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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE TEATRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

MAÍRA SILVA GUEDES

Vou aprender a ler pra ensinar minhas camaradas:


O teatro do Movimento Sem Terra e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal

SALVADOR
2015
MAÍRA SILVA GUEDES

Vou aprender a ler pra ensinar minhas camaradas:


O teatro do Movimento Sem Terra e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal

Dissertação apresentada à Escola de Teatro da


Universidade Federal da Bahia como obtenção do
título de Mestra em Artes Cênicas.

Orientadora Profa. Dra. Antônia Pereira Bezerra

SALVADOR
2015

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3
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DEDICATÓRIA

O título da dissertação, traz o trecho de um samba de roda do Recôncavo baiano,


“Vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas” e foi por mim adaptado para “(...) minhas
camaradas”. A adaptação é uma homenagem às mulheres trabalhadoras organizadas em cada
canto de nuestra Latino America, às quais dedico essa dissertação, por me ensinarem todos os
dias a não desistir. Camaradas é um termo utilizado para se referir a comunistas, porque eu
“quero a utopia, quero tudo, e mais...”1

Ação internacional da Marcha Mundial das Mulheres em 2010, atravessando o estado de São Paulo
2010. Foto: João Zinclar

1
O trecho da música de Milton Nascimento, “Coração Civil”, gravada em 1981, do álbum
Caçador de Mim.
5
AGRADECIMENTOS
Por sorte e gosto não escrevi essa dissertação sozinha, as páginas que aqui seguem são
resultado de muitas mãos. Sínteses de pesquisas e formulações de anos da classe trabalhadora
organizada, junto a elas, reflexões feitas a passos tímidos por uma novata em pesquisa que
teve nesses mais de dois anos muita gente por perto. O caminho da escrita, de abandono e
explosão, faz a gente ganhar olho, e isso é bom, pesquisar é das descobertas mais
interessantes dos últimos períodos, e só pude passar tanto tempo estudando (um direito que
ainda é tido como privilégio) por que muita gente caminhou comigo e me proporcionou dias
de silêncio ou conversa, de planos e ação.

Começo agradecendo ao Movimento Sem Terra e a Consulta Popular, por cada mística, cada
cena, cada canção, cada poesia, cada experiência de agitação e propaganda que vivi. Por me
mostrarem que há muito caminho entre a luta do povo brasileiro e a arte, e que quem me disse
o contrário mentiu!

A Indaiara minha mãe, agradeço as primeiras canções e poesias, agradeço por ter crescido
vendo seu corpo solto e festivo a dançar nas festas e salas, te agradeço pelo que virá
mãezinha. Ao meu pai Marival, por ser o melhor companheiro de casa de todos os tempos! A
ambos, por terem me proporcionado uma formação sensível, permitindo o descortinar de
mundos inteiros cantando, escrevendo, tocando, interpretando. A minhas avós Maria Célia e
Josefa Guedes, por cada história e estória, pela memória ancestral e resistência. A Escola
Curumim, Tia Rita, Raquel e Jorge, por terem feito o teatro viver em mim.

À Antonia, por muito mais que a orientação. Por não desistir, por fazer vivo o Teatro do
Oprimido, pelos cortes cirúrgicos, por Piscator, por me fazer conseguir terminar! A Escola de
Teatro da UFBA, seus funcionários/as, estudantes e professores/as. Por tudo o que aprendi
em reuniões na Casa Rosa que hoje é branca, nos corredores, sala de aula, mostras, debates e
conversas inquietantes nos banquinhos verdes...

A Maria Júlia Monteiro e Paulo Henrique Oliveira, pelas madrugadas, bibliografias, sumários,
citações, carinho, corridas contra o tempo, confiança, prontidão e força, muita força. A Rafael
Neves pela tradução, a Júlia Garcia pelas trocas dissertantes e por ter permanecido firme. A
Rafael Livtin Villas Bôas, Felinto Santos (Mineirinho) e Raul Amorim, artistas, militantes e
dirigentes do MST; os agradeço pelos textos, palavras, fios e meadas. A Geo Britto, do Centro
de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro, por sua disposição, ajuda, indicações e resistência.

A Vitor Teixeira, pelo amor e ouvidos durante quase 1 ano de escrita, por ter sido vento bom
nas agonias. Às Zeferinas e ao Levante Popular da Juventude, pelo feminismo, paciência,
carinho, por me fazerem querer ser todo dia melhor e seguir em luta até que todas sejamos
livres! Aos meus companheiros, Hugo, Leno, Mário e Vítor, pela esperança no triunfo que
virá. À Izadora e Júlia, minhas irmãs, meus pedaços, amores da minha vida, sem vocês não
teria Mamá, quiçá dissertação!

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RESUMO

Inscrita no âmbito das Artes Cênicas, a presente dissertação utiliza o procedimento


metodológico comparativo, investigando o Teatro do Oprimido da Brigada Nacional de Teatro
Patativa do Assaré, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), surgida em
2001 no Brasil; e o auge das experiências do Teatro assumidamente Político do início do
século XX na antiga União Soviética (URSS) e Alemanha, sendo estes; o Teatro de Agitação e
Propaganda russo, o Teatro Político e o Teatro Épico, ambos alemães. Tendo como aporte
teórico o método materialista histórico dialético de Marx e Engels, os autores Augusto Boal,
Paulo Freire, Erwin Piscator, Bertold Brecht, Anne Ubersfeld, e as pesquisas sobre teatro
político realizadas pelas autoras brasileiras, Silvana Garcia e Iná Camargo Costa, o presente
estudo identifica a formação de um sistema interno teatral do MST, que se expressa na
conformação da Estética do Oprimido Sem Terra, e pretende contribuir com a pouca pesquisa
acadêmica realizada sobre as práticas teatrais dos movimentos sociais na América Latina a
partir do estudo do teatro feito por trabalhadores rurais organizados no Brasil.

Palavras-chave: Teatro Político, Teatro do Oprimido, Movimento dos Trabalhadores Rurais


Sem Terra, Brigada Nacional de Teatro Patativa do Assaré.

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ABSTRACT

Placed on the scope of the Performing Arts, this dissertation investigates through comparative
methodology the “Theatre of the Opressed” of the Patativa do Assaré national performing
brigade, linked to the Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), having it’s
origins in Brazil on 2001; and the height of early 20th century explicitly political theatre in
the USSR and Germany, namely; Russian Agitprop theatre and German epic and polical
theatre.Using as the theoretical approach Marx and Engels’s historical materialist dialectical
method, the authors Augusto Boal, Paulo Freire, Erwin Piscator, Bertold Brecht, Anne
Ubersfeld and the research about political theater made by the brazilian authors Silvana
Garcia and Iná Camargo Costa, this dissertation proposes the formation of an internal
theatrical system of MST, expressed on the construction of the Estética do Oprimido Sem
Terra, and intends to add to the incipient academic research about the social movements’s
theatrical activities in America Latina starting from the research of the theatre made by
organized rural workers in Brazil.

Palavras-chave: Political Theatre, Theatre of Opressed , Political Theatre, Movimento dos


Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Patativa do Assaré National
Performing Brigade.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Cartaz do I Congresso do MST


Figura 2 Paulo Freire e Augusto Boal no Congresso Internacional: PTO – Pedagogy
Theater of Opressed
Figura 3 Brigada Patativa do Assaré reunida com Augusto Boal e os coringas CTO
Figura 4 Veja criminaliza ações do MST
Figura 5 Formação da Patativa do Assaré com Boal
Figura 6 Formação da Patativa do Assaré com Boal
Figura 7 Formação da Patativa do Assaré com Boal
Figura 8 Diagrama do Modelo Actancial
Figura 9 Diagrama Modelo Actancial 1 Privatleite
Figura 10 Diagrama Modelo Actancial 2 Privatleite
Figura 11 Brigada Patativa do Assaré ensaiando a peça Privaleite
Figura 12 Cartaz produzido pelo Coletivo Blusa Azul
Figura 13 Imagem do Espetáculo “O dia da Rússia”
Figura 14 Diagrama Modelo Actancial O Trabalho Doméstico e as Operárias
Figura 15 Mandato Político Teatral de Augusto Boal/RJ
Figura 16 Matéria veiculada pelo Jornal Sem Terra de agosto de 2007
Figura 17 Manifestação contra a ALCA no Rio de Janeiro/RJ
Figura 18 Princesa Izabel
Figura 19 “Zumbi” de Antonio Parreiras
Figura 20 “Guerra dos Palmares” , de Manuel Victor
Figura 21 “A burguesia quer do artista uma arte que corteje e adule seu gosto medíocre”
Figura 22 Augusto Boal, Movimento Dos Trabalhadores Rurais sem Terra em Courtesy
of Center for the Theatre.
Figura 23 Homenagem a Augusto Boal feita pelo Movimento Dos Trabalhadores Rurais
sem Terra na Escola Nacional Florestan Fernandes

LISTA DE SIGLAS
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CTO – Centro de Teatro do Oprimido
ETUFBA – Escola de Teatro da UFBA
FHC – Fernando Henrique Cardoso
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
PT – Partido dos Trabalhadores
URSS – União Soviética
TO – Teatro do Oprimido

SUMÁRIO

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INTRODUÇÃO 11

1. O MST E A CRIAÇÃO DA PATATIVA DO ASSARÉ 15

1.1 Terra e teatro, uma relação histórica 18

1.2 O teatro do oprimido 19

1.2.1 – Surgimento do teatro jornal 21

1.2.2 O encontro com um operário 23

1.2.3- “Eu sou apenas um rapaz, latino-americano...” 24

1.2.4– O encontro com Paulo Freire 25

1.2.5 – O encontro com a mulher peruana e o surgimento do espect-ator 28

1.3 MST e CTO – a parceria 30

1.4 – O teatro fórum 38

1.5– O teatro fórum Sem Terra: análise actancial da peça Privatleite 39

2. ECOS HISTÓRICOS DO TEATRO DO OPRIMIDO 50

2.1 O teatro assumidamente político: o trânsito histórico do lugar do espectador. 50

2.2 O ponto de partida para a conformação da poética do oprimido. 62

2.3 Da operária para operária, do oprimido para o oprimido: um teatro de classe? 65

2.4 A organização política em cena: o teatro e a estratégia da revolução 70

2.5 O desafio de atuar na/com dialética. 72

2.6 Teatro ou doutrina? arte ou política? 75

2.7 Teatro e tribuna 77

3. O TEATRO SEM TERRA: UMA ESTÉTICA DO OPRIMIDO 82

3.1 – A estética do oprimido 82

3.2 –Elementos de um possível sistema interno teatral Sem Terra 86

3.2.1 - Desmercantilizar e socializar os meios de produção teatrais 86

3.2.2 – O trabalho coletivo 87

3.2.3 - A refuncionalização (Umfunktionierung) como diretriz política 88


11
3.2.4 – Materialismo histórico dialético em cena? 92

3.3 - Artistas e militantes: multiplicai-vos! 95

CONSIDERAÇÕES FINAIS 99

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO 103

INTRODUÇÃO
“Vim de longe vou mais longe, quem tem fé vai me esperar, escrevendo numa conta,
pra junto a gente cobrar, do dia que já vem vindo, que esse mundo vai virar...”
(Geraldo Vandré)

A presente pesquisa consiste na investigação do Teatro do Oprimido feito pela Brigada


12
Nacional de Teatro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra chamada Patativa do
Assaré. Utilizando o procedimento metodológico comparativo, tendo como recorte as peças
de teatro fórum produzidas no processo de formação de um grupo de militantes do MST com
o Centro de Teatro do Oprimido – Rio e Augusto Boal, em comparação a experiência do
Teatro de Agitação e Propaganda soviético, em 1920, momento compreendido pela autora
como marco histórico da produção do teatro político e suas reverberações na Rússia e
Alemanha.
A partir da análise actancial do espetáculo fórum “Privatleite”, montado pela Patativa
do Assaré em 2001, faz-se uma reflexão sobre o teatro dos Sem Terra, ao passo que, sobre o
teatro protagonizado por trabalhadores/as em período de intensa mobilização popular. No caso
russo, desenvolvido no marco do surgimento da União Soviética (URSS) com a Revolução de
1917, e no do MST, protagonizado em momento de refluxo das lutas populares e avanço do
neoliberalismo na década de 90 no Brasil. Ambas as experiências se caracterizam como teatro
que assume a polis como material para a cena. Apontam, além do protagonismo de
trabalhadores/as: formas cênicas e dramatúrgicas construídas para se ter mensagem política
direta; um projeto de sociedade defendido em cena; a socialização dos meios de produção
teatrais como pressuposto para sua prática; a transformação da cena em lugar de debate;
provocação para que o lugar passivo do espectador seja ultrapassado, e o sujeito público seja
alçado à esfera da ação cênica enquanto protagonista da cena.
A pesquisa tem como aporte teórico o método materialista histórico dialético
de Marx e Engels, os autores Augusto Boal, Paulo Freire, Erwin Piscator, Bertold Brecht,
Anne Ubersfeld, e as pesquisas sobre teatro político realizadas pelas autoras Silvana Garcia e
Iná Camargo Costa.
O encontro com a Patativa do Assaré se deu da necessidade do eu-atriz caminhar com
o eu-militante que reivindica a não dicotomia de ação política e arte. Necessidade essa,
surgida antes do mestrado se colocar como possibilidade. Sou de Itabuna, no sul da Bahia,
nascida em 1986, em lugar conhecido pela fartura de gente e cacau. Ali aprendi a ver e viver
teatro e me forjei artista com artistas da região. Foi lá que cresci acompanhada do vermelho
das bandeiras do Partido dos Trabalhadores (PT), discos, filmes, atrizes, poetas, jornalistas,
professoras, vereadores. Minha casa, comandada por minha mãe Indaiara e meu pai Marival
era uma fartura de arte e política. A decisão por fazer graduação em Artes Cênicas foi mais
um passo do caminho iniciado aos 8 anos, em 1995, quando comecei a fazer teatro na Escola
Curumim. Para isso era preciso sair do interior e morar na capital baiana. E assim foi. Em
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março de 2005 cheguei a Salvador, entrei no curso de interpretação da Escola de Teatro da
Universidade Federal da Bahia - ETUFBA e no mesmo compasso comecei a atuar no
movimento estudantil. Tornou-se parte do meu cotidiano o Diretório Acadêmico, a Federação
Nacional dos Estudantes de Arte – FENEARTE, reunião de colegiado, departamento,
congregação da ETUFBA, Diretório Central dos Estudantes, ações, debates e mais debates
acerca da universidade que queríamos, sobre assistência estudantil, permanência, ensino,
pesquisa, extensão, ações afirmativas, machismo, racismo, luta de classes. E entre uma
reunião e outra, uma ocupação e outra, fui descobrindo como os trabalhadores e trabalhadoras
se organizavam, como ao longo da história de resistência e resiliência do povo brasileiro a
organização política esteve presente, dentre elas, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST).
Ao passo que no currículo do curso de Interpretação eu não encontrava o teatro feito
pelos trabalhadores ou mesmo os problemas das pessoas enquanto seres sociais alçados à
esfera da representação, também percebia a ausência da produção cênica que não forjada nos
marcos do teatro burguês. Essa “falta” eu não senti só . Em 2006, a ETUFBA viveu uma
intensa discussão sobre o currículo dos cursos oferecidos pela unidade, esse momento foi
parte importante do meu processo de reflexão e encontro com o teatro assumidamente
político. Durante esse processo, parte dos professores e estudantes questionaram porque não
enveredávamos pela produção pós-revolução francesa, porque nossos currículos esbarravam
no naturalismo como sendo a mais revolucionária estética. Lembro-me que uma das mais
efervecentes discussões foi sobre ter ou não o componente curricular de “História do teatro
brasileiro” no curso de Interpretação.
Ao me questionar em coletivo sobre o que devemos estudar, qual deve ser o conteúdo
da formação acadêmica de uma atriz, comecei a pensar o quanto a Universidade não só
precisa ser popularizada e democratizada, no sentido de ser lugar de produção de
conhecimento de todo o povo e não de uma elite, como a estrutura da academia precisava ser
reorganizada para de fato a universidade cumprir sua função social e não a função da vontade
de meia dúzia de empresários. Volta e meia me diziam “Você devia fazer licenciatura!” ou,
“Pensei que você fazia Ciências Sociais!” E eu gritava aos quatro ventos: Arte e política não
são antagônicas! E não podem ser!
Me graduei em dezembro de 2007 e em janeiro de 2009 comecei a fazer parte de uma
organização criada pelo MST, a Consulta Popular. No contato com as cartilhas, documentos,
debates e conversas com militantes descobri a atuação da Brigada Nacional de Teatro do
14
MST. Comecei a pesquisar a história da Brigada e o teatro feito pelos trabalhadores
organizados. As angústias, curiosidades e incômodos surgidos na graduação emergiram e a
militância me fez retornar a academia para produzir, pensar e acumular sobre o teatro que
estou a chamar de assumidamente político. É assim que encontro meu objeto, construindo a
luta por reforma agrária junto com os assentados e assentadas do MST, descobrindo a
importância da apropriação do meio de produção teatral pelos trabalhadores. É então no
movimento social que encontro do que na academia eu procurava. Aguço os sentidos para ser
militante-atriz-pesquisadora que pode contribuir de dentro da academia para a construção de
um projeto político. Dejante e desejada. Para escrever foi necessário aprender a caminhar com
a alteridade, saber-me indivíduo, ser desdobrável para encarar o objeto sem defendê-lo, ação
que é parte do meu cotidiano ante a criminalização incessante dos movimentos sociais, que
pode ser percebida quando nos meios de comunicação hegemônicos ocupar se torna invadir,
quando Sem Terra é “vagabundo que não quer trabalhar”, quando contamos nossos mortos
cruelmente assassinados, como em 1997 no Massacre de El Dourado dos Carajás, ou nos
dados coletados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) ano a ano, e que em 2009, registrou
no campo brasileiro a ocorrência de 25 assassinatos, 205 agressões e 71 casos de tortura de
trabalhadores rurais.
A pesquisa se divide em três capítulos. No primeiro apresento meu objeto, a Brigada, e
seu recorte, o Teatro Fórum, ao passo que para fazê-lo é preciso discorrer sobre o MST, o
Teatro do Oprimido e a peça Fórum, o que nos leva de imediato a Augusto Boal e Paulo
Freire. Neste capítulo apresenta-se as peças produzidas pelo MST no processo de formação
com o CTO e Boal, e a análise actancial da peça “Privatleite”. A partir dos ecos e
reverberações da análise de Privatleite, no segundo capítulo, faz-se reflexões sobre outro
momento histórico, o início do século XX na Rússia, marco do teatro feito por trabalhadores
em prol de um projeto político. Enveredando pelo teatro de agitprop e a partir da experiência
do fórum dos Sem Terra, à luz de Boal, Brecht, Piscator e Freire, tratamos sobre o teatro
assumidamente político e a incessante busca por fazer emergir na cena as relações sociais de
modo a possibilitar que o espectador seja mais do que ouvinte e se mobilize à ação dentro e
fora da cena. No terceiro capítulo identifico elementos de uma Estética Sem Terra, a partir da
composição de um sistema interno de teatro do MST.

15
1. O MST E A CRIAÇÃO DA PATATIVA DO ASSARÉ

O MST foi gestado em tempos de Ditadura Militar. A experiência de luta por Reforma
Agrária Popular construída há 34 anos pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)
está atrelada ao questionamento mais geral do próprio modo de produção capitalista. O
Movimento surge com três objetivos principais: lutar por terra, reforma agrária popular e
mudanças sociais no país. Para compreender o teatro do MST é preciso também compreender
16
parte da história do movimento, principalmente quais as contradições sociais que
impulsionam a criação do que é hoje o maior movimento social da América Latina,
organizando mais de 1,5 milhões de trabalhadores rurais no Brasil desde o fim da década de
70, e que tem seu início no processo de industrialização da agricultura brasileira na década de
1950.
A Ditadura Civil-Militar no Brasil aconteceu em um dos momentos de grande
expansão capitalista, entre 1964-1985. Característica marcante foi o êxodo rural que
aumentou o número de trabalhadores nas cidades, e constituiu o exército industrial de reserva,
que tanto provoca a queda dos salários como dificulta a mobilização do setor. Além disso, foi
gerada nos centros urbanos uma rede informal de reparo e venda dos produtos
industrializados, atividades ainda não tão desenvolvidas pelas grandes empresas. Mas a
culminância desse processo de “modernização” das estruturas tradicionais do campo ocorreu
após 1964. A “modernização” do campo consistiu na articulação da agricultura capitalista ao
setor industrial, voltada para a exportação e ligada também ao setor financeiro, que imprimiu
“um novo padrão produtivo, baseado no cultivo intensivo do solo, na utilização de insumos
químicos e no emprego de máquinas industrializadas” (SILVA, 2004, p.30)
João Pedro Stédile, dirigente nacional do MST, aponta pelo menos cinco
consequências no campo brasileiro, nas décadas de 1970 e 1980, das políticas econômicas
adotadas pela ditadura militar (STEDILE, 2002, p. 313-116). A primeira delas foi a
acumulação de capital nas mãos dos grandes proprietários rurais. Percebe-se também, a
centralização do controle de diversos setores da economia, agricultura, comércio, indústria e
capital financeiro, por grandes grupos econômicos. O quarto aspecto foi a introdução da
agroindústria, que usufrui o baixo custo da mão-de-obra brasileira, a estrutura agrária
concentrada, os incentivos fiscais e, ainda, a abertura dos mercados locais ao consumo dos
produtos de seus países de origem (SILVA, 2004, p. 90-92). Somado à quinta consequência,
que é afirmação da produção agrícola para exportação, a agroindústria transformou
rapidamente os hábitos alimentares da população brasileira, que passou a consumir, por
exemplo, o óleo de soja e o suco de laranja industrializado, além de limitar as alternativas dos
pequenos agricultores.
Esse modelo econômico aprofundou as históricas contradições sociais do país,
exponenciando o êxodo rural e inviabilizando a agricultura familiar (STEDILE e
FERNANDES, 2000 p. 29-33). A expectativa de permanecer com a agricultura familiar e a
produção de grãos não foi correspondida pela proposta estimulada pelo governo para que os
17
migrantes se integrassem às atividades do garimpo e extração de madeira (MITTELMAN,
2006). Muitos trabalhadores/as rurais compreendendo a necessidade de lutar pela terra em
suas regiões de origem, foram compor a base social do MST. Inicialmente, o espaço de
articulação foram as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs e os Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais. Eles “[ ...] foram os lugares sociais onde se constituíram os espaços de
reflexão acerca da realidade e onde se desenvolveram as experiências para a organização dos
trabalhadores rurais contra a política agrária em questão[...]”. (FERNANDES, 1996, p. 56).
A este esforço somou-se a Comissão Pastoral da Terra, CPT, fundada em 1975, pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que, a partir da Teologia da Libertação 2

procurou divulgar os direitos sociais contidos na Bíblia e, por outro lado, utilizando-se das
leis, fundamentalmente, do Estatuto da Terra, Lei 4.504 de 30 de novembro de 1964, que
defendia a necessidade de se fazer a reforma agrária no Brasil. Assim diz no seu artigo
primeiro: “Esta Lei regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais para
fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola”. (BORGES, 1979,
p.193). Tal Lei promulgada pelos militares, durante o governo da ditadura que se instalou no
Brasil entre os anos de1964-1985, se, por um lado, tinha a intenção de povoar as fronteiras
agrícolas do Centro Oeste e Norte do país, por outro lado, procurou inibir o crescimento das
forças sociais que defendiam a reforma agrária. O interesse dos militares era desvincular a
reforma agrária do comunismo (MITTELMAN, 2006) .
O primeiro Encontro Nacional, ocorrido em janeiro de 1984 no Paraná, marca a
fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. De acordo com Stédile, o
nome do movimento cumpria o papel de resgatar o caráter de classe dos seus integrantes, ao
mesmo tempo em que incorporava o apelido criado na mídia pelo qual já eram conhecidos
pela sociedade. (STEDILE e FERNANDES, 2000 p.47). No encontro se define foi que a luta
do MST seguiria princípios autônomos, tendo como norte o modelo dos movimentos de
massas. A participação nos sindicatos e nos partidos políticos era estimulada, desde que a

2
Nascida no final dos anos 60 do século passado, a Teologia da Libertação é saudada como “a
primeira primeira produção teórica nascida na periferia do cristianismo, que apresenta um novo modo
de fazer teologia, a partir dos pobres e contra a sua pobreza, profética e com um apelo à consciência
ética da humanidade, por colocar no centro de sua preocupação a sorte das grandes maiorias
condenadas à miséria e à exclusão por causa das minorias nacionais e internacionais insensíveis, cruéis
e sem piedade.” Leonardo Boff, teólogo da libertação, professor emérito de Teologia Sistemática entre
os Franciscanos de Petrópolis, RJ e de Ética na Universidade do Rio de Janeiro, autor de mais de
setenta livros em várias áreas da teologia, da filosofia e da ecologia, em artigo para o Diplomatique,
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=26, acesso em 08 de dezembro de 2014.

18
autonomia da organização do movimento fosse preservada. Define-se também que no
contexto da redemocratização do país a luta pela reforma agrária devia se integrar à luta por
mudanças sociais, à questão da demarcação das terras indígenas e à necessidade da reforma
agrária nas terras das empresas multinacionais. (STEDILE e FERNANDES, 2000, p. 50-51

Figura 1 - Cartaz do I Congresso do MST. Fonte: Acervo MST (1984)

1.1 Terra e teatro, uma relação histórica.

Pouco antes do golpe militar de 1964 no Brasil, o período que vai da segunda metade
da década de 1950 até o início da década de 1960 é marcado por grandes mobilizações
políticas. No nordeste, as Ligas Camponesas, desenvolveram intenso processo de organização
dos camponeses e luta contra o latifúndio, (VILAS BÔAS, 2009). É nessa época que os
artistas brasileiros começam a fazer teatro de forma assumidamente política,

José Renato e Augusto Boal, a partir da encenação de “Ratos e homens”, de


John Steinbeck, no Teatro de Arena de São Paulo, inauguraram a temporada
de encenação programática de autores comprometidos com as lutas dos
trabalhadores. (...) Em 1958 José Renato encena “Eles não usam Black-tie”,
19
de Guarnieri, peça cujo enorme sucesso de público e de crítica demonstrou
que além de um grupo específico de teatro, uma parte importante do público
teatral estava interessada em discutir os seus problemas e os dos
trabalhadores (COSTA, 1998, p. 44)

Segundo Iná Camargo Costa (1996), naquele período, o teatro político brasileiro chegou ao
patamar de força produtiva, de conhecimento e de intervenção. Grupos profissionais com
experiência iniciavam relação direta com as Ligas Camponesas, movimento estudantil e
sindicatos urbanos, modificavam temas, formas, relações e modos de produção do fazer
teatral. Segundo os militantes que compõem a Brigada Nacional de Teatro Patativa do Assaré,
a produção teatral do MST é herdeira direta da experiência de articulação ocorrida no
momento anterior ao golpe de 1964:
Da mesma forma como o MST é herdeiro das experiências de luta pela terra,
que passam por Palmares e pelas Ligas Camponesas, no âmbito da cultura
podemos dizer que a parceria entre o MST e o Centro do Teatro do Oprimido
(CTO) é herdeira do vínculo entre o grupo de teatro Arena e as Ligas
Camponesas. (Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré, 2005,
p. 2).

Um diferencial marcante entre as experiências é o fato de que no engajamento dos anos


anteriores ao Golpe Militar, o Arena e outros grupos ligados aos Centros Populares de Cultura
(CPC´s) apresentavam-se para as classes camponesas e operárias e para o segmento estudantil
(VILAS BÔAS, 2009). Já na parceria entre CTO e MST, a ênfase, desde o início, foi dada à
transferência dos meios de produção do teatro. O objetivo desde o início era que um grupo de
militantes pudesse desenvolver o trabalho de formação de grupos e de multiplicadores nas
áreas de Reforma Agrária, (PATATIVA DO ASSARÉ, 2005), propondo experiências artísticas
a partir da compreensão de que os espectadores devem também ser produtores. “O verdadeiro
artista popular é o que, além de saber produzir arte, deve saber ensinar o povo a produzi-la.
Não é o produto acabado que deve ser popularizado, mas sim os meios de produção” (Boal,
1984 p. 94).
Atualmente, existem grupos que levam teatro para os trabalhadores, espetáculos que vão até
os assentamentos no campo e são parte importante do processo de formação do MST e do
interesse da militância sobre o teatro. Muitos militantes do MST interessaram-se por fazer
teatro por ver o teatro feito por esses grupos. Mas poucas são as experiências organizadas de
transferência, democratização, ou socialização do meio de produção teatral para a classe
trabalhadora organizada em um movimento social. A opção política dos militantes do MST
em iniciar o processo formativo com Teatro do Oprimido se dá a partir da compreensão de
20
que os princípios e objetivos políticos do MST se complementam ao do arsenal boalino que
compreende a socialização dos meios de produção teatrais como pressuposto para sua prática.

1.2 O teatro do oprimido


O Teatro do Oprimido, assim como o MST foi forjado em tempos de ditadura militar.
Desenvolvido de acordo com a necessidade de transformar a realidade opressora, e
principalmente para que o ser humano retome “as rédeas” dos seus sentidos amordaçados e se
redescubra criador e artista (BOAL, 2009). Se redescubra porque para o sistematizador do
TO, dramaturgo, ator, diretor e educador popular Augusto Boal, o ser humano “É artista”
(Boal, 2005). É, no sentido “ser”.
Carioca, nascido em 1931 no Rio de Janeiro, Boal abandonou a carreira de engenheiro
químico para fazer teatro. Ainda como estudante de engenharia química escreveu peças e teve
contato com Nelson Rodrigues através da atuação como Diretor de Cultura do Diretório
Acadêmico da Universidade. Vai aos Estados Unidos para estudar química, única forma da
viagem ser paga pelo pai, mas com a intenção de participar de um rico processo formativo
sobre naturalismo e Stanislavski. Nos EUA estudou com John Gassner, por quem tinha grande
admiração. Conheceu o Actor's Studio e a dramaturgia americana moderna. Ao retornar ao
Brasil é indicado por Sábato Magaldi para ser diretor do Teatro Arena, um dos muitos grupos
de teatro que surgem no final dos anos 50 e início dos 60, em São Paulo, e se torna símbolo de
nacionalismo e resistência em defesa da democracia por valorizar peças de conteúdo social de
autores nacionais. O Arena sugeria uma nova forma de teatro, voltado para uma estética de
esquerda e discussões sobre a realidade do país. “Chamou a atenção de vários segmentos da
sociedade, já que personagens como empregadas domésticas e operários em greve, por
exemplo, antes não haviam sido protagonistas de uma peça de teatro.” (ALMADA, 2004)
Ao refletir sobre o percurso de desenvolvimento do Teatro do Oprimido no livro “Arco-Íris
do Desejo”, Boal analisa as produções do Teatro de Arena, e após fazer um quadro sobre a
desigualdade no Brasil e a situação da população pobre, diz:

Nós, artistas, idealistas, não podíamos apoiar tamanha crueldade. Nós nos
revoltávamos, nos indignávamos, sofríamos. E escrevíamos e montávamos
nossas peças contra a injustiça, enérgicas, violentas, agressivas. Éramos
heroicos ao escrevê-las e sublimes ao representá-las: peças que terminavam
quase com os atores cantando em coro canções exortativas, canções que
terminavam sempre com frases do tipo “Derramemos nosso sangue pela
liberdade! Derramemos nosso sangue pela nossa terra! Derramemos nosso
sangue, derramemos! (BOAL, 1996, pg. 17)

21
Os artistas convocavam os espectadores a organizar-se pela transformação diante de tantas
injustiças vividas, mostrando por vezes na cena um caminho, ou até mesmo um projeto, como
mais a frente será discutido. As respostas aos impasses gerados pela repressão política vieram
também através de novas experiências estéticas no palco.
Ainda nas peças montadas no Arena, questionando o lugar dos atores como "estrelas
intocáveis” a quem cabiam os principais papéis, Boal criou, com seus companheiros, o
"sistema coringa" em que os atores no espetáculo se revezavam em cena, assumindo,
alternadamente, os diferentes personagens. Através desse sistema, novas convenções e
modelos foram criados com peças que adotavam uma forma estética inovadora, rompendo
com a linearidade dos espetáculos tradicionais, com personagens previamente definidos.
Boal conta, no livro “Hamlet e o Filho do Padeiro”, e em outros livros e entrevistas,
que o momento crucial para a criação do Teatro do Oprimido aconteceu na década de 60, no
Nordeste brasileiro, ocasião em que o Teatro Arena, apresentava-se para uma liga camponesa.
O grupo encenava um espetáculo que mostrava os camponeses lutando pelo direito à terra
com fuzis em punho. Ao final do espetáculo, cantavam uma música forte, politizada, que dizia
com firmeza a necessidade de entregar-se a luta, derramando o sangue se preciso. Exortando
“os oprimidos a lutar contra a opressão” (Boal, 1996, pg. 17).
O público de camponeses se emociona, o líder do acampamento, chamado Virgílio, se
aproxima de Boal e empolgado convoca todo o elenco para que, depois do almoço, fossem
com eles ocupar uma terra improdutiva. Com a vontade de lutar que estavam como
demonstraram na peça, as armas em punho, poderiam enfrentar os jagunços do fazendeiro.
Boal explicou que aqueles fuzis eram cenográficos, que realmente concordavam com a
ocupação da fazenda, porém não poderiam lutar, pois suas armas eram de madeira e papelão.
Virgílio, sem pestanejar, mandou os companheiros trazerem mais armas de dentro do galpão.
– Já que os fuzis são de mentira, temos armas de verdade. Vocês são reais e verdadeiros e
percebemos isso na encenação que fizeram. – disse o camponês. Boal, explicou que eles eram
verdadeiros artistas, compartilhavam de seus ideais sim, porém não poderiam lutar com eles,
pois não estavam preparados para isso. Virgílio olhou nos olhos de Boal e disse – Então o
sangue que vocês querem verter, quando cantam aquela música, não é o de vocês, é o nosso
sangue. Boal afirma que a partir daí não pôde mais fazer teatro da mesma forma que o fazia:

Nunca mais esqueci Virgílio. Nem aquele momento em que me senti


envergonhado da minha arte que, no entanto, me parecia bela. Alguma coisa
estava errada. Não com o gênero teatral, que me parece, ainda hoje,
22
perfeitamente válido. O Agit-Prop, agitação e propaganda, pode ser um
instrumento extremamente eficaz na luta política. Errada estava a sua
utilização. Naquela época o Che Guevara escreveu uma frase muito linda:
“Ser solidário significa correr o mesmo risco”. Isso nos ajudou a
compreender o nosso erro. O Agit-Prop estava certo: o que estava errado era
que nós não éramos capazes de seguir o nosso próprio conselho. Homens
brancos da cidade, tínhamos pouca coisa a ensinar às mulheres negras do
campo... (BOAL, 2002, pg.19)

1.2.1 – Surgimento do teatro jornal


O arsenal do TO teve parte fundamental de sua sistematização feita entre 1971 e 1986,
compreendendo o longo período da Ditadura Militar no Brasil, 1964 a 1985, incluindo os
primeiros anos de repressão quando peças teatrais com conteúdo de análise crítica da
realidade eram sistematicamente censuradas. Foram 21 anos de uma ditadura que perseguiu,
assassinou e torturou quem ousasse lutar por democracia e pelos direitos sociais. À época, a
Reforma Agrária era bandeira política de massas e despontava o projeto político de reformas
estruturais no país. A partir do Ato Institucional nº 5, em 1968, que é chamado de “golpe
dentro do golpe” a repressão aumenta,

As peças que queríamos montar estavam proibidas. Havíamos perdido tudo:


peças, teatro censurado, subvenções, figurinos, tudo. Menos nossos sonhos
(...) Nosso sonho era propagar as técnicas para que todos pudessem fazer
teatro, usar essa linguagem tão rica para pensar o que fazer (BOAL, 2000, p.
271).

Em setembro de 1970, com pesquisa e criação coletiva, Boal e sua equipe decidem usar o
próprio texto do jornal que havia sido censurado, como texto teatral e apresentam o espetáculo
“Teatro Jornal – Primeira Edição”, que consistia no compartilhar com o público nove técnicas
que possibilitavam transformar qualquer notícia de jornal, ou outras formas de textos, em cena
de teatro. A multiplicação era o objetivo: formar novos grupos de Teatro Jornal que
aprendessem as técnicas, aplicassem, e depois formassem outros grupos.
A primeira modalidade do arsenal do Teatro do Oprimido surge em 1970 para burlar e
criticar o silêncio dos meios de comunicação controlados pela Ditadura Civil-Militar.
Desmistificando a pretensa “objetividade” do jornalismo, denunciando a barbárie e a
violência, a modalidade analisa e trata em cena os jornais impressos como obra de ficção,
discutindo os problemas do povo através das notícias jornalísticas (BOAL, 1984), ao passo
que, com a proposta de tornar o teatro mais popular, visibiliza técnicas que qualquer grupo,
em tempo curto, pode apropriar-se, demonstrando que o teatro pode ser praticado mesmo por
quem não é ator:

23
Estamos agora criando uma nova categoria de teatro popular,
fundamentalmente diferente das três anteriores. Nela, o próprio povo faz o
espetáculo. Não produzimos, como artistas, um espetáculo: como técnicos,
produzimos as ferramentas a serem utilizadas pelo povo na fabricação de seu
próprio teatro. Nas três primeiras categorias, o povo é unicamente o receptor
do produto teatral; nesta quarta categoria, o povo fabrica e consome teatro.
(1984, pg. 42)

Mesmo em meio a ditadura civil-militar, mais de 20 grupos de Teatro-Jornal se formaram


apenas em São Paulo, e muitos outros em Curitiba, Porto Alegre, Ribeirão Preto, Cuiabá,
Buenos Aires, Montevidéu.
A forma de “teatro-jornal” tem vários objetivos. Primeiro, procura
desmistificar a pretensa “objetividade” do jornalismo: demonstra que uma
notícia publicada em um jornal é uma obra de ficção. A importância de uma
notícia e seu próprio caráter dependem de sua relação com o resto do jornal.
[...] Pergunta-se qual é mais importante: a conquista do tricampeonato de
futebol ou a seca no Nordeste? O cidadão Kane, de Welles, já respondeu:
“Nenhuma notícia é importante bastante para valer uma manchete; ponha-se
qualquer notícia sem importância na manchete e ela se transformará em
notícia importante!” Assim se manipula a opinião pública – o processo é
simples, indolor. (Boal, 1988, p. 43)

A técnica do Teatro-Jornal, não surge com a experiência do Arena e Boal. É técnica fundante
da Agitação e Propaganda do período pré e pós Revolução Russa (1917). O chamado “Jornal-
vivo” é precursor de um vasto caminho que o teatro fará no início do século XX. Claudine
Amiard-Chevrel (1977)3 em texto sobre um dos mais expressivos e atuantes grupos de
Agitação-propaganda da União Soviética na década de 1920, o Blusa Azul, criado como
jornal vivo por estudantes do Instituto Moscovita de Jornalismo em 1923, nos diz:

O primeiro, de 1923 a 1926, é verdadeiramente aquele do “jornal vivo” e do


esquete de agitação política, destinado a um público de massa preciso num
lugar preciso. Trata-se de um “jornal” porque o conteúdo é exclusivamente
político e porque ele relata regularmente acontecimentos políticos. Através
de sua implantação local, informa sobre a vida e sobre problemas dos
operários do lugar. Esse “jornal” é “vivo” porque sua arma não é mais o
texto impresso, mas o gesto e a palavra viva. Dois tipos de conteúdo eram
levados em consideração: o panorama dos principais acontecimentos
políticos do momento e o número especial dedicado a um tema específico.
(AMIARD-CHEVREL, 1977, s/p)

Se no Brasil em plena Ditadura Militar, o “Teatro-Jornal” demonstrou seu caráter


multiplicador com Boal e sua equipe, na Rússia que vivia um processo revolucionário, a
3
O reefrido texto “La Blouse Bleu”, in Le Théâtre d'agit-prop de 1917 a 1932, vol. 1, p. 101, ainda
não está oficialmente traduzido para o português, a versão utilizada foi traduzida por Iraci D.
Poleti realizada para uma publicação sobre formas e história da agitação e propaganda, e
atualmente está em fase de edição.
24
técnica teve sucesso estrondoso; multiplicando-se por toda Moscou e no interior da Rússia,
centenas de grupos de agitação e de “Jornais vivos” na URSS. A partir do Teatro Jornal, o
Arena desenvolveu técnicas teatrais em que os participantes aprendem na ação cênica as
técnicas que podem ser reproduzidas em qualquer lugar. Diversos grupos se apropriam e
montam peças sobre os problemas que compreendem como pertinentes em seus locais de
trabalho, bairro, sindicatos, escolas.

1.2.2 O encontro com um operário


Além de Virgílio, como marco para a sistematização do teatro do oprimido, outros
trabalhadores foram determinantes. Quando o Teatro Jornal ainda estava no início das
experiências, Boal conta que foi ministrar um curso de técnicas de dramaturgia para 10
operários, chamado Seminário de dramaturgia, realizado no Sindicato dos Metalúrgicos da
Cidade de Santo André, no ABC paulista. Ao fim do curso, uma peça seria montada, como era
um seminário de dramaturgia, os próprios operários aprenderam as técnicas e escreveram as
peças. Uma delas, escrita por um metalúrgico de nome Jurandir, foi escolhida pelos
participantes e Boal. O texto montado conta a história de um fura-greve, fator apontado na
peça como um dos motivos principais do movimento operário não ter conquistas trabalhistas.
A greve e a personagem tinham existido, o que faz com que pouco antes de começar o
espetáculo se iniciasse uma grande confusão, com direito a torcidas organizadas contra e a
favor do protagonista, gritando e elogiando os atores como heróis (BOAL, 2000). Na
apresentação, quando o personagem da peça chamado Gordo inicia suas falas, um dos
espectadores num rompante vai ao palco gritando, dizendo que tudo aquilo era mentira,
identificando as analogias feitas pelo texto como forma de seus rivais difamá-lo. O espectador
se recusa a sair do palco e Boal só consegue retomar a peça depois de muita dificuldade
propondo que caso ele não concordasse com o que estava sendo dito em cena, ele esperaria a
personagem terminar e daria sua versão. Boal então permanece no palco como intermediário
entre a plateia e a cena interrompendo a cena quando o espectador queria se manifestar,
retomando e explicando ao público como havia parado o enredo. Dessa experiência Boal
conclui que “em Santo André, o Teatro do Oprimido foi fecundado”, enquanto que nas
experiências do Teatro Jornal, “o embrião tomava corpo” (BOAL, 2000, p. 171).

1.2.3- “Eu sou apenas um rapaz, latino-americano...”


No dia seguinte a promulgação do AI-5, 14 de dezembro de 1968, Boal vai para Cuba.
25
Um mês depois dá início a uma turnê pelo Peru, México e Estados Unidos com o “Arena
conta Zumbi”, internacionalizando o Arena. Em 1971 retornam ao Brasil, para continuar
resistindo e lutando no seu país; encenam “A resistível ascensão de Arturo Ui”, de Bertolt
Brecht e ensaiam novo espetáculo histórico, o “Arena Conta Bolívar”. Até que, uma noite, a
caminho de casa depois do ensaio Boal foi sequestrado e preso. “É difícil enfrentar com
cenários, tanques, com figurinos, fuzis. Perdemos”. (BOAL, 2000, p.270). A Ditadura de
morte e tortura foi também de exílio. Ficou três meses preso. Da prisão seguiu para o exílio.
Ser preso novamente significava ser morto.
Boal “sai” com a ideia de avançar na construção de um processo que tivesse como
objetivo transferir ao oprimido os meios de produção do teatro, transformando a figura do
oprimido no protagonista de sua construção poética. Ficou exilado em países latino-
americanos como Argentina, Chile e Peru. Da sua permanência no Peru, em 1973, dentro de
um Programa de Alfabetização Integral (ALFIN) do Governo Revolucionário Peruano, nasce
o teatro imagem, técnica que “proíbe” o uso da palavra, evitando a língua dos opressores. Os
participantes expressam as suas opiniões sem falar, apenas utilizando os corpos dos demais
participantes, como se fossem feitos de barro, esculpem o outro revelando suas opiniões e
sensações. O teatro imagem é um instrumento efetivo para desenvolver o espectador,
estimulando a sua criatividade (Boal, 1998). Outra técnica do teatro do oprimido criada é o
Teatro do Invisível, com atores ensaiados e preparados para o improviso. Uma cena é
realizada, sem que os espectadores saibam que ali está a acontecer uma encenação, os atores
instauram um debate e envolvem os transeuntes que se tornam protagonistas da ação sem que,
entretanto, disso tenham consciência.
Cada uma das técnicas do que se tornaria o arsenal do Teatro do Oprimido surgiu
como necessidade do trabalho que estava sendo realizado com o povo desses países, na busca
de um teatro que fosse parte do processo de transformação da sociedade com vistas à
emancipação humana, para isso o Teatro do Oprimido propõe transformar o espectador em
protagonista da ação dramática, esse aspecto é pressuposto do TO e se baseia na concepção
libertadora de educação sistematizada por Paulo Freire, e na qual Boal, também nas andanças
pela América Latina vai se debruçar.

1.2.4– O encontro com Paulo Freire

26
Figura 2: Paulo Freire e Augusto Boal no Congresso Internacional: PTO – Pedagogy Theater of
Opressed. Autor(a): Desconhecido. Ano: 1998

Ao questionar o silêncio sepulcral do espectador, Boal organiza o rompante criticando


o teatro que se organiza de forma a não reconhecer a dignidade dos seres humanos, os
compreendendo como meros receptores e repetidores do processo. Essa perspectiva do TO
vem embebida da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, que tem no cerne da sua teoria a
superação da relação “opressor-oprimido”. Apontando a elaboração do conhecimento que se
constitui a partir de um processo de conscientização crítica da realidade, o centro do método é
o diálogo, e este compreende como sujeitos do processo educador e educando e a escola
inserida em um contexto histórico-político.
Paulo Freire fala da transitividade do verdadeiro ensino: o professor não é
aquele que descarrega saber na cabeça do aluno, como que esvazia um
caminhão, cofre de banco onde se guarda o dinheiro-saber: professor é o
que possui um conhecimento e o transmite ao aluno e, ao mesmo tempo,
dele recebe outro conhecimento, pois que o aluno possui o seu próprio
saber. Ensino é transitividade. Democracia, diálogo. “A um camponês
ensinei como se escreve a palavra arado; e ele me ensinou como guiá-lo” –
disse um professor cordovês argentino. No teatro convencional existe uma
relação intransitiva: do palco tudo se transporta, transfere – emoções,
ideias, moral! – e nada vice-versa. Qualquer ruído, exclamação, qualquer
sinal de vida que faça o espectador é contramão: perigo! Pede-se silêncio
para que não se destrua a magia da cena. No Teatro do Oprimido, ao
contrário, cria-se o diálogo; mais do que se permite, busca-se a
transitividade, interroga-se o espectador e dele se espera resposta.
Sinceramente. (Boal, 1996, pg. 45-46).

27
A educação em Freire nasce da observação e se propõe à ação transformadora, a partir
do encontro entre interlocutores que procuram no ato de conhecer a significação da realidade,
e na práxis o poder da transformação que se forja um processo que nega o treinamento e a
domesticação. O modelo de educação propõe uma relação de troca horizontal entre educador
e educando, e atitude de transformação da realidade conhecida. É uma educação
conscientizadora na medida em que além de conhecer a realidade, busca transformá-la. Tanto
o educador quanto o educando aprofundam seus conhecimentos em torno do mesmo objeto
cognoscível para poder intervir sobre ele. (FREIRE, 1995)
A partir do método que defendia na ação uma prática de trabalho de alfabetização que
capacitasse o oprimido tanto para a leitura e escrita quanto para a sua liberdade de expressão,
Freire propôs um método fundado no princípio de que o processo educacional deve partir da
realidade que cerca o educando. O ato de aprender a ler, escrever, alfabetizar-se é, antes de
tudo, aprender a ler o mundo, entender os seus contextos; não é escrever algumas palavras,
formar frases, sem compreender a dinâmica que une a linguagem e a realidade, mas também é
necessário compreender qual o contexto social e cultural em que se está inserido.
O pensamento de Freire se consolida junto a conjuntura de intensa mobilização e luta
política da década de 60, no Brasil e na América Latina. O educador compreende que a
educação é um ato essencialmente político, “do ponto de vista crítico, é tão impossível negar
a natureza política do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político”
(FREIRE, 1993, pg. 27). Não sendo possível existir uma educação neutra, a serviço da
humanidade, sem que se esteja atenta à questão do poder. No livro Pedagogia do Oprimido é
possível verificar a aproximação de Paulo Freire com o pensamento marxista,

Em última análise, devo dizer que tanto minha posição cristã quanto a
minha aproximação de Marx, ambas jamais se deram ao nível
intelectualista, mas sempre referidas ao concreto. Não fui às classes
oprimidas por causa de Marx. Fui a Marx por causa delas. O meu encontro
com elas é que me fez encontrar Marx e não o contrário (FREIRE, 1979, pg.
74-5).

Um pressuposto marxista importante em Freire é a afirmação da condição humana


criadora, o ser humano como sujeito e não como objeto, e que, diferente dos outros seres
vivos pode se distanciar e observar a própria ação, ultrapassando a esfera espontânea. As
afirmações de Paulo Freire, calcadas no materialismo histórico dialético, compreendem que o
sujeito tem sua função criadora manifestada no fato de que o ser humano se cria a si mesmo,
se transforma ele mesmo em ser humano por mediação do seu trabalho, e este tem
28
determinantes objetivos, culturais, políticos, sociais e naturais. O cerne do marxismo no que
tange à evolução histórica é a de que o ser humano se fez ser humano diferenciando-se do
animal através do seu próprio trabalho. “O ser social e histórico sobrepôs-se à espontaneidade
natural e a ultrapassou. Desafiou os próprios limites enquanto espécie através do processo de
objetivação de si mesmo” (BOGO, 2011). O materialismo histórico comprova enfaticamente
que:
(…) o primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a
existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois,
a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada
com o resto da natureza. (MARX; ENGELS, [1845] 1986, p. 27).

A afirmação, talvez óbvia, de que não poderia haver história humana sem os seres
humanos, necessita ser acrescentada do referencial do fazer e do fazer-se enquanto sujeito
histórico. Até o século XIX, explicava-se a origem do ser humano e da história por meio da
mitologia, religião e filosofia idealista. Buscando comprovar o desenvolvimento da
humanidade de outra maneira, o materialismo histórico superou tais posições concluindo que
o trabalho é a condição básica e fundamental da vida humana, e o que constituiu o próprio
homem e mulher (BOGO, 2011). Esse fundamento básico leva-nos a perceber que a relação
do ser humano enquanto gênero se inicia no momento em que ele é obrigado a produzir a sua
própria existência, a fazer-se humano. Portanto, diferente da natureza que diante das
necessidades não dispõe da capacidade de tomar iniciativas para supri-las, além daquelas que
já lhes são inerentes; o ser humano pensa, imagina e cria soluções. Ou seja, a realidade não é
estática e nós podemos transformá-la, pressuposto marxista presente no pensamento freireano
e boalino.
Outro elemento fundamental idealizado por Marx e Engels e presente em Paulo Freire
é relativo às classes sociais, ao conflito entre elas e a história da humanidade como resultado
da luta de classes. As classes, em Marx, expressam as formas sociais de organização voltadas
para a produção e os fatores decorrentes dessas relações resultam em uma divisão no interior
das sociedades, a divisão social do trabalho, na qual a classe dominante é que detém os meios
de produção e a classe trabalhadora quem produz a riqueza. À proporção que as forças
produtivas evoluem, as relações sociais tornam-se mais complexas. Os modos de produção
sucedem-se pelas contradições que se estabelecem e pela intervenção organizada das forças
sociais. A educação no sistema capitalista é criticada por Freire, chamada de “pedagogia dos
dominantes” e conceituada de “educação bancária”, onde a educação existe como prática da
dominação, e a pedagogia que se contrapõe a do sistema capitalista é a “pedagogia do
29
oprimido”, na qual a educação passa a existir como prática da liberdade e que precisa ser
realizada (1987, pg. 19), sendo construída com o oprimido e não para ele.
Freire aborda a educação como cerne fundamental, não totalizante, mas determinante
para o processo de emancipação humana, conscientização e libertação social e deve ter como
um dos principais objetivos, desvelar as relações opressoras vividas pelos seres humanos,
transformando-os para que eles transformem o mundo, e para isso estabelecer a “relação
dialógica”. Na incansável luta de recuperação da humanidade destroçada, fundamentada na
práxis, ação-reflexão-ação-reflexão, como unidade dialética inseparável, Freire, em acordo
com Boal, defende que a conscientização é um compromisso histórico, na medida em que o
sujeito se insere criticamente na sociedade, transformando-a.

1.2.5 – O encontro com a mulher peruana e o surgimento do espect-ator


A América Latina proporcionou a Boal encontros importantes, além da Pedagogia do
Oprimido de Paulo Freire, definidora para a concepção do teatro a ser sistematizado por Boal,
o encontro com o próprio povo latino é determinante para as escolhas feitas por ele. Um
desses encontros se deu com uma mulher peruana, ela, assim como Virgílio e Jurandir, foi
determinante para a conformação do arsenal do TO. Sua ação e diálogo com Boal foram
detonadoras da criação da modalidade mais praticada mundo afora, o Teatro Fórum, a qual
autoriza e viabiliza as condições para que os espetadores intervenham na cena apresentada e
modifiquem as ações dos personagens, a fim de quebrar a opressão encenada.
No Peru, 1973, o teatrólogo estava dirigindo uma oficina no Programa de
Alfabetização Integral (ALFIN). A técnica utilizada era a da dramaturgia simultânea, uma
síntese aprimorada da experiência citada com Jurandir e os operários metalúrgicos, em que os
atores encenam e depois o público sugere, também em cena, as mudanças que devem ser
feitas. Uma espectadora a todo o momento se posicionava e sugeria alterações em uma cena
sobre violência doméstica, e por inúmeras vezes ela discordou do caminho encenado pelo
elenco. Até que depois de várias tentativas ela levantou-se irritada para ir embora. Quando
estava perto da saída Boal perguntou por que ela iria se eles estavam ali todos se empenhando
para encenar as sugestões dadas por ela. Ela disse que Boal nunca entenderia o que ela,
mulher, queria dizer, por que ele era um homem. Ele então a convidou para que ela mesma
encenasse. A senhora substituiu a protagonista e foi mostrar como a cena deveria ser feita, fez
como faria se estivesse no lugar dela, mostrou-se interpretando a si mesma, ao interpretar o
personagem. Esta intervenção do espectador, agora transformado espect-ator, conforma a
30
estrutura dorsal do Teatro do oprimido:
(...) os espectadores – aos quais chamamos de espect-atores são convidados a
entrar em cena e, atuando teatralmente e não apenas usando a palavra,
revelar seus pensamentos, desejos, estratégias que podem sugerir, ao grupo
ao qual pertencem, um leque de alternativas possíveis por eles próprios
inventadas: o teatro deve ser um ensaio para a ação na vida real, e não um
fim em si mesmo. (BOAL, p. 19)
Os dois princípios organizadores do Teatro Fórum são “a) transformação do
espectador em protagonista da ação teatral; b) tentativa de, através dessa transformação,
modificar a sociedade, e não apenas interpretá-la” (BOAL, 2007, p. 319). A ação do sujeito
espect-ator – espectador + ator - é marcada pela tentativa de resolver um conflito apresentado,
faz-se o convite à práxis, o espectador sai do lugar de consumidor da arte, e passa ao lugar de
criador.
A intervenção do espect-ator é orientada pelo Curinga, esse cumpre uma função
central, é responsável por ser o fio-condutor que garante a dialogicidade da relação palco-
plateia-palco-plateia, é quem apresenta ao público no início do espetáculo a proposta cênica
do Teatro Fórum; é ele também o responsável por suscitar questões para que o fórum
aconteça, e o público seja trazido à cena pela vontade de transformar, agir, contribuir para
resolver o problema encenado, aceitando o convite de tornar-se o espect-ator, que "nunca é
somente objeto. Ele é sujeito porque também age sobre o ator, ele é o ator porque pode guiá-
lo, modificá-lo” (BOAL, 1996,22).
O desfecho de uma peça de Teatro-fórum é construído na ação-cênica, a criação
coletiva só se faz completa na comunhão do espetáculo. O que faz com que o texto da peça de
teatro-fórum só se revele na representação, sendo assim, a criação do espetáculo Fórum se
caracteriza por não ter um desfecho amarrado, é preciso que a história se desenrole a partir do
que os espect-atores proponham. E um pode discordar do outro, contanto que não fique
apenas da platéia dizendo o que deve ser feito, para decidir sobre o rumo da peça, para
escrever o texto é preciso que entre em cena, é preciso tornar-se espect-ator.
O Teatro Fórum é assim chamado porque nas vivências na América Latina o público
sempre solicitava o “foro” depois dos espetáculos: uma espécie de debate após as peças serem
apresentadas. Boal se apropriou da palavra “foro” e a partir daí o debate se tornou o próprio
espetáculo. “Teatro não didático no velho sentido da palavra e do estilo, mas pedagógico no
sentido de aprendizado coletivo”. (Boal, 2002, p. 22)
Marcado pelo permanente processo, a criação da peça-fórum é feita em coletivo, a
partir do resultado de exercícios e processos dramatúrgicos, seja em oficinas ou em formações
31
mais longas. É possível afirmar que desde o processo de criação da peça o fórum está
instaurado, principalmente porque é a partir da síntese coletiva da ação cênica guiada pelo
arsenal do TO que se define sobre o que será o espetáculo.

1.3 MST e CTO – a parceria

O MST é organizado em diversos setores, os militantes assumem diferentes tarefas:


Produção, Formação, Educação, Frente de Massa, Comunicação, Gênero, Finanças, Saúde.
No início da formação dos setores, os debates e atividades referentes à cultura aconteciam no
Setor de Educação, que chegou a produzir materiais sobre a produção teatral no MST anterior
à criação do Coletivo específico sobre Cultura. Os educandos e educandas da COOPAM -
Cooperativa Pedagógica de Aprendizado do Magistério, construíram um material com o
título: “O brilho de quem faz a luta – A educação através do teatro popular”. Esse material,
datado de 1995, objetivou:
Subsidiar os educandos e as educandas das escolas dos assentamentos no
trabalho com o teatro. A iniciativa parte da experiência realizada no curso,
que tem como marca da turma a construção de peças de teatro... O material
trás algumas peças que tratam de datas comemorativas, saúde, historia de
lutas, conteúdos importantes para trabalhar com crianças. (SILVA, 2005, p.
35)

Mas é em 1996, com a criação do Coletivo de Cultura que o movimento dá início a um


processo de formulação artística coletiva e organizada, criando melhores condições para a
construção de uma linha política mais sólida em torno da cultura do movimento:

O papel do coletivo de cultura foi o de ampliar o espaço de discussão sobre


esse assunto e de buscar elementos mais filosóficos que fundamente a
estrutura, as contradições construídas, a forma e o conteúdo que os gêneros
teatrais desenvolvem e o reflexo que isso produz nas elaborações de peças e
na luta de classes. (SILVA, 2005, p. 37)

A prática foi apontando a necessidade de avançar na organicidade do Coletivo de


Cultura que se dividiu em quatro frentes: Música, Artes Plásticas, Poesia e Literatura e Teatro.
Em 2001 a Frente de Teatro fez a reflexão sobre a necessidade de melhor posicionar sua
prática na estrutura organizativa do Movimento, é quando se dá início ao processo formativo
com o Centro de Teatro do Oprimido (CTO). A parceria firmada entre o MST e o CTO, previa
a formação no método boalino de um grupo de militantes de vários setores e estados, com o
objetivo de que estes pudessem ministrar oficinas e formar grupos de teatro nos
acampamentos e assentamentos do MST, tornando-se coringas do TO.

32
Não basta invertermos o fluxo migratório campo–cidade se não alterarmos
significativamente os padrões que norteiam as relações de trabalho, ou seja,
precisamos construir novas formas de organização social, de produção
coletiva, e para isso precisamos lutar pela democratização radical dos meios
de produção, da agricultura, da comunicação, da educação, da cultura,
enfim, de tudo aquilo que nos permita imaginar e criar um mundo novo,
fundamentado no aprendizado das experiências de luta e resistência
anteriores. (BRIGADA PATATIVA DO ASSARÉ, 2005, p. 3)
O processo de construção dessas novas formas de organização social no MST,
compreende que, para essa transformação acontecer de forma libertadora, o conhecimento
precisa ser também um ato libertador e não uma doação, mas calcado no diálogo como
exigência existencial, que possibilita a comunicação e permite ultrapassar o imediatamente
vivido, intervir no contexto social, modificando a si e ao mundo, o que determina a
aproximação do MST a Augusto Boal e CTO,
Portanto, com a consciência de que para a efetivação de um projeto de
Reforma Agrária de cunho socialista seria preciso assumir a batalha no front
da cultura – qualificando militantes técnica e politicamente para iniciar um
processo de construção do imaginário de uma perspectiva coletiva – o MST
se aproximou de Augusto Boal e do Centro do Teatro do Oprimido.
(BRIGADA PATATIVA DO ASSARÉ, 2005, p. 3)
A perspectiva teatral apresentada pelo método boalino na construção entre diferentes
organizações – MST e CTO – se baseia no diálogo “(...) educador já não é aquele que apenas
educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando, que ao ser
educado, também educa (...)” (Freire, 1977, pg. 90). Desse processo dialógico, advém um
conhecimento que é crítico, porque foi obtido de uma forma autenticamente reflexiva, e
implica em ato constante de desvelar a realidade, posicionando-se nela. A história da relação
entre as organizações é anterior ao processo de formação da Brigada Patativa do Assaré,
Em 1990, no evento Terra e Democracia, organizado pelo Betinho com
apoio do IBASE, o CTO-Rio inicia um trabalho de atuação conjunta com a
metodologia do Teatro do Oprimido com o Grupo Camponês de Cultura Sol
da Manhã de Seropédica, Itaguaí, zona rural do Rio de Janeiro, tendo
apresentado dezenas de espetáculos em várias cidades e em várias
manifestações do MST. Foram criadas as seguintes peças: “As Duas Fases
da Reforma Agrária” (1990/1991); “Nossa História” (1992/1993/1994); “A
Crise da Fome” (1994/1995); “Jovem Rural” (1996/1997); “Impunidade”
(1998); “Quinhentos Anos de Luta pela Terra” (1999). Oficinas diversas e
palestras de Boal aconteceram ao longo desta [...]. (CTO – RIO, 2001, pg. 2)

Oficinas e palestras haviam sido feitas, mas a proposta de formar uma turma de militantes,
com a metodologia do Teatro do Oprimido, foi elemento novo e definidor na formação em
teatro do MST:
O CTO ministrou atividades formativas, socializando os meios de produção
33
da linguagem teatral para um grupo de militantes de vários estados, que têm
a tarefa de formar novos multiplicadores e novos grupos nos acampamentos
e assentamentos. (BÔAS, 2006).

Foram cinco etapas de formação – de 2001 a 2002 – entre o CTO e grupos de militantes de
vários estados do país que, por sua vez, formariam novos multiplicadores e novos grupos nos
acampamentos e assentamentos.

METAS DO PROJETO DO MST COM O CTO-RIO:


1.Cada integrante do curso deve multiplicar o que aprendeu, através da
organização de oficinas e formação de pelo menos um grupo de Teatro do
Oprimido dentro do movimento.
2.Incorporar o TO como metodologia no processo de formação dentro do
MST.
3.Participar com o trabalho teatral na programação oficial do Fórum Social
Mundial em janeiro de 2002. (MST, documento interno)

A deliberação levada a cabo na 2ª etapa de formação com Boal e o CTO foi materializada com
o surgimento de grupos de TO no movimento, e segundo Vilas Bôas, integrante do Coletivo
de Cultura do MST,
Atualmente o MST tem cerca de 30 grupos organizados em acampamentos
e assentamentos da Reforma Agrária. A maioria dos grupos atua em
dimensão local, participando de atividades culturais, formativas e políticas
em suas áreas e cidades vizinhas. Há também alguns grupos que, por terem
mais tempo de vida e experiência, atuam em dimensão regional e nacional,
se apresentando e ministrando oficinas em cursos de formação, em debates,
seminários e eventos culturais nos meios urbanos e rurais. 4

A formação com o CTO apontou que além do elemento organizativo, de identidade, a


intervenção teatral do MST precisava ser pensada nacionalmente como linha política do
movimento. Era preciso estruturar e organizá-los para que não se isolassem, dada as
dimensões territoriais do nosso país, o escasso acesso das comunidades rurais a telefone e
internet, e principalmente para que a política continuasse a ser pensada, para que a reflexão-
ação vivenciada no processo de formação com Boal e o CTO fosse só o começo. A solução
encontrada logo no início da formação foi a transformação do grupo de militantes
multiplicadores do TO no coletivo que se auto-denominou Brigada Nacional de Teatro do
MST Patativa do Assaré, em homenagem ao grande poeta popular cearense, criando
organicidade nacional.

4
Rafael Vilas Bôas em entrevista concedida ao site do MST, em 06 de julho de 2006,
http://www.mst.org.br/node/2595, acesso em 03de outubro de 2012.
34
Figura 3 –Brigada Patativa do Assaré reunida com Augusto Boal e os coringas CTO. Fonte: acervo do
MST

35
Figura 4 – Veja criminaliza ações do MST. Fonte: Revista Veja, 10 de maio de 2010

Era preciso que os Sem Terra pudessem ver seus assuntos e problemas alçados à
condição de objeto da representação artística, e eles mesmos como sujeitos dessa
representação. A apropriação dos meios de produção teatrais passa a ser uma das lutas, ter o
direito de representar a si e sua realidade de forma não ditada pela classe dominante “a
palavra latifúndio assume para nós um significado simbólico que transcende a luta pela
desapropriação das terras improdutivas, que não cumprem com sua função social.” (Brigada,
pg.1) Ocupar o latifúndio do teatro.
O direito de representar a realidade está distante da vida das pessoas ou a
representação está associada às novelas das TVs. Augusto Boal, ao descrever sua experiência
teatral nas comunidades cariocas afirma que,

O primeiro problema que se enfrenta ao ensaiar uma peça com as


comunidades é a ausência de referências teatrais. A maior parte dos
integrantes dos nossos grupos jamais foi ao teatro e, se foi, foi para ver uma
comédia de costumes. Quando falamos a palavra “teatro” na verdade o que
entendem é “telenovela”. (BOAL, p. 94,1996)

Felinto Santos, conhecido como Mineirinho, um dos militantes que participou das etapas de
formação com o CTO, afirma que uma das dificuldades era avançar na compreensão dentro
do próprio movimento de que o que estavam fazendo não era entretenimento e, sim, parte da
política:
Essa mesma distorção de que a cultura é separada da política, essa distorção
que separa a dominação cultural, principalmente no Brasil, exemplo a
dominação norte-americana no Brasil. Coisa muito bem pensada, que está
intimamente ligada. A esquerda coloca a cultura no lugar de entretenimento.
O MST faz o exercício de colocar a arte na formação, mas ainda estamos no
campo do exercício. (Mineirinho, em entrevista concedida a autora)

Ao optar pela apropriação do teatro era preciso construir um processo formativo em que os
Sem Terra tomam para si a representação da realidade e de enfrentamento aos padrões de
representação fincados nas novelas globais, “no início enfrentamos preconceitos, ouvimos
gente dizer que Sem Terra não sabia fazer teatro”. (GARGANTA, citado por SILVA, p. 23).

36
Figura 4 - Estandarte do Peça pro Povo, coletivo de teatro do MST do Rio Grande do Sul. Fonte:
Coletivo Peça pro Povo

37
Figura 5: Formação da Patativa do Assaré com Boal . Fonte: documentário de Nina Simões.

Figura 6: Formação da Patativa do Assaré com Boal. Fonte: documentário de Nina Simões.

38
Figura 7 - Formação da Patativa do Assaré com Boal . Fonte: documentário de Nina Simões.

1.4 – O teatro fórum


O encontro do arsenal do TO com o projeto dos Sem Terra tem como parte do
resultado a produção de 4 peças fórum, sínteses políticas de questões centrais para a luta do
MST. A modalidade fórum foi a mais trabalhada durante o processo de formação, nela um
conflito é explicitado entre opressor e oprimido. Apresenta-se na cena as possibilidades de
mudar as perspectivas, o que comumente é tratado como fatalidade ou natural é desvelado
como histórico e transformável. É revolucionário compreender que a opressão sofrida nunca é
somente de uma pessoa se alçada à esfera das relações sociais, é possível desnaturalizar a
construção da opressão como problema de um indivíduo apenas. A naturalização da opressão
é parte da estratégia de manutenção da opressão. Um exemplo, recorrente nos fóruns, é a
violência contra as mulheres, é que ao debater em cena a opressão machista sofrida por uma
mulher dentro de sua casa pelo marido, é preciso explicitar um problema social, e não
individual. O Teatro Fórum, se coloca para levar a opressão à condição de opressão
consciente.
No caso do exemplo citado, as mulheres acreditam que os maridos têm direito de
bater, que elas são naturalmente responsáveis por realizar o trabalho doméstico, que mulheres

39
podem receber menores salários porque são naturalmente inferiores, e etc. O Teatro Fórum
precisa expor a opressão machista como construção social e histórica, com determinantes
econômicos e culturais, ou seja, precisa expor, não a mulher contra o homem, mas a classe
contra o patriarcado. “No sentido marxiano, a totalidade é um conjunto de fatos articulados ou
o contexto de um objeto com suas múltiplas relações ou, ainda, um todo estruturado que se
desenvolve e se cria como a produção social do homem.” (CIVIATA, 2001, p.123). Se no
Teatro Fórum uma situação de opressão for debatida como de uma pessoa apenas, a
construção será de uma resposta individual, e o sujeito da ação passa a ser vítima. Se isso
acontece é preciso rever a práxis e a condução do Curinga, pois está indo de encontro à
proposta do método.
Nenhuma cena de Teatro-Fórum (técnica do Teatro do Oprimido) deve ser
exposta em escala microscópica sem que se vejam os elementos essenciais
do Mapa da situação… em um conflito particular, não devemos descer as
suas singularidades, conjunturais, mas subir ao estrutural: do fenômeno a lei
que o rege – as suas causas – Ascese! (Boal, 2009, pg.173)

O Fórum expõe a opressão, deixando-a em carne viva na representação. É como se


nós, seres sociais, ao depararmo-nos com a opressão escancarada como janela aberta em
domingo de tempestade, fossemos convidados a encarar e resolver as feridas sociais expostas
de forma explícita. Aqui, retornamos diretamente ao materialismo histórico dialético. O fórum
é construído para que o indivíduo perceba que precisa tornar-se classe na reunião da
coletividade contra o seu oposto. Uma das máximas do Teatro Fórum é que o “Teatro é ação!
Pode ser que o Teatro não seja revolucionário em si mesmo, mas não tenham dúvidas: é um
ensaio da revolução!” (BOAL, 1988, pg. 181). É um ensaio porque no Fórum, os espect-
atores assumem a cena para conduzir a representação da realidade, transformando a ficção
estão preparando-se para agir na sua própria realidade. Apresenta-se a imagem da realidade
real e o trânsito para a imagem da realidade ideal. “O teatro é uma representação do real, não
é o real, ainda que saibamos todos que a imagem do real é real enquanto imagem.” (BOAL,
2003, pg.76 ).

1.5– O teatro fórum Sem Terra: análise actancial da peça Privatleite

Em 2001, na 3ª etapa de formação de curingas do CTO e MST – no Rio de Janeiro,


foram criadas as três primeiras peças: A peleja do boi bumbá contra a águia imperiá,
Privatleite, Direito de comer direito, apresentadas no II Fórum Social Mundial em Porto

40
Alegre. Marcava essas peças o fato de serem curtas e de mostrarem a busca do MST por
compreender e se posicionar politicamente diante de vários temas relacionados aos processos
de dominação. Os conflitos que a Brigada opta por fazer emergir nas peças fórum explicitam
a demarcação ideológica, assumindo papel de formação interna e externa.
Em A peleja de boi bumba contra a águia imperiá alerta para a ameaça do
aceleramento da mercantilização e avanço imperialismo norte-americano na América Latina,
contidas na proposta de criação da Área de Livre Comércio das Américas- ALCA. Em
Direito de comer direito conta-se a trajetória de uma mulher que vive as agruras da vida na
favela e que opta por entrar no MST.
Privatleite, peça escolhida para analisarmos, conta a história de Geraldo, um pequeno
agricultor que sai para vender o leite natural de sua vaca Mimosa e encontra as agruras do
avanço do agronegócio através das multinacionais que vendem o leite mais barato que o dele
e criminalizam a venda do leite dos trabalhadores rurais. Dona Fulgência, pequena
comerciante que comprava o leite natural de Geraldo, depois da chegada da multinacional
Parmalaite - nome que faz referência direta a empresa italiana de produtos alimentícios
Parmalat - só aceita fazer o negócio se for no preço vendido pelas multinacionais. Se antes
Geraldo vendia a quinze centavos, agora é nove centavos. Ao longo da peça Geraldo vai se
deparando com as contradições do sistema capitalista e com as dificuldades de se sustentar
com o trabalho no campo. Logo após vender o leite para D. Fulgência, Geraldo procura um
lugar para urinar e se depara com a privatização do banheiro da rodoviária, que agora custa o
equivalente a dez litros de leite da Vaca Mimosa. Geraldo decide então urinar na rua e é pego
no “ato” por uma Madame, propositalmente escandalosa, representante comercial da
Parmalaite que zomba do agricultor e o acusa de assédio, como é possível identificar no
trecho a seguir.

MADAME
Seu safado! Imoral! Você não tem vergonha de ficar com
esse instrumento deeeste tamanho de fora, não?! Você não
está vendo que isto aqui é uma via publica?!
GERALDO
Não, não, dona, não é nada disso não! É que da última vez
que eu vim à cidade tudo era melhor, era público! Hoje paga
até pra mijar, e é caro viu!

41
MADAME
Precisamos avançar! Estamos na era da globalização! Temos
que nos adaptar!
GERALDO
Ahh! Lá na roça não tem isso não! Tudo que a gente tem a
gente reparte.
MADAME
Se o que você produz no seu sitiozinho não lhe dá condições
para pagar um banheiro, vende esta porcaria e arranja um
emprego decente! Nós na Parmalaite pagamos quase um
salário para um faxineiro!

O texto citado, é trecho do chamado anti-modelo da peça-fórum Privatleite, conceito utilizado


por Boal para definir a peça escrita, produzido na maioria das vezes a partir do processo
coletivo com os atores e atrizes, sobre um único tema, que explicita a oposição
opressor/oprimido suscitando a dúvida,
O Antimodelo, peça suporte do espetáculo-fórum, repousa sobre as
oposições binárias entre opressores-oprimidos, cujos representantes
actanciais são protagonistas-antagonistas. Contrariamente às fábulas
clássicas, o protagonista do antimodelo é aquele que o espectador identifica
como oprimido, e com quem, supostamente, ele deve solidarizar-se, e não o
ator predominante. Isto exige do fórum que a opressão seja claramente
exposta, para que seja objetiva a intervenção do espectador. (PEREIRA,
2000, pg. 132)

Em cena, o anti-modelo deve conduzir o emergir do conflito ideológico subjacente à fábula. A


transformação dos oprimidos ao longo das intervenções opera uma inversão de papéis,
alterando a estrutura binária opressores-oprimido. O espect-ator então, reformula o anti-
modelo, que segundo Boal existe para ser destruído, retirando as personagens de seus lugares
socais de origem, reorganizando a estrutura social em cena, e a partir do qual faremos a
análise actancial da peça-fórum da Brigada Patativa do Assaré.
A opção por fazer a análise actancial se dá pela possibilidade de evidenciar o eixo
principal do texto e suas engrenagens de sustentação. Evocando a Sêmantica Estrutural, de A.
J. Greimas e as Duzentas Mil Situações Dramáticas de É. Souriau, Anne Ubersfeld denomina
os actantes a partir do concurso das unidades de Greimas. A estrutura actancial nos permite
evitar análises tão confusas quanto à clássica análise “psicológica” das personagens

42
(UBERSFELD pg. 31), auxiliando na determinação da sintaxe da ação dramática, situadas no
âmbito da semântica, que se defronta com a ideologia (UBERSFELD, pg.32)

O modelo actancial não é uma forma, é uma sintaxe, portanto capaz de gerar
um infinito de possibilidades textuais. O que podemos tentar na esteira de
Greimas e de François Rastier, é uma sintaxe da narrativa teatral em sua
especificidade, sem esquecer que cada uma das formas concretas geradas
pelo modelo é: a. inscrita em uma história do teatro, b. portadora de
sentido, portanto em correlação direta com os conflitos. (UBERSFELD, pg.
34, grifo nosso)

Para que confrontemos a análise com a história e a ideologia da cena é preciso


evidenciar os elementos invisíveis e as inter-relações, para isso a análise actancial leva em
consideração as determinações “superficiais”, estruturas de superfície: personagens, discursos,
cenas e diálogos, tudo o que diz respeito à dramaturgia, e a estrutura profunda; que é a sintaxe
da ação dramática. São evidenciados seis actantes agenciados em duplas: o par sujeito-objeto:
o sujeito pretende atingir o objetivo e exercer sobre ele a sua ação; o par destinador-
destinatário: quem ou aquilo que impulsionou o sujeito para o objeto; o par adjuvante-
oponente: quem ou aquilo que contraria ou favorece a ação,
a. um actante pode ser uma abstração (a Cidade, Eros, Deus, a Liberdade) ou
uma personagem coletiva (o coro antigo, os soldados de um exército), ou
então uma reunião de várias personagens; b. uma personagem pode assumir
simultaneamente ou sucessivamente funções actanciais diferentes; c. um
actante pode ser cenicamente ausente e sua presença textual pode estar
inscrita apenas no discurso de outros sujeitos de enunciação (…) Um actante
identifica-se, portanto com um elemento (lexicalizado ou não) que assume na
frase de base narrativa uma função sintáxica: há o sujeito e o objeto, o
destinatário, o oponente e o adjuvante (…) o destinador. (UBERSFELD,
pg. 35)

É premissa do modelo actancial de Greimas de que a narrativa, em nosso caso teatral,


é um fluxo movido, apontado, impulsionado por um actante que opera movido por um vetor
de desejo intenso uma busca obstinada, uma necessidade. Expresso na seta da procura, da
vontade, do desejo, propõe-se determinar a identidade do sujeito no texto, sendo impossível
separá-lo do que o liga ao objeto e constitui a sua procura. É a ação de cumprimento dos
desejos que sustenta e mobiliza a narrativa e o personagem. Trata-se de uma força ativa
empenhada na concretização de uma tarefa motivada por um desejo.

43
Figura 8 – Diagrama do Modelo Actancial

O diagrama acima pressupõe que um sujeito S, motivado por um destinador D1 e visando ao


favorecimento de um destinatário D2, busca um objeto O, contando com o auxílio de um
adjuvante Ad e a contrariedade de um oponente Op.
No anti-modelo de Privatleite, o “xixi na rua” passa a ser motivo de criminalização do
agricultor. A Madame deseja que Geraldo seja preso. Na delegacia ele é humilhado, enquanto
a Madame é bem tratada. Geraldo é condenado pelo Delegado a pagar 300 reais por vender
leite natural e atentado ao pudor. Caso não pague, vai preso e a fiança é de 600 reais, o
equivalente ao preço do sítio do agricultor. O camponês é a todo tempo humilhado por ser
trabalhador rural, o “caipira” como é chamado, representa o pobre do campo, criminalizado
por ser camponês, ridicularizado por permanecer morando na roça, por sua cultura,
evidenciada em sua linguagem.
Ao definirmos o protagonista e oprimido Geraldo como sujeito (S), estamos definindo
os trabalhadores como tal, e o objeto, vender o leite in natura a preço justo, ou seja; trabalhar
e se sustentar a partir do seu trabalho, sem ser explorado por nenhuma multinacional ou

44
patrão. Em oposição ao trabalhador Geraldo, temos a Parmalaite, empresa que industrializa o
leite, impedindo que o trabalhador rural possa vende-lo in natura a preço que pague pelo
trabalho empregado. A Parmalaite aqui representa a classe dominante, detentora dos meios de
produção e, é representada, no anti-modelo, por personagens diversos, sendo a Madame
principal portadora do discurso dominante, ela que não é a multinacional mas a representa e
age a partir da ideologia dominante, sendo vetor da exploração e humilhação por parte da
empresa ao trabalhador rural. Em nenhum momento da peça a Parmalaite aparece enquanto
personagem, mas suas ações predadoras mediam as relações entre os personagens que atuam
ao lado dela em oposição a Geraldo. O delegado e o guarda representam o Estado que age
como órgão de dominação de classe, ao invés de agir em defesa do trabalhador como
podemos ver na última cena da peça:

DELEGADO
Cale a boca sujeitinho! Claro minha senhora, volte sempre, venha tomar um
cafezinho com a gente. Vou ter uma conversa com esse sujeito que teve a
ousadia de molestar uma dama como a senhora.
MADAME
Vou aproveitar para convidá-lo para comermos um churrasco, na casa de
campo da empresa.
DELEGADO
Eu gosto muito, muito mesmo de churrasco! Ah, um churrasco com a carne
bem sangrenta, macia, adoro morder... (Se volta para Geraldo e assume uma
postura brusca.) – Qual seu nome indivíduo? Onde você mora? Você pelo
menos trabalha? Ande logo, se explique sujeito, seu caipira!
GERALDO
Eu vou contar desde o princípio: eu estava cantando uma música da roça pra
que a minha vaquinha me desse mais leite, quando...
DELEGADO
Não quero saber de seus problemas, muito menos de sua vaca Mimosa e do
seu leite. Eu estou aqui para cumprir a lei. Sujeito: você cometeu duas
infrações. Primeira, vendendo leite in natura: o leite deve ser entregue na
indústria para ser industrializado, e não vendido aqui na cidade. E a segunda
infração? Você anunciou duas, então descreva-as!

Se definirmos o Estado, no caso Guarda e Delegado, como actante opositor a Geraldo e a seu

45
objeto, agindo na criminalização do trabalhador e seu trabalho em favor da Parmalaite, além
de adjetivar o trabalhador rural como “caipira”, na tentativa de inferiorizar o povo camponês,
o Delegado e o Guarda atuam contra o desejo de Geraldo, compreendendo crime o trabalho
do agricultor, mas não compreendendo crime a privatização e o monopólio do leite por parte
da multinacional. Sendo então a Parmalaite – classe dominante, a Madame, o Delegado e o
Guarda, oponentes ao actante sujeito Geraldo – classe trabalhadora e seu objeto. A ação do
sujeito Geraldo, se destina aos trabalhadores enquanto classe, e é a mesma classe trabalhadora
organizada, com consciência para-si, que será adjuvante do objeto de Geraldo, mesmo não
sendo personagem no espetáculo. O modelo actancial a partir dessa perspectiva se organiza
da seguinte forma: Geraldo, motivado pelos trabalhadores rurais, a classe a qual ele pertence,
visando ao favorecimento também desses trabalhadores e da sociedade, busca ter direito de
continuar trabalhando vendendo o leite in natura, contando com o auxílio do povo camponês,
dos movimentos organizados e a oposição da Parmalaite como classe dominante. Ficando o
diagrama:

Figura 9 – Diagrama Modelo Actancial 1 Privatleite

Se invertermos o sujeito para o antagonista e ocuparmos o actante S com a Parmalaite,


mesmo não sendo a empresa personagem aparente do texto, invertemos todo o modelo
actancial. O objeto de desejo do sujeito Parmalaite é a privatização e o monopólio do leite, a
partir daí deslocamos as personagens Madame, Guarda e Delegado, antes opositores para

46
agora adjuvantes. Em oposição ao objeto do sujeito Parmalaite, teremos Geraldo e os
trabalhadores rurais, pequenos agricultores, Movimento Sem Terra, ou seja, a classe
trabalhadora em oposição a classe dominante. Ficando então a Parmalaite motivada pelo
sistema capitalista, visando o favorecimento desse mesmo sistema por ser ela parte dessa
classe dominante, que se expressa no agronegócio que busca a privatização e monopólio do
leite. Contando com o auxílio da Madame, Guarda e Delegado e com a oposição de Geraldo e
sua classe, os trabalhadores rurais e movimentos sociais. Ficando o diagrama:

Figura 10 – Diagrama Modelo Actancial 2 Privatleite

É possível verificar que em ambos os modelos actanciais o antagonismo opressor-


oprimido pressuposto do anti-modelo da peça fórum, permanece evidenciado e o conflito
acirrado. Mas é o segundo modelo que evidencia não somente o antagonismo, mas a estrutura
social, ou seja, o Sujeito-Parmalaite como classe dominante e não a Madame, que é portadora
do discurso do Sujeito mas não detentora dos meios de produção, no caso, “mera” adjuvante.
Ao substituir o oprimido-Geraldo, o espect-ator vai agir em torno do conflito entre
Geraldo-Madame, Geraldo-Guarda, Geraldo-Delegado, mas não Geraldo-Parmalaite. É na
47
estrutura superficial que atua o espect-ator, “Sendo o fórum mutante por definição, as
estruturas de superfícies são frequentemente mais significativas posto que imediatamente
detectáveis” (PEREIRA, 2000, pg. 136). É possível dizer que o espect-ator ao ocupar o lugar
do oprimido Geraldo enfrentará quem se revela na estrutura superficial, “personagens,
discursos, cenas e diálogos” (UBERSFELD, 2010, pg. 31), os adjuvantes do Sujeito-
Parmalaite são o centro do acirramento com o Opositor-Geraldo.
É necessário que o espetáculo fórum, ao desenvolver-se na ação, evidencie os
diferentes sentidos extraídos da mesma ação demonstrando que a ideologia se articula através
de duas forças em constante confronto: a estabilidade e a controvérsia, o espect-ator tem que
atuar no conflito entre opressor-oprimido, mas também na contradição que se instaura com o
enfrentamento a sujeitos opressores mas não ao que aqui podemos chamar de inimigos, como
são as multinacionais que “emergem” no neoliberalismo e em confronto direto aos Sem-Terra
e ao projeto defendido por eles.

Figura 11 - Brigada Patativa do Assaré ensaiando a peça Privaleite – na cena, a Madame denunciando
Geraldo à polícia.
Os participantes do fórum caminham dialeticamente entre as estruturas a depender de
como se desenrole o fórum, como se conduz, e quem sãos os espectadores que ao aceitarem
48
entrar no jogo cênico tornar-se-ão espect-atores. É no decorrer desse fazer e refazer-se que se
configura o desenvolvimento da práxis como ação e reflexão consciente.

Talvez ainda seja utópico tentar analisar essas macroestruturas textuais


procurando não isolá-las de suas condições de produção, quer dizer, de sua
relação com a história. Mas o que está em jogo é de tal ordem que vale a
pena ao menos esboçar o andamento. Por simples e ingênua que pareça
nossa pesquisa, ela pode permitir que se delimite, no âmbito do teatro o
lugar onde se articulam estrutura e história. (UBERSFELD, 2010, pg.32)

A peça-fórum PrivatLeite foi encenada em eventos de outros grupos organizados, a


exemplo, do Movimento dos Pequenos Agricultores de Rondônia e teve papel importante na
mobilização dos agricultores familiares em uma das maiores greves do leite do estado, em
2003. A indignação ao “sentir na pele” aquela situação representada, ver a injustiça com
“alguém que poderia ser ‘eu’, lá” serviu de agente mobilizador, um “despertador” que
mostrava a necessidade e a possibilidade de reagir: “o teatro-fórum provoca o sujeito a se ver,
a olhar para as questões postas em cena e a revisitar o seu lugar atuante e criador de
estratégias de intervenção”, (CANDA, 2013, pg.131). A análise actancial do anti-modelo
Privatleite permite ver que os desejos expressos são os que revelam as classes sociais, os
representantes actanciais são protagonista e antagonista, e o conflito é acirrado objetivando
evidenciar o antagonismo de classe para que seja possível, na intervenção do espect-ator, a
expressão do desejo de superação da opressão na qual está submetido o oprimido. A Patativa
do Assaré, a partir do vínculo entre a técnica apreendida - TO, e a experiência social dos
camponeses, que é matéria política para as peças, traz, a partir da dimensão do confronto
ideológico, novas possibilidades para o fazer teatral.

A organização da Brigada Patativa do Assaré, sua metodologia de produção


coletiva, os processos de circulação e distribuição da produção com alcance
nacional, acompanhados de sistemáticos e contínuos processos de formação,
proporcionaram à Brigada um efetivo poder de enfrentamento no campo
ideológico, dos projetos de sociedade em disputa na luta de classes. Essa
prática tem seu potencial político ampliado ainda mais quando estabelece
ações com o conjunto da organização e de outros movimentos sociais.
(Teatro e transformação social - Vol. 1 - Teatro Fórum e Agitprop, pg. 16)

Identifica-se, a partir da análise actancial, que a peça fórum de um movimento social


organizado explicita e analisa as engrenagens da opressão e as formas possíveis de desmontá-
la, revela-se em cena a força dos oprimidos, não contentando-se em ser apenas um lugar de
voz dos oprimidos, mas um lugar de ação dos mesmos e de ataque aos opressores. A prática

49
destas formas teatrais cria um sentido de incompletude que procura preencher-se através da
ação real. Essa ação real é a própria prática do movimento. Quando um grupo social
organizado, no caso em um movimento, apropria-se dos meios de produção teatrais, temos
uma circunstância de formação e de atribuição de sentidos (CANDA, 2013), também coletiva,
mesmo que não negue o indivíduo enquanto sujeito, a apropriação dos meios de produção por
parte de um movimento social tem especificidades demonstradas na capacidade de
intervenção na realidade a partir da leitura feita dessa realidade, e do que se deseja para a
mesma. O desafio dos Sem Terra, ao fazer teatro, é colocar em cena as engrenagens da
máquina, a máquina em funcionamento e como desmontá-la, posicionando sua mensagem
política para superação da ordem vigente.
Questionar a subordinação, exploração e opressão que vive determinado grupo social,
por muitas vezes foi, e ainda é, síntese disparadora de inúmeras criações e/ou formas teatrais
em todo mundo. As práticas cênicas, forjadas na conjuntura do início do século XX na Rússia
e Alemanha, atuam na defesa de um teatro não-catártico, que permita a participação crítica e
ativa do espectador diante da encenação. Essas práticas ao se constituir a partir da
socialização dos meios de produção teatrais e levanta importantes questões: como seria/será o
teatro que, no despir dos fatos, faça emergir as relações sociais e econômicas da sociedade
capitalista? Qual lugar deve ocupar o espectador nesse teatro? Como deve ser essa
participação? Como apresentar o mundo como possível de ser modificado? Como fazer com
que isso se transforme em um projeto de classe?

50
2. ECOS HISTÓRICOS DO TEATRO DO OPRIMIDO
2.1 O teatro assumidamente político: o trânsito histórico do lugar do espectador.
A Revolução Russa, em outubro de 1917, pondo em relevo a classe trabalhadora sem
acesso à produção artística criou as condições para que a arte, especialmente o teatro, fosse
pensada, pela primeira vez, como um eficaz instrumento de mobilização das “massas”
visando acelerar o processo revolucionário. Uma arte que rompesse as barreiras entre os
espaços da criação e da contemplação e fosse capaz de se apresentar como efetivamente
popular, no sentido de ser identificada à classe trabalhadora, e contraposta à cultura burguesa
(GARCIA, 2004, pg 6-7), é no contexto da Revolução Russa que o teatro assumidamente
político se forja, e com ele elementos centrais do que viria a ser o Teatro do Oprimido.
A luta revolucionária e a construção do socialismo eram os temas privilegiados da
juventude organizada na União Soviética (URSS), a exemplo, a União de Jovens Comunistas,
apoiados pelo Partido e pelos Sindicatos, que passaram a organizar, em torno de clubes
operários, das fábricas e dos núcleos de bairros, diversas atividades culturais com o fim de
educação política. Dentre as diversas atividades da chamada agitação e propaganda ou
agitprop, levadas a cabo nos primeiros anos da Revolução destacavam-se as trupes
ambulantes, os barcos e trens de agitação, festas de massa em Petrogrado. Mudaram as ideias
e os conteúdos da arte, suas formas e métodos e o público para quem ela se dirigia. A arte
soviética tornou-se ativamente envolvida na luta pela transformação do país, o sentido de luta
de classes fez-se evidente nesse teatro que vai,

da arregimentação e da mobilização em torno de objetivos imediatos da


Revolução (conquista definitiva dos territórios ocupados pelos contra-
revolucionários, combate emergencial às consequências da guerra civil como
a carência de alimentos, e divulgação dos acontecimentos), para a construção
do socialismo soviético (edificação dos costumes socialistas, encorajamento
das cooperativas e elevação da produtividade) (GARCIA, 2004, p. 12).

O país de cento e sessenta milhões de pessoas vivia em contexto de guerra, frio e


fome:
Para comprar leite, pão, açúcar e fumo era necessário esperar numa fila,
durante horas seguidas, sob uma gélida chuva [...] não se pode fazer ideia da
situação desses pobres homens que ficavam o dia inteiro nas ruas frígidas de
Petrogrado, em pleno inverno russo! (REED, s/d, pg. 44)

Diante dessa conjuntura de sangue e miséria, a Revolução triunfa com as bandeiras “Pão, paz
e terra.”, inconciliáveis com a burguesia imperialista que para manter-se no poder realizava

51
guerra, detendo cada vez mais os meios de produção, principalmente a terra, e espalhando a
fome, não imaginando que, diferente do que foi a Revolução Francesa, os russos queriam não
somente a substituição de um setor da classe dominante por outro, mas a tomada do poder
político por parte de quem produzia a riqueza do país, o proletariado,
Em março de 1917, avalanchas de operários e soldados se apoderaram do
Palácio da Táurida, obrigando a débil Duma Imperial a assumir o poder
supremo da Rússia. As massas populares, operários, soldados e marinheiros
passaram, assim, a dirigir a marcha da revolução. Derrubaram o Ministério
Miliukov. Foram seus sovietes que proclamaram ao mundo inteiro as
condições de paz da Rússia: “Nenhuma anexação, nenhuma indenização.
Direito de os povos disporem de si próprios. Marcharam”. E em julho, a
sublevação espontânea e desorganizada do proletariado, que assaltou
novamente o palácio da Táurida aos gritos de “Todo o poder aos sovietes!”,
demonstrou mais uma vez, que as massas estavam decididas a impor a sua
vontade5. (REED, s/d, pág 38)

Segundo Amiard-Chevrel (1977) ao teatro foi atribuído um papel importante,


compreensível num país em que a tradição dos espetáculos populares era forte e em que o
rádio e o cinema eram pouco desenvolvidos por falta de energia elétrica e a imprensa tinha
alcance restrito por falta de papel e devido ao analfabetismo das massas. O que também é dito
por John Reed, em meio à miséria, frio e guerra o teatro seguia firme,

É claro que os teatros funcionavam sem interrupção todas as noites,


inclusive aos domingos. Karsavina apareceu com um novo bailado no
Marinski, e todos os amantes da boa dança foram vê-la. Chaliápin cantava. A
morte de Ivan, o Terrível, de Tolstói, podia ser vista no Aleksandrinski,
representada por Meyerhold. (REED, s/d, pg. 45)

Os proletários chegam ao poder em 25 de outubro de 1917, segundo o calendário


juliano, então em uso na Rússia, e a 7 de novembro, segundo o nosso calendário (REED, s/d,
pg.11). A agitação e propaganda como parte da política do Partido Comunista para seu triunfo
e consolidação;

Em uma Rússia marcadamente analfabeta, apenas parcialmente eletrificada e


em crise de materiais como papel, as formas alternativas de comunicação e
informação devem surgir com a mesma urgência com que se impõe a
necessidade de uma vitória definitiva das forças que tomaram o poder.
(GARCIA, 2004, p. 5)

5
A palavra soviete significa “conselho”. Durante o governo czarista, o Conselho Imperial do Estado
denominava-se Gossudarstviênni Soviete. Entretanto, após a revolução, o termo “soviete” foi empregado para
designar um tipo de assembleia eleita pelas organizações econômicas da classe operária: os sovietes dos
deputados operários, camponeses e soldados. (REED, s/d, pg. 30 – em “Dez dias que abalaram o mundo”)
52
Ao passo que a Revolução triunfa, o teatro vive também um momento transformador,
o drama burguês perde espaço enquanto forma “suprema” ao tratar de problemas individuais
como amor, traição, brigas familiares, em um momento da história em que o teatro, como o
povo, volta-se para resolver os problemas do coletivo, do público, da própria revolução. Há
uma inovação na estrutura de funcionamento dos grupos e no lugar do repertório clássico
passaram a predominar as formas curtas, que combinavam diversas estruturas dramáticas e
referências a gêneros tradicionais e modernos do teatro. O espectador passa a ser convocado
como sujeito criativo da ação cênica, procedimento que em muito se aproxima do espect-ator
do Teatro do Oprimido. Em alguns grupos e peças há o conclamar do mesmo a participar de
todo o processo de produção do espetáculo, que incluía o acompanhamento da escolha da
peça, seu estudo e de seu autor, dos ensaios abertos e, ainda, da preparação de cenários e
figurinos.
A participação do espectador no momento da apresentação deve ser apenas a
culminância de um processo de envolvimento que deve começar desde o
princípio, durante a preparação do espetáculo. Trata-se de socializar ao
máximo o processo do fazer de modo a instituir um espectador privilegiado
que não apenas frui a apresentação, mas participa crítica e ativamente de
todas as etapas de montagem. (GARCIA, 2004, pg.21)

Nesse aspecto, a transformação do espectador em sujeito da cena para além da


identificação com o discurso, desvelando o corpo domesticado para a passividade, rompendo
o lugar antes intocável de representação da realidade é parte constitutiva do teatro
assumidamente político. O teatro que era feito na Rússia antes da revolução, em que os
problemas do povo não eram postos em cena, em que o público não podia falar, se posicionar,
intervir, ou mesmo tornar-se ator, é ultrapassado no momento revolucionário pelo motor da
história. É a cena o lugar em que os meios de produção teatrais são socializados de forma
radical. Parafraseando Emma Goldmam com a famosa frase “Se não posso dançar não é
minha revolução”, o Teatro de Agitprop abre os caminhos para que possamos dizer: se não
posso atuar, não é minha encenação,
Durante o espetáculo propriamente dito, o espectador participava das cenas
de massa, de aclamação de slogans e de cantos revolucionários. Este é um
outro aspecto importante do teatro de agitação: fazer espectadores/as se
implicarem diretamente na ação. Do mesmo modo que o cartaz político é
dirigido a “você” e muitas vezes com o dedo apontado para a pessoa
designada, o teatro de agitprop recorre à implicação direta, seja incitando o
público a participar fisicamente do espetáculo, por exemplo no processo de
agitação, onde as pessoas da audiência frequentemente entram em cena; seja
sublinhando de maneira explícita que a mensagem política é diretamente
direcionada a elas pela intervenção de uma pessoa com função de narrar ou
53
conduzir a peça (mestre/a de cerimônia), trazendo à tona o seu significado.
(HAMON, 1977, s/p)6

Essa compreensão também se evidenciou na Alemanha na conformação do Teatro Proletário –


Cena dos Operários Revolucionários do Grande Berlim, fundado por Hermann Schuller e
Eriwn Piscator, em 1920, influenciado pelo agitprop russo. Tendo como vetor e contexto
também a Revolução russa e suas práticas cênicas Piscator inicia sua prática artística no
contexto da I Guerra Mundial.
O teatro não devia mais agir apenas sentimentalmente no espectador, não
devia mais especular apenas sobre a sua disposição emocional; pelo
contrário, em plena consciência, voltava-se para a razão do espectador. Não
devia tão somente comunicar elevação, entusiasmo, arrebatamento, mas
também esclarecimento, saber, reconhecimento. (PISCATOR, 1968, pg.53)

No livro Teatro Político, escrito em 1929, o teatrólogo descreve o horror vivido por ele
nos campos de batalha de uma guerra que não era dos operários, mas da classe dominante,
que destruía vidas e sonhos da juventude proletária alemã. “13 milhões de mortos, 11 milhões
de mutilados...” (pg.21), e que o faz encontrar a consciência da necessidade do teatro
posicionado na luta de classes em favor dos trabalhadores
Pareceu-me necessário acenar a estreita ligação existente entre o nosso
trabalho e o processo de revolução social que, já faz dez anos, se realiza na
Europa, e sobretudo na Alemanha, com intensidade cada vez maior. O que
apareceu no campo do teatro não são acasos, nem pela sua origem, nem pelo
seu aspecto; pelo contrário, são efeitos lógicos, compreensíveis por si, de
uma luta que tem a sua origem nas raízes sociais e econômicas do nosso
tempo. (PISCATOR, 1968, pg. 19)

Piscator diz que nessa experiência estava a produção de uma arte que além de
propagandística, “eliminava o conceito burguês de arte e esboçava, pelo menos nos traços
fundamentais, uma nova arte proletária”. (pg.55). Com intuito de realizar um teatro que,
voltado para a razão do espectador, trouxesse esclarecimento e reconhecimento, Piscator
introduziu na cena moderna alemã elementos técnicos como projeção de fotografias das
personagens reais, que eram representadas no palco, e de sequências de documentários
cinematográficos, emprego de slogans escritos e projeções de textos como elemento de
ligação entre as cenas, coros falados – recurso bastante utilizado pelo agitprop alemão –
esteiras transportadoras (ou faixas correntes), praticáveis e plataformas sobre disco giratório,

6
O referido texto “Formas dramatúrgicas e cênicas do Teatro de Agitprop”, in Le theâtre d'agit-prop
de 1917 à 1932, de 1977, ainda não está oficialmente traduzido para o português, a versão utilizada
foi traduzida por Luís Filipe Montenegro Castelo, realizada para uma publicação sobre formas e
história da agitação e propaganda, e atualmente está em fase de ediçã o.
54
palco simultâneo, tornando o cenário polivalente e funcional, despido de qualquer elemento
decorativo, e também um novo estilo de representação descrito por Piscator como “distante da
caricatura, do esboço apenas externo dos caracteres, distante igualmente da caracterização
superdiferenciada, descritiva até nas derradeiras ramificações da alma” (19 68, p. 97-98), a fim
de realçar a proporção épica das peças encenadas e enfatizar o conteúdo político. A saída do
lugar de espectador passivo, depositário-ouvinte é também nos tempos da Revolução a saída
do proletário do lugar também passivo.
Havia que se criar o novo em perspectiva de ocupação e participação do espetáculo, já
apontando a necessária radicalidade na socialização dos meios de produção, calcada na crítica
ao teatro que mantém o espectador como parte distante, contemplando a imitação da vida que
se desenrola em cena. O espect-ator de Boal possui características marcantes do que foi o
espectador no teatro de agitação e propaganda soviético,
[...] predominância do jogo do ator – ou do atuante, se considerarmos que a
quase totalidade dos participantes dos núcleos agitpropistas não tinha
qualquer experiência anterior -; rompimento entre palco e plateia e intenção
explícita de provocar a reação crítica e ativa do espectador. (GARCIA, 2004,
pg. 34)

No TO o espectador antes envolvido de forma “passiva” na ação cênica, dinamiza sua


atuação e passa a ser protagonista da resolução do conflito apresentado em cena, modificando
assim, o próprio teatro, que para Boal foi concebido como sendo uma forma artística autocrata
e manipuladora, onde o espectador permanece sentado e calado, passivo diante de imagens
prontas, sem diálogo com o silêncio de um dos interlocutores (BOAL, 1998, pg. 93).
Em ambas as formas a cena se realiza de modo a incitar o espectador a intervir, a ser
parte ativa, enquanto forma de teatro ela está fundada sobre a recusa de produzir uma
imitação da vida destinada a ser contemplada passivamente, e visa, ao contrário, a substituir a
cena-reflexo passiva por uma cena ativa que incite a pessoa espectadora a participar do
espetáculo. Essa participação se deu, e pode se dar, de formas diferentes, de modo que o TO
deve ser uma aprendizagem concreta: “o fazer, e não o falar” (1980, pg.33), não há resposta
entregue pela trupe de TO ao público, na cena apresenta-se um “nó” a ser desatado por quem
entrar no jogo tornando-se espect-ator. Já no teatro de agitprop, a convocação não é para que o
espectador intervenha na cena, a exortaçao é para que o público aja na realidade fora da cena,
na própria revolução soviética, como é possível identificar no momento final da peça “O
trabalho doméstico e as operárias” , de 1925, construída pelo coletivo de agitprop russo Blusa

55
Azul7.
As mulheres hoje são espertas.
Elas fazem greve sem hesitar,
Batem a panela com o punho
E daí sairá leite certamente.

Com as mulheres do lado


Não irei, pois, em vão tagarelar,
Se você não é boba agora,
Vá ao clube com mais freqüência.

A porta do estudo para todas está aberta.


O tacho e o fogareiro, isso acabou.
Por que você passa roupa, sua tonta,
Se existe a lavanderia.

Viverei sem Deus de agora em diante,


Os ícones, eu jogarei fora.
Nós levaremos uma outra vida.
Abaixo a Igreja e a bebedeira!

Não há no mundo um casal mais perfeito:


Para o soviete de Moscou meu marido foi designado;
Quanto a mim, eu sou delegada,
E as crianças são de Outubro.

A ação é externa, as operárias são chamadas à organização. A concisão é elemento de


expressividade essencial da linguagem do agitprop, a escolha das formas verbais é também
significativa. O recurso à primeira pessoa do plural do imperativo suscita uma implicação
profunda do espectador e da espectadora: “Nós levaremos outra vida”, ou mesmo quando
dizem “Eu não quero ser uma escrava”, carrega o eu-nós da declamação em grupo, ou “As
mulheres hoje são espertas/Elas fazem greve sem hesitar,” referindo-se as mulheres enquanto
grupo social, esses recursos estão

(…) presentes em conclusões de numerosas outras peças de agitação sobre


costumes ou política, marteladas nas declamações em grupo de maneira
repetitiva: permitem esta implicação afetiva profunda dos/as
interlocutores/as chamando à adesão à vontade comum do grupo proclamada
com insistência. (HAMON,1977,s/p)
O Blusa Azul teve expressão de massas à época da Revolução. A iniciativa do coletivo de
formação de trupes de agitação e de jornais vivos na URSS multiplicou-se em Moscou e no
interior. Em 1928 podiam exibir um imponente balanço de cinco anos de atividade:
7
O coletivo, atuante da década de 1920, foi assim chamado porque era uma blusa azul o uniforme dos membros
da trupe de estudantes do Instituto de Moscovita de Jornalismo em 1923. Em 1924, o grupo passou a ser
controlado pela União dos Sindicatos da Cidade de Moscou, essa subordinação, discreto no início, tornou-se
muito pesada por volta de 1928-1930. (AMIARD-CHEVREL, 1977)
56
(...) os grupos moscovitas tinham apresentado 13.200 espetáculos para
6.700.000 pessoas; no resto da URSS, 6.315 espetáculos para 3.156.500
pessoas. Na URSS, 7.000 coletivos foram criados com base em seu modelo
nos clubes, nos círculos de leitura, nos setores comunistas etc. (AMIARD-
CHEVREL,1977, s/p)

Figura 12: Cartaz produzido pelo Coletivo Blusa Azul

A peça “O trabalho doméstico e as operárias”, foi escrita para ser multiplicada,


encenada por quem quer que fosse. Uma das características das trupes de agitprop é que por
vezes a maioria dos participantes nunca havia antes tido experiência com teatro. A
socialização dos meios de produção teatrais como parte do método do Blusa Azul, assemelha-
se à proposição boalina de arsenal que deve tornar-se artilharia do povo oprimido.
Resguardando seus devidos contextos históricos, percebemos que a forma curta, característica
do agitprop, “que atende com maior justeza às condições de adaptabilidade e prontidão
necessárias” (GARCIA, 2004, pg. 29) é também característica do anti-modelo construído pelo
57
MST no processo formativo da Brigada. Tanto o texto da peça de agitprop, quanto o da
Patativa do Assaré se apresentam como maleáveis, feitos para serem readaptáveis. Sendo,
assim, um instrumento, não um fim em si mesmo;
A grande dramaturgia de estrutura linear cede espaço a um espetáculo de
forma fragmentada. Isto é o que mais chama atenção num espetáculo de
agitprop: a sucessão de pequenas cenas breves, variadas, eficazes, renovando
a todo instante o interesse e a combatividade política da espectadora e do
espectador por meio desta diversidade. (HAMON, 1977, s/p)

As peças do coletivo Blusa Azul se caracterizam por terem sido sistematizadas para a
multiplicação em representações Rússia adentro, pressupõem o compartilhamento do método
e a socialização dos meios de produção teatrais. A exigência da voz coletiva é parte
fundamental advinda com a Revolução Russa, que faz emergir outras formas teatrais para que
o conteúdo revolucionário possa ser posto em cena. A vida e a cena se enamoram, a
representação do real aqui se apresenta quando o operário interpreta um operário, quando a
operária se organiza para fazer avançar a Revolução rumo à emancipação da mulher está em
cena defendendo uma ideia que interfere em sua vida imediata.
Vindo à luz por força da guerra, atuando a partir da necessidade, o teatro de agitprop
conduz à discussão da eminente responsabilidade das formas; e da sua própria forma, que
nascida com Revolução, precisava caminhar com os problemas surgidos nela para não dizer
insistentemente o que já foi dito. Socializar o trabalho doméstico é uma ordem revolucionária,
mas como apresentar as contradições presentes na vida das mulheres formadas para servir?
Como um movimento social deve representar o avanço das privatizações, do monopólio do
leite e do desemprego? Em ambos os casos, TO e agitprop, corremos o risco de não ser mais
que um teatro de denúncia e circunstância, ou situarmos-nos à margem das práticas estéticas.
Na Peça-Fórum, o que se mostra é um personagem com um problema a ser resolvido,
como é possível identificar em Privatleite, o conflito é evidenciado mas não há ordem a ser
dada pela trupe de TO, pois o objetivo é que espectador seja transformado em protagonista da
ação dramática. (Boal 1975, p.169) Mas ao refletir sobre um espetáculo construído por um
movimento social, emissor de um projeto de sociedade, é possível afirmar que o que se quer
com a peça é garantir uma linha de atuação no âmbito ideológico que não permita
“escorregões”. Significa dizer que se a representação não identificar a opressão central entre
o agricultar Geraldo e a multinacional Parmalaite teremos um “nó” cênico. Não significa
afirmar que os actantes adjuvantes não são opressores, no caso a Madame, mas que é preciso
ir até a estrutura profunda, ir além do que se identifica na oposição entre o oprimido Geraldo e
58
as personagens que agem como opressores e em benefício da Parmalaite. Era preciso então,
que a Parmalaite fosse um personagem? Ou a presença do seu discurso pelos seus adjuvantes
é o suficiente para que o antagonismo de classe se evidencie?
[...] se o modelo representado em fórum tem por objetivo fomentar certa
homogeneidade ideológica nos espectadores, na ausência de intervenções
com este fim, a tarefa do Coringa torna-se ainda mais complexa: ele é
obrigado, não somente a resgatar o fio condutor da intriga, como também a
(re)centralizar o objetivo do fórum: a crítica política global. (PEREIRA,
2000, pg. 136)

Ao fazermos emergir a estrutura profunda na análise actancial de Privatleite é possível


visualizar o agronegócio, o movimento social, o capitalismo, mas na estrutura superficial, nos
personagens, são pessoas e não as relações sociais. Nos espetáculos de agitprop russo e nas
experiências piscatorianas alemãs, identificamos que o conflito entre as classes se explicita a
partir de personagens que representam a própria estrutura de classe. Na peça “O dia da
Rússia”, primeira a ser encenada no Teatro Proletário, dirigida por Piscator os personagens
também são estruturas sociais e suas relações sociais; Capitalismo, Igreja e trabalhadores
russos, são alguns dos personagens que constituem a peça de aniversário de três anos da
revolução de outubro, encenada em 1920 na Alemanha.

59
Figura 13: Imagem do Espetáculo “O dia da Rússia”

Em “O trabalho doméstico e a Operária” do coletivo Blusa Azul, temos uma relação


social-econômica de produção e reprodução da vida personificada, a estrutura da sociedade é
o personagem e a transformação da estrutura de opressão e exploração o objetivo central. “O
Trabalho doméstico e as operárias” tem dois personagens; as operárias, que não têm nome,
constituem a representação das mulheres de uma classe, sendo que, segundo a nota para
encenação, podem ser mais operárias “O número de mulheres participantes do espetáculo
pode ser ilimitado conforme os recursos de que disponha o grupo. Quanto mais numerosas as
atrizes, melhor será.” (Blusa Azul). O segundo personagem é o Trabalho Doméstico, que não
é uma pessoa, ou classe, é o trabalho em si. Afirma-se o que a classe operária deve fazer, no
caso, como as operárias devem agir: ir ao clube (espaço de auto-organização das mulheres),
utilizar a lavanderia que é uma conquista da Revolução, além de exaltar o soviete e afirmam
Lênin como direção política das operárias. A peça é um conclame para que as mulheres
operárias enfrentem a escravidão doméstica, assumindo os rumos da revolução. É
60
teatralmente, uma ordem revolucionária. Não há dúvidas ou meandros, o conflito encenado
alça os problemas coletivos das mulheres à esfera cênica, conclama à participação na
revolução, conclama à ação para fora da cena.
As personagens são de natureza típica, caracterizadas de forma maniqueísta –
tendência, aliás, dominante no agitprop – agrupadas em revolucionários e
oprimidos, de um lado, e inimigos e sabotadores do outro, segundo suas
categorias sociais e posicionamento ideológico. (GARCIA, pg. 38)

As personagens-máscaras encontram-se mais ou menos sempre na mesma


situação-tipo maniqueísta: de um lado, o imperialismo internacional com
seus esbirros em todos os países, seus agentes e seus aliados voluntários ou
inconscientes na Rússia; de outro lado, exemplo para seus aliados, os
oprimidos de todos os países, o proletariado russo sob a bandeira de Marx
constrói a sociedade socialista. É o que os animadores da Blusa Azul
chamam de o “esqueleto”. (AMIARD-CHEVREL, 1977, s/p)

Faz-se necessário, como já afirmado, para que não se caia em análises superficiais e de
psiciologismos, optamos por realizar a análise actancial também com a peça “O trabalho
doméstico e a operária” para, a partir dos actantes e seus desejos, identificarmos as estruturas
superficiais e profundas da peça, construída no período da revolução russa,
O cerne do conflito da peça é a oposição entre o trabalho doméstico e as mulheres
operárias. Elas querem ter direito à dedicação de 8 horas para cada uma das suas atividades
diárias: trabalhar, descansar e dormir; mas trabalham muito, dormem muito pouco e
descansam quase nada, ou seja, é encena-se a perpetuação da escravidão doméstica, mesmo
depois da Revolução, alicerce fundamental da velha estrutura que a tomada do poder por parte
do proletariado russo também precisava destruir. Ao definirmos as Operárias como Sujeito,
teremos o objeto (O) a emancipação das operárias, e sendo a URSS o contexto em questão,
também como oponentes o Trabalho Doméstico, Imperialismo, a contra-revolução, os
mencheviques. É possível e necessário acrescentar ao actante oponente o Patriarcado, de
modo a contemplar também, na casa dos oponentes, os homens, que mesmo operários, se
mantêm conservadores e machistas. Como adjuvantes das operárias, temos a própria
Revolução Russa, as mulheres organizadas, e Lênin – citado na música final como dirigente.
A ação do Sujeito-operárias é destinada pela Revolução Russa, e tem como destinatária
também a revolução, e é possível dizer, as mulheres do mundo. Ficando o modelo actancial
assim agenciado:

61
Figura 14 – Diagrama Modelo Actancial O Trabalho Doméstico e as Operárias

O sujeito Operárias, motivado pelo destinador 1 Revolução Russa, visando ao


favorecimento do destinatário 2 que é também a Revolução junto às mulheres de todo o
mundo, tem como objeto a emancipação das operárias, contando com o auxílio dos adjuvantes
que são a própria Revolução Russa, Lênin, o Partido, as mulheres organizadas e têm os
obstáculos impostos pelos oponentes; Trabalho doméstico, patriarcado, mencheviques e o
imperialismo.
A caracterização dos personagens é feita com as “ferramentas” do trabalho
doméstico, “A figura Trabalho Doméstico está coberta do máximo possível de utensílios de
cozinha: vasilhas, xícaras, panelas etc.” (BLUSA AZUL, Notas para encenação, 1925, pg.1),
“eles trazem de uma forma cada vez mais simbólica os elementos necessários à compreensão
da ação” (HAMON, 1977, s/p). O cômico é parte que se destaca nessa peça e em outras de
agitprop, pois “o uso do cômico tem um papel determinante na desmistificação do inimigo”
(HAMON, 1977, s/p) que não é visto como tal, no caso da peça o inimigo é o Trabalho
Doméstico que muitas mulheres acreditam ser naturalmente feitas para exercê-lo, o desvelar
do inimigo, precisa culminar na
62
Elaboração de uma ironia grotesca que ainda é acentuada pelo jogo cênico,
ironia que é exercida em detrimento dos inimigos de classe e contribui para
fazer deles não mais personagens no sentido tradicional, e sim máscaras
sociais. (HAMON, 1977, s/p)

Com a entrada em cena do Trabalho Doméstico, a ação se orienta para o


grotesco divertido e termina com versos de uma canção, acompanhadas de
danças alegremente irônicas.” (BLUSA AZUL, 1925, pg.1).

Outro elemento presente na peça e comum em outros grupos é a cenografia simples e


de grande mobilidade. Por muitas vezes são utilizados do que chama Morel de “abstração
funcional”, influenciados pelos teatros profissionais de vanguarda; do construtivismo e do
urbanismo, o contexto da ação não é mais sugerido de maneira realista, mantêm-se somente
os acessórios significativos e os “cartazes-slogan, diagramas, crachás, sinalizações indicando
o local de ação permitem criar pontos de referência e fixar visualmente algumas idéias
centrais” (MOREL,1977, s/p)8

2.2 O ponto de partida para a conformação da poética do oprimido.


A práxis política da cena transforma em material cênico as relações complexas que
tratam da estrutura da sociedade, ao se evidenciarem fazem emergir o antagonismo opressor –
oprimido, o que afirma a existência de forças sociais que atuam enquanto classe, o
“oprimido”, o indivíduo, despossuído, desprovido do direito de falar, do direito de ter a sua
personalidade, do direito de ser. (BOAL, 1991, pg. 77), está no centro dos jogos do arsenal
teatral sistematizado por Boal, e também no teatro de agitprop russo, no teatro proletário
alemão. Mas é a partir da análise dos limites do teatro do alemão Bertold Brecht, com base
nas reflexões que “[…] evoluem a partir do exame crítico e criterioso das concepções” do
mesmo, (PEREIRA, 2000, pg. 141), que a Poética do Oprimido se conforma. Boal traça um
paralelo e aponta as diferenças centrais entre sua poética e a de Brecht, chamando a
brechtiana de Poética de Conscientização, que revela por meio do teatro a realidade como
modificável e propõe que a encenação se dê de modo a conduzir o espectador a fazer uma
reflexão crítica consciente da peça, não se entregando ao personagem, mas posicionando-se
diante da representação.

8
O referido texto “Les phases historiques de l'agit-prop soviétique”, in Le theâtre d'agit-prop de
1917 à 1932, de 1977, ainda não está oficialmente traduzido para o português, a versão utilizada
foi traduzida por Iná Camargo Costa, realizada para uma publicação sobre formas e história da
agitação e propaganda, e atualmente está em fase de ediçã o.
63
Brecht propõe uma Poética em que o espectador delega poderes ao
personagem para que este atue em seu lugar, mas se reserva o direito de
pensar por si mesmo, muitas vezes em oposição ao personagem. Produz-se
uma “conscientização”. (BOAL, 1991 p. 139)

A poética sistematizada por Boal, definida por ele como “Poética da Liberação”, ao propor a
própria ação possibilita que ao ser alçado à condição de espect-ator o público assuma o papel
protagônico, ensaiando as possíveis soluções, debatendo, preparando-se para a ação real.
(BOAL, 1991 p. 139) “A poética do oprimido é essencialmente uma Poética da Liberação: o
espectador já não delega poderes aos personagens para que pensem nem para que atuem em
seu lugar. O espectador se libera: pensa e age por si mesmo! (BOAL, 1975, p.169) É essa ação
que arvora o TO ao seu caráter pedagógico, e avança na formação da consciência através da
práxis do espect-ator que dá corpo e caminho à cena.
Dentre as modalidades do agitprop a experiência da peça dialética também se pautava
pela necessidade em ser didático e dialético. Os grupos que aderem a essa modalidade vão se
debruçar sobre o ensejo de construção de uma outra moral, costumes e práticas
principalmente no que tange as tarefas da juventude proletária na Revolução. Não há um
desfecho de um enredo linear, onde uma solução é apresentada. Com destaque nessa
modalidade (GARCIA, 2004) está a pesquisa cênica feita pelo Teatro de Agitação de
Leningrado - TRAM, Movimento Teatral da Juventude Operária, formado em 1919,
considerado um dos mais importantes grupos de agitprop dos anos 20. A modalidade é para
Jean-Pierre Morel, uma das tentativas mais originais do teatro de agitação depois de 1925,
por de modo didático envolver seu público na luta para mudar o que está estabelecido em vez
de lhe fornecer soluções prontas, afirmando que:
Ele renova o gênero das peças de agitação – melhoradas, quando não
redigidas coletivamente – e a maneira de as montar: o texto e a encenação
tentam mostrar a vida cotidiana não mais a partir de aspectos dos costumes
ou de conflitos pessoais, mas de atitudes e situações contraditórias. É um
trabalho de cena novo, que tem o objetivo de mostrar as contradições junto
com o que pode ser melhorado (MOREL,1977, s/p)

Brecht avança no que tange ao caráter pedagógico da peça dialética, e aponta com as
Lehrstücke o objetivo de desenvolver um pensamento crítico-reflexivo, ultrapassando o
caráter de mera transmissão de conceitos. O método dialético que se desenvolve no Teatro
Fórum assemelha-se ao Lehrstück pelo fato de que,
[...] os dois projetos rompem com as clássicas funções dos atores e dos seus
papéis, questionando profundamente a peça e sua problemática marxista.
Ambos os projetos pressupõem um investimento substancial dos atores e
64
espectadores. Neste investimento substancial a parte do sujeito não é
somente a da subjetividade, mas a de um interesse histórico e ideológico.
Lehrstück e Fórum questionam o teatro e sua essência comunitária, pela
reversibilidade de funções entre o modo agere e o modo spectare. Essa
reversibilidade permite a Boal criar uma nova relação entre o espectador, o
ator e a personagem” (PEREIRA, 2000, pg.140)

Na direção do Teatro de Arena, Boal aprofundou a experiência com as influências de


Brecht e radicaliza o Efeito Distanciamento (Verfremdungseffekt), criando o sistema Curinga,
em que os atores se revezam fazendo todos os personagens, um embrião do que viria a ser o
Teatro do Oprimido, e se arvora a dizer que dá o passo não caminhado por Brecht:
Brecht tentou o mesmo, mas, a meu ver, ficou na metade do caminho. O que
é insuficiente em Brecht é a falta de ação do espectador. Seu teatro é
catártico, pois não basta que o espectador pense: é necessário que ele aja,
acione, realize, faça, atue. O erro de Brecht foi não perceber o caráter
indissolúvel do ethos e da diánoia, ação e pensamento – ele propõe dissociar
e mesmo contrapor o pensamento do espectador ao pensamento do
personagem, mas a ação dramática continua independente do espectador, que
se mantém na condição de espectador. (BOAL, 1980, p. 83)

A recusa de Boal sobre a separação entre o palco e a cena enlaçada, a recusa do sujeito
Sem-Terra em esperar a transformação, associada a organização política – movimento social -
possibilita ao teatro do MST ocupar a cena ocupando o latifúndio. Quando a coletividade se
dá não somente no momento do espetáculo, têm-se a possibilidade de se propor uma
intervenção mais apurada e consciente. Identidade de classe pautada pela construção de um
mesmo projeto político. Não se trata de um teatro para os Sem Terra e sim de um teatro dos
Sem Terra, parafraseando Erwin Piscator e sua proposta de Teatro Proletário, que diz, “Não se
tratava de um teatro que pretendia proporcionar arte aos proletários, e sim uma propaganda
consciente; não se tratava de um teatro para o proletariado e sim de um teatro do proletário.”
(PISCATOR, 1968 ,pg. 51).
O ensaio da ação transformadora que se dá na peça-fórum quando os espect-atores são
os militantes de um movimento, é realizado de modo não somente diferente de espect-atores
não organizados, mas com potencial maior de transgressão, por ser um projeto comum de
sociedade defendido pelos participantes do fórum,
[...] as intervenções em uma cena de Teatro-fórum são frutos de um processo
de fruição da obra teatral pelo espect-ator, e envolvem questões como a
formação, as experiências anteriores em determinado contexto social e a
produção ideológica perante o mundo. (CANDA, 2013, pg.131)
Sabendo que,
[...] a arte do Sem Terra vai além das belas artes (música, poesia, teatro
dança, arquitetura, pintura e escultura), ligam à vida e a utopia socialista. A
65
educação artística sai de dentro das escolas porque os artistas espectadores se
transformaram em ‘artistas’ da própria história. (BOGO, 2002, p. 144)

A formação dos militantes do MST com o CTO propunha desenvolver um pensamento


crítico-reflexivo, ultrapassando o caráter de mera transmissão de conceitos; e o teatro
desenvolvido na parceria tratou de questões práticas, referentes aos princípios básicos e
fundamentais das relações humanas, bem como os problemas vivenciados no cotidiano, como
evidenciado na análise da peça Privatleite. A possibilidade de reflexão, nessas peças, vem do
questionamento da realidade e da própria existência humana; acontece à medida que o
indivíduo se percebe como parte integrante de uma determinada classe social, percebendo
também que as relações existentes no meio se encontram determinadas pela própria
organização social do trabalho e pelo sistema político vigente, ampliando o olhar dirigido a
esse sistema e, abordando os conflitos estabelecidos entre seres humanos e seres humanos,
seres humanos e seu meio; estudam os movimentos humanos, responsáveis pelo
funcionamento e condução das relações historicamente estabelecidas, com o intuito de propor
intervenções e mudanças orientadas pelo Movimento. Ser parte de uma organização política
orienta a prática cênica da Brigada Patativa do Assaré, que tem em sua gênese um projeto
estratégico de sociedade e o enfrentamento ao neoliberalismo que solavanca o Brasil na
década 90.

2.3 Da operária para operária, do oprimido para o oprimido: um teatro de classe?

O personagem Geraldo, de Privatleite, ao representar o grupo social ao qual


pertencem os Sem-Terra, em peça construída por esses sujeitos, expõe o enfrentamento do
movimento no avanço das multinacionais no campo. Geraldo não é só Geraldo, é o discurso
posicionado de forma a permitir o evidenciar do conflito entre as classes. Ao caricaturar
Geraldo como “o caipira”, os artistas Sem-Terra optam por visibilizar a opressão sofrida pelo
fato de ser gente camponesa. Geraldo representa o próprio sujeito Sem-Terra. Localiza-se aí o
valor do “para-si” com os outros que o Teatro Fórum propõe. Os que alcançam mais
profundamente o nível de consciência podem contribuir para que os outros cheguem ao
patamar desejado, na consciência para-si. Cada intervenção do espect-ator é uma
possibilidade de caminho que se apresenta ao oprimido, e conformam à percepção da situação
opressora/alienante e a criação de alternativas a essa situação, sua luta se trava,

66
Entre expulsarem ou não o opressor dentro de si. Entre se desalienarem ou se
manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre
serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão que atuam, na
atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados
em seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo... Só é
viável na e pela superação da contradição opressor-oprimido, que é a
libertação de todos. (FREIRE,1984a: 36).

Para Paulo Freire “os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, imersos na própria
engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de
correr o risco de assumi-la” (1978, p.36). É preciso atuar na transformação da consciência
escravizada (FREIRE, 1987) considerando que somos seres sociais, isso é determinante para
que a ação cênica contribua no processo da formação de uma consciência libertadora. O ser
social é um ser da classe. Em primeiro lugar por ter origem social; em segundo lugar por
desenvolver aprendizados extraídos da convivência que lhes dará consciência de si. Na
sequência, no fazer histórico, a consciência eleva-se ao grau de para si, tornando o sujeito
agente ativo na classe.
Somos o que somos porque pertencemos a uma determinada classe social,
cumprimos determinadas funções sociais e por isso “temos” que
desempenhar certos rituais, tantas e tantas vezes que por fim a nossa cara, a
nossa maneira de andar, a nossa forma de pensar, de rir, de chorar ou de
fazer amor, acaba por adquirir uma forma rígida, preestabelecida, uma
“máscara social”. É horrível, mas é verdade: se não nos precavemos, até
mesmo na cama acabamos por nos mecanizar; até o carinho acaba perdendo
a graça; até o amor se ritualiza. (BOAL, 1989, pg.18)

É neste sentido que Iasi (2007) resgata as complexas relações que há entre a “consciência em
si” e “consciência para si” estabelecidas por Marx:

Portanto, em sua luta revolucionária, não basta o proletariado assumir-se


enquanto classe (consciência em si), mas é necessário se assumir para além
de si mesmo (consciência para si). Conceber-se não apenas como um grupo
particular com interesses próprios dentro da ordem capitalista, mas também
se colocar diante da tarefa histórica da superação dessa ordem. (IASI, 2007,
p. 32).

No Teatro Fórum, no momento em que a visão particular é ultrapassada, o indivíduo já


não é mais um indivíduo isolado, a coletividade ganha importância no relacionamento.
Embora os interesses particulares continuem fortes, o relacionamento com a coletividade
apresenta-se como uma necessidade nova. Não estamos aqui dizendo que o ser humano,
mesmo consciente, deixará de cumprir com a sua função de produzir para satisfazer as

67
necessidades vitais, mas que as diferenças entre as classes ampliam-se. A consciência, antes
de “estar dentro” do indivíduo como formação autônoma, ela é, um produto social: “é
naturalmente, antes de mais nada, mera consciência do meio sensível mais próximo e
consciência da conexão limitada com outras pessoas e coisas situadas fora do indivíduo que se
torna consciente.” (MARX; ENGELS [1845], 1986, p. 43). A compreensão marxista é de que
a consciência se forma a partir das relações que os seres sociais estabelecem entre si e com as
coisas existentes na realidade.
É preciso então que o espetáculo fórum dos Sem-Terra evidencie o confronto entre
projetos políticos e não somente entre pessoas, para que isso se revele em análise profunda, o
anti-modelo não é suficiente, é necessário enveredar pela estrutura interna da técnica mais
emblemática de Boal, (PEREIRA, 2000), o fórum. Para isso é insuficiente a determinação das
microestruturas textuais de um texto que tem em sua natureza ser incompleto e quando
completo, imediatamente mutável, podendo fazer-se e se refazer.
Para chegar ao lugar onde se articulam estrutura e história na análise de uma peça-
fórum é preciso inserir a ação do espectador, que alçado a espect-ator torna-se sujeito da ação,
considerando que somos seres sociais, isso é determinante para que a ação cênica contribua no
processo da formação de uma consciência libertadora, do contrário caímos no risco de fazer
do Teatro Fórum um drama novelesco, contribuindo com o individualismo e não com a
transformação dos indivíduos.
O objetivo não está em somente instaurar o debate e transformar o espectador em
espect-ator, há uma defesa de mundo a ser feita pelo Coringa na sua condução, para que a
criação cênica seja de conscientização e politização, e isso não pode significar manipular, mas
fazer as perguntas corretas a partir da proposta pensada em coletivo:
A educação como prática de dominação, que vem sendo objeto dessa crítica,
mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco
ideológico (nem sempre percebido por muitos que a realizam) é indoutriná-
los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão. (FREIRE, 1978
pg. 76)

O ser individual, para se fazer um ser social, necessita ir apropriando-se daquilo que já
foi objetivado por outros indivíduos que o antecederam. A experiência e a superação da visão
da aparência levam o ser social a se inteirar das contradições e consequências do movimento
cotidiano. A dialética nega que possam existir em qualquer parte do real, relações de causa e
efeito únicas, ela reconhece até mesmo nos dados mais elementares da realidade complexas
interações de causas e efeitos. O materialismo histórico destaca o fato de que na evolução da
68
sociedade multiforme e estratificada o processo total de desenvolvimento histórico-social só
se edifica com uma entrelaçada trama de interações.
Em nosso caso, ao analisar o teatro, o compreendendo como produto artístico (BOAL,
2009), sendo assim, não como um produto mecânico e passivo do processo econômico, como
o chamado marxismo vulgar apontou. É preciso compreender ainda o papel decisivo e
complementar junto ao desenvolvimento histórico da energia criadora e à atividade do sujeito.
Tal concepção assume grande importância não só para uma compreensão do papel histórico e
socialmente ativo do sujeito, mas também para esclarecer o modo pelo qual o marxismo
enxerga os períodos específicos da humanidade, o desenvolvimento da civilização e os
limites, a problemática e as perspectivas desse desenvolvimento. Seria a referência à
revolução?
O conceito de revolução em Boal é fluido. É possível dizer que se fala de uma
transformação profunda e não uma pequena mudança. “No essencial, porém, há pouca
confusão quanto ao seu significado central: mesmo na linguagem de senso comum sabe-se
que a palavra se aplica para designar mudanças drásticas e violentas da estrutura da
sociedade.” (FERNANDES, pg.56), que só se modifica a partir da ação consciente, no mover
da vida social, esta, “consiste em uma correlação de forças, em uma estrutura de violências, o
teatro estratifica esta correlação, estas violências e estas forças” (BOAL, pg.76, 2003)
A mudança drástica na qual Boal se debruça se faz clara e direta na crítica e no apontar
da necessidade de destruir o sistema capitalista, hoje em sua forma neoliberal: “O
neoliberalismo é feito sob medida para estimular o instinto predatório animal que subsiste na
maioria dos humanos e se propaga ao resto da Humanidade. Há que dizer Não!” (BOAL,
2009, pg. 20) É possível, através da metodologia do Teatro do Oprimido ensaiar a
transformação das relações de opressão e exploração vividas. Em cena, é possível desmontar
as diversas engrenagens que giram o Capitalismo, e aprofundar-se em uma delas como parte
da estrutura de opressão e exploração da sociedade de classes. Olhar para dentro, desmontar a
estrutura e cutucar, aprofundar suas expressões que são, no cotidiano, reveladas para no fórum
serem desveladas. A cena permite a pesquisa coletiva sobre a opressão, “é a preparação da
revolução, é o seu estudo, a sua análise, é o ensaio geral da Revolução.” (Boal, 1988, p. 19),
não significa que seja ela o suficiente para as transformações estruturais.
O teatro que aponta o desvelar de uma estrutura que é disputada entre as classes e
forças sociais incomoda os que precisam que essa estrutura permaneça, os que precisam da
exploração e a opressão para continuar como classe dominante. O criador do Teatro do
69
Oprimido afirma ser o teatro, há muito, arma utilizada pela burguesia como instrumento de
dominação, que necessita ser apropriado pelo povo, e chama-nos a lutar por ele: “o teatro
pode igualmente ser uma arma de liberação. Para isso é necessário criar formas teatrais
correspondentes. É preciso transformar.” (BOAL, 1991, p. 13). O lugar híbrido (PEREIRA,
2000) ocupado pelo espect-ator é um passeio entre a vida e a representação da vida nas
intervenções cênicas, primeiro passo para a apropriação dos meios de produção teatrais no
momento da realização da cena, quando o espectador aceita ocupar um lugar antes intocável.
Os Sem-Terra só tiveram seus problemas alçados à esfera da representação a partir da
socialização dos meios de produção por parte de Augusto Boal e o CTO. A presença da
dialogicidade freireana no método de Boal revela que a radicalidade de um discurso está
presente nas reflexões-ações que a trupe de TO provoca ao socializar os meios de produção
teatrais. Socialização esta, que se apresenta como pressuposto para o teatro que se propõe a
evidenciar os conflitos entre opressor e oprimido, para que o público não pendure o cérebro
na sala de entrada, (BRECHT, 1967, p. 44).
No Teatro-Fórum o poder que o ator detém é socializado com a plateia “[...] essa
invasão é uma transgressão simbólica. Simbólica de todas as transgressões que teremos que
fazer para que nos libertemos de nossas opressões” (BOAL, 2003, p. 38). O rápido
desenvolvimento das atividades teatrais no MST, a partir da intensa produção de montagens e
peças, oficinas, formação de grupos e apresentações, é atribuída à metodologia do Teatro do
Oprimido, adotada pela Brigada, exatamente porque com ela, garantiu-se a efetiva
socialização dos meios de produção teatral aos trabalhadores do campo9, “a mais radical na
socialização dos meios de produção teatral, pois rompe completamente a barreira palco e
plateia” (COLETIVO NACIONAL DE CULTURA, 2006, p. 19), a socialização implica por
sua vez, a alteração das relações de produção:

É pela posse da Palavra, da Imagem e do Som que os opressores oprimem,


antes que o faça pelo dinheiro e pelas armas. Temos de reagir contra todas as
formas de opressão. Essa luta deve-se dar, também, nesses três importantes
campos de batalha do Pensamento Sensível. Temos que reconquistar a
Palavra, a Imagem e o Som. (BOAL, 2009, p. 40)

O teatro do oprimido, em específico a modalidade fórum, avança historicamente na


radicalização da socialização dos meios de produção quando altera essas relações,
expressadas no processo de conformação da peça-fórum, a própria peça e a práxis cênica. A

9
Cf. ESTEVAM, Douglas. “Trajetória de uma estética política do Teatro – Parte 2”, op. cit.
70
difusão do arsenal do teatro do oprimido tem alcance mundial, expressão do seu potencial
mobilizador. Brecht defendia a democratização dos meios como modo de alterar a
“engrenagem”, e para isso o trabalho do ator ganha centralidade em sua obra, é a cena que
modificará a reação do espectador, que a partir da proposta brechtiana passaria a refletir e
posicionar-se diante da representação, não somente identificando-se de forma catártica.
O Teatro ao tornar-se parte da organização do MST, cria uma estrutura cênica própria
do movimento. Ao ter em sua constituição a apropriação dos meios de produção teatrais por
parte de trabalhadores organizados em torno de um projeto político de sociedade, o teatro
torna-se local de debate e encaminhamento da ação coletiva. Têm-se não somente teatro, mas
a atuação orientada na forma de espetáculo. Ao serem alçados à condição de espect-atores os
Sem Terra não somente experimentaram o ensaio da ação real mas corporificam em cena o
discurso defendido pelo movimento.

2.4 A organização política em cena: o teatro e a estratégia da revolução

Mas quem é o partido?


Ele fica sentado em uma casa com telefones?
Seus pensamentos são secretos, suas decisões são
desconhecidas?
Quem é ele?
Nós somos ele.
Você, eu, vocês – nós todos.
Ele veste sua roupa, camarada, e pensa com a sua cabeça
Onde moro é a casa dele, e quando você é atacado
ele luta.
Mostre-nos o caminho que devemos seguir, e nós
O seguiremos como você, mas
Não siga sem nós o caminho correto
Ele é sem nós
O mais errado.
Não se afaste de nós!
Podemos errar, e você pode ter razão, portanto
Não se afaste de nós!

Que caminho curto é melhor que o longo, ninguém


nega
71
Mas quando alguém conhece
E não é capaz de mostrá-lo a nós, de que nos serve
sua sabedoria?
Seja sábio conosco!
Não se afaste de nós!

(Bertold Brecht)

A criação da Brigada Patativa do Assaré, como já explicitado, é ação concreta do


MST. Essa característica da presença da organização política também marca o teatro feito por
e para trabalhadores na constituição do teatro político. Na URSS, o agitprop se desenvolve a
partir da necessidade de criação de formas alternativas de comunicação e de mediação entre o
novo Estado Revolucionário Russo e a população, no empenho de mobilização, faz-se com
que se inicie a configuração de estratégias de “agitação e propaganda artística”, que também
tem atuação marcada pela linha política de uma organização, no caso o partido comunista
russo.
O vínculo direto com o programa político-econômico do Governo - aqui
fundido com a figura do Partido – e a inserção no seio do processo de
organização do movimento operário são os moldes que enformam
historicamente o teatro de agitação e propaganda durante essa primeira
década da Revolução Russa. (GARCIA, 2004, pg. 19)

Na URSS, a agitação e propaganda era compreendida como uma das mais importantes
tarefas dirigidas com estímulo do poder soviético - as massas - e sob o controle da seção de
agitprop do Comitê Central, a agitação e a propaganda se conformaram para a vitória de
Outubro. Todo militante, não importa aonde atue na Revolução, podia ser um agitador, e
segundo o dirigente Lênin, o dever mais imperioso dos revolucionários: organizar a agitação
política sob todas as suas formas. Segundo Jean-Marie Domenach, o dirigente da Revolução
amplia o conceito de Agitação e Propaganda desenvolvido por Plekhanov, de instrumentos de
divulgação das ideias marxistas, de denúncia do capitalismo e de mobilização das massas para
também elementos centrais de formação da consciência da classe trabalhadora, de
organização, expansão e unificação da luta revolucionária. Estando ligados ao todo do
processo revolucionário, sendo o elo de ligação entre a teoria e a prática:
A correia de transmissão, o liame essencial de expressão, ao mesmo tempo
rígido e flexível, que continuamente liga as massas ao partido [ao
movimento, à luta], levando-as pouco a pouco a unir-se à vanguarda na
compreensão e na ação. (DOMENACH, 1955, pg.10)

Entretanto, a proposta de criação de uma arte proletária independente e os debates em torno


da relação dessa nova arte com a cultura do passado não se deram sem conflitos,
72
protagonizados pelo Partido, pelos setores de agitprop dos organismos soviéticos e pelas
organizações independentes (GARCIA, pg.34). O Proletkult defendia a autonomia da arte
proletária em relação ao Estado e rejeitava a herança cultural do passado. Eram propostas
divergentes às do Partido e do Estado, que com o fim da Guerra Civil e a introdução da Nova
Política Econômica (NEP), em 1921, submeteu o Proletkult à tutela dos Sindicatos e
valorizou a substituição das atividades de agitação pelas da propaganda que enfatizasse as
tarefas de construção do socialismo soviético (GARCIA, pg.34) Lênin, não tratou de forma
sistemática dos problemas estéticos e não trouxe nenhuma contribuição profunda nem original
para a estética marxista. Mas o governo revolucionário neutralizou as posições que
implicassem um caráter reacionário e chegou a interferir nos debates apresentando suas
posições. Lênin rejeitava a arte panfletária, avaliando que só atingiria o fim agitacional e não
educacional10.
A organização política também se faz presente na conformação do Teatro Proletário,
sistematizado por Erwin Piscator na Alemanha, que tem seus fundamentos baseados a partir
da experiência russa, e compreende o teatro como arma de propaganda política. Com a
Alemanha em guerra, a luta de classes é o que orienta a atuação cênica de Piscator, que filia-
se a Liga de Espártaco, o futuro Partido Comunista, logo após o assassinato de Libknecht e
Rosa Luxemburgo, em 1919. A Brigada Patativa do Assaré, compreende “que a Reforma
Agrária é uma demanda estratégica para reverter o quadro de favelização e marginalização a
que grande parte de nossa população está submetida.” (BRIGADA, pg.1), o teatro feito pelo
MST é a articulação permanente entre elementos da conjuntura e da base estrutural do sistema
a ser criticado. Assim como o teatro de agitprop russo e o Teatro Proletário alemão, se
posiciona de forma subordinada a estratégia da organização.
Nas três experiências o teatro atua com elo decisivo entre tática e estratégia,
sobretudo, como um conjunto de táticas orientadas pela estratégia de uma organização
política, mas no teatro de agitprop é possível perceber a presença do partido não somente na
direção política, mas a perspectiva organizativa evidenciada na cena como alternativa e
caminho a ser seguido, como é possível constatar no texto final da peça “O trabalho
doméstico e a operária”, escrita em 1925, pelo coletivo Blusa Azul;
Eu não quero ser uma escrava,
O obscurantismo, eu desafio,
O passado, eu o derrubarei,
Segundo Lenin eu viverei.

10
Cf. KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. pp. 59-63.
73
A Gabriel cheguei a dizer:
Você não pode acreditar no maldito,
Onde está o soviete,
O maligno não se encontra.

2.5 O desafio de atuar na/com dialética


Evocando a compreensão de que o teatro para enfrentar problemas tão complexos da
condição humana como são os de uma Revolução, a crítica tecida em torno do teatro de
agitprop e a Piscator - pelos próprios revolucionários e não pelos críticos fiéis ao drama
burguês que os taxaram de doutrinário - se conforma a partir da necessidade de se propor a
atuar em/com/na dialética,

(...) o pensamento dialético é obrigado a um paciente trabalho: é


obrigado a identificar, com esforço, gradualmente, as contradições
concretas e as mediações específicas que constituem o “tecido” de
cada totalidade, que dão “vida” a cada totalidade. “A dialética” -
observa Carlos Nelson Coutinho - “não pensa o todo negando as
partes, nem pensa as partes abstraídas do todo. Ela pensa tanto as
contradições entre as partes (a diferença entre elas: o que faz de uma
obra de arte algo distinto de um panfleto político) como a união entre
elas (o que leva a arte e a política a se relacionarem no seio da
sociedade enquanto totalidade)”. (KONDER, 2011, pg. 44)

É possível fazer um teatro ágil, de mensagem política clara e que possibilite não somente o
envolvimento do espectador na cena, mas sua ação nas contradições que ela apresenta? O
Teatro Fórum dá passos rumo a essa síntese estética que atua em perspectiva dialética? Pode-
se dizer que o teatro do oprimido no encontro com o MST é um passo histórico dado pelo
Teatro Político, indo além do agitprop, avançando na convergência entre explicitar as relações
sociais democratizando os meios de produção teatrais e apontando um projeto político em
cena?

Segundo Augusto Boal seu método não pode ser classificado como um teatro
proletário ou de classes. A reflexão feita por Boal, que o teatro do oprimido não é de classe, se
constrói a partir da afirmação de que mesmo dentro das classes oprimidas há opressores.
Aqui, afirma-se que o Teatro do Oprimido é um teatro de classe, mesmo que não somente
proletário, por principalmente enfrentar a classe dominante. Um homem trabalhador
explorado pode ser machista e oprimir sua companheira, também trabalhadora:

74
O teatro do oprimido não é um teatro de classe. Não é, por exemplo, o teatro
proletário. Esse tem como temática os problemas de uma classe em sua
totalidade: os problemas proletários. Mas no interior mesmo da classe
proletária podem existir (e evidentemente existem) opressões. Pode
acontecer que essas opressões sejam o resultado da universalização dos
valores da classe dominante (“As ideias dominantes numa sociedade são as
ideias da classe dominante” – Marx). Seja como for, é evidente que na classe
operária pode existir (e existem) opressões de homens contra mulheres, de
adulto contra jovens, etc. O teatro do oprimido será o teatro também desses
oprimidos em particular, e não apenas dos proletários em geral. Da mesma
forma que o teatro do oprimido não é um teatro de classes, igualmente não é
um teatro de sexo (feminista, por exemplo), ou nacional, ou de raça, etc.
porque também nesses conjuntos existem opressões. Portanto, a melhor
definição para o teatro do oprimido seria a que se trata do teatro das classes
oprimidas e de todos os oprimidos, mesmo no interior dessas classes. (Boal,
1980, p. 25)

Ao afirmar um teatro das classes oprimidas, Boal comunga com o materialismo


histórico dialético de Marx. Ao compreender que além dos operários, que estão no cerne da
contradição capital e trabalho, outros sujeitos estão em situação de opressão e exploração, e
que as mesmas se dão também entre grupos sociais e não somente entre classes sociais, ele
visibiliza as inúmeras relações sociais que permeiam todo um sistema que não só se revela no
chão da fábrica, são relações sociais de sexo, raça, gerações.
No Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro já trabalhamos com
homens que batiam em suas mulheres. A vergonha que alguns sentiam, ao
ver-se em cena, já era o início do caminho da transformação possível. É
pouco? Sim, muito pouco, mas a direção da caminhada é mais importante do
que o tamanho do passo. Trabalhamos com professores que batiam em seus
alunos e pais em seus filhos: a visão teatral de suas opressões envergonhava
esses opressores e, a muitos, transformava. O Espaço Estético é um Espelho
de Aumento que revela comportamentos dissimulados, inconscientes ou
ocultos. Não devemos ter medo de trabalhar com pessoas que exerçam
funções ou profissões que oferecem a oportunidade e o poder de oprimir –
temos que acreditar em nós e no teatro. Mas temos que ter muito cuidado e
saber escolher nosso lado. (Boal, 2009, p. 23-31)

Ao passo que compreendemos que a exploração do trabalhador por parte do patrão não
é a única questão a ser debatida pelo TO, não se coloca para Boal a anulação da existência de
uma classe dominante e seus valores dominantes. Saber escolher um lado não é tratar a
realidade de modo maniqueísta, a complexidade da trama de interações de uma sociedade não
pode ser simplificada. Aqui, identifico o Teatro do Oprimido como um método que
compreende e identifica as relações de opressão entre grupos sociais dentro de um sistema de
opressão e exploração que organiza a sociedade, e esta não é só capitalista, como também
racista e patriarcal. A perpetuação da opressão por grupos sociais favorece a classe social
75
dominante e não a classe trabalhadora. Significa dizer que a perpetuação do machismo
privilegia os homens e sustenta a classe dominante e suas ideias. Um homem negro
trabalhador que bate em sua esposa está se beneficiando do poder patriarcal e ao mesmo
tempo fomentando a sustentação de um sistema que também o oprime e explora. No método
de Boal o conceito de oprimido é identificado como o sujeito que ao tomar consciência da
injustiça sofrida em uma relação desequilibrada de poder, que beneficia um grupo em
detrimento do outro, luta para transformar a situação (BOAL, 2010, pg. 124). Essa relação de
poder está ligada de modo umbilical ao contexto histórico e social no qual grupo se insere, e
para o teatrólogo, a função da arte no contexto de opressão e exploração, é de criar
consciência, da verdade e do mundo.
Piscator, enfrentando a concepção burguesa da neutralidade na arte, o criador do
Teatro Proletário acreditava na necessidade de desenvolver um teatro comprometido com a
luta pela libertação da classe trabalhadora, essa produção teatral era um grito agudo e cortante
no ouvido dessa burguesia que também fazia teatro e do teatro lugar de propaganda. O teatro,
se pretendesse ser um teatro atual e representativo daquela geração que vivia a revolução viva,
não poderia mais dar vazão a outros impulsos que não os originados de forças políticas,
econômicas e sociais. As cenas particulares deveriam ser elevadas ao histórico, ou seja, ao
político, ao econômico e ao social, como ideia fundamental de toda ação cênica, pois somente
assim poderiam unir o palco às suas vidas. E é ao desenvolvimento desse teatro que o
encenador alemão irá se dedicar, ao surgimento do teatro épico.
A multiplicação das trupes de agitprop tem como determinante o momento histórico
da revolução russa, mas também a opção da forma que se propõe à socialização dos meios de
produção teatrais e ao desvelar das relações sociais de produção em cena objetivando não
somente a prática teatral mas o avanço da consciência de classe. A consciência passa ser o
elemento principal, tanto para o discernimento das contradições, quanto para a organização
das forças contrárias que buscam garantir os seus interesses. O ser social é um ser da classe.
Em primeiro lugar por ter origem social; em segundo lugar por desenvolver aprendizados
extraídos da convivência que lhes dará consciência de si. Na sequência, no fazer histórico, a
consciência eleva-se ao grau de para si, tornando o sujeito agente ativo na classe. A
experiência e a superação da visão da aparência levam o ser social a se inteirar das
contradições e consequências do movimento cotidiano.
As experiências na Rússia e na Alemanha, seja das trupes de agitprop, ou da produção
de Piscator e Brecht, questionavam e agiam para que o teatro enfrentasse o “programa” de
76
arte da burguesia. Alteram o lugar ocupado pelo espectador, e ao fazê-lo movimentam
também o debate em torno de como deve ser o teatro que no despir dos fatos sociais faça
emergir as relações sociais e econômicas da sociedade capitalista. “Há que se tomar partido,
juntar-se a um dos lados em conflito. Se formos éticos, este partido será sempre o dos
oprimidos.” (BOAL, 2009, pg. 35).

2.6 Teatro ou doutrina? arte ou política?


No Brasil, após o fim da ditadura militar, por vezes, falar em um teatro que tenha
como cerne a intervenção da realidade parece retrógrado ou mesmo clichê, como se não
houvesse mais pelo que lutar, ou ainda como se não fosse papel da arte e dos seus sujeitos
debruçar-se sobre temas da luta de classes. O teatro que expõe a exploração e a opressão na
base da estrutura da produção social e a arte sem uma história autônoma ou descolada
(MARX e ENGELS) apresentando o ser humano como possível de ser modificado e as ações
dos seres humanos como a única possibilidade de modificar o mundo, foram, e são,
duramente criticadas e perseguidas. Augusto Boal se diz objeto de um “linchamento cultural”
pelos críticos teatrais, assim como era sujeito de uma recepção apoteótica pelos espectadores
de suas peças (Boal, 1985, pg. 33). Sob a bandeira da autonomia do artista e da arte pela arte,
sedimentou-se como sendo comum a ideia de que arte e política são polos dissociados.
(VILAS BOAS, pg. 11). Junto a isso, uma forte crítica àqueles que ultrapassam a esfera
dramática e suas relações interpessoais limitadas no âmbito da vida privada ou aos que se
apresentam segundo métodos não realistas de construção da cena. (COSTA, 2011). Todo
teatro é político, mas nem todo teatro intervém de forma explícita na política.
As práticas cênicas que abertamente defendem os direitos sociais são historicamente
criticadas como doutrinárias, panfletárias, ou têm sua caracterização concebidas como não-
teatro. Essa discussão perpassa reflexões de filósofos, artistas e historiadores, debates sobre a
concepção de arte, liberdade e política, atravessam séculos, intensificando-se nos momentos
de acirramento da luta de classes, como no início do século XX, na Europa, período que se
debruça por ser marco histórico da produção cênica que se organiza a partir das relações de
produção de sua época (BENJANMIM, 1937), o Teatro Político se constitui “Diante dos
cultores do belo, num instante em que a defesa da beleza é concebida como anulação da
realidade sócio-política” (PEIXOTO, pg. 38), o engajamento, isto é, se envolver com a causa
dos trabalhadores, se dava por oposição a autonomia do artista. (COSTA, 2004). Ser belo é ser
apolítico, ser engajado é ser aprisionado.

77
As críticas ao Teatro Proletário de Piscator, feitas pela revista Bandeira Vermelha, em
1920, o caracterizavam como propaganda. Isso, à época, era afirmar que o teatro feito por ele
não era arte, essa era demasiado sagrada para ter seu nome utilizado sem, segundo a revista,
de fato sê-lo: “A isso é preciso objetar: não se escolha, então, o nome teatro; dê-se ao filho o
nome verdadeiro: propaganda” (PISCATOR, 1968, pg. 56) Também na contemporaneidade a
crítica sobre o teatro piscatoriano e de agitação e propaganda sobrevoa compreensões
parecidas, “Arte tornou-se arma de propaganda e perdendo a sua qualidade emancipatória e
alternativa.” (GUINSBURG, 2002, pg. 157). As formulações brechtianas que atacam a arte
burguesa parecem, a essa mesma burguesia, “provocar ataque contra a arte em si”. Nessa
perspectiva, a arte quando voltada diretamente para ação política negaria a si mesma.
Ao confinar o teatro que assume a atuação na luta de classes a condição de “meras
peças de propaganda”, nega-se a condição política do teatro. É importante observar que as
experiências que construíram sua ação cênica ante uma estratégia de luta, e programa político
foram as que se propuseram à socialização dos meios de produção teatrais e a historicização
da cena. É somente quando os trabalhadores apropriam-se da linguagem teatral e tratam em
cena dos assuntos que lhes interessam enquanto classe que a cena torna-se doutrinária e um
não-teatro? Pierre Bourdieu ressalta esse caráter da aparência da autonomia do campo
artístico em relação à sociedade na medida em que a arte assumiu a função da distinção social
da burguesia no quadro de questionamento das hierarquias sociais baseadas nas linhagens e no
sangue. O saber de apreciação de uma obra de arte passou a ser valorizado e apresentado
como uma espécie de dom em torno de categorias universais, quando, na realidade demanda
um aprendizado específico e depende, principalmente, dos critérios relativos de definição por
cada sociedade do que pode ou não ser considerado como arte, como belo ou feio, como bom
ou mau gosto. O mesmo ocorreu em torno das capacidades de criação do artista, que passou a
ser considerado como um gênio.

2.7 Teatro e tribuna


“Até quem sabe a voz do dono, gostava do dono da voz...”
(Chico Buarque)

As peças, quando pensadas para atuar na luta política, têm uma função organizativa
muito antes e muito além de se tornarem obras acabadas, se forjam na compreensão de que só
o engajamento não basta para constituir o teatro político. É exatamente ser teatro que o torna

78
potente arma transformadora e não um comício. A experiência da última modalidade do
arsenal do TO sistematizada por Augusto Boal, o Teatro Legislativo, destaca esse aspecto:
“Temos observado que, quanto mais teatralizada a sessão, (…) mais empenho têm os
participantes em expor com precisão seus pensamentos e sugestões. A teatralidade da cena
estimula a criatividade, a reflexão e a compreensão” (BOAL, 1996, pg. 123). Sobre o Teatro
Fórum, Boal, afasta a ideia de instauração de uma assembleia, como um lugar em que as
pessoas falam, reafirma a necessidade de ser mais e mais teatro a linguagem para que o
objetivo político e pedagógico se concretize. O teatro-fórum
Não deve perder tempo em longas explicações antes do início do espetáculo,
nem deve, depois de cada intervenção, permitir que a sala se transforme em
assembleia: quanto mais teatro, melhor, quanto mais for usada a linguagem
teatral e não apenas a verbal, mais aprenderemos esteticamente. (Boal 2003,
pg. 193)

Piscator e Boal clamam para a cena situações em que o próprio episódio histórico é
analisado. Ao fazê-lo transformam o teatro em um lugar de questionamento da sociedade. A
representação do real confronta o limite entre a realidade e a representação. Ao confrontar o
termo assembleia discorrendo sobre a prática do Teatro Fórum, Boal parece discordar quanto
à noção de assembleia no que tange ao espaço em que o debate acontece somente com a fala.
É preciso que além de discursar a pessoa ocupe a cena. É preciso agir mais e falar menos.
A última modalidade do arsenal do Teatro do Oprimido, o Teatro Legislativo prevê na
sua base a realização de sessões de teatro-fórum, que se tornam assembleias teatrais
encaminhando propostas que viram projetos de lei levadas à Câmara de Vereadores para
serem votados em sessões plenárias. As sessões são abertas aos participantes e realizadores
dos espetáculos fóruns, “verdadeiros atores sociais e teatrais, oprimidos da ficção e da
realidade” (PEREIRA, 2013). Não se trata somente de criar possíveis realidades, trata-se a
partir da realidade concreta, do episódio histórico, construir as peças. Nessa modalidade,
aproxima-se ainda mais o Teatro do Oprimido da concepção de assembléia cênica aqui
apresentada. Porque necessariamente, para ser Teatro Legislativo é preciso que não apenas o
debate cênico, completo e corpóreo aconteça, mas que haja encaminhamentos práticos,
proposições de alteração das leis. O que alça o Teatro do Oprimido à condição não somente de
tribuna, ou arma de propaganda, mas como munição para a ação no centro da luta política.
A proposta do Teatro Legislativo começa a ser desenhada em 1992, quando o Centro
de Teatro do Oprimido opta por apoiar o Partido dos Trabalhadores (PT) nas eleições
municipais do Rio de Janeiro que trazia como candidata à prefeitura, Benedita da Silva e
79
como opositor César Maia, candidato eleito pelo PMDB - aqui identifica-se novamente a
presença marcante da organização política. Na época estava proibida a participação de artistas
na campanha, mas Boal compreendia como importante posicionar-se frente à conjuntura de
avanço cada vez maior do neoliberalismo no Brasil, “Queríamos participar da campanha nas
praças cantando nossas músicas, fazendo Teatro Fórum sobre os acontecimentos do dia a dia,
usando máscaras, estetizando as ruas. Queríamos teatralizar a campanha” (BOAL,1996, p.
37). A proposta foi aceita pelo PT com uma ressalva: que algum deles se candidatasse a
vereador. O grupo propõe o nome de Boal, que só depois de muito tempo de discussão foi
convencido a candidatar-se, tendo como elemento definidor a crença na impossibilidade de
eleger-se, o objetivo era “participar das eleições fazendo um enterro festivo do CTO” (BOAL,
1996, p. 38), que passava por um momento financeiro crítico, em vias de fechamento.
Ultrapassando as expectativas do grupo, a campanha cresceu e Boal foi surpreendido pela
perspectiva concreta de se eleger vereador. Chegou a pensar em desistir, mas avaliando com o
grupo, optou pela ideia de, se eleito, atuarem teatralmente, através da máquina legislativa à
qual teriam acesso. A vitória impulsionou as atividades do CTO, incentivando e orientando a
criação de núcleos de Teatro do Oprimido nas comunidades, onde seriam debatidas
artisticamente questões políticas de interesse comum, formulando os projetos de lei que Boal
defenderia na Câmara dos Vereadores.

No Teatro Legislativo, o eleitor não deve ser apenas “um mero espectador das ações
do parlamentar, mesmo quando corretas: queremos que opine, discuta, contraponha
argumentos, seja responsável por aquilo que faz o seu parlamentar” (Boal, 1996, pg.46). Com
essa experiência “treze desejos vindos da população, através do teatro, são hoje lei!” (Boal,
2004, pg. 3), mais de 16 grupos de Teatro Legislativos foram formados, fazendo diversas
apresentações, coletando sugestões que se tornaram projetos de lei, além de grupos que
passaram a utilizar o Teatro Legislativo. Assim, o teatro passa a ser não apenas político, mas
também uma das formas pela qual a atividade política se exerce.

80
Figura 15: Mandato Político Teatral de Augusto Boal/RJ

O momento político vivido no país a época, é peculiar. A conjuntura internacional e


nacional sofre alterações significativas, o início dos anos 1990 foi marcado por uma nova fase
na luta de classes no Brasil. A derrota eleitoral da esquerda para Collor, a nova correlação de
forças no plano mundial com o fim da União Soviética e das experiências socialistas no leste
europeu, a derrota das revoluções na América Latina, como Nicarágua e El Salvador, a
ofensiva neoliberal do governo FHC e a reestruturação do mundo do trabalho, conformaram
um conjunto de eventos marcantes que anunciam o início de um longo período de descenso da
luta de massas. Soma-se a tudo a isso, as respostas aos problemas vividos pelo povo brasileiro
que passam a ser organizadas pelas ONG's, as quais começam a prestar à população pobre,
serviços substitutivos daqueles que eram considerados obrigatórios pelo Estado.
Enfraquecendo as organizações populares que pautavam um projeto de sociedade com vista à
emancipação humana e favorecendo as que pautam as políticas focais, centradas no indivíduo
e não mais no coletivo ,além do condenar do Estado, das empresas públicas, ataque aos
direitos trabalhistas como sendo desperdício de dinheiro e lugar de privilégios: “Numa

81
palavra, trata-se de uma velha ideologia que desempenha uma função política nova e, em
parte, paradoxal: a de exaltar o mercado em benefício dos monopólios e contra os direitos
sociais.” (BOITO, s/d, pg. 80)
É nesse contexto que o Teatro Legislativo surge, propondo que os participantes do
Fórum além de do debate em cena formulem leis para que sejam defendidas na Câmara de
vereadores, garantindo, assim, os direitos sociais, sendo esse o principal objetivo para
trabalhar com os problemas do povo em um mandato, que tinha na estrutura uma rede de
parceiros, organizado em ELOS e NÚCLEOS.

Um ELO é o conjunto de pessoas da mesma comunidade e que se comunica


periodicamente com o Mandato, expondo suas opiniões, desejos e
necessidades. Essa relação pode-se dar através da presença na Câmara, na
comunidade ou em outros locais onde se realizem atividades do Mandato.
Pode-se dar pessoalmente, através da Câmara na Praça ou da Mala Direta
Interativa. Um NÚCLEO é um elo que se constitui em grupo de Teatro do
Oprimido e, ativamente, colabora com o Mandato de forma mais frequente e
sistemática. (BOAL, 1996, p. 66)

Os núcleos podem se caracterizar em 3 categorias,

a) Comunitários – formado por participantes que vivem ou trabalham na


mesma comunidade e têm, portanto, muitos problemas e preocupações em
comum (…) b) Temáticos – formados por participantes que, por alguma
razão, ou idéia, algum forte objetivo, se uniram (…) c) Temáticos e
Comunitários, participantes que combinam as duas características primeiras.
(BOAL, 1996, 70-71)

Além das leis, Boal levava os debates ocorridos na Câmara para os Núcleos,
colocando o teatro no centro da ação política, e não somente se contentando em fazer o teatro
político. Os sujeitos da cena tornam-se “verdadeiros atores sociais e teatrais, oprimidos da
ficção e da realidade.” (PEREIRA, 2000, pg. 3). A proximidade do Teatro Legislativo de Boal
do Teatro Proletário de Piscator se evidencia na transformação da cena em local de decisão e
encaminhamento, como uma assembleia. Os trabalhadores são o público de ambos os
encenadores. Aproximando-se do teatro na concepção piscatoriana que deveria ser um local
de reunião, comunhão, reflexão coletiva. O espectador era provocado a posicionar-se ali,
durante o espetáculo, e não somente na volta para casa aos cochichos com um conhecido. Um
exemplo foi a encenação de Fahnen (“Bandeiras”), de Alfons Paquet, dirigida por Piscator
em 1924 reproduzindo um julgamento de anarquista em Chicago em 1886. Além de ter se
destacado por adotar uma variedade de técnicas, tais como o uso de letreiros e de quadros
estatísticos, a exibição de slides e filmes e a presença de canções e de um coro, no intuito de

82
evitar a monotonia, colocou-se uma dupla tarefa: a primeira era romper com a produção
capitalista no teatro, substituindo, como na União Soviética, a hierarquização das relações
internas de trabalho e entre o teatro e os espectadores pela ação coletiva. A segunda era o uso
da arte como propaganda e educação política das massas (GARCIA, pp. 55-56.) Na revista
Bandeira Vermelha, de 12 de abril de 1921, em discussão feita por Canavas e Jung, diz-se
que:

A novidade fundamental nesse teatro é que a ação e a realidade se entrosam


de maneira inteiramente especial. Não se sabe, muitas vezes, se a gente está
no teatro ou numa assembleia, e tem-se a impressão de que se deve intervir e
colaborar, de que se deve apartear. Desaparece a fronteira entre o espetáculo
e a realidade... O público sente que contemplou a vida real, que é espectador,
não de uma peça de teatro, mas de um trecho verdadeiro da vida... Que o
espectador é incluído na peça que tudo o que se desenrola no palco lhe diz
respeito. (PISCATOR, 1968, pg. 58)

Experiência que em muito se aproxima das Sessões Solenes Simbólicas de Teatro


Legislativo, um único evento em que se reproduz o ambiente de uma casa legislativa para o
espetáculo. A cena é a representação de um tribunal.

Quando nos temos a possibilidade de fazer com todo o aparato, nós a


chamamos de Sessão Solene Simbólica de Teatro Legislativo, porque a ideia
é que as pessoas se sintam como se estivessem numa casa legislativa, em que
elas são os legisladores. Inclusive nós montamos dois púlpitos, um vermelho
e outro verde pra quem quiser venha atacar e outro venha defender a
proposta, nós fazemos um debate para que dessa forma a plateia fique
realmente esclarecida para poder votar com consciência. É como se fosse no
Congresso Nacional, quando se vota um projeto de lei e ele e debatido pelos
deputados. (BENDELAK, entre entrevista cedida a FILLIPIN, 2008, pg . 46)

A novidade fundamental do Teatro Legislativo é a ação de intervenção para além da cena. O


teatro acaba por ser construção de força social em torno de uma pauta combinada à luta
institucional. Tendo como proposta inserir na política seus participantes, o Teatro Legislativo,
não diferente das práticas cênicas aqui discorridas e que atuam na democratização dos meios
de produção teatrais tem a estética questionada,

[...] existe um discurso de que a arte não deveria ser usada como ferramenta
política sob pena de ser imposta e, nesse sentido, contradizer o seu signo (no
sentido semiótico do termo). Além disso, essa forma de dialogar com a
sociedade suscita questionamentos por parte da academia, principalmente no
que se refere aos aspectos teatrais do teatro legislativo, concernentes à
linguagem e à estética dessa forma teatral. (CHRISTINA pg. 48).

Questiono aqui sobre o que confere coerência interna a uma obra. Ao passo da
83
concordância que as obras de arte tem lógica própria, a análise tem o dever de identificar
(COSTA, 2004) a que aquela obra se propõe. Augusto Boal (2009) partindo do ponto de vista
de Alexander Baumgarten, que entendia a Estética como uma forma de comunicação através
dos sentidos: “a estética (como teoria das artes liberais, como gnoseologia inferior, como arte
de pensar de modo belo, como arte do análogo da razão) é a ciência do conhecimento
sensitivo.” (Baumgarten, 1993, p. 95). O sistematizador do Teatro do Oprimido afirmou em
sua última pesquisa, ser preciso que o oprimido se reaproprie da Imagem, da Palavra e do
Som. Repudiando a ideia de uma única estética, o teatrólogo contrapõe algumas das críticas
feitas ao TO, afirmando ter, o Teatro do Oprimido, uma estética própria, criada pelos atores e
espectadores.

3. O TEATRO SEM TERRA: UMA ESTÉTICA DO OPRIMIDO

3.1 – A estética do oprimido

Rebento
substantivo abstrato
O ato, a criação, o seu momento
Como uma estrela nova e o seu barato
que só Deus sabe, lá no firmamento
Rebento
Tudo o que nasce é Rebento
Tudo que brota, que vinga, que medra
Rebento raro como flor na terra,
rebento farto como trigo ao vento (…)
(Gilberto Gil)

A expressão reta não sonha.


Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
(Manoel de Barros)

O teatro é uma arma. E o povo quem deve manejá-la.


(Augusto Boal)

Ao se referir ao trabalho alienado, Marx (1964), diz que o trabalho externo, o trabalho
em que o ser humano se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de mortificação.
Sacrifício e mortificação são características que reduzem o sentido de gênero do ser humano
(BOGO, 2011), mortificar é matar a criatividade, é deixar de forjar o belo (MARX, 1964), o
84
trabalho alienado na sociedade capitalista é, para marxistas, a base material de sustentação da
exploração e opressão. Para os que com ele concordam faz-se necessário “(...) reverter o curso
da acelerada desumanização dos oprimidos nesta época sombria.” (BOAL, 2009, pg. 168), e
para isso, é preciso recuperar a capacidade de reprodução de si e da realidade, desalienar o
trabalho ao passo que se desaliena os sentidos, humanizando o trabalho, recuperando a
capacidade criadora.
Esse caminho não é simples como é simples descrevê-lo. Piscator, (19 68) afirmava que
esse processo de reapropriação da capacidade criativa consciente, chamada por ele de
libertação cultural, se daria pari passu com a libertação política e econômica da classe
trabalhadora. Não seria possível, para ele, como marxista, alterar uma parte apenas. A arte
não é um retalho solto, é parte, é engrenagem de uma grande máquina; em seu caso, máquina
em funcionamento no ascenso das lutas revolucionárias na Europa. O fato é que aqui
queremos nos debruçar sobre a recuperação da capacidade criadora, a partir da afirmação de
Boal de que “(...) Mesmo que alguns não sejam capazes de criar um produto artístico, todos
são capazes de desenvolver um processo estético” (BOAL, 2009, pg. 169). O produto
artístico, a obra de arte, entendido como o que é feito, que “deve ser capaz de despertar ideias,
emoções e pensamentos semelhantes aos que levaram o artista à sua criação.” (BOAL, 2009,
pg. 118); e o processo estético, o fazer que “(...) desenvolve nossas capacidades perceptivas e
criativas atrofiadas, aumenta o nosso poder de metaforizar a realidade.” (BOAL, 2009, pg.
118).
A pesquisa feita pelo teatrólogo afirma avançar em duas teses principais:
1 — existem duas formas humanas de pensamento – Sensível e Simbólico
–, e não apenas esta que se traduz em discurso verbal. São formas
complementares, poderosas, e são, ambas, manipuladas e aviltadas por
aqueles que impõem suas ideologias às sociedades que dominam; 2 —
como todas as sociedades estão divididas em classes, castas, etnias, nações,
religiões e outras confrontações, é absurdo afirmar a existência de uma só
estética que a todos contemple com suas regras, leis e paradigmas: existem
muitas estéticas, todas de igual valor, quando têm valor. (2009, pg. 16)

Boal envereda pela necessidade da reapropriação desses dois Pensamentos, o sensível, criador
da arte, da cultura e do simbólico, que tem no cerne as palavras. O teatrólogo afirma ser a
isso que se propõe o TO: contribuir para que se desenvolvam esses dois pensamentos nos
oprimidos. Pensamentos esses que historicamente foram “atrofiados em prevalência de um
pensamento único” (BOAL, 2009, pg. 184), sendo organizado pelos opressores, “os que
oprimem impõem aos oprimidos sua visão do mundo e de cada coisa desse mundo, para que

85
sejam obedecidos e reine a sua paz.” (BOAL, 2009, pg. 106) e reproduzido pelos oprimidos e
explorados:
No caso da cultura, esta “criação” cultural que interessa a elite, passará a ser
“consumida” sem o mínimo de senso interpretativo, apenas reproduz por
estar condicionado pela propaganda e pelos símbolos estabelecidos. As
pessoas não se reconhecem naquilo que foi produzido. (BOGO, 2003, p. 4 –
5)
Esse Pensamento Único produz um imaginário que anula a vivência histórica de outros
sujeitos políticos que não os das elites
Com o controle das elites econômicas sobre os meios de produção da
televisão, do cinema, do rádio, de jornais e revistas, há a produção da
legitimação de um imaginário e de uma idéia de realidade que suprime o
ponto de vista das classes populares. Com o discurso único das elites ocorre
um complexo processo de naturalização da barbárie, das desigualdades
sociais estabelecidas e das relações políticas (ou de poder). Contra o
monopólio dos meios de representação da “realidade”, um projeto de
transformação precisa se contrapor com técnicas e linguagens capazes de
colocar em xeque as formas de dominação, gerar alternativas coletivas,
apontar caminhos para outras formas de organização social. (MST, 2007, pg.
10)

Para se libertarem, “(…) os oprimidos devem descobrir sua própria visão da sociedade, suas
necessidades, e contrapô-las à verdade dominante, opressiva” (BOAL, 2009, pg. 106). Ao
MST surge “(…) o desafio de desencadear um processo que chamamos de desalienar a
cultura, que é tornar consciente e ter o controle da produção da vida em outras bases”
(BOGO, 2003, p. 4 – 5), para tal, a Estética do Oprimido propõe a alfabetização dos sentidos
através da apropriação dos meios de produção. Precisamos nos alfabetizar em falar, ver, ouvir,

Esta é igual, ou pior, forma de analfabetismo: a cega e muda surdez estética.


Se aquela proíbe a leitura e a escritura, esta aliena o indivíduo da produção
da sua arte e da sua cultura, e do exercício criativo de todas as formas de
Pensamento Sensível. Reduz indivíduos, potencialmente criadores, à
condição de espectadores. (BOAL, 2009, pg. 15)

Quando se diz educação dos sentidos afirma-se o seguinte: enquanto programa de


emancipação humana, apropriar-se da grandeza da produção humana significa desenvolver os
sentidos de uma forma completamente nova, completamente distinta. É dar aos nossos
sentidos –qualquer um deles– as bases da produção humana. “a sensibilidade (auditiva, visual,
gustativa, tátil e olfativa) aos detalhes e particularidades, ocultas aos insensíveis, afigura-se,
portanto, como deflagradora (...) ” ( DUARTE, 191-192). Para isso é preciso ter acesso a essa
produção, entendendo antes de tudo como ela foi criada, experimentando em processo de
educação dos sentidos,
86
(...) Experiências as quais, diga-se logo, não se restringem à simples
contemplação de obras de arte, seja ouvindo música, seja assistindo teatro ou
freqüentando museus. Elas devem, sobretudo, principiar por uma relação dos
sentidos com a realidade que se tem ao redor, composta por estímulos
visuais, táteis, auditivos, olfativos e gustativos. (DUARTE, pg. 190)

Existe uma relação fundamental entre a matéria que são os nossos sentidos e o significado, a
simbologia, o conhecimento, a experiência contemplativa que estão por trás destes. Em “um
mundo de especialistas insensíveis à realidade cotidiana produzindo instrumentos, técnicas e
conhecimentos colocados à disposição de massas anestesiadas que necessitam emoções cada
vez mais violentas para sentirem alguma coisa e afirmarem sua existência. ” (DUARTE, 2000,
pg. 220) e “(...) visto que este século nos ensinou e continua a nos ensinar que os seres
humanos podem aprender a viver nas condições mais brutalizadas e teoricamente
intoleráveis” (Hobsbawn, 1995, pg. 22), compreender e apreender os sentidos da produção do
gênero humano, precisa se dar no mesmo passo da ação sobre o que sustenta a dominação dos
sentidos. Atuar no enfrentamento à ordem vigente brutalizada, perpassa por compreender o
sensível como parte do todo, e não apartada do processo de alienação e libertação.

3.2 – Elementos de um possível sistema interno teatral Sem Terra


Ao observarmos o caminho trilhado pela Brigada de teatro do MST, suas influências,
sínteses, percebemos que o teatro Sem Terra tem elementos centrais, norteadores da ação
cênica do movimento. Seu sistema interno e o processo de formação de uma estética própria
Sem Terra é expressão histórica de um leito do teatro político em que se inclui - mas não se
encerra - o Teatro do Oprimido, o AgitProp socialista, o Teatro Proletário de Piscator e o
Teatro Épico de Brecht; em fusão cotidiana com as vivências, estudos e experimentações dos
artistas militantes. Podemos dizer que o leito histórico, teórico e prático do teatro do MST é o
conjunto das experiências artísticas realizadas pelos trabalhadores em perspectiva de ruptura
com o sistema capitalista. Aqui a tentativa é apresentar o que foi identificado como elemento
central, de um possível novo passo da produção do Teatro Político brasileiro.

3.2.1 - Desmercantilizar e socializar os meios de produção teatrais


Compreendendo que a alienação é a perda do controle do produto produzido , a
recuperação da capacidade criadora é necessariamente a reapropriação do controle do produto
produzido, o que significa apropriar-se dos meios de produzir para ser possível desalienar e
criar.

87
Nenhuma obra de arte será capaz de ajudar a produzir um imaginário
desmercantilizado se em algum nível não estabelecer uma relação crítica com
o próprio ato de consumir imagens e representações. Se a mercadoria aliena o
valor de uso em favor do valor de troca, a desmercantilização da arte
pressupõe sempre uma desalienação de sua utilidade. (CARVALHO, s/p,
2003)

Essa perspectiva, que prevê mudanças estruturais, implica em transformações em termos de


conteúdo, formas e na relação entre o próprio grupo que produz, no caso, a Patativa do
Assaré.
Notamos que no decorrer desses cinco anos de atuação da Brigada Patativa
do Assaré, começou-se a esboçar uma espécie de sistema interno no MST,
em que grupos produzem peças, que são registradas por escrito, e o texto é
enviado para outros coletivos. Nos encontros nacionais e regionais esses
grupos apresentam-se e trocam experiências, e posteriormente, nos
acampamentos e assentamentos, outros grupos passam a montar as peças que
viram e leram, e nesse processo ocasionalmente são realizadas adaptações.
(PATATIVA DO ASSARÉ, 2007, pg. 5)

Essa prática, definida como sistema interno pelos militantes do MST que compõem a Brigada
de Teatro do MST, essa apropriação, só é possível ao passo que se desmercantilizam os meios,
Uma estética democrática, ao tornar seus participantes capazes de produzir
suas obras, vai ajudá-los a expelir os produtos pseudoculturais, que são
obrigados a tragar no dia-a-dia dos meios de comunicação, propriedade dos
opressores. Democracia estética contra a monarquia da arte. (Boal, 2009,
p.167)

Quando se propõe a produzir para compartilhar, produzir para se apropriar, estamos


desmercantilizando a produção,
A democratização da arte não significa enfrentamento com os artistas
profissionais: pelo contrário, é sua liberação. Ao serem avassalados pelos
monarcas econômicos, os profissionais não devem se iludir pensando que
conservam sua liberdade de criação: como assalariados, devem obedecer a
regras estabelecidas pelas empresas que os contratam e controlam. (BOAL,
2009, pg. 130)

No MST, por meio de seu modo de produção específico, não só o conteúdo das peças é
transmitido, mas também o próprio processo de criação das obras e sua produção. Tem-se
forma e conteúdo constituídos em moldes diferentes dos da competição engendrada ao
sistema capitalista. Por meio da mediação dialética entre a matéria do processo social e a
forma estética, para o movimento, a arte para o MST deve proclamar a sua liberdade em
relação ao princípio da propriedade.

88
3.2.2 – O trabalho coletivo
Prezar pelo trabalho coletivo, é característica tanto do MST, enquanto movimento,
como do Teatro do Oprimido e das trupes de agitprop. A desmercantilização do trabalho
cênico tem no caráter coletivo pilar central para a socialização dos meios de produção teatrais,
e desponta desde a 1a etapa de formação da Patativa com o CTO.

Se o trabalho é sobre transgênico, ALCA, latifúndio, entre outros, exige que


o grupo se organize e busque conhecer, estudar e criar. Esse processo é o que
mais impressiona pelo fato de ser um processo circular, primeiro o grupo
define o tema, que geralmente é determinado por demandas concretas
pautadas pela coletividade do MST, em seguida desenvolvem pesquisas,
estudos, seminários para daí partir pra a elaboração - Mesmo sendo algumas
peças iniciativas individuais acabam se tornando coletivas, pois precisam da
contribuição do grupo para serem concretizadas – a apresentação da obra é
que a torna um instrumento em transformação, com a intervenção do público
a peça sofre mudanças e assim sucessivamente. Essa construção se realiza
coletivamente: os autores, obras e públicos, ao se consolidarem permitem
que os espectadores passem também a ser autores, ou atores, ou seja, que
consumidores passem a ser produtores. (SILVA, 2005, pg. 38)

Nega-se a simulação da industrialização, a especialização radical, não significando a negação


do aprofundamento, da capacitação e estudo a partir das vontades e necessidades das pessoas
e do coletivo. Mas para entender a sua função é preciso entender o conjunto. Por não estar sob
a lógica acelerada da produção mercadológica, a Patativa do Assaré pode experimentar e
fomentar a criação em processo de aprendizagem coletivo. O trabalho da Brigada não é
somente simbólico no que tange a crítica a dinâmica capitalista das relações de trabalho, é
também libertação na criação.

3.2.3 - A refuncionalização (Umfunktionierung) como diretriz política

O aspecto da refuncionalização das linguagens estéticas dominantes, liga-se às revisões do


papel do espectador e da ideia do espetáculo. O conceito é ponto central na teorização de
Brecht sobre o teatro épico, explorado por toda sua teoria, e sistematizado por ele“para
caracterizar a transformação de formas e instrumentos de produção por uma inteligência
progressista e, portanto, interessada na liberação dos meios de produção, a serviço da luta de
classes” (BENJAMIN, 1994, pg. 127). É necessário precisar que tal acepção antes de
conceituada por Brecht foi esboçada pelas trupes de agitprop soviéticos, pelo Teatro Proletário
de Piscator e décadas depois radicalizada no espect-ator de Boal.

89
É preciso, nessa pesquisa, sublinhar que o desenvolvimento do teatro no MST não é
somente o modelo de propaganda e difusão de perspectivas e ideais, ainda que este possa se
constituir como um aspecto central.

Dentre as onze linhas políticas definidas para o Coletivo, seis fazem


referência às questões estéticas ou ao processo de formação dos artistas: 1)
Formar política e esteticamente os militantes possibilitando continuidade no
processo de organicidade das brigadas de cultura; 2) Garantir que o processo
de formação dos militantes esteja voltado para linhas políticas do MST, e
que contribua para o fortalecimento da organização; 3) Desenvolver as
linguagens artísticas para contribuir no processo formativo dos núcleos de
base; 4) Refuncionalizar os processos de trabalho das linguagens estéticas
dominantes; 5) Organizar as brigadas culturais nos estados trabalhando de
forma integrada as linguagens artísticas; 8) Apropriar-se de repertório
artístico e desenvolver ações que visem a sensibilização estética em todas as
linguagens artísticas. (MITTELMAN, 2006, pg. 62)

Um exemplo em que se realiza a proposta de refuncionalização, segundo Iná Camargo


Costa, é a peça do MST “Alcapeta”, pela movimentação de colocar o ponto de vista do MST
sobre um antigo preconceito da dramaturgia mundial que é a figura do caipira, ou do rústico –
na catalogação dos gregos. A peça foi construída coletivamente pelos integrantes do grupo
Utopia, primeiro coletivo teatral do MST/MS e grupo integrante da Brigada de Cultura Filhos
da Terra. O grupo viajou por todas as cidades do Mato Grosso do Sul, se apresentando em
escolas, associações comunitárias, igrejas e praças públicas, fazendo campanha contra a
aprovação da Aliança de Livre Comércio das Américas (Alca) por parte do governo brasileiro,
na época, como presidente, Fernando Henrique Cardoso.,
Pois bem, a peça referida apresenta um tipo que, por falar a língua caipira e
ter uma inteligência e um senso de humor raros, cria uma série prodigiosa de
piadas em diálogo com um jovem que participa do combate à ALCA. Ao
final da conversa, em meio a risos que vão do sorriso à gargalhada, ficamos
sabendo do preço que pagaremos se essa malfadada iniciativa do
imperialismo americano prosperar. Mas este é o objetivo da peça (plano do
conteúdo). Seu feito formal foi, ao refuncionalizar o clichê do caipira,
mostrar objetivamente a diferença entre rir de alguém e rir com alguém. No
primeiro caso, o riso é violência e demonstração da pretensão de
superioridade de quem ri; no segundo, caso desta peça, é a rara experiência
da igualdade social no reconhecimento da inteligência do piadista, capaz de
rir até de si mesmo. E isto sem falar na ampliação dos recursos da língua,
disponibilizada pelo reconhecimento dos direitos estéticos do falar caipira.
Não é todo dia que isso acontece! (COSTA, 2007, pg. 17)

A peça Alcapeta tem três personagens, Juvenal, o caipira, João Bogo, um homem que está
sentado na praça lendo um jornal, e Alcapeta, a personificação da Alca. É desenvolvida a
90
partir do diálogo entre os dois primeiros personagens citados, Juvenal tenta vender farinha
para João Bogo a todo custo e a conversa entre os dois envereda pelas agruras da vida no
campo e na cidade. João Bogo diz a Juvenal o que vai acontecer com o Brasil, caso a proposta
da ALCA seja implementada no Brasil. Ao final aparece Alcapeta que se oferece para comprar
toda a farinha de Juvenal. Abaixo um trecho da peça destacado na tentativa de contemplar o
lugar ocupado por João Bogo de debater a conjuntura com Juvenal e o elemento da
refuncionalização do clichê caipira caracterizado por Costa,
JOÃO BOGO
Como eu estava dizendo, em 1983 os cientistas pegaram oDNA de um vaga-
lume com o DNA de um pé de fumo, ou
seja, pegaram o gene do vaga-lume, com o gene do pé de
fumo e juntaram os dois, e a noite o pé de fumo ilumina.
JUVENAL (assustado, olhando sério para João Bogo)
Como é que é o negócio aí?
JOÃO BOGO
É, parece inacreditável, mas é verdade.
Juvenal cai numa gargalhada demasiada, erguendo as pernas,
balançando a cabeça, como se estivesse duvidando de João Bogo.
JUVENAL
Um pé de fumo com luz.
JOÃO BOGO(irritado com o comportamento de Juvenal)
O senhor acha que eu estou mentindo? Estou tentando ajudar
e o senhor fica com palhaçada. Eu tenho mais o que fazer.
JUVENAL
Não. Calma moço, eu tô brincando, mas é legar, rapaiz.
JOÃO BOGO
Legal? Brincar de Deus é legal?
JUVENAL
É legar, aonde mora este cientista?
JOÃO BOGO
Sei lá. Deve morar nos EUA.
JUVENAL
Eu vou lá, vou vendê o meu jegue e vou falá com este tar
de cientista.
JOÃO BOGO
Pra quê?
JUVENAL
Pra eu fazê um negócio pra mim.
JOÃO BOGO
Fazer o quê?
JUVENAL
Vou pedi pra ele cruzá o fumo com o meu isqueiro.
JOÃO BOGO
Pra quê?
JUVENAL
Pro fumo já vim aceso!
Juvenal ri muito com sua própria piada.

91
O riso é provocado e provocador, sua expressão é também reflexão acerca da sua
produção, o teatro político não é ausente de emoção, mas sublinha que as emoções devem ser
submetidas à crítica, por quem está na comunhão do espetáculo, independente do lugar
ocupado. Os produtos artísticos estão sempre carregados de sentidos referentes aos lugares
onde se expressam. Podemos considerar que não há “um sentido apenas”, mas vários sentidos
podem estar associados à mesma palavra, imagem, som. “O referencial para a sua
qualificação, além do contexto, depende das categorias de análise nas quais o sujeito da
interpretação se ancora” (BOGO, 2011, pg. 91). Significa que o ser que fala é antes um ser
que ouve e assimila sentidos.
Não são só as coisas, em si mesmas, que são cultura, mas também o
conjunto das condições sociais nas quais essas coisas se produzem e são
usadas, nos objetivos e formas de produzi-las. Hábitos, costumes, rituais e
tradições; crenças e esperanças; técnicas, modos e processos; sobretudo
valores da ética, como proposta, e da moral vigente – tudo isto forma a
cultura, que, em cada momento histórico, revela o estado das forças sociais
em conflito – ou, dele, boa parte. (BOAL, 2009, pg. 32-33)

Alcapeta se insere numa grande campanha realizada em 2002 por centenas de movimentos e
organizações sociais: o Plebicisto Popular contra a Alca, que teve mais de 10 milhões de votos
em todo o país e foi ação fundamental de construção de força social para barrar a proposta do
então presidente Fernando Henrique Cardoso. Quando se refuncionaliza a diversão, e a
mesma deixa de ocupar o lugar de mero entretenimento, vai-se de encontro à identificação e
catarse aristotélica, e também de encontro à classe dominante e seu Pensamento Único. A
mensagem política dessa peça e de outras realizada pela atuação de 300 militantes do Setor de
Cultura do MST no Mato Grosso do Sul foram combatidas pelos poderosos em favor da Alca
ao ponto de algumas câmaras legislativas municipais formularem leis impedindo a
apresentação dos grupos do MST em escolas, criminalizando a ação teatral dos Sem Terra,
negando o direito de representação da realidade por parte desse sujeito.

92
Figura 16: matéria veiculada pelo Jornal Sem Terra, de agosto de 2007

93
Figura 17 – Manifestação contra a ALCA no Rio de Janeiro/RJ, ano: 2002. Fonte: Sinterj

3.2.4 – Materialismo histórico dialético em cena?


O materialismo histórico dialético como método de criação é um insistente exercício.
Ao estudar as estéticas que assumem a luta política como lugar de atuação, percebe-se que não
basta quando a cena traz a crítica às posturas e práticas individuais burguesas. Não é
suficiente criar uma caricatura da classe dominante, combatendo apenas os vícios morais
gerados pelo dinheiro, a ambição, a fome do lucro, ganância e etc. A dialética em cena
pressupõe expor as contradições das relações sociais. Não importa o elogio ao trabalhador,
como lutador incansável, sem se opor ao conjunto do sistema produtivo.
Um exemplo do não interesse do MST em condenar apenas os vícios materialistas é
demonstrado Na peça Como fazendeiro sofre, criação coletiva dos Sem Terra adaptação da
peça Exploração do trabalho11. Contextualizada na segunda metade do século XIX, após a
promulgação da Lei de Terras e a proibição do tráfico intercontinental, trata da exploração dos
negros escravizados. “A peça relativiza a história oficial e a importância de Zumbi, em torno
11
Peça construída coletivamente pela Brigada Estadual de Cultura do MST / MS - Filhos da Terra,
ressaltando aqui o trabalho de desmercantilização do teatro.
94
de quem se centrou, de forma individualizada, a história da luta do quilombo de Palmares.”
(MITTELMAN, 2006, pg.116). Durante o espetáculo o narrador levanta
questões:“Interessante uma pessoa libertar várias pessoas? Não seria melhor várias pessoas
libertarem uma pessoa? Além do mais, não foi Zumbi quem inventou Palmares. Quando ele lá
chegou, Palmares já existia há muito tempo.”12. O narrador apresenta três versões do processo
da abolição jurídica do trabalho escravo, observado sua imbricação seu com a estrutura
fundiária do país (MITTELMAN, 2006). Critica-se em cena a retirada da centralidade da ação
coletiva - a qual de fato alterou as engrenagens da organização social - e se centra no
indivíduo. É uma observação que remonta à necessidade de retornar a crítica à sociedade
capitalista em sua totalidade material, não é somente fazer de Zumbi um herói negro,
destemido, guerreiro e libertador do povo negro, ou mesmo condenar os vícios materialistas
da princesa Isabel.
O objetivo de explicitar as estruturas não pode significar, ao se tratar de conceitos de
classe o “descuido com a necessidade de mostrar pessoas em cena”

Todo cuidado é pouco para exercer verdadeiramente um pensamento


dialético no processo de análise e realização cênica: o indivíduo pertence a
uma classe social, subordinada a certas leis e características precisas, numa
determinada formação social, em função das relações de produção
existentes. Mas um indivíduo não é uma classe. Não há uma relação
absoluta, um vínculo mecânico entre ambas as entidades. Podem haver,
mesmo entre elas, contradições severas e acentuadas. Inclusive, chega-se a
um conceito de classe partindo igualmente do comportamento social de
indivíduos que a formam. (PEIXOTO, 1970, pg.

Importa revelar em cena o conjunto das relações sociais. Do contrário não se vai muito além
de condenar a ação capitalista por sua ausência de espiritualidade, ou glorificar ações
individuais dos oprimidos que reagem.

12
Brigada Estadual de Cultura do MST / MS - Filhos da Terra, sob a direção do grupo Teatro de
Narradores. “Exploração do trabalho” (outubro de 2004). In: Coletânea de peças construídas
coletivamente pelos grupos teatrais que integram a Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do
Assaré. Fevereiro de 2005.
95
Figura 18: Princesa Izabel. Fonte: http://www.aascj.org.br/

Figura 19: “Zumbi”, de Antonio Parreiras. Fonte: http://commons.wikimedia.org/

Figura 20: “Guerra dos Palmares”, de Manuel Victor Fonte:


http://historywithdocumentscole.voices.wooster.edu/

3.3 - Artistas e militantes: multiplicai-vos!

A ambição do TO é tornar-se linguagem a ser usada pelos oprimidos

96
conscientes; trabalhamos para multiplicadores, não para consumidores.
(BOAL, 2009 pg. 253)

Grande opressão é a solidão. Temos que ensinar o que aprendemos, por


solidariedade e até em proveito próprio: ensinar expande e fixa o
conhecimento, reavaliando o aprendido ao explicá-lo. Aprende-se ensinando.
Este é o círculo virtuoso: So aprende quem ensina, só ensina quem aprende!
(BOAL, 2009, pg. 213)

Figura 21: “A burguesia quer do artista uma arte que corteje e adule seu gosto medíocre” (J. C.
Mariátegui) Foto: reprodução

Em 2006, o MST contava com a ação cênica de 30 grupos no país, como se vê na


tabela abaixo:

Estado Número Nome do grupo


Rio 3 Peça
Grande do Sul pro povo, Alto Astral, Vida e Arte
Santa 1 Tampa
Catarina de Panela
Paraná 1 Gralha
Azul
São 1 Filhos
Paulo da Mãe...Terra
97
Distrito 1 Semeadores
Federal da Terra
Mato 7 Águias
Grosso do Sul da Fronteira, Filh@s da Cultura,
Raízes Camponesas, Lamarca
da Cultura, Mensageiros da
Cultura, Frutos da Terra e Utopia
Goiás 1 Revolucena
Rondônia 1 Arte
Camponesa
Pará 1 Ferramenta
Maranhão 1 Rompendo
Cercas
Sergipe 8 ---
Ceará 1 ---
Pernambuco 3 ---

Esses 30 grupos que compõem a Brigada Nacional de Teatro Patativa do Assaré, são
parte do Coletivo Nacional de Cultura do MST, criado com o fim de organizar o debate e a
construção da arte e da cultura nos estados, acampamentos e assentamentos. O coletivo, desde
a sua criação, em 1996, além da formação com o CTO, promoveu várias atividades, alguns
exemplos; Oficina Nacional de Música (1996), o Seminário: A Cultura e o MST (1998), o
Seminário Nacional sobre Cultura (1999), o I Festival de Músicas da Reforma Agrária (1999),
a Oficina Nacional de Artes e Comunicação (2000), as Oficinas de Artes das Grandes Regiões
– Norte, Nordeste, Sul, Sudeste, Centro-Oeste (2001), a 1ª Semana Nacional de Cultura
Brasileira e da Reforma Agrária (2002), o 1º Encontro Nacional dos Violeiros (2003), a
Oficina Nacional de Artes Plásticas e Música (2003), o 2º Encontro Nacional dos Violeiros
(2004), a II Semana Nacional da Cultura e da Reforma Agrária (2004), o I Festival Latino
Americano de Música Camponesa (2004), o Seminário Arte e Cultura na Formação (2005) e o
III Encontro Nacional de Violeiros (2005), (MITTELMAN, 2006).
Todas essas atividades são parte da atuação coletiva alocada na luta política, que
reivindica o contar de sua própria história sem interlocutores, e demarca que sem a
socialização do conhecimento apreendido não é possível recuperar a capacidade enquanto
classe, de representação de si e da realidade. Por vezes a cultura assume para o MST, a
formação da consciência social e formação da identidade de classe,
[...] Corrigir desvios culturais também surgidos a partir da convivência
98
social, e possibilitar a formulação e a prática de novos valores culturais. [...]
saber destacar qual é o espaço que cada área pode ocupar na educação
ideológica dos trabalhadores Sem Terra. Os objetivos desta educação
mostram o modelo espiritual que se pretende formar no indivíduo, o caráter
as suas qualidades, características, vocações etc. A firmeza ideológica virá
quando as concepções se harmonizam com as obras, ações e comportamento.
(BOGO, 2003, p. 4 – 5)

O teatro feito a partir da perspectiva do movimento social, além de representar e


expressar a evolução, construção e projeto político do movimento, contribui também para a
formação interna da militância e antecipação das ações “[...] registram o momento e depois
crescem de acordo com a evolução da organização. [...] Muitas vezes elas estão,
politicamente, bem mais avançadas do que a ação.”(FERNANDES & STÉDILE, 1999, p.
135); Tem-se o ensaio da ação transformadora para dentro do movimento e para fora. Não
consta, a partir da pesquisa feita hoje no Brasil, nenhuma companhia de teatro com o
enraizamento nacional que o MST possui. A presença da organização política, destacada no
segundo capítulo, parece ser elemento definidor da prática política cênica multiplicadora,
somada aos elementos já citados. As trupes de agitprop soviéticas eram orientadas a partir do
horizonte da revolução russa, Piscator se organizou no Partido Comunista Alemão, Brecht
também fez parte do Partido Comunista e Boal chegou a ser vereador pelo Partido dos
Trabalhadores. Por serem os artistas, militantes de um movimento cumprindo a tarefa no front
da cultura, garantindo que a linha política seja efetivada e alimentada, volta-se à compreensão
de um projeto político maior em que o teatro está inserido como engrenagem, mas não como o
motor.
O elemento organização política em amâlgama com a democratização dos meios de
produção teatrais a partir da socialização do arsenal do Oprimido, desencadeou um processo
formativo de grupos e todo o país. A multiplicação dos grupos no MST, a formação numerosa
de artistas, é também expressão do método boalino, não somente por ser o MST organizado
nacionalmente. Também o TO, que ao pressupor a socialização dos meios de produção,
organizou formas de compartilhamento e formação de multiplicadores, dando condições
práticas para que o oprimido Sem Terra se apropriasse dos meios de produzir teatro,
A Estética do Oprimido, ao propor uma nova forma de se fazer e de se
entender a Arte, não pretende anular as anteriores que ainda possam ter
valor; não pretende a multiplicação de cópias nem a reprodução da obra, e
muito menos a vulgarização do produto artístico. Não queremos oferecer ao
povo o acesso á cultura – como se costuma dizer, como se o povo não
tivesse sua própria cultura ou não fosse capaz de construí-la. Em diálogo
com todas as culturas, queremos estimular a cultura própria dos segmentos

99
oprimidos de cada povo. Queremos promover a multiplicação dos artistas.
(BOAL, 2009, pg.46)

A possibilidade de representar a si e a realidade foi/é colocada pela primeira vez para


muitas pessoas quando têm contato com as formas teatrais que assim se organizam. Tanto nas
trupes de agitprop quanto na experiência teatral do MST muitos dos participantes nunca
realizara prática artística anterior. Diferente da lógica mercantil engendrada ao sistema
capitalista de que quanto mais “profissionais no mercado” pior, por aumentar a
“concorrência”, aqui é quanto mais melhor. Porque para quem defende o teatro como parte de
um projeto político, o que se quer é que sejam milhares, que sejam milhões. O que se quer,
como bem disse Milton Nascimento é “...ver então, a gente, gente, gente, gente, gente, gente,
gente, gente, gente...”

Figura 22: Augusto Boal, Movimento Dos Trabalhadores Rurais sem Terra em Courtesy of Center for
the Theatre.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O teatro político aqui estudado tem em sua coluna vertebral os trabalhadores


organizados, e se conforma na busca pela práxis cênica que evidencie as relações sociais e
100
suas contradições e não os problemas de um indivíduo. Para tal, o método materialista
histórico dialético se constitui enquanto concepção estética, apresentando-se para o Teatro
Sem Terra e seu sistema interno como fundamental para ser possível levar à cena o projeto
político defendido pelo MST. A Patativa do Assaré se organiza

questionando os pilares de estruturação do sistema agrário do país, de caráter


monopolista, exportador e de forte traço autoritário no que concerne às
relações de trabalho (…) Portanto, sem meias palavras, estamos falando de
um projeto que priorize a descentralização da propriedade e viabilize a
organização da propriedade coletiva dos meios de produção, o que implica
um processo massivo de transferência dos meios produtivos para a classe
trabalhadora. (PATATIVA, 2007, pg.1)

É o projeto político do MST que define a parceria estético-política do MST com o


CTO. Por terem ambas as organizações a compreensão de que é preciso alterar as bases
materiais de sustentação da opressão e exploração, desmercantilizar a criação e para tal,
socializar seus meios de produção. Ao alçar à esfera teatral os problemas vividos pelos
oprimidos, Boal propõe um teatro que não somente adota os procedimentos teatrais que
aproximam-se dos expressos no contexto da consolidação da Revolução Russa, mas
sistematiza um arsenal que tornou-se parte fundamental do aporte teórico e prático do teatro
político que tem seu leito histórico constituído nas experiências teatrais forjadas em
momentos de ascenso das lutas de massas.
Teatro político esse, que se organiza em contextos históricos, econômicos, sociais e
culturais diferentes, em nosso caso, o TO, no bojo das lutas sociais populares crescentes no
Brasil e na América Latina. Tendo despontado no início do século XX na Rússia com o
Agitprop Soviético e na Alemanha com o Teatro Político de Piscator e o Teatro Épico de
Brecht; no Brasil, tem sua expressão de maior emborcadura sistematizada no Teatro do
Oprimido de Boal ao afirmar a cena como lugar das questões propostas por pessoas
interessadas em discutir por meio do teatro as contradições e opressões que vivenciam as
desafiando a propor caminhos. No arsenal boalino, uma importante diferença do Teatro
Político do início do século XX na Alemanha e URSS, é a incorporação da dialogicidade
freireana, reafirmando o talvez óbvio, que o teatro não é um ato solitário e se estabelece na
dimensão dialógica, essa, ao ser explorada por Boal, possibilita e fundamenta a concepção
praxiológica do espect-ator, radicalizando a refuncionalização concebida por Brecht,
alterando profundamente o lugar ocupado pelo espectador no espetáculo.
A criação da Estética do Oprimido implica que a forma e o conteúdo estejam

101
relacionados à função, forjando uma estética própria dos sujeitos que se apropriam dos meios
de produção teatrais, o que possibilita a afirmação da estética Sem Terra. Ao criar formas
próprias de fazer arte, o MST torna o teatro ação alocada numa estratégia maior, atuando em
perspectiva coletiva nacional e internacionalmente. “Augusto Boal, desde a década de 1960,
tinha plena consciência da parte que cabe aos trabalhadores de teatro na construção desse
projeto radical de sociedade”(PATATIVA, 2005, pg.1), e se “O homem simples vê no teatro o
templo das musas, onde só se pode entrar de casaca e correspondente boa disposição.”
(PISCATOR, 1968, pg. 42) o MST ocupa esse templo e o profana:

Por acompanharmos o curso da história, sabemos que — enquanto persistir o


sistema regido pela lei do capital — nas ruas parte de nossa “platéia” sempre
será a tropa de choque, a cavalaria. Não nos amedronta saber que nosso
teatro em praça pública se fará em meio a bombas “de efeito moral” e
rasantes de helicópteros. Pelo contrário, isso nos dá a certeza que nosso
teatro é uma arma dos trabalhadores na luta de classes, e cientes disso nos
empenharemos sempre na qualificação estética e política, aprendendo e
multiplicando as diversas tradições da linguagem teatral. (PATATIVA, 2005,
pg. 11)

Com a criação do espect-ator, Boal organiza na própria cena, a socialização dos meios
de produção, ao fazê-lo com um movimento social que pressupõe a socialização não somente
do modo de produção teatral, mas do modo de produção e reprodução da vida humana, vai-se
além da condição de espetáculo, questiona-se a fragmentação e mercantilização do mundo
contemporâneo; o teatro é no MST não somente emissor de um projeto, e sim parte de um
projeto político coletivo de sociedade.
Enveredar pelo Teatro do Oprimido da Brigada Nacional de Teatro Patativa do Assaré,
descortinar a prática teatral do MST, suscita algumas questões que pretendem ser
aprofundadas em um próximo estudo. Concluo, que o arsenal boalino, quando apropriado por
um movimento organizado tem potencializada sua ação de socialização dos meios de
produção, mas o teatro feito por esse movimento. É possível afirmar que essa parceria, MST e
CTO, resulta em uma nova síntese estético-política, que se forja como avanço histórico do
Teatro Político brasileiro, expresso na Estética Sem Terra?
Uma das dificuldades encontradas, dentre as tantas, foi não ter sido possível assistir
espetáculos da Patativa do Assaré, o que limitou a análise e o identificar do sistema interno
com olhos na prática. Sabendo que um sistema interno não é um receita de bolo, nos
perguntamos se o sistema interno teatral Sem Terra, organizador da Estética Sem Terra,
apontados em quatro elementos: A) desmercantilização e socialização dos meios de produção

102
teatrais; B) trabalho coletivo; C) a refuncionalização; D) método materialista histórico
dialético, parecem elementos que se utilizados por outros movimentos sociais na conformação
de suas práticas teatrais tem-se a possibilidade maior de emissão de projetos políticos com
vistas à emancipação humana. Mas isso só se confirma indo à prática cênica, tornando-se
espect-ator para pensar na cena as questões colocadas. É preciso experimentar cenicamente o
que aqui pudemos estudar, que venha o futuro, que venha o palco, porque como bem nos disse
o guerrilheiro baiano Carlos Marighella, “é preciso passar a ação”.

Figura 23: Homenagem a Boal feita pelo MST na Escola Nacional Florestan Fernandes – ao centro,
Maria Rita Kehl, vice presidente do Instituto Boal e João Pedro Stédile, da direção nacional do MST

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