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ESCOLA DE TEATRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
SALVADOR
2015
MAÍRA SILVA GUEDES
SALVADOR
2015
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DEDICATÓRIA
Ação internacional da Marcha Mundial das Mulheres em 2010, atravessando o estado de São Paulo
2010. Foto: João Zinclar
1
O trecho da música de Milton Nascimento, “Coração Civil”, gravada em 1981, do álbum
Caçador de Mim.
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AGRADECIMENTOS
Por sorte e gosto não escrevi essa dissertação sozinha, as páginas que aqui seguem são
resultado de muitas mãos. Sínteses de pesquisas e formulações de anos da classe trabalhadora
organizada, junto a elas, reflexões feitas a passos tímidos por uma novata em pesquisa que
teve nesses mais de dois anos muita gente por perto. O caminho da escrita, de abandono e
explosão, faz a gente ganhar olho, e isso é bom, pesquisar é das descobertas mais
interessantes dos últimos períodos, e só pude passar tanto tempo estudando (um direito que
ainda é tido como privilégio) por que muita gente caminhou comigo e me proporcionou dias
de silêncio ou conversa, de planos e ação.
Começo agradecendo ao Movimento Sem Terra e a Consulta Popular, por cada mística, cada
cena, cada canção, cada poesia, cada experiência de agitação e propaganda que vivi. Por me
mostrarem que há muito caminho entre a luta do povo brasileiro e a arte, e que quem me disse
o contrário mentiu!
A Indaiara minha mãe, agradeço as primeiras canções e poesias, agradeço por ter crescido
vendo seu corpo solto e festivo a dançar nas festas e salas, te agradeço pelo que virá
mãezinha. Ao meu pai Marival, por ser o melhor companheiro de casa de todos os tempos! A
ambos, por terem me proporcionado uma formação sensível, permitindo o descortinar de
mundos inteiros cantando, escrevendo, tocando, interpretando. A minhas avós Maria Célia e
Josefa Guedes, por cada história e estória, pela memória ancestral e resistência. A Escola
Curumim, Tia Rita, Raquel e Jorge, por terem feito o teatro viver em mim.
À Antonia, por muito mais que a orientação. Por não desistir, por fazer vivo o Teatro do
Oprimido, pelos cortes cirúrgicos, por Piscator, por me fazer conseguir terminar! A Escola de
Teatro da UFBA, seus funcionários/as, estudantes e professores/as. Por tudo o que aprendi
em reuniões na Casa Rosa que hoje é branca, nos corredores, sala de aula, mostras, debates e
conversas inquietantes nos banquinhos verdes...
A Maria Júlia Monteiro e Paulo Henrique Oliveira, pelas madrugadas, bibliografias, sumários,
citações, carinho, corridas contra o tempo, confiança, prontidão e força, muita força. A Rafael
Neves pela tradução, a Júlia Garcia pelas trocas dissertantes e por ter permanecido firme. A
Rafael Livtin Villas Bôas, Felinto Santos (Mineirinho) e Raul Amorim, artistas, militantes e
dirigentes do MST; os agradeço pelos textos, palavras, fios e meadas. A Geo Britto, do Centro
de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro, por sua disposição, ajuda, indicações e resistência.
A Vitor Teixeira, pelo amor e ouvidos durante quase 1 ano de escrita, por ter sido vento bom
nas agonias. Às Zeferinas e ao Levante Popular da Juventude, pelo feminismo, paciência,
carinho, por me fazerem querer ser todo dia melhor e seguir em luta até que todas sejamos
livres! Aos meus companheiros, Hugo, Leno, Mário e Vítor, pela esperança no triunfo que
virá. À Izadora e Júlia, minhas irmãs, meus pedaços, amores da minha vida, sem vocês não
teria Mamá, quiçá dissertação!
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RESUMO
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ABSTRACT
Placed on the scope of the Performing Arts, this dissertation investigates through comparative
methodology the “Theatre of the Opressed” of the Patativa do Assaré national performing
brigade, linked to the Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), having it’s
origins in Brazil on 2001; and the height of early 20th century explicitly political theatre in
the USSR and Germany, namely; Russian Agitprop theatre and German epic and polical
theatre.Using as the theoretical approach Marx and Engels’s historical materialist dialectical
method, the authors Augusto Boal, Paulo Freire, Erwin Piscator, Bertold Brecht, Anne
Ubersfeld and the research about political theater made by the brazilian authors Silvana
Garcia and Iná Camargo Costa, this dissertation proposes the formation of an internal
theatrical system of MST, expressed on the construction of the Estética do Oprimido Sem
Terra, and intends to add to the incipient academic research about the social movements’s
theatrical activities in America Latina starting from the research of the theatre made by
organized rural workers in Brazil.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
LISTA DE SIGLAS
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CTO – Centro de Teatro do Oprimido
ETUFBA – Escola de Teatro da UFBA
FHC – Fernando Henrique Cardoso
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
PT – Partido dos Trabalhadores
URSS – União Soviética
TO – Teatro do Oprimido
SUMÁRIO
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INTRODUÇÃO 11
CONSIDERAÇÕES FINAIS 99
INTRODUÇÃO
“Vim de longe vou mais longe, quem tem fé vai me esperar, escrevendo numa conta,
pra junto a gente cobrar, do dia que já vem vindo, que esse mundo vai virar...”
(Geraldo Vandré)
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1. O MST E A CRIAÇÃO DA PATATIVA DO ASSARÉ
O MST foi gestado em tempos de Ditadura Militar. A experiência de luta por Reforma
Agrária Popular construída há 34 anos pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)
está atrelada ao questionamento mais geral do próprio modo de produção capitalista. O
Movimento surge com três objetivos principais: lutar por terra, reforma agrária popular e
mudanças sociais no país. Para compreender o teatro do MST é preciso também compreender
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parte da história do movimento, principalmente quais as contradições sociais que
impulsionam a criação do que é hoje o maior movimento social da América Latina,
organizando mais de 1,5 milhões de trabalhadores rurais no Brasil desde o fim da década de
70, e que tem seu início no processo de industrialização da agricultura brasileira na década de
1950.
A Ditadura Civil-Militar no Brasil aconteceu em um dos momentos de grande
expansão capitalista, entre 1964-1985. Característica marcante foi o êxodo rural que
aumentou o número de trabalhadores nas cidades, e constituiu o exército industrial de reserva,
que tanto provoca a queda dos salários como dificulta a mobilização do setor. Além disso, foi
gerada nos centros urbanos uma rede informal de reparo e venda dos produtos
industrializados, atividades ainda não tão desenvolvidas pelas grandes empresas. Mas a
culminância desse processo de “modernização” das estruturas tradicionais do campo ocorreu
após 1964. A “modernização” do campo consistiu na articulação da agricultura capitalista ao
setor industrial, voltada para a exportação e ligada também ao setor financeiro, que imprimiu
“um novo padrão produtivo, baseado no cultivo intensivo do solo, na utilização de insumos
químicos e no emprego de máquinas industrializadas” (SILVA, 2004, p.30)
João Pedro Stédile, dirigente nacional do MST, aponta pelo menos cinco
consequências no campo brasileiro, nas décadas de 1970 e 1980, das políticas econômicas
adotadas pela ditadura militar (STEDILE, 2002, p. 313-116). A primeira delas foi a
acumulação de capital nas mãos dos grandes proprietários rurais. Percebe-se também, a
centralização do controle de diversos setores da economia, agricultura, comércio, indústria e
capital financeiro, por grandes grupos econômicos. O quarto aspecto foi a introdução da
agroindústria, que usufrui o baixo custo da mão-de-obra brasileira, a estrutura agrária
concentrada, os incentivos fiscais e, ainda, a abertura dos mercados locais ao consumo dos
produtos de seus países de origem (SILVA, 2004, p. 90-92). Somado à quinta consequência,
que é afirmação da produção agrícola para exportação, a agroindústria transformou
rapidamente os hábitos alimentares da população brasileira, que passou a consumir, por
exemplo, o óleo de soja e o suco de laranja industrializado, além de limitar as alternativas dos
pequenos agricultores.
Esse modelo econômico aprofundou as históricas contradições sociais do país,
exponenciando o êxodo rural e inviabilizando a agricultura familiar (STEDILE e
FERNANDES, 2000 p. 29-33). A expectativa de permanecer com a agricultura familiar e a
produção de grãos não foi correspondida pela proposta estimulada pelo governo para que os
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migrantes se integrassem às atividades do garimpo e extração de madeira (MITTELMAN,
2006). Muitos trabalhadores/as rurais compreendendo a necessidade de lutar pela terra em
suas regiões de origem, foram compor a base social do MST. Inicialmente, o espaço de
articulação foram as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs e os Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais. Eles “[ ...] foram os lugares sociais onde se constituíram os espaços de
reflexão acerca da realidade e onde se desenvolveram as experiências para a organização dos
trabalhadores rurais contra a política agrária em questão[...]”. (FERNANDES, 1996, p. 56).
A este esforço somou-se a Comissão Pastoral da Terra, CPT, fundada em 1975, pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que, a partir da Teologia da Libertação 2
procurou divulgar os direitos sociais contidos na Bíblia e, por outro lado, utilizando-se das
leis, fundamentalmente, do Estatuto da Terra, Lei 4.504 de 30 de novembro de 1964, que
defendia a necessidade de se fazer a reforma agrária no Brasil. Assim diz no seu artigo
primeiro: “Esta Lei regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais para
fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola”. (BORGES, 1979,
p.193). Tal Lei promulgada pelos militares, durante o governo da ditadura que se instalou no
Brasil entre os anos de1964-1985, se, por um lado, tinha a intenção de povoar as fronteiras
agrícolas do Centro Oeste e Norte do país, por outro lado, procurou inibir o crescimento das
forças sociais que defendiam a reforma agrária. O interesse dos militares era desvincular a
reforma agrária do comunismo (MITTELMAN, 2006) .
O primeiro Encontro Nacional, ocorrido em janeiro de 1984 no Paraná, marca a
fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. De acordo com Stédile, o
nome do movimento cumpria o papel de resgatar o caráter de classe dos seus integrantes, ao
mesmo tempo em que incorporava o apelido criado na mídia pelo qual já eram conhecidos
pela sociedade. (STEDILE e FERNANDES, 2000 p.47). No encontro se define foi que a luta
do MST seguiria princípios autônomos, tendo como norte o modelo dos movimentos de
massas. A participação nos sindicatos e nos partidos políticos era estimulada, desde que a
2
Nascida no final dos anos 60 do século passado, a Teologia da Libertação é saudada como “a
primeira primeira produção teórica nascida na periferia do cristianismo, que apresenta um novo modo
de fazer teologia, a partir dos pobres e contra a sua pobreza, profética e com um apelo à consciência
ética da humanidade, por colocar no centro de sua preocupação a sorte das grandes maiorias
condenadas à miséria e à exclusão por causa das minorias nacionais e internacionais insensíveis, cruéis
e sem piedade.” Leonardo Boff, teólogo da libertação, professor emérito de Teologia Sistemática entre
os Franciscanos de Petrópolis, RJ e de Ética na Universidade do Rio de Janeiro, autor de mais de
setenta livros em várias áreas da teologia, da filosofia e da ecologia, em artigo para o Diplomatique,
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=26, acesso em 08 de dezembro de 2014.
18
autonomia da organização do movimento fosse preservada. Define-se também que no
contexto da redemocratização do país a luta pela reforma agrária devia se integrar à luta por
mudanças sociais, à questão da demarcação das terras indígenas e à necessidade da reforma
agrária nas terras das empresas multinacionais. (STEDILE e FERNANDES, 2000, p. 50-51
Pouco antes do golpe militar de 1964 no Brasil, o período que vai da segunda metade
da década de 1950 até o início da década de 1960 é marcado por grandes mobilizações
políticas. No nordeste, as Ligas Camponesas, desenvolveram intenso processo de organização
dos camponeses e luta contra o latifúndio, (VILAS BÔAS, 2009). É nessa época que os
artistas brasileiros começam a fazer teatro de forma assumidamente política,
Segundo Iná Camargo Costa (1996), naquele período, o teatro político brasileiro chegou ao
patamar de força produtiva, de conhecimento e de intervenção. Grupos profissionais com
experiência iniciavam relação direta com as Ligas Camponesas, movimento estudantil e
sindicatos urbanos, modificavam temas, formas, relações e modos de produção do fazer
teatral. Segundo os militantes que compõem a Brigada Nacional de Teatro Patativa do Assaré,
a produção teatral do MST é herdeira direta da experiência de articulação ocorrida no
momento anterior ao golpe de 1964:
Da mesma forma como o MST é herdeiro das experiências de luta pela terra,
que passam por Palmares e pelas Ligas Camponesas, no âmbito da cultura
podemos dizer que a parceria entre o MST e o Centro do Teatro do Oprimido
(CTO) é herdeira do vínculo entre o grupo de teatro Arena e as Ligas
Camponesas. (Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré, 2005,
p. 2).
Nós, artistas, idealistas, não podíamos apoiar tamanha crueldade. Nós nos
revoltávamos, nos indignávamos, sofríamos. E escrevíamos e montávamos
nossas peças contra a injustiça, enérgicas, violentas, agressivas. Éramos
heroicos ao escrevê-las e sublimes ao representá-las: peças que terminavam
quase com os atores cantando em coro canções exortativas, canções que
terminavam sempre com frases do tipo “Derramemos nosso sangue pela
liberdade! Derramemos nosso sangue pela nossa terra! Derramemos nosso
sangue, derramemos! (BOAL, 1996, pg. 17)
21
Os artistas convocavam os espectadores a organizar-se pela transformação diante de tantas
injustiças vividas, mostrando por vezes na cena um caminho, ou até mesmo um projeto, como
mais a frente será discutido. As respostas aos impasses gerados pela repressão política vieram
também através de novas experiências estéticas no palco.
Ainda nas peças montadas no Arena, questionando o lugar dos atores como "estrelas
intocáveis” a quem cabiam os principais papéis, Boal criou, com seus companheiros, o
"sistema coringa" em que os atores no espetáculo se revezavam em cena, assumindo,
alternadamente, os diferentes personagens. Através desse sistema, novas convenções e
modelos foram criados com peças que adotavam uma forma estética inovadora, rompendo
com a linearidade dos espetáculos tradicionais, com personagens previamente definidos.
Boal conta, no livro “Hamlet e o Filho do Padeiro”, e em outros livros e entrevistas,
que o momento crucial para a criação do Teatro do Oprimido aconteceu na década de 60, no
Nordeste brasileiro, ocasião em que o Teatro Arena, apresentava-se para uma liga camponesa.
O grupo encenava um espetáculo que mostrava os camponeses lutando pelo direito à terra
com fuzis em punho. Ao final do espetáculo, cantavam uma música forte, politizada, que dizia
com firmeza a necessidade de entregar-se a luta, derramando o sangue se preciso. Exortando
“os oprimidos a lutar contra a opressão” (Boal, 1996, pg. 17).
O público de camponeses se emociona, o líder do acampamento, chamado Virgílio, se
aproxima de Boal e empolgado convoca todo o elenco para que, depois do almoço, fossem
com eles ocupar uma terra improdutiva. Com a vontade de lutar que estavam como
demonstraram na peça, as armas em punho, poderiam enfrentar os jagunços do fazendeiro.
Boal explicou que aqueles fuzis eram cenográficos, que realmente concordavam com a
ocupação da fazenda, porém não poderiam lutar, pois suas armas eram de madeira e papelão.
Virgílio, sem pestanejar, mandou os companheiros trazerem mais armas de dentro do galpão.
– Já que os fuzis são de mentira, temos armas de verdade. Vocês são reais e verdadeiros e
percebemos isso na encenação que fizeram. – disse o camponês. Boal, explicou que eles eram
verdadeiros artistas, compartilhavam de seus ideais sim, porém não poderiam lutar com eles,
pois não estavam preparados para isso. Virgílio olhou nos olhos de Boal e disse – Então o
sangue que vocês querem verter, quando cantam aquela música, não é o de vocês, é o nosso
sangue. Boal afirma que a partir daí não pôde mais fazer teatro da mesma forma que o fazia:
Em setembro de 1970, com pesquisa e criação coletiva, Boal e sua equipe decidem usar o
próprio texto do jornal que havia sido censurado, como texto teatral e apresentam o espetáculo
“Teatro Jornal – Primeira Edição”, que consistia no compartilhar com o público nove técnicas
que possibilitavam transformar qualquer notícia de jornal, ou outras formas de textos, em cena
de teatro. A multiplicação era o objetivo: formar novos grupos de Teatro Jornal que
aprendessem as técnicas, aplicassem, e depois formassem outros grupos.
A primeira modalidade do arsenal do Teatro do Oprimido surge em 1970 para burlar e
criticar o silêncio dos meios de comunicação controlados pela Ditadura Civil-Militar.
Desmistificando a pretensa “objetividade” do jornalismo, denunciando a barbárie e a
violência, a modalidade analisa e trata em cena os jornais impressos como obra de ficção,
discutindo os problemas do povo através das notícias jornalísticas (BOAL, 1984), ao passo
que, com a proposta de tornar o teatro mais popular, visibiliza técnicas que qualquer grupo,
em tempo curto, pode apropriar-se, demonstrando que o teatro pode ser praticado mesmo por
quem não é ator:
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Estamos agora criando uma nova categoria de teatro popular,
fundamentalmente diferente das três anteriores. Nela, o próprio povo faz o
espetáculo. Não produzimos, como artistas, um espetáculo: como técnicos,
produzimos as ferramentas a serem utilizadas pelo povo na fabricação de seu
próprio teatro. Nas três primeiras categorias, o povo é unicamente o receptor
do produto teatral; nesta quarta categoria, o povo fabrica e consome teatro.
(1984, pg. 42)
A técnica do Teatro-Jornal, não surge com a experiência do Arena e Boal. É técnica fundante
da Agitação e Propaganda do período pré e pós Revolução Russa (1917). O chamado “Jornal-
vivo” é precursor de um vasto caminho que o teatro fará no início do século XX. Claudine
Amiard-Chevrel (1977)3 em texto sobre um dos mais expressivos e atuantes grupos de
Agitação-propaganda da União Soviética na década de 1920, o Blusa Azul, criado como
jornal vivo por estudantes do Instituto Moscovita de Jornalismo em 1923, nos diz:
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Figura 2: Paulo Freire e Augusto Boal no Congresso Internacional: PTO – Pedagogy Theater of
Opressed. Autor(a): Desconhecido. Ano: 1998
27
A educação em Freire nasce da observação e se propõe à ação transformadora, a partir
do encontro entre interlocutores que procuram no ato de conhecer a significação da realidade,
e na práxis o poder da transformação que se forja um processo que nega o treinamento e a
domesticação. O modelo de educação propõe uma relação de troca horizontal entre educador
e educando, e atitude de transformação da realidade conhecida. É uma educação
conscientizadora na medida em que além de conhecer a realidade, busca transformá-la. Tanto
o educador quanto o educando aprofundam seus conhecimentos em torno do mesmo objeto
cognoscível para poder intervir sobre ele. (FREIRE, 1995)
A partir do método que defendia na ação uma prática de trabalho de alfabetização que
capacitasse o oprimido tanto para a leitura e escrita quanto para a sua liberdade de expressão,
Freire propôs um método fundado no princípio de que o processo educacional deve partir da
realidade que cerca o educando. O ato de aprender a ler, escrever, alfabetizar-se é, antes de
tudo, aprender a ler o mundo, entender os seus contextos; não é escrever algumas palavras,
formar frases, sem compreender a dinâmica que une a linguagem e a realidade, mas também é
necessário compreender qual o contexto social e cultural em que se está inserido.
O pensamento de Freire se consolida junto a conjuntura de intensa mobilização e luta
política da década de 60, no Brasil e na América Latina. O educador compreende que a
educação é um ato essencialmente político, “do ponto de vista crítico, é tão impossível negar
a natureza política do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político”
(FREIRE, 1993, pg. 27). Não sendo possível existir uma educação neutra, a serviço da
humanidade, sem que se esteja atenta à questão do poder. No livro Pedagogia do Oprimido é
possível verificar a aproximação de Paulo Freire com o pensamento marxista,
Em última análise, devo dizer que tanto minha posição cristã quanto a
minha aproximação de Marx, ambas jamais se deram ao nível
intelectualista, mas sempre referidas ao concreto. Não fui às classes
oprimidas por causa de Marx. Fui a Marx por causa delas. O meu encontro
com elas é que me fez encontrar Marx e não o contrário (FREIRE, 1979, pg.
74-5).
A afirmação, talvez óbvia, de que não poderia haver história humana sem os seres
humanos, necessita ser acrescentada do referencial do fazer e do fazer-se enquanto sujeito
histórico. Até o século XIX, explicava-se a origem do ser humano e da história por meio da
mitologia, religião e filosofia idealista. Buscando comprovar o desenvolvimento da
humanidade de outra maneira, o materialismo histórico superou tais posições concluindo que
o trabalho é a condição básica e fundamental da vida humana, e o que constituiu o próprio
homem e mulher (BOGO, 2011). Esse fundamento básico leva-nos a perceber que a relação
do ser humano enquanto gênero se inicia no momento em que ele é obrigado a produzir a sua
própria existência, a fazer-se humano. Portanto, diferente da natureza que diante das
necessidades não dispõe da capacidade de tomar iniciativas para supri-las, além daquelas que
já lhes são inerentes; o ser humano pensa, imagina e cria soluções. Ou seja, a realidade não é
estática e nós podemos transformá-la, pressuposto marxista presente no pensamento freireano
e boalino.
Outro elemento fundamental idealizado por Marx e Engels e presente em Paulo Freire
é relativo às classes sociais, ao conflito entre elas e a história da humanidade como resultado
da luta de classes. As classes, em Marx, expressam as formas sociais de organização voltadas
para a produção e os fatores decorrentes dessas relações resultam em uma divisão no interior
das sociedades, a divisão social do trabalho, na qual a classe dominante é que detém os meios
de produção e a classe trabalhadora quem produz a riqueza. À proporção que as forças
produtivas evoluem, as relações sociais tornam-se mais complexas. Os modos de produção
sucedem-se pelas contradições que se estabelecem e pela intervenção organizada das forças
sociais. A educação no sistema capitalista é criticada por Freire, chamada de “pedagogia dos
dominantes” e conceituada de “educação bancária”, onde a educação existe como prática da
dominação, e a pedagogia que se contrapõe a do sistema capitalista é a “pedagogia do
29
oprimido”, na qual a educação passa a existir como prática da liberdade e que precisa ser
realizada (1987, pg. 19), sendo construída com o oprimido e não para ele.
Freire aborda a educação como cerne fundamental, não totalizante, mas determinante
para o processo de emancipação humana, conscientização e libertação social e deve ter como
um dos principais objetivos, desvelar as relações opressoras vividas pelos seres humanos,
transformando-os para que eles transformem o mundo, e para isso estabelecer a “relação
dialógica”. Na incansável luta de recuperação da humanidade destroçada, fundamentada na
práxis, ação-reflexão-ação-reflexão, como unidade dialética inseparável, Freire, em acordo
com Boal, defende que a conscientização é um compromisso histórico, na medida em que o
sujeito se insere criticamente na sociedade, transformando-a.
32
Não basta invertermos o fluxo migratório campo–cidade se não alterarmos
significativamente os padrões que norteiam as relações de trabalho, ou seja,
precisamos construir novas formas de organização social, de produção
coletiva, e para isso precisamos lutar pela democratização radical dos meios
de produção, da agricultura, da comunicação, da educação, da cultura,
enfim, de tudo aquilo que nos permita imaginar e criar um mundo novo,
fundamentado no aprendizado das experiências de luta e resistência
anteriores. (BRIGADA PATATIVA DO ASSARÉ, 2005, p. 3)
O processo de construção dessas novas formas de organização social no MST,
compreende que, para essa transformação acontecer de forma libertadora, o conhecimento
precisa ser também um ato libertador e não uma doação, mas calcado no diálogo como
exigência existencial, que possibilita a comunicação e permite ultrapassar o imediatamente
vivido, intervir no contexto social, modificando a si e ao mundo, o que determina a
aproximação do MST a Augusto Boal e CTO,
Portanto, com a consciência de que para a efetivação de um projeto de
Reforma Agrária de cunho socialista seria preciso assumir a batalha no front
da cultura – qualificando militantes técnica e politicamente para iniciar um
processo de construção do imaginário de uma perspectiva coletiva – o MST
se aproximou de Augusto Boal e do Centro do Teatro do Oprimido.
(BRIGADA PATATIVA DO ASSARÉ, 2005, p. 3)
A perspectiva teatral apresentada pelo método boalino na construção entre diferentes
organizações – MST e CTO – se baseia no diálogo “(...) educador já não é aquele que apenas
educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando, que ao ser
educado, também educa (...)” (Freire, 1977, pg. 90). Desse processo dialógico, advém um
conhecimento que é crítico, porque foi obtido de uma forma autenticamente reflexiva, e
implica em ato constante de desvelar a realidade, posicionando-se nela. A história da relação
entre as organizações é anterior ao processo de formação da Brigada Patativa do Assaré,
Em 1990, no evento Terra e Democracia, organizado pelo Betinho com
apoio do IBASE, o CTO-Rio inicia um trabalho de atuação conjunta com a
metodologia do Teatro do Oprimido com o Grupo Camponês de Cultura Sol
da Manhã de Seropédica, Itaguaí, zona rural do Rio de Janeiro, tendo
apresentado dezenas de espetáculos em várias cidades e em várias
manifestações do MST. Foram criadas as seguintes peças: “As Duas Fases
da Reforma Agrária” (1990/1991); “Nossa História” (1992/1993/1994); “A
Crise da Fome” (1994/1995); “Jovem Rural” (1996/1997); “Impunidade”
(1998); “Quinhentos Anos de Luta pela Terra” (1999). Oficinas diversas e
palestras de Boal aconteceram ao longo desta [...]. (CTO – RIO, 2001, pg. 2)
Oficinas e palestras haviam sido feitas, mas a proposta de formar uma turma de militantes,
com a metodologia do Teatro do Oprimido, foi elemento novo e definidor na formação em
teatro do MST:
O CTO ministrou atividades formativas, socializando os meios de produção
33
da linguagem teatral para um grupo de militantes de vários estados, que têm
a tarefa de formar novos multiplicadores e novos grupos nos acampamentos
e assentamentos. (BÔAS, 2006).
Foram cinco etapas de formação – de 2001 a 2002 – entre o CTO e grupos de militantes de
vários estados do país que, por sua vez, formariam novos multiplicadores e novos grupos nos
acampamentos e assentamentos.
A deliberação levada a cabo na 2ª etapa de formação com Boal e o CTO foi materializada com
o surgimento de grupos de TO no movimento, e segundo Vilas Bôas, integrante do Coletivo
de Cultura do MST,
Atualmente o MST tem cerca de 30 grupos organizados em acampamentos
e assentamentos da Reforma Agrária. A maioria dos grupos atua em
dimensão local, participando de atividades culturais, formativas e políticas
em suas áreas e cidades vizinhas. Há também alguns grupos que, por terem
mais tempo de vida e experiência, atuam em dimensão regional e nacional,
se apresentando e ministrando oficinas em cursos de formação, em debates,
seminários e eventos culturais nos meios urbanos e rurais. 4
4
Rafael Vilas Bôas em entrevista concedida ao site do MST, em 06 de julho de 2006,
http://www.mst.org.br/node/2595, acesso em 03de outubro de 2012.
34
Figura 3 –Brigada Patativa do Assaré reunida com Augusto Boal e os coringas CTO. Fonte: acervo do
MST
35
Figura 4 – Veja criminaliza ações do MST. Fonte: Revista Veja, 10 de maio de 2010
Era preciso que os Sem Terra pudessem ver seus assuntos e problemas alçados à
condição de objeto da representação artística, e eles mesmos como sujeitos dessa
representação. A apropriação dos meios de produção teatrais passa a ser uma das lutas, ter o
direito de representar a si e sua realidade de forma não ditada pela classe dominante “a
palavra latifúndio assume para nós um significado simbólico que transcende a luta pela
desapropriação das terras improdutivas, que não cumprem com sua função social.” (Brigada,
pg.1) Ocupar o latifúndio do teatro.
O direito de representar a realidade está distante da vida das pessoas ou a
representação está associada às novelas das TVs. Augusto Boal, ao descrever sua experiência
teatral nas comunidades cariocas afirma que,
Felinto Santos, conhecido como Mineirinho, um dos militantes que participou das etapas de
formação com o CTO, afirma que uma das dificuldades era avançar na compreensão dentro
do próprio movimento de que o que estavam fazendo não era entretenimento e, sim, parte da
política:
Essa mesma distorção de que a cultura é separada da política, essa distorção
que separa a dominação cultural, principalmente no Brasil, exemplo a
dominação norte-americana no Brasil. Coisa muito bem pensada, que está
intimamente ligada. A esquerda coloca a cultura no lugar de entretenimento.
O MST faz o exercício de colocar a arte na formação, mas ainda estamos no
campo do exercício. (Mineirinho, em entrevista concedida a autora)
Ao optar pela apropriação do teatro era preciso construir um processo formativo em que os
Sem Terra tomam para si a representação da realidade e de enfrentamento aos padrões de
representação fincados nas novelas globais, “no início enfrentamos preconceitos, ouvimos
gente dizer que Sem Terra não sabia fazer teatro”. (GARGANTA, citado por SILVA, p. 23).
36
Figura 4 - Estandarte do Peça pro Povo, coletivo de teatro do MST do Rio Grande do Sul. Fonte:
Coletivo Peça pro Povo
37
Figura 5: Formação da Patativa do Assaré com Boal . Fonte: documentário de Nina Simões.
Figura 6: Formação da Patativa do Assaré com Boal. Fonte: documentário de Nina Simões.
38
Figura 7 - Formação da Patativa do Assaré com Boal . Fonte: documentário de Nina Simões.
39
podem receber menores salários porque são naturalmente inferiores, e etc. O Teatro Fórum
precisa expor a opressão machista como construção social e histórica, com determinantes
econômicos e culturais, ou seja, precisa expor, não a mulher contra o homem, mas a classe
contra o patriarcado. “No sentido marxiano, a totalidade é um conjunto de fatos articulados ou
o contexto de um objeto com suas múltiplas relações ou, ainda, um todo estruturado que se
desenvolve e se cria como a produção social do homem.” (CIVIATA, 2001, p.123). Se no
Teatro Fórum uma situação de opressão for debatida como de uma pessoa apenas, a
construção será de uma resposta individual, e o sujeito da ação passa a ser vítima. Se isso
acontece é preciso rever a práxis e a condução do Curinga, pois está indo de encontro à
proposta do método.
Nenhuma cena de Teatro-Fórum (técnica do Teatro do Oprimido) deve ser
exposta em escala microscópica sem que se vejam os elementos essenciais
do Mapa da situação… em um conflito particular, não devemos descer as
suas singularidades, conjunturais, mas subir ao estrutural: do fenômeno a lei
que o rege – as suas causas – Ascese! (Boal, 2009, pg.173)
40
Alegre. Marcava essas peças o fato de serem curtas e de mostrarem a busca do MST por
compreender e se posicionar politicamente diante de vários temas relacionados aos processos
de dominação. Os conflitos que a Brigada opta por fazer emergir nas peças fórum explicitam
a demarcação ideológica, assumindo papel de formação interna e externa.
Em A peleja de boi bumba contra a águia imperiá alerta para a ameaça do
aceleramento da mercantilização e avanço imperialismo norte-americano na América Latina,
contidas na proposta de criação da Área de Livre Comércio das Américas- ALCA. Em
Direito de comer direito conta-se a trajetória de uma mulher que vive as agruras da vida na
favela e que opta por entrar no MST.
Privatleite, peça escolhida para analisarmos, conta a história de Geraldo, um pequeno
agricultor que sai para vender o leite natural de sua vaca Mimosa e encontra as agruras do
avanço do agronegócio através das multinacionais que vendem o leite mais barato que o dele
e criminalizam a venda do leite dos trabalhadores rurais. Dona Fulgência, pequena
comerciante que comprava o leite natural de Geraldo, depois da chegada da multinacional
Parmalaite - nome que faz referência direta a empresa italiana de produtos alimentícios
Parmalat - só aceita fazer o negócio se for no preço vendido pelas multinacionais. Se antes
Geraldo vendia a quinze centavos, agora é nove centavos. Ao longo da peça Geraldo vai se
deparando com as contradições do sistema capitalista e com as dificuldades de se sustentar
com o trabalho no campo. Logo após vender o leite para D. Fulgência, Geraldo procura um
lugar para urinar e se depara com a privatização do banheiro da rodoviária, que agora custa o
equivalente a dez litros de leite da Vaca Mimosa. Geraldo decide então urinar na rua e é pego
no “ato” por uma Madame, propositalmente escandalosa, representante comercial da
Parmalaite que zomba do agricultor e o acusa de assédio, como é possível identificar no
trecho a seguir.
MADAME
Seu safado! Imoral! Você não tem vergonha de ficar com
esse instrumento deeeste tamanho de fora, não?! Você não
está vendo que isto aqui é uma via publica?!
GERALDO
Não, não, dona, não é nada disso não! É que da última vez
que eu vim à cidade tudo era melhor, era público! Hoje paga
até pra mijar, e é caro viu!
41
MADAME
Precisamos avançar! Estamos na era da globalização! Temos
que nos adaptar!
GERALDO
Ahh! Lá na roça não tem isso não! Tudo que a gente tem a
gente reparte.
MADAME
Se o que você produz no seu sitiozinho não lhe dá condições
para pagar um banheiro, vende esta porcaria e arranja um
emprego decente! Nós na Parmalaite pagamos quase um
salário para um faxineiro!
42
(UBERSFELD pg. 31), auxiliando na determinação da sintaxe da ação dramática, situadas no
âmbito da semântica, que se defronta com a ideologia (UBERSFELD, pg.32)
O modelo actancial não é uma forma, é uma sintaxe, portanto capaz de gerar
um infinito de possibilidades textuais. O que podemos tentar na esteira de
Greimas e de François Rastier, é uma sintaxe da narrativa teatral em sua
especificidade, sem esquecer que cada uma das formas concretas geradas
pelo modelo é: a. inscrita em uma história do teatro, b. portadora de
sentido, portanto em correlação direta com os conflitos. (UBERSFELD, pg.
34, grifo nosso)
43
Figura 8 – Diagrama do Modelo Actancial
44
patrão. Em oposição ao trabalhador Geraldo, temos a Parmalaite, empresa que industrializa o
leite, impedindo que o trabalhador rural possa vende-lo in natura a preço que pague pelo
trabalho empregado. A Parmalaite aqui representa a classe dominante, detentora dos meios de
produção e, é representada, no anti-modelo, por personagens diversos, sendo a Madame
principal portadora do discurso dominante, ela que não é a multinacional mas a representa e
age a partir da ideologia dominante, sendo vetor da exploração e humilhação por parte da
empresa ao trabalhador rural. Em nenhum momento da peça a Parmalaite aparece enquanto
personagem, mas suas ações predadoras mediam as relações entre os personagens que atuam
ao lado dela em oposição a Geraldo. O delegado e o guarda representam o Estado que age
como órgão de dominação de classe, ao invés de agir em defesa do trabalhador como
podemos ver na última cena da peça:
DELEGADO
Cale a boca sujeitinho! Claro minha senhora, volte sempre, venha tomar um
cafezinho com a gente. Vou ter uma conversa com esse sujeito que teve a
ousadia de molestar uma dama como a senhora.
MADAME
Vou aproveitar para convidá-lo para comermos um churrasco, na casa de
campo da empresa.
DELEGADO
Eu gosto muito, muito mesmo de churrasco! Ah, um churrasco com a carne
bem sangrenta, macia, adoro morder... (Se volta para Geraldo e assume uma
postura brusca.) – Qual seu nome indivíduo? Onde você mora? Você pelo
menos trabalha? Ande logo, se explique sujeito, seu caipira!
GERALDO
Eu vou contar desde o princípio: eu estava cantando uma música da roça pra
que a minha vaquinha me desse mais leite, quando...
DELEGADO
Não quero saber de seus problemas, muito menos de sua vaca Mimosa e do
seu leite. Eu estou aqui para cumprir a lei. Sujeito: você cometeu duas
infrações. Primeira, vendendo leite in natura: o leite deve ser entregue na
indústria para ser industrializado, e não vendido aqui na cidade. E a segunda
infração? Você anunciou duas, então descreva-as!
Se definirmos o Estado, no caso Guarda e Delegado, como actante opositor a Geraldo e a seu
45
objeto, agindo na criminalização do trabalhador e seu trabalho em favor da Parmalaite, além
de adjetivar o trabalhador rural como “caipira”, na tentativa de inferiorizar o povo camponês,
o Delegado e o Guarda atuam contra o desejo de Geraldo, compreendendo crime o trabalho
do agricultor, mas não compreendendo crime a privatização e o monopólio do leite por parte
da multinacional. Sendo então a Parmalaite – classe dominante, a Madame, o Delegado e o
Guarda, oponentes ao actante sujeito Geraldo – classe trabalhadora e seu objeto. A ação do
sujeito Geraldo, se destina aos trabalhadores enquanto classe, e é a mesma classe trabalhadora
organizada, com consciência para-si, que será adjuvante do objeto de Geraldo, mesmo não
sendo personagem no espetáculo. O modelo actancial a partir dessa perspectiva se organiza
da seguinte forma: Geraldo, motivado pelos trabalhadores rurais, a classe a qual ele pertence,
visando ao favorecimento também desses trabalhadores e da sociedade, busca ter direito de
continuar trabalhando vendendo o leite in natura, contando com o auxílio do povo camponês,
dos movimentos organizados e a oposição da Parmalaite como classe dominante. Ficando o
diagrama:
46
agora adjuvantes. Em oposição ao objeto do sujeito Parmalaite, teremos Geraldo e os
trabalhadores rurais, pequenos agricultores, Movimento Sem Terra, ou seja, a classe
trabalhadora em oposição a classe dominante. Ficando então a Parmalaite motivada pelo
sistema capitalista, visando o favorecimento desse mesmo sistema por ser ela parte dessa
classe dominante, que se expressa no agronegócio que busca a privatização e monopólio do
leite. Contando com o auxílio da Madame, Guarda e Delegado e com a oposição de Geraldo e
sua classe, os trabalhadores rurais e movimentos sociais. Ficando o diagrama:
Figura 11 - Brigada Patativa do Assaré ensaiando a peça Privaleite – na cena, a Madame denunciando
Geraldo à polícia.
Os participantes do fórum caminham dialeticamente entre as estruturas a depender de
como se desenrole o fórum, como se conduz, e quem sãos os espectadores que ao aceitarem
48
entrar no jogo cênico tornar-se-ão espect-atores. É no decorrer desse fazer e refazer-se que se
configura o desenvolvimento da práxis como ação e reflexão consciente.
49
destas formas teatrais cria um sentido de incompletude que procura preencher-se através da
ação real. Essa ação real é a própria prática do movimento. Quando um grupo social
organizado, no caso em um movimento, apropria-se dos meios de produção teatrais, temos
uma circunstância de formação e de atribuição de sentidos (CANDA, 2013), também coletiva,
mesmo que não negue o indivíduo enquanto sujeito, a apropriação dos meios de produção por
parte de um movimento social tem especificidades demonstradas na capacidade de
intervenção na realidade a partir da leitura feita dessa realidade, e do que se deseja para a
mesma. O desafio dos Sem Terra, ao fazer teatro, é colocar em cena as engrenagens da
máquina, a máquina em funcionamento e como desmontá-la, posicionando sua mensagem
política para superação da ordem vigente.
Questionar a subordinação, exploração e opressão que vive determinado grupo social,
por muitas vezes foi, e ainda é, síntese disparadora de inúmeras criações e/ou formas teatrais
em todo mundo. As práticas cênicas, forjadas na conjuntura do início do século XX na Rússia
e Alemanha, atuam na defesa de um teatro não-catártico, que permita a participação crítica e
ativa do espectador diante da encenação. Essas práticas ao se constituir a partir da
socialização dos meios de produção teatrais e levanta importantes questões: como seria/será o
teatro que, no despir dos fatos, faça emergir as relações sociais e econômicas da sociedade
capitalista? Qual lugar deve ocupar o espectador nesse teatro? Como deve ser essa
participação? Como apresentar o mundo como possível de ser modificado? Como fazer com
que isso se transforme em um projeto de classe?
50
2. ECOS HISTÓRICOS DO TEATRO DO OPRIMIDO
2.1 O teatro assumidamente político: o trânsito histórico do lugar do espectador.
A Revolução Russa, em outubro de 1917, pondo em relevo a classe trabalhadora sem
acesso à produção artística criou as condições para que a arte, especialmente o teatro, fosse
pensada, pela primeira vez, como um eficaz instrumento de mobilização das “massas”
visando acelerar o processo revolucionário. Uma arte que rompesse as barreiras entre os
espaços da criação e da contemplação e fosse capaz de se apresentar como efetivamente
popular, no sentido de ser identificada à classe trabalhadora, e contraposta à cultura burguesa
(GARCIA, 2004, pg 6-7), é no contexto da Revolução Russa que o teatro assumidamente
político se forja, e com ele elementos centrais do que viria a ser o Teatro do Oprimido.
A luta revolucionária e a construção do socialismo eram os temas privilegiados da
juventude organizada na União Soviética (URSS), a exemplo, a União de Jovens Comunistas,
apoiados pelo Partido e pelos Sindicatos, que passaram a organizar, em torno de clubes
operários, das fábricas e dos núcleos de bairros, diversas atividades culturais com o fim de
educação política. Dentre as diversas atividades da chamada agitação e propaganda ou
agitprop, levadas a cabo nos primeiros anos da Revolução destacavam-se as trupes
ambulantes, os barcos e trens de agitação, festas de massa em Petrogrado. Mudaram as ideias
e os conteúdos da arte, suas formas e métodos e o público para quem ela se dirigia. A arte
soviética tornou-se ativamente envolvida na luta pela transformação do país, o sentido de luta
de classes fez-se evidente nesse teatro que vai,
Diante dessa conjuntura de sangue e miséria, a Revolução triunfa com as bandeiras “Pão, paz
e terra.”, inconciliáveis com a burguesia imperialista que para manter-se no poder realizava
51
guerra, detendo cada vez mais os meios de produção, principalmente a terra, e espalhando a
fome, não imaginando que, diferente do que foi a Revolução Francesa, os russos queriam não
somente a substituição de um setor da classe dominante por outro, mas a tomada do poder
político por parte de quem produzia a riqueza do país, o proletariado,
Em março de 1917, avalanchas de operários e soldados se apoderaram do
Palácio da Táurida, obrigando a débil Duma Imperial a assumir o poder
supremo da Rússia. As massas populares, operários, soldados e marinheiros
passaram, assim, a dirigir a marcha da revolução. Derrubaram o Ministério
Miliukov. Foram seus sovietes que proclamaram ao mundo inteiro as
condições de paz da Rússia: “Nenhuma anexação, nenhuma indenização.
Direito de os povos disporem de si próprios. Marcharam”. E em julho, a
sublevação espontânea e desorganizada do proletariado, que assaltou
novamente o palácio da Táurida aos gritos de “Todo o poder aos sovietes!”,
demonstrou mais uma vez, que as massas estavam decididas a impor a sua
vontade5. (REED, s/d, pág 38)
5
A palavra soviete significa “conselho”. Durante o governo czarista, o Conselho Imperial do Estado
denominava-se Gossudarstviênni Soviete. Entretanto, após a revolução, o termo “soviete” foi empregado para
designar um tipo de assembleia eleita pelas organizações econômicas da classe operária: os sovietes dos
deputados operários, camponeses e soldados. (REED, s/d, pg. 30 – em “Dez dias que abalaram o mundo”)
52
Ao passo que a Revolução triunfa, o teatro vive também um momento transformador,
o drama burguês perde espaço enquanto forma “suprema” ao tratar de problemas individuais
como amor, traição, brigas familiares, em um momento da história em que o teatro, como o
povo, volta-se para resolver os problemas do coletivo, do público, da própria revolução. Há
uma inovação na estrutura de funcionamento dos grupos e no lugar do repertório clássico
passaram a predominar as formas curtas, que combinavam diversas estruturas dramáticas e
referências a gêneros tradicionais e modernos do teatro. O espectador passa a ser convocado
como sujeito criativo da ação cênica, procedimento que em muito se aproxima do espect-ator
do Teatro do Oprimido. Em alguns grupos e peças há o conclamar do mesmo a participar de
todo o processo de produção do espetáculo, que incluía o acompanhamento da escolha da
peça, seu estudo e de seu autor, dos ensaios abertos e, ainda, da preparação de cenários e
figurinos.
A participação do espectador no momento da apresentação deve ser apenas a
culminância de um processo de envolvimento que deve começar desde o
princípio, durante a preparação do espetáculo. Trata-se de socializar ao
máximo o processo do fazer de modo a instituir um espectador privilegiado
que não apenas frui a apresentação, mas participa crítica e ativamente de
todas as etapas de montagem. (GARCIA, 2004, pg.21)
No livro Teatro Político, escrito em 1929, o teatrólogo descreve o horror vivido por ele
nos campos de batalha de uma guerra que não era dos operários, mas da classe dominante,
que destruía vidas e sonhos da juventude proletária alemã. “13 milhões de mortos, 11 milhões
de mutilados...” (pg.21), e que o faz encontrar a consciência da necessidade do teatro
posicionado na luta de classes em favor dos trabalhadores
Pareceu-me necessário acenar a estreita ligação existente entre o nosso
trabalho e o processo de revolução social que, já faz dez anos, se realiza na
Europa, e sobretudo na Alemanha, com intensidade cada vez maior. O que
apareceu no campo do teatro não são acasos, nem pela sua origem, nem pelo
seu aspecto; pelo contrário, são efeitos lógicos, compreensíveis por si, de
uma luta que tem a sua origem nas raízes sociais e econômicas do nosso
tempo. (PISCATOR, 1968, pg. 19)
Piscator diz que nessa experiência estava a produção de uma arte que além de
propagandística, “eliminava o conceito burguês de arte e esboçava, pelo menos nos traços
fundamentais, uma nova arte proletária”. (pg.55). Com intuito de realizar um teatro que,
voltado para a razão do espectador, trouxesse esclarecimento e reconhecimento, Piscator
introduziu na cena moderna alemã elementos técnicos como projeção de fotografias das
personagens reais, que eram representadas no palco, e de sequências de documentários
cinematográficos, emprego de slogans escritos e projeções de textos como elemento de
ligação entre as cenas, coros falados – recurso bastante utilizado pelo agitprop alemão –
esteiras transportadoras (ou faixas correntes), praticáveis e plataformas sobre disco giratório,
6
O referido texto “Formas dramatúrgicas e cênicas do Teatro de Agitprop”, in Le theâtre d'agit-prop
de 1917 à 1932, de 1977, ainda não está oficialmente traduzido para o português, a versão utilizada
foi traduzida por Luís Filipe Montenegro Castelo, realizada para uma publicação sobre formas e
história da agitação e propaganda, e atualmente está em fase de ediçã o.
54
palco simultâneo, tornando o cenário polivalente e funcional, despido de qualquer elemento
decorativo, e também um novo estilo de representação descrito por Piscator como “distante da
caricatura, do esboço apenas externo dos caracteres, distante igualmente da caracterização
superdiferenciada, descritiva até nas derradeiras ramificações da alma” (19 68, p. 97-98), a fim
de realçar a proporção épica das peças encenadas e enfatizar o conteúdo político. A saída do
lugar de espectador passivo, depositário-ouvinte é também nos tempos da Revolução a saída
do proletário do lugar também passivo.
Havia que se criar o novo em perspectiva de ocupação e participação do espetáculo, já
apontando a necessária radicalidade na socialização dos meios de produção, calcada na crítica
ao teatro que mantém o espectador como parte distante, contemplando a imitação da vida que
se desenrola em cena. O espect-ator de Boal possui características marcantes do que foi o
espectador no teatro de agitação e propaganda soviético,
[...] predominância do jogo do ator – ou do atuante, se considerarmos que a
quase totalidade dos participantes dos núcleos agitpropistas não tinha
qualquer experiência anterior -; rompimento entre palco e plateia e intenção
explícita de provocar a reação crítica e ativa do espectador. (GARCIA, 2004,
pg. 34)
55
Azul7.
As mulheres hoje são espertas.
Elas fazem greve sem hesitar,
Batem a panela com o punho
E daí sairá leite certamente.
As peças do coletivo Blusa Azul se caracterizam por terem sido sistematizadas para a
multiplicação em representações Rússia adentro, pressupõem o compartilhamento do método
e a socialização dos meios de produção teatrais. A exigência da voz coletiva é parte
fundamental advinda com a Revolução Russa, que faz emergir outras formas teatrais para que
o conteúdo revolucionário possa ser posto em cena. A vida e a cena se enamoram, a
representação do real aqui se apresenta quando o operário interpreta um operário, quando a
operária se organiza para fazer avançar a Revolução rumo à emancipação da mulher está em
cena defendendo uma ideia que interfere em sua vida imediata.
Vindo à luz por força da guerra, atuando a partir da necessidade, o teatro de agitprop
conduz à discussão da eminente responsabilidade das formas; e da sua própria forma, que
nascida com Revolução, precisava caminhar com os problemas surgidos nela para não dizer
insistentemente o que já foi dito. Socializar o trabalho doméstico é uma ordem revolucionária,
mas como apresentar as contradições presentes na vida das mulheres formadas para servir?
Como um movimento social deve representar o avanço das privatizações, do monopólio do
leite e do desemprego? Em ambos os casos, TO e agitprop, corremos o risco de não ser mais
que um teatro de denúncia e circunstância, ou situarmos-nos à margem das práticas estéticas.
Na Peça-Fórum, o que se mostra é um personagem com um problema a ser resolvido,
como é possível identificar em Privatleite, o conflito é evidenciado mas não há ordem a ser
dada pela trupe de TO, pois o objetivo é que espectador seja transformado em protagonista da
ação dramática. (Boal 1975, p.169) Mas ao refletir sobre um espetáculo construído por um
movimento social, emissor de um projeto de sociedade, é possível afirmar que o que se quer
com a peça é garantir uma linha de atuação no âmbito ideológico que não permita
“escorregões”. Significa dizer que se a representação não identificar a opressão central entre
o agricultar Geraldo e a multinacional Parmalaite teremos um “nó” cênico. Não significa
afirmar que os actantes adjuvantes não são opressores, no caso a Madame, mas que é preciso
ir até a estrutura profunda, ir além do que se identifica na oposição entre o oprimido Geraldo e
58
as personagens que agem como opressores e em benefício da Parmalaite. Era preciso então,
que a Parmalaite fosse um personagem? Ou a presença do seu discurso pelos seus adjuvantes
é o suficiente para que o antagonismo de classe se evidencie?
[...] se o modelo representado em fórum tem por objetivo fomentar certa
homogeneidade ideológica nos espectadores, na ausência de intervenções
com este fim, a tarefa do Coringa torna-se ainda mais complexa: ele é
obrigado, não somente a resgatar o fio condutor da intriga, como também a
(re)centralizar o objetivo do fórum: a crítica política global. (PEREIRA,
2000, pg. 136)
59
Figura 13: Imagem do Espetáculo “O dia da Rússia”
Faz-se necessário, como já afirmado, para que não se caia em análises superficiais e de
psiciologismos, optamos por realizar a análise actancial também com a peça “O trabalho
doméstico e a operária” para, a partir dos actantes e seus desejos, identificarmos as estruturas
superficiais e profundas da peça, construída no período da revolução russa,
O cerne do conflito da peça é a oposição entre o trabalho doméstico e as mulheres
operárias. Elas querem ter direito à dedicação de 8 horas para cada uma das suas atividades
diárias: trabalhar, descansar e dormir; mas trabalham muito, dormem muito pouco e
descansam quase nada, ou seja, é encena-se a perpetuação da escravidão doméstica, mesmo
depois da Revolução, alicerce fundamental da velha estrutura que a tomada do poder por parte
do proletariado russo também precisava destruir. Ao definirmos as Operárias como Sujeito,
teremos o objeto (O) a emancipação das operárias, e sendo a URSS o contexto em questão,
também como oponentes o Trabalho Doméstico, Imperialismo, a contra-revolução, os
mencheviques. É possível e necessário acrescentar ao actante oponente o Patriarcado, de
modo a contemplar também, na casa dos oponentes, os homens, que mesmo operários, se
mantêm conservadores e machistas. Como adjuvantes das operárias, temos a própria
Revolução Russa, as mulheres organizadas, e Lênin – citado na música final como dirigente.
A ação do Sujeito-operárias é destinada pela Revolução Russa, e tem como destinatária
também a revolução, e é possível dizer, as mulheres do mundo. Ficando o modelo actancial
assim agenciado:
61
Figura 14 – Diagrama Modelo Actancial O Trabalho Doméstico e as Operárias
8
O referido texto “Les phases historiques de l'agit-prop soviétique”, in Le theâtre d'agit-prop de
1917 à 1932, de 1977, ainda não está oficialmente traduzido para o português, a versão utilizada
foi traduzida por Iná Camargo Costa, realizada para uma publicação sobre formas e história da
agitação e propaganda, e atualmente está em fase de ediçã o.
63
Brecht propõe uma Poética em que o espectador delega poderes ao
personagem para que este atue em seu lugar, mas se reserva o direito de
pensar por si mesmo, muitas vezes em oposição ao personagem. Produz-se
uma “conscientização”. (BOAL, 1991 p. 139)
A poética sistematizada por Boal, definida por ele como “Poética da Liberação”, ao propor a
própria ação possibilita que ao ser alçado à condição de espect-ator o público assuma o papel
protagônico, ensaiando as possíveis soluções, debatendo, preparando-se para a ação real.
(BOAL, 1991 p. 139) “A poética do oprimido é essencialmente uma Poética da Liberação: o
espectador já não delega poderes aos personagens para que pensem nem para que atuem em
seu lugar. O espectador se libera: pensa e age por si mesmo! (BOAL, 1975, p.169) É essa ação
que arvora o TO ao seu caráter pedagógico, e avança na formação da consciência através da
práxis do espect-ator que dá corpo e caminho à cena.
Dentre as modalidades do agitprop a experiência da peça dialética também se pautava
pela necessidade em ser didático e dialético. Os grupos que aderem a essa modalidade vão se
debruçar sobre o ensejo de construção de uma outra moral, costumes e práticas
principalmente no que tange as tarefas da juventude proletária na Revolução. Não há um
desfecho de um enredo linear, onde uma solução é apresentada. Com destaque nessa
modalidade (GARCIA, 2004) está a pesquisa cênica feita pelo Teatro de Agitação de
Leningrado - TRAM, Movimento Teatral da Juventude Operária, formado em 1919,
considerado um dos mais importantes grupos de agitprop dos anos 20. A modalidade é para
Jean-Pierre Morel, uma das tentativas mais originais do teatro de agitação depois de 1925,
por de modo didático envolver seu público na luta para mudar o que está estabelecido em vez
de lhe fornecer soluções prontas, afirmando que:
Ele renova o gênero das peças de agitação – melhoradas, quando não
redigidas coletivamente – e a maneira de as montar: o texto e a encenação
tentam mostrar a vida cotidiana não mais a partir de aspectos dos costumes
ou de conflitos pessoais, mas de atitudes e situações contraditórias. É um
trabalho de cena novo, que tem o objetivo de mostrar as contradições junto
com o que pode ser melhorado (MOREL,1977, s/p)
Brecht avança no que tange ao caráter pedagógico da peça dialética, e aponta com as
Lehrstücke o objetivo de desenvolver um pensamento crítico-reflexivo, ultrapassando o
caráter de mera transmissão de conceitos. O método dialético que se desenvolve no Teatro
Fórum assemelha-se ao Lehrstück pelo fato de que,
[...] os dois projetos rompem com as clássicas funções dos atores e dos seus
papéis, questionando profundamente a peça e sua problemática marxista.
Ambos os projetos pressupõem um investimento substancial dos atores e
64
espectadores. Neste investimento substancial a parte do sujeito não é
somente a da subjetividade, mas a de um interesse histórico e ideológico.
Lehrstück e Fórum questionam o teatro e sua essência comunitária, pela
reversibilidade de funções entre o modo agere e o modo spectare. Essa
reversibilidade permite a Boal criar uma nova relação entre o espectador, o
ator e a personagem” (PEREIRA, 2000, pg.140)
A recusa de Boal sobre a separação entre o palco e a cena enlaçada, a recusa do sujeito
Sem-Terra em esperar a transformação, associada a organização política – movimento social -
possibilita ao teatro do MST ocupar a cena ocupando o latifúndio. Quando a coletividade se
dá não somente no momento do espetáculo, têm-se a possibilidade de se propor uma
intervenção mais apurada e consciente. Identidade de classe pautada pela construção de um
mesmo projeto político. Não se trata de um teatro para os Sem Terra e sim de um teatro dos
Sem Terra, parafraseando Erwin Piscator e sua proposta de Teatro Proletário, que diz, “Não se
tratava de um teatro que pretendia proporcionar arte aos proletários, e sim uma propaganda
consciente; não se tratava de um teatro para o proletariado e sim de um teatro do proletário.”
(PISCATOR, 1968 ,pg. 51).
O ensaio da ação transformadora que se dá na peça-fórum quando os espect-atores são
os militantes de um movimento, é realizado de modo não somente diferente de espect-atores
não organizados, mas com potencial maior de transgressão, por ser um projeto comum de
sociedade defendido pelos participantes do fórum,
[...] as intervenções em uma cena de Teatro-fórum são frutos de um processo
de fruição da obra teatral pelo espect-ator, e envolvem questões como a
formação, as experiências anteriores em determinado contexto social e a
produção ideológica perante o mundo. (CANDA, 2013, pg.131)
Sabendo que,
[...] a arte do Sem Terra vai além das belas artes (música, poesia, teatro
dança, arquitetura, pintura e escultura), ligam à vida e a utopia socialista. A
65
educação artística sai de dentro das escolas porque os artistas espectadores se
transformaram em ‘artistas’ da própria história. (BOGO, 2002, p. 144)
66
Entre expulsarem ou não o opressor dentro de si. Entre se desalienarem ou se
manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre
serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão que atuam, na
atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados
em seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo... Só é
viável na e pela superação da contradição opressor-oprimido, que é a
libertação de todos. (FREIRE,1984a: 36).
Para Paulo Freire “os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, imersos na própria
engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de
correr o risco de assumi-la” (1978, p.36). É preciso atuar na transformação da consciência
escravizada (FREIRE, 1987) considerando que somos seres sociais, isso é determinante para
que a ação cênica contribua no processo da formação de uma consciência libertadora. O ser
social é um ser da classe. Em primeiro lugar por ter origem social; em segundo lugar por
desenvolver aprendizados extraídos da convivência que lhes dará consciência de si. Na
sequência, no fazer histórico, a consciência eleva-se ao grau de para si, tornando o sujeito
agente ativo na classe.
Somos o que somos porque pertencemos a uma determinada classe social,
cumprimos determinadas funções sociais e por isso “temos” que
desempenhar certos rituais, tantas e tantas vezes que por fim a nossa cara, a
nossa maneira de andar, a nossa forma de pensar, de rir, de chorar ou de
fazer amor, acaba por adquirir uma forma rígida, preestabelecida, uma
“máscara social”. É horrível, mas é verdade: se não nos precavemos, até
mesmo na cama acabamos por nos mecanizar; até o carinho acaba perdendo
a graça; até o amor se ritualiza. (BOAL, 1989, pg.18)
É neste sentido que Iasi (2007) resgata as complexas relações que há entre a “consciência em
si” e “consciência para si” estabelecidas por Marx:
67
necessidades vitais, mas que as diferenças entre as classes ampliam-se. A consciência, antes
de “estar dentro” do indivíduo como formação autônoma, ela é, um produto social: “é
naturalmente, antes de mais nada, mera consciência do meio sensível mais próximo e
consciência da conexão limitada com outras pessoas e coisas situadas fora do indivíduo que se
torna consciente.” (MARX; ENGELS [1845], 1986, p. 43). A compreensão marxista é de que
a consciência se forma a partir das relações que os seres sociais estabelecem entre si e com as
coisas existentes na realidade.
É preciso então que o espetáculo fórum dos Sem-Terra evidencie o confronto entre
projetos políticos e não somente entre pessoas, para que isso se revele em análise profunda, o
anti-modelo não é suficiente, é necessário enveredar pela estrutura interna da técnica mais
emblemática de Boal, (PEREIRA, 2000), o fórum. Para isso é insuficiente a determinação das
microestruturas textuais de um texto que tem em sua natureza ser incompleto e quando
completo, imediatamente mutável, podendo fazer-se e se refazer.
Para chegar ao lugar onde se articulam estrutura e história na análise de uma peça-
fórum é preciso inserir a ação do espectador, que alçado a espect-ator torna-se sujeito da ação,
considerando que somos seres sociais, isso é determinante para que a ação cênica contribua no
processo da formação de uma consciência libertadora, do contrário caímos no risco de fazer
do Teatro Fórum um drama novelesco, contribuindo com o individualismo e não com a
transformação dos indivíduos.
O objetivo não está em somente instaurar o debate e transformar o espectador em
espect-ator, há uma defesa de mundo a ser feita pelo Coringa na sua condução, para que a
criação cênica seja de conscientização e politização, e isso não pode significar manipular, mas
fazer as perguntas corretas a partir da proposta pensada em coletivo:
A educação como prática de dominação, que vem sendo objeto dessa crítica,
mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco
ideológico (nem sempre percebido por muitos que a realizam) é indoutriná-
los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão. (FREIRE, 1978
pg. 76)
O ser individual, para se fazer um ser social, necessita ir apropriando-se daquilo que já
foi objetivado por outros indivíduos que o antecederam. A experiência e a superação da visão
da aparência levam o ser social a se inteirar das contradições e consequências do movimento
cotidiano. A dialética nega que possam existir em qualquer parte do real, relações de causa e
efeito únicas, ela reconhece até mesmo nos dados mais elementares da realidade complexas
interações de causas e efeitos. O materialismo histórico destaca o fato de que na evolução da
68
sociedade multiforme e estratificada o processo total de desenvolvimento histórico-social só
se edifica com uma entrelaçada trama de interações.
Em nosso caso, ao analisar o teatro, o compreendendo como produto artístico (BOAL,
2009), sendo assim, não como um produto mecânico e passivo do processo econômico, como
o chamado marxismo vulgar apontou. É preciso compreender ainda o papel decisivo e
complementar junto ao desenvolvimento histórico da energia criadora e à atividade do sujeito.
Tal concepção assume grande importância não só para uma compreensão do papel histórico e
socialmente ativo do sujeito, mas também para esclarecer o modo pelo qual o marxismo
enxerga os períodos específicos da humanidade, o desenvolvimento da civilização e os
limites, a problemática e as perspectivas desse desenvolvimento. Seria a referência à
revolução?
O conceito de revolução em Boal é fluido. É possível dizer que se fala de uma
transformação profunda e não uma pequena mudança. “No essencial, porém, há pouca
confusão quanto ao seu significado central: mesmo na linguagem de senso comum sabe-se
que a palavra se aplica para designar mudanças drásticas e violentas da estrutura da
sociedade.” (FERNANDES, pg.56), que só se modifica a partir da ação consciente, no mover
da vida social, esta, “consiste em uma correlação de forças, em uma estrutura de violências, o
teatro estratifica esta correlação, estas violências e estas forças” (BOAL, pg.76, 2003)
A mudança drástica na qual Boal se debruça se faz clara e direta na crítica e no apontar
da necessidade de destruir o sistema capitalista, hoje em sua forma neoliberal: “O
neoliberalismo é feito sob medida para estimular o instinto predatório animal que subsiste na
maioria dos humanos e se propaga ao resto da Humanidade. Há que dizer Não!” (BOAL,
2009, pg. 20) É possível, através da metodologia do Teatro do Oprimido ensaiar a
transformação das relações de opressão e exploração vividas. Em cena, é possível desmontar
as diversas engrenagens que giram o Capitalismo, e aprofundar-se em uma delas como parte
da estrutura de opressão e exploração da sociedade de classes. Olhar para dentro, desmontar a
estrutura e cutucar, aprofundar suas expressões que são, no cotidiano, reveladas para no fórum
serem desveladas. A cena permite a pesquisa coletiva sobre a opressão, “é a preparação da
revolução, é o seu estudo, a sua análise, é o ensaio geral da Revolução.” (Boal, 1988, p. 19),
não significa que seja ela o suficiente para as transformações estruturais.
O teatro que aponta o desvelar de uma estrutura que é disputada entre as classes e
forças sociais incomoda os que precisam que essa estrutura permaneça, os que precisam da
exploração e a opressão para continuar como classe dominante. O criador do Teatro do
69
Oprimido afirma ser o teatro, há muito, arma utilizada pela burguesia como instrumento de
dominação, que necessita ser apropriado pelo povo, e chama-nos a lutar por ele: “o teatro
pode igualmente ser uma arma de liberação. Para isso é necessário criar formas teatrais
correspondentes. É preciso transformar.” (BOAL, 1991, p. 13). O lugar híbrido (PEREIRA,
2000) ocupado pelo espect-ator é um passeio entre a vida e a representação da vida nas
intervenções cênicas, primeiro passo para a apropriação dos meios de produção teatrais no
momento da realização da cena, quando o espectador aceita ocupar um lugar antes intocável.
Os Sem-Terra só tiveram seus problemas alçados à esfera da representação a partir da
socialização dos meios de produção por parte de Augusto Boal e o CTO. A presença da
dialogicidade freireana no método de Boal revela que a radicalidade de um discurso está
presente nas reflexões-ações que a trupe de TO provoca ao socializar os meios de produção
teatrais. Socialização esta, que se apresenta como pressuposto para o teatro que se propõe a
evidenciar os conflitos entre opressor e oprimido, para que o público não pendure o cérebro
na sala de entrada, (BRECHT, 1967, p. 44).
No Teatro-Fórum o poder que o ator detém é socializado com a plateia “[...] essa
invasão é uma transgressão simbólica. Simbólica de todas as transgressões que teremos que
fazer para que nos libertemos de nossas opressões” (BOAL, 2003, p. 38). O rápido
desenvolvimento das atividades teatrais no MST, a partir da intensa produção de montagens e
peças, oficinas, formação de grupos e apresentações, é atribuída à metodologia do Teatro do
Oprimido, adotada pela Brigada, exatamente porque com ela, garantiu-se a efetiva
socialização dos meios de produção teatral aos trabalhadores do campo9, “a mais radical na
socialização dos meios de produção teatral, pois rompe completamente a barreira palco e
plateia” (COLETIVO NACIONAL DE CULTURA, 2006, p. 19), a socialização implica por
sua vez, a alteração das relações de produção:
9
Cf. ESTEVAM, Douglas. “Trajetória de uma estética política do Teatro – Parte 2”, op. cit.
70
difusão do arsenal do teatro do oprimido tem alcance mundial, expressão do seu potencial
mobilizador. Brecht defendia a democratização dos meios como modo de alterar a
“engrenagem”, e para isso o trabalho do ator ganha centralidade em sua obra, é a cena que
modificará a reação do espectador, que a partir da proposta brechtiana passaria a refletir e
posicionar-se diante da representação, não somente identificando-se de forma catártica.
O Teatro ao tornar-se parte da organização do MST, cria uma estrutura cênica própria
do movimento. Ao ter em sua constituição a apropriação dos meios de produção teatrais por
parte de trabalhadores organizados em torno de um projeto político de sociedade, o teatro
torna-se local de debate e encaminhamento da ação coletiva. Têm-se não somente teatro, mas
a atuação orientada na forma de espetáculo. Ao serem alçados à condição de espect-atores os
Sem Terra não somente experimentaram o ensaio da ação real mas corporificam em cena o
discurso defendido pelo movimento.
(Bertold Brecht)
Na URSS, a agitação e propaganda era compreendida como uma das mais importantes
tarefas dirigidas com estímulo do poder soviético - as massas - e sob o controle da seção de
agitprop do Comitê Central, a agitação e a propaganda se conformaram para a vitória de
Outubro. Todo militante, não importa aonde atue na Revolução, podia ser um agitador, e
segundo o dirigente Lênin, o dever mais imperioso dos revolucionários: organizar a agitação
política sob todas as suas formas. Segundo Jean-Marie Domenach, o dirigente da Revolução
amplia o conceito de Agitação e Propaganda desenvolvido por Plekhanov, de instrumentos de
divulgação das ideias marxistas, de denúncia do capitalismo e de mobilização das massas para
também elementos centrais de formação da consciência da classe trabalhadora, de
organização, expansão e unificação da luta revolucionária. Estando ligados ao todo do
processo revolucionário, sendo o elo de ligação entre a teoria e a prática:
A correia de transmissão, o liame essencial de expressão, ao mesmo tempo
rígido e flexível, que continuamente liga as massas ao partido [ao
movimento, à luta], levando-as pouco a pouco a unir-se à vanguarda na
compreensão e na ação. (DOMENACH, 1955, pg.10)
10
Cf. KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. pp. 59-63.
73
A Gabriel cheguei a dizer:
Você não pode acreditar no maldito,
Onde está o soviete,
O maligno não se encontra.
É possível fazer um teatro ágil, de mensagem política clara e que possibilite não somente o
envolvimento do espectador na cena, mas sua ação nas contradições que ela apresenta? O
Teatro Fórum dá passos rumo a essa síntese estética que atua em perspectiva dialética? Pode-
se dizer que o teatro do oprimido no encontro com o MST é um passo histórico dado pelo
Teatro Político, indo além do agitprop, avançando na convergência entre explicitar as relações
sociais democratizando os meios de produção teatrais e apontando um projeto político em
cena?
Segundo Augusto Boal seu método não pode ser classificado como um teatro
proletário ou de classes. A reflexão feita por Boal, que o teatro do oprimido não é de classe, se
constrói a partir da afirmação de que mesmo dentro das classes oprimidas há opressores.
Aqui, afirma-se que o Teatro do Oprimido é um teatro de classe, mesmo que não somente
proletário, por principalmente enfrentar a classe dominante. Um homem trabalhador
explorado pode ser machista e oprimir sua companheira, também trabalhadora:
74
O teatro do oprimido não é um teatro de classe. Não é, por exemplo, o teatro
proletário. Esse tem como temática os problemas de uma classe em sua
totalidade: os problemas proletários. Mas no interior mesmo da classe
proletária podem existir (e evidentemente existem) opressões. Pode
acontecer que essas opressões sejam o resultado da universalização dos
valores da classe dominante (“As ideias dominantes numa sociedade são as
ideias da classe dominante” – Marx). Seja como for, é evidente que na classe
operária pode existir (e existem) opressões de homens contra mulheres, de
adulto contra jovens, etc. O teatro do oprimido será o teatro também desses
oprimidos em particular, e não apenas dos proletários em geral. Da mesma
forma que o teatro do oprimido não é um teatro de classes, igualmente não é
um teatro de sexo (feminista, por exemplo), ou nacional, ou de raça, etc.
porque também nesses conjuntos existem opressões. Portanto, a melhor
definição para o teatro do oprimido seria a que se trata do teatro das classes
oprimidas e de todos os oprimidos, mesmo no interior dessas classes. (Boal,
1980, p. 25)
Ao passo que compreendemos que a exploração do trabalhador por parte do patrão não
é a única questão a ser debatida pelo TO, não se coloca para Boal a anulação da existência de
uma classe dominante e seus valores dominantes. Saber escolher um lado não é tratar a
realidade de modo maniqueísta, a complexidade da trama de interações de uma sociedade não
pode ser simplificada. Aqui, identifico o Teatro do Oprimido como um método que
compreende e identifica as relações de opressão entre grupos sociais dentro de um sistema de
opressão e exploração que organiza a sociedade, e esta não é só capitalista, como também
racista e patriarcal. A perpetuação da opressão por grupos sociais favorece a classe social
75
dominante e não a classe trabalhadora. Significa dizer que a perpetuação do machismo
privilegia os homens e sustenta a classe dominante e suas ideias. Um homem negro
trabalhador que bate em sua esposa está se beneficiando do poder patriarcal e ao mesmo
tempo fomentando a sustentação de um sistema que também o oprime e explora. No método
de Boal o conceito de oprimido é identificado como o sujeito que ao tomar consciência da
injustiça sofrida em uma relação desequilibrada de poder, que beneficia um grupo em
detrimento do outro, luta para transformar a situação (BOAL, 2010, pg. 124). Essa relação de
poder está ligada de modo umbilical ao contexto histórico e social no qual grupo se insere, e
para o teatrólogo, a função da arte no contexto de opressão e exploração, é de criar
consciência, da verdade e do mundo.
Piscator, enfrentando a concepção burguesa da neutralidade na arte, o criador do
Teatro Proletário acreditava na necessidade de desenvolver um teatro comprometido com a
luta pela libertação da classe trabalhadora, essa produção teatral era um grito agudo e cortante
no ouvido dessa burguesia que também fazia teatro e do teatro lugar de propaganda. O teatro,
se pretendesse ser um teatro atual e representativo daquela geração que vivia a revolução viva,
não poderia mais dar vazão a outros impulsos que não os originados de forças políticas,
econômicas e sociais. As cenas particulares deveriam ser elevadas ao histórico, ou seja, ao
político, ao econômico e ao social, como ideia fundamental de toda ação cênica, pois somente
assim poderiam unir o palco às suas vidas. E é ao desenvolvimento desse teatro que o
encenador alemão irá se dedicar, ao surgimento do teatro épico.
A multiplicação das trupes de agitprop tem como determinante o momento histórico
da revolução russa, mas também a opção da forma que se propõe à socialização dos meios de
produção teatrais e ao desvelar das relações sociais de produção em cena objetivando não
somente a prática teatral mas o avanço da consciência de classe. A consciência passa ser o
elemento principal, tanto para o discernimento das contradições, quanto para a organização
das forças contrárias que buscam garantir os seus interesses. O ser social é um ser da classe.
Em primeiro lugar por ter origem social; em segundo lugar por desenvolver aprendizados
extraídos da convivência que lhes dará consciência de si. Na sequência, no fazer histórico, a
consciência eleva-se ao grau de para si, tornando o sujeito agente ativo na classe. A
experiência e a superação da visão da aparência levam o ser social a se inteirar das
contradições e consequências do movimento cotidiano.
As experiências na Rússia e na Alemanha, seja das trupes de agitprop, ou da produção
de Piscator e Brecht, questionavam e agiam para que o teatro enfrentasse o “programa” de
76
arte da burguesia. Alteram o lugar ocupado pelo espectador, e ao fazê-lo movimentam
também o debate em torno de como deve ser o teatro que no despir dos fatos sociais faça
emergir as relações sociais e econômicas da sociedade capitalista. “Há que se tomar partido,
juntar-se a um dos lados em conflito. Se formos éticos, este partido será sempre o dos
oprimidos.” (BOAL, 2009, pg. 35).
77
As críticas ao Teatro Proletário de Piscator, feitas pela revista Bandeira Vermelha, em
1920, o caracterizavam como propaganda. Isso, à época, era afirmar que o teatro feito por ele
não era arte, essa era demasiado sagrada para ter seu nome utilizado sem, segundo a revista,
de fato sê-lo: “A isso é preciso objetar: não se escolha, então, o nome teatro; dê-se ao filho o
nome verdadeiro: propaganda” (PISCATOR, 1968, pg. 56) Também na contemporaneidade a
crítica sobre o teatro piscatoriano e de agitação e propaganda sobrevoa compreensões
parecidas, “Arte tornou-se arma de propaganda e perdendo a sua qualidade emancipatória e
alternativa.” (GUINSBURG, 2002, pg. 157). As formulações brechtianas que atacam a arte
burguesa parecem, a essa mesma burguesia, “provocar ataque contra a arte em si”. Nessa
perspectiva, a arte quando voltada diretamente para ação política negaria a si mesma.
Ao confinar o teatro que assume a atuação na luta de classes a condição de “meras
peças de propaganda”, nega-se a condição política do teatro. É importante observar que as
experiências que construíram sua ação cênica ante uma estratégia de luta, e programa político
foram as que se propuseram à socialização dos meios de produção teatrais e a historicização
da cena. É somente quando os trabalhadores apropriam-se da linguagem teatral e tratam em
cena dos assuntos que lhes interessam enquanto classe que a cena torna-se doutrinária e um
não-teatro? Pierre Bourdieu ressalta esse caráter da aparência da autonomia do campo
artístico em relação à sociedade na medida em que a arte assumiu a função da distinção social
da burguesia no quadro de questionamento das hierarquias sociais baseadas nas linhagens e no
sangue. O saber de apreciação de uma obra de arte passou a ser valorizado e apresentado
como uma espécie de dom em torno de categorias universais, quando, na realidade demanda
um aprendizado específico e depende, principalmente, dos critérios relativos de definição por
cada sociedade do que pode ou não ser considerado como arte, como belo ou feio, como bom
ou mau gosto. O mesmo ocorreu em torno das capacidades de criação do artista, que passou a
ser considerado como um gênio.
As peças, quando pensadas para atuar na luta política, têm uma função organizativa
muito antes e muito além de se tornarem obras acabadas, se forjam na compreensão de que só
o engajamento não basta para constituir o teatro político. É exatamente ser teatro que o torna
78
potente arma transformadora e não um comício. A experiência da última modalidade do
arsenal do TO sistematizada por Augusto Boal, o Teatro Legislativo, destaca esse aspecto:
“Temos observado que, quanto mais teatralizada a sessão, (…) mais empenho têm os
participantes em expor com precisão seus pensamentos e sugestões. A teatralidade da cena
estimula a criatividade, a reflexão e a compreensão” (BOAL, 1996, pg. 123). Sobre o Teatro
Fórum, Boal, afasta a ideia de instauração de uma assembleia, como um lugar em que as
pessoas falam, reafirma a necessidade de ser mais e mais teatro a linguagem para que o
objetivo político e pedagógico se concretize. O teatro-fórum
Não deve perder tempo em longas explicações antes do início do espetáculo,
nem deve, depois de cada intervenção, permitir que a sala se transforme em
assembleia: quanto mais teatro, melhor, quanto mais for usada a linguagem
teatral e não apenas a verbal, mais aprenderemos esteticamente. (Boal 2003,
pg. 193)
Piscator e Boal clamam para a cena situações em que o próprio episódio histórico é
analisado. Ao fazê-lo transformam o teatro em um lugar de questionamento da sociedade. A
representação do real confronta o limite entre a realidade e a representação. Ao confrontar o
termo assembleia discorrendo sobre a prática do Teatro Fórum, Boal parece discordar quanto
à noção de assembleia no que tange ao espaço em que o debate acontece somente com a fala.
É preciso que além de discursar a pessoa ocupe a cena. É preciso agir mais e falar menos.
A última modalidade do arsenal do Teatro do Oprimido, o Teatro Legislativo prevê na
sua base a realização de sessões de teatro-fórum, que se tornam assembleias teatrais
encaminhando propostas que viram projetos de lei levadas à Câmara de Vereadores para
serem votados em sessões plenárias. As sessões são abertas aos participantes e realizadores
dos espetáculos fóruns, “verdadeiros atores sociais e teatrais, oprimidos da ficção e da
realidade” (PEREIRA, 2013). Não se trata somente de criar possíveis realidades, trata-se a
partir da realidade concreta, do episódio histórico, construir as peças. Nessa modalidade,
aproxima-se ainda mais o Teatro do Oprimido da concepção de assembléia cênica aqui
apresentada. Porque necessariamente, para ser Teatro Legislativo é preciso que não apenas o
debate cênico, completo e corpóreo aconteça, mas que haja encaminhamentos práticos,
proposições de alteração das leis. O que alça o Teatro do Oprimido à condição não somente de
tribuna, ou arma de propaganda, mas como munição para a ação no centro da luta política.
A proposta do Teatro Legislativo começa a ser desenhada em 1992, quando o Centro
de Teatro do Oprimido opta por apoiar o Partido dos Trabalhadores (PT) nas eleições
municipais do Rio de Janeiro que trazia como candidata à prefeitura, Benedita da Silva e
79
como opositor César Maia, candidato eleito pelo PMDB - aqui identifica-se novamente a
presença marcante da organização política. Na época estava proibida a participação de artistas
na campanha, mas Boal compreendia como importante posicionar-se frente à conjuntura de
avanço cada vez maior do neoliberalismo no Brasil, “Queríamos participar da campanha nas
praças cantando nossas músicas, fazendo Teatro Fórum sobre os acontecimentos do dia a dia,
usando máscaras, estetizando as ruas. Queríamos teatralizar a campanha” (BOAL,1996, p.
37). A proposta foi aceita pelo PT com uma ressalva: que algum deles se candidatasse a
vereador. O grupo propõe o nome de Boal, que só depois de muito tempo de discussão foi
convencido a candidatar-se, tendo como elemento definidor a crença na impossibilidade de
eleger-se, o objetivo era “participar das eleições fazendo um enterro festivo do CTO” (BOAL,
1996, p. 38), que passava por um momento financeiro crítico, em vias de fechamento.
Ultrapassando as expectativas do grupo, a campanha cresceu e Boal foi surpreendido pela
perspectiva concreta de se eleger vereador. Chegou a pensar em desistir, mas avaliando com o
grupo, optou pela ideia de, se eleito, atuarem teatralmente, através da máquina legislativa à
qual teriam acesso. A vitória impulsionou as atividades do CTO, incentivando e orientando a
criação de núcleos de Teatro do Oprimido nas comunidades, onde seriam debatidas
artisticamente questões políticas de interesse comum, formulando os projetos de lei que Boal
defenderia na Câmara dos Vereadores.
No Teatro Legislativo, o eleitor não deve ser apenas “um mero espectador das ações
do parlamentar, mesmo quando corretas: queremos que opine, discuta, contraponha
argumentos, seja responsável por aquilo que faz o seu parlamentar” (Boal, 1996, pg.46). Com
essa experiência “treze desejos vindos da população, através do teatro, são hoje lei!” (Boal,
2004, pg. 3), mais de 16 grupos de Teatro Legislativos foram formados, fazendo diversas
apresentações, coletando sugestões que se tornaram projetos de lei, além de grupos que
passaram a utilizar o Teatro Legislativo. Assim, o teatro passa a ser não apenas político, mas
também uma das formas pela qual a atividade política se exerce.
80
Figura 15: Mandato Político Teatral de Augusto Boal/RJ
81
palavra, trata-se de uma velha ideologia que desempenha uma função política nova e, em
parte, paradoxal: a de exaltar o mercado em benefício dos monopólios e contra os direitos
sociais.” (BOITO, s/d, pg. 80)
É nesse contexto que o Teatro Legislativo surge, propondo que os participantes do
Fórum além de do debate em cena formulem leis para que sejam defendidas na Câmara de
vereadores, garantindo, assim, os direitos sociais, sendo esse o principal objetivo para
trabalhar com os problemas do povo em um mandato, que tinha na estrutura uma rede de
parceiros, organizado em ELOS e NÚCLEOS.
Além das leis, Boal levava os debates ocorridos na Câmara para os Núcleos,
colocando o teatro no centro da ação política, e não somente se contentando em fazer o teatro
político. Os sujeitos da cena tornam-se “verdadeiros atores sociais e teatrais, oprimidos da
ficção e da realidade.” (PEREIRA, 2000, pg. 3). A proximidade do Teatro Legislativo de Boal
do Teatro Proletário de Piscator se evidencia na transformação da cena em local de decisão e
encaminhamento, como uma assembleia. Os trabalhadores são o público de ambos os
encenadores. Aproximando-se do teatro na concepção piscatoriana que deveria ser um local
de reunião, comunhão, reflexão coletiva. O espectador era provocado a posicionar-se ali,
durante o espetáculo, e não somente na volta para casa aos cochichos com um conhecido. Um
exemplo foi a encenação de Fahnen (“Bandeiras”), de Alfons Paquet, dirigida por Piscator
em 1924 reproduzindo um julgamento de anarquista em Chicago em 1886. Além de ter se
destacado por adotar uma variedade de técnicas, tais como o uso de letreiros e de quadros
estatísticos, a exibição de slides e filmes e a presença de canções e de um coro, no intuito de
82
evitar a monotonia, colocou-se uma dupla tarefa: a primeira era romper com a produção
capitalista no teatro, substituindo, como na União Soviética, a hierarquização das relações
internas de trabalho e entre o teatro e os espectadores pela ação coletiva. A segunda era o uso
da arte como propaganda e educação política das massas (GARCIA, pp. 55-56.) Na revista
Bandeira Vermelha, de 12 de abril de 1921, em discussão feita por Canavas e Jung, diz-se
que:
[...] existe um discurso de que a arte não deveria ser usada como ferramenta
política sob pena de ser imposta e, nesse sentido, contradizer o seu signo (no
sentido semiótico do termo). Além disso, essa forma de dialogar com a
sociedade suscita questionamentos por parte da academia, principalmente no
que se refere aos aspectos teatrais do teatro legislativo, concernentes à
linguagem e à estética dessa forma teatral. (CHRISTINA pg. 48).
Questiono aqui sobre o que confere coerência interna a uma obra. Ao passo da
83
concordância que as obras de arte tem lógica própria, a análise tem o dever de identificar
(COSTA, 2004) a que aquela obra se propõe. Augusto Boal (2009) partindo do ponto de vista
de Alexander Baumgarten, que entendia a Estética como uma forma de comunicação através
dos sentidos: “a estética (como teoria das artes liberais, como gnoseologia inferior, como arte
de pensar de modo belo, como arte do análogo da razão) é a ciência do conhecimento
sensitivo.” (Baumgarten, 1993, p. 95). O sistematizador do Teatro do Oprimido afirmou em
sua última pesquisa, ser preciso que o oprimido se reaproprie da Imagem, da Palavra e do
Som. Repudiando a ideia de uma única estética, o teatrólogo contrapõe algumas das críticas
feitas ao TO, afirmando ter, o Teatro do Oprimido, uma estética própria, criada pelos atores e
espectadores.
Rebento
substantivo abstrato
O ato, a criação, o seu momento
Como uma estrela nova e o seu barato
que só Deus sabe, lá no firmamento
Rebento
Tudo o que nasce é Rebento
Tudo que brota, que vinga, que medra
Rebento raro como flor na terra,
rebento farto como trigo ao vento (…)
(Gilberto Gil)
Ao se referir ao trabalho alienado, Marx (1964), diz que o trabalho externo, o trabalho
em que o ser humano se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de mortificação.
Sacrifício e mortificação são características que reduzem o sentido de gênero do ser humano
(BOGO, 2011), mortificar é matar a criatividade, é deixar de forjar o belo (MARX, 1964), o
84
trabalho alienado na sociedade capitalista é, para marxistas, a base material de sustentação da
exploração e opressão. Para os que com ele concordam faz-se necessário “(...) reverter o curso
da acelerada desumanização dos oprimidos nesta época sombria.” (BOAL, 2009, pg. 168), e
para isso, é preciso recuperar a capacidade de reprodução de si e da realidade, desalienar o
trabalho ao passo que se desaliena os sentidos, humanizando o trabalho, recuperando a
capacidade criadora.
Esse caminho não é simples como é simples descrevê-lo. Piscator, (19 68) afirmava que
esse processo de reapropriação da capacidade criativa consciente, chamada por ele de
libertação cultural, se daria pari passu com a libertação política e econômica da classe
trabalhadora. Não seria possível, para ele, como marxista, alterar uma parte apenas. A arte
não é um retalho solto, é parte, é engrenagem de uma grande máquina; em seu caso, máquina
em funcionamento no ascenso das lutas revolucionárias na Europa. O fato é que aqui
queremos nos debruçar sobre a recuperação da capacidade criadora, a partir da afirmação de
Boal de que “(...) Mesmo que alguns não sejam capazes de criar um produto artístico, todos
são capazes de desenvolver um processo estético” (BOAL, 2009, pg. 169). O produto
artístico, a obra de arte, entendido como o que é feito, que “deve ser capaz de despertar ideias,
emoções e pensamentos semelhantes aos que levaram o artista à sua criação.” (BOAL, 2009,
pg. 118); e o processo estético, o fazer que “(...) desenvolve nossas capacidades perceptivas e
criativas atrofiadas, aumenta o nosso poder de metaforizar a realidade.” (BOAL, 2009, pg.
118).
A pesquisa feita pelo teatrólogo afirma avançar em duas teses principais:
1 — existem duas formas humanas de pensamento – Sensível e Simbólico
–, e não apenas esta que se traduz em discurso verbal. São formas
complementares, poderosas, e são, ambas, manipuladas e aviltadas por
aqueles que impõem suas ideologias às sociedades que dominam; 2 —
como todas as sociedades estão divididas em classes, castas, etnias, nações,
religiões e outras confrontações, é absurdo afirmar a existência de uma só
estética que a todos contemple com suas regras, leis e paradigmas: existem
muitas estéticas, todas de igual valor, quando têm valor. (2009, pg. 16)
Boal envereda pela necessidade da reapropriação desses dois Pensamentos, o sensível, criador
da arte, da cultura e do simbólico, que tem no cerne as palavras. O teatrólogo afirma ser a
isso que se propõe o TO: contribuir para que se desenvolvam esses dois pensamentos nos
oprimidos. Pensamentos esses que historicamente foram “atrofiados em prevalência de um
pensamento único” (BOAL, 2009, pg. 184), sendo organizado pelos opressores, “os que
oprimem impõem aos oprimidos sua visão do mundo e de cada coisa desse mundo, para que
85
sejam obedecidos e reine a sua paz.” (BOAL, 2009, pg. 106) e reproduzido pelos oprimidos e
explorados:
No caso da cultura, esta “criação” cultural que interessa a elite, passará a ser
“consumida” sem o mínimo de senso interpretativo, apenas reproduz por
estar condicionado pela propaganda e pelos símbolos estabelecidos. As
pessoas não se reconhecem naquilo que foi produzido. (BOGO, 2003, p. 4 –
5)
Esse Pensamento Único produz um imaginário que anula a vivência histórica de outros
sujeitos políticos que não os das elites
Com o controle das elites econômicas sobre os meios de produção da
televisão, do cinema, do rádio, de jornais e revistas, há a produção da
legitimação de um imaginário e de uma idéia de realidade que suprime o
ponto de vista das classes populares. Com o discurso único das elites ocorre
um complexo processo de naturalização da barbárie, das desigualdades
sociais estabelecidas e das relações políticas (ou de poder). Contra o
monopólio dos meios de representação da “realidade”, um projeto de
transformação precisa se contrapor com técnicas e linguagens capazes de
colocar em xeque as formas de dominação, gerar alternativas coletivas,
apontar caminhos para outras formas de organização social. (MST, 2007, pg.
10)
Para se libertarem, “(…) os oprimidos devem descobrir sua própria visão da sociedade, suas
necessidades, e contrapô-las à verdade dominante, opressiva” (BOAL, 2009, pg. 106). Ao
MST surge “(…) o desafio de desencadear um processo que chamamos de desalienar a
cultura, que é tornar consciente e ter o controle da produção da vida em outras bases”
(BOGO, 2003, p. 4 – 5), para tal, a Estética do Oprimido propõe a alfabetização dos sentidos
através da apropriação dos meios de produção. Precisamos nos alfabetizar em falar, ver, ouvir,
Existe uma relação fundamental entre a matéria que são os nossos sentidos e o significado, a
simbologia, o conhecimento, a experiência contemplativa que estão por trás destes. Em “um
mundo de especialistas insensíveis à realidade cotidiana produzindo instrumentos, técnicas e
conhecimentos colocados à disposição de massas anestesiadas que necessitam emoções cada
vez mais violentas para sentirem alguma coisa e afirmarem sua existência. ” (DUARTE, 2000,
pg. 220) e “(...) visto que este século nos ensinou e continua a nos ensinar que os seres
humanos podem aprender a viver nas condições mais brutalizadas e teoricamente
intoleráveis” (Hobsbawn, 1995, pg. 22), compreender e apreender os sentidos da produção do
gênero humano, precisa se dar no mesmo passo da ação sobre o que sustenta a dominação dos
sentidos. Atuar no enfrentamento à ordem vigente brutalizada, perpassa por compreender o
sensível como parte do todo, e não apartada do processo de alienação e libertação.
87
Nenhuma obra de arte será capaz de ajudar a produzir um imaginário
desmercantilizado se em algum nível não estabelecer uma relação crítica com
o próprio ato de consumir imagens e representações. Se a mercadoria aliena o
valor de uso em favor do valor de troca, a desmercantilização da arte
pressupõe sempre uma desalienação de sua utilidade. (CARVALHO, s/p,
2003)
Essa prática, definida como sistema interno pelos militantes do MST que compõem a Brigada
de Teatro do MST, essa apropriação, só é possível ao passo que se desmercantilizam os meios,
Uma estética democrática, ao tornar seus participantes capazes de produzir
suas obras, vai ajudá-los a expelir os produtos pseudoculturais, que são
obrigados a tragar no dia-a-dia dos meios de comunicação, propriedade dos
opressores. Democracia estética contra a monarquia da arte. (Boal, 2009,
p.167)
No MST, por meio de seu modo de produção específico, não só o conteúdo das peças é
transmitido, mas também o próprio processo de criação das obras e sua produção. Tem-se
forma e conteúdo constituídos em moldes diferentes dos da competição engendrada ao
sistema capitalista. Por meio da mediação dialética entre a matéria do processo social e a
forma estética, para o movimento, a arte para o MST deve proclamar a sua liberdade em
relação ao princípio da propriedade.
88
3.2.2 – O trabalho coletivo
Prezar pelo trabalho coletivo, é característica tanto do MST, enquanto movimento,
como do Teatro do Oprimido e das trupes de agitprop. A desmercantilização do trabalho
cênico tem no caráter coletivo pilar central para a socialização dos meios de produção teatrais,
e desponta desde a 1a etapa de formação da Patativa com o CTO.
89
É preciso, nessa pesquisa, sublinhar que o desenvolvimento do teatro no MST não é
somente o modelo de propaganda e difusão de perspectivas e ideais, ainda que este possa se
constituir como um aspecto central.
A peça Alcapeta tem três personagens, Juvenal, o caipira, João Bogo, um homem que está
sentado na praça lendo um jornal, e Alcapeta, a personificação da Alca. É desenvolvida a
90
partir do diálogo entre os dois primeiros personagens citados, Juvenal tenta vender farinha
para João Bogo a todo custo e a conversa entre os dois envereda pelas agruras da vida no
campo e na cidade. João Bogo diz a Juvenal o que vai acontecer com o Brasil, caso a proposta
da ALCA seja implementada no Brasil. Ao final aparece Alcapeta que se oferece para comprar
toda a farinha de Juvenal. Abaixo um trecho da peça destacado na tentativa de contemplar o
lugar ocupado por João Bogo de debater a conjuntura com Juvenal e o elemento da
refuncionalização do clichê caipira caracterizado por Costa,
JOÃO BOGO
Como eu estava dizendo, em 1983 os cientistas pegaram oDNA de um vaga-
lume com o DNA de um pé de fumo, ou
seja, pegaram o gene do vaga-lume, com o gene do pé de
fumo e juntaram os dois, e a noite o pé de fumo ilumina.
JUVENAL (assustado, olhando sério para João Bogo)
Como é que é o negócio aí?
JOÃO BOGO
É, parece inacreditável, mas é verdade.
Juvenal cai numa gargalhada demasiada, erguendo as pernas,
balançando a cabeça, como se estivesse duvidando de João Bogo.
JUVENAL
Um pé de fumo com luz.
JOÃO BOGO(irritado com o comportamento de Juvenal)
O senhor acha que eu estou mentindo? Estou tentando ajudar
e o senhor fica com palhaçada. Eu tenho mais o que fazer.
JUVENAL
Não. Calma moço, eu tô brincando, mas é legar, rapaiz.
JOÃO BOGO
Legal? Brincar de Deus é legal?
JUVENAL
É legar, aonde mora este cientista?
JOÃO BOGO
Sei lá. Deve morar nos EUA.
JUVENAL
Eu vou lá, vou vendê o meu jegue e vou falá com este tar
de cientista.
JOÃO BOGO
Pra quê?
JUVENAL
Pra eu fazê um negócio pra mim.
JOÃO BOGO
Fazer o quê?
JUVENAL
Vou pedi pra ele cruzá o fumo com o meu isqueiro.
JOÃO BOGO
Pra quê?
JUVENAL
Pro fumo já vim aceso!
Juvenal ri muito com sua própria piada.
91
O riso é provocado e provocador, sua expressão é também reflexão acerca da sua
produção, o teatro político não é ausente de emoção, mas sublinha que as emoções devem ser
submetidas à crítica, por quem está na comunhão do espetáculo, independente do lugar
ocupado. Os produtos artísticos estão sempre carregados de sentidos referentes aos lugares
onde se expressam. Podemos considerar que não há “um sentido apenas”, mas vários sentidos
podem estar associados à mesma palavra, imagem, som. “O referencial para a sua
qualificação, além do contexto, depende das categorias de análise nas quais o sujeito da
interpretação se ancora” (BOGO, 2011, pg. 91). Significa que o ser que fala é antes um ser
que ouve e assimila sentidos.
Não são só as coisas, em si mesmas, que são cultura, mas também o
conjunto das condições sociais nas quais essas coisas se produzem e são
usadas, nos objetivos e formas de produzi-las. Hábitos, costumes, rituais e
tradições; crenças e esperanças; técnicas, modos e processos; sobretudo
valores da ética, como proposta, e da moral vigente – tudo isto forma a
cultura, que, em cada momento histórico, revela o estado das forças sociais
em conflito – ou, dele, boa parte. (BOAL, 2009, pg. 32-33)
Alcapeta se insere numa grande campanha realizada em 2002 por centenas de movimentos e
organizações sociais: o Plebicisto Popular contra a Alca, que teve mais de 10 milhões de votos
em todo o país e foi ação fundamental de construção de força social para barrar a proposta do
então presidente Fernando Henrique Cardoso. Quando se refuncionaliza a diversão, e a
mesma deixa de ocupar o lugar de mero entretenimento, vai-se de encontro à identificação e
catarse aristotélica, e também de encontro à classe dominante e seu Pensamento Único. A
mensagem política dessa peça e de outras realizada pela atuação de 300 militantes do Setor de
Cultura do MST no Mato Grosso do Sul foram combatidas pelos poderosos em favor da Alca
ao ponto de algumas câmaras legislativas municipais formularem leis impedindo a
apresentação dos grupos do MST em escolas, criminalizando a ação teatral dos Sem Terra,
negando o direito de representação da realidade por parte desse sujeito.
92
Figura 16: matéria veiculada pelo Jornal Sem Terra, de agosto de 2007
93
Figura 17 – Manifestação contra a ALCA no Rio de Janeiro/RJ, ano: 2002. Fonte: Sinterj
Importa revelar em cena o conjunto das relações sociais. Do contrário não se vai muito além
de condenar a ação capitalista por sua ausência de espiritualidade, ou glorificar ações
individuais dos oprimidos que reagem.
12
Brigada Estadual de Cultura do MST / MS - Filhos da Terra, sob a direção do grupo Teatro de
Narradores. “Exploração do trabalho” (outubro de 2004). In: Coletânea de peças construídas
coletivamente pelos grupos teatrais que integram a Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do
Assaré. Fevereiro de 2005.
95
Figura 18: Princesa Izabel. Fonte: http://www.aascj.org.br/
96
conscientes; trabalhamos para multiplicadores, não para consumidores.
(BOAL, 2009 pg. 253)
Figura 21: “A burguesia quer do artista uma arte que corteje e adule seu gosto medíocre” (J. C.
Mariátegui) Foto: reprodução
Esses 30 grupos que compõem a Brigada Nacional de Teatro Patativa do Assaré, são
parte do Coletivo Nacional de Cultura do MST, criado com o fim de organizar o debate e a
construção da arte e da cultura nos estados, acampamentos e assentamentos. O coletivo, desde
a sua criação, em 1996, além da formação com o CTO, promoveu várias atividades, alguns
exemplos; Oficina Nacional de Música (1996), o Seminário: A Cultura e o MST (1998), o
Seminário Nacional sobre Cultura (1999), o I Festival de Músicas da Reforma Agrária (1999),
a Oficina Nacional de Artes e Comunicação (2000), as Oficinas de Artes das Grandes Regiões
– Norte, Nordeste, Sul, Sudeste, Centro-Oeste (2001), a 1ª Semana Nacional de Cultura
Brasileira e da Reforma Agrária (2002), o 1º Encontro Nacional dos Violeiros (2003), a
Oficina Nacional de Artes Plásticas e Música (2003), o 2º Encontro Nacional dos Violeiros
(2004), a II Semana Nacional da Cultura e da Reforma Agrária (2004), o I Festival Latino
Americano de Música Camponesa (2004), o Seminário Arte e Cultura na Formação (2005) e o
III Encontro Nacional de Violeiros (2005), (MITTELMAN, 2006).
Todas essas atividades são parte da atuação coletiva alocada na luta política, que
reivindica o contar de sua própria história sem interlocutores, e demarca que sem a
socialização do conhecimento apreendido não é possível recuperar a capacidade enquanto
classe, de representação de si e da realidade. Por vezes a cultura assume para o MST, a
formação da consciência social e formação da identidade de classe,
[...] Corrigir desvios culturais também surgidos a partir da convivência
98
social, e possibilitar a formulação e a prática de novos valores culturais. [...]
saber destacar qual é o espaço que cada área pode ocupar na educação
ideológica dos trabalhadores Sem Terra. Os objetivos desta educação
mostram o modelo espiritual que se pretende formar no indivíduo, o caráter
as suas qualidades, características, vocações etc. A firmeza ideológica virá
quando as concepções se harmonizam com as obras, ações e comportamento.
(BOGO, 2003, p. 4 – 5)
99
oprimidos de cada povo. Queremos promover a multiplicação dos artistas.
(BOAL, 2009, pg.46)
Figura 22: Augusto Boal, Movimento Dos Trabalhadores Rurais sem Terra em Courtesy of Center for
the Theatre.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
101
relacionados à função, forjando uma estética própria dos sujeitos que se apropriam dos meios
de produção teatrais, o que possibilita a afirmação da estética Sem Terra. Ao criar formas
próprias de fazer arte, o MST torna o teatro ação alocada numa estratégia maior, atuando em
perspectiva coletiva nacional e internacionalmente. “Augusto Boal, desde a década de 1960,
tinha plena consciência da parte que cabe aos trabalhadores de teatro na construção desse
projeto radical de sociedade”(PATATIVA, 2005, pg.1), e se “O homem simples vê no teatro o
templo das musas, onde só se pode entrar de casaca e correspondente boa disposição.”
(PISCATOR, 1968, pg. 42) o MST ocupa esse templo e o profana:
Com a criação do espect-ator, Boal organiza na própria cena, a socialização dos meios
de produção, ao fazê-lo com um movimento social que pressupõe a socialização não somente
do modo de produção teatral, mas do modo de produção e reprodução da vida humana, vai-se
além da condição de espetáculo, questiona-se a fragmentação e mercantilização do mundo
contemporâneo; o teatro é no MST não somente emissor de um projeto, e sim parte de um
projeto político coletivo de sociedade.
Enveredar pelo Teatro do Oprimido da Brigada Nacional de Teatro Patativa do Assaré,
descortinar a prática teatral do MST, suscita algumas questões que pretendem ser
aprofundadas em um próximo estudo. Concluo, que o arsenal boalino, quando apropriado por
um movimento organizado tem potencializada sua ação de socialização dos meios de
produção, mas o teatro feito por esse movimento. É possível afirmar que essa parceria, MST e
CTO, resulta em uma nova síntese estético-política, que se forja como avanço histórico do
Teatro Político brasileiro, expresso na Estética Sem Terra?
Uma das dificuldades encontradas, dentre as tantas, foi não ter sido possível assistir
espetáculos da Patativa do Assaré, o que limitou a análise e o identificar do sistema interno
com olhos na prática. Sabendo que um sistema interno não é um receita de bolo, nos
perguntamos se o sistema interno teatral Sem Terra, organizador da Estética Sem Terra,
apontados em quatro elementos: A) desmercantilização e socialização dos meios de produção
102
teatrais; B) trabalho coletivo; C) a refuncionalização; D) método materialista histórico
dialético, parecem elementos que se utilizados por outros movimentos sociais na conformação
de suas práticas teatrais tem-se a possibilidade maior de emissão de projetos políticos com
vistas à emancipação humana. Mas isso só se confirma indo à prática cênica, tornando-se
espect-ator para pensar na cena as questões colocadas. É preciso experimentar cenicamente o
que aqui pudemos estudar, que venha o futuro, que venha o palco, porque como bem nos disse
o guerrilheiro baiano Carlos Marighella, “é preciso passar a ação”.
Figura 23: Homenagem a Boal feita pelo MST na Escola Nacional Florestan Fernandes – ao centro,
Maria Rita Kehl, vice presidente do Instituto Boal e João Pedro Stédile, da direção nacional do MST
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