Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo: Gérião é o guardião do oitavo círculo Abstract: Geryon is the guardian of the eighth
do inferno descrito na Commedia, de Dante circle of hell described in Dante Alighieri's
Alighieri. Um ser híbrido de Commedia. A hybrid being of transtemporalities
transtemporalidades e transculturalidades, and transculturalities, described with a body
descrito com um corpo que detém quatro that holds four natures: bestial, scorpion,
naturezas: bestial, escorpião, humana e human and serpent. These natures were
serpente. Essas naturezas foram apresentadas presented by the poet Dante Alighieri, character
pelo poeta Dante Alighieri, personagem e autor and author of the Commedia, a work written in
da Commedia, obra escrita no século XIV que the 14th century that describes Dante's journey
narra a viagem de Dante ao pós-morte to the medieval postmortem: Hell, Purgatory
medieval: Inferno, Purgatório e Paraíso. O and Paradise. The aim of this article is to
objetivo é analisar a revelação figural do ser analyze the figural revelation of the
híbrido antropobestial Gérião enquanto anthropobestial hybrid being Geryon as a
detentor de transtemporalidades que confluem holder of transtemporalities that conflate the
as presenças de passado antigas relacionadas às presence of ancient past related to Greco-
obras greco-romanas com as mitologias Roman works with medieval mythologies, such
medievais como, por exemplo, os Bestiários. A as the Bestiaries. The perspective of figural
perspectiva metodológica da revelação figural é revelation is based on Auerbach's concepts of
baseada nos conceitos de figuração e pré- figuration and pre-figuration, Benjamin's
figuração de Auerbach, alegoria de Benjamin e allegory and the presence of past explained by
presença de passado de Gumbrecht. Gumbrecht.
Palavras-chave: Gérião; Dante; Commedia. Keywords: Geryon; Dante; Commedia.
Introdução
Dante Alighieri nasceu em 1265 e faleceu em 1321. Seu papel enquanto poeta
e pensador italiano ecoa pelas temporalidades transculturais3 e pelo movimento dos
1 O presente artigo baseia-se na Tese de Doutorado de seu autor, intitulada Revelação Figural:
alegoria e presença dos seres híbridos na Divina Comédia, de Dante Alighieri, defendida na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
2 Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina com estágio de doutorado
11
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
morte e ao renascimento de modo que podem ser entrelaçadas pela mitologia. A fundamentação se
concentra em Welsch e Silveira: Cf. WELSCH, W. Mudança estrutural nas ciências humanas:
diagnóstico e sugestões. Educação, s, 2007. p. 237-258; SILVEIRA, A. D. Saber em movimento na obra
andaluza Gāyat al-hakīm, o Picatrix: problematização e propostas. Revista Diálogos Mediterrânicos, n.
9, dez., 2015
4 A versão em português da obra Divina Comédia foi traduzida por Cristiano Martins. Para a análise,
utilizamos a obra escrita no toscano e editada pela Garzanti, com notas de Antonio Quaglio e Emílio
Pasquini. Com o objetivo de facilitar a leitura do artigo, a tradução da Commedia está no corpo do
texto e em nota de rodapé, o original em toscano presente na referência: ALIGHIERI, Dante.
Commedia: Inferno. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Milano: Garzanti, 2014.
12
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
tempos.
Os híbridos podem ser divididos em três categorias: híbridos bestiais (Pluto
e Cérbero) que apresentam corpo bestial, antropobestiais (Minós, Cérbero, Pluto,
Erínias, Medusa, Centauros, Minotauro, Harpias e Gérião) quando a descrição
apresenta características físicas de inúmeros seres e humanoides (Caronte, Flégias
e os Gigantes) quando a característica física é sinalizada pela imagem do corpo
humano.
Estas relações híbridas são analisadas com base no conceito de revelação
figural.5 Esta categoria analítica foi pensada conforme as ideias de Erich Auerbach6
sobre pré-figuração e interpretação figural, Walter Benjamin7 e sua compreensão de
alegoria e Hans Ulrich Gumbrecht8 e suas elucidações sobre presença do passado.
Para Auerbach,9 a leitura figural foi utilizada pela patrística para relacionar o Antigo
e Novo Testamento bíblicos, possibilitando encontrar uma forma de entendê-los
como leitura profética. Este modelo de leitura foi repensado por Dante Alighieri para
relacionar o passado nos personagens da Commedia. No entanto, para Auerbach,10
essa leitura procede como uma interpretação, no sentido de explicar e interpretar o
mundo, como se este fosse distante do ser humano e pudesse ser entendido
conforme uma relação sujeito e objeto. Para Gumbrecht,11 esse modelo está muito
distante do imaginário medieval, o qual se relacionava com o mundo, como é o caso
das visões de interação entre o micro e o macrocosmo.
Dessa forma, considerando que a Commedia é uma obra de dimensão
mitológica que reverbera inúmeras formas de sentir e experimentar a
espiritualidade antiga e medieval, entendemos a criação de Dante como uma
revelação de cunho neoplatônico e construída por meio de uma rede de culturas que
5 Este conceito foi proposto na Tese de Doutorado de Daniel Lula Costa, intitulada “Revelação figural:
alegoria e presença dos seres híbridos na Divina Comédia, de Dante Alighieri”, defendida em 2019 na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
6 AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997.
7 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
8 GUMBRECHT, Hans Elrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de
13
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
comunicam a maneira de refletir sobre o mundo com base em uma ótica corpórea e
presentificada, principalmente em relação às mitologias antigas. A mitologia
dantesca se constitui nessa relação de transtemporalidades e transculturalidades,
isto é, da experiência de tempos, espaços e culturas que comunicam a
espiritualidade relacionando-a aos vestígios da divindade em todas as coisas do
mundo, inclusive no pensamento e na presença dos mundos antigos.
Nesse caso, pensamos em relacionar as presenças do passado de
Gumbrecht12 com a análise figural, mas compreendendo-a enquanto uma revelação
figural, a qual busca a verdade espiritual presente nas coisas do mundo, em suas
presenças. Essa prática pode ser visualizada na forma como Dante lê os antigos e os
relaciona com personagens específicos, demonstrando a revelação alegórica de
mundo de forma neoplatônica. Assim sendo, a alegoria é pensada como a associação
de transtemporalidades, ou seja, na forma como a presença de mundos passados e
presentes ressoam na imagem descrita e imaginada por Dante. Por isso, ao explicar
alegoria, Benjamin sinaliza que ela funciona como a presença do ocorrido nos
“agoras” que se tensionam na imagem, produzindo constelações de tempos
conectados.
Essas temporalidades estão presentes nos seres híbridos dantescos e são
reveladas em suas figurações. Esse é o caso do ser híbrido antropobestial Gérião.
Analisaremos sua revelação figural com base nos vestígios que a Commedia ressoa
das obras antigas escritas por Virgílio, Ovídio e Horácio, obras medievais como os
Bestiários e o imaginário de mundo medieval que estava tensionado por
cosmovisões que relacionavam o micro e o macrocosmo sob um viés mágico e
espiritualizado, como os manuais de astromagia13 e a literatura medieval podem
demonstrar. Nesse caso, acompanhemos Dante e seu guia, o poeta romano Virgílio,
personagens da Commedia, no momento em que se encontram na fronteira entre o
sétimo e oitavo círculo do inferno, quando Gérião é descrito e apresentado.
12Ibidem.
13SILVEIRA, Aline Dias da. Política e magia em Castela (século XIII): um fenômeno transcultural.
Revista Topoi, v. 20, n. 42, 2019.
14
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
15
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
por Gérião (Leão, Escorpião). Essas partes do zodíaco são encontradas no Inferno, já
no Paraíso são os planetas que compõem essas ideias, de forma não tão direta,
porém relacionada com os deuses antigos e dotada de pré-figurações ovidianas, de
seu estilo.
As ações realizadas no Paraíso são menos descritas e mais sentidas e
dialogadas, eventos que ocorrem pela comunicação entre Beatriz e Dante e as almas
desse local. O Purgatório é a união entre o Inferno e o Paraíso e carrega vestígios dos
dois, cada um deles traz elementos que são percebidos de forma diferente pelo
poeta, seja pelos sentidos ou pela emoção e razão. A mitologia cristã está presente
na obra assim como os mitos antigos e suas interfaces com outras culturas. Nesse
caso, a mitologia dantesca tem caráter transcultural e alimenta diversas relações
temporais que se fundem no enredo construído por Dante. Sua mitologia incorpora
o imaginário medieval e antigo, alimenta os alicerces da imaginação simbólica e
concede movimento às imagens que saltam de tempos descontínuos e complexos
para serem figuradas no pós-morte da obra, unidas pelo seu caráter eterno.
Sendo assim, as imagens mentais produzidas pela narrativa de Dante, pela
sua construção poética e pela forma como a musicalidade da poesia concede esse
movimento, denotam que as imagens e os acontecimentos, sejam históricos ou
mitológicos (a espiritualidade dantesca identificava os eventos mitológicos com
base em estruturas alegóricas que convidam a olhar os véus que cobrem o tempo;
por isso, os mitos são verdades experimentadas pela consciência e trazidos ao
enredo como possibilidade de alcançar o saber divino), saltem temporalmente
causando um impacto repentino e informando as relações temporais de épocas
anteriores com o agora.
É nesse sentido que o “agora” e o “ocorrido” se encontram em um lampejo e
culminam, alegoricamente, no que Walter Benjamin17 identifica como constelações,
que são a união entre o passado e o presente com base em imagens dialéticas que
tensionam os acontecimentos e promovem movimentos transculturais que
comunicam saberes plurais: “Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou
16
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o
ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras
palavras: a imagem é dialética na imobilidade”.18 Cabe ao historiador ou ao
alegorista compreender tais questões de acordo com o contexto no qual elas foram
produzidas. Por isso, compreender a Commedia enquanto uma mitologia dantesca
que carrega uma mitologia transtemporal é atestar como o movimento de saberes
antigos e medievais se fundem e criam vestígios para o entendimento do que Dante
compreende ser a revelação figural do pós-morte e dos seres híbridos ali
manifestados. Gérião é um desses seres e é o que carrega hibridez antropobestial de
animais distintos. Notemos o encontro dos personagens com o híbrido.
A partir do momento em que Dante e Virgílio chegam à cascata de sangue,
Dante percebe que não há como passar por ela e chegar ao oitavo círculo, pois a
queda é grandiosa e muito escura, o que o impossibilita de ver o fundo. Para resolver
essa questão, Virgílio aponta para a corda que esteve amarrada na cintura de Dante
todo este tempo. A imaginação de Dante começa a cintilar mais forte quando ele
percebe que algo de diferente irá acontecer, “‘Algo verei aqui seguramente’”.19 Sendo
assim, ele desamarra a corda de sua cintura e entrega-a para Virgílio, que se
distancia e se posiciona à beira do precipício, onde ele joga a corda.
Rapidamente eu a desamarrei,
Atendendo ao aceno do meu guia,
E enrolada em novelo lha entreguei.
18 Ibidem. p. 504.
19 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 241. Toscano: “‘E’ pur convien che novità risponda’” (Inf., XVI, 115).
20 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 241. Toscano: “Poscia ch’io l ‘ebbi tutta da me sciolta, / sí come ‘l duca
m’avea comandato, / porsila a lui aggroppata e ravvolta. / Ond’ei si volse inver’lo destro lato, / e
alquanto di lunge da la spronda / la gittò giuso in quell’alto burrato.” (Inf., XVI, 109-114).
17
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
21 ALIGHIERI, Dante. Convivio. Milano-Napoli, Letteratura italiana Einaudi, 1988. Tradução nossa.
Toscano: “[...] quello che si nasconde sotto bella mezogna [...]” (Cv. II, I).
22 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 241. Toscano: “sempre a quel ver c’ha faccia di mezogna / de’ l’uom
chiuder le labbra fin ch’el puote, / però che sanza colpa fa vergogna;” (Inf., XVI, 124-126).
23 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 241. Toscano: “ma qui tacer non posso” (Inf., XVI, 127).
24 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 242. Toscano: “venir notando una figura in suso, / maravigliosa ad
18
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
26 ALIGHIERI, Dante. Op. Cit., p. 244-245 – grifo nosso. Toscano: “‘Ecco la fiera con la coda aguzza, /
che passa i monti e rompe i muri e l’armi! / Ecco colei che tutto ‘l mondo appuzza! ’ / Sì cominciò la mio
duca a parlarmi; / e accennolle che venisse a proda, / vicino al fin de’ passeggiati marmi. / E quella
sozza imagine di froda / sen venne, e arrivò la testa e ‘l busto, / ma ‘n sul a riva non trasse la coda. / La
faccia sua era faccia d’uom giusto, / tanto benigna ave adi fuor la pelle, / e d’un serpente tutto l’altro
fusto; / due branche avea pilose insin l’ascelle; / lo dosso e ‘l petto e ambedue le coste / dipinti ave
adi nodi e di rotelle. / Con piú color, commesse e sovraposte / non fer mai drappi Tarteri né Turchi, / né
fuor tai tele per Aragne imposte. / Come talvolta stanno a riva i burchi, / che parte sono in acqua e parte
in terra, / e come là tra li Tedeschi lurchi / lo bivero s’assetta a far sua guerra, / cosí la fiera pessima si
stava / su l’orlo ch’è di pietra e ‘l sabbion serra. / Nel vano tutta sua coda guizzava, / torcendo in sú la
venenosa forca / ch’a guisa di scorpion la punta armava. / Lo duca disse: ‘Or convien che si torca / la
nostra via un poco insino a quella / bestia malvagia che colà si corca’. (Inf., XVII, 01-30).
19
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
27 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2006.
28 LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 2010. p.
17.
29 Ibidem. p. 17.
30 Ibidem. p. 17.
20
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
Cristiano Martins traduzir o termo “branche” como “asas”, Gérião não possui asas, já
que tal termo significa “patas”. As patas de Gérião são peludas “branche avea pilose”,
característica associada à ideia de patas bestiais, carregadas de pelos. Gérião é um
dos dois seres que Dante descreve com mais diferenças físicas em relação à
mitologia greco-romana, o outro é Minós.31 Considero esse um híbrido
antropobestial devido ao seu rosto humano e às suas características bestiais. Seu
físico pode ter sido influenciado pela descrição dos gafanhotos do Apocalipse de
João, narrados no capítulo 9, versículo 7-10:
31 Minós é descrito por Dante no Canto V do Inferno como o juiz do submundo, dotado de um corpo
humano e cauda animalesca, remetida pelos estudiosos como uma cauda de serpente.
32 BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2012. p. 2151.
21
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
33 ALIGHIERI, Dante. Commedia: Inferno. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Milano:
Garzanti, 2014. p. 185. Tradução nossa.
34 SALSANO, Fernando. Gerione. In: Enciclopedia Dantesca. 1970. Acesso em: 10 jun. 2020. Disponível
Hansen. Notas à Comédia de Botticelli Henrique P. Xavier. Desenhos de Sandro Botticelli. São Paulo:
Atêlie Editorial, Unicamp, 2011.
37 Ibidem. p. 147.
22
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
38 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 245 e p. 248. Toscano: “due branche avea pilose insin
l’ascelle;” (Inf., XVII, 13); “e con le branche l’aere a sé raccolse.” (Inf., XVII, 105).
39 ALIGHIERI, Dante. Commedia: Inferno. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Milano:
23
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
42 ALIGHIERI, Dante. Commedia: Inferno. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Milano:
Garzanti, 2014. p. 187.
43 PLINIO. Natural History. Tradução de Philemon Holland. Wernerian Club, 1848. p. 39. Tradução
nossa.
24
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
Uma besta nasce nas Índias, chamada Mantícora. Tem uma fileira
tripla de dentes se encontrando alternadamente: o rosto de um
homem com olhos vermelho-sangue e brilhantes: o corpo de um
leão: a cauda como o ferrão de um escorpião e uma voz estridente
que é tão sibilante que lembra as notas de uma flauta. Anseia
ferozmente pela carne humana. É tão forte nos pés, tão poderoso
com seus saltos que nem o espaço mais extenso nem o obstáculo
mais sublime podem contê-lo.49
Chicago, 2009.
47 ARISTÓTELES. História dos animais: Livro I-VI. Tradução de Maria de Fátima Sousa e Silva. Lisboa:
25
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
Figura 01 - Mantícora presente no Bestiário da Inglaterra (Worksop Bestiary – MS M.81). Fols. 38v.
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 252. Toscano: “lo dosso e ‘l petto e ambedue le coste /
dipinti avea di nodi e di rotelle” (Inf., XVIII, 14-15).
26
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
53 BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
27
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
54 Ibidem. p. 78.
55 LATINI, Brunetto. Il tesoro. Tradução por Bono Giamboni. Vol. 1. Venezia: Co’tipi del gondoliere,
1839. p. 209 – tradução nossa.
56 ISIDORO, Op. Cit., Livro XII, c. 4, p. 297 – Tradução nossa.
57 Ibidem. p. 297.
28
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
ser que anda sob a terra,58 mas que mergulha nos rios do inferno (navicella). É nessa
dinâmica que o rosto engana e o corpo revela a real forma de Gérião, a cauda de
víbora que possui o ferrão venenoso de escorpião “torcendo in sú la venenosa
forca”.59
As comparações que Dante utiliza para descrever o movimento e a forma
como Gérião pousa sobre a terra são relativas a animais que possuem como habitat
a água ou a terra, porém, em alguns momentos, o poeta se utiliza de animais que
possuem ambos os habitats, como é o caso do castor. Dante compara Gérião com a
enguia, o castor, a serpente e o escorpião. No caso do castor, a comparação se
preocupa em informar ao leitor sobre o grande rio que atravessa o continente, o rio
Danúbio. Dante não o menciona literalmente, mas informa sobre os barcos que
ficavam parte em água e parte em terra e utiliza o exemplo do castor às margens do
rio “entre os Tedescos lá à gula dados / fica à espreita o castor em sua guerra”.60 O
termo utilizado em toscano para se referir ao castor é “bivero”, que se refere à arte
do castor de pescar com a cauda. De acordo com Martins,61 a relação com os tedescos
presente no verso é forte vestígio de referência ao rio Danúbio.
Gérião encontra os peregrinos no final do sétimo círculo, em seu terceiro giro,
que é revestido pelo areão ardente, ali onde a cascata se inicia. Gérião repousa sobre
a areia e espera a chegava de Virgílio. O animal relacionado à areia é o escorpião, do
qual Gérião possui o ferrão. Conforme a Etimologias,62 como visto, o escorpião
quando em contato com a água se torna aquático, muito próximo da relação
dantesca com o mergulho do híbrido antropobestial no oitavo círculo, do salto ao
abismo. A besta que faz parte das patas do híbrido também faz alusão à terra. A
relação com a serpente já adquire proximidade com a natureza aquática do híbrido
comparado à enguia, serpente que possui como habitat a água. A violência, pecado
58 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 245.
59 ALIGHIERI, Dante. Commedia: Inferno. A cura di Emilio Pasquini e Antonio Quaglio. Milano:
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 245. Toscano: “E come là tra il Tedeschi lurchi / lo bivero
s’assenta a far sua guerra” (Inf., XVII, 21-22).
61 Ibidem.
62 ISIDORO DE SEVILHA, Op. Cit.
29
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
63 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 245. “Con più color, sommesse e sovraposte / non fer mai
drappi Tartari né Turchi, / né fuor tai tele per Aragne imposte.” (Inf., XVII, 16-18).
64 OVÍDIO. Metamorfoses. Tradução, introdução e notas por Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora
30
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
nos ceda o seu dorso por escada.”.65 Apesar da palavra “escada” ser a tradução de
Martins para o verso 42, é no verso 82 que o termo aparece no italiano “scale”, “Nós
baixaremos por escada tal”.66 Por analogia, outros seres híbridos também serão as
escadas dos peregrinos: Lúcifer67 e o gigante Anteu.68 E se formos pensar nessa
função de transporte, mesmo que não associado diretamente à imagem da escada,
há também Caronte, Flégias e Nesso que realizam essa prática, como se conectassem
um círculo no outro, fazendo a função de transporte (Caronte e Flégias) ou de guia
(Nesso) dos protagonistas.
Nos círculos anteriores, os híbridos são guardiões que desempenham a
função de coordenar as almas e de puni-las, mas, em alguns momentos, eles também
são guias dos peregrinos. Tal é o caso de Flégias, que guia Dante e Virgílio pelo quinto
círculo e de Nesso, que os guia pelo segundo vale do sétimo círculo. A função de
transporte, principalmente aquático, aparece com Caronte, Flégias e depois é
retomada em Gérião, a “navicella”, ou, pequeno barco. A metáfora da escada, porém,
só aparece após o sétimo círculo, ao funcionar como alicerce conectivo entre os
círculos infernais, além de ser o meio pelo qual o acesso ao baixo inferno é
concedido. De outra forma, Dante não conseguiria esse acesso. Sua jornada só
continua pela assistência dos híbridos, ou seja, os guardiões dos círculos do inferno,
que estão ali para servir à justiça divina, fomentando também o conhecimento
necessário a Dante para avançar no decorrer de sua jornada ao se deparar com a
justiça concedida pela criação divina e que, nesse momento, está presentificada no
inferno e em seus híbridos.
O olhar que remeto à fonte apresenta Gérião dotado de quatro naturezas, o
corpo de serpente, a cauda de escorpião, as patas bestiais e o rosto de um homem
justo. No caso, a revelação figural de Dante está delimitada perante a perspectiva
mitológica adotada pelos povos antigos e a revelação que Dante atribui às suas
65 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 246. Toscano: “mentre che torni, parlerò con questa, / che
ne conceda i suoi omeri forti’” (Inf., XVII, 41-42).
66 Ibidem. p. 248. Toscano: “Omai si scende per sí fatte scale;” (Inf., XVII, 82).
67 Ibidem. p. 402.
68 Ibidem. p. 368.
31
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
69 BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vol.1. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
70 HORÁCIO. Odes. Tradução de Pedro Braga Falcão. Lisboa: Cotovia, 2008. p. 158.
71 BRANDÃO, Junito de Souza, Op. Cit., p. 109.
72 HORÁCIO. Odes. Op. Cit., p. 158.
32
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
33
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
mitologia romana narrada em Virgílio, Gérião é um ser de três corpos que possui o
objetivo de proteger um rebanho de bois vermelhos ao lado de seu ajudante Eurition
e de seu cão Ortro, apesar de estes dois não aparecerem próximo às menções de
Gérião.
A partir dessa narrativa mítica, percebe-se que Dante intui a ideia de um ser
dotado de quatro naturezas muito diferentes, conforme Virgílio, “em luta constante”.
No caso, a função atribuída a Gérião na mitologia greco-romana é emblemática:
guardar o rebanho. Em Dante, o rebanho é de almas, aquelas que estão no oitavo
círculo e que cometeram o pecado da fraude. Outros elementos do híbrido são
importantes para o poeta, que os destaca: os anéis do corpo da serpente, as patas
bestiais, a face de homem justo e a cauda de escorpião.
Parece-me que a alegoria da fraude nessa figuração dantesca está relacionada
à razão, apresentada pelo rosto de homem justo, uma ideia de sabedoria e
conhecimento, porém, por trás desta apresentação, há uma sabedoria fraudulenta
que se esconde, o corpo de serpente e a cauda de escorpião, sendo ambos temidos
por Dante. Por isso, na tentativa de descobrir ou encontrar outras formas de saber,
muitos passarão de homens justos a fraudulentos, escolherão um caminho perverso,
na visão de Dante, já que, ao se esconderem pelo rosto de um “homem justo”,
deixaram de mostrar a fraude na qual haviam se transformado; na serpente e no
escorpião que ferroa aquele que o ameaça: “Qual, benigno, por fora se apresenta, /
mas da víbora tendo o corpo angusto.”.76
No Canto XVII, Dante mostra uma relação contraditória quando se depara
com Gérião, primeiro ele fica maravilhado e, conforme o canto segue, Dante teme o
híbrido, até mesmo quando se aproxima dele. Esse temor de Dante pode ser
identificado com a sua vontade pela sabedoria e por encontrar formas de conexões
com o divino. No caso, isso revela a Dante que o ato de se encantar pela fraude e de
depois temê-la é perder a sensibilidade de identificar o que poderia ser um caminho
interessante para o conhecimento e o que seria algo fraudulento, nos quesitos
76 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 244. Toscano: “tanto benigna avea di fuor la pelle, / e d’un
serpente tutto l’altro fusto;” (Inf., XVII, 11-12).
34
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
Considerações finais
Portanto, Dante revela figuracionalmente algo diferente da imagem greco-
romana, a qual não é predominante, já que possuímos algumas de suas referências,
como o nome e a identificação de corpos conectados a um só corpo, mas que são de
77 Ibidem. p. 248. Toscano: “Omai si scende per sí fatte scale; / monta dinanzi, ch’i’ voglio esser mezzo
/ sí che la coda non possa far male” (Inf., XVII, 82-84).
78 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Purgatório. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 239. Toscano: “Dinne com’è chef ai di te parete / al sol,
pur come tu non fossi ancora / di morte intrato dentro da la rete’.” (Purg., XXVII, 22-24).
79 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. Traduzida, anotada e comentada por Cristiano
Martins. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. p. 250. Toscano: “Allor fu’io piú timido a lo stoscio,” (Inf.,
XVII, 121).
35
Revista Signum, v. 21, n. 2, 2020.
36