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As histórias de Jhumpa Lahiri [em Teaching Yourself Italian] cruzam-se com as histórias de

Chimamanda Ngozi Adichie [em The Danger of a Single Story].


Ambas escritoras passam por processos de metamorfose distintos, que coincidem, porém, num
fim idêntico: o autorreconhecimento individual e literário. Para analisar mais profundamente
qualquer uma das metamorfoses em causa, é necessário entender os fatores externos – sociais e
culturais – que as despertaram, ou seja as vivências que precederam a este fenómeno.

A jornada de Jhumpa Lahiri tem início na língua. A autora começa por relatar o impacto que
três idiomas tiveram na sua vida.
O bengali como língua distante/antepassada, de que ela própria não tem conhecimento
profundo (sem saber ler nem escrever): associada meramente à sua mãe e que nunca chega a
sentir como realmente sua.“In my case there is another distance, another schism. I don’t know
Bengali perfectly. I don’t know how to write it, or even read it. (…) so I’ve always perceived a
disjunction between it and me. As a result I consider my mother tongue, paradoxically, a
foreign language.”

A autora revela até, entregando-se a um ponto de vista mais visceral e cru, que considera o
bengali como fonte única de identidade total da sua mãe, funcionando como uma espécie de
corrente invisível e opressiva que impacta negativamente a sua vida nos Estados Unidos. “I am
the daughter of a mother who would never change. In the United States, she continued, as far as
possible, to dress, behave, eat, think, live as if she had never left India, Calcutta. The refusal to
modify her aspect, her habits, her attitudes was her strategy for resisting American culture, for
fighting it, for maintaining her identity. Becoming or even resembling an American would have
meant total defeat.”

O inglês, língua dominante na sua vida e que a própria escritora domina, mas que, tal como a
anterior, nunca chega a sentir como sua por lhe ter sido “imposta” e pelo facto de a própria mãe
a rejeitar. “Who wants to restrain me?The most obvious answer is the English language. But I
think it’s not so much English in itself as everything the language has symbolized for me. For
practically my whole life, English has represented a consuming struggle, a wrenching conflict,
a continuous sense of failure that is the source of almost all my anxiety. It has represented a
culture that had to be mastered, interpreted. I was afraid that it meant a break between me and
my parents. English denotes a heavy, burdensome aspect of my past. I’m tired of it.”

E, por fim, o italiano – o tópico central da obra como o próprio nome indica [Teaching
Yourself Italian]. Esta língua apresenta-se como uma forte presença na vida da autora, que ela
própria não consegue explicar de forma inteiramente racional – à medida que se cruza com esta,
em várias etapas da sua vida, sente uma atração cada vez mais forte, vai-se identificando
voluntariamente com a mesma e toda a cultura [talvez mais verdadeira e pura no seu entender]
que esta abarca. “As for Italian, the exile has a different aspect. Almost as soon as we met,
Italian and I were separated. My yearning seems foolish. And yet I feel it. How is it possible to
feel exiled from a language that isn’t mine? That I don’t know?”

A própria sensação de exílio que o italiano provoca é totalmente diferente das restantes que
sentiu ao longo da sua vida. Com o bengali e o inglês, essa barreira que impede a conexão
profunda com a língua encontra-se permanentemente interligada com a existência de uma
bagagem prévia – aspetos da vida pessoal que não pode controlar – memórias e ambições
passadas.
“All my life I’ve tried to get away from the void of my origin. It was the void that distressed me,
that I was fleeing. That’s why I was never happy with myself.”

O exílio italiano revela-se apenas como um obstáculo linguístico, por vezes tormentoso, mas
possível de ser ultrapassado. Não significando, portanto, uma barreira impeditiva num sentido
mais obscuro, (só técnico).
“I try to have a conversation. At the end of every lesson, the teacher gives me a long list of
words that I lacked during the conversation. I review it diligently. I put it in a folder. I can’t
remember them.” .
“I count the sentences, as if they were strokes in a tennis game, as if they were strokes when
you’re learning to swim.”
“I am always aware of the mistakes that hamper me, that confuse me, and I feel more
discouraged than ever.”
“With her my project seems more possible than impossible. With her my strange devotion to the
language seems more a vocation than a folly.”
“I read slowly, painstakingly. With difficulty. Every page seems to have a light covering of mist.
The obstacles stimulate me. Every new construction seems a marvel, every unknown word a
jewel.”

Por outras palavras, o aspeto que diferencia este exílio é, no fundo, o facto de ser o único que
realizou voluntariamente: a autora escolhe conscientemente o italiano como seu lar.
“I love this trip. I go out of the house, leaving behind the rest of my life. I don’t think about my
writing. I forget, for several hours, the other languages I know. Each time, it seems like a small
flight. Awaiting me is a place where only Italian matters. A shelter from which a new reality
bursts forth.”
“I finally find myself inside the language. Because in the end to learn a language, to feel
connected to it, you have to have a dialogue, however childlike, however imperfect.”
“I immerse myself in Italian. I enter another land, unexplored, murky. A kind of voluntary
exile.”

E por este último motivo, torna-se possível a mudança/metamorfose: a assimilação da nova


cultura e exploração da identidade dual, em simultâneo.
Ora, mas a metamorfose não deixa de ser um processo doloroso no sentido em que a nova
identidade entra em conflito com as anteriormente existentes.
“From now on, I pledge to read only in Italian. It seems right, to detach myself from my
principal language. I consider it an official renunciation.”
“The anchor of my creative life disappears, the stars that guided me recede. I see before me a
new room, empty.”
“It’s impossible to abandon English. Yet my stronger language already seems behind me.”
“My children, upset, hungry, are crying, saying that they want to go back to America
immediately.”

É sempre necessário abdicar de algo em si mesma – pelo menos momentaneamente, enquanto


descobre (/redescobre) facetas novas (/ou perdidas).
“I think of two-faced Janus. Two faces that look at the past and the future at once.”
“I read as I did when I was a girl. Thus, as an adult, as a writer, I rediscover the pleasure of
reading.”
“I do something strange, unexpected. I write my diary in Italian. I do it almost automatically,
spontaneously. I do it because when I take the pen in my hand I no longer hear English in my
brain.”
I don’t recognize the person who is writing in this diary, in this new, approximate language. But
I know that it’s the most genuine, most vulnerable part of me. (…)The voice didn’t seem to be
mine. In America it wasn’t.”
“Metamorphosis is a process that is both violent and regenerative, a death and a birth. It’s not
clear where the nymph ends and the tree begins; the beauty of this scene is that it portrays the
fusion of two elements, of both beings.”
“I, too, find myself confined. I can’t move as I did before, the way I was used to moving in
English. A new language, Italian, covers me like a kind of bark. I remain inside: renewed,
trapped, relieved, uncomfortable.”

No entanto, metamorfose culmina em algo maravilhoso - para além dessa descoberta a nível
pessoal - a autora reencontra-se na escrita novamente. Mostrando falta de inibição para escrever,
pensar, imaginar – permitindo entregar-se à sinceridade e vulnerabilidade; logo, permitindo
reinventar-se e viver de forma mais fiel a si mesma.

“By writing in Italian, I think I am escaping both my failures with regard to English and my
success. Italian offers me a very different literary path. As a writer I can demolish myself, I can
reconstruct myself.”
“I think of Fernando Pessoa, a writer who invented four versions of himself: four separate,
distinct writers, thanks to which he was able to go beyond the confines of himself. Maybe what
I’m doing, by means of Italian, resembles his tactic. It’s not possible to become another writer,
but it might be possible to become two.”
“I feel more protected when I write in Italian, even though I’m also more exposed (…)I’m
almost without a skin (…) I am, in Italian, a tougher, freer writer, who, taking root again, grows
in a different way.”

A jornada de Chimamanda Adichie tem início na narração de histórias. Começa por relatar a
sua vivência enquanto leitora e escritora precoce, alertando-nos, em simultâneo, para o impacto
da literatura no que diz respeito à modulação das nossas crenças e valores.
Primeiramente, retrata o impacto negativo que sentiu ao contactar com a literatura ocidental,
mais especificamente a britânica e a americana. Negativo, pois, pelo facto de representar um
encontro limitado com o universo imenso que a literatura pode representar – inclusive
representações referentes ao seu próprio background cultural.
“Fui uma leitora precoce. E o que eu lia eram livros infantis britânicos e americanos. Fui
também uma escritora precoce. (…) Escrevia exatamente os tipos de histórias que eu lia. Todos
os meus personagens eram brancos de olhos azuis. (…) apesar do facto de morar na Nigéria.
Eu nunca tinha estado fora da Nigéria.”
“(…) nós somos impressionáveis e vulneráveis face a uma história, principalmente quando
somos crianças. Porque tudo que eu havia lido eram livros nos quais as personagens eram
estrangeiras, eu convenci-me de que os livros, por sua própria natureza, tinham que ter
estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu não podia me identificar.”
Saí apenas desse estado de ignorância involuntário quando é, finalmente, capaz de ganhar
acesso a livros africanos, o que não era fácil, em comparação com os ocidentais – podemos, até
mesmo, considerar esta sua vivência como uma espécie de exílio estruturalmente imposto.
“Bem, as coisas mudaram quando eu descobri os livros africanos. Não havia muitos
disponíveis e eles não eram tão fáceis de encontrar quanto os livros estrangeiros, mas, devido a
escritores como Chinua Achebe e Camara Laye, eu passei por uma mudança mental na minha
percepção da literatura. Eu percebi que pessoas como eu, meninas com a pele da cor de
chocolate, cujos cabelos crespos não poderiam formar rabos de cavalo, também podiam existir
na literatura. Eu comecei a escrever sobre coisas que eu reconhecia.”
O reconhecimento da sua cultura no mundo literário leva, inerentemente, ao reconhecimento
de si própria no mundo. Podemos considerar que é, a partir desse dado momento, que se torna
possível o começo da sua metamorfose – enquanto mulher e escritora nigeriana.
“Então o que a descoberta dos escritores africanos fez por mim foi: salvou-me de ter uma
única história sobre o que os livros são.”

A autora reflete, então, acerca do fenómeno que poderia estar por detrás dessa ignorância
involuntária – conceituando-o como a existência de uma história única. Conceito esse que vai
ser desenvolvido, ao longo do seu relato, através de diversas exemplificações de cariz pessoal e
íntimo.
“Eu fiquei atônita! Nunca tinha pensado que alguém da sua família pudesse realmente criar
alguma coisa. Tudo que eu tinha ouvido sobre eles era como eram pobres. Assim, tinha se
tornado impossível, pra mim, vê-los como alguma coisa além de “pobres”. A sua pobreza era a
minha única história sobre eles.”
“ A minha colega de quarto tinha uma única história sobre África. Uma única história de
catástrofe. Nessa única história não havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, de
modo nenhum. Nenhuma possibilidade de sentimentos mais complexos do que piedade.
Nenhuma possibilidade de uma conexão como humanos iguais.”
“Se eu não tivesse crescido na Nigéria, e se tudo que eu conhecesse sobre a África viesse das
imagens populares, eu também pensaria que a África era um lugar de lindas paisagens, lindos
animais e pessoas incompreensíveis, lutando em guerras sem sentido, morrendo de pobreza e
AIDS, incapazes de falar por eles mesmos e esperando serem salvos por um estrangeiro branco
e gentil.”

À medida que o seu relato avança, persistem cada vez menos dúvidas em relação à sua
identidade individual e cultural, e cada vez mais certezas no que respeita o funcionamento do
globo.
A escritora convida-nos, pacientemente, a uma experiência de reflexão conjunta - séria e
essencial - acerca da hegemonia da narrativa ocidental – nos vários campos literários existentes
[desde o papel ao digital]. Processo hegemónico que se baseia na construção de estereótipos, ou
seja, de histórias únicas.
“Eu acho que essa única história da África vem da literatura ocidental. (…) representa o início
de uma (…) tradição da África subsaariana como um lugar negativo, de diferenças, de
escuridão (…) comecei a perceber que minha colega de quarto americana deve ter, por toda
sua vida, visto e ouvido diferentes versões de uma única história.”
“O professor me disse que minhas personagens pareciam-se muito com ele, um homem
educado de classe média. Minhas personagens dirigiam carros, elas não estavam famintas. Por
isso, elas não eram autenticamente africanas.”
“Eu percebi que eu tinha estado tão imersa na cobertura da mídia sobre os mexicanos que eles
tornaram numa coisa na minha mente: o imigrante abjeto. Eu tinha assimilado a única história
sobre os mexicanos, e eu não podia estar mais envergonhada de mim mesma. É assim, pois, que
se cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa,
repetidamente, e será o que eles se tornarão.”
“Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de tornar
definitiva a história daquela pessoa.”
“Nunca havia me ocorrido pensar que só porque eu havia lido um romance no qual uma
personagem era um assassino em série, que isso era, de alguma forma, representativo de todos
os americanos.
E, agora, isso não é porque eu sou uma pessoa melhor do que aquele estudante; mas, devido
ao poder cultural e econômico da América, eu tinha muitas histórias sobre a América.”

Chimamanda Ngozie Adichie não seria quem é, a escritora e pensadora que é, se se tivesse
submetido à história única que lhe contavam sobre ela própria. Se se tivesse deixado definir por
terceiros que a exilassem da própria cultura.
Sublinha, portanto, a necessidade de um equilíbrio de histórias, lutando ativamente para que
essa metamorfose ocorra.
“Eu ensino em workshops de escrita em Lagos todo verão. E é extraordinário, pra mim, ver
quantas pessoas se inscrevem, quantas pessoas estão ansiosas por escrever, por contar
histórias.”
“Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e
ressaltar o mal. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias
podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade
perdida.”
Concluindo, assim, Jhumpa Lahiri conta as suas histórias numa lógica sistematicamente
subjetiva, analisando o longo processo de aprendizagem e de autodescoberta que foi a entrega
(inicialmente gradual e em seguida total e apaixonada) à língua italiana. E que significou, dentro
de certa medida, uma renúncia às suas culturas originárias.
Chimamanda Adichie extrapola, através das suas vivências subjetivas, uma análise acerca da
realidade politico-cultural africana, colocando em evidência a hegemonia colonial da literatura
ocidental, sobre todas as outras. Testemunho de um longo processo de aprendizagem e de
autodescoberta que significou um acolhimento das suas raízes culturais. // Em ambas as obras,
existe, pois, uma metamorfose individual que se espelha a nível coletivo através do exercício
literário.

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