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Marraio
Revista interdisciplinar de psicanálise com criança

A clínica soberana

Formações Clínicas
do Campo Lacaniano
Rio de Janeiro
Sumário

Editorial 9
Maria Anita Carneiro Ribeiro

artigo

O tempo lógico da adolescência 11


Glória Sadala, Marinela Couri
Andréa Magre, André Barcauí
Susana Sabbá

clínica

Presa do pai ou presa ao pai? 18


Simone Ferreira da Silva

De uma possível debilidade à metáfora


paterna em uma menina 26
Elynes Barros Lima

O menino de penas 35
Rainer Melo

Um artifício para quedas 42


Renata Felis Bazzo

Miguilim e as letras 53
Maria Claudia Formigoni

pesquisa

Efeitos terapêuticos do discurso escolar 64


Carlos Eduardo Frazão Meirelles

Identificação e escolha de objeto 77


Eliana Dominguez, Maria Anita Carneiro Ribeiro

conexões

O caso Dora e o assédio sexual 86


Marcelo Nogueira
contents

Editorial 9
Maria Anita Carneiro Ribeiro

article

The Logical Time of Adolescence 11


Glória Sadala, Marinela Couri
Andréa Magre, André Barcauí
Susana Sabbá

practice

A girl and her father 18


Simone Ferreira da Silva

From a possible mental retard to


the Paternal Metaphor on a girl 26
Elynes Barros Lima

The Feather Boy 35


Rainer Melo

A device for falls 42


Renata Felis Bazzo

Miguilim and the letters 53


Maria Claudia Formigoni

research

Therapeutic effects of school discourse 64


Carlos Eduardo Frazão Meirelles

Identification and object choice 77


Eliana Dominguez, Maria Anita Carneiro Ribeiro

conexions

The Dora case: between psychoanalysis and the law 86


Marcelo Nogueira
EDITORIAL

Enfim, de volta à clínica, de onde sempre partimos para retor-


nar ao estudo. Não que dela tenhamos nos distanciado nos números
anteriores: a clínica sempre esteve presente na Marraio. Porém, neste
número, ela aparece de forma mais substancial: cinco casos clínicos,
dos mais variados, se fazem presentes para nossa apreciação.
O artigo que abre nosso índice é instigante desde o título – “O
tempo lógico da adolescência”. Seguem-se dois relatos de pesquisa – o
primeiro, sobre os efeitos terapêuticos do discurso escolar, apresenta
uma extensa investigação em Freud sobre o tema. O segundo, sobre a
identificação e a escolha de objeto, abre inúmeros questionamentos.
A cereja do bolo, no entanto, é ainda, mais uma vez, o caso Dora.
Apresentado sob a rubrica de Conexões, aborda Dora e o assédio sexual,
em uma interlocução entre a psicanálise e o Direito.
Boa leitura!

Maria Anita Carneiro Ribeiro

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O tempo lógico da adolescência1

Glória Sadala
Marinela Couri
Andréa Magre
André Barcauí
Susana Sabbá

O termo adolescência, relativamente novo na história ocidental,


surgiu no final do século XVIII, para designar uma etapa específica
da juventude, diferenciando-a da infância e da idade adulta. Embora
o aparecimento do conceito seja recente, há algo dessa passagem –
à qual hoje denominamos adolescência – que sempre interrogou o
homem. Isso é evidenciado pelos ritos iniciáticos de diversas culturas,
que demarcavam a perda de uma condição infantil e o advento do
sujeito a uma nova função dentro da sociedade.
Atualmente, a adolescência pode ser conceituada de diversas for-
mas. No sentido jurídico, o conceito de adolescência se funda a partir
de uma faixa etária, entre os doze e os dezoito anos de vida. No sen-
tido biológico, são as transformações da puberdade que demarcam o
período de desenvolvimento entre a infância e a maturidade. Uma
perspectiva sociológica nos permite observar a expansão do período
da adolescência, havendo assim um encurtamento da infância e uma
postergação da entrada na vida adulta, atualmente mais relacionada
à independência financeira do que à maioridade propriamente dita.
Para Philippe Ariès, que descreveu a evolução sócio-histórica das ida-
des da vida, “passamos de uma época sem adolescência a uma época
em que a adolescência é a idade favorita. Deseja-se chegar a ela cedo e
nela permanecer por muito tempo” (ARIÈS, 1981 [1973], p. 47).
Para a psicanálise, a adolescência é um momento lógico, mar-
cado por um intenso trabalho psíquico de elaboração da falta; é um
momento de novas exigências pulsionais, de perdas e de lutos, de sepa-
1
Este trabalho foi apresentado na VII Jornada do SPA da Universidade Veiga de Almeida,
realizada em junho de 2010.

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ração e de elaboração de escolhas. Os modelos identificatórios idealiza-
dos da infância vacilam na adolescência e já não é mais possível negar
a falta no Outro. O sujeito adolescente se vê diante da constatação de
que o objeto nunca propicia a satisfação plena e que a tão almejada
completude jamais será alcançada.
Na contramão dos discursos jurídico e biológico, que sustentam a
adolescência como uma fase cujas fronteiras são delimitadas pela idade,
a psicanálise não cessa de perguntar: que tempo é esse que ultrapassa o
cronológico e que representa, para o sujeito, uma travessia turbulenta,
marcada por tantas transformações? É possível estabelecer um tempo
limite para essa passagem, feita de maneira tão singular por cada um?
O caso clínico que segue ilustra como as questões próprias à ado-
lescência podem atravessar toda a vida adulta do sujeito.
A paciente S., de aproximadamente cinquenta anos, procurou o
atendimento do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Universidade
Veiga de Almeida no final de 2009, com a queixa principal relacionada
a depressão e angústia.
O discurso da paciente, ao longo das entrevistas preliminares, se
desenvolveu em torno de uma série de cenas vividas de maneira trau-
mática. Dentre elas, um grave acidente que resultou na perda de um
membro, abalando profundamente a sua imagem. Assim, o acidente
representou um ponto de ruptura na vida da paciente, a partir do qual
o seu corpo passou a evidenciar, em seu contorno, a inegável marca da
perda, da castração. Começando pelo relato do acontecimento trau-
mático, S. desliza por uma cadeia associativa marcada por uma série
de lembranças em torno de grandes perdas sofridas em sua vida, tanto
com relação a seus relacionamentos afetivos quanto no âmbito pro-
fissional. Podemos supor que o significante mais presente no discurso
da paciente seja a perda: perda de um membro, perda do pai, perda
de um emprego, perda de uma condição infantil. É justamente num
momento de luto que a paciente vai à procura de uma análise.
Primogênita de uma família com três filhas, desde pequena
demonstrou aptidão para as ciências exatas. Segundo ela, seus pais
queriam um filho homem, particularmente seu pai, que, no discurso
da paciente, comparece de maneira autoritária. Por isso, ela sempre
sentiu necessidade de provar que, mesmo sendo mulher, poderia ser

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artigos

a melhor na escola e no trabalho. A paciente faz referências ao pai e


ao ciúme incontido que sentia por ele, principalmente em relação às
irmãs. Sua morte é um fato que a paciente revela ter muita dificuldade
de aceitar. Na transferência, a paciente faz uma tentativa de resgatar
essa figura de um pai todo-poderoso.
Há um sentimento de perda da própria identidade perante seu cír-
culo de relacionamentos. A dificuldade de afastar-se minimamente da
figura do Outro parental é evidenciada pela dependência da paciente
na relação com a sua mãe. Essa dependência transparece principal-
mente na preocupação de S. com as opiniões dessa mãe, fazendo-se
necessário que seus atos sejam sempre consentidos e reconhecidos pelo
outro. Quando não é atendida dessa maneira pela família, a paciente
faz “birras”, não conseguindo afastar-se de uma posição infantil, da
qual se dirige a um Outro idealizado que seria capaz de salvá-la da
sua condição de desamparo frente à castração. A dificuldade de des-
ligamento das figuras parentais aparece não somente no discurso da
paciente, mas principalmente em suas ações, com excessiva dependên-
cia financeira, afetiva e com fortes conflitos em relação à família.
Apesar da idade, a maturidade de S. ainda não foi reconhecida
simbolicamente por ela própria. Sua incapacidade de abandonar essa
posição infantilizada em conjunto com o desejo manifesto de inde-
pendência são os ingredientes que acabam por determinar, em parte, a
formação dos sintomas neuróticos da paciente.
A partir desse pequeno fragmento clínico, é possível ressaltar
alguns dos aspectos importantes da laboriosa travessia pela adolescên-
cia, que, para cada sujeito, obedece a um tempo singular.
Comecemos pelo desligamento da autoridade dos pais, que, já em
1905, Freud descrevera como sendo “uma das realizações mais signi-
ficativas, porém mais dolorosas, do período da puberdade” (FREUD,
2006 [1905], p. 214). Se na infância há uma idealização dos pais, que
permite à criança vedar a falta e se resguardar do desamparo funda-
mental evidenciado pela castração no Outro, na adolescência já não
é mais possível negar a sua insuficiência. O adolescente começa então
a questionar os pais idealizados da infância. É justamente por tê-los
incorporado numa fase anterior, que o sujeito pode começar a se sepa-
rar. Não se trata, entretanto, de um processo linear, mas de um tempo

andré barcauí et al. | O tempo lógico da adolescência 13


no qual o adolescente fará tentativas de separação, ora utilizando-se
dos pais da infância, ora questionando esses modelos identificatórios.
Assim, o adolescente fará a experiência de ser autor de um desejo para
além do amor dos pais imaginarizados, que antes garantiram uma
proteção contra o desamparo fundamental. É justamente nesse movi-
mento entre alienação e separação que o sujeito irá construir seus pró-
prios recursos frente ao desamparo, sabendo agora que o Outro poderá
ampará-lo apenas simbolicamente (ALBERTI, 2008).
Entretanto, Freud assinala que “há pessoas que nunca superam a
autoridade dos pais e não retiram deles sua ternura, ou só o fazem de
maneira muito incompleta”, e assim “persistem em seu amor infantil
muito além da puberdade” (FREUD, 2006 [1905], p. 214). É jus-
tamente nessa posição infantilizada frente ao Outro que se encontra
a paciente, ainda no despertar de uma adolescência, diante da dolo-
rosa tarefa de fazer o luto pelos pais idealizados da infância. Pode-se
dizer, ainda, que a recusa em reconhecer a falta no Outro parental é
uma tentativa de fuga frente à própria castração. O sujeito neurótico
– aquele para o qual se inscreveu o Nome-do-Pai – é sempre marcado
pela falta, é sempre barrado.
Longe de poder ser resumida ao trabalho fundamental de sepa-
ração do Outro parental, a adolescência também é um momento em
que o sujeito terá de fazer o luto pelo corpo infantil e se reapropriar
(RASSIAL, 2005 [1999]) de uma nova imagem corporal, que precisará
ser simbolizada. As transformações físicas da puberdade extrapolam a
imagem corporal previamente concebida, aparecem no real do corpo.
É justamente nesse sentido que a puberdade pode ser vivida como
um “adoecimento”, um acidente que acomete o sujeito, remetendo-o
novamente à castração. Se pensarmos que o imaginário é aquilo que
faz consistir um corpo, é ao experimentar o abalo desse imaginário que
o sujeito irá se deparar com a sua mortalidade, a sua impotência.
Embora a paciente não faça o luto de um corpo infantil mediante
as transformações da puberdade, ela ainda assim faz uma tentativa de
elaboração de um novo conceito corporal que inclua a perda de um
membro, um corpo mutilado. Fazendo um paralelo com a adolescência,
a paciente se defronta com a manifestação mórbida (RASSIAL, 2005
[1999]) do abalo ao corpo, da perda, onde o real irrompe no imaginá-

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artigos

rio. Em ambos os casos, há um grande estranhamento do sujeito frente


a esse corpo transformado que ele não mais reconhece como seu.
É possível verificar, a partir do caso apresentado, que os trabalhos
psíquicos próprios à adolescência não obedecem a um tempo crono-
lógico e sim a um tempo lógico, um tempo do inconsciente. A ado-
lescência é um período de mal-estar, de queda de identificações e de
ressignificação. É ao fazer o movimento de separação dos pais que o
adolescente se lança em busca de novos ideais. Ele escolhe, subverte,
e assim pode construir algo de novo a partir daquilo que herdou da
infância. A adolescência é, sobretudo, uma travessia solitária, vivida
sempre de maneira singular e que se realiza no tempo do desejo.
Como não raramente o fazem as músicas que tocam os jovens
de uma geração, esse estranhamento e essa “dor do adolescer” foram
representados numa música dos Titãs, que diz: “eu não caibo mais nas
roupas que eu cabia, eu não encho mais a casa de alegria. Os anos se pas-
saram enquanto eu dormia [...]. Eu não tenho mais a cara que eu tinha.
No espelho, essa cara não é minha.”

Referências bibliográficas

ALBERTI, S. “Atravessando um túnel”. In: O adolescente e a modernidade /


Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões (tomo I). Rio de
Janeiro: Companhia de Freud, 1999.
_____. O adolescente e o Outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
ARIÈS, P. (1973). História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Científicos Editora, 1981.
FREUD, S. (1905). “Três ensaios sobre a sexualidade”. In: Obras Completas
de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
NAZAR, M. T. P. “Tempos modernos”. In: O adolescente e a modernidade /
Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões (tomo I). Rio de
Janeiro: Companhia de Freud, 1999.
RASSIAL, J.-J. (1999). O adolescente e o psicanalista. Rio de Janeiro: Compa-
nhia de Freud, 2005.

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