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DOI: https://doi.org/10.33871/22385800.2021.10.23.171-191
Resumo: Este artigo propõe-se a compreender como um grupo de estudantes produziu o relatório de
um projeto de Modelagem com base em um roteiro, como esse roteiro foi interpretado pelos
estudantes e como orientou suas ações em relação a essa tarefa. O roteiro é entendido como artefato
que é reconhecido pelos estudantes como o parâmetro para o que será avaliado pela professora,
explicitando a tensão entre a proposta de ambientes de aprendizagem de Modelagem e a Educação
Matemática escolar. Os sujeitos desta pesquisa são estudantes de uma turma de terceiro ano do Curso
Técnico Integrado ao Ensino Médio em Meio Ambiente do Instituto Federal de Minas Gerais, campus
de Governador Valadares. Este estudo se fundamenta na Teoria Histórico-Cultural da Atividade. Os
dados discutidos neste artigo são de natureza qualitativa e são oriundos de observações participantes.
A partir da análise dos dados, foi possível compreender que a natureza dos artefatos pode fazer
prevalecer as relações de poder historicamente construídas sobre a Educação Matemática escolar,
dentre as quais o poder exercido pelas avaliações em Matemática.
Palavras-chave: Roteiro. Avaliação. Artefato. Educação Matemática.
Introdução
1
Doutora em Educação. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: ila_scampos@yahoo.com.br -
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3205-9229
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Matemática tradicional, cuja organização das atividades é centrada no professor, que
apresenta as ideias e as técnicas matemáticas, e cabe aos alunos responderem aos exercícios
selecionados por ele, prevalecendo aqueles que são originados dos livros didáticos, elaborados
por autoridades externa às salas de aula (SKOVSMOSE, 2000). Assim, Almeida e Vertuan
(2014) nos explicam que:
2
Este artigo apresenta parte do resultado da pesquisa de doutorado da autora (CAMPOS, 2018).
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Os artefatos em atividades de Modelagem
Uma pergunta que frequentemente se faz presente nas discussões entre os professores
que desejam conhecer a Modelagem e experienciar esse ambiente de aprendizagem em suas
práticas pedagógicas é: Como desenvolvê-la em salas de aula?
Atentos a esse questionamento, Barbosa (2004) e Almeida e Vertuan (2014)
apresentam elementos que orientam os professores no planejamento das atividades de
Modelagem e destacam que essas assumem diferentes configurações em salas de aula.
Barbosa (2004) discute três possibilidades, que denomina como casos 1, 2 e 3, a partir da
atuação dos estudantes e professores nas tarefas para a realização da atividade (Figura 1). As
tarefas são a formulação do problema, a simplificação, a coleta de dados e a solução. À
medida que cresce a participação dos estudantes nas diferentes tarefas, avança-se do caso 1
até o 3.
Em relação a como desenvolver Modelagem em salas de aula, Pinto, et. al. (2019)
discutem aspectos que envolvem o planejamento de atividades de Modelagem em um grupo
colaborativo e defendem que “considerar o planejamento como um processo flexível, que
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acolhe os imprevistos e é passível de mudanças, passa a ser uma escolha política e pedagógica
que se atrela à dinâmica de uma prática de modelagem” (p. 5-6).
No planejamento e desenvolvimento de atividades de Modelagem, adotar uma ou
outra estratégia para convidar os estudantes, definir ou não etapas a serem desenvolvidas,
incluir orientações para a elaboração de uma atividade de Modelagem, entre outras decisões,
definem como ela vai acontecer em salas de aula. Consequentemente, é importante
analisarmos a consonância entre esses aspectos e o que é desejável no ambiente de
aprendizagem de Modelagem.
Uma prática muito recorrente, ao serem implementados ambientes de aprendizagem de
Modelagem em salas de aula, é a solicitação que os grupos de estudantes elaborem relatórios
e, por vezes, apresentem as orientações sobre o que deve conter neles. Esses relatórios
atendem, na grande maioria dos casos, ao que será ‒ ou parte do que será ‒ avaliado pelos
professores. Por exemplo, em Campos (2015) há a descrição de como, em uma prática
pedagógica que se constituiu como contexto de certa pesquisa, um projeto de Modelagem foi
organizado, considerando três etapas a serem avaliadas individualmente e com sua pontuação
previamente definida, entre elas um relatório inicial e um final, para os quais se indicaram os
aspectos a serem apresentados neles.
Se, por um lado, essas orientações são importantes para que os estudantes entendam o
que é esperado pelos professores, por outro, formaliza a dimensão da avaliação em atividades
que são apresentadas com uma proposta em que os estudantes serão convidados a
participarem. No estudo de Campos (2015), foi discutido um caso em que uma estudante
expõe que estava participando do ambiente de aprendizagem de Modelagem apenas pelo
interesse nos pontos que obteria com a atividade. Então, questiona-se: o relatório, quando
proposto em ambientes de aprendizagem de Modelagem, é um elemento que materializa as
tensões3 entre o convite à participação e a avaliação nessas atividades?
Quando um roteiro orienta as ações dos estudantes, pode-se entender que esse assume
o papel de um artefato que vai mediar a relação entres sujeitos e objeto da Atividade4 humana.
Na literatura, as pesquisas que discutem tecnologias e Modelagem apresentam elementos para
se pensar como os artefatos modificam o ambiente de aprendizagem de Modelagem. Por
exemplo, Diniz e Borba (2012) discutem como dados prontos coletados na internet são
utilizados em atividades de Modelagem, modificando a relação entre tecnologias e
3
De acordo com David e Tomaz (2015), no âmbito da Teoria da Atividade, tensões podem ser originadas
quando perspectivas diferentes entram em contato.
4
Quando a palavra “Atividade” é grafada com inicial maiúscula, trata-se da Atividade no sentido da Teoria da
Atividade. Quando grafada com inicial minúscula, trata-se de atividade no sentido comumente utilizado.
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Modelagem. Assim, compreender a natureza dos artefatos que constituem o ambiente de
aprendizagem de Modelagem é fundamental para entendermos as ações dos sujeitos da
Atividade.
A respeito dos artefatos, para Vygotsky as relações do homem com a natureza e com
outros homens são mediadas por instrumentos (ferramentas materiais) e signos (ferramentas
psicológicas), os artefatos mediadores (REGO, 2014). Ao se pensar nas salas de aula de
Matemática, os artefatos, quando se apresentam como um parâmetro para as avaliações,
carregam em si relações de poder que historicamente caracterizam a estrutura da Educação
Matemática escolar, inclusive as relações de poder entre professores e estudantes e entre os
estudantes. Para fundamentar essa discussão, buscam-se compreensões à luz da Teoria
Histórico-Cultural da Atividade, comumente denominada como Teoria da Atividade, que tem
sua origem nos estudos dos psicólogos russos do início do século XX, sob a liderança de Lev
Semenovitch Vygotsky.
De acordo com Alexis Nikolaevich Leontiev, colaborador de Vygotsky, Atividade diz
respeito ao conjunto de ações realizadas pelo homem dirigida a uma necessidade definida do
sujeito e é orientada em direção ao objeto dessa necessidade. Atividade é definida como “uma
unidade não aditiva da vida material, corpórea, do sujeito material. […] é a unidade de vida,
mediada pela reflexão mental, por uma imagem, cuja função real é orientar o sujeito no
mundo objetivo” (LEONTIEV, 2014, p. 186).
Engeström (2001) discute o desenvolvimento da Teoria da Atividade fundamentado
em três gerações: a primeira, centrada nos estudos de Vygotsky baseada na ideia de ação
mediada; a segunda, focado nos trabalhos de Leontiev, que descreveu a evolução histórica da
divisão do trabalho, distinguindo ação individual de Atividade coletiva, e que formulou
teoricamente o conceito de Atividade; e a terceira, que trata da recontextualização desses
estudos por pesquisadores ocidentais a partir dos anos 1970, quando as obras desses
psicólogos russos e seus colaboradores tornaram-se disponíveis no ocidente. A terceira
geração da Teoria da Atividade tem seus fundamentos desenvolvidos, principalmente, pelos
trabalhos do pesquisador finlandês Yrjö Engeström.
A discussões da Teoria da Atividade na terceira geração considera a Atividade a partir
do sistema Atividade humana, que é representado graficamente por uma estrutura triangular
na qual se destacam seus componentes, a mediação entre eles, a natureza coletiva do objeto e
o resultado (produto).
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Figura 2: A estrutura do sistema Atividade humana
O contexto da pesquisa foi uma turma de terceiro ano do Curso Técnico Integrado ao
Ensino Médio em Meio Ambiente do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), Campus
Governador Valadares, no ano de 2015. A turma era formada por 25 estudantes, com idades
entre 16 e 18 anos.
Atuei no planejamento do ambiente de aprendizagem de Modelagem em parceria com
a professora, quando decidimos considerar as ideias dos casos (BARBOSA, 2004), e optamos
pelo caso 3. Era o intuito da professora que os temas escolhidos pelos grupos fossem da área
do Curso em Meio Ambiente, com o objetivo de associar a disciplina de Matemática com a
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futura atuação profissional dos estudantes e de estabelecer relações com outras matérias do
curso e com os conhecimentos específicos da área técnica. Assim, em convergência com o
que nos explica Pacheco (2008), buscamos derrubar as barreiras entre o ensino técnico e o
científico, tendo em vista a articulação entre trabalho, ciência e cultura na perspectiva da
emancipação humana.
Para o desenvolvimento do ambiente de aprendizagem de Modelagem, planejamos as
seguintes etapas: o convite da professora e da pesquisadora para os estudantes se envolverem
no ambiente de aprendizagem de Modelagem; a organização da turma em grupos; a escolha
do tema a ser investigado pelos grupos; a apresentação por parte da professora e da
pesquisadora das orientações sobre o que deveria ser elaborado pelos estudantes (propor uma
solução matemática para o problema, escrita de um relatório e apresentação oral); os
encontros para o desenvolvimento do projeto de Modelagem pelos grupos; a apresentação oral
dos grupos para a turma e a entrega dos relatórios.
Para iniciarmos, explicamos para a turma o que caracteriza uma atividade de
Modelagem. Com o objetivo de orientar os estudantes, construímos um roteiro, que é central
na discussão no presente artigo, para os grupos organizarem a produção do relatório.
A professora esclareceu para os estudantes que ela avaliaria o relatório e a
apresentação oral do grupo para a turma, que resultariam, no total, cinco pontos. O ambiente
de aprendizagem de Modelagem aconteceu no primeiro trimestre, que é avaliado em 30
pontos distribuídos em 3 quesitos: 2 provas com valores de 12 e 8, pontuação já definida pela
instituição, e 10 pontos divididos em outras atividades a serem determinadas pelo professor da
disciplina. Os pontos do ambiente de aprendizagem de Modelagem correspondem a 5 entre
esses 10 pontos. Os outros 5 foram destinados para atividades de resolução de exercício.
O grupo foco da discussão do presente artigo escolheu o seguinte tema: “O tempo de
retorno monetário do investimento inicial para implantação do sistema fotovoltaico no IFMG
– Campus Governador Valadares”. O objetivo do grupo foi analisar as vantagens econômicas
de instalar o sistema fotovoltaico no Campus Governador Valadares do IFMG, buscando
responder em quanto tempo o valor necessário para a instalação do sistema fotovoltaico seria
pago. O grupo justificou que, para a instalação desse sistema, seria necessário um
investimento inicial, mas que seria único para a instituição e não teria custo mensal da energia
fornecida pela Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG) a partir da instalação e
utilização do sistema fotovoltaico.
O grupo foi formado por 7 estudantes: Adriana, Beatriz, Gabriela, Geovane, Laura,
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Nico e Roberta5. Para a realização do projeto, o grupo se reuniu nos momentos das aula de
Matemática destinados ao desenvolvimento da atividade, além de outros encontros com a
pesquisadora e via grupo do WhatsApp. A Tabela 1 informa as datas, os tempos e os espaços
das reuniões do grupo.
Os dados que serão discutidos neste artigo são oriundos dos encontros do grupo,
quando foram realizadas as observações participantes (VIANNA, 2003), gravadas em vídeo
(POWELL; FRANCISCO; MAHER, 2004), e as discussões no grupo do WhatsApp. Apesar
de ter meu contato adicionado no grupo do WhatsApp, os debates nesse espaço aconteceram
sem a minha participação. Os dados produzidos são de natureza qualitativa (BORBA;
ARAÚJO, 2013).
Vianna (2003) explica que a observação é um dos procedimentos metodológicos mais
importantes nas pesquisas em educação. Ressalta que esse procedimento é frequentemente
utilizado por pesquisadores que se interessam em investigar os comportamentos em salas de
aula e que, na observação participante, “o observador é parte dos eventos que estão sendo
5
São nomes fictícios usados para preservar a identificação dos sujeitos.
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pesquisados” (VIANNA, 2003, p. 50).
O grupo pesquisou orçamentos para instalação do sistema fotovoltaico apresentando
conclusão conforme demonstrada na Figura 3:
Os dados e as análises
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A divisão das tarefas para a escrita do relatório aconteceu de maneira a incluir todos os
integrantes do grupo, como é possível depreender do Quadro 1. Cada integrante ficou
responsável por atuar em um único tópico do relatório. Destaca-se nessa divisão a
concordância da equipe sobre a tarefa a ser desempenhada pelo Geovane, que ficou
responsável pela parte dos cálculos. Essa concordância foi respaldada no fato de Geovane ser
considerado pelo grupo como o estudante que apresentava melhor desempenho e alcançava as
melhores notas na disciplina de Matemática.
É possível identificar a participação de Geovane no desenvolvimento dos cálculos que
o grupo produziu no decorrer dos encontros (falas 26 e 27). Contudo, é importante destacar
que esse não foi o critério para validar a atuação dele nessa parte, mas sim a sua relação com a
Educação Matemática escolar. Em outras palavras, na minha interpretação, para o grupo, era
mais confiável que Geovane assumisse essa tarefa, apesar de outras pessoas terem interesse
em atuar nela.
A retomada da divisão das tarefas orientada pelo roteiro (a partir da fala 8) explicita
que esse assume um lugar central quando se estava tratando da produção do material que seria
avaliado pela professora. A leitura do roteiro foi feita para a divisão das tarefas, e a associação
dessas aos sujeitos não esteve necessariamente relacionada à participação no decorrer dos
encontros.
Na reunião seguinte, no dia 28 de abril de 2015, no laboratório de informática, Beatriz
orientou o grupo para iniciar a escrita do relatório. Em específico, ela explicou para Roberta,
que estava ausente no encontro anterior, sobre a tarefa que o grupo tinha definido para ela
desenvolver. Cada integrante ligou um computador e começou a desenvolver sua tarefa.
Roberta se aproximou de Laura:
(43) Roberta: O que tem que fazer?
(44) Laura: Tem que falar… [inaudível].
(45) Roberta: Eu sei, mas eu não sei como é que eu vou fazer.
Em seguida, Roberta chamou Gabriela:
(46) Roberta: Gabriela, vamos fazer o nosso trabalho?
Gabriela não se aproximou de Roberta. Então, Roberta se aproximou de Adriana. Esta
estudante explicou para ela que, nas discussões do grupo, houve três linhas de pensamento.
Em seguida, Roberta, com mais clareza sobre o que deveria fazer, definiu sua tarefa:
(47) Roberta: Eu vou escrever sobre a linha de pensamento da Beatriz.
(48) Beatriz: Qual foi minha linha de pensamento?
(49) Roberta: Você escreve sobre a sua [Gabriela] e Nico escreve sobre a dele. Nós
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estamos escrevendo sobre as linhas de pensamento, não é?
(50) Beatriz: Verdade.
(51) Roberta: É mais fácil ela [Gabriela] escrever sobre a dela mesmo, o Nico escrever
sobre a dele e eu escrevo com você.
Depois de algum tempo, Roberta se aproximou de Beatriz, que estava ao lado de
Adriana. Essas estudantes explicaram para Roberta sobre o que ela precisaria escrever. Ao
mesmo tempo, Nico falou para Gabriela que não se lembrava do que tinha proposto:
(52) Nico: Foi do tempo de retorno […]. Nem eu lembro mais. Vamos tirar essa parte? Eu
falo outra coisa.
Gabriela chama o grupo:
(53) Gabriela: Galera, é o seguinte: Nico não consegue explicar a ideia dele, ele não
consegue lembrar como ela era. A gente vai tirar ela da história?
(54) Roberta: Se a gente não lembra, vamos nos esforçar para lembrar.
(55) Gabriela: A gente pode falar que teve outra ideia, só que ela não foi muito coerente.
(56) Nico: Viável, não foi viável.
(57) Gabriela: Ela não foi coerente para o tema do trabalho e ponto-final.
(58) Nico: Ela [professora ou pesquisadora] vai querer saber qual que era a outra ideia.
[…]
(59) Nico: Agora, o que eu falo lá na frente, na apresentação?
(60) Gabriela: Nada, vai falar só as linhas de raciocínio aceitas.
(61) Nico: Qual vai ser minha parte para falar lá na frente?
(62) Gabriela: A gente fala disso depois.
(63) Nico: Então, eu estou sem nada para fazer.
Depois de alguns minutos, o tempo da aula é finalizado.
Na divisão para a escrita do relatório, Roberta e Nico ficaram responsáveis por tarefas
que eles não conseguiram resolver ou mesmo não estavam alinhadas às suas ações no decorrer
dos encontros para o desenvolvimento do projeto. A relação entre o número de participantes e
o número de tópicos do roteiro do relatório levou o grupo a decidir que cada tópico ficasse
com um integrante, e o item 2, que parecia ser o mais trabalhoso, seria resolvido por três
integrantes do grupo, considerando que eram cinco tópicos e sete integrantes. Partindo dessa
divisão, o tópico 2 ficou com Gabriela, Nico e Roberta. A condução da escrita desse item
gerou outra divisão de tarefas.
Foi decidido que, no tópico 2, seriam descritas as ideias discutidas no decorrer dos
encontros para se chegar à solução matemática. A escrita do relatório e a apresentação oral se
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constituíam para o grupo como a avaliação a ser realizada pela professora, como é possível
perceber entre as falas (52) e (63).
Roberta, que estava ausente no momento da divisão da tarefas, ficou responsável por
escrever sobre o que outra integrante do grupo tinha produzido. No caso de Nico, a demanda
era redigir sobre sua própria produção, mas a mesma não foi assumida pelo grupo como
resultado do projeto. Por isso, Nico não conseguiu elaborar a escrita dessa proposta.
O roteiro do relatório se tornou o parâmetro sobre o que seria avaliado na atividade de
Modelagem. A organização deveria ser coletiva, mas a divisão das tarefas fragmentou o
relatório em atuações individuais, como demonstrado por Nico, ao se preocupar em ficar sem
ter o que apresentar nas falas (59, 61 e 63).
A situação de Nico apresenta elementos para refletir sobre a relação entre a
participação a partir do convite como enunciado na concepção de Modelagem assumida no
estudo (BARBOSA, 2007) e a participação atrelada aos parâmetros do que será avaliado,
indicando tensões (DAVID; TOMAZ, 2015) quanto à atuação dos sujeitos. Nico teve uma
participação nas proposições das possibilidades para a produção do modelo, assim como na
avaliação de qual seria a decisão do grupo, mas, pelo fato das ideias dele não terem sido
assumidas pelo grupo, ao seguir o roteiro, suas ações no decorrer do desenvolvimento do
projeto foram invisibilizadas.
Os estudantes criaram um grupo no WhatsApp e se comunicaram para a finalização do
trabalho. Nos dias 2 e 3 de maio de 2015 trocaram várias mensagens. Nas transcrições
seguintes, Nico faz solicitações quanto a uma tarefa para ser desenvolvida por ele, e percebe-
se uma mudança em relação à responsabilidade da resolução dos cálculos, que passou a ser
desenvolvidos por Gabriela e Geovane.
(64) Gabriela: Seguinte, galera, manda as respectivas partes do trabalho para Beatriz o
mais rápido possível!
(65) Nico: A minha parte foi cancelada, agora eu não sei o que fazer.
(66) Beatriz: A Roberta e a Laura me mandaram.
(67) Nico: Tem parte ainda para fazer?
(68) Nico: Estou sem parte, Beatriz.
Em várias mensagens, Beatriz e Gabriela solicitam que Nico se responsabilizasse por
disponibilizar as mensagens do grupo do WhatsApp para a produção do relatório e esclarecem
que isso é parte a ser preparada na produção do relatório:
(69) Nico: Então, vou falar do que cada um fez no trabalho? Durante o trabalho?
(70) Gabriela: Isso.
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(71) Nico: Ok, vou escrever algo e mando.
Na sequência das mensagens, Gabriela solicitou as partes do relatório já escritas:
(72) Gabriela: Beatriz, te mandei a minha parte escrita. Pode me mandar o que o pessoal
já te mandou?
Na sequência das mensagens, Gabriela decidiu refazer os cálculos. Adriana, Gabriela e
Beatriz continuaram discutindo sobre a produção do grupo para a escrita do relatório e o que
deveria constar na apresentação. Gabriela chegou a um resultado diferente do que foi
calculado por Geovane:
(73) Gabriela: Gente, meu resultado deu diferente do Geovane, a gente está fazendo
novamente. Então, vamos demorar um pouco.
Beatriz não concordou com a mudança que teria de ser feita para introduzir o novo
resultado encontrado pela Gabriela:
(74) Beatriz: Mas, Gabriela, vai ter que fazer tudo novamente, inclusive o raciocínio. Se
for para fazer isso, eu não vou ter como fazer.
(75) Geovane: Eu não vou fazer isso, não. Ela [professora ou pesquisadora] quer uma
coisa simples, não a explicação do universo com a matemática.
Na sequência das mensagens, Gabriela argumentou que seria necessário deixar claro
os procedimentos utilizados:
(76) Gabriela: Eu só estou falando para simplesmente colocar na explicação.
Simplesmente falar que não estamos considerando qualquer manutenção necessária.
Assim fica bem mais fácil, a gente não fica errado por não colocar isso de
manutenção, porque o nosso trabalho visa somente o tempo para a instalação.
Geovane concordou com Gabriela e, na sequência das mensagens, Gabriela escreveu
sobre sua atuação na escrita do relatório:
(77) Gabriela: Sabia que eu estou até agora editando esse trabalho?
(78) Gabriela: Colocando mensagens que o Nico deveria ter mandado, arrumando parte
errada que a Adriana não corrigiu e agora introdução. Eu também tenho muita coisa
para fazer, fala sério!
(79) Beatriz: Eu também fiz um monte de coisa que não era da minha parte, tanto é que
coloquei nome nelas. Ninguém deu sinal de vida, fica difícil.
O relatório foi entregue no dia da apresentação do projeto.
Nico solicitou ao grupo uma tarefa para ser desenvolvida por ele, pois sua ideia foi
cancelada (falas 65, 67 e 68). Beatriz e Gabriela solicitaram a Nico que se responsabilizasse
por organizar os anexos com as mensagens do grupo no WhatsApp, mas parece que ele não
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acolheu essa tarefa e decidiu desenvolver outra tarefa: escrever sobre a atuação dos
integrantes do grupo (falas 69 e 71). Depois disso, Nico não se manifestou sobre o
desenvolvimento de alguma das tarefas (fala 78). Dessa forma, a divisão de tarefas a partir do
roteiro do relatório acabou excluindo a participação do Nico no andamento da escrita do
relatório. Em relação ao tópico referente aos cálculos matemáticos, a divisão proposta não foi
seguida, pois Gabriela assumiu conjuntamente a parte que foi sugerida a ser elaborada por
Geovane (falas 73, 74, 75 e 76).
Na fala (79), Beatriz destacou que colocou o nome nas partes por ela desenvolvidas,
essa fala explicita a tensão (DAVID; TOMAZ, 2015) entre a proposição de uma atividade de
natureza coletiva e a prática de avaliações individuais que caracteriza a Educação Matemática
escolar.
A sequência das falas indicam que a organização do grupo a partir do roteiro para
atender aos parâmetros da avaliação gerou dissonâncias entre as ações dos sujeitos, na relação
com as diferentes tarefas e no nível de participação de cada um dos integrantes do grupo.
A leitura dos dados permite entender que, para os integrantes do grupo, o roteiro do
relatório se apresentou como um parâmetro para compreender como eles seriam avaliados
pela professora. Mais que isso, a descrição possibilitou identificar tensões (DAVID; TOMAZ,
2015) entre o que aconteceu nas discussões sobre o projeto e o aconteceu a partir do que o
roteiro sugeriu para ser produzido.
Uma tensão que emergiu, ao ser colocada em prática a produção do relatório, é que a
proposta do ambiente de aprendizagem de Modelagem é de natureza coletiva, ou seja, a ser
desenvolvido em grupo, mas ao buscarem atender ao roteiro, os estudantes dividiram os
tópicos de maneira a individualizar suas ações. Isso nos convoca, enquanto professores e
pesquisadores, à discussão sobre a natureza dos artefatos que podem mediar atividades de
Modelagem de maneira a não favorecer o distanciamento entre o que se perspectiva com a
Modelagem e como esse ambiente de aprendizagem acontece em salas de aula.
Entender o roteiro como um artefato (ENGESTRÖM, 2001), integrante do sistema
Atividade, indica que ele está mediando a relação entre os sujeitos (os integrantes do grupo) e
a divisão do trabalho. A divisão das tarefas realizada pelos integrantes do grupo com base no
roteiro evidenciou relações de poder que posicionaram os integrantes do grupo a partir da
relação de um deles com a Educação Matemática escolar, consequentemente posicionando os
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demais em relação a ele. Se, por um lado, o roteiro elaborado pela professora e pela
pesquisadora buscava orientar os estudantes, por outro, também favoreceu a uma divisão de
tarefas que fragmentou a atuação deles e estabeleceu posições hierárquicas a partir da relação
dos estudantes com a Educação Matemática escolar.
Para além de descrever como o grupo produziu o relatório, este artigo traz para o
debate elementos para refletirmos sobre nossas escolhas no planejamento de ambientes de
aprendizagem de Modelagem. As escolhas no planejamento e como as formalizamos, no caso
em discussão a formalização se deu a partir do roteiro do relatório, podem fortalecer os
aspectos que historicamente são produtores das regras da Educação Matemática escolar e, ao
mesmo tempo, enfraquecer os aspectos específicos da Modelagem que nos faz considerar esse
ambiente de aprendizagem como uma das possibilidades de transformação das práticas
tradicionais da Educação Matemática escolar. O roteiro, neste caso em discussão, favoreceu a
individualização das ações dos estudantes e reverberou o poder das avaliações em matemática
que historicamente caracteriza a Educação Matemática escolar.
A análise das ações dos estudantes possibilitou perceber o poder exercido pelas
avaliações nas tomadas de decisões para a produção do relatório. Parece-me que é
emergencial discutir como o poder exercido pelas avaliações em matemática reverberam no
ambiente de aprendizagem de Modelagem. Cabe, então, dentre outras questões, perguntar: na
proposição de ambientes de aprendizagem de Modelagem estamos explicitando para os
estudantes como eles serão avaliados?; como avaliamos os estudantes em ambientes de
aprendizagem de Modelagem ou como não os avaliamos?; quais instrumentos representam a
avaliação em ambientes de aprendizagem de Modelagem?; como o modo que os estudantes
entendem que serão avaliados podem dar maior visibilidade ou invisibilizar algumas ações ou
alguns sujeitos?
Este artigo estabeleceu como central o papel dos artefatos nas discussões sobre
Modelagem em salas de aula. Além disso, como um artefato, pode representar as relações de
poder historicamente construídas pela Educação Matemática escolar ‒ dentre essas relações, o
poder exercido pelas avaliações. Desse modo, toca em questões centrais, quando se busca
implementar atividades de Modelagem em salas de aula. Reconhecer, investigar e discutir
esses aspectos são essenciais para ampliarmos as possibilidades de efetivação da Modelagem
em salas de aula.
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