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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

MITOLOGIA DANTESCA: A PRESENÇA ALEGÓRICA DE


GÉRIÃO NA COMMEDIA, DE DANTE ALIGHIERI1
DANTE’S MYTHOLOGY: ALLEGORICAL PRESENCE OF GERYON IN THE
COMMEDIA, BY DANTE ALIGHIERI

Daniel Lula Costa2


Universidade Estadual do Paraná
daniellcosta23@yahoo.com.br

Resumo: Gérião é o guardião do oitavo círculo Abstract: Geryon is the guardian of the eighth
do inferno descrito na Commedia, de Dante circle of hell described in Dante Alighieri's
Alighieri. Um ser híbrido de Commedia. A hybrid being of transtemporalities
transtemporalidades e transculturalidades, and transculturalities, described with a body
descrito com um corpo que detém quatro that holds four natures: bestial, scorpion,
naturezas: bestial, escorpião, humana e human and serpent. These natures were
serpente. Essas naturezas foram apresentadas presented by the poet Dante Alighieri, character
pelo poeta Dante Alighieri, personagem e autor and author of the Commedia, a work written in
da Commedia, obra escrita no século XIV que the 14th century that describes Dante's journey
narra a viagem de Dante ao pós-morte to the medieval postmortem: Hell, Purgatory
medieval: Inferno, Purgatório e Paraíso. O and Paradise. The aim of this article is to
objetivo é analisar a revelação figural do ser analyze the figural revelation of the
híbrido antropobestial Gérião enquanto anthropobestial hybrid being Geryon as a
detentor de transtemporalidades que confluem holder of transtemporalities that conflate the
as presenças de passado antigas relacionadas às presence of ancient past related to Greco-
obras greco-romanas com as mitologias Roman works with medieval mythologies, such
medievais como, por exemplo, os Bestiários. A as the Bestiaries. The perspective of figural
perspectiva metodológica da revelação figural é revelation is based on Auerbach's concepts of
baseada nos conceitos de figuração e pré- figuration and pre-figuration, Benjamin's
figuração de Auerbach, alegoria de Benjamin e allegory and the presence of past explained by
presença de passado de Gumbrecht. Gumbrecht.
Palavras-chave: Gérião; Dante; Commedia. Keywords: Geryon; Dante; Commedia.

Introdução
Dante Alighieri nasceu em 1265 e faleceu em 1321. Seu papel enquanto poeta
e pensador italiano ecoa pelas temporalidades transculturais3 e pelo movimento dos

1 O presente artigo baseia-se na Tese de Doutorado de seu autor, intitulada Revelação Figural:
alegoria e presença dos seres híbridos na Divina Comédia, de Dante Alighieri, defendida na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
2 Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina com estágio de doutorado

sanduíche na Università di Bologna. Atua nos seguintes laboratórios de pesquisa: Meridianum-UFSC


(Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais) e HCIR-UEM (História das Crenças e das Ideias
Religiosas). Pesquisa desenvolvida com bolsa da Fapesc (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação
do Estado de Santa Catarina). ORCID ID: <https://orcid.org/0000-0002-0874-7366>.
3 Opto pelo uso do conceito transculturalidade ao reconhecer o movimento constante de culturas

transmitidas e vivenciadas por povos variados, da intensidade de experiências relacionadas à vida, à

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saberes. No século XXI, é possível notar a presença de Dante em inúmeros conteúdos


midiáticos, artísticos e reedições de suas obras, principalmente da Divina Comédia.4
Obra que foi escrita, possivelmente, entre 1304 e 1321, nomeada como Commedia e
posteriormente como Divina Comédia, por Giovanni Boccaccio. Nessa obra, Dante
conseguiu compilar e criar uma narrativa dotada de inúmeras confluências culturais
que perpassam os saberes transmitidos pelos árabes, toscanos, gregos, romanos,
dentre inúmeros outros que cintilam na transculturalidade medieval. É importante
destacar que o medievo compõe um momento de inúmeras redes culturais e
promove o contato com temporalidades múltiplas, em que ressoam intensidades de
presenças dos antigos e do passado, os quais são experienciados na vivência do
presente. Diante disso, o objetivo deste artigo é analisar a presença do passado pré-
figurado nos mundos antigos e figurado por Dante em sua Commedia, funcionando
como presença da verdade alegórica revelada pelo poeta.
O objeto deste estudo é o ser híbrido antropobestial Gérião, descrito no Canto
XVI e XVII do Inferno e, depois, mencionado no Purgatório, em seu Canto XXVII. Das
descrições dos guardiões do inferno, é nesta que Dante se empenha mais e concede
quase um canto inteiro para descrever Gérião e narrar seu movimento sob a terra, o
ar e a água. Os híbridos são seres que cumprem o papel alegórico de guardar os nove
círculos infernais. O termo “híbrido” funciona como categoria analítica para sinalizar
o ressoar das temporalidades múltiplas presentes na descrição e imagem desses
guardiões. Mesmo quando Dante não os descreve com naturezas físicas variadas,
eles continuam sendo híbridos por apresentarem vestígios da união entre a pré-
figuração de seu passado com a figuração revelada no presente medieval e no seu
desejo de futuro, ou seja, na eternidade do enredo da obra, na confluência dos

morte e ao renascimento de modo que podem ser entrelaçadas pela mitologia. A fundamentação se
concentra em Welsch e Silveira: Cf. WELSCH, W. Mudança estrutural nas ciências humanas:
diagnóstico e sugestões. Educação, s, 2007. p. 237-258; SILVEIRA, A. D. Saber em movimento na obra
andaluza Gāyat al-hakīm, o Picatrix: problematização e propostas. Revista Diálogos Mediterrânicos, n.
9, dez., 2015
4 A versão em português da obra Divina Comédia foi traduzida por Cristiano Martins. Para a análise,

utilizamos a obra escrita no toscano e editada pela Garzanti, com notas de Antonio Quaglio e Emílio
Pasquini. Com o objetivo de facilitar a leitura do artigo, a tradução da Commedia está no corpo do
texto e em nota de rodapé, o original em toscano presente na referência: ALIGHIERI, Dante.
Commedia: Inferno. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Milano: Garzanti, 2014.

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tempos.
Os híbridos podem ser divididos em três categorias: híbridos bestiais (Pluto
e Cérbero) que apresentam corpo bestial, antropobestiais (Minós, Cérbero, Pluto,
Erínias, Medusa, Centauros, Minotauro, Harpias e Gérião) quando a descrição
apresenta características físicas de inúmeros seres e humanoides (Caronte, Flégias
e os Gigantes) quando a característica física é sinalizada pela imagem do corpo
humano.
Estas relações híbridas são analisadas com base no conceito de revelação
figural.5 Esta categoria analítica foi pensada conforme as ideias de Erich Auerbach6
sobre pré-figuração e interpretação figural, Walter Benjamin7 e sua compreensão de
alegoria e Hans Ulrich Gumbrecht8 e suas elucidações sobre presença do passado.
Para Auerbach,9 a leitura figural foi utilizada pela patrística para relacionar o Antigo
e Novo Testamento bíblicos, possibilitando encontrar uma forma de entendê-los
como leitura profética. Este modelo de leitura foi repensado por Dante Alighieri para
relacionar o passado nos personagens da Commedia. No entanto, para Auerbach,10
essa leitura procede como uma interpretação, no sentido de explicar e interpretar o
mundo, como se este fosse distante do ser humano e pudesse ser entendido
conforme uma relação sujeito e objeto. Para Gumbrecht,11 esse modelo está muito
distante do imaginário medieval, o qual se relacionava com o mundo, como é o caso
das visões de interação entre o micro e o macrocosmo.
Dessa forma, considerando que a Commedia é uma obra de dimensão
mitológica que reverbera inúmeras formas de sentir e experimentar a
espiritualidade antiga e medieval, entendemos a criação de Dante como uma
revelação de cunho neoplatônico e construída por meio de uma rede de culturas que

5 Este conceito foi proposto na Tese de Doutorado de Daniel Lula Costa, intitulada “Revelação figural:
alegoria e presença dos seres híbridos na Divina Comédia, de Dante Alighieri”, defendida em 2019 na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
6 AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997.
7 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
8 GUMBRECHT, Hans Elrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2010.


9 AUERBACH, Erich, Op. Cit.
10 Ibidem.
11 GUMBRECHT, Han Ulrich, Op. Cit.

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comunicam a maneira de refletir sobre o mundo com base em uma ótica corpórea e
presentificada, principalmente em relação às mitologias antigas. A mitologia
dantesca se constitui nessa relação de transtemporalidades e transculturalidades,
isto é, da experiência de tempos, espaços e culturas que comunicam a
espiritualidade relacionando-a aos vestígios da divindade em todas as coisas do
mundo, inclusive no pensamento e na presença dos mundos antigos.
Nesse caso, pensamos em relacionar as presenças do passado de
Gumbrecht12 com a análise figural, mas compreendendo-a enquanto uma revelação
figural, a qual busca a verdade espiritual presente nas coisas do mundo, em suas
presenças. Essa prática pode ser visualizada na forma como Dante lê os antigos e os
relaciona com personagens específicos, demonstrando a revelação alegórica de
mundo de forma neoplatônica. Assim sendo, a alegoria é pensada como a associação
de transtemporalidades, ou seja, na forma como a presença de mundos passados e
presentes ressoam na imagem descrita e imaginada por Dante. Por isso, ao explicar
alegoria, Benjamin sinaliza que ela funciona como a presença do ocorrido nos
“agoras” que se tensionam na imagem, produzindo constelações de tempos
conectados.
Essas temporalidades estão presentes nos seres híbridos dantescos e são
reveladas em suas figurações. Esse é o caso do ser híbrido antropobestial Gérião.
Analisaremos sua revelação figural com base nos vestígios que a Commedia ressoa
das obras antigas escritas por Virgílio, Ovídio e Horácio, obras medievais como os
Bestiários e o imaginário de mundo medieval que estava tensionado por
cosmovisões que relacionavam o micro e o macrocosmo sob um viés mágico e
espiritualizado, como os manuais de astromagia13 e a literatura medieval podem
demonstrar. Nesse caso, acompanhemos Dante e seu guia, o poeta romano Virgílio,
personagens da Commedia, no momento em que se encontram na fronteira entre o
sétimo e oitavo círculo do inferno, quando Gérião é descrito e apresentado.

12Ibidem.
13SILVEIRA, Aline Dias da. Política e magia em Castela (século XIII): um fenômeno transcultural.
Revista Topoi, v. 20, n. 42, 2019.

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Gérião e sua revelação figural


Dante e seu guia Virgílio descem mais ao fundo do inferno, passam pelo
terceiro vale do sétimo círculo e caminham pelo areão ardente, onde são punidos os
violentos contra deus. O local é amplo e parecido com um deserto que está sob
constante chuva flamejante, onde são açoitados aqueles que estão caminhando
(sodomitas), sentados (usurários) e em pé (blasfemos). Dante e Virgílio caminham
ao lado do areão, em um caminho de pedras, onde a chuva flamejante não atinge; do
outro lado do caminho pedregoso se encontra o rio Flegetonte,14 que começa a
correr mais rapidamente, em direção a uma grande cascata.

Eu o seguia, e pouco éramos ido,


Tornou-se o estrondo da água tão vizinho,
Que se eu falasse não seria ouvido.15

O barulho da cascata é forte, causando espanto em Dante, que já percebia


estar próximo da entrada do círculo seguinte, “Já se ouvia o ribombo da torrente /
sobre o círculo abaixo desabando”.16 A cascata é a ligação do sétimo com o oitavo
círculo do inferno, o Malebolge. Os rios (Aqueronte, Estige e Flegetonte), muito
presentes na narrativa dantesca, se encontram e formam o último rio localizado no
nono círculo do inferno, o Cocito. Apesar de as divisões do inferno serem muito
explícitas, todas compõem o ambiente como um todo e dão as características que
permitem aos medievais reconhecerem esses locais como parte do inferno
mitológico cristão, dentre as partes que compõem o todo.
Sendo assim, o Inferno pode ser visualizado como um reflexo invertido do
Paraíso. Tal fator pode ser observado com base nos planetas e nas suas associações
zodiacais. No Inferno, os seres híbridos carregam elementos nos quais, por analogia,
é possível reconhecer o movimento da astrologia, seja quando Dante passa pelo
Minotauro (Touro), pelos centauros (Quíron, Sagitário), pelas harpias (Virgem) ou

14 Flegetonte significa rio de sangue fervente.


15 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 240. Toscano: “Io
lo seguiva, e poco eravam iti, / che ‘l suon de l’acqua n’era sí vicino, / che per parlar saremmo a pena
uditi.” (Inf., XVI, 91-93).
16 Ibidem. p. 236. Toscano: “Già era in loco onde s’udia ‘l rimbombo / de l’acqua che cadea ne l’altro

giro,” (Inf., XVI, 1-2).

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por Gérião (Leão, Escorpião). Essas partes do zodíaco são encontradas no Inferno, já
no Paraíso são os planetas que compõem essas ideias, de forma não tão direta,
porém relacionada com os deuses antigos e dotada de pré-figurações ovidianas, de
seu estilo.
As ações realizadas no Paraíso são menos descritas e mais sentidas e
dialogadas, eventos que ocorrem pela comunicação entre Beatriz e Dante e as almas
desse local. O Purgatório é a união entre o Inferno e o Paraíso e carrega vestígios dos
dois, cada um deles traz elementos que são percebidos de forma diferente pelo
poeta, seja pelos sentidos ou pela emoção e razão. A mitologia cristã está presente
na obra assim como os mitos antigos e suas interfaces com outras culturas. Nesse
caso, a mitologia dantesca tem caráter transcultural e alimenta diversas relações
temporais que se fundem no enredo construído por Dante. Sua mitologia incorpora
o imaginário medieval e antigo, alimenta os alicerces da imaginação simbólica e
concede movimento às imagens que saltam de tempos descontínuos e complexos
para serem figuradas no pós-morte da obra, unidas pelo seu caráter eterno.
Sendo assim, as imagens mentais produzidas pela narrativa de Dante, pela
sua construção poética e pela forma como a musicalidade da poesia concede esse
movimento, denotam que as imagens e os acontecimentos, sejam históricos ou
mitológicos (a espiritualidade dantesca identificava os eventos mitológicos com
base em estruturas alegóricas que convidam a olhar os véus que cobrem o tempo;
por isso, os mitos são verdades experimentadas pela consciência e trazidos ao
enredo como possibilidade de alcançar o saber divino), saltem temporalmente
causando um impacto repentino e informando as relações temporais de épocas
anteriores com o agora.
É nesse sentido que o “agora” e o “ocorrido” se encontram em um lampejo e
culminam, alegoricamente, no que Walter Benjamin17 identifica como constelações,
que são a união entre o passado e o presente com base em imagens dialéticas que
tensionam os acontecimentos e promovem movimentos transculturais que
comunicam saberes plurais: “Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou

17 BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

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que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o
ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras
palavras: a imagem é dialética na imobilidade”.18 Cabe ao historiador ou ao
alegorista compreender tais questões de acordo com o contexto no qual elas foram
produzidas. Por isso, compreender a Commedia enquanto uma mitologia dantesca
que carrega uma mitologia transtemporal é atestar como o movimento de saberes
antigos e medievais se fundem e criam vestígios para o entendimento do que Dante
compreende ser a revelação figural do pós-morte e dos seres híbridos ali
manifestados. Gérião é um desses seres e é o que carrega hibridez antropobestial de
animais distintos. Notemos o encontro dos personagens com o híbrido.
A partir do momento em que Dante e Virgílio chegam à cascata de sangue,
Dante percebe que não há como passar por ela e chegar ao oitavo círculo, pois a
queda é grandiosa e muito escura, o que o impossibilita de ver o fundo. Para resolver
essa questão, Virgílio aponta para a corda que esteve amarrada na cintura de Dante
todo este tempo. A imaginação de Dante começa a cintilar mais forte quando ele
percebe que algo de diferente irá acontecer, “‘Algo verei aqui seguramente’”.19 Sendo
assim, ele desamarra a corda de sua cintura e entrega-a para Virgílio, que se
distancia e se posiciona à beira do precipício, onde ele joga a corda.

Rapidamente eu a desamarrei,
Atendendo ao aceno do meu guia,
E enrolada em novelo lha entreguei.

Notei que ele à direita se movia,


E, sem chegar embora à borda rente,
Lançou-a sobre o abismo, que se abria.20

Dante se demonstra curioso e cria estimulantes expectativas com a


possibilidade de ver algo grandioso e diverso. Apesar de o personagem sempre
demonstrar a sensação de surpresa e medo ao se deparar com os híbridos, este que
aparece não lhe causa pavor, mas a sensação de maravilha, muito próxima ao

18 Ibidem. p. 504.
19 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 241. Toscano: “‘E’ pur convien che novità risponda’” (Inf., XVI, 115).
20 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 241. Toscano: “Poscia ch’io l ‘ebbi tutta da me sciolta, / sí come ‘l duca

m’avea comandato, / porsila a lui aggroppata e ravvolta. / Ond’ei si volse inver’lo destro lato, / e
alquanto di lunge da la spronda / la gittò giuso in quell’alto burrato.” (Inf., XVI, 109-114).

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sublime; a inexplicabilidade de algo que o toca profundamente. Esta sensação é


demonstrada no momento em que Gérião aparece.
Nos versos seguintes do Canto XVI, antes do aparecimento de Gérião, ou seja,
ainda em sua invocação, o poeta parece remeter ao conceito de alegoria que havia
descrito em seu Convivio, como “[...] aquele que se esconde sob bela mentira [...]”.21
Dante afirma nos versos 124 a 126 que “O vero, quando falso em seu aspecto, / não
deve a nossa voz andar a expor, / por não fazer-se de suspeita objeto.”22 Esta estrofe
salienta que a visão (ver) mesmo quando carregada de uma face de mentira (faccia
di mezogna) não deve ser dita pelo homem, porém Dante anuncia, “Mas não posso
calar”,23 e assim continua com a descrição da aparição do ser híbrido antropobestial.
Esta afirmação, que parece remeter à ideia de alegoria do Convivio, constrói a
imagem do que Dante verá, o híbrido Gérião com face de homem justo, aquele que
ilude carregando a mentira, mais um aspecto dos fraudulentos que Dante culpabiliza
no oitavo círculo. No caso, Dante não está necessariamente aludindo à alegoria, mas
à fraude que aparecerá diante deles na cascata que liga o sétimo e oitavo círculo, ele
antevê o que verá.
Os sentimentos que passam pelo personagem são bem precisos na narrativa,
primeiramente ele sente a maravilha de observar algo sublime, “um ser maravilhoso
que, parece, / abalaria o peito mais seguro,”;24 e no Canto XVII, quando está viajando
nas costas do híbrido, ele sente pavor e insegurança, “Aflito, eu disse, mas a voz não
creio / tivesse soado exata: ‘Eia, me abraça!’”.25 Um pouco depois de Virgílio jogar a
corda no penhasco, Gérião emerge:

“Eis a fera de cauda viperina,


Que montes, muros e armas desafia,
E de peçonha o mundo contamina!”

21 ALIGHIERI, Dante. Convivio. Milano-Napoli, Letteratura italiana Einaudi, 1988. Tradução nossa.
Toscano: “[...] quello che si nasconde sotto bella mezogna [...]” (Cv. II, I).
22 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 241. Toscano: “sempre a quel ver c’ha faccia di mezogna / de’ l’uom

chiuder le labbra fin ch’el puote, / però che sanza colpa fa vergogna;” (Inf., XVI, 124-126).
23 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 241. Toscano: “ma qui tacer non posso” (Inf., XVI, 127).
24 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 242. Toscano: “venir notando una figura in suso, / maravigliosa ad

ogne cor sicuro,” (Inf., XVI, 131-132).


25 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 248. Toscano: “sí volli dir, ma la voce non venne / con’io credetti: ‘Fa

che tu m’abbracce’.” (Inf., XVII, 92-93).

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– Começou a falar-me, ali, meu guia,


Acenando-lhe a vir postar-se adiante,
Onde acabava nossa estreita via.

E, pois, da fraude a imagem degradante


Achegou-se, exibindo a fronte e o busto,
Voltada a cauda para poço hiante.

Era o seu rosto como o do homem justo,


Qual, benigno, por fora se apresenta,
Mas da víbora tendo o corpo angusto.

Peludas asas desde a axila ostenta,


E pintados mostrava o peito e as costas,
Em que de manchas um mosaico assenta.

Cores tais não se viram superpostas


De Tártaros e Turcos nos brocados,
Nem nas telas de Aracne compostas.

Como os barcos que às praias arrastados


Repousam parte na água e parte em terra,
E entre os Tedescos lá à gula dados

Fica à espreita o castor em sua guerra


– assim a fera híbrida quedava
À pétrea borda que as areias cerra.

Rápida, a cauda sua sibilava,


Volteando no ar a ponta bifurcada
Que, à guisa do escorpião, o golpe armava.

“Mudemos”, disse o guia, “a nossa estrada


agora um pouco, e vamos, pois, chegar
Perto da fera que se agita irada”.26

Dante utiliza o termo “maravigliosa” para se referir à “figura” de Gérião, que

26 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 244-245 – grifo nosso. Toscano: “‘Ecco la fiera con la coda aguzza, /
che passa i monti e rompe i muri e l’armi! / Ecco colei che tutto ‘l mondo appuzza! ’ / Sì cominciò la mio
duca a parlarmi; / e accennolle che venisse a proda, / vicino al fin de’ passeggiati marmi. / E quella
sozza imagine di froda / sen venne, e arrivò la testa e ‘l busto, / ma ‘n sul a riva non trasse la coda. / La
faccia sua era faccia d’uom giusto, / tanto benigna ave adi fuor la pelle, / e d’un serpente tutto l’altro
fusto; / due branche avea pilose insin l’ascelle; / lo dosso e ‘l petto e ambedue le coste / dipinti ave
adi nodi e di rotelle. / Con piú color, commesse e sovraposte / non fer mai drappi Tarteri né Turchi, / né
fuor tai tele per Aragne imposte. / Come talvolta stanno a riva i burchi, / che parte sono in acqua e parte
in terra, / e come là tra li Tedeschi lurchi / lo bivero s’assetta a far sua guerra, / cosí la fiera pessima si
stava / su l’orlo ch’è di pietra e ‘l sabbion serra. / Nel vano tutta sua coda guizzava, / torcendo in sú la
venenosa forca / ch’a guisa di scorpion la punta armava. / Lo duca disse: ‘Or convien che si torca / la
nostra via un poco insino a quella / bestia malvagia che colà si corca’. (Inf., XVII, 01-30).

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surge da cascata de sangue e aparece para os peregrinos. Essa aparição do híbrido


possui um veículo de estrato temporal, como ponderaria Koselleck,27 na qual há
mundos passados que passam a se conectar como em estratos de tempo, o que Le
Goff associa aos “estratos antigos”.28 Enquanto na teoria de Koselleck é possível
interpretar a figura de Gérião com relação às temporalidades, algo caro a nossa
pesquisa, para Le Goff, a preocupação estaria associada à verificação de um
maravilhoso medieval que possui como uma de suas principais características os
estratos antigos, que são heranças transmitidas aos povos medievais.29 Gérião é uma
figura “maravigliosa”, termo que está associado ao ato de ver e mirar, ou seja, à
mirabilia medieval, ao ato de possuir características culturais misteriosas. Dante
olha para Gérião e expande suas expectativas, ele vê e se assusta, ao mesmo tempo
em que admira tal híbrido, “Na literatura encontra-se quase sempre um maravilhoso
cujas raízes são pré-cristãs”.30
Sendo assim, o antigo se associa ao medieval e atinge no imaginário a
condição de mistério. Isso repousa na mente humana e estimula o movimento das
características dos seres híbridos e de acontecimentos estranhos difíceis de
relacionar ao ato humano, liberando o mistério e o sobrenatural, que, no caso do
medievo, estão intimamente tensionados no natural, sendo todos um só. Esse é o
caso de Gérião, ele é uma maravilha, não no sentido moderno, de beleza e admiração,
mas na relação de algo que quando se vê ou se percebe possibilita a sensação de uma
experiência misteriosa que está imersa no cotidiano de mundo medieval, no qual
Dante estava submerso, principalmente no inferno.
Gérião aparece e pousa ao lado dos personagens, próximo ao penhasco. Dante
revela as quatro naturezas desse híbrido: humana, serpente, escorpião e bestial. Ele
é dotado de um corpo de cobra e de uma cauda grandiosa, parecida com a de um
escorpião. Sua face é de homem justo e seu corpo é alongado e grandioso. Apesar de

27 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2006.
28 LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 2010. p.

17.
29 Ibidem. p. 17.
30 Ibidem. p. 17.

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Cristiano Martins traduzir o termo “branche” como “asas”, Gérião não possui asas, já
que tal termo significa “patas”. As patas de Gérião são peludas “branche avea pilose”,
característica associada à ideia de patas bestiais, carregadas de pelos. Gérião é um
dos dois seres que Dante descreve com mais diferenças físicas em relação à
mitologia greco-romana, o outro é Minós.31 Considero esse um híbrido
antropobestial devido ao seu rosto humano e às suas características bestiais. Seu
físico pode ter sido influenciado pela descrição dos gafanhotos do Apocalipse de
João, narrados no capítulo 9, versículo 7-10:

O aspecto dos gafanhotos era semelhante ao de cavalos preparados


para uma batalha: sobre sua cabeça parecia haver coroas de ouro e
suas faces eram como faces humanas; tinham cabelos semelhantes
ao cabelo das mulheres e dentes como os do leão; tinham couraças
como que de ferro, e o ruído de suas asas era como o ruído de carros
com muitos cavalos, correndo para um combate; eram ainda
providos de caudas semelhantes à dos escorpiões, com ferrões; nas
caudas estava o poder de atormentar os homens durante cinco
meses.32

Há, também, uma interpretação dos comentadores da Commedia que parece


estar associada à comparação entre a descrição de Gérião dantesca e os gafanhotos
do Apocalipse de João. Isso pode ser percebido em relação ao termo “branche”,
usado por Dante e presente no Canto XVII para descrever as patas de Gérião. No
original de Dante, o termo aparece solto, sem se identificar a qualquer animal; Dante
descreve as patas como portadoras de pelos, chamando-as de “branche”, o que, no
italiano, significa ramo de árvores ou animais que andam em bando, que são mais
sociais e vivem no coletivo. Porém, os comentadores associam ao termo “branche” o
adjetivo “leonino”, ou seja, atribuem a Gérião outro animal em sua descrição física
além dos já mencionados, o leão. Por exemplo, Antonio Quaglio e Emilio Pasquini,
que identificam as descrições de Gérião como um monstro que detém “rosto
humano, pernas de leão, tronco de serpente, finalizado com uma cauda bífida

31 Minós é descrito por Dante no Canto V do Inferno como o juiz do submundo, dotado de um corpo

humano e cauda animalesca, remetida pelos estudiosos como uma cauda de serpente.
32 BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012. p. 2151.

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armada como aquela do escorpião”.33


Na fonte que analiso, não há nenhuma menção ou associação direta ao leão,
porém o que me instiga é o fato de que tantos comentadores adotaram a mesma
perspectiva e relacionaram o termo branche ao leão, afirmando, portanto, que as
patas de Gérião são leoninas. Isto não acontece na Enciclopédia Dantesca, no tópico
de Gerione, escrito por Fernando Salsano. O autor considera o termo branche como
um sinônimo de “pernas”, afirmando que Gérião “possui duas pernas peludas, dorso,
peito, costas pintadas de nós e rodadas”.34 Em nossa perspectiva, Dante não estava
preocupado em relacionar Gérião à imagem do leão, já que não apresenta ideia ou
palavra que possa ser identificada como algo específico desse animal. No caso, Dante
parece dar presença ao passado mitológico greco-romano em sua revelação figural
de Gérião, mantendo corpos que se unem em um só, pois, na mitologia dos antigos,
o híbrido era detentor de três troncos humanos. Tal ideia remete à importância do
número três, a que Dante relaciona os seres: homem, escorpião e serpente, porém
também o associa a uma figura bestial quando descreve a presença de patas peludas
na imagem de Gérião.
Os comentadores da Commedia parecem ter sido influenciados pelas imagens
artísticas baseadas em Gérião, ao identificar nele asas de morcego e patas de leão,
tais como apresenta Gustave Doré.35 O caso mais recente é da tradução de João
Trentino Ziller,36 que traduz a passagem como “Asas peludas de morcego tem”.37
Esta, porém, não é a imagem descrita, em palavras, por Dante. O discurso dantesco
não parece relacionar o morcego e o leão à imagem de Gérião, muito menos conceder
asas a ele. Primeiro, pois o termo morcego não aparece no toscano da Commedia, tal
qual o leão; segundo, porque não é possível saber com propriedade se o termo

33 ALIGHIERI, Dante. Commedia: Inferno. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Milano:
Garzanti, 2014. p. 185. Tradução nossa.
34 SALSANO, Fernando. Gerione. In: Enciclopedia Dantesca. 1970. Acesso em: 10 jun. 2020. Disponível

em: <http://www.treccani.it/enciclopedia/gerione_%28Enciclopedia-Dantesca%29/>. Tradução


nossa.
35 Pintor francês que ilustrou a Divina Comédia de Dante Alighieri no século XIX. Imaginou Gérião com

patas de leão e asas de morcego.


36 ALIGHIERI, Dante. Divina Comédia. Tradução e notas João Trentino Ziller. Apresentação João Adolfo

Hansen. Notas à Comédia de Botticelli Henrique P. Xavier. Desenhos de Sandro Botticelli. São Paulo:
Atêlie Editorial, Unicamp, 2011.
37 Ibidem. p. 147.

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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

“branche” está relacionado às asas do híbrido ou às suas pernas, ideia divergente


entre os comentadores da obra, já que o termo aparece duas vezes no Canto XVII.38
É claro que na perspectiva artística isso transcende o tempo e as imagens
produzidas pela mente das pessoas que leem e experienciam a Commedia, todavia
nossa intenção é buscar as características que Dante possivelmente transmitiu ao
descrever e inserir Gérião no oitavo círculo do inferno para, com isso, relacionar às
suas naturezas as possíveis revelações antigas que corroboram com a construção
poética e espiritual da obra magna de Dante, transcendendo os tempos e os espaços
de produção da obra.
Detalhe importante é a comparação que Dante faz do movimento de Gérião
relacionando-o com a enguia, peixe parecido com uma serpente e grande predador
“e quella tesa, come anguilla, mosse”.39 As patas de Gérião são peludas, ou seja, há no
híbrido uma dimensão bestial associada aos pelos que carrega nas patas, os quais
diminuem quando se aproximam da cauda de escorpião. No caso, é possível
considerar que esse híbrido é bestial e carrega uma natureza relacionada a um dos
quatro elementos (fogo, ar, terra e água), nesse caso, a água. As associações com os
elementos aquáticos como a “navicella”, a “enguia” e “che parte sono in acqua e parte
in terra”40 são vestígios de que Gérião não voou até o oitavo círculo, mas que saltou
no abismo da cascata em que se confluem os rios do inferno para então cair na
entrada do Malebolge. Saltos ao precipício como esse “[...] são encontrados também
em numerosas tradições: os heróis, os iniciados, descem ao fundo do abismo a fim
de afrontarem os monstros marinhos; é uma prova tipicamente iniciática”.41 O salto
ao abismo é um elemento mitológico preciso das viagens ao inconsciente profundo,
das amarras que são libertas para encarar os medos internos e enfrentá-los, ou seja,
para retirar as cordas que prendem as nossas cinturas e visualizar os momentos
mais sombrios da alma humana.

38 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 245 e p. 248. Toscano: “due branche avea pilose insin
l’ascelle;” (Inf., XVII, 13); “e con le branche l’aere a sé raccolse.” (Inf., XVII, 105).
39 ALIGHIERI, Dante. Commedia: Inferno. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Milano:

Garzanti, 2014. p. 191.


40 Ibidem. p. 186.
41 ELIADE, Mircea. Sagrado e Profano. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 68.

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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

Gérião é um híbrido de natureza aquática e terrestre, como o caso da cauda


de serpente e as patas de besta, essas múltiplas naturezas são referenciadas por
Virgílio na Commedia em duas palavras “bestia malvagia”.42 Perante o imaginário
medieval, Dante também conhecia alguns seres que permeavam os Bestiários e as
obras literárias. Gérião carrega alguns atributos próximos de seres presentes no
imaginário. Sua perspectiva bestial é um vestígio do que foi descrito como a
Mantícora, encontrada nos Bestiários medievais e em obras antigas tais como a
Naturalis Historia de Plinio, em que há uma descrição.

Ctesias escreve que existe uma Besta chamada Manthicora, tendo


três fileiras de dentes que se reúnem aos dentes de um pente; tem
o rosto e as orelhas de um homem; olhos azuis; a cor como sangue,
o corpo como de um leão, a cauda armada como o ferrão de um
escorpião; sua voz se assemelha ao som de uma flauta e de uma
trombeta (Fistula et Tuba) soando juntas; muito veloz e, antes de
tudo, ele deseja a carne humana.43

Essa descrição de Plinio, o velho, estava manifesta em outras presenças da


Mantícora, incluindo a de Dante Alighieri. Plinio também advém de tempos antigos
sendo uma das autoridades usadas para conhecer e entender os animais. O híbrido
mencionado acima é muito similar às características presentes no Canto XVII da
Commedia. Plinio menciona que há uma besta chamada Mantícora, ou seja, aqui já se
nota que o autor identifica o ser como bestial, sendo esta uma das características
atribuídas ao Gérião dantesco. Esse é um indício do porquê alguns tradutores ou até
mesmo contemporâneos de Dante visualizaram na figura deste híbrido
antropobestial a imagem de um leão. Sua face humana e a cauda de escorpião
remetem a esse imaginário antigo da Mantícora que é enaltecido e transformado no
período medieval.
É comum os Bestiários descreverem a Mantícora como um híbrido
preenchido de alegorias. Isso remete à forma como elas podem ter sido entendidas
e lidas pelos estudiosos e conhecedores deste híbrido. Sendo assim, os Bestiários

42 ALIGHIERI, Dante. Commedia: Inferno. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Milano:
Garzanti, 2014. p. 187.
43 PLINIO. Natural History. Tradução de Philemon Holland. Wernerian Club, 1848. p. 39. Tradução

nossa.

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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

traçam essas formas de leitura e identificam quais os símbolos presentes nesse


híbrido que influenciam o conhecimento para desvelar a sensação da presença
divina no mundo. O auge desses compêndios de saberes foi entre o século XII e XIV,
porém a temática dos animais estava muito presente em culturas antigas que
fomentavam a sua descrição e lhes davam presença, como é o caso da Etimologias,44
da Naturalis Historia,45 do Physiologus,46 História dos Animais,47 dentre outras obras.
As enciclopédias medievais foram influenciadas por tais escritos e carregam seus
movimentos de memórias transtemporais em imagens mentais e escritas
produzidas pelos estudiosos do medievo. Como é o caso do Bestiário do século XII,48
também muito semelhante ao Proprietarum Rerum de Bartholomeu Anglicus, que
descreve a Mantícora conforme as descrições de Plinio, modificando poucos
elementos:

Uma besta nasce nas Índias, chamada Mantícora. Tem uma fileira
tripla de dentes se encontrando alternadamente: o rosto de um
homem com olhos vermelho-sangue e brilhantes: o corpo de um
leão: a cauda como o ferrão de um escorpião e uma voz estridente
que é tão sibilante que lembra as notas de uma flauta. Anseia
ferozmente pela carne humana. É tão forte nos pés, tão poderoso
com seus saltos que nem o espaço mais extenso nem o obstáculo
mais sublime podem contê-lo.49

44 ISIDORO DE SEVILHA. Etimologias. Tradução de Luis Cortés y Góngora. Madrid: La Editorial


Católica, 1951.
45 PLINIO. Natural History. Tradução de Philemon Holland. Wernerian Club, 1848.
46 PHYSIOLOGUS. A medieval Book of Nature. Traduzido por Michael J. Curley. Chicago: University of

Chicago, 2009.
47 ARISTÓTELES. História dos animais: Livro I-VI. Tradução de Maria de Fátima Sousa e Silva. Lisboa:

Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 2006.


48 WHITE, T. H. The book of beasts: being a translation from a latin bestiary of the twelfth century.

New York: RR Donnelley, 2015.


49 WHITE, T. H. Op. Cit., p. 52 – tradução nossa.

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Figura 01 - Mantícora presente no Bestiário da Inglaterra (Worksop Bestiary – MS M.81). Fols. 38v.

Arquivado e digitalizado pela Morgan Library.50

Tanto na iluminura do século XIII (Figura 01) quanto nas descrições da


Mantícora há uma presença de naturezas conectadas, as quais apresentam um
híbrido terrestre que emite sons de flauta por possuir “uma voz estridente que é tão
sibilante que lembra as notas de uma flauta”.51 Na iluminura (Figura 01) é possível
verificar que a cauda remete à ponta de um ferrão de escorpião, seu corpo é bestial
e próximo ao do leão, já o rosto que se alonga para olhar a cauda remete ao ser
humano. Essa forma e modelo de imagem é muito comum no medievo para dar
presença à Mantícora, o que a aproxima da ideia de uma esfinge egípcia ou de um
touro alado assírio.
O Gérião de Dante adquire elementos muito similares, como a cauda de
escorpião, as patas peludas e a face humana. A sua diferença é percebida quando
Dante compara Gérião a elementos aquáticos e insere a natureza da serpente em sua
cauda, dotada de anéis (nodi e rotelle) que se assemelham aos fossos do oitavo
círculo os quais afunilam, conforme se desce, “e pintados mostrava o peito e as
costas, / em que de manchas um mosaico assenta”,52 semelhantes aos mosaicos
Turcos e Tártaros. Além disso, há o elemento principal que nos remete à cultura

50 Disponível em: <https://www.themorgan.org/collection/worksop-bestiary/43>. Acesso em: 03


jul. 2020.
51 WHITE, T. H. Op. Cit., p. 52 – tradução nossa.
52 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano

Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 252. Toscano: “lo dosso e ‘l petto e ambedue le coste /
dipinti avea di nodi e di rotelle” (Inf., XVIII, 14-15).

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Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.

greco-romana, seu nome é Gérião e não Mantícora.


Dante, então, recria Gérião e lhe dá presença por meio de inúmeras
temporalidades. A forma como os medievais passaram a visualizar a Mantícora
influenciou consideravelmente o que Dante acredita ser o Gérião do oitavo círculo
infernal. O seu nome e o fato de ter impacto nas narrativas mitológicas greco-
romanas também compõem esse híbrido antropobestial, que é dotado de
temporalidades antigas que se conectam e dão movimento ao imaginário medieval.
Devo compreender como a relação entre a fraude e essas influências antigas e
medievais permitiram a Dante delimitar a figuração revelada de Gérião enquanto
um híbrido detentor de características bestiais e que está ligado ao ambiente
terrestre e aquático. Voltemos ao momento em que os peregrinos se deparam com
o que Dante chama de “bestia malvagia”.
É inegável que Gérião é gigantesco, pois Dante e Virgílio sobem em suas
costas e são levados ao oitavo círculo. O movimento de Gérião transmite vida
imaginativa à imagem, já que é possível imaginar seu movimento com extremo
detalhe. Dante compara Gérião à enguia, como visto, e também com a “navicella”,
pequeno barco, sendo o primeiro um peixe que se movimenta dentro da água e o
segundo um barco que se movimenta sob a água. Ideia que o poeta transmite quando
Gérião pousa próximo à cascata, deixando seu corpo na terra e a cauda na água, se
movimentando.
Essa imagem de Gérião como o híbrido antropobestial que levará Dante e
Virgílio para o mais fundo do inferno é recheada de profundas imagens da morte e
de sua aceitação, o jogar-se no fosso sem saber qual o seu destino. Essa relação é
estudada na psicologia e fora demonstrada por Bachelard que identificou na
simbologia da água o acesso para a morte. De acordo com o autor, a alma passa
primeiro pela terra, pelo fogo e depois deve se jogar na água e assim viajar para a
morte e renascer.53 Esse híbrido é o ser que permite essa passagem com o salto no
abismo cuja sua natureza terrestre/aquática permite que mergulhe profundamente
na cascata formada pelos rios do inferno, “Depois de haver atravessado a terra,

53 BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins

Fontes, 1998.

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depois de haver atravessado fogo, a alma chegará à beira da água”.54 Os peregrinos,


então, chegam à beira do abismo, abraçam Gérião e saltam. As múltiplas naturezas
assumem o papel do agente alegórico que carrega presenças profundas das várias
naturezas híbridas que Dante vira até então, humanoide, bestial e
aquática/terrestre.
Essa relação com vários animais encontrada neste ser mitológico, está
associada às descrições de seres medievais presentes nos Bestiários e obras antigas
em que Dante parece ter se baseado. No Il tesoro de Latini, há referência à serpente,
porém não encontrei alguma relação com o escorpião. Em Il tesoro, as serpentes são
tidas como bestas de natureza fria, principalmente quando relacionada ao seu
veneno, já que este quando toca o sangue do ser humano, cuja natureza é quente,
acaba o matando, pois “Todos os venenos são frios, mas o homem é de natureza
quente e foge do frio do veneno”.55 Em Isidoro, as serpentes são seres que se
arrastam e se escondem em locais ocultos, “há tantos venenos como gêneros, tantas
desgraças como espécies, tantas dores como cores”.56 Normalmente, como é o caso
da Etimologias, de Isidoro, o escorpião aparece em comparação às serpentes, mas
acredita-se que são animais que habitam os desertos e que quando encontram água
passam a se tornar aquáticos: “quando chegam às águas se tornam aquáticos”.57
O corpo de serpente no Gérião dantesco parece estar relacionado com a
dinâmica das ideias fraudulentas que quando proferidas podem contaminar a mente
das pessoas, fazendo-as perder o seu caminho e se distanciar das escolhas morais,
caminhando para a morte. A relação entre o veneno da serpente e do escorpião
parece muito próxima como é o caso da serpente em Latini e do escorpião em
Isidoro, ambos os animais relacionados ao veneno e às desgraças que eles podem
causar ao ser humano, principalmente quando o veneno entra em contato com as
suas veias e o seu sangue. A natureza fria da serpente se mistura em Gérião com a
natureza quente do homem justo pois ambas estão relacionadas com a ideia de um

54 Ibidem. p. 78.
55 LATINI, Brunetto. Il tesoro. Tradução por Bono Giamboni. Vol. 1. Venezia: Co’tipi del gondoliere,
1839. p. 209 – tradução nossa.
56 ISIDORO, Op. Cit., Livro XII, c. 4, p. 297 – Tradução nossa.
57 Ibidem. p. 297.

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ser que anda sob a terra,58 mas que mergulha nos rios do inferno (navicella). É nessa
dinâmica que o rosto engana e o corpo revela a real forma de Gérião, a cauda de
víbora que possui o ferrão venenoso de escorpião “torcendo in sú la venenosa
forca”.59
As comparações que Dante utiliza para descrever o movimento e a forma
como Gérião pousa sobre a terra são relativas a animais que possuem como habitat
a água ou a terra, porém, em alguns momentos, o poeta se utiliza de animais que
possuem ambos os habitats, como é o caso do castor. Dante compara Gérião com a
enguia, o castor, a serpente e o escorpião. No caso do castor, a comparação se
preocupa em informar ao leitor sobre o grande rio que atravessa o continente, o rio
Danúbio. Dante não o menciona literalmente, mas informa sobre os barcos que
ficavam parte em água e parte em terra e utiliza o exemplo do castor às margens do
rio “entre os Tedescos lá à gula dados / fica à espreita o castor em sua guerra”.60 O
termo utilizado em toscano para se referir ao castor é “bivero”, que se refere à arte
do castor de pescar com a cauda. De acordo com Martins,61 a relação com os tedescos
presente no verso é forte vestígio de referência ao rio Danúbio.
Gérião encontra os peregrinos no final do sétimo círculo, em seu terceiro giro,
que é revestido pelo areão ardente, ali onde a cascata se inicia. Gérião repousa sobre
a areia e espera a chegava de Virgílio. O animal relacionado à areia é o escorpião, do
qual Gérião possui o ferrão. Conforme a Etimologias,62 como visto, o escorpião
quando em contato com a água se torna aquático, muito próximo da relação
dantesca com o mergulho do híbrido antropobestial no oitavo círculo, do salto ao
abismo. A besta que faz parte das patas do híbrido também faz alusão à terra. A
relação com a serpente já adquire proximidade com a natureza aquática do híbrido
comparado à enguia, serpente que possui como habitat a água. A violência, pecado

58 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 245.
59 ALIGHIERI, Dante. Commedia: Inferno. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Milano:

Garzanti, 2014. p. 187.


60 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano

Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 245. Toscano: “E come là tra il Tedeschi lurchi / lo bivero
s’assenta a far sua guerra” (Inf., XVII, 21-22).
61 Ibidem.
62 ISIDORO DE SEVILHA, Op. Cit.

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do sétimo círculo do inferno leva à fraude, ao abismo das fossas, à Malebolge; é a


terceira violência que está diretamente relacionada à cascata e ao pouso de Gérião,
a violência contra a natureza: os sodomitas, blasfemos e usurários.
O corpo de serpente possui várias cores e desemboca na cauda de escorpião
de Gérião, “Cores tais não se viram superpostas / De Tártaros e Turcos nos brocados,
/ Nem nas telas de Aracne compostas.”.63 Dante a compara com os tapetes brocados
de Tártaros e Turcos, uma referência valiosa sobre a presença mongol e turca na
Itália. A forma como Dante apresenta a cauda e o peito de Gérião nos dá indícios
sobre a maneira como as ideias do oriente cintilavam e se associavam a perspectivas
de cores mistas, de obras apreciadas e comercializadas na Itália. A comparação do
peito de Gérião com os tapetes Tártaros e Turcos demonstram o quanto essa arte
possui inúmeras cores postas de forma como se fosse um grande corpo todo unido
e colorido. Logo após tal comparação, Dante também relaciona o peito do híbrido
com à descrição das obras de Aracne, presente na Metamorfoses de Ovídio, “E
centrou a atenção no destino da maeônida Aracne, de quem / ouvira dizer que não
se considerava inferior a si na glória da arte de lã. [...]”.64
Na obra de Ovídio, Aracne é considerada a melhor artista da região em que
habita, porém, devido a seu orgulho, acaba sendo enganada pela deusa Palas.
Disfarçada, a deusa conversa com Aracne quando consegue perceber seu desdém
em relação à figura divina de Palas. Sendo assim, a deusa decide demonstrar seu
poder artístico à Aracne que não aguenta visualizar a linda obra tecida por Palas e
decide tentar suicídio com um pano passado pelo pescoço, mas Palas a impede e a
transforma em Aranha para que ela teça sempre pendurada.
Após a chegada do híbrido, Virgílio caminha até ele para combinar a descida
ao oitavo círculo, usando-o como transporte: “Irei pedir a esta estupenda besta / que

63 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 245. “Con più color, sommesse e sovraposte / non fer mai
drappi Tartari né Turchi, / né fuor tai tele per Aragne imposte.” (Inf., XVII, 16-18).
64 OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução, introdução e notas por Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora

34, 2017. p. 317.

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nos ceda o seu dorso por escada.”.65 Apesar da palavra “escada” ser a tradução de
Martins para o verso 42, é no verso 82 que o termo aparece no italiano “scale”, “Nós
baixaremos por escada tal”.66 Por analogia, outros seres híbridos também serão as
escadas dos peregrinos: Lúcifer67 e o gigante Anteu.68 E se formos pensar nessa
função de transporte, mesmo que não associado diretamente à imagem da escada,
há também Caronte, Flégias e Nesso que realizam essa prática, como se conectassem
um círculo no outro, fazendo a função de transporte (Caronte e Flégias) ou de guia
(Nesso) dos protagonistas.
Nos círculos anteriores, os híbridos são guardiões que desempenham a
função de coordenar as almas e de puni-las, mas, em alguns momentos, eles também
são guias dos peregrinos. Tal é o caso de Flégias, que guia Dante e Virgílio pelo quinto
círculo e de Nesso, que os guia pelo segundo vale do sétimo círculo. A função de
transporte, principalmente aquático, aparece com Caronte, Flégias e depois é
retomada em Gérião, a “navicella”, ou, pequeno barco. A metáfora da escada, porém,
só aparece após o sétimo círculo, ao funcionar como alicerce conectivo entre os
círculos infernais, além de ser o meio pelo qual o acesso ao baixo inferno é
concedido. De outra forma, Dante não conseguiria esse acesso. Sua jornada só
continua pela assistência dos híbridos, ou seja, os guardiões dos círculos do inferno,
que estão ali para servir à justiça divina, fomentando também o conhecimento
necessário a Dante para avançar no decorrer de sua jornada ao se deparar com a
justiça concedida pela criação divina e que, nesse momento, está presentificada no
inferno e em seus híbridos.
O olhar que remeto à fonte apresenta Gérião dotado de quatro naturezas, o
corpo de serpente, a cauda de escorpião, as patas bestiais e o rosto de um homem
justo. No caso, a revelação figural de Dante está delimitada perante a perspectiva
mitológica adotada pelos povos antigos e a revelação que Dante atribui às suas

65 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 246. Toscano: “mentre che torni, parlerò con questa, / che
ne conceda i suoi omeri forti’” (Inf., XVII, 41-42).
66 Ibidem. p. 248. Toscano: “Omai si scende per sí fatte scale;” (Inf., XVII, 82).
67 Ibidem. p. 402.
68 Ibidem. p. 368.

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visões do pós-morte ao descrever este ser híbrido antropobestial. Gérião é um ser


usado como transporte e também guardião do Malebolge (oitavo círculo), além
disso, há outras simbologias associadas ao híbrido: a corda, a cascata, o abismo, suas
naturezas físicas e a presença do passado antigo que se manifesta em cada um
desses casos, já que a ideia estética de Dante é construída diante da sua
espiritualidade figuracional, dada pela revelação tensionada em sua relação com os
antigos.
De acordo com Brandão,69 o mito de Gérião está presente em Horácio, em
uma de suas Odes,70 na qual é narrada a história do tríplice Gérião e de seu
envolvimento com Heracles. Gérião é filho de Crisaor (filho de Gorgo e de Poseidon)
e neto de Medusa. Ele possui um corpo gigantesco e é dotado de três cabeças em um
corpo tríplice, somente até os quadris. Na ilha de Eritia, ele era responsável pelo
rebanho de bois vermelhos, o qual era guardado por Eurition e pelo seu cão Ortro,
filho de Tifão e Équidna.71 A missão de Heracles era se apossar do rebanho de Gérião.
Tendo isso em mente, ele invade a ilha, mata Eurition e Ortro e, depois, finaliza
Gérião a flechadas, se apossando de seu rebanho. Para Horácio, Gérião detém três
corpos e está aprisionado no submundo dentro das águas de “Plutão que não chora
com trezentos touros / aplacares, ele que Tício / e Gérion dos três corpos aprisiona
/ com suas sinistras águas que inexoravelmente / todos nós, que das dádivas da
terra nos alimentamos”.72 A água e as naturezas de Gérião se fundem em Horácio e
em Dante. No primeiro, Gérião está aprisionado nas águas de um dos rios do Hades
e, no segundo, o híbrido é descrito como aquele que salta a cascata dos rios do
inferno.
Em Dante, Gérião é o símbolo da fraude, com quatro naturezas diversas ao
contrário da sua imagem em Horácio, de três homens. Esse elemento relembra a Ars
poetica de Horácio, em que é descrita a imagem de um ser híbrido logo em seu início.
Ele é possuidor de muitas naturezas. Na realidade, o poeta romano não deseja se
referir a Gérião, mas às naturezas diversas que utilizam elementos comuns à

69 BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vol.1. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
70 HORÁCIO. Odes. Tradução de Pedro Braga Falcão. Lisboa: Cotovia, 2008. p. 158.
71 BRANDÃO, Junito de Souza, Op. Cit., p. 109.
72 HORÁCIO. Odes. Op. Cit., p. 158.

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descrição dantesca ao apresentar o demônio da fraude. Horácio descreve “Se um


pintor quisesse juntar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo e a membros de
animais de toda a ordem aplicar plumas variegadas, de forma a que terminasse em
torpe e negro peixe a mulher de bela face, conteríeis vós o riso, ó meus amigos, se a
ver tal espetáculo vos levassem?”.73
A intenção de Horácio é orientar a arte da poesia e dizer que o exagero é
possível desde que se tenha cuidado para não relacionar a realidade a mentiras.
Importante salientar que o uso da mistura de naturezas é justamente o que Dante
cria com a revelação figural de Gérião, o híbrido da fraude, ou seja, o guardião do
ambiente em que os fraudulentos são danados. Esse ser dá presença ao ato
fraudulento e é descrito justamente por meio de um hibridismo que se atenta a
mantícora e une diversas naturezas parecidas àquelas do híbrido de Horácio,
quando sinaliza o cuidado com a criação e a valorização do verossímil. A fraude não
é a verdade e se esconde por meio de um rosto justo, ocultando seu verdadeiro ser
híbrido, como apresenta Dante.
Na Eneida de Virgílio, há um verso curto que registra o físico triplo deste
híbrido antropobestial, que é apresentado depois das harpias, como em Dante:
“Terribilíssimas Górgonas junto às funestas harpias / E a alma do imenso Gérião de
três corpos em luta constante.”.74 Alguns livros depois, Gérião é relembrado por
Virgílio ao narrar a invocação das musas, quando se remete à memória das
conquistas de Heracles, “[...] já morto Gérião vitorioso avançava / pelas campinas
lavradas do belo país dos alurentes / e foi banhar suas vacas iberas no rio Tirreno.”.75
Na Eneida, Gérião é um ser que já pertence ao Averno e se encontra ao lado
de muitos outros seres, como os centauros, o Minotauro, as harpias, as Górgonas,
dentre outros. No caso, ele é descrito com três corpos que lutam constantemente e,
no Livro VII, o mito de Heracles é relembrado por Virgílio, que anuncia as vitórias
do herói e um pouco da história dos seus 12 trabalhos. Um deles é o de se apoderar
do rebanho vermelho de Gérião, que fora completado com sucesso. Portanto na

73 HORÁCIO. Arte Poética. Introdução, Tradução e Comentários de R. M. Rosado Fernandes. Lisboa:


Inquérito, 1984. p. 51.
74 VIRGÍLIO. Eneida. Traduzida por Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 394.
75 VIRGÍLIO, Op. Cit., p. 494.

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mitologia romana narrada em Virgílio, Gérião é um ser de três corpos que possui o
objetivo de proteger um rebanho de bois vermelhos ao lado de seu ajudante Eurition
e de seu cão Ortro, apesar de estes dois não aparecerem próximo às menções de
Gérião.
A partir dessa narrativa mítica, percebe-se que Dante intui a ideia de um ser
dotado de quatro naturezas muito diferentes, conforme Virgílio, “em luta constante”.
No caso, a função atribuída a Gérião na mitologia greco-romana é emblemática:
guardar o rebanho. Em Dante, o rebanho é de almas, aquelas que estão no oitavo
círculo e que cometeram o pecado da fraude. Outros elementos do híbrido são
importantes para o poeta, que os destaca: os anéis do corpo da serpente, as patas
bestiais, a face de homem justo e a cauda de escorpião.
Parece-me que a alegoria da fraude nessa figuração dantesca está relacionada
à razão, apresentada pelo rosto de homem justo, uma ideia de sabedoria e
conhecimento, porém, por trás desta apresentação, há uma sabedoria fraudulenta
que se esconde, o corpo de serpente e a cauda de escorpião, sendo ambos temidos
por Dante. Por isso, na tentativa de descobrir ou encontrar outras formas de saber,
muitos passarão de homens justos a fraudulentos, escolherão um caminho perverso,
na visão de Dante, já que, ao se esconderem pelo rosto de um “homem justo”,
deixaram de mostrar a fraude na qual haviam se transformado; na serpente e no
escorpião que ferroa aquele que o ameaça: “Qual, benigno, por fora se apresenta, /
mas da víbora tendo o corpo angusto.”.76
No Canto XVII, Dante mostra uma relação contraditória quando se depara
com Gérião, primeiro ele fica maravilhado e, conforme o canto segue, Dante teme o
híbrido, até mesmo quando se aproxima dele. Esse temor de Dante pode ser
identificado com a sua vontade pela sabedoria e por encontrar formas de conexões
com o divino. No caso, isso revela a Dante que o ato de se encantar pela fraude e de
depois temê-la é perder a sensibilidade de identificar o que poderia ser um caminho
interessante para o conhecimento e o que seria algo fraudulento, nos quesitos

76 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano

Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 244. Toscano: “tanto benigna avea di fuor la pelle, / e d’un
serpente tutto l’altro fusto;” (Inf., XVII, 11-12).

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encontrados e compreendidos neste momento histórico.


Ao abraçar a fraude, Dante teme a sua queda e deve descer com segurança,
se, e somente se, abraçar a fraude com força, sem se deixar encantar por ela. Por isso,
Virgílio fica entre Dante e a cauda do escorpião, “Nós baixaremos por escada tal: /
Sobe adiante de mim, e em seu afã / Não nos fará a cauda nenhum mal.’”.77 E no
Purgatório, Virgílio relembra a Dante que foi ele quem o ajudou quando ambos
estavam nas costas de Gérião: “Relembra o que passamos, vê que se eu / sobre
Gerión te trouxe salvo e ileso, / que não farei, tão perto já do céu?”.78 Quando o
híbrido se prepara e pula no abismo, Dante se sente com medo de cair e de conhecer
a morte “Receei, por vezes, ser lançado fora;”.79
Essa comparação de Dante demonstra seu medo de cair, de se deixar levar
pela morte ou pela fraude. Deixar a besta híbrida é ser jogado no abismo da fraude,
ser liquidado pela vontade da glória e se assumir enquanto o ser que busca
compreender o que está além de seus limites. A fraude é um caminho possível, mas
deve ser temporário, pois o conhecimento deve mostrar a moralidade entre o que é
justo e injusto nos preceitos do divino e de seu saber. Abraçar Gérião é perceber que
ele, Dante, também está sujeito à fraude e, por isso, se mantém próximo. Seu objetivo
é elucidar o que ela realmente é e quais são aqueles danados a quem Dante vê cair
em seus domínios, os quais são admirados, em um primeiro momento e revelados
pela fraude em um segundo.

Considerações finais
Portanto, Dante revela figuracionalmente algo diferente da imagem greco-
romana, a qual não é predominante, já que possuímos algumas de suas referências,
como o nome e a identificação de corpos conectados a um só corpo, mas que são de

77 Ibidem. p. 248. Toscano: “Omai si scende per sí fatte scale; / monta dinanzi, ch’i’ voglio esser mezzo
/ sí che la coda non possa far male” (Inf., XVII, 82-84).
78 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Purgatório. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano

Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 239. Toscano: “Dinne com’è chef ai di te parete / al sol,
pur come tu non fossi ancora / di morte intrato dentro da la rete’.” (Purg., XXVII, 22-24).
79 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano

Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 250. Toscano: “Allor fu’io piú timido a lo stoscio,” (Inf.,
XVII, 121).

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naturezas diversas. Além disso, a imagem de Gérião é uma metamorfose de todas as


suas influências mitológicas que se encontram conectadas nessa figura última da
fraude. A cauda de escorpião demonstra o contágio do veneno, o qual pode ser
liberado ao ferroar as pessoas, sem que estas, necessariamente, o percebam de
imediato. A relação com a Mantícora também ressalta as diferenças de natureza e a
figura ágil de Gérião. Há muitas temporalidades entrelaçadas a esse híbrido
antropobestial, ele é o que detém maior número de naturezas contrastantes e que é
apresentado como um ser ligado a outros elementos como a corda, a cascata, o
malebolge, os brocados Tártaros e Turcos, a cor das lãs de Aracne e os animais como
castor, enguia e bestas. Essa intensa relação temporal demonstra o quanto a fraude
era diversa e vista no comportamento pessoal, já que dos círculos do inferno, o
oitavo é o único que possui mais divisões, tal como o corpo de Gérião. São dez fossos
que se afunilam do primeiro ao décimo.
Gérião seduz Dante, que o abraça para obter a sensação de segurança, porém,
ao mesmo tempo, fica desprotegido e dá condição da cauda de escorpião machucá-
lo, cabendo a Virgílio proteger Dante desta ameaça. A revelação figural é buscada no
Gérião pré-figurado na Odes, na Eneida e na Metamorfoses, sendo nessas duas
últimas um ser poderoso que caiu pela ineficiência de proteger seu rebanho
vermelho da ameaça de Heracles. Gérião é um ser ctônico, como o são Medusa,
Cérbero, Minotauro, dentre outros, ele é o símbolo de quatro seres que vivem em
um mesmo corpo, tendo que conviver com a confusão de suas três cabeças, mas
detendo a força de sua união. No caso, em Dante, as quatro naturezas mostram a
contradição entre o veneno e a enganação daquele que parece ser justo à primeira
vista.

Artigo recebido em 02/09/2020


Artigo aceito em 23/12/2020

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