalhadora para superar sua
condição de explorado.
20

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22

“NO CHÃO DA ESCOLA E


NA CONSCIÊNCIA DOS PROFESSORES”:
COMO NÃO SE CONSTRÓI UMA REFORMA DE ENSINO
1

por Amanda Hebling do Amaral


Bacharel em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas.
Contato: amanda.hdoamaral@gmail.com

RESUMO
No contexto de reforma curricular do Ensino Médio em São Paulo, foram instituídas propostas
com pouca ou nenhuma participação dos maiores interessados: a comunidade escolar. Conside-
rando a importância de que as políticas públicas encontrem materialidade na realidade social
e que, para isso, dependem dos agentes envolvidos em sua implementação, o presente artigo se
dedica à análise de falas de três docentes, colhidas por entrevistas semiabertas durante pesquisa
que investigou a implementação do Programa Inova Educação na rede pública de São Paulo.
Por meio da análise, é possível notar a ausência de conexão real entre o que propõem os refor-
madores e a realidade das escolas públicas, de modo que tem se tratado de uma reforma sem
participação e concordância das professoras.

Palavras-chave: Reforma do Currículo; Bem-estar do Professor; Ensino Médio.

Introdução mais atrativa para os jovens por meio da con-


exão entre os conteúdos transmitidos e a vida

Em 2020 a Secretaria de Educação do es- fora da escola 3 . Isso explica a introdução das

tado de São Paulo (Seduc-SP) iniciou a im- novas disciplinas: as disciplinas eletivas,

plementação do Programa Inova Educação que são planejadas pelos professores e es-

– uma mudança profunda no sistema de colhidas livremente pelos alunos, prometem 1 Este artigo é dedicado às professo-

ensino paulista, com vistas a implementar aproximar a escola dos interesses individuais ras entrevistadas, que ofertaram seu

a Lei 13.415/2017 e a nova Base Nacional dos estudantes. Já Tecnologia surge com o tempo escasso para a construção da

Comum Curricular (BNCC) no estado. O Pro- suposto objetivo de tornar os estudantes mais pesquisa.

grama consiste, principalmente, na redução preparados para o mercado de trabalho con-


2 Ver: <https://inova.educacao.
das aulas de 50 para 45 minutos, na adição temporâneo. E, por fim, a disciplina de Pro-
sp.gov.br/>. Acesso em 11/19.
de uma aula por dia e na implementação de jeto de Vida visa oferecer aos estudantes um

três novos componentes curriculares: Projeto tempo e espaço próprios para, com o auxílio
3 Disponível em: <http://www.sa-
de Vida, Tecnologia e disciplinas eletivas 2 . de seus professores, planejarem seu futuro a
opaulo.sp.gov.br/ultimas-noticias/
partir de seus sonhos.
inova-educacao-projeto-de-vida-aux-
Essas alterações curriculares têm em vista, ilia-em-habilidades-socioemocion-

segundo seus formuladores, tornar a escola Toda reforma educacional precisa expres-
ais/>. Acesso em 11/19.
23

sar interesses e perspectivas de docentes, que, por mais que as audiências públicas da
gestores, diretores, funcionários e, por fim, BNCC tenham contado com a presença de do- 4 O Instituto Ayrton Senna é uma

dos estudantes, devendo, para tanto, ser centes, gestores e estudantes, a participação organização familiar sem fins lu-

construída a partir de debate amplo e de- real desses atores foi mínima: suas sugestões crativos, fundada em 1994 com o

mocrático com estes sujeitos, responsáveis não foram levadas em consideração ou só o objetivo de “dar a crianças e jovens

por sua materialização no cotidiano escolar. foram na medida em que cabiam na proposta brasileiros oportunidades de desen-

A Reforma do Ensino Médio, o Programa Ino- inicial e no interesse dos reais reformadores: volver seus potenciais por meio da

educação de qualidade”. A institui-


va Educação e o Novo Ensino Médio não são o empresariado. A participação de fundações
ção tem como foco a produção de
diferentes. Como afirma Antonio Callegari, empresariais na formulação da Reforma do
conhecimento e de experiências
conselheiro do CNE em 2017, no período de Ensino Médio e da BNCC é relatada por vári-
educacionais, a capacitação de edu-
formulação da BNCC: os autores e aponta para uma concordância
cadores e a proposição de políticas
entre o poder público e estes atores privados
públicas com foco na educação in-
Destaco que, com a aprovação da BNCC, o prin- (FERRETTI & SILVA, 2017).
tegral. Disponível em: <https://
cipal trabalho começa agora, nas escolas. São os
institutoayrtonsenna.org.br/pt-br/
educadores que haverão de tomar a BNCC como
No caso específico da Reforma no estado de
quem-somos.html#missao>. Acesso
uma referência para a elaboração crítica, criati-
São Paulo, a participação do empresariado em 07/22.
va e participativa de seus currículos e propostas
se manifesta na presença direta do Institu-
pedagógicas. É com eles e por eles que a BNCC
ganhará significado e concretude. É nesse pro- to Ayrton Senna4 (IAS) na formulação do 5 Disponível em:

cesso, no chão da escola e na consciência dos Programa Inova Educação, com o qual a Se- <https://institutoayrtonsenna.

professores, que ela irá adquirir a sua identi- duc-SP possui termo de cooperação para im- org.br/pt-br/conteudos/parceria-
dade na história da educação brasileira (MEC, plementação de um currículo de acordo com entre-estado-de-sao-paulo-e-
2017, grifos meus).
a BNCC desde 2018 . Dessa parceria nasce instituto-ayrton-senna-levara-

o protótipo curricular Minha Escola 6 , que educacao-integral-ao-ensino-

Apesar do trabalho dos formuladores dessas


serviu de inspiração ao Inova. Além disso, o fundamental.html>. Acesso em

propostas, é necessário que os implementa- 07/22.


IAS também tem participado do processo de
dores - a comunidade escolar como um todo,
implementação e da formação de docentes
mas principalmente os professores - realizem 6 O protótipo foi implementado
para as novas disciplinas do Programa, com
esses objetivos. É preciso que a Reforma seja no ano de 2019 em 24 escolas de
foco nas chamadas competências socioemo-
materializada “no chão da escola e na cons- tempo parcial da capital paulista.
cionais, principalmente por meio do compo-
ciência dos professores”. Disponível em: <https://
nente Projeto de Vida 7 .
institutoayrtonsenna.org.br/

pt-br/conteudos/prototipo-
Mas o que garante a participação
A implementação do Programa Inova Edu-
minha-escola-partic-
desses atores? Nos documentos oficiais, tanto
cação foi mantida com o início da nova pan- i p a - d e - m o v i m e n t o
nacionais quanto estaduais, os reformadores
demia da Covid-19, e deu ensejo ao aprofun- -inova-em-sao-paulo.
utilizam o argumento de que a reforma no
damento da Reforma no estado de São Paulo, html>. Acesso em 07/22.
ensino brasileiro, e no ensino paulista em
por meio da implementação, em 2021, do
especial, foi formulada por uma equipe téc-
Novo Currículo Paulista para o Ensino Médio, 7 Disponível em <https://insti-
nica e deliberada democraticamente com a
o primeiro do país alinhado à BNCC . Por
8
tutoayrtonsenna.org.br/pt-br/
sociedade civil (MICHETTI, 2020). Essa du-
conta do contexto pandêmico, as delibera- conteudos/parceria-entre-insti-
pla justificativa, no entanto, não se garante
ções com a comunidade escolar em torno do tuto-ayrton-senna-e-seduc-sp-for-

na realidade. Miqueli Michetti (2020) afirma


novo currículo se deram de modo remoto e, ma-professores-e-gestores-para-pro-
24

por isso e pela sobrecarga que vivenciavam entre entrevistadora e entrevistadas (LIMA,
os docentes, deficitário: 2016). As conversas foram realizadas por
chamada de vídeo, para garantir a segurança
Utilizando principalmente o canal do Centro de da pesquisadora e das entrevistadas, gra-
Mídias de São Paulo (CMSP), devido ao distan-
vadas e transcritas com o consentimento das
ciamento social provocado pela pandemia da
participantes. Para a escrita do artigo, os no-
Covid-19 (Sars-Cov-2), a Seduc-SP, a partir de
mes das participantes foram alterados.
reuniões on-line, com a escassa participação do
corpo docente e quase nenhuma dos discentes,
implementou, a toque de caixa e de forma coer- Cabe mencionar que o contexto de pande-
civa, esse novo modelo para o Ensino Médio, mia e a impossibilidade de ir até a escola
gerando muitas incertezas tanto para os pro- dificultou o contato com demais docentes
fessores quanto para os alunos (CARVALHO & que pudessem contribuir com a pesquisa. Os
CAVALCANTI, 2022, p. 10).
contatos foram intermediados pelas docentes
que já haviam se disposto a participar das
Considerando, portanto, a pouca partici-
entrevistas. A dificuldade de conseguir mais
pação da comunidade escolar na formulação
voluntários se valeu, primeiro, do recorte da
dessas propostas de mudança de ensino faz-
pesquisa: as docentes relataram que a maio-
se necessário analisar o processo de imple-
ria dos outros professores talvez não tives-
mentação das reformas no chão da escola.
sem nada a relatar sobre as disciplinas do
Para isso, foi realizada uma pesquisa 9 com
Programa Inova Educação porque ainda não
o objetivo de analisar esse processo em uma
tinham tido contato com elas, já que a maio-
escola estadual de Campinas – SP, por meio
ria dos professores que se disponibilizaram
de entrevistas com docentes e estudantes.
para ministrar as disciplinas eram aqueles
que precisavam completar a carga horária,
Nesse artigo, há a análise das falas das do-
pois o número de aulas de suas disciplinas
centes entrevistadas, compreendendo a in-
originais havia sido reduzida.
tencionalidade desses atores no processo de jeto-de-vida.html>. Acesso em

implementação das reformas educacionais, 07/22.


Um segundo relato das docentes de porque
bem como o lugar extraordinário ocupado 8 Disponível em: <https://www.
não conseguiram convencer seus colegas se
por eles durante os anos de 2020 e 2021, educacao.sp.gov.br/confira-inte-
valeu, talvez, de uma diferença de perspec-
com o desenrolar da pandemia e seus efei- gra-documento-novo-curriculo-en-
tiva: como ficará claro, as três docentes en-
sino-medio-de-sao-paulo/>. Acesso
tos sobre a vida de professores e estudantes.
trevistadas criticam o Programa Inova Edu-
em 01/21.
Foram realizadas três entrevistas individuais
cação. Havia, segundo relataram, um/a ou-
semi-abertas, no primeiro semestre de 2021,
tro/a docente na escola responsável por mi- 9 Trata-se da pesquisa “A imple-
com professoras formadas em Humanidades
nistrar o componente Projeto de Vida, mas mentação do Projeto de Vida como
que ministravam, na época, as novas disci-
que, segundo elas, era favorável a essas mu- componente curricular em uma es-
plinas introduzidas pelo Programa Inova. Foi
danças. Esse/a docente negou a participação cola pública no estado de São Pau-
utilizado um roteiro de perguntas que envol-
na pesquisa. Por último, vale considerar que lo”, realizada entre agosto de 2020
via as percepções sobre as mudanças intro-
a disponibilidade de tempo dos docentes fi- e agosto de 2021, financiada pelo
duzidas pelo Programa Inova Educação, mas
cou extremamente reduzida durante a pan- PIBIC-CNPq e aprovada pelo Comitê
garantindo espaço para a interação fluida
demia, como argumentaremos mais adiante. de Ética em Pesquisa em Ciências
25

Novos componentes: Isso aponta, primeiro, para um desinteresse


geral dos professores da rede na ministração
formação e sala de aula
dessas novas disciplinas e, segundo, para a
existência de docentes que só passaram pelo
A primeira pergunta feita às docentes foi qual
processo de formação depois de se tornarem
tinha sido o motivo que as levou a ministra-
professores desses componentes.
rem as disciplinas do Inova, em especial Pro-
jeto de Vida. As três deram a mesma respos-
Quanto à qualidade da formação, as profes-
ta: necessidade de completar carga horária.
soras relatam seu fundamento em senso co-
Ambas deixaram claro o desinteresse e até
mum e a ligação com o mundo empresarial,
rechaço às disciplinas, mas disseram que,
principalmente com a presença do IAS:
com a diminuição de atribuição de aulas para
as disciplinas que ministravam antes (Socio-
Então, é um apanhado de senso comum sobre,
logia e Geografia), precisaram ministrar al-
para mim, uma espécie, uma mistura de au-
guma disciplina do Inova: toajuda e coach administrativo. [...] É, porque
era algo novo, algo diferente e muito ligado, eu
Pra ser bastante sincera, não houve interesse. acho, também, ao mundo empresarial. É uma
O que acontece é o seguinte, a gente percebe coisa que sempre fica muito claro pra gente,
essa oscilação no número de salas na escola, na né... palavreado usado, as pessoas que eram
minha escola e acho que em quase todas as es- levadas para dar depoimentos também vinham
colas né, então você nunca sabe quantas aulas de empresas. Então, eu acho que tem muito a
você vai ter no próximo ano. [...] Então, aí a ver com isso também, uma entrada desse mundo
possibilidade de ter toda a minha jornada num empresarial, né, no Ensino Médio (Profª Laura).
único período me pareceu atrativo com essas no-
vas disciplinas do Inova (Profª Laura).
Quanto à formação para as disciplinas ele-
tivas, as professoras ainda mencionam sua
Cabe mencionar também o caráter da for-
relação com o mundo profissional e, por
mação oferecida aos professores da rede es-
conseguinte, com o projeto de vida dos es-
tadual para ministrarem as novas disciplinas.
tudantes:
De acordo com a Seduc-SP, as formações de-
veriam ser realizadas à distância por meio É seletiva essas eletivas. Elas estão relacionadas
de cursos sem mediação de 30 horas cada . 10
ao projeto de vida. Ela está relacionada à ideia
Em início, todos os interessados deveriam de profissões. Então, toda a formação, ela te

primeiro concluir o curso para depois se ha- dá esse direcionamento de que as eletivas de-

bilitarem para a ministração das disciplinas. vem estar associadas a uma escolha profissional
(Prof.ª Laura).
Mas, como relata a professora Catharina: “E
quando eu entrei, eu não tinha feito curso
Eletiva, inclusive, ela está relacionada ao projeto
nenhum, porque eles não tinham professor, 10 Ver: <https://inova.educacao.
de vida, é... pra você fazer a montagem das ele-
inclusive, muitos professores interessados sp.gov.br/wp-content/uploads/
tivas na escola, você tem que considerar o que
sites/2/2021/02/regulamen-
nessas aulas, né? E aí eles liberaram pra os alunos indicam como um sonho deles. Então,
to_Inova-seduc-sme-basica-3cur-
quem tava entrando agora, e aí eu fui fazer o tem essa ligação. Os professores não fazem isso,
sos-1ed_2021-fbasica.pdf>. Acesso
curso só depois” (Profª Catharina). na realidade, porque nem dá tempo, sabe? De
em 09/22.
juntar toda essa informação e pensar eletivas a
26

partir disso (Prof.ª Catharina). desde aqui, atenção ao chão da escola res-
ponsável pela implementação do Programa.
Apesar disso, as professoras percebem as
disciplinas eletivas como um ponto positivo Mercado de trabalho e
do Programa Inova. Para elas, é uma opor- os sonhos dos estudantes
tunidade de transmitir um conteúdo novo e
extracurricular para os estudantes, o que per- Um tema que permeou as entrevistas e a
mite também maior liberdade docente: própria pesquisa de que resulta esse artigo foi
a relação entre o Programa Inova Educação
[...] a eletiva eu acho legal, sabe, porque você
e o mercado de trabalho. Nos documentos
tem oportunidade de fazer umas aulas assim,
que balizam as recentes reformas do ensino,
mais legais, assim, né, que eles se empolgam.
E essas eles gostam mais, eu sinto que eles se
em especial do Ensino Médio, a preocupação
envolvem mais, também (Prof.ª Catharina). com a inserção dos estudantes no mercado
de trabalho contemporâneo é dominante.
Apenas uma das professoras ministrava aulas Segundo os reformadores, os estudantes pre-
de Tecnologia. A formação para esse com- cisam ser adaptados a um cenário de insta-
ponente deu-se nas mesmas bases que para bilidade e flexibilidade dos novos postos de
os demais e, segundo a docente, não foram trabalho, de novas habilidades e competên-
suficientes para prepará-la para as aulas, cias requeridas pelos empregadores e de
que envolviam, inclusive, linguagem de pro- ausência de garantias de segurança. Desse
gramação e conteúdo das ciências exatas. modo, o Currículo Paulista aponta para a
Além disso, a falta de estrutura da escola necessidade de preparar os jovens para “o
para a ministração das aulas de Tecnologia desempenho de ‘profissões’, cada vez mais
tornava a missão ainda mais desafiadora e fluidas, intangíveis e mutantes” (SEDUC-SP,
colocava a necessidade de ressignificação: 2020, p. 28).

[...] você imagina você falar sobre tecnologia Muitos autores têm destacado essas mutações
numa escola onde não tem nem computador no mercado de trabalho e a importância que
ou, se tem computador, são poucos e com vári-
a educação toma nesse cenário. É por meio
os problemas, ou eles não têm celular e é umas
da educação formal, do ensino de habilidades
coisinhas muito bestas, assim, muito... ah, para
e competências, que se constituem os tra-
eles não têm muito sentido. E aí, o que a gente
balhadores flexíveis, adaptáveis a qualquer
faz é tentar reinventar e fazer essas discussões
ser mais interdisciplinares para ter algum senti- função, submetidos a condições precárias de
do para eles (Prof.ª Barbara). trabalho e ausência de direitos trabalhistas
básicos (LAVAL, 2004; FRIGOTTO, 2010;
O que já fica claro aqui foi a falta de empen- FERRETTI, 2018). As docentes entrevistadas
ho por parte da Seduc-SP na formação do- apontam como isso se revela nas disciplinas
cente para a ministração desses componentes do Inova:
e da atribuição de aulas de forma que profes-
sores com maior familiaridade com algumas [...] é bem isso, “olha, o mundo do trabalho der-
reteu, o mercado de trabalho é extremamente
temáticas fossem melhor direcionados. Falta,
27

precário e o seu lugar pode ser fazer qualquer truturas próprias desse mercado de trabalho,
coisa”. Né? Então, é isso. A Reforma do Ensino
marcado pela necessidade de alta especiali-
Médio me passa muito isso, que é uma coisa que
zação e da substituição da força de trabalho
deixaria qualquer um da década de 80, talvez,
humana. No entanto, enquanto falseamento
horrorizados, e hoje, não. Que é o que? Falar:
“olha, o que estão reservando para os filhos da
da realidade, convence os indivíduos que,

classe trabalhadora: ah, ele não precisa ter pen- se tendo todas as oportunidades e possibili-
samento crítico, ele não… ele precisa se inserir dades não conseguiram sucesso, então é res-
de alguma forma, porque no mundo pós-moder- ponsabilidade deles:
no ele não tem um emprego que vai durar mui-
to, não tem um emprego com carteira assinada, [...] parte, é, de querer construir nos estudantes
então ele precisa saber se virar. Então, ele não um sujeito passivo frente às transformações nas
precisa ler o mundo, ele não precisa entender o relações de trabalho, inclusive, né, que a gente
mundo, ele não precisa se inserir de forma críti- está vivendo na sociedade atualmente. Então,
ca, porque ele precisa, na verdade, sobreviver” não à toa a discussão de empreendedorismo ela
(Prof.ª Laura). tá encarniçada no currículo, né? E é para con-
vencer os nossos estudantes que se eles fracas-
É essa postura fatalista (cf. FREIRE, [1996] sarem, não conseguirem um emprego, é culpa

2019) e muito marcada por um ideal meri- deles, né, que não estudaram, enfim, que não
se dedicaram. Não da sociedade que eles vivem
tocrático e de empreendedorismo, segundo
que tem a desigualdade social enquanto centro
as professoras, que domina o novo currículo.
(Prof.ª Barbara).
É esse “mundo do trabalho derretido” que se
apresenta como realidade e é a essa realidade
Essas percepções se relacionam com um ou-
que os estudantes precisam ser conformados:
tro ponto muito mencionado pelas docentes e
que parece gerar um incômodo generalizado
Mas não só isso, é, mesmo as ideias contidas
ali é como você vai se adequar a esse mercado
entre elas. As três professoras narraram a di-

de trabalho. Eu acho que tem muito essa ideia, ficuldade de lidarem com a ideia de “sonho”,
olha, qual mercado de trabalho a gente tem? E o muito presente no currículo e associada ao
que você tem ali de pano de fundo - vamos dizer futuro dos estudantes. Nesse sentido, associa-
assim - de mercado de trabalho, é esse mercado do ao ideal meritocrático, a proposta é que,
de trabalho volátil, sem carteira assinada, sem
por meio principalmente da disciplina de
estabilidade, né, mas em vez de passar isso como
Projeto de Vida, os estudantes pudessem se
algo negativo, é passado como algo positivo de
planejar e decidir quais os melhores camin-
oportunidade, que é a ideologia neoliberal, né?
[...] (Prof.ª Laura). hos a seguir para alcançarem seus sonhos: o
que desejam ser no futuro, tanto em termos

Mais do que uma adaptação e a inculcação de profissionais quanto mais amplos.

uma ideologia empreendedora e meritocráti-


ca, as professoras também apontam para um As docentes mencionam um duplo problema

sentido de responsabilização dos sujeitos di- com essa questão. Em primeiro lugar, encon-

ante dos fracassos ou sucessos nesse cenário. traram dificuldade em lidar com os sonhos

A ideologia meritocrática, de conseguir dos estudantes, considerando seus desejos

através do próprio esforço, esbarra nas es- individuais para o futuro, sem frustrá-los.
28

Para elas, ouvir os relatos dos sonhos dos es- dar especificamente com o Projeto de Vida
tudantes conhecendo a realidade social, fa- traz às docentes que, ainda mais num período
miliar e financeira de cada um, apresentou o de pandemia, não se veem preparadas para
desafio de incentivar seus alunos e alunas e administrar. As docentes relataram como em
mostrar as reais possibilidades que se abrem muitas atividades das aulas de Projeto de
para eles: Vida, os estudantes acabavam por relatar as-
pectos muito sensíveis de suas vivências, so-
Pra quem vem da escola pública, você tem nhos de futuro que iam muito além da esco-
que dar esse real pra ele, porque senão você tá
lha de uma profissão, e que exigiam das pro-
mentindo. O problema é a mentira. Porque não é
fessoras estrutura e preparo psicossocial que
verdade que quem se esforça chega, cê entende?
a formação para o componente não abarca.
[...] Ele tem que saber como ele tá inserido na
sociedade para ele não se frus trar e ao mesmo
[...] [O componente Projeto de Vida] permite,
tempo não desistir. Então, trabalhar com essas
talvez, a gente ter um tipo de relação mais ínti-
duas coisas não é a mesma coisa que ir atrás de
ma com os estudantes que estiverem dispostos a
sonho. A ideia de sonho, ela é muito perigosa
se abrir com o professor. A grande questão é que
para ser trabalhada com alguém que não sabe
isso gera uma demanda emocional, inclusive,
fazer isso e não tem preparo para fazer isso [...]
muito grande, né? Tanto para os professores
(Prof.ª Laura).
e que, por vezes, não tem formação até para
tentar lidar com esses problemas que os alunos
Além disso, as docentes notam que, mais do
acabam por relatar, tipo, de violência sexual
que introduzir uma ideia romantizada do dentro de casa, é... de desemprego, de agressão
mercado de trabalho, capaz de frustrar os dos pais nas suas mães, as suas companheiras...
estudantes, o novo currículo também impõe então, de alguma maneira, a gente começa a ter,

uma ideia de futuro, baseada no mercado de pode vir a ter uma relação mais estreita com os

trabalho e na necessidade de consumo: estudantes. Mas, assim, no meu caso, em espe-


cífico, eu tenho isso independente da disciplina
de Projeto de Vida. É que como a disciplina de
Os sonhos nunca são por puro prazer, né. Eles
Projeto de Vida trabalha muito com essa ideia
são sempre pra você já ter um plano, entendeu,
do sonho, né, “o que eu quero ser”, “o que que
do que você quer fazer. Não é como se fosse um
eu vou fazer para alcançar isso”, “qual que é a
- como fala - um hobby deles. [...] Não tem es-
minha realidade” e tudo mais, pode ser que os
paço para outra coisa e por mais que - às vezes,
estudantes acabem por se abrir mais (Prof.ª Bar-
eu falo para eles, né - que, às vezes, o sonho não
bara).
é o “ter”, vocês não precisam pensar só dessa
forma [...]. O Projeto de Vida vem para dizer
que eles mais do que querem, eles precisam, No entanto, como mencionado na fala acima
sabe, como se eles tivessem que precisar fazer e reverberado nas falas das demais docentes,
tudo isso, assim. Porque outras pessoas estão fa- essa relação estreita entre professor e es-
zendo e, se eles não correrem, não fizeram tudo
tudante é anterior à existência das novas dis-
certinho, não vão conseguir alcançar o sonho
ciplinas. O que aparece como um problema
deles (Prof.ª Catharina).
é que, especialmente o componente Projeto
de Vida, institucionaliza um espaço para que
O segundo aspecto relacionado à ideia de
os estudantes revelem grande parte de suas
sonho diz respeito à carga emocional que li-
29

demandas e desafios às docentes, em quanti- Mas eu quero dizer que a ideia de ter uma disci-
plina que ajude, auxilie o estudante na organi-
dade muito superior ao que elas recebiam an-
zação da sua vida, eu não acho ruim. Eu acho
tes, sem que as professoras possuam preparo
que é uma orientação a mais e não acho ruim,
adequado ou estrutura para lidar com essas
acho que é bom, na verdade. [...] Mas eu acho
demandas. O Programa Inova, principal- que como ela tá sendo implementada e o obje-
mente por meio do componente Projeto de tivo que acaba ficando claro é que mancha um
Vida, parece exigir que os profissionais da pouco a ideia, talvez, original, [...] eu acho que

educação desocupem seus cargos de magis- é muito empresarial. [...] hoje, a escola pública

tério e se tornem psicólogos ou coaches dos tá muito atravessada pela lógica empresarial, in-
clusive com as empresas lá dentro, né? (Prof.ª
estudantes.
Laura).

Papel da escola na orientação Para além disso, mais do que a visão empre-
dos estudantes sarial da escola, as professoras discordam da
ideia dos reformadores de que o problema da
Perguntamos também às docentes qual o pa-
educação seria seu caráter muito conteudista
pel da escola e da docência e se a orientação
e que a solução para isso seria focar em com-
para a vida, como proposto pelas Reformas
petências e habilidades. As docentes defen-
e materializado, principalmente, no com-
dem que o papel da educação e da docência
ponente Projeto de Vida, fazia parte desse
é colocar o estudante em contato com o con-
papel. Apenas uma das docentes rejeitou
hecimento científico produzido e acumulado
completamente a ideia de que a escola de-
pela humanidade e acolher os conhecimentos
veria auxiliar os estudantes a planejarem e
que ele próprio traz para a sala de aula:
alcançarem seus objetivos. As outras duas
afirmam que esse é uma das funções da edu-
[...] que ele tenha contato com o que a humani-
cação e que cabe, sim, aos docentes, não sen- dade produziu de conhecimento. Essa é a parte
do, no entanto, seu papel principal: realmente fundamental da escola [...]. Então,
eu acho que é esse o papel do professor. [...] E
[...] não sei se é o papel, mas eu acho que faz outra muito importante, o papel é mostrar pro
parte do processo educacional mostrar pra esse estudante que aquilo que ele conhece também é
estudante do que, no que ele é bom. Qual é o po- importante. Que é a parte mais difícil pros pro-
tencial dele. Então, acho que é o papel da escola fessores. É entender que o estudante não é uma
extrair o máximo de potencial de cada estudante folha em branco. [...] esse é o papel principal
que a gente tem (Prof.ª Laura). da escola, ser essa via de mão dupla aí entre o
conhecimento acadêmico e o conhecimento que
a criança ou o adolescente traz da sua vivência
No entanto, a proposta do Programa Inova
(Prof.ª Laura).
Educação em si não parece adequada. Para
as docentes, o ideal empresarial que atraves-
Além disso, aparentemente disputando com
sa o currículo acaba suplantando os benefíci-
a ideia de que as reformas curriculares visam
os de auxiliar os estudantes a pensarem e
formar um estudante acomodado e passivo
planejarem seus futuros:
frente à sociedade desigual e ao mercado de
trabalho derretido da contemporaneidade, as
30

docentes defendem que o papel da escola é provável a manutenção da implementação do


formar estudantes críticos, capazes de refletir Programa Inova Educação. No entanto, pelo
sobre suas próprias condições de vida: contrário, a implementação não só se man-
teve como, em 2021, a comunidade escolar
[...] induzir eles a pensarem sobre o contexto se deparou com uma nova reorganização do
social que eles vivem, pensando nas Ciências
Ensino Médio: o Novo Ensino Médio, intro-
Humanas, né? [...] a gente perde muito tempo
duzido pelo novo Currículo Paulista, incluin-
se prestando à psicólogo invés de colocar esse
do os itinerários formativos.
conhecimento mesmo. Tem tanta coisa para
aprender, mas tanta coisa. [...] Esse é o verda-
deiro autoconhecimento, você conseguir refletir Nesse cenário incerto, as docentes avaliam
sobre tudo, sobre a sociedade em que você vive. as ações da Seduc-SP como um oportunismo:
(Prof.ª Catharina). durante a pandemia, tendo que lidar com as
demandas muito específicas dos estudantes,
Implementação além das ansiedades e do medo, distantes da
escola e com uma carga de trabalho muito
Como já mencionado, o Programa Inova superior do que jamais experimentaram, a
Educação começou a ser implementado em organização da categoria para refletir, criti-
2020. Com a notícia da pandemia de coro- car e contrapor as reformas se torna inviável:
navírus, as aulas presenciais foram suspensas
por aproximadamente um mês (entre março [...] eu fico pensando se não foi para se aprovei-
tar mesmo do momento, às vezes eu fico pensan-
e abril) e retornaram em uma modalidade
do que teve uma maldade. Porque você não tem
virtual, com apoio do Centro de Mídias SP
nem como se articular contra ou pensar numa
(CMSP) e da TV Educação 11 . O CMSP é uma
forma diferente, porque você tá num turbilhão
plataforma criada com o objetivo de “con- do ensino híbrido, você tá numa loucura, né, de
tribuir com a formação dos profissionais da não saber como buscar estudante. Você tá com
rede e ampliar a oferta aos alunos de uma tantas tarefas, na verdade, para além de dar

educação mediada por tecnologia [...]”12. Em aula e pensar na sua prática que não é muito

meio à pandemia, com a impossibilidade de fácil de refletir sobre isso. [...] os professores
também tiveram que fazer toda essa adaptação,
retorno às aulas presenciais, o CMSP serviu
essa mudança no currículo, sem entender muito
de suporte para a transmissão de aulas para
bem, porque também tem o ano da pandemia,
todos os estudantes da rede. Todos os es-
no momento em que a gente não tem como mat-
tudantes tinham acesso ao conteúdo trans- urar isso porque a gente tá fazendo 20 coisas ao
11 Ver: https://www.educacao.
mitido pela plataforma e, no contraturno, po- mesmo tempo (Prof.ª Laura).
sp.gov.br/confira-decretos-e-res-
diam participar das aulas virtualmente com
olucoes-de-educacao-implementa-
seus próprios professores. Para além do oportunismo, o momento de dos-durante-pandemia/. Acesso em
implementação parece inadequado por, ao 06/22.
Diante da necessidade de reajuste menos, mais duas razões. Em primeiro lugar,
profundo da dinâmica das aulas, de medidas contrariando o discurso de que as reformas 12 Disponível em: https://centro-
tomadas às pressas para garantir que os es- foram amplamente discutidas com a socie- demidiasp.educacao.sp.gov.br/o-

tudantes ao menos tivessem acesso aos con- dade civil e, em especial, com professores e que-e-o-centro-de-midias/. Acesso

teúdos programáticos para o ano, parecia im- estudantes, as docentes apontam para o des- em 06/22.
31

contentamento e falta de apoio da categoria Assim, para um estudante que não é esse es-
tudante (Prof.ª Laura).
para as mudanças: “[...] não é um projeto
adequado, não consultou os professores e
teve amplo rechaço da categoria, e mesmo Mais do que uma insensibilidade com a situ-

assim foi imposto goela abaixo” (Prof.ª Bar- ação real dos estudantes da rede, essa dis-

bara). A resistência e crítica dos docentes tância entre o que propõe os reformadores

puderam ser notadas no momento de elabo-13 e o que vivenciam os estudantes – numa

ração mesmo da BNCC e continuaram a ex- 14 situação limite como a pandemia – expõe

istir mesmo após a pandemia . Desse modo, uma incompreensão mais geral da situação

nota-se um descompasso entre a reforma e o da educação pública no país e dos reais mo-

chão da escola. tivos de evasão e abandono escolar. Os refor-


madores atribuem à distância entre escola e

Uma última incoerência apontada pelas pro- vida os altos índices de evasão e as baixas

fessoras diz respeito a suas percepções da notas nos exames nacionais e internacionais.

condição dos estudantes no momento pan- Em sua visão, a escola não é mais atrativa

dêmico. Afetados emocional, social e ma- para a juventude, não se comunica com ela,

terialmente, a escola passou a ocupar um e, por isso, os jovens evadem ou não estão

lugar diferente na vida dos jovens. Muitos interessados em aprender. Essa culpa recai

evadiram, grande parte precisou começar a também sobre a gestão e os professores que,

trabalhar – se já não o faziam -, as demandas com seus métodos supostamente arcaicos de

domésticas aumentaram, o luto passou a fa- ensino, suas disciplinas e currículos enges-

zer parte do cotidiano, a saúde mental foi de- sados, tornam o Ensino Médio distante dos

teriorada, entre outros fatores que colocaram jovens. No entanto, o que aparece na fala

a finalização dos estudos em segundo plano. das docentes entrevistadas é uma visão mais 13 Ver, por exemplo, a manifestação

Nesse contexto, as docentes notaram um geral, mais pautada na vivência cotidiana de estudantes e professores realizada

afastamento dos estudantes da escola, não só com os estudantes: é a fome, o desemprego, no momento da segunda audiência

pública pela aprovação da BNCC em


físico como também de interesse, aliado à in- a falta de perspectiva de futuro que afasta
junho de 2018: <https://novaesco-
consistência entre os objetivos das reformas os estudantes da sala de aula. Mais uma vez,
la.org.br/conteudo/11851/bncc-au-
e suas reais necessidades: aqui, há um desencontro entre a reforma e a
diencia-e-cancelada-apos-protes-
realidade do chão da escola.
to-de-professores-e-estudantes>.
Mas eu noto que do ano passado para cá tem
Acesso em 01/22.
uma desorganização, uma desmobilização mui- Controle docente
to grande. Muitos foram trabalhar, os pais per-
14 Ver, por exemplo, a Carta aberta
deram o emprego, e aí os planos deles ficaram
Por fim, uma marca profunda nas falas das pela revogação da Reforma do Ensi-
não sei se para depois [...]. Mas eu acho que
professoras foi o descontentamento em no Médio assinada por um conjunto
deu uma queda bem grande, né? Nesses planos.
relação a um aprofundamento do controle de associações, fóruns e outras enti-
Uma desanimada, né? Porque a gente tem aluno
passando fome, que vai buscar a cesta básica,
sobre os docentes da rede. Segundo elas, com dades ligadas à educação: https://

entendeu? Que os pais vão lá na escola, fala: “a o Novo Ensino Médio, mas também impul- www.anped.org.br/news/car-

gente não tem o que comer”. [...] Então, às vez- sionado pela pandemia e pela necessidade ta-aberta-pela-revogacao-da-refor-

es, também, quando eu olho muitas coisas do de tornar digitais os processos burocráticos, ma-do-ensino-medio-lei-134152017.

material [...] é que é meio classe média. Sabe?


o controle sobre a prática docente se tornou Acesso em 09/22.
32

mais acirrado: senti desgosto. Perdi muito do encanto com


essa Reforma, com o nível de controle sobre o
professor, sobre a tentativa de, sabe, controlar a
Hoje, de alguma maneira, a gente consegue ain-
atividade docente e com essas disciplinas e tudo
da, né, fazer essas burlagens. Mas é cada vez
isso (Prof.ª Laura).
mais, é um controle maior do trabalho docente e
que inviabiliza a gente ficar buscando formas de
conectar (Prof.ª Barbara). São as professoras engajadas, encantadas
com o ato de ensinar, descontentes com o
A “burlagem” a que a professora Barbara modo como a implementação do Novo En-
se refere diz respeito às possibilidades de sino Médio se deu e sobre o conteúdo mes-
resistência ensaiadas nas salas de aulas aos mo das reformas, são as professoras compro-
modelos curriculares implementados. Apesar metidas com seus e suas estudantes, que os
de a sala de aula ainda não ter sido tomada reformadores sobrecarregaram, controlaram
pelos reformadores, o que abre espaço para e, agora, correm o risco de perder.
possibilidades de ressignificação, as docentes
avaliam a dificuldade de fugir do proposto, Considerações Finais
seja pelo enxugamento do currículo, seja
pelas formas burocráticas, como por meio Apesar do discurso de participação da socie-
do “diário de classe digital”, de controle da dade civil na elaboração das reformas edu-
prática docente: cacionais recentes, em especial do Ensino
Médio (MICHETTI, 2020), as docentes não
Diário digital. Você não pode ter mais diário físi- parecem ter se apropriado dos discursos, tam-
co, é um inferno. Né? Registro das aulas: você
pouco se sentido participantes ativas desse
vai registrar suas aulas, não é você que registra,
processo, abandonando as ideias curriculares
a aula está lá registrada. Então, você tem que
propostas e seguindo pelo que achavam mais
dar aquela aula. Se você mudar tem que colocar
na observação lá porque você mudou e o que coerente. O questionamento que fica é como
que você fez. Esse nível de controle é entrar den- uma reforma educacional sem apoio dos pro-
tro da prática docente diária, diária, cotidiana fessores pode se concretizar na prática.
(Prof.ª Laura).

Além disso, pudemos constatar o abuso das


A esse controle intenso, que consegue se ca- novas disciplinas, a sobrecarga de trabalho
pilarizar para o interior da sala de aula, que docente e o controle exercido pela rede es-
deveria ser espaço de autonomia do profes- tadual sobre as servidoras. Mais do que lidar
sor, a professora Laura atribui a falta de en- com a implementação de mudanças profun-
canto da atividade professoral e a vontade, das no ensino, de se adaptarem à ministração
pela primeira vez em 12 anos, de deixar a de novas disciplinas para as quais tiveram
profissão: pouco ou nenhum preparo, as docentes en-
trevistadas também tiveram que lidar com os
[...] é a primeira, a primeira vez, primeira vez
efeitos da pandemia nos estudantes, a pressão
na minha vida, [..] depois de 2009 até hoje, que
geral sobre os professores, além do medo do
eu pensei em deixar a profissão. Foi esse ano.
contágio por Covid-19. Quando iniciou o re-
Tive muita vontade. Tenho ainda. [...] sabe,
33

torno presencial às escolas, essas docentes al das escolas e da juventude que frequenta
tiveram que lidar ainda com estudantes que a escola. Mais do que distante da docência,
perderam muito, não apenas em termos de a Reforma do Ensino Médio parece estar dis-
conteúdo curricular, mas de sociabilidade, tante dos estudantes que busca atender.
saúde emocional e financeiramente.
No entanto, o que também foi notado du-
Soma-se a isso a necessidade de administrar, rante a realização da pesquisa, foram as pos-
em meio a um cenário incerto, as exigências sibilidades abertas de resistência. Como men-
das novas disciplinas do Inova, que pressupõe cionou a professora Laura:
certeza sobre os objetivos futuros e sobre o
mundo futuro para os estudantes, além de se Uma coisa é o que é pensado, outra coisa é o
que é processado pelos professores lá na ponta,
tratarem de mudanças das quais não fizeram
né. [...] Então acho que é isso que os professores
parte, com as quais não concordam e para
tentam fazer, né. Pensando em como ele é cria-
as quais não tiveram formação suficiente.
do e como chega, né, na ponta, eu vejo muitos
Por fim, temos os mecanismos de controle professores que eu conheço, pelo menos, com
invadindo a sala de aula, interrompendo o essa preocupação de não ser o que realmente
fluxo do trabalho de ensino-aprendizagem parece. Fazer, mas não fazer exatamente daque-

e forçando as docentes a reconsiderarem a la forma, ou seja, ter alguma autonomia sobre

docência como profissão. essa narrativa que tá sendo passada para o es-
tudante através dos cursos (Prof.ª Laura).

O Programa Inova Educação e o Novo Ensino


Apesar das tentativas de invasão da sala de
Médio foram e estão sendo implementados
aula e de cerceamento da autonomia docente,
sem o respaldo e sem a participação de pro-
a relação estabelecida entre professores e es-
fessores e professoras – considerando o dado
tudantes na escola, especialmente no interior
alarmante de 17% das aulas sem professores
da sala de aula, ainda oferece oportunidades
denunciado pela Rede Escola Pública e Uni-
e perspectivas de ressignificação e resistên-
versidade (REPU, 2022). Se a consideração
cia.
inicial era de que a implementação dependia
do envolvimento de estudantes e docentes, o
que se vê é a desconsideração desses atores
por parte da Seduc-SP e dos atores privados
diretamente envolvidos nesse processo.

Além disso, apesar da promessa de reaproxi-


mar a escola das necessidades e interesses
reais dos estudantes, o Novo Ensino Médio
parece contribuir ainda mais para um distan-
ciamento profundo entre o que vivenciam os
estudantes da rede pública e o que é proposto
no currículo. Isso porque desconsidera a real-
idade social, econômica, emocional e materi-
34

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CARVALHO, Celso do Prado Ferraz; CAVALCANTI, Fabio. O Novo Ensino Médio Paulista: velhas propostas de ma-
nutenção da dualidade estrutural e da precarização do ensino. Em: Revista Educação & Formação, Fortaleza, v. 7, 2022,
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FERRETTI, Celso João; SILVA, Monica Ribeiro. Reforma do Ensino Médio no contexto da Medida Provisória nº
746/2016: Estado, currículo e disputas por hegemonia. Em: Educação & Sociedade, vol. 38, n. 139, abril-junho, 2017,
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 60ª ed. São Paulo: Paz e Terra, [1996]
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LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. Londrina, PR: Planta,
2004.

LIMA, Márcia. O uso da entrevista na pesquisa empírica. Em: Métodos de pesquisa em Ciências Sociais: Bloco Qualitati-
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MICHETTI, Miqueli. Entre a legitimação e a crítica: As disputas acerca da Base Nacional Comum Curricular. Em: Revista
Brasileira de Ciências Sociais, vol. 35, n. 102, 2020, pp. 1-19.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Parecer CNE/CP nº:15/2017. Brasília, DF, 2017.


SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Plano Estratégico 2019-2022: Educação para o Século XXI.
São Paulo, 2019. Disponível em: < https://www.educacao.sp.gov.br/wp-content/uploads/2019/07/Plano-estrategi-
co2019-2022_final-5-min.pdf >. Acesso em abril de 2021.

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Currículo Paulista Etapa Ensino Médio. São Paulo, 2020a.
Disponível em: <https://efape.educacao.sp.gov.br/curriculopaulista/wp-content/uploads/sites/7/2020/08/CUR-
R%C3%8DCULO%20PAULISTA%20etapa%20Ensino%20M%C3%A9dio.pdf>. Acesso em janeiro de 2021.
35

UMA NOVA GUERRA, UMA VELHA LIÇÃO


por Ricardo Scopel Velho
Professor de Sociologia no IF Catarinense; Pós-doutorado em Educação.
E-mail: ricardo.velho80@gmail.com

RESUMO
O artigo apresenta alguns mecanismos de como o capitalismo, em sua especificidade, se relacio-
na com as guerras, diferenciado-se assim os conflitos bélicos os quais obedecem a outra lógica
societária distinta dos modos de produção feudal e escravista. Tais especificidades ocorrem pela
integração do mercado em escala planetária, demonstrada pela necessidade das corporações
competirem entre si por acesso a recursos materiais ou tecnológicos. Os dados da mídia informa-
tiva corroboram a hipótese por meio das ações concretas dessas empresas. Apresenta-se aqui os
limites das interpretações baseadas apenas no Estado Nacional como o determinante dos confli-
tos bélicos atuais e aponta para a possibilidade de um novo período histórico no qual as guerras
incorporarão os atores não estatais nos cenários de conflitos intercapitalistas.

Palavras-chave: Guerra, Estado Nacional, Sanções Comerciais, Capitalismo.

Para a imensa maioria dos analistas políti- Em todos os conflitos bélicos dos últimos 300
cos do mundo, o impensável aconteceu. Uma anos, após a construção do que se chama Paz
guerra com potencial nuclear. A entrada da de Westfália, temos regras para as relações
Rússia em território ucraniano foi um ato internacionais que se baseiam na soberania
de defesa da segurança interna, de acordo estatal. A conformação de diferentes estados
com Putin, e de ataque à soberania estatal, nacionais, com exército próprio, com normas
segundo o governo Zelensky. As diferentes e leis internas homogêneas e o estabeleci-
“narrativas” são parte da própria guerra. A mento de diplomacia permanente foi a tenta-
entrada da Ucrânia da União Europeia (UE) tiva de estabelecer um sistema de equilíbrio
e na Organização do Tratado do Atlântico de forças contra-hegemônico nas relações
Norte (OTAN) são reivindicações dos grupos interestatais, sob o princípio da igualdade
de poder no atual governo e entram em cho- derivada do mercado. Sabe-se que a transição
que com outros grupos políticos e econômi- do feudalismo para o capitalismo exigiu a
cos que têm mais alinhamento com a Rússia. criação de instituições as quais deram fun-
Para entender esse complexo jogo de intere- damentos jurídicos para a expansão da for-
sses é preciso desmistificar alguns pressupos- ma mercadoria. Desde os liberais clássicos,
tos dados como certos no senso comum das como Adam Smith, o conceito de “nação”
análises. torna-se uma categoria analítica chave. As
36

noções de “território”, “povo” e “governo” As revoluções operárias derrotadas, princi-


são generalizações da necessidade premente palmente de 1848 até hoje, tem esse mesmo
de normalizar as relações econômicas entre caráter, pois foram guerras, entre classes, nas
agentes do mercado. Portanto, o “Estado Na- quais os trabalhadores confrontavam o poder
cional” foi determinado historicamente pela e questionavam a ordem estabelecida. Por
expansão do mercado mundial. esse prisma, as guerras são parte constituin-
te de uma das faces mais brutais do sistema
Os conflitos bélicos, a partir do capitalismo, de mercado, pois este cria, por meio da vio-
obedecem a outra lógica societária distinta lência, uma grande quantidade de seres hu-
dos modos de produção feudal e escravista. manos que só possuem o próprio corpo e sua
Esse artigo apresenta uma interpretação so- capacidade de produção para vender. A prin-
bre os limites das interpretações baseadas cipal característica do capitalismo, portanto,
apenas no Estado Nacional como o deter- surge dessa violência organizada no formato
minante dos conflitos bélicos atuais e apon- de uma guerra entre as classes.
ta para a possibilidade de um novo período
histórico no qual as guerras incorporarão os A outra característica fundamental da relação
atores não estatais nos cenários de conflitos entre a guerra e o capitalismo é a capacidade
intercapitalistas. de criar e de destruir, quase simultaneamente,
forças produtivas em escalas monumentais.
O capitalismo e as guerras Na deflagração de conflitos, por recursos
materiais disponíveis, as guerras ensejam o
Sob o modo de produção capitalista a lógi- domínio territorial, seja da terra, do ar, do
ca do desenvolvimento tecnológico e políti- mar, do espaço ou do ciberespaço. Isso impli-
co segue a determinação dos interesses da ca no desenvolvimento de uma indústria, que
acumulação de capital, o qual sempre ocorre reivindica, em escala crescente, recursos da
por meio do consumo da força de trabalho sociedade para o chamado “esforço de guer-
para produção de qualquer outra mercado- ra”. Ora, isso nada mais é do que o acele-
ria. O atual modo de produzir a vida é fru- ramento da própria relação capitalista, com
to de inúmeras violências, a principal delas mais meios de produção consumindo mais
é a separação dos produtores de seus meios força de trabalho para criar mais mercadori-
de produção. As inúmeras guerras aconteci- as. Numa guerra essas mercadorias se reali-
das, desde o século XV, tem por resultado a zam, quase que instantaneamente, seja nas
acumulação de forças produtivas por quem linhas amigas na forma de roupas, comida,
vence o conflito. Notem que a afirmação não equipamentos e armas, seja nas linhas inimi-
se fundamenta apenas na vitória externa, ou gas na forma de bombas, projéteis e mísseis.
seja, de um Estado Nacional contra outro, Percebam que a relação capitalista se alimen-
mas sim de agentes humanos agrupados em ta das guerras como a ferrugem do aço.
classes sociais, os quais controlam distintos
recursos de poder, inclusive, as instituições A produtividade geral do sistema é um ponto
jurídicas e políticas. O que inclui, portanto, chave para as taxas de acumulação de capi-
as vitórias internas desses grupos de poder. tal. Um conflito armado é muito importante
37

para que os equipamentos exigidos por uma bardeios, anexações e enfrentamentos di-
guerra alavanquem o desenvolvimento de retos, entre nações, que por sua vez, se
tecnologias novas ou aplicações produtivas lançavam como potências imperiais. Assim
para as antigas. Esse processo sempre fez foi com Espanha e Portugal, depois com In-
avançar muito a capacidade de produção do glaterra, França e Alemanha e mais recen-
sistema capitalista. temente, com os Estados Unidos. As duas
grandes guerras do século XX nada mais fo-
Os dados demonstram, que na semana ram do que guerras imperialistas, em que as
seguinte ao início da Guerra na Ucrânia, as nações envolvidas pretendiam impor a ou-
empresas da área de armamentos tiveram al- tras os seus interesses econômicos e políti-
tas nas bolsas de valores. cos. A direção dessas nações se deu por meio
de classes burguesas nacionais vinculadas às
Tais apontamentos demonstram que a guerra corporações que se desenvolveram em terri-
é uma exigência intrínseca ao próprio ser do tórios delimitados pelas fronteiras nacionais.
capital e não apenas um momento destruti- Desta maneira, tais classes burguesas, pro-
vo de forças produtivas em períodos de crise duziram dirigentes políticos e militares que
cíclica. compunham os estratos gestores daquelas
sociedades. Todas as vezes que seus interes-
As classes sociais e ses burgueses nacionais foram colocados em
os Estados risco foi acionado o mecanismo de repressão
estatal. Isso vale para ameaças externas, mas
O sistema de estados criado em meados do também ameaças internas vindas de outras
século XVII conviveu com guerras por ex- classes adversárias dos interesses burgueses
pansão de mercados, com invasões, bom- nacionais. Todo o século XIX, com suas rev-

Figura 1 Com guerra na Europa, indústria da defesa cresce nos EUA.


38

oluções frustradas ou massacradas compro- ticipação no mercado mundial e a ascensão


vam essa tese. de empresários, com interesse distintos, no
governo ucraniano os impedem. Não impor-
Tais classes acumularam riquezas e capital, ta qual seja o passaporte desses empresári-
ininterruptamente, desde seu surgimento, os! Inclusive, descobrimos que vários desses
seja em tempos de paz, seja em tempos de capitalistas não são nem russos, nem ucrani-
guerra. Agora, em pleno século XXI, temos anos, nem estadunidenses, mas sim cidadãos
uma realidade distinta da vivida até então. de países que lhes dão vantagens fiscais. O
As cadeias produtivas globais estão forte- capital e suas personificações não têm
mente integradas e qualquer alteração gera bandeira.
um efeito em cascata em escala planetária.
Os fenômenos atuais são ricos em mostrar Já ouvimos a frase que a guerra é a continu-
os efeitos dessa integração, por exemplo, as ação da política por outros meios, mas a
sanções econômicas contra a Rússia, que na política também é a continuação da econo-
verdade, são sanções que restringem o aces- mia por outros meios. Ora, os atuais gover-
so a certos mercados por certas corporações, nos nacionais nada mais são do que gerentes
vejam: de interesses econômicos de grandes corpo-
rações privadas que visam o lucro. Tanto Pu-
A ExxonMobil anunciou ontem que sairá de uma tin, como Zelenski, em entrevistas recentes,
joint venture na Ilha Sakhalin, no leste da Rús-
afirmam uma identidade de CEO’s, ou seja,
sia, e não investirá em outros empreendimentos
verdadeiros gerentes de seus países. Por ou-
no país. A BP planeja abandonar sua partici-
tro lado, alguns capitalistas estão intervindo
pação de 19,75% na gigante petrolífera russa
diretamente no teatro de operações da guer-
Rosneft. A decisão encerra 30 anos de operação
no país, um dos maiores produtores de petróleo ra, como por exemplo, Elon Musk, que dis-
do mundo. A Shell também informou que en- ponibilizou suas plataformas para uso de in-
cerrou todas as suas operações russas, incluin- ternet durante o conflito. Vejam a sua frase,
do joint ventures com a estatal de gás Gazprom no dia 14 de março de 2022:
e uma grande usina de gás natural liquefeito
(GNL, 2022).
A Starlink é o único sistema de comunicação
não-russo que ainda funciona em algumas partes
O que está em jogo com tais sanções é a par- da Ucrânia, então a probabilidade de ser alvo

ticipação dessas empresas nos mercados glo- é alta. Por favor, use com cautela. (Portal G1,

bais e como suas concorrentes operam para 2022).

se equilibrar na geopolítica e na geoecono-


mia do capital. A argumentação desenvolvi- Elon Musk é um novo tipo de ator que surge

da até aqui nos leva à seguinte hipótese: nos conflitos contemporâneos. Ele é a person-

os capitalistas que operam algumas em- ificação individual de uma cadeia produtiva

presas influenciam decisões de governos que está em concorrência direta com empre-

para enfrentar dificuldades de mercados. sas sediadas em território russo. Assim, como

Os empresários com ascendência no gover- as sanções econômicas não são operacion-

no Putin têm interesses em ampliar sua par- alizadas pelos governos, mas sim pelas em-
39

presas que definem se é vantajoso ou preju- de cartão de crédito chinesa adotada na Rússia
após Visa e Mastercard suspenderem operações
dicial aos seus negócios. As notícias desse
| Ucrânia e Rússia | (Portal G1, 2022).
fenômeno apontam nesse sentido, como por
exemlo que as empresas Ford, Visa, Spotify
A revista Isto é Dinheiro está apostando que
deixaram a Rússia após início da guerra, de
a aliança faz parte de um bloco econômico,
acordo com a CNN Brasil.
a notícia é clara: A China é o escudo de Pu-
tin contra as sanções financeiras de EUA e
Por outro lado, a corporações alinhadas ao
aliados. (Seu Dinheiro, 2022). Vejam que as
estado russo estão ampliando outros mer-
fronteiras não são mais apenas nacionais, são
cados fortalecendo assim uma mega aliança
fluidas, quem detém o poder sobre esse ter-
econômica viabilizada pelas sanções ociden-
ritório exerce o mando. O caso chinês é em-
tais. Por exemplo:
blemático de como a massa humana pode ser

Após sanção alemã ao gasoduto Nord Stream


um elemento estratégico fundamental para o
2, estatal russa Gazprom assina contrato para desenlace de um conflito bélico. Bilhões de
construção do gasoduto Soyuz Vostok, que for- pessoas movimentam muitos recursos e os
necerá gás à China. Novo gasoduto passará pela empresários ocidentais sabem disso, mas ao
Mongólia e conectará sistemas do oeste e leste
mesmo tempo, não podem simplesmente ig-
russos, podendo redirecionar para a Ásia o gás
norar as áreas de atrito, como demonstra as
fornecido à Europa. Empresa prevê capacidade
guerras latentes na Coréia, em Taiwan e no
de 50 bilhões m³ anuais, quase a mesma do Nord
mar da China.
Stream 2 (55 bilhões m³). (Bloomberg, 2022).

Ainda temos que verificar como essas


Além disso, a sanção aplicada na esfera da
grandes empresas não podem realizar todas
circulação de mercadorias por meio da sus-
as ações necessárias para atacar ou defender
penção de operações de cartão de crédito
suas posições no mercado. Elas ainda preci-
VISA e MASTERCARD teve uma resposta
sam do Estado, como fonte de legitimação e
imediata pelos concorrentes. Os capitalistas
de coerção clássica. Em um momento de sin-
chineses foram rápidos em oferecer sua plan-
ceridade possível apenas em momentos ím-
taforma de compras para viabilizar as opera-
pares na História, um CEO deixou claro para
ções financeiras suspensas pelo ocidente.
o público a posição do empresariado:

O anúncio ocorreu após a decisão das gigantes


americanas Visa e Mastercard de suspender as Segundo o Svein Tore Holsether, Presidente

operações na Rússia. A mudança para a Union- e CEO da Yara International, “é crucial que a

Pay foi anunciada pelo maior banco da Rússia, comunidade internacional se reúna e trabalhe

o Sberbank, além do Alfa Bank e o Tinkoff, se- para garantir a produção mundial de alimentos

gundo agências de notícias internacionais. A e reduzir a dependência da Rússia, embora o

UnionPay é considerada a maior rede de cartões número de alternativas hoje seja limitado. Isso

do mundo. Com mais de 7 bilhões de cartões constitui um dilema difícil entre continuar abas-

em circulação, ela é a mais usada na China e tecendo-se da Rússia a curto prazo ou cortar a

também é aceita internacionalmente, embora Rússia das cadeias alimentares internacionais.

em menor escala. - O que é UnionPay, bandeira A última opção pode ter consequências sociais
40

consideráveis. Essas considerações não devem pois quem controla o centro do tabuleiro tem
ser feitas por empresas individuais, mas preci-
vantagens estratégicas. Porém, indo além,
sam ser feitas por autoridades nacionais e inter-
existe uma questão geoeconômica em pauta:
nacionais”. “A urgência agora está em ajudar a
os recursos energéticos disponíveis em terri-
Ucrânia e o povo ucraniano. Ao mesmo tempo,
estamos pedindo aos governos noruegueses e in-
tório ucraniano e a tecnologia nuclear domi-

ternacionais que se unam e protejam a produção nada pelas empresas alinhadas ao estado rus-
global de alimentos e trabalhem juntos para di- so.
minuir a dependência da Rússia”, resumiu ele
(COMPRE RURAL, 2022). Para argumentar sobre isso é preciso visua-
lizar o mapa abaixo.
A geopolítica dos
recursos energéticos Fica evidente a existência de minérios impor-
tantes na região, além dos gasodutos, agora
Há um elemento pouco comentado nas em território controlado pelas forças russas,
análises sobre o atual conflito na Ucrânia: o que abastecem a Europa e a Turquia. Além
que está em jogo naquele território? Existem disso, existem instalações de produção de
teorias clássicas sobre o domínio do coração energia nuclear com grande capacidade in-
da heartland que alguns autores chamam de stalada. A cadeia de produção desse tipo de
eixo pivô da grande ilha eurasiana. Do ponto energia exige tecnologia e matérias-primas
de vista geopolítico isso tem muito sentido, muito específicas cuja expertise é dominada

Figura 2: Principais cidades, recursos naturais e grupos étnicos da Ucrânia.

Fonte: https://suburbanodigital.blogspot.com/2022/02/mapa-da-ucrania-principais-cidades.html
41

pelos russos. Notem, a Rússia é líder mundial cadeia de suprimentos se tornou globaliza-
da. Em julho deste ano, um grupo bipartidário
na construção de usinas nucleares.
de ex-comissários do NRC enviou uma carta ao
Congresso (exibida abaixo) exortando-os a mo-
Há muito que os parceiros estrangeiros apre-
dernizar a Lei de Energia Atômica de 1954
ciam as vantagens das usinas nucleares russas.
(AEA) para melhor permitir que os Estados Uni-
A “geografia” da cooperação não deixa de sur-
dos trabalhem com seus aliados em projetos de
preender. Foram assinados contratos de con-
energia nuclear. A carta insta o Congresso a
strução de blocos energéticos nucleares com a
suspender a restrição de propriedade, controle
Hungria, Bangladesh, China, Vietnã, Finlândia,
ou dominação estrangeira (FOCD) nas seções
Cazaquistão e Bielorrússia. Em breve, será fir-
103d e 104d da AEA, que inibiu o investimento
mado um acordo de construção do terceiro e
de aliados em reatores domésticos no passado.
quarto bloco na Índia. Duas usinas nucleares
Como as usinas de energia domésticas nos
serão construídas na província de Bushehr, no
Estados Unidos hoje dependem da coopera-
Irã, e uma na Jordânia. (IPEN, 2022).
ção com fornecedores estrangeiros de com-
ponentes de usinas de energia, a restrição
Ao que parece a disputa por fontes de ener-
FOCD apresenta um problema anacrônico
gia é peça fundamental do atual tabuleiro do para projetos de usinas nucleares dos EUA. A
xadrez global. Os russos, por meio de suas lei, tal como está atualmente, não leva em conta

corporações defendidas pelo exército estatal até que ponto as corporações se tornaram mul-

e empresas de segurança privada, como a tinacionais nas últimas décadas; este é apenas
um exemplo de uma área da política nuclear
Wagner Group, competem globalmente pelo
que precisa de uma atualização. (…) Ao mes-
controle dessas fontes de energia. Um ítem
mo tempo, é improvável que os Estados Unidos
básico para qualquer produção mercantil é
realizem todo o seu potencial no setor de ener-
a energia elétrica, o gás ou o petróleo. Os gia nuclear sem a cooperação internacional com
empresários associados ao Estado russo têm aliados, especialmente porque a maioria das
controle sobre uma quantidade enorme des- empresas de energia nuclear são multinacionais

ses recursos e a Ucrânia, por meio do gover- (Energypost, 2022).

no Zelenski, colocava em risco as operações


no mercado europeu e no norte da África. A Enquanto isso, os russos expandem seus
participação na UE e na OTAN são vínculos negócios. Vejam:
institucionais que alinham aqueles recursos
Por exemplo, a Associação Nuclear Mundial con-
aos interesses das corporações da UE e dos
sidera que sete unidades estão em construção:
EUA.
uma na China, duas na Bielorrússia, duas na
Índia, uma em Bangladesh – onde a construção
Em contrapartida, os empresários associados de uma segunda unidade também começou – e
ao estado norte-americano estão atrasados uma na Turquia. Além disso, mais 12 unidades
em relação à legislação de produção da en- foram contratadas e 11 foram encomendadas.10

ergia nuclear, como indica o relatório da em- Os trabalhos preliminares estão em estágio

presa Energy Post: avançado nos contratos na Finlândia e na Hun-


gria.11 Contratos de construção de usinas nucle-
ares adicionais foram assinados com a Armênia,
Hoje, o mercado internacional de energia nu-
China, Egito, Índia, Irã e Uzbequistão. Acordos
clear mudou drasticamente à medida que a
intergovernamentais, também conhecidos como
42

acordos ‘quadro’, que fornecem uma base legal capitalista. Em outras palavras, isto significa
para negociações e identificam áreas específicas
dizer que a relação social de produção mer-
para cooperação bilateral foram assinados com
cadológica tem na guerra sua constituição,
Argélia, Bolívia, Camboja, Cuba, Gana, Nigéria,
seu desenvolvimento e sua autossuperação.
Paraguai, Arábia Saudita, Sudão, Tajiquistão,
Tunísia, Emirados Árabes Unidos (EAU) e Zâm-
A guerra leva a destruição de vidas humanas

bia. (SIPRI, 2022). e recursos inimagináveis. No entanto, para o


capital, isso nada mais é do que uma forma

Considerações finais de resolver suas contradições intrínsecas e de


externalizar excesso de capital, concomitan-
A breve pesquisa realizada para esse artigo temente, ao aumento da produtividade, ao
indicou a forte presença de atores não es- salto tecnológico promovido pelo conflito e a
tatais no conflito e, portanto, a insuficiên- destruição de forças produtivas obsoletas que
cia de uma abordagem com o viés Estatal baixam as taxas de lucro. De forma análoga
para compreender o conflito no território às empresas de cunho militar, cujas cotações
ucraniano. Os dados demonstram que para aumentam no mercado financeiro, as empre-
produzir conhecimento capaz de analisar o sas dos setores energéticos, que comerciali-
mundo atual é urgente o emprego de elemen- zam, gás, petróleo e energia nuclear estão
tos teóricos clássicos, sobre o funcionamento ganhando com a guerra. Não há perdedores
do modo de produção capitalista, em sinto- entre os capitalistas.
nia com novos conhecimentos sobre os con-
flitos contemporâneos. É preciso enfatizar, O que nos deve preocupar é a morte de mi-

que estes conflitos ocorrem em um quadro lhares de trabalhadores, a migração de mi-

geopolítico no qual as corporações globais lhões de trabalhadoras e seus filhos do teatro

são agentes fundamentais no desenrolar da de guerra. Quem sempre perde é a classe tra-

guerra. balhadora transformada em “carne de can-


hão”. A guerra é um momento importante
Os inúmeros recursos energéticos disponíveis para que as contradições mais agudas do sis-
em territórios ucraniano, a expertise das em- tema sejam explicitadas e para demonstrar o
presas russas em produção de energia nu- quão desumano é o capital. Devemos apon-
clear e o controle do fluxo desses insumos tar para a necessária organização autônoma
são peças-chave em qualquer prospecção de dos trabalhadores, a constituição de grupos
cenários políticos e militares vindouros. No de apoio, de cooperação, de estudos e de tra-
entanto, tais análises só poderão ser feitas, balho que possam criar uma rede indepen-
com acuidade, se levarem em consideração dente de informações e de ação política de
as grandes corporações envolvidas na geo- caráter proletário.
política e na geoeconomia do capital mun-
dial, como agentes realmente operativos no Apenas quando nós, trabalhadores, tomar-

conflito. mos em nossas mãos as armas poderemos de-


fender os nossos interesses, independente de
Outro elemento aqui elencado é a vinculação fronteiras ou bandeiras, e cujas prioridades
medular da guerra com a economia de tipo são a vida, a cultura, a educação, a eman-
43

cipação humana de todas as opressões e da


exploração econômica. Por enquanto, só há
um vencedor nessa guerra: o capital! No fu-
turo, partindo desse aprendizado, poderemos
vencer a guerra de classes contra todos os
nossos algozes.
44

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BLOMBERG. Tensões comerciais atuais ameaçam combustível do futuro (bloomberg.com.br), consultado em 18/03/22.
COMPRE RURAL. Disponível em https://www.comprerural.com/missil-destroi-mega-navios-de-fertilizantes-e-graos/
Consultado em 14/03/22.

IPEN. Disponível em IPEN - Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares, consultado em 14/03/22.

SIPRI. Disponível em Russia’s nuclear energy exports: Status, prospects and implications (sipri.org) , consultado em
15/03/22.

ENERGYPOST. Disponível em U.S. Nuclear: change the laws that constrain foreign and domestic investment - Energy
Post). Consultado 15/0322.

Portal G1. (No Twitter, Elon Musk desafia Vladimir Putin para um duelo | Tecnologia | G1 (globo.com). Consultado em
15/03/22.

GNL. (Disponível em https://forbes.com.br/forbes-money/2022/03/quais-sao-as-sancoes-contra-a-russia-e-seus-impactos-


economicos/), consultado em 16/03/22.
45

UM DICIONÁRIO PARA PESQUISADORES


DO ENSINO DE SOCIOLOGIA
por Fabio Braga do Desterro
Mestre em educação. Professor de Sociologia do Colégio Pedro II, campus Duque de Caxias.
E-mail: dodesterro@hotmail.com

RESENHA
BRUNETTA, Antonio Alberto; BODART, Cristiano das Neves; CIGALES, Marcelo Pinheiro (Org.).
Dicionário do Ensino de Sociologia. 1.ed. Maceió, AL: Editora Café com Sociologia, 2020,
471p.

Fruto de um amplo trabalho coletivo – que Consta na apresentação que as maiores di-
contou com a participação de 82 pesquisa- ficuldades encontradas nas escolhas dos
dores, representando 49 instituições de en- conteúdos foram: o fato de as temáticas por
sino superior, médio e técnico das diversas vezes se cruzarem, dos especialistas estarem
regiões do Brasil – o Dicionário do Ensino gabaritados para escreverem sobre mais de
de Sociologia apresenta um estado da arte um assunto, e de alguns temas importantes
dos trabalhos sobre o ensino da disciplina e para o contexto escolar terem sido pouco
aponta horizontes para novas pesquisas. explorados nas pesquisas sobre o ensino de
Sociologia. Certamente, como se depreende
Na visão dos organizadores, os professores do relato dos organizadores, o produto fi-
Antonio Alberto Brunetta (UFSC), Cristiano nal também reflete as concepções teóricas,
das Neves Bodart (UFAL) e Marcelo Pinhei- linhas de pesquisa e campos de interesses dos
ro Cigales (UnB), o livro servirá tanto como autores. Isto nos ajuda a entender, por exem-
uma possível referência para os componentes plo, por que foram incluídos textos sobre a
curriculares dos cursos de licenciaturas em BNCC e as OCEM, mas não sobre os PCN; por
Ciências Sociais/Sociologia, quanto como que foi dada tanta notoriedade ao sociólogo
ferramenta colaborativa na orientação de Pierre Bourdieu, que tem um verbete próprio
monografias, dissertações e teses. (escrito por José Marciano Monteiro) e mais
dois diretamente relacionados com a sua
Após o prefácio, escrito por Carlos Benedito obra (“campo” e “subcampo”, escritos por
Martins (p.17-24) e a apresentação, escrita Daniel Gustavo Mocelin); ou por que, dentre
pelos organizadores (p.25-31), a obra traz as perspectivas teóricas dos clássicos, a úni-
85 verbetes (p.33-417). Em seguida apre- ca que mereceu destaque foi o materialismo
senta uma vasta bibliografia (p.419-461), um histórico-dialético (com um texto de Erlando
índice remissivo (p.463-468) e uma lista com da Silva Rêses).
o nome dos autores e das instituições em que
atuam (p.469-471). Boa parte dos verbetes se inicia com uma
46

definição do tema tratado, segue com uma a produção científica desta área como tími-
revisão de literatura e finaliza com sugestões da, uma vez que figura geralmente atrelada
de pesquisas, como podemos ver no trecho a outros objetos de pesquisa, apenas tangen-
abaixo, sobre a imaginação sociológica, de ciando questões cruciais como a relação en-
Mauro Meirelles e Leandro Raizer: tre ensino e aprendizagem, o desenvolvimen-
to, o planejamento etc.
O campo de estudos sobre a Sociologia no ensi-
no médio vem se ampliando nos últimos anos e
Enquanto a didática vem sendo abordada
novas pesquisas poderão analisar em que medi-
timidamente, a avaliação carece ainda hoje
da a inserção da disciplina no ensino médio tem,
de uma reflexão sistemática. O levantamento
de fato, desenvolvido a imaginação sociológica
bibliográfico sobre o tema, apresentado no
dos estudantes e quais os seus determinantes. De
que forma o contexto social mais amplo e o cotidia- texto escrito por Welkson Pires, indica a ine-
no do estudante influenciam seu desenvolvimento? xistência de artigos com esse foco em perió-
Qual a relevância da formação docente adequada dicos científicos de estratos superiores, bem
para o desenvolvimento da imaginação sociológi- como em dissertações e teses. O autor propõe
ca dos estudantes? Quais as implicações para a
que as pesquisas abordem a legislação educa-
formação e perfil de professores que lecionam a
cional, os documentos curriculares, os livros
disciplina? Que métodos de ensino potencializam
didáticos, os vestibulares, o Exame Nacional
seu desenvolvimento? Que tipo de experiências cur-
riculares e extracurriculares podem auxiliar? Qual do Ensino Médio e a prática dos professores.
didática e quais recursos são necessários para a
prática docente reflexiva? (p.185; grifos meus) Como observa Anita Handfas, em “pesquisa
acadêmica”, o currículo está na lista dos as-
1 Os organizadores se referem à área
O parágrafo citado exemplifica bem a preocu- suntos mais estudados no “subcampo”, junto
do ensino de Sociologia como um
pação dos autores em incentivar a produção com os livros didáticos, a formação de pro-
“subcampo”. O verbete sobre o tema
de investigações sobre aspectos fundamen- fessores e a história da Sociologia como disci- explica que os estudiosos que tra-
tais dos processos educacionais – tais como a plina escolar. Vejamos como esses temas são balham com esse conceito procuram
didática, a avaliação e o currículo – que até o tratados no livro. “demarcar um espaço semiautôno-

presente momento têm recebido tratamento mo de produção de conhecimento

desigual no “subcampo” de pesquisas sobre o O Dicionário do Ensino de Sociologia não constituído no interior da grande

ensino de Sociologia . 1
reserva um verbete para o tratamento amplo área científica das Ciências Sociais”

das pesquisas sobre currículo2 . Desenvolve (p.397).

O texto sobre didática no ensino de Socio- o tema ao longo da obra, dando um destaque
logia, redigido por Camila Ferreira da Silva, maior à Base Nacional Comum Curricular 2 Os organizadores se referem à área

do ensino de Sociologia como um


observa que pensá-la em suas especificidades (BNCC) e às Orientações Curriculares para o
“subcampo”. O verbete sobre o tema
“é um exercício que implica uma reflexão so- Ensino Médio (OCEM). Mas os dois textos fo-
explica que os estudiosos que tra-
bre as dimensões humana, teórica, prática e ram desenvolvidos de maneira bem distinta.
balham com esse conceito procuram
política dessa disciplina, compreendendo que O primeiro, de Ileizi Fiorelli Silva, define o
“demarcar um espaço semiautôno-
tais dimensões são indissociáveis da tradição objeto, traça um histórico das discussões na
mo de produção de conhecimento
científica que a Sociologia vem desenhan- área do ensino de Sociologia e levanta uma
constituído no interior da grande
do e das condições sócio-históricas que lhe hipótese:
área científica das Ciências Sociais”
são apresentadas” (p.91). Classifica, porém,
47

Analisando a lista de competências e habilidades da segunda alternativa, pois já estão circu-


presentes na BNCC de 2018, propõe-se como
lando nas escolas de todo o país as obras de
hipótese de pesquisa a sociologização da área de
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, dis-
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, mas sem
tribuídas pelo PNLD 2021, em substituição
que isso fortaleça os conteúdos da disciplina,
assim como enfraquece todas as especificidades
aos livros disciplinares de Filosofia, Geogra-

dos demais componentes curriculares agrupados fia, História e Sociologia.


nessa área.” (p.55; grifos do original).

Ainda sobre esse tema, o texto escrito por


O segundo, de Amaury Cesar Moraes, re- Daniel Gonçalves Soares (Pesquisas nos li-
sume os argumentos presentes nas OCEM, vros didáticos) aponta a necessidade de
mas não apresenta indicações bibliográficas desenvolvimento de análises dos manuais
de pesquisas que analisam este documento enquanto propositores de pesquisas socio-
curricular, destoando da orientação geral do lógicas para os estudantes, tendo como foco
dicionário . Explica que, ao não propor uma tanto os elementos textuais quanto as práti-
3

lista oficial de conteúdos, o documento foi cas em sala de aula.


taxado de flexibilizante, neoliberal ou neu-
tro, sem dizer quais trabalhos apresentaram Esse destaque à necessidade de desenvolvi-
essas críticas. Apenas comenta que “as OCEM mento de mais pesquisas sobre as práticas
puseram a nu o caráter ideológico de quem de professores e estudantes em sala de aula
esperava uma proposta filiada ao marxismo” também aparece, por exemplo, nos verbetes
(p.263). que tratam do processo de recontextualização
pedagógica e da constituição dos saberes do-
O verbete sobre o livro didático, de Júlia Po- centes. O primeiro, escrito por Agnes Cruz de
lessa Maçaira, ressalta as múltiplas funções Souza, observa que “é fundamental o apro-
deste artefato: como mercadoria, fonte de fundamento das questões relacionadas ao
pesquisas históricas, criador de discursos currículo em ação e praticado no ‘chão da es-
pedagógicos e revelador de formas de avaliar cola’. O que acontece nos ensinos médios do
e aplicar os currículos. Mostra que o aumen- país ainda é objeto de desconhecimento nos
to das pesquisas sobre os manuais de Socio- estudos sobre a prática de recontextualização
logia se deu principalmente pela entrada da pedagógica do país.” (p.343). O segundo, de
disciplina no Programa Nacional do Livro autoria de Sayonara Leal, argumenta que:
Didático, que fomentou o aparecimento de
uma “terceira geração” de manuais. [...] uma agenda promissora de pesquisas no
subcampo dos saberes docentes para ensino de
3 Nem mesmo os próprios textos do
Sociologia está no estudo da articulação entre
Naquele momento, as dúvidas sobre como
mecanismos de normatividade e de possibili- autor, que já trataram deste assunto,
o PNLD se adaptaria ao Novo Ensino Médio foram indicados. Ver, por exemplo,
dades que dão forma ao um ‘saber híbrido situa-
eram muitas. Daí o texto questionar se a nova do’, revelador do trânsito entre saberes for- Moraes (2011) e Moraes (2014).

edição do programa inauguraria uma quarta mais-acadêmicos e saberes práticos. O enfoque Para o leitor interessado na com-

geração de livros didáticos de Sociologia ou nas transposições didáticas requer considerar, preensão do debate suscitado pela

selaria o fim das obras disciplinares. Hoje é além dos elementos estruturais e estruturantes da publicação das OCEM, ver Anjos

possível afirmar que estamos mais próximos formação e da prática docentes, o caráter prag- (2016).
48

matista da objetivação dos saberes do professor de também por incluir um verbete, de autoria
Sociologia, jogando luz sobre suas experiências e
de Vinícius Carvalho Lima, que trata exclu-
experimentações em termos de mediações didáti-
sivamente das reformas Rocha Vaz (1925) e
co-pedagógicas, somente discerníveis em situações
Francisco Campos (1931). Lima sugere que
de ensino-aprendizagem. (p.370; grifos meus).
os estudos sobre as reformas educacionais do
início do século XX deem maior destaque aos
No que diz respeito à formação docente, o
arquivos escolares, pouco explorados até o
dicionário analisa historicamente a forma
presente momento.
como foi se modificando a formação inicial
de professores de Sociologia no Brasil, no
Esta resenha trouxe apenas uma pequena
verbete escrito por Amuraby Oliveira. Mas
amostra da miríade de temas e questões que
também explica experiências mais recentes
o Dicionário do Ensino de Sociologia discute,
tais como Programa Institucional de Bolsa
com o intuito de estimular a sua leitura. Não
de Iniciação à Docência – PIBID (texto dos
se trata de um livro que foi pensado como
organizadores) e o Programa de Residência
uma ferramenta de auxílio aos professores da
Pedagógica – PRP (texto de Jordânia Araújo
Educação Básica na preparação de suas aulas
de Souza).
(embora uma ou outra síntese possa cum-
prir esse papel), mas sim de uma boa fonte
O verbete sobre a história da Sociologia na
de consultas e sugestões para todos aqueles
Educação Básica no Brasil, escrito por Si-
que pretendem realizar ou orientar trabalhos
mone Meucci, destaca os dois períodos em
acadêmicos sobre o ensino da Sociologia.
que a disciplina foi componente curricular
obrigatório das escolas de nível médio em
Um limite da publicação está no fato de os
todo o país: o primeiro, que vai de 1931 a
organizadores não terem incluído pelo menos
1942, e o segundo, que vai de 2008 a 2017.
um verbete sobre as pesquisas que analisam
Defende não haver correlação entre ambi-
as experiências pedagógicas com a Sociolo-
entes democráticos e a presença da Sociolo-
gia (ou Ciências Sociais) no Ensino Funda-
gia nas escolas, mas considera que há pelo
mental. No entanto, esse é um problema que
menos uma semelhança entre os dois perío-
poderá ser sanado numa próxima edição.
dos supracitados: “a qualificação do Estado
como agente autorizado a pautar um discur-
so sobre a sociedade” (p.167).

Temos ainda um verbete, redigido por Gusta-


vo Cravo Azevedo, que discute a reintrodução
da disciplina no Ensino Médio (de 1984 a
2007), ressaltando um fato importante: em
2008, quando a lei 11.684 foi sancionada,
a Sociologia já havia retornado a todos os
estados (e ao Distrito Federal) por meio de
iniciativas locais. Os organizadores optaram
49

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ANJOS, Bruna Lucila de Gois dos. Sociologia no Ensino Médio: uma análise comparada de propostas curriculares. Disser-
tação (Mestrado em Educação), UFRJ, Rio de Janeiro (RJ), 2016.

MORAES, Amaury Cesar. Ensino de Sociologia: periodização e campanha pela obrigatoriedade. Caderno Cedes, Campi-
nas, vol.31, n.85, p.359-382, set./dez.2011.

MORAES, Amaury Cesar. Ciência e Ideologia na Prática dos Professores de Sociologia no Ensino Médio: da neutralidade
impossível ao engajamento indesejável, ou seria o inverso? Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 39, n. 1, p. 17-38,
jan./mar. 2014.
50

NOTAS SOBRE A REVOLUÇÃO BRASILEIRA


por Renan Eduardo da Silva
Mestre em Direito pela Universidade do Contestado – UNOESC.
Servidor Público Federal do Instituto Federal Catarinense-Campus Concórdia.
Contato: renan.silva@ifc.edu.br.

por Marlene Tirlei Koldehoff Lauermann


Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Universidade Empresarial de Chapecó – UCEFF.
Servidora Pública Federal do Instituto Federal Catarinense-Campus Concórdia.
Contato: marlene.koldehoff@gmail.com.

RESENHA
PRADO JÚNIOR, Caio; FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a Revolução Brasileira.
3 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2003, 160 pgs.

A obra “Clássicos sobre a revolução brasilei- Quanto ao primeiro autor, Caio Prado Júnior,
ra” é constituída de duas partes, denomi- foi um filósofo, sociólogo, geógrafo, escritor,
nadas “A Revolução Brasileira” e “O que é historiador da formação histórica e social
Revolução”, onde cada parte reúne as princi- brasileira pela teoria marxista.
pais ideias de um autor a respeito do proces-
so revolucionário brasileiro. Devido a isso, Sua contribuição para a obra “Clássicos so-
observam-se divergências entre os autores bre a revolução brasileira” é uma transcrição
sobre o caminho a ser percorrido pela revo- completa do primeiro capítulo de seu livro
lução no Brasil, visto que cada autor possui “A Revolução Brasileira” datado de 1966.
sua própria interpretação sobre a situação
revolucionária brasileira no momento da di- Portanto, na primeira parte da obra, intitu-
tadura militar brasileira. lada “A Revolução Brasileira”, Caio Prado
Júnior discute sobre a formulação de uma
Os dois autores utilizam ideias de Karl Marx, teoria sobre a revolução brasileira. Tendo em
Friedrich Engels e Lênin, presentes em obras vista o contexto social vivido na época da di-
como “O Manifesto do Partido Comunis- tadura militar, esta teoria, deveria expressar
ta”, “Do Socialismo Utópico ao Socialismo as tendências da luta de classes, estabelecen-
Científico”, “Esquerdismo, A Doença Infantil do parâmetros de atuação da classe operária
do Comunismo”, para exemplificar e explicar para ações sociais e políticas voltadas à des-
as questões que envolvem o processo revolu- truição da sociedade burguesa e a criação da
cionário nacional. sociedade comunista.
51

Com isso, o autor aponta que o Brasil estaria guesia. Seguindo ideias de Lênin, Florestan
na iminência de um processo revolucionário, Fernandes aponta alguns indícios para o
no qual o proletariado poderia realizar as surgimento de uma situação revolucionária
transformações e reformas que poderiam como: o agravamento da exploração e da
melhorar a situação da nação, satisfazendo miséria sobre as classes oprimidas, e a inca-
as necessidades e anseios da população com pacidade das classes dominantes manterem
a universalização de educação, emprego, sua dominação sob forma inalterada (PRADO
saúde e segurança. JÚNIOR; FERNANDES, 2003, p.100).

No tocante ao segundo autor, Florestan Fer- Essas situações levariam a um aumento da


nandes, foi antropólogo e sociólogo da for- atividade das massas populares, que passa-
mação social do Brasil no contexto de subal- riam a lutar por reformas e transformações
ternidade no processo capitalista. na sociedade. Sem esses indícios, para o au-
tor, a revolução é praticamente impossível.
A contribuição para a obra “Clássicos sobre
a revolução brasileira” é um artigo denomi- Em “É possível impedir ou atrasar a Revo-
nado “O que é Revolução”, publicado no ano lução?”, Florestan Fernandes afirma que a
de 1981. revolução precisa ser construída dia-a-dia.
Contudo, constata-se que a burguesia e o sis-
Logo, na segunda parte da obra “O que é Re- tema capitalista por meio de falsas promes-
volução”, Florestan Fernandes faz uma sas tratam de corromper o proletariado, a fim
análise em seis capítulos sobre o processo de manter a revolução sob controle, já que
revolucionário na história do capitalismo, esta representa uma ameaça à propriedade
procurando definir para o contexto brasilei- privada e aos interesses do capital.
ro, os desafios que seriam enfrentados para
tornar factível uma revolução do proletaria- No capítulo “Como fortalecer a Revolução e
do. levá-la até o fim?”, Florestan Fernandes des-
taca o papel do Sindicato e do Partido como
No capítulo inicial “O que se deve entender importantes maneiras de organização pro-
por Revolução?”, o autor discute sobre a for- letária.
mulação de um conceito de revolução1. Nesse
ponto, Florestan exalta que a revolução em Assim, o grande desafio seria desenvolver o
uma primeira etapa, substituiria a domi- proletariado a resistir às forças da burgue-
nação da minoria pela dominação da maioria sia e a pensar coletivamente como classe.
e numa etapa mais avançada eliminaria a so- Somente com um proletariado consolidado,
ciedade civil e o próprio Estado. forte e organizado que pudesse enfrentar as 1 Revolução seria a ação com ca-
forças da burguesia, a revolução poderia ser pacidade de transformar a estrutura

No segundo capítulo “Quem faz a Rev- levada até o fim. da sociedade capitalista, tornan-

olução?”, é abordada a capacidade revolu- do possível o aparecimento de um

cionária das classes sociais oprimidas na O quinto capítulo “Revolução Nacional ou novo padrão de civilização (PRADO

luta contra a dominação imposta pela bur- Revolução Proletária?” trata sobre o cami- JÚNIOR; FERNANDES, 2003, p.20).
52

nho a ser tomado pelo proletariado rumo à das do período colonial e pela dependência
revolução. Segundo o autor, só com o pro- do país no sistema capitalista mundial, 2º)
letariado devidamente consolidado como Rejeição a ideia da existência de uma bur-
classe, poder-se-ia lutar pela realização da guesia nacional com interesses contrários
revolução em nível nacional. ao imperialismo, apta a liderar as transfor-
mações sociais decorrentes da revolução de-
Deste modo, o processo revolucionário bra- mocrática e nacional, 3º) Adoção da ideia de
sileiro seria construído na mesma medida em que as forças populares devem adotar uma
que seria formada uma classe trabalhadora linha política autônoma de atuação, supe-
que fosse capaz de lutar pela revolução até rando a tutela burguesa e articulando interes-
o fim, quando houvesse uma clara oportuni- ses estratégicos em prol do proletariado por
dade de sucesso. meio da união de classes entre operários e
camponeses (PRADO JÚNIOR; FERNANDES,
No capítulo “Como lutar pela Revolução Pro- 2003, p. 09).
letária no Brasil?”, é destacado as várias sit-
uações revolucionárias reprimidas no Brasil, Por fim, no tocante as divergências de en-
ocorridas por meio da ação de forças con- tendimentos sobre os percursos da revolução
servadoras, que exerciam o controle sobre brasileira, denota-se que: 1º) Para Caio Pra-
qualquer situação que afetasse os interesses do Júnior, a partir do pós-guerra, o Brasil en-
da burguesia. trou em uma conjuntura revolucionária que
pôs em pauta a necessidade inadiável de con-
Florestan Fernandes destaca que o sindicato, sumar a longa transição do Brasil colônia de
o partido e o proletariado devem estar cientes ontem para o Brasil nação de amanhã. Desde
que as forças burguesas estarão prontas para então, a tarefa fundamental das forças de es-
reprimir as forças revolucionárias, por isso, querda deveria ser equacionada em torno da
seria necessário agir em duas frentes, uma necessidade de dois objetivos: promover uma
legal e outra ilegal. Apenas desta maneira, ampla reforma agrária — principal política
poder ia-se lutar em igualdade de condições para equilibrar a correlação de forças entre
contra as forças conservadoras a serviço do o capital e o trabalho; e superar a dependên-
capital. cia do capital internacional — único meio
de viabilizar a formação de uma base empre-
Portanto, do objetivo comum de ambos os sarial umbilicalmente vinculada ao espaço
autores sobre demonstração dos caminhos da econômico nacional. Nesta perspectiva, a
revolução brasileira no período da ditadura ditadura militar representava um perigoso
militar, observa-se a concordância quanto contratempo que deveria ser vencido para
a três questões fundamentais: 1º) Rejeição evitar o risco de uma reversão neocolonial
ao status quo da época, devido à convicção (PRADO JÚNIOR; FERNANDES, 2003, p. 07-
de que os problemas fundamentais do povo 08) e 2º) Na visão de Florestan Fernandes,
brasileiro não seriam resolvidos sem uma o golpe militar de 1964 representou a con-
ruptura radical com as estruturas sociais res- solidação da revolução burguesa no Brasil
ponsáveis pelas desigualdades sociais herda- como uma contrarrevolução permanente. A
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interpretação de que a burguesia brasileira


havia se tornado definitivamente antissocial,
antinacional e antidemocrática leva-o a con-
cluir que o capitalismo havia esgotado todas
suas potencialidades construtivas. Por esse
motivo, a seu ver, a revolução operária des-
pontava como a única via capaz de superar
as mazelas do capitalismo dependente e criar
as condições históricas para o aparecimento
de um Estado democrático e independente
camponeses (PRADO JÚNIOR; FERNANDES,
2003, p. 07-08).
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

PRADO JÚNIOR, Caio; FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a revolução brasileira. 3 ed. São Paulo: Expressão Popu-
lar, 2003.

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