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Adib Jatene

“A Escola Paulista tem dado uma contribuição à medicina brasileira:


palpável e importante!”

Sou acreano, de Xapuri, quando terminei o primário, minha família foi para Uberlândia,
onde fiz ginásio e o primeiro ano do científico. Depois vim para São Paulo. Aqui terminei o
científico no Colégio Bandeirantes e entrei para a Faculdade de Medicina da USP, em
Pinheiros. O meu projeto era terminar a faculdade, adquirindo treinamento em várias áreas,
depois fazer um ano de saúde pública e voltar para o Acre. Foi para isso que fiz medicina!

Mas o mundo teve suas voltas e eu nunca regressei!... Mas isso deixou minha família muito
satisfeita.

Meu pai faleceu por lá quando eu tinha dois anos de idade, ele aviava seringais, era um
comerciante, libanês. Algumas vezes o descrevem como seringueiro por essa ligação. Mas
era comerciante! Ele foi visitar os seringais, voltou e estava doente, morreu em três dias.
Isso deixou minha mãe preocupada com uma possível ida minha para lá. Quando me
envolvi em cirurgia cardíaca, todos ficaram muito satisfeitos. Inclusive minha noiva, que
apesar de concordar em se mudar para o norte, não queria realmente fazer isso.

Ela trabalhava no Hospital das Clínicas, em nutrição. Me casei logo depois de formado.
Tenho hoje quatro filhos: três médicos e uma arquiteta, são dois homens e duas mulheres.
Os dois homens são cirurgiões de coração! O Marcelo faz mais “congênito” e estudou na
escola Paulista e foi colega do Cláudio Lotenberg. Já o Fábio, que faz cirurgia torácica e
adulta, é professor titular na USP. E a Yeda trabalha comigo, também fez doutoramento na
USP.

Comecei a trabalhar com cirurgias no meu quarto ano. Naquele tempo, praticamente não
havia residência médica, os estudantes trabalhavam nas enfermarias. Fui trabalhar no grupo
do professor Zerbini... Logo depois disso, ele operou o primeiro doente no Brasil, de
esternose mitral, operação que participei em maio de 1951. Isso fez com que eu estivesse
presente acompanhando toda a sua experiência. Foi uma oportunidade rara... muito rara!

No grupo do professor Zerbini, os estudantes eram chamados para buscar peças na


anatomia patológica, para estudar a patologia da doença... Porque a cirurgia era feita pelo
tato, tinha que ter experiência de tocar a válvula mitral. Também pedia artigos. Fui me
envolvendo e ao fim do curso estava profundamente envolvido na cirurgia cardíaca. O
professor Zerbini inclusive me levou para trabalhar em sua clínica particular como
instrumentador. A clínica era no Hospital São Paulo, onde começou meu contato com o
Hospital. Mesmo sendo da Faculdade de Medicina da USP, do Hospital das Clínicas, tive
muito contato com a Cardiologia do Hospital São Paulo. O professor Zerbini trabalhava lá,
onde estava o doutor Sílvio Borges, que era uma referência, um grande cardiologista e fazia
a parte clínica. Ele tinha voltado do Instituto de Cardiologia do México recentemente e

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estava lá. No hospital tinha grandes cardiologistas além desses dois, como o professor Jairo,
o professor Horácio Kneese de Mello e vários outros. Estava lá também Sílvio Carvalhal,
que fazia a parte clínica e anatomia patológica, era ele quem fazia as necropsias de todos os
doentes que morriam de doença cardíaca, e isso foi um período muito interessante, em que
a cirurgia sem circulação extracorpórea evoluiu bastante!...

A cirurgia era feita às cegas, o cirurgião tocava, apalpava, abria vávulas e fazia as coisas
simplesmente orientado pelo tato. Nesse período, a cardiologia do Hospital São Paulo,
principalmente a parte cirúrgica, era a mais avançada que tínhamos. Havia um grupo forte,
Duílio, Dirceu, Cantidio Moura Campos Filho, Oscar Pimentel Portugal... Eu ia sempre,
não só ajudar nas operações, mas também cuidar dos pacientes do doutor Zerbini. Fiz
grandes amizades na Escola Paulista. Foi uma época em que o Oswaldo Ramos estava
desenvolvendo pesquisas na área de hipertensão, nefrologia, depois veio o Artur Beltrame,
aquela foi uma fase muito boa.

Na cirurgia cardíaca, além do professor Zerbini, que era o chefe, tinha alguns nomes
importantes na Escola Paulista, como o Hugo Filipossi, que tinha sido treinado nos EUA,
junto ao doutor Pontes, o Rui Margucci, que tinha sido treinado com o Luciano Prata. Esses
tiveram um papel muito importante e eram originados da Escola Paulista. O doutor Zerbini
era do Hospital das Clínicas, e trabalhava na Escola Paulista... Mas esses não, eram desde o
início da Escola Paulista e tiveram treinamento nos EUA, na década de 1950, início da de
60. Lembro que o Rui Margucci trouxe um instrumento específico para esternose aórtica.
Passava-se esse instrumento pela ponta do coração, até chegar na válvula aórtica, e,
acionando o instrumento se abriam três laminas e se rompia a válvula. Essa era uma técnica
muito interessante, ele até fez um filme, com o Benedito Junqueira Duarte, sobre o
trabalho. Dei alguma ajuda para esse filme... A cardiologia da Escola Paulista estava num
crescendo, mas de repente as coisas se modificaram. Havia um pleito na Escola Paulista de
que o chefe do Hospital São Paulo deveria ser um membro da Escola.

Ao mesmo tempo, a Beneficência Portuguesa se transferiu da Rua Cásper Líbero para o


local atual, onde o professor Zerbini passou trabalhar, e o professor Margucci se suicidou...
Começava também a efervescência da circulação extracorpórea, enfim foram diversas
mudanças... Essa coisa da extracorpórea tem um episódio muito interessante: o doutor
Filipossi juntou um grupo trabalhava no Hospital Santa Rita, com Adauto Barbosa Lima,
Maria Vitória Martin, Pedro Direito, Sérgio Paladin. Ele começou a trabalhar com
circulação extracorpórea fora do Hospital São Paulo. A Fundação Sábato D’angelo, que era
de uma companhia de cigarro, financiou o trabalho do Filipossi, que construiu uma
máquina de circulação extracorpórea, semelhante à que o doutor Kneese tinha inventado, e
operou os primeiros doentes de comunicação interavial com circulação extracorpórea, em
absoluto sigilo. Um belo dia saiu na Gazeta, que contava as coisas da Escola Paulista, que
ele ia apresentar os primeiros sete pacientes operados de circulação extracorpórea, isso foi
uma bomba. Sílvio Borges, que na Escola Paulista chefiava esse setor e estava muito
interessado nesse assunto, ficou ofendido, porque o Filipossi estava todo dia lá, fazendo
uma coisa em que ele tinha interesse e sem contar nada. Ele se sentiu traído.

O professor Margucci tinha se suicidado, e o Filipossi seria o substituto natural, mas com
esse desentendimento ele perdeu a chance de ser o chefe do serviço, que ficou com Luciano

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Prata. A essa altura, o doutor Zerbini decidiu ficar só no Hospital das Clínicas, e com sua
clinica particular na Beneficência, começou a trabalhar fortemente com circulação
extracorpórea. Em 1955, me mudei para Uberaba, fiquei lá dois anos e meio. Lá fiz meu
primeiro modelo de coração e pulmão artificial e vim para São Paulo participar de um
evento organizado pelo Filipossi, vi a máquina que ele tinha feito e procurei fazer alguma
coisa semelhante em Uberaba. A essa altura o doutor Zerbini estava trabalhando no
Hospital das Clínicas na circulação extracorpórea, e estava usando uma técnica de anterior
a ela, que é a hipotermia. Ele mantinha o corpo do paciente a 30 graus, fechava as veias
cava superior inferior, esperava uns 20 segundos, pinçava a aorta, abria a artéria pulmonar e
a aurícula direita para fechar uma CIA ou tratar uma estemose pulmonar. Naquele tempo o
professor Filipossi fazia isso com circulação extracorpórea. As operações feitas com
hipotermia feitas no Hospital das Clínicas tinham um problema que era a limitação do
tempo em dez minutos. Quando voltei definitivamente para São Paulo o doutor Zerbini me
levou de volta ao Hospital das Clínicas, que fazia um grande esforço em sistematizar a
circulação extracorpórea, mas não estava conseguindo.

Mais ou menos nessa época, o Luciano Prata faleceu. O Galucci tinha deixado a cirurgia
para trabalhar em uma grande indústria do pai dele. O Margucci havia morrido, o Zerbini
tinha saído e Filipossi estava indisposto. Tiveram que trazer de volta o Galucci do setor
privado para chefiar o setor. A essa altura, o Hospital das Clínicas já estava conseguindo
fazer a circulação extracorpórea e assumiu a liderança que era antes da Escola Paulista. Isso
numa época em que o que causava impacto era esse tipo de cirurgia. A Escola Paulista
estava um pouco atrasada nisso.

Foi então que fui para o Dante Pazzanezze, o instituto de cardiologia do estado, onde fiz
algumas modificações nos estudos, construí um outro tipo de oxigenador, uma outra
máquina. Então ficaram dois grupos fortes: o do Hospital das Clínicas, que usava um
oxigenador de discos, e nós do Instituto de Cardiologia do Estado, que usávamos um
oxigenador de bolhas. Em 1963 ou 1964, fui procurado por dois jovens formandos, o Ênio
Búfalo e o Vicente Forte, que queriam vir trabalhar comigo no Dante porque essa área não
estava caminhando muito bem na Escola Paulista. Conversei com eles e chegamos à
conclusão de que deviam ficar ajudando na Escola Paulista e o Galucci, e depois ficariam
com o serviço. Foi o que aconteceu. Eram muito dedicados e fizeram um grupo forte na
Escola. Assim ficaram três grupos muito bons: o Hospital das Clínicas, o Instituto de
Cardiologia do Estado e a Escola Paulista de Medicina.

As coisas foram evoluindo... No Dante fiz uma válvula artificial metálica, de bola. Nós
fabricávamos isso lá! Em 1971, no Hospital das Clínicas, começaram a usar a válvula de
duramater e o Ênio começou a usar na Escola Paulista a homóloga, uma válvula humana
preservada em suporte. Em Rio Preto o doutor Braile começou a usar a válvula de
pericárdio de boi. Em 1965, 66, veio o marcapasso implantável e os oxigenadores
descartáveis. Fizemos no Dante o oxigenador de bolhas descartável! Obtive até a patente...
Depois tivemos o oxigenador de membranas descartável, do qual também tive patente.
Todos esses aparelhos eram inicialmente fabricados no Dante evidentemente que depois
tivemos que passar a técnica para a indústria, que começou a fabricá-los, pagando royalties
e pagando assistência técnica ao Instituto. Em 68 veio a cirurgia de coronária, com o doutor
Eduardo Souza, que havia sido residente do Dante. Ele foi à Cleveland treinar

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coronariografia. Foi a primeira vez aqui no Brasil que fizemos a cirurgia de coronária, de
ponte de safena. Foi quando começou esse período de preparação de pessoal, de vários
serviços no país e no exterior, transformando São Paulo no grande centro de cirurgia
cardíaca da América do Sul!

Havia uma grande ligação minha com a Escola Paulista, especialmente com o doutor Sílvio
Borges, que era quem cuidava da parte clínica para o doutor Zerbini. Para divulgar a
cirurgia cardíaca, Zerbini viajava muito para outros estados e para o interior de São Paulo.
Sempre com Sílvio Borges e eu, para selecionar os pacientes para as operações. Depois
passamos a viajar com o anestesista Alberto Caputo. Minha vivência com Sílvio Borges e
com a cardiologia da Escola Paulista foi muito forte, tanto que quando fui para Uberaba,
em agosto de 1955, o Sílvio foi comigo. Ele ficou por dois meses e os primeiros pacientes
que operei foi ele quem selecionou e fez a indicação. Tinha por ele uma amizade de irmão,
e por conseqüência com os outros que trabalhavam com ele, que eram da minha geração.

Sílvio Borges tinha feito um coração artificial para estudar a fisiologia cardíaca, um
trabalho incrível! Era um homem que estava à frente do seu tempo. Depois ele se envolveu
com a administração do Hospital São Paulo, começou a informatizar e a cardiologia foi
ficando num plano secundário. Foi quando a cardiologia entrou em declínio no Hospital
São Paulo. Ele nunca mais voltou à área. Era uma pessoa com inteligência muito acima da
média, fez muita coisa importante, uma pessoa completamente diferente e um homem de
liderança.

Dessa época têm casos de vários tipos... Lembro agora que antes da circulação
extracorpórea, os argentinos eram muito fortes nisso, e tinha um doutor, Albanez, que foi
convidado para fazer algumas cirurgias no Hospital São Paulo, em pacientes com
diagnósticos muito complexos e ficávamos discutindo o que fazer... Em 1953, esteve
também no país o doutor Bailey e pediram que operasse um paciente com insuficiência
aórtica, para o que na época não tinha cirurgia. Só se operava esternose, para abrir as
válvulas. Ele resolveu fazer a operação! Todos ficaram assustados e se perguntavam como
ele iria fazer a cirurgia. Com um pedaço de tecido que não precisava passar, fez uma bola,
pegou um fio de seda numero 3, fixou e obteve com uma bolinha e com um fio. Todos se
perguntaram: “O que vai fazer? Ele mandou esterilizar aquilo!” Abriu o doente e colocou a
bolinha no coração do paciente. Ele tinha uma agulha para tratar insuficiência mitral, enfiou
essa agulha pela ponta do ventrículo, passou pela válvula, furou a aorta! Pegou o fio,
trouxe, e saiu pela ponta do coração, a bolinha ficou de fora. Pegou uma pinça, abriu a
aorta, abriu a pinça, jogou a bolinha dentro e fechou! Puxou o fio para ajustar o lugar da
bolinha dentro da aorta, e aí fixou na ponta. Quando o coração contraía a bolinha subia,
quando o coração descontraía, a bolinha tampava a válvula e corrigia a insuficiência
aórtica, um negócio espetacular! Só que à noite, a bolinha passou para dentro do ventrículo,
engasgou e o doente morreu... Ele disse: “É, não funcionou, preciso fazer mais
experimentação...”.

Mas têm coisas pitorescas: o doutor Zerbini estava operando um doente de pulmão no
Hospital São Paulo, e eu estava instrumentando... o doutor Lúcio, que foi o primeiro
assistente dele, ajudando, assim como eu, o doutor Galucci como segundo auxiliar, e o
Alberto Caputo de anestesista. É preciso lembrar que a Escola Paulista tinha a escola de

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enfermagem, em que as alunas faziam estágio no centro cirúrgico. A madre Irmana, que era
chefe do centro cirúrgico, era muito rigorosa. Na época não tinha oxigênio centralizado,
tinha torpedo de oxigênio na sala, com manômetro, e sempre tinha um torpedo de reserva,
que não tinha manômetro. O Zerbini estava operando, e tinha uma aluna da Escola escorada
no torpedo extra. De repente, ele pediu alguma coisa a ela, que disse que não poderia sair
da sala. Ele ficou bravo, ela se assustou, foi sair, se desequilibrou, o torpedo caiu. Ela
estava se segurando nele, abriu o torpedo e o gás foi saindo!... Todo mundo saiu correndo,
menos eu e o Alberto Caputo, que sabíamos o que estava acontecendo. Ele correu lá e
fechou o torpedo!... Foi uma confusão!

A Escola teve uma coisa muito interessante, ela facilitou para o profissional ser professor
da Escola e ter sua clínica privada no mesmo lugar, no Hospital São Paulo, pois era
particular. Isso foi muito importante. O pessoal ficou mais próximo. No Hospital das
Clínicas, que a faculdade tinha começado na Santa Casa e era um hospital de indigentes, os
professores não podiam trabalhar lá, ter uma clínica privada, então eles tinham que
trabalhar fora, no Santa Catarina, no Samaritano, na Beneficência Portuguesa, no Oswaldo
Cruz... Essa concepção criou um pouco de diferença, porque o pessoal da Escola Paulista
tinha condições de fazer uma integração mais geográfica. Com o tempo, isso também foi
arrefecendo e as coisas foram ficando mais igualadas.

A Escola Paulista fez uma coisa interessante, lembro bem disso, porque houve uma lei na
Assembléia Legislativa que considerou de interesse público para desapropriação, aqueles
quarteirões da Vila Clementino. Por isso, a Escola pôde comprar aquelas casas para
construir suas dependências e possibilitou que a Escola tivesse um campus. O Hospital das
Clínicas não tem coisa igual. Podia ter feito alguma coisa na Oscar Freire ou na Teodoro
Sampaio, para garantir algumas áreas para o futuro. Como não fez, o Hospital das Clínicas
não tem para onde crescer. Mas a Escola tem esse espaço, porque aqueles quarteirões todos
estão preservados para a própria Escola. Vê-se que em torno da Escola não têm prédios, os
prédios são os que a Escola constrói. Eles preservaram a área e essa foi uma atitude muito
inteligente. Outra coisa foi levar a Bireme para lá!

A Unifesp ficou especializada na área da saúde se dedicou mais a essa área e se fortificou
nesse setor, e ao mesmo tempo que hipertrofiou deu contribuições muito importantes. A
USP, por outro lado, ficou também com o conhecimento das áreas exatas e humanas. Mas
agora a expansão da Unifesp vai trazer novos cursos, novas áreas, isso é natural.

Tenho muitas ligações lá! O Carlini, por exemplo, é muito meu amigo. Quando fui
ministro, o levei para ser diretor da Vigilância Sanitária. A Anvisa, quem projetou foi o
Carlini. Fui com ele ao FDA, nos EUA, visitar, para ver porque nós estávamos tão
precários, esse sistema de controle dos laboratórios e de fechá-los. Tanto quando não
respeitavam as exigências federais sobre práticas de fabricação, quanto quando eram
empresas fantasmas, fechou mais de 200, que tinham o endereço mas não tinha o
laboratório. Realmente, fez uma administração muito forte.

Minha experiência na administração pública foi um ato natural, nunca houve conflito com a
medicina. Sempre foi fácil, porque desde 1962 formei o meu grupo. São 14 pessoas, uma
equipe que continua a mesma até hoje, 40 anos depois! Acredito que isso se dê porque

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construí um sistema socializado, de caixa único, em que o chefe, que era eu, ganhava pouco
mais do que todos. Mas nunca uma grande diferença. Isso me deu a possibilidade de ocupar
esses cargos sem me afastar completamente da cirurgia. Quando fui secretário, dava o mais
longo expediente entre os chefes de pasta. Chegava na secretaria sete e meia, na hora do
almoço ia operar, voltava às três horas e ficava até nove da noite. Outros secretários, que
tinham compromissos políticos, não tinham a disponibilidade de tempo que eu tinha na
secretaria. Quando fui ministro, falei para o presidente “não vou deixar de operar”. Para
isso, trabalhava até sexta-feira, operava sábado e domingo e voltava na segunda-feira.
Nunca me atrapalhou porque tinha uma equipe. O serviço estava organizado em quatro
equipes: uma de cirurgia, propriamente dita, a de terapia intensiva, uma de diagnóstico e
outra clínica.

Sempre disse: “O doente quer de mim a melhor atuação possível no campo operatório”.
Mesmo quando operava o dia inteiro, seis ou sete doentes por dia, se estava operando e o
doente tinha algum problema na UTI, eu não poderia atender. Por isso montei o grupo que
atua na UTI. Cada equipe atende especificamente uma realidade. A de diagnóstico que era
diferente da equipe que cuida do doente depois que ele vem para o quarto. Por ter essa
visão e divisão de serviço pude ocupar cargos públicos e continuar operando.

Criei isso em 1976, pois até então cada equipe cirúrgica tinha que ter todas as áreas, e um
grupo novo não tinha como fazer tudo isso. Esse serviço diferenciado pôde oferecer suporte
para outras equipes cirúrgicas.

Muitos de meus ex-assistentes, que trabalharam comigo durante 15 anos ou mais, como o
Paulo Chacur, o Camilo, o Jarbas, montaram suas equipes e usaram a UTI e seus recursos
de diagnósticos que estavam montados. Então eles funcionaram como cirurgia geral, quer
dizer: opera o doente e tem quem cuidar. Acredito que essa tenha sido uma coisa boa que
introduzi. É um dinamismo que dá aos outros a capacidade de trabalhar tranqüilamente.

Diferentemente disso, na Beneficência Portuguesa, até hoje, cada um tem sua UTI. É um
sistema diferente e funciona bem, também. Sempre achei que têm várias maneiras de fazer
uma coisa bem feita! Têm pessoas que acham que só a maneira delas é boa. Não sou
assim...

Outra coisa que defendi é que nada começa pronto! Tudo tem seu início, suas dificuldades e
seus problemas. O que acontece é que as pessoas só vão visitar o que está pronto: “Tendo
tudo isso que você tem, eu também faria”. Mas não começou assim, as pessoas têm que
entender que é preciso muito trabalho, muita dedicação...

Como aconteceu com o professor Ênio Búfollo, que me procurou no Dante Pazzanese
pedindo para fazer parte da equipe e sugeri que permanecesse na Escola Paulista e
trabalhasse para reerguer o setor da cirurgia cardíaca. Senti que aquele grupo tinha gana e o
jeito de fazer é trabalhar! Eles fizeram. Acho que o Ênio tem um mérito extraordinário!... e
eles se juntaram em torno do Galucci, que se tornou um ídolo para eles. Estive lá quando
Galucci morreu e o sentimento era como se estivessem perdendo o pai. Isso é importante,
mostra que as pessoas têm sentimentos, que têm ética e grandeza! É diferente... não é como

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fazer um negócio para ganhar dinheiro... Estavam construindo uma estrutura, e foi isso que
eles fizeram... Na verdade, o país ganhou mais um centro de cirurgia cardíaca.

Tenho na minha vida uma influência grande da Escola Paulista, desde as reuniões de
cardiologia que eram presididas pelo doutor Jairo Ramos; o Sílvio Borges, com quem
praticamente aprendi a cardiologia clínica; o Sílvio Carvalhal, com quem aprendi a
patologia cardíaca... pois eu ia a todas as necropsias...

A Escola Paulista de Medicina teve importância fundamental na minha formação. Mais


tarde, depois de formado, tenho visto as contribuições que vem da Escola Paulista, muitas
das quais incorporei. Uma das mais importantes feitas no Brasil foi a cirurgia de coronária
sem a circulação extracorpórea. Isto se deve ao Ênio. Essa técnica já tinha sido realizada
por outros autores e não havia se sustentado. Quando ele a reviveu e começou a apresentá-
la, sofreu muitas críticas. Há até mesmo um editorial do Circulation criticando a cirurgia
coronária sem a circulação extracorpórea. O mérito do Ênio foi ter persistido, mostrado que
é factível, tanto que o mundo inteiro, hoje, usa essa técnica. Não precisando usar o
coração–pulmão artificial. É uma cirurgia muito mais simples, que tem menos gasto e
menos complicações. O resultado é semelhante, mas o procedimento é mais simples! Hoje,
ele tem reconhecimento internacional, o mundo inteiro reconhece seu trabalho! Tanto que
está recebendo agora uma homenagem na Grécia.

Posso dizer que a Escola Paulista tem dado muitas contribuições, não só na área da
cardiologia, mas na nefrologia, com o Hospital do Rim, onde se faz o maior número de
transplante renal no mundo; o grupo de oftalmologia da Escola Paulista também é de
primeira linha, e existem várias outras especialidades em que sua atuação se destaca. A
Escola Paulista tem dado uma contribuição à medicina brasileira: palpável e importante!

Olhando para trás, tenho a sensação de que participei de uma jornada incrível! A cirurgia
cardíaca foi feita aqui no Brasil! Fizemos máquinas de circulação extracorpórea que
usavam componentes que comprávamos na Santa Ifigênia!... Eram máquinas fáceis de
operar, de reparar e que podiam ser utilizadas em qualquer lugar. A sensação é de que
enfrentamos os desafios colocados a nossa frente sem nenhuma perplexidade... Com a
noção absolutamente clara de que o difícil ninguém faz!... O problema é descobrir o jeito e
em várias situações descobrimos o jeito! Participamos da consolidação dessa especialidade.
Pessoalmente, tenho consciência de que participei, de forma direta, do desenvolvimento de
três grandes instituições de cardiologia, o Instituto Dante Pazzanese, o INCOR, e do
Hospital do Coração. Sinto que a missão foi cumprida, e agora me encontro numa posição -
com a experiência que adquiri com administração pública - de discutir formas de ajudar o
desenvolvimento do sistema de saúde, principalmente discutir financiamento e uma série de
outras coisas, mas estou contente! Me diverti muito!...

Tenho o orgulho de ver que a nossa cirurgia cardíaca não deve nada a outros países. Mas há
uma frustração importante, porque apesar de estejamos trabalhando na fronteira do
conhecimento, usando toda tecnologia moderna, não conseguimos oferecer isso a toda a
população... Fica uma sensação muito desconfortável de que todos os avanços são para
quem pode pagar diretamente ou indiretamente por eles, mas não para quem precisa
realmente deles... Isso nos deixa numa situação difícil.

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Em todo lugar há limitações, tenho consciência de que contribuí para eliminar as fraudes e
as irregularidades... Hoje ninguém mais fala em fraudes, como o que acontecia há tempos.
Colocamos 135 críticas no sistema de processamento de contas... Hoje se fala em fila, em
demora no atendimento, em dificuldades... Tudo relacionado à falta de recursos. Criou-se
no país a idéia de que não faltam recursos, que falta apenas gestão... Essa é uma discussão
completamente equivocada! Tenho pelejado muito para corrigir. Faltam recursos sim! Se
tivéssemos cumprido a disposição transitória da constituição de 1988 que manda dar 30%
do orçamento da seguridade social para a saúde, teríamos, hoje, no orçamento federal algo
em torno de 120 bilhões e nós temos 45 bilhões, sujeitos a contingenciamentos e desvios
para outras áreas. A luta é difícil, e acredito que tenha que se manter para que possamos
reforçar o espírito, de fazer todo o possível para oferecer à população os avanços da ciência
e da tecnologia.

Comecei a trabalhar o lado social quando o doutor Dante me chamou para descentralizar o
atendimento ambulatorial do Instituto. Porque ele dizia: “Grande parte desses doentes não
precisava ser atendida aqui”. Disse a ele: “Vou descobrir de onde vêm essas pessoas e
entrar em contato com as unidades de onde eles moram”. Pedi ao serviço social para
verificar a procedência e vimos que vinham sempre da periferia, Penha, Sapopemba...
Entrei em contato com os centros de saúde dessas áreas e descobri que não tinha hospitais
nessas regiões! Percebi que se você pegasse a Pamplona com a Paulista, abrisse quatro
quilômetros e traçasse um círculo, haveria mais de 80% dos hospitais da capital.

Por isso, quando fui convidado para fazer parte do secretariado do governo estadual (e até
hoje não sei porque Paulo Maluf me convidou, já que nunca fui amigo dele), aceitei! Fiz o
plano metropolitano de saúde, com um levantamento da distribuição de leitos hospitalares
da cidade de São Paulo. Fiz um mapa, que tenho em minha mesa, onde vejo que São Paulo
tinha dez milhões de habitantes e 96 distritos. Peguei os 170 hospitais, com 28 mil leitos, o
que significa 2,8 leitos por mil habitantes, fui à Fundação Seade e localizamos os hospitais
nos respectivos distritos, depois dividi em quatro grupos os distritos que têm mais de dez
leitos por mil habitantes. São Belém, Braz, Pari, Santo Amaro, Cambuci, Bela Vista,
Morumbi, Liberdade, Santa Cecília, Vila Mariana e Jardim Paulista. Esses têm na média,
26 leitos por mil habitantes. Alguns distritos, como Jardim Paulista e Vila Mariana, têm 43!
Isso é um despropósito!... Significa que há uma concentração de hospitais nesses distritos.
Há ainda os bairros antigos, Mooca, Lapa, Ipiranga, onde a média é de seis leitos por mil
habitantes. Se somar esses dois, têm-se 25 distritos onde vivem um milhão e quinhentas mil
pessoas com 13 leitos por mil habitantes. Depois temos 32 distritos onde vivem quase
quatro milhões de pessoas tendo em média 1,2 leitos por mil habitantes. Por último,
existem 39 distritos com mais de quatro milhões de habitantes que não têm nenhum leito!...

É por isso que as pessoas se impressionam quando o pronto-socorro do Hospital São Paulo
está lotado, o do Hospital das Clínicas também. Estão todos saturados! O problema
acontece porque essas pessoas não têm para onde ir... O doente tem que ir a algum lugar, e
as pessoas dizem: “Não pode maca no corredor”, “Doutor, onde você quer que esse pessoal
fique?” Temos de ter uma infra-estrutura suficiente para atender a população.

Aí vem a discussão sobre carga tributária, elevada e com grande sonegação. Dizem que nos
países do primeiro mundo as pessoas têm retorno em serviço do que pagam e aqui não têm.

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Isso é uma idiotice! Esses países foram os primeiros que fizeram a revolução industrial e
passaram a explorar o mundo inteiro. Nós começamos a fazer nossa revolução industrial a
partir dos anos 50. Nossa população tem um grupo grande que ganha pouco, mas que paga
muito e tem um grupo pequeno que ganha muito e sonega...

Esse é o nosso problema: uma pequena parte da população vive como se nosso país tivesse
renda per capita de 40 mil de dólares e uma grande parte da população vive como se
estivesse num país de 800 dólares per capita. Essa é a nossa grande discussão! Agora estão
fazendo uma grande discussão sobre a CPMF, que arrecada R$ 35 bilhões. O COFINS
arrecada 106 bilhões e ninguém quer diminuir. O grande problema brasileiro é a corrupção.
É comum você chamar o sujeito para consertar a geladeira e achar que ele vai te enganar;
deixa o carro na oficina e a impressão é que não trocaram as peças que pediu; chega no alto
escalão da República e tem corrupção, escândalos... Não sabemos como vamos arrumar
isso, essa é a frustração...

Não se faz o necessário nas regiões carentes porque a saúde tem uma característica que as
outras áreas não entendem: quando você termina uma obra, não termina a despesa, nem
começa a receita. É aí que começa a despesa principal e passa-se a gastar duas, três vezes
mais do que o gasto para equipar ou construir um o prédio. Então se muita coisa é feita, vai
comprometer todo o orçamento!...

Mas trabalhamos muito com medicina preventiva. Eliminamos a pólio, o sarampo,


vacinamos muito! Acabamos com a doença de chagas. Não é verdade que não fazemos
prevenção... O problema que não conseguimos resolver é o atendimento individual. Todas
as críticas feitas na televisão se referem a esse tipo de atendimento. É a mulher que vai dar
a luz e não consegue vaga em hospital, o sujeito que chega no pronto-socorro e está lotado,
cheio de macas. Nossa crise está no atendimento hospitalar e ambulatorial, e essa crise
começou a ficar aguda a partir de 1990, quando a previdência social se retirou da
assistência médica. A assistência médica-ambulatorial era atribuição do Ministério da
Previdência. O INAMPS era do Ministério da Previdência. O superintendente do Ministério
da Previdência nos estados tinha mais poder do que o secretário estadual, porque tinha mais
recursos. No momento em que aumentou o número de aposentados, a previdência tirou o
dinheiro que dava para a saúde e não se pôs nada no lugar...

Não conseguimos corrigir essa deficiência. Os grandes hospitais, que hoje em dia são
objeto de escândalo na mídia, como o Hospital Antônio Pedro, de Niterói - que já foi um
dos melhores hospitais do Brasil - passaram a ter de viver com o que o SUS paga. Mas esse
valor dá nem para o custeio. Então não dá para manter o hospital, o prédio atualizado,
mudar equipamentos, fazer a manutenção e incorporar a tecnologia moderna. Esses
hospitais foram se deteriorando e hoje estão em situação de calamidade, mas eram grandes
hospitais do Brasil. O Hospital dos Servidores do Rio, foi onde começou a residência
médica no país, era uma escola de medicina prestigiada no país inteiro. Atualmente, está
acabado. É um problema de recurso, não é só de gestão, não é mudando a gestão que se
resolve... não resolve!...

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