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Por muitas vezes, por estarmos vivendo o período contemporâneo, é difícil

definir algumas características que o distanciamento temporário nos permite definir


com mais exatidão em outros períodos literários, no entanto, muitos pesquisadores
destacam algumas características que são marcantes e recorrentes na literatura
contemporânea.
Perrone, por exemplo, cita que podemos notar nas obras contemporâneas
características dos períodos literários anteriores, a alta literatura, como o uso da
linguagem mais consciente, a crítica a sua realidade, relato de sentimentos comuns
a humanidade e levantamento de questões que não necessariamente tem respostas
categóricas. Sendo assim as técnicas de narrativas tradicionais servem de
inspiração e aparecem nas obras contemporâneas, mas com toques sutis de
renovação em sua técnica.
Um aspecto também frequentemente utilizado em obras contemporâneas é o
uso de primeira pessoa, Viegas levanta hipótese de que existe uma demanda de
narrativas em que o “eu” estaria em evidência por conta do grande desejo moderno
do relato pessoal.
As obras contemporâneas também trazem bastante a crítica social, ela se
mostra extremamente engajada sem necessariamente ser panfletaria ou ideológica,
procura relatar e evidenciar problemas sociais e políticos, a violência, o urbano,
stress e depressão, a desigualdade social, traz à tona questões modernas como
homofobia, racismo ou até mesmo a ditadura militar. Esse aspecto é um tendência
forte e valorizada na literatura contemporânea, uma literatura combativa e engajada
que existiu também anteriormente, mas se mostra em evidência hoje.
Desse modo, estes traços não foram criados pela literatura contemporânea,
mas são tendências que frequentemente os autores se utilizam e inclusive podemos
notar na obra Passageiro do fim do dia.
Rubens Figueiredo, tradutor e romancista brasileiro que nasceu e mora no Rio
de Janeiro, formado em letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, já traduziu
obras de Dostoiévski, de Philip Roth, entre outros, professor e um renomado
ficcionista contemporâneo, é autor de diversas obras reconhecidas e premiadas
como Barco a seco (Prêmio Jabuti), As palavras secretas (Prêmio Jabuti) e entre
outras a obra na qual este trabalho se propõe a analisar, Passageiro do fim do dia.
o autor costuma ser menos cômico em suas obras e ter mais um viés
contestador, talvez por sua influência russa, uma literatura que se mostra
contestadora de sua realidade e política, ele demonstra em suas obras acreditar na
força que a vida social a sua volta pode ter ao ser retratada na literatura, ainda, o
autor traz com sua literatura engajada elementos do cotidiano que muitas vezes
podem passar despercebidos, mas que não existem por acaso, pequenos descasos,
abandonos para com a sociedade, ou até mesmo um elemento visual urbano no
qual vemos todos os dias mas não pensamos criticamente sobre, mostrando a
realidade e mostrando novas realidades através da literatura.
Em entrevista o autor diz: “Era um mecanismo social, que nos leva a tratar o
pobre como não igual, ao mesmo tempo em que nos empurra a perceber a situação
de vida dessas pessoas e os dramas sociais como algo natural. Mais ainda,
construímos justificativas para legitimar as desigualdades”. Para ele, o abismo social
é tão grande que dificulta a percepção e a compreensão de cenários banais e
elementares – a gente até vê, mas não entende. E acaba por conviver. Ou esquecer.
E é exatamente essa busca que notamos na obra, a busca por mostrar aquilo que
passa por nossos olhos e torna-se tão comum e tão invisível.

porque a literatura é um instrumento de conhecimento do


outro e de autoconhecimento; porque a literatura de ficção, ao
mesmo tempo que ilumina a realidade, mostra que outras realidades
são possíveis, libertando o leitor de seu contexto estreito e
desenvolvendo nele a capacidade de imaginar, que é uma
necessidade humana e pode inspirar transformações históricas;
(Perrone, 2016 ,p. 66).

Passageiro do fim do dia é uma história contada por um narrador


heterodiegético que conta sobre o trajeto em um ônibus, uma representação de uma
experiência cotidiana, através de recordações do personagem Pedro, o rádio que ele
ouve, o que ele observa a sua volta no presente e sua imaginação diante dos relatos
no livro que o personagem tenta ler durante o trajeto contando da passagem de
Darwin no Brasil, Pedro muda o foco facilmente e perde atenção naquilo que se
consideraria importante, mas se atem a detalhes e coisas que a gente sabe que
existem no dia a dia e não refletimos sobre. O livro não possui divisão de capítulos,
o que auxilia a sensação de espera e lentidão de quem enfrenta o trânsito urbano
das grandes cidades, a leitura é como uma viagem de ônibus propriamente dita,
onde se inicia o livro e como um caminho, um trajeto, o percorremos e chegamos ao
final, um processo sem propriamente resolver as questões que abrimos, sem
resoluções categóricas, a falta de divisões tradicionais também acentua a sensação
de fluxo de consciência, porque o livro segue o pensamento, memórias e
associações do personagem Pedro, ou seja, seu tempo é psicológico e a narrativa
não é linear.

O trajeto do ônibus é a viagem costumeira de final de semana em que ele vai


para casa de sua namorada, Rosane, que mora em um bairro afastado do centro da
cidade, o Tirol, um bairro periférico e distante, algo presente na realidade de
milhares de pessoas, além disso, o bairro é extremamente carente de diversos
direitos básicos e sofre preconceito até mesmo de bairros tão carentes quanto ele “O
pai de Rosane e a cunhada não costumavam ir à Várzea: em geral, gente do Tirol
não era bem vista por lá”, muitos moradores de bairros vizinhos nutriam um
preconceito por pensarem que as pessoas daquele bairro ganharam suas casas de
mão beijada e com tudo pronto para se morar, “Entendiam também que elas tinham
ganhado lotes e casas de graça do governo, que simplesmente assinaram um papel
e pegaram uma terra, uma casa — com canos, fios e tudo o mais instalado.”.
A casa dos pais de Rosane foi conquistada através de muito esforço de sua
mãe que enfrentou diversos obstáculos, filas, vários percursos a pé, com fome e no
sol para conseguir por seu nome na lista para ser chamada e ter uma casa através
de um projeto do governo que iria distribuir casas de um terreno que anteriormente
era uma área militar entre a linha de trem e um brejo.

“preencher a ficha disse que era melhor não pôr o nome do


marido, declarar que era solteira, sozinha, com dois filhos, em vez de
um só. Assim teria mais chance, explicou. A mãe de Rosane não
hesitou e, em todos os muitos recadastramentos seguintes,
continuou solteira, mãe de dois filhos. Quando sabia que o tal
deputado ia estar em algum lugar, ela acordava mais cedo e
caminhava três quilômetros para pegar o ônibus. Às vezes ficava
sem almoçar, à espera da inauguração ou da cerimônia que
houvesse, mas sempre dava um jeito de entregar uma fotocópia da
sua última ficha de cadastramento para uma secretária do deputado.”
(Figueiredo, 2010 ,p. 21).

Antes disso os pais de Rosane moravam em um sitio como caseiros a


quarenta quilômetros do Tirol, em condições precárias, onde o dono aparecia a cada
dois meses e não pagava salário fixo e se não plantassem algo, abobora ou
mandioca passavam fome e ainda tinham que esconder parte do que produziam,
pois o proprietário pensava ser dono até mesmo do que eles produziam.
Pedro é um homem de classe média, que largou a universidade pública de
Direito e parece não se preocupar muito com seu futuro, os acontecimentos
parecem levar Pedro e não o contrário, diferente de sua namorada, ele vai toda
sexta para o Tirol encontrar Rosane que vive uma realidade muito diferente, onde
testemunha a pobreza, privações e humilhações e sonha em ser “alguém”.
Pedro ganha a vida como vendedor de livros em sebo que vende volumes
usados na qual conseguiu montar com dinheiro do processo que ganhou com auxílio
de seu amigo advogado Júlio, por ter sido atropelado por um cavalo da polícia,
acontecimento que vem a sua mente constantemente junto com sua dor no
tornozelo que foi esmagado, “mas de novo sentia pontadas por dentro do tornozelo
esquerdo. Ficar parado e de pé por muito tempo era a garantia de que ia doer, ia
latejar a velha cicatriz.”, “A velha dor em forma de tesoura que abre e fecha por
dentro do tornozelo atacou de novo e fez Pedro mexer um pouco a perna esquerda
para um lado e para o outro”. Sua principal clientela eram alguns advogados,
estudantes, promotores e juízes conhecidos que vinham a procura de livros
jurídicos, mas também de outros tipos de livro, e ali, Pedro ouvia e via algumas
conversas e comportamentos nos quais chamam a sua atenção, além do que Júlio
sabia e contava para ele alguns comentários acerca da vida cotidiana, fofocas de
pessoas do judiciário, muitas das quais eram usadas em manobras pelo chefe de
Júlio, e isso não os tornavam menos amigos, pelo contrário, segundo Pedro os
deixavam mais à vontade, compartilhavam falhas de caráter e desonestidades como
se fossem injustiçados e como se fossem um bando cujo o dever é não deixar nada
pra outros grupos.

“confidenciavam entre si suas falhas de caráter — quanto


mais conversavam sobre as manifestações de suas espertezas,
sobre seus atos de desonestidade e de egoísmo predador, sempre
num tom de dignidade ferida e de consciência injustiçada —, quanto
mais faziam isso, mais amigos se tornavam. Entre eles, ser amigo
era aquilo, acima de tudo. Amizade era um jeito de falar e ouvir
aquelas coisas, um jeito capaz de tomar para si e redistribuir numa
permuta, entre todos eles, toda a razão, todo o mérito e não deixar
para os outros, senão as sobras, os ossos roídos.” (Figueiredo, 2010,
p.84)

Sempre bem vestidos, joviais, em carros de luxo e com seguranças,


frequentavam a modesta loja de Pedro, um deles, Pedro conta, que vai muito, pois
não se dá bem com a esposa e ali além de gostar dos livros encontrava velhos
amigos, em sua casa o juiz não ajudava em nada agia como se a mulher fosse sua
empregada, como se todos fossem, estipulava uma espécie de mesada mensal para
os filhos e para a casa e se enraivecia com qualquer quantia a mais, era rigoroso
com os gastos domésticos e se orgulhava disso, enquanto não media esforços para
emprestar e esbanjar dinheiro com os amigos, e o fato mais interessante do relato
de Pedro sobre o juiz era sobre como conseguiu o emprego de sua esposa, “Por
meio de amigos, arrumou um emprego para a mulher num tribunal. O importante, no
caso, era que ela recebia o salário sem nunca precisar comparecer ao trabalho. E
assim foi, até ela se aposentar”, esse fato nos chama atenção para a corrupção nos
âmbitos judiciais no geral, mas também ao contraste que ao seguirmos com a leitura
nos deparamos com relação as condições de trabalho de outros personagens,
inclusive de Rosane e de como pra outros personagens dessa história se aposentar
mesmo tendo trabalhado de verdade e muito não foi tão simples.
O pai de uma amiga de Rosane é um deles que após trabalhar por vinte anos
em uma empresa que de dois em dois anos mudava de nome para não pagar
corretamente os direitos trabalhistas aos seus empregados e para poder fugir de
impostos após um tempo faliu de verdade, mas o dono da firma foi para o exterior
com a família enquanto os funcionários ficaram sem nada inclusive o pai de sua
amiga, sem indenização, sem aposentadoria, processos parados na chamada
Justiça.
O próprio pai de Rosane lutou pela aposentadoria e era atormentado pela
incerteza de conseguir sua aposentadoria, ele trabalhou em obras, inclusive de
construções importantes da cidade, mas desenvolveu uma terrível alergia ao
cimento o que o impossibilitou de continuar trabalhando, os médicos não sabiam
dizer ao certo o que era, mas as feridas da alergia eram horrivelmente doloridas e
profundas, mesmo com botas, luvas e todas as tentativas, que eram falhas, só ao
menor sinal de cimento sua alergia surgia fortemente.
Desesperado, pois o cimento era sua vida, seu ganha pão, seu salário, contou
a Pedro das noites em que se desesperava, acordado no escuro a noite toda
acordado, pensando com medo e preocupação.
“o que seria da sua casa, da sua família, da sua filha, que na
época ainda dependia tanto dele? Debruçado na janela aberta, olhou
para o ar escuro da noite, os olhos parados, presos no espaço
estreito entre uma parede lá fora e um muro esfolado, com tijolos à
mostra — olhava, olhava, sem atinar com o que ia fazer da sua vida
quando afinal o dia nascesse.” (Figueiredo, 2010, p.66)
Não tinha a quem recorrer, fora dispensado do trabalho e teve que fazer
pericias para receber auxilio doença do INSS, saia cedo para a enorme fila a vinte
quilômetros de sua casa com seus pês inchados, vermelhos, com suas sandálias no
sol ou na chuva e espantando o sono muitas vezes ainda tinha de encarar o medico
que o analisava com desconfiança, com a sorte dos pacientes em suas mãos “Havia
gente que não entendia as explicações do médico — “mas eu tenho pressão alta”,
“ora, eu também tenho e estou aqui trabalhando” .
Sua alergia não melhorava e sua paciência acabara, lhes davam cada vez
menos tempo diziam que um novo tratamento ia dar jeito, pareciam não ver as
feridas e ele cada vez mais teve medo e raiva dos médicos, não suportava mais o
mesmo trajeto sem esperança em seus pés. Após todo esse sofrimento uma
funcionária do RH da empreiteira o ajudou através de uma conhecida no instituto de
aposentadorias para que ele conseguisse a aposentadoria por invalidez, a renda
mensal que o livraria daquilo tudo, mas ainda muito menos que costumava ganhar
que já não era muito.
Um aspecto importante na obra são os diálogos, as vozes cotidianas
retratadas ajudam a construir e trazem verossimilhança com leveza e fluidez a
narrativa, vemos vozes muito espontâneas e casos muito semelhantes aos que
acontecem na vida de qualquer um, relatados de maneira única e essas vozes
muitas vezes relatam acontecimentos horríveis que pra nós muitas vezes se tornam
normais. King, diz que o autor pode dizer através de narração direta, mas através de
diálogos ele além de dizer o que pretende dá vida aos personagens através de seu
discurso, e bons personagens com bons diálogos são como boa música enquanto
que o contrário é dolorido de ler, “Quando o diálogo é bom, reconhecemos na hora.
Quando é ruim, também sabemos — machuca os ouvidos como um instrumento
musical desafinado.”.
Ainda, King diz que geralmente o autor que constrói bons diálogos é bom
ouvinte, bons ouvintes percebem, dialetos, ritmo, grupos, dentre outras
características.
Os diálogos são uma parte notável da obra e como já dito trazem um tom de
proximidade com a realidade, em entrevista Rubens diz que se inspirou muito em
conversas que ouviu ou de pessoas de seu cotidiano que falavam com ele, sendo
um bom ouvinte e percebendo as vozes ao seu redor soube muito bem retrata-las.
“outra coisa que considero importante é que construí esse
livro com base em conversas que tive com pessoas ao longo de anos
e anos – nada muito planejado, coisas até muito espontâneas, mas
que ao mesmo tempo a gente vai montando devagar. O cara vem, eu
fico perguntando, o cara conta uma história, conta a vida dele, conta
isso, conta aquilo... Aí você inventa uma coisa, completa com outra,
mistura – e compõe.” (Figueiredo, 2011, p. 5)

Outro recurso literário interessante presente na obra é o hibridismo, nas suas


descrições, o narrador sempre descrevia os personagens como um pesquisador, um
biólogo descreve e observa espécies, descrevendo sua forma física
anatomicamente, seus membros, ossos e pele, fazendo uso de um texto descritivo
dentro de seu romance.
“concentrar-se e esticar-se ao longo dos ossos de Rosane. Enquanto ela
falava, Pedro observava no canto do pulso fino uma pontinha de osso que se mexia
por baixo da pele marrom ao menor movimento dos dedos”

“Júlio tinha uma cara grande, risonha, redonda, uma expressão amistosa em que
não se percebia quase nenhum ângulo de osso. O tronco encorpado, largo,
recheava com fartura os ternos”

“Pedro inventava explicações e de repente se concentrou na boca, nos


dentes, lá no fundo, nos dentes de trás. E a partir dos dentes Pedro deteve a
atenção nos ossos compridos de Rosane e em como ela era toda magra.”

Pedro tenta ler o livro que coincidentemente retornou a suas mãos e além de
trazer muitas lembranças de seu acidente traz à obra reflexões acerca da disposição
de hierarquias e a desigualdade justificada, as reflexões feitas pelo personagem a
cerca de adaptação a interpretação de mundo que esse conceito que Darwin
desenvolveu trouxe nos permite traçar um paralelo com aspectos como colonialismo
que se utilizava desse conceito de hierarquias “o mais forte sobrevive” para justificar
práticas de desigualdade.

Podemos notar tendências da literatura russa na obra, a falta de um enredo


especifico e claro, uma trajetória em busca da resolução de um problema que ao fim
do livro é resolvido, não vemos isso em Passageiro do fim do dia. O livro não possui
um fim romântico, não possui um enredo clássico de romances, podemos até notar
nisso a influência da literatura russa na qual o autor costuma beber da fonte, Tolstoi
por exemplo já criticava esse tipo de desfecho e enredo em 1860 e Rubens parecia
não buscar esse tipo de narrativa na obra.

O autor certamente cumpre com seu objetivo ao longo da obra de investigar e


tratar de desigualdades e do quanto deixamos passar as coisas incrustradas em
nosso cotidiano que servem de base para processos de desigualdade que nós,
muitas vezes, vemos como normais. E nessa leitura fazemos juntamente com Pedro
um trajeto como se pegássemos um ônibus no primeiro paragrafo ate a ultima
pagina do livro, “É uma experiência, é como eu pegar um ônibus e fazer a viagem
até aqui.”, além de saltar do ônibus cheios de indagações e não resoluções, o livro é
além de tudo é uma estrada aberta em que não concluímos com seu fim as
questões que, como quem olha pra janela do ônibus e reflete, trouxemos.
Porque aquelas questões miúdas, aqueles processos insignificantes do
cotidiano, estão ali para traduzir os mecanismos de opressão¿
Porque é uma das situações mais presentes no nosso cotidiano, um momento
de opressão, de desumanização. ¿
Porque o assunto é esse: como perceber as coisas, como é que há uma
espécie de vontade, um impulso de ir além desses mecanismos, de superar esses
mecanismos, e como eles se repetem, barram esse esforço e criam toda a sorte de
obstáculos, a despeito de qualquer boa intenção, honestidade etc.¿

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