Bufo & Spallanzani (1985) Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988) Agosto (1990) O Caso Morel (1973) O Doente Molière (2000) O Selvagem da Ópera (1994) E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto (1997) Mandrake: A Bíblia e a Bengala (2005) Diário de um Fescenino (2003) O Seminarista (2009) Romance Negro e Outras Histórias (1992) O Cobrador (1979) O Buraco na Parede (1995) Histórias de Amor (1997) Lúcia McCartney (1967) Carne Crua (2018) Os Prisioneiros (1963) A Coleira do Cão (1965) Feliz Ano Novo (1975) A Confraria dos Espadas (1998) Calibre 22 (2017) Amálgama e Histórias Curtas (2013 e 2015) Secreções, Excreções e Desatinos (2001) Axilas e Outras Histórias Indecorosas (2011) Ela e Outras Mulheres (2006) Pequenas Criaturas (2002) A GRANDE ARTE (1983)
1 - "POSSO CHAMÁ-LO PELO SOBRIQUET?"
Li A Grande Arte pela primeira vez em 1996. As pri-
meiras cento e poucas páginas eu li num Fran’s Café que e- xistia na Rua Doutor Vila Nova, Vila Buarque, enquanto ca- bulava aula. Eu era então um aluno de vinte e cinco anos matriculado no Instituto Presbiteriano Mackenzie, no curso de Administração de Empresas (já havia feito dois anos de Ciências Econômicas, na mesma FCECA – Faculdade de Ciências Econômicas, Contabilidade e Administração – e decidira mudar para Administração porque a matemática era menos puxada). Nessa altura dos acontecimentos eu passava a maior parte do meu tempo lendo literatura na Biblioteca George Alexander, a biblioteca central (cada faculdade tinha uma biblioteca setorial); construída em 1926, talvez essa seja a biblioteca mais bonita de São Paulo. Os inspiradores desse meu ato de rebeldia eram o dramaturgo Eugene O’Neill (que foi expulso de Harvard ao arremessar uma garrafa contra a janela do escritório do então magnífico reitor dessa magnífi- ca universidade, o futuro presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson) e, creiam, o Diogo Mainardi (que, matri- culado num curso de Economia em Londres, cabulava aula para ficar lendo o que seu mentor intelectual, Ivan Lessa, lhe indicava). Aos vinte e cinco anos eu pretendia, no fundo, a- pesar de minha adesão formal ao mundo careta da Adminis- tração, vir a ser um escritor de ficção, um literato. (Mentira: eu odiava o mundo marginal dos artistas e queria lidar com o que realmente move o mundo, as mulheres, etc.: a grana; eu queria fazer um milhão de dólares até os trinta anos, como os yuppies dos anos oitenta apregoavam.) (Mentira: todos os ídolos que eu tinha aos vinte e cinco anos, os modelos exis- tenciais apaixonantes que eu buscava emular, os caras que eu queria ser quando crescesse – e Rubem Fonseca estava pres- tes a se tornar um desses caras –, todos, todos eram escrito- res.) Reli A Grande Arte creio que seis ou sete vezes nesses últimos vinte e três anos. Os únicos autores que releio, que releio sempre, como num ato litúrgico, são Nelson Rodri- gues, Rubem Fonseca, o Hamlet, de William Shakespeare e Less Than Zero, do Bret Easton Ellis. Reli mais uma vez A Grande Arte entre dezembro e janeiro desse ano (2019). Ali- ás, reli duas vezes – na primeira releitura, li o livro em ordem inversa, do último capítulo ao primeiro; tentei assim apreciar cada capítulo em si mesmo, como uma narrativa possivel- mente autônoma, como se cada capítulo fosse um conto; terminada esse leitura, li na ordem do primeiro capítulo ao último, especialmente atento ao modo (técnica, etc.) que Fonseca usou para fazer a trama avançar. Foi uma leitura a- tenta de um livro que, sim, eu já conhecia bem em seu deta- lhamento de superfície, seus principais personagens, etc. Mas que eu creio ter conhecido bem melhor depois disso tudo. Vão aí minhas impressões e insights dessa recente relei- tura. Na primeira fase da história (a primeira e a segunda fa- ses estão contidas nas primeiras 160 páginas do livro, parte essa que tem o subtítulo PERCOR, “perfurar e cortar”), há uma sequência de acontecimentos aparentemente interliga- dos – um caso de chantagem envolvendo uma fita de video- cassete (o romance foi lançado em 1983), três garotas de programa mortas por esganadura (constrição mecânica do pescoço feita com as mãos, diferente do estrangulamento, que é a constrição feita com laço, corda, etc.) e marcadas a faca com a letra P (“que no alfabeto dos antigos semitas que- ria dizer ‘boca’”); o personagem Roberto Mitry, alvo da chantagem – ele esqueceu a tal fita no apartamento de uma massagista e passou a ser chantageado por ela –, contrata os serviços do escritório de advocacia de Peter Mandrake (cri- minalista) e seu sócio Wexler (causas cíveis, trabalhistas, etc.) para que o caso seja resolvido sem a interferência da polícia, etc. Mitry diz desconhecer o conteúdo da fita, afirmando que ela “pertence a terceiros”; alega, ao assinar a procuração para que o escritório o represente em juízo, estar pressentindo ameaças outras, que ele não diz quais são, reafirmando ser apenas um pressentimento, “Não tenho inimigos”, etc. Ro- berto Mitry, com a aparência óbvia de pertencer à alta bur- guesia (“parece um desses tipos que enriqueceram mano- brando na bolsa, escorchando os fodidos”, como diz Man- drake), é um tipo enigmático, paranoico, pernóstico (“Posso chamá-lo pelo sobriquet?”), sarcástico, sádico sexual, cocai- nômano, que sempre está mastigando algo (que descobrire- mos, umas cem páginas adiante, ser raiz de ginseng). Tem uns quarenta anos, seu peito é flácido e ele usa um monte “balangandãs de ouro”. Na altura dos acontecimentos em que as três garotas de programa (uma delas, nascida Oswal- da, Cila na fase prostituição e Laura Lins na fase madame, dona de botique elegante no Leblon, etc.) já foram mortas, Peter Mandrake blefa para Roberto Mitry que “a polícia já está com a fita de videocassete”, apenas para testar a reação dele. Mitry desconfia que Mandrake está com a fita, o que ele nega (e não está mesmo). Poucas semanas depois Peter é vi- sitado em casa por dois tipos (que mais adiante saberemos que se chamam Rafael e Camilo Fuentes, técnicos – ou seja, matadores – de uma organização chamada Escritório Cen- tral, uma holding que usa negócios legais – Banco Aquiles, Fun, Pleasure, etc. – como fachada e como lavanderia para o dinheiro oriundo de seus verdadeiros negócios, tráfico de cocaína, prostituição, etc., “Tóxico e putaria, coisas que dão muito dinheiro nesse país esfuziante”, como dirá o anão José Zakkai – falarei, ô se falarei, detidamente de Zakkai mais a- diante; Zakkai,o Nariz de Ferro, provavelmente é a criação ficcional mais impressionante de Rubem Fonseca). Os mata- dores Camilo e Rafael perguntam a Peter, de modo não mui- to amistoso, “Cadê a fita?”, etc. A situação termina com Pe- ter esfaqueado no abdômen e sua namorada (uma das) Ada seviciada – especificamente, Ada é sodomizada com o cabo de uma faca. Esse episódio inaugura a segunda fase da histó- ria. Nessa segunda fase, o objetivo de Peter Mandrake dei- xa de ser heurístico, de investigação dos fatos; passamos en- tão a acompanhá-lo em sua guerra pessoal para se vingar dos malfeitores de Ada. E é aqui que o título do livro se explica – Mandrake adota como divisa um dos poucos versos que chegaram a nós do poeta grego Arquíloco (680 a.C.), “Eu tenho umA Grande Arte: eu firo duramente aqueles que me ferem”. Peter Mandrake consegue que um antigo conhecido, o professor Hermes (hoje também ligado ao Escritório Cen- tral, descobriremos mais adiante), o instrua no manejo de armas brancas. Compra uma mortífera faca Randall. Numa única madrugada de instruções, Peter aprende as técnicas consagradas para a luta com facas, manobras como in quar- tata, passata sotto, etc. A partir de uma dica do tira Raul (tal- vez seu único outro amigo, além de Wexler), que identifica o matador Camilo Fuentes (Fuentes, preso sob suspeita de ter ligação com uma considerável quantidade de cocaína apre- endida num prédio na Rua Barata Ribeiro, vem usando o cordão com um unicórnio de ouro que ele arrebatou de Pe- ter no episódio do esfaqueamento; esse objeto tem um pro- fundo valor sentimental para Peter, pois foi um presente que ganhou de sua amada Berta Bronstein, então já uma ines- quecível ex); como eu dizia, a partir da dica de Raul Peter empreende uma viagem no Trem da Morte, que liga Bauru, São Paulo, a Corumbá, Mato Grosso do Sul, Puerto Quijar- ro/Puerto Suarez, Bolívia, no encalço de Camilo (que foi solto pela polícia, que pretende grampeá-lo na fronteira, por suspeitar de que ele esteja envolvido num negócio bem mai- or do que esse no qual quase foi flagrado – uns quilos de co- caína no prédio da Barata Ribeiro). Já que falei em Berta Bronstein, uma história protago- nizada por Peter Mandrake não seria verossímil se não mos- trasse seu priapismo e seu sempre múltiplo envolvimento romântico com mulheres; em A Grande Arte vemos Man- drake em excelente forma, envolvido ao mesmo tempo com Ada (a que foi sodomizada com o cabo de uma faca pelo Mão Perfumada, Rafael), Lilibeth (personagem de uma trama secundária do livro) e a jovem Bebel. Isso sem falar em seu envolvimento casual com Mercedes, durante a viagem de trem para a Bolívia (Mercedes é uma policial que se faz pas- sar por prostituta), e em suas evocações a mulheres passadas, como Berta Bronstein (uma judia pálida de cabelos lisos e escuros com quem Peter jogava xadrez, sempre nu) e Eva Cavalcanti Méier. Mandrake é deliciosamente machista (“Fi- que aí boazinha lendo o Tio Patinhas”, “Isso é Simone de Beauvoir, seu idiota!”) e suas mulheres são sempre são dó- ceis, amáveis e absolutamente dúcteis (não há feministas ou víboras de túmulo de faraó, lacraias de ralo entupido, no fan- tástico mundo de Peter Mandrake); numa adorável cena de A Grande Arte que mostra a realidade intimista de Peter, ele diz a Ada (que é natureba, etc.) que Berta Bronstein sempre tinha um vinho para ele gelando na geladeira, então Ada diz que iogurtes são melhores para a saúde dele, aí Peter diz, “A Berta tinha seios grandes”, e Ada diz, “Por que então não volta para ela?, devia ser emocionante mesmo, ficar bebendo vinho e jogando xadrez o dia todo, ainda mais com uma mu- lher de seios grandes”. Essa cena, que teria tudo para dege- nerar num daqueles desagradabilíssimos enfrentamentos verbais entre homem e mulher, no caso de Peter Mandrake culmina com a Ada, a que não tem seios grandes e a que nunca tem um vinho gelando na geladeira, ajoelhada aos pés de Peter, implorando, “Casa comigo!”. Grande Peter Man- drake! (Há, há.) (O livro também não seria verossímil se não mostrasse sua grande amizade com o sócio Wexler, “Eu sou seu único amigo”, diz Wexler; Peter então menciona seu an- tigo sócio, Figenbaum, e Wexler diz, “Figenbaum está mor- to”. Figenbaum é mencionado algumas vezes no livro, sem- pre acompanhado de uma frase em iídiche, a waycher mentsch diment, frase que nenhum amigo ou conhecido ju- deu conseguiu me traduzir e que o tradutor Google também não conseguiu, detectando o idioma como luxemburguês.) Concluídas as peripécias da fase vingativa de Peter Mandrake (ele não mata Camilo Fuentes, ou porque não conseguiu, ou porque nunca esteve realmente determinado a isso), inicia-se a segunda parte do livro, Retrato de Família, fase em que vemos um Mandrake eminentemente conjectu- ral esmiuçando a história familiar e pessoal de Thales Lima Prado, primo em primeiro grau de Roberto Mitry, filho de uma união incestuosa entre irmãos (a irmã, demente, era mantida trancada no porão da mansão da família, na Aveni- da Paulista; Lima Prado só toma conhecimento desse segre- do familiar ao vasculhar as cartas de sua avó, Laurinda, mor- ta recentemente), banqueiro de fachada, na verdade o chefão da organização criminosa Escritório Central (tráfico, prosti- tuição, etc.). A fonte direta dessas informações para Man- drake é o tal anão José Zakkai, o Nariz de Ferro, e as indire- tas são fundamentalmente os Cadernos do Lima Prado, um diário escrito com uma caligrafia praticamente indecifrável que chega às mãos de Mandrake após Thales Lima Prado suicidar-se cravando uma faca na própria axila (“Foi para o Campo de Asfódelos, encontrar-se com Ajax”, como diz o erudito Mandrake a seu amigo, o tira Raul). José Zakkai, o Nariz de Ferro, sem dúvida uma das maiores criações ficcionais de Rubem Fonseca, não dá tantas informações assim a Mandrake. Membro jurado de morte do Escritório Central (Thales Lima Prado o julga excessivamen- te ganancioso e, no mais, pouco confiável), Zakkai está em guerra aberta com a organização; trata-se de um anão cabo- tino, uma paródia satânica do Eu sou o Eu sou, alguém que vive recriando o mundo à imagem e semelhança de suas próprias deformidades: “Percebo que o senhor está querendo me catalogar, mas não adianta, nem mesmo eu sei se sou branco ou preto, mouro ou judeu, o que aliás não tem a menor importância de uma forma ou de outra. Sou um homem que sabe das coisas, passo os dias no telefone para me informar. Os jor- nais não dizem nada e a televisão, bah, a televisão é o ópio do povo, como disse Lenin. Conheço a alma humana e sei o que motiva banqueiros, parlamentares, generais, jornalistas, ministros, tiras como o Raul, ladies que fuçam no interespa- ço ocluso, como disse Balzac. Ligo para um lado e outro da cortina e no fim do dia já sei para onde o vento vai soprar. Aí abro minha vela, estás me entendendo, e vou vendendo minhas especiarias para os ofuscados, e o produto converto em diamantes e selos, uma fortuna que posso transportar na boceta de uma virgem, se precisar fugir de alguma conjuntu- ra. Mas esse momento ainda não chegou, a época é de plan- tar a grana e colhê-la dourada e sumarenta nas vísceras dos ambiciosos, como disse o Mahatma Gandhi. Não cheiro mais, nem vendo o que você está pensando, tem muita gente levando e o vício legal dá mais, que o diga a Souza Cruz. Conheço todos os bacanas do mundo e sei que a bunda de- les é mole. Quando era menino via as mulheres passarem desdenhosas nos seus carros, as mãos coruscando de joias, e almejava ardentemente tê-las segurando o meu pau. Tam- bém queria, na mesma época, conhecer o Carlitos, mas ele morreu antes. Morreu, fodeu-se. Nunca tive um ídolo. Pen- sei numa época em Jesus Cristo, mas ele foi um fracassado, como disse o cardeal arcebispo. Estás me entendendo, trafi- quei amendoim, graxa de sapato, chicletes, cano de chumbo, erva, pó, limão roubado da feira, não nessa ordem. Fui den- tista da meia-noite. Morei nos bueiros, com os ratos. Já cus- piram, mijaram e cagaram em mim. Ou eu morria ou virava essa maravilha que sou.” Falei em fase eminentemente conjectural de Mandrake e explico: um detalhe bem importante que fatalmente escapa numa leitura superficial e não suficientemente atenta de A Grande Arte é que tudo nesse livro é produto da consciência do personagem Peter Mandrake – uns 40 % da narrativa se refere a coisas acontecidas direta e pessoalmente com ele, portanto são recriações fidedignas do que realmente aconte- ceu, e uns 60 % são elaborações meramente conjecturais, em que o texto passa a ser narrado em terceira pessoa (só apa- rentemente; lá pelas tantas sempre acaba aparecendo entre parênteses um comentário pessoal do Mandrake sobre o que está sendo narrado – narrado por ele mesmo, dando uma de narrador onisciente). (É fácil acabarmos fazendo uma leitura desatenta de A Grande Arte – é fácil nos deixarmos levar pe- la mera fluidez do texto e pelo mero fascínio da sucessão vertiginosa de situações cujo nexo causal é tênue, ou enigmá- tico, porque não suficientemente explicitado, pelas situações esdrúxulas com um pé na inverossimilhança, pelo barro- quismo, e assim perdermos a noção de seu todo, seu conjun- to.) Não é errado, portanto, definir a trama de A Grande Arte como o confronto de uma consciência individual (de Peter Mandrake) com uma esfinge indecifrável e inexpugná- vel. Sim, porque há aspectos da realidade que são evasivos, realidades que prosperam em segredo (e só prosperam em segredo, como a realidade do crime; talvez a realidade de Deus e seus inescrutáveis desígnios também só prospere graças aos segredos todos que a envolvem; talvez haja uma dimensão metafórica, metafísica, em A Grande Arte, sem dúvida de cunho agnóstico, a impossibilidade do saber, etc., que evidentemente também não se revela numa leitura su- perficial. A leitura desse livro talvez seja decepcionante para quem gosta de esclarecimentos cabais sobre as coisas; A Grande Arte tem grande afinidade com a ficção pós- modernista de Thomas Pynchon, notadamente o Pynchon de O Leilão do Lote 49 – a agnose, a trama picaresca (Pyn- chon, aliás, escreveu a quarta capa do livro de contos A Con- fraria dos Espadas, que Fonseca lançou em 1998), os perso- nagens extravagantes, etc. Harold Bloom (que implicitamen- te aponta O Leilão do Lote 49 como o melhor livro de Pyn- chon, ao analisá-lo no livro Como e Por Que Ler) diz que Édipa Maas, protagonista e heroína do livro, ao final da his- tória encontra-se num lugar e numa situação sobre os quais é impossível fazer qualquer afirmação definitiva – e que esse lugar/situação indeterminável não é o pior lugar para alguém estar. Talvez o mesmo possa ser dito sobre Peter Mandrake ao final de A Grande Arte; ele enfrentou a esfinge e adquiriu a consciência de que ela é indeslindável e invencível; resta- lhe apenas o talvez pobre consolo das amizades (Wexler e Raul), dos charutos (“panatelas, escuros, curtos, ou Pimentel número dois”) e das mulheres (sempre no plural: mulheres)
2 - CAMILO FUENTES
De todos personagens de A Grande Arte, talvez o mai-
or, pela complexidade de suas motivações e por sua dimen- são, no final das contas, trágica, é o técnico de linha de mon- tagem (matador) Camilo Fuentes. (Mas lembremo-nos: os trechos do livro narrados em terceira pessoa, discurso indire- to livre, como os que descrevem as ações de Camilo em sua dimensão intimista, na verdade foram escritos por Peter Mandrake dando uma de narrador onisciente. Peter não tem nenhum contato direto com Camilo Fuentes na história; o vê quando Camilo e Rafael o visitam em seu apartamento; o vê na delegacia, através daquele falso espelho da sala de interro- gatório; o vê no trem da morte; e o vê num restaurante em Puerto Quijarro. Sem dúvida Peter Mandrake baseou-se em depoimentos para escrever a história de Camilo Fuentes; as- sim como não há dúvida de que o Camilo exposto na narra- tiva enquanto pensa, age e tece seus juízos é apenas uma hi- pótese, uma conjectura de Mandrake; uma conjectura veros- símil, mas apenas conjectura.) O Escritório Central, organização criminosa que usa empresas legais de fachada, testas de ferro, etc., para lavar o dinheiro oriundo de seus verdadeiros negócios, tráfico de drogas e prostituição, é cheio de eufemismos (a começar por Escritório Central); os matadores são técnicos; as pessoas que serão executadas, mas que ainda não foram, estão em backlog; e por aí vai. Camilo Fuentes foi descoberto por Ma- teus, um olheiro do Escritório Central (não olheiro, na ver- dade, mas o responsável pela linha de montagem da organi- zação, os trabalhos sujos, os dirty deeds), num episódio o- corrido num bar na Boca do Lixo, em São Paulo. (Pela des- crição, um bar que misturava artistas, marginais e burgueses entediados em busca de fortes emoções, trata-se do Bar So- berano, lendário reduto do pessoal do cinema paulista nos anos 1960 e 70, situado na Rua do Triumpho.) Até então um bandido irrelevante, o boliviano Camilo Fuentes sem qualquer esforço põe a nocaute no bar dois playboys fortões que o provocaram para impressionar suas minas. Mateus imediatamente nota que aquele índio parrudo tem um raro talento – o ódio frio, o instinto certo para ma- tar, sim, o instinto certo, porque o impulso errado qualquer homem tem. Atrai Camilo com uma conversa estilo Davi e Golias – a luta do pequeno contra o grande, parasitas que escorcham multidões de fodidos e que merecem mais é se- rem justiçados mesmo. (O mundo vai ficar ruim para quem tem todos os dentes, dirá em algum momento de A Grande Arte o anão José Zakkai, o Nariz de Ferro, também entusias- ta dessa luta do pequeno contra o grande; não tenho como não evocar aqui o Bandido da Luz Vermelha vociferando terceiro mundo vai explodir, quem está de sapato não sobra, não pode sobrar!, ou mesmo Raskolnikov julgando a velha usurária em seu tribunal revolucionário íntimo e chegando ao veredito de que o que a velha merece é mesmo uma boa machadada no crânio.) Esse apelo soa como música aos ouvidos de Camilo Fuentes. Trata-se de um homem construído de ódio e res- sentimento, para quem matar é quase sempre a única opção para não morrer – viu o pai ser morto por brasileiros escro- tos e indignos numa escaramuça de fronteira quando era cri- ança; teve de servir a esses mesmos brasileiros, em serviços sempre humilhantes e miseravelmente pagos, durante toda sua juventude; brasileiros, que conluiados com governantes bolivianos corruptos, sempre roubaram e espoliaram as ri- quezas de seu país (não conheço outro livro que mostra o profundo ódio que os bolivianos têm dos brasileiros, vistos como imperialistas arrogantes, cruéis, espoliadores, etc.). Camilo faz um primeiro serviço para o Escritório Cen- tral: mata um advogado num prédio na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, estrangulando-o num hall de elevadores com um fio de náilon disfarçado dentro de um ioiô. Torna-se um matador de fé da organização, sério, disciplinado, extrema- mente competente. Tem como parceiro em vários serviços o técnico Rafael, que insiste em chamá-lo por um apelido que ele odeia, China. Ao malsucedido serviço que faz com Rafael na casa de Peter Mandrake (Mandrake sobrevive à facada) segue-se sua imprevista prisão num prédio na Rua Barata Ribeiro, suspeito de ter relação com uma considerável quan- tidade de cocaína apreendida ali pela polícia. Essa prisão se- lará seu destino: tendo entrado no radar da polícia, torna-se alguém perigoso para a organização, um arquivo vivo; sua morte, portanto, é decretada. Camilo escapa de uma emboscada em São Paulo, no Cine Marabá, onde tinha um encontro marcado com um jornaleiro e informante seu (descobre que o informante foi morto e prevê acertadamente que haverá no cinema gente da organização querendo pôr as mãos nele; mata os dois técni- cos no banheiro do cinema, numa cena de ação que, sem dúvida, não tem semelhante na literatura brasileira). Volta para o Rio e permanece na encolha, morando num hotel. Nesse momento de recolhimento, acaba conhecendo Miri- am, enquanto está fazendo compras num supermercado. Miriam tinha tido uma aparição rápida e incidental logo no primeiro capítulo de A Grande Arte – Mandrake atuara para ela como advogado-amigo numa ação de desapropria- ção (a prefeitura do Rio estava então eliminando os últimos remanescentes da zona de prostituição do Mangue, Miriam era cafetina e tinha ali uma casa de mulheres). À semelhança do encontro Raskolnikov-Sônia, esse encontro de Camilo com Miriam significará para ele a possibilidade de redenção através do amor (para reforçar o sentido praticamente arque- típico do acontecimento, trata-se do amor de uma prostitu- ta); Camilo humaniza-se com Miriam; pela primeira vez trata uma mulher (sobretudo uma brasileira) não como se fosse uma cadela – pela primeira vez Camilo Fuentes diz a uma mulher eu gosto de você. Decide sumir em algum recanto do Brasil acompanhado por sua amada, não matar mais, viver uma vida pacata criando porcos e galinhas. Mas a organiza- ção está no encalço dele, assim como agora também está no encalço do anão José Zakkai, o Nariz de Ferro, sentenciado a morte por ser ambicioso demais. Zakkai oferece a Camilo que se una a ele na guerra que está travando contra a organi- zação. Camilo diz, “Eu faço minhas guerras sozinho”. Zak- kai, estrategista militar, diz que nas guerras quem não tem aliados sempre acaba destruído. Sempre. Camilo alia-se a Zakkai. Os dois vão atrás do técnico Rafael, que em horas mais amenas cultiva rosas no terreno de casa. De alguma forma Zakkai soube que Rafael está com a famigerada fita de videocassete que deu origem à história toda (Rafael matou Roberto Mitry, a mando da organização, e procurou a fita no apartamento dele; disse não ter encon- trado, mas é possível que tenha mentido nesse ponto; talvez o próprio Mitry, por algum motivo pessoal, tenha mentido o tempo todo a respeito do esquecimento da fita na casa da massagista, a chantagem, etc.). Aqui ocorre uma das cenas mais espantosas e grotescas do livro – Camilo e Zakkai tor- turam Rafael enfiando uma barata viva em sua boca. Termi- naram por mata-lo a golpes de tesoura (“Eu não mato um homem amarrado”, diz Camilo, “Pois eu mato”, diz Zakkai) e enfim encontram a fita. Em seguida é combinado um en- contro com um sujeito da organização, o professor Hermes (aquele que instruiu Mandrake no começo do livro sobre o manejo de armas brancas, ensinando-o manobras como in quartata e passata sotto e sobretudo ensinado quais partes do corpo são as mais vulneráveis num ataque a faca; aprende- mos com Hermes que a artéria subclávia, quando atingida, faz o sangue jorrar como se fosse uma fonte e a vítima perde a consciência em dois segundos). Pretende-se que nesse en- contro seja feita a troca da fita por uns documentos de inte- resse do Zakkai, provavelmente parar serem usados em sua guerra. O encontro acontece num apartamento no edifício Balança Mas Não Cai (Avenida Presidente Vargas, 2007, Rio de Janeiro) e se transforma numa luta entre Hermes (faca) e Camilo (machete). Camilo leva a melhor e despedaça o crâ- nio do professor. Esse acontecimento parece apontar a vitória de Zakkai em sua guerra contra o Escritório Central, pois não muito adiante Thales Lima Prado, o chefão da organização- holding-o-escambau, recebe um telefonema que ouve em si- lêncio e poucas horas depois comete um mítico suicídio, sendo encontrado por seu fiel secretário, o Capitão Virguli- no, com uma faca enterrada numa das axilas (“Foi para o Campo de Asfódelos”, etc.). E de fato Zakkai sai vitorioso – continua tocando seus negócios e ainda dando uns parcos esclarecimentos ao Mandrake sobre aquela embrulhada de acontecimentos todos. A nonchalance de Zakkai é absolu- tamente formidável e muito indicativa de alguém que sabe que, agora, pouco ou nada tem a temer – Mandrake diz a ele que está com os Cadernos do Lima Prado (o tal diário escri- to numa inescrutável caligrafia) e Zakkai diz, simplesmente, “No que me concerne, você ponde limpar a bunda com e- les”. Camilo Fuentes, o redimido pelo amor de uma mulher, tem sua nova e pacata vida interrompida numa manhã en- quanto consertava o telhado de casa – um grupo de técnicos (mandados, é óbvio, pelo novo chefão do Escritório Central, José Zakkai) vai a seu encontro e lhe dá tantos tiros que o cadáver torna-se uma irreconhecível pasta de sangue, ossos e vísceras expostas. Mas antes de chegar a esse final trágico e inglório, Camilo pediu a Miriam que um dia devolvesse a Pe- ter Mandrake o cordão com o unicórnio de ouro (peça que Camilo arrebatara do pescoço de Mandrake naquele episódio da visita ao apartamento) e que lhe dissesse que ele, Camilo, nunca fora ladrão, que ele nunca roubara o que quer que fosse durante sua vida toda. BUFO & SPALLANZANI (1985)
Anotei a lápis na folha de rosto de meu exemplar de
Bufo & Spallanzani (10ª. edição, Editora Francisco Alves, 1985) meu nome e a data em que comprei o livro: 27/10/2000. Ao contrário da minha primeira leitura de A Grande Arte (num Fran’s Café perto do Mackenzie, em 1996), não me lembro que impressão tive ao ler Bufo etc. pela primeira vez. Talvez fascínio, perplexidade, algum ator- doamento. Relendo-o agora com a devida atenção (já o reli algumas vezes nesses últimos dezenove anos, mas sempre de modo distraído) finalmente entendi o porquê de sua trama nunca ter se fixado por muito tempo na minha memória – tudo que Ivan Canabrava/Gustavo Flávio, o narrador do li- vro, nos conta, embora seja fascinante pelos lances insólitos, soa como deslavadas mentiras contadas por um mentiroso inteligente, erudito (pernóstico), etc. (Um mentiroso burro, ordinário, vulgar, seria facilmente refutável e destituído de interesse, o que definitivamente não é o caso de I- van/Gustavo.) Vamos lendo/ouvindo a história, interessa- díssimos, ainda que já de cara suspeitemos que o narrador é aquilo que a narratologia chama de “narrador não confiável”. Essa falta de credibilidade do narrador necessariamente nos coloca numa posição defensiva, cautelosa (a posição que sempre adotamos ao lidar com mentirosos); boa parte de nossa atenção se concentra em discernir, “o que será que es- tá por trás dessa óbvia mentira?”, “quanto de mentira e quanto de verdade tem nisso que acabei de ouvir?”, etc. Re- sumidamente, Bufo & Spallanzani oferece ao leitor a para- doxal experiência de fruir uma história meio mal contada (a- quele ruído que notamos quando nos contam uma mentira ou uma meia verdade), mas, ao mesmo tempo, muito bem contada, com aquela estrutura de peripécia (parece que vai acontecer isso, mas acontece outra coisa) e reconhecimento (“o assassino, por incrível que pareça, era mesmo o mordo- mo”, etc.) que Aristóteles dizia ser a condição sine qua non para uma boa narrativa dramática existir. Sim, excelente nar- rativa, afinal, estamos lendo um livro de um mestre, Rubem Fonseca. Ivan Canabrava quando ainda Ivan Canabrava (futura- mente ele mudará o nome para Gustavo Flávio, homenagem a Gustave Flaubert) era um magro (futuramente engordará) e insignificante funcionário de uma companhia de seguros (futuramente será um escritor de sucesso), casado com uma mulher bonita, mas apoteoticamente medíocre chamada Zil- da; Zilda tem o hábito de falar consigo mesma em 3ª. pessoa do singular, “Olha só, Zilda, o que esse panaca desse seu marido acabou de fazer”, etc.; Ivan não tem a sexualidade muito pronunciada (futuramente será um sátiro, “gordo, mu- lato e pernóstico”). (É verossímil que um gordo pernóstico seja um sedutor de mulheres extremamente bem sucedido, com altíssimo escore? Mulato, ao contrário de mulata – pa- lavra cheia de sugestões lascivas, “mulata do Sargentelli”, “mulata do Di Cavalcanti”, etc. –, é um termo anódino do ponto de vista sexual; mas o.k., admitamos que Ivan se tor- nará no futuro um Casanova, “gordo, mulato e pernóstico”.) O episódio que causará uma transformação radical na vida de Ivan começa com a suspeita de uma fraude na com- panhia de seguros – Ivan levanta a suspeita de que um certo Maurício Estrucho simulou a própria morte para receber um prêmio de um milhão de dólares de um seguro de vida; a si- mulação foi feita com uma mistura de veneno de sapo (bufo marinus) e uma substância homeopática chamada pyrethrum parthenium; tal mistura tem um efeito “zumbificante” (a pessoa que a ingere parece morta – qualquer médico que a examine sem dúvida declarará o óbito –, mas na verdade não está); ninguém na companhia leva a sério a suspeita- investigação de Ivan, que decide agir por conta própria e de maneira radical para provar sua tese, indo arrombar o túmu- lo onde Maurício Estrucho NÃO está enterrado (quem a- companha Ivan nessa empreitada aparentemente maluca é Minolta, uma hippie gente fina e absolutamente caricata, “você interrompeu minha meditação transcendental”, “acho que vou escrever um poema sobre o mico leão dourado”, “tóxico?, sai fora, isso agora é coisa de bancário”, etc.), que Ivan acolheu em seu apartamento imediatamente após sepa- rar-se de Zilda; um coveiro do Cemitério São João Baptista flagra-os e interpreta a ação como uma ação de ladrões de túmulo e começa a gritar por socorro; Ivan acaba dando um golpe de picareta na cabeça do coveiro, que morre; Ivan é julgado e condenado a uma internação no manicômio judici- ário; Ivan escapa do manicômio com a ajuda de Minolta e outro hippie “gente fina”, disfarçado de padre; Ivan passa dez anos escondido (evadido da justiça) em Iguaba, litoral fluminense, tutelado-protegido por Minolta (aliás, Minolta é nome de máquina fotográfica), que o faz descobrir os praze- res da cama e da mesa, “você, que me transformou num sáti- ro e num glutão”, etc.; Ivan emerge desses dez anos de re- clusão como Gustavo Flávio, escritor de sucesso, etc. No presente Gustavo Flávio está tentando escrever um romance protagonizado pelo naturalista italiano Lazzaro Spallanzani (1729-1799), num computador TRS-80 (escrever livro em computador era uma novidade excêntrica em 1985), e está prestes a se ver envolvido em outra enrascada; Delfina Delamare, que era amante de Gustavo, apareceu morta no carro dela (Mercedes-Benz), numa rua sem saída no Jardim Botânico (Rua Diamantina), com um tiro no coração; na mão direita de Delfina havia um revólver Calibre 22, nique- lado. A hipótese de suicídio seria razoável, já que Delfina descobrira recentemente estar com leucemia e o médico lhe dera poucos meses de vida. A perícia, porém, não encontrou vestígios de pólvora em sua mão, ou seja, Delfina não se ma- tou, foi morta. O detetive Guedes, que investiga o caso, primeiro suspeita do marido, Eugênio Delamare (senão co- mo executor ao menos como mandante do crime), depois de Gustavo Flávio, amante de Delfina (Eugênio, corno bravís- simo, jurou a Gustavo que irá castrá-lo, promessa que ele cumpre no final do livro, numa das cenas mais horripilantes já concebidas por Rubem Fonseca). As suspeitas de Guedes são temporariamente dirimidas pela confissão espontânea de um certo Agenor, que diz ter matado a “madame” após as- saltá-la e ter tentado estuprá-la; mas há vários furos na con- fissão e Guedes logo tira a história a limpo – Agenor recebeu dinheiro para confessar, etc., o que coloca Gustavo Flávio mais uma vez no radar da polícia. Guedes é o único personagem não farsesco do livro – suas cogitações são razoáveis, suas ações, inteligentes e éti- cas, etc.; interessante notar que, embora Gustavo Flávio seja um “narrador não confiável”, não há por que duvidarmos dele quando descreve as ações e cogitações do detetive Gue- des. (O “desvendador” é um tipo de personagem em que Fonseca é sempre craque – Peter Mandrake, comissário Al- berto Mattos – do romance Agosto – e, ainda que sem o mesmo carisma e densidade, detetive Guedes.) Bufo & Spallanzani dá ao final da leitura uma certa sensação de “sim, e daí?”, apesar de a morte de Delfina De- lamare ser esclarecida, de a história “fechar”. Desconfio que o crítico John Gardner (“The Art of Ficction”, um dos mais notáveis e pessoais livros de narratologia que já li) diria que Fonseca falhou em “Bufo” por ter sido “frígido”, ou seja, não suficientemente interessado nas reais motivações de seus personagens, desleixado em alguns aspectos da trama (inve- rossimilhanças, “história meio mal contada”, etc.). Talvez es- se hipotético diagnóstico de Gardner seja certo – talvez a melhor relação que possamos estabelecer com Bufo & Spal- lanzani , como leitores, seja curtir o que o livro tem de virtu- osístico, insólito, impressionante (afinal, trata-se de Rubem Fonseca), mas sem a necessidade de levá-lo a sério ou justifi- cá-lo com rigor. Certas coisas são boas (se não boas ao me- nos deliciosas) justamente porque são frívolas – a curiosa história de Ivan Canabrava/Gustavo Flávio está aí, de certa forma provando que a frivolidade também é filha de Deus. VASTAS EMOÇÕES E PENSAMENTOS IMPER- FEITOS (1988)
O que sabemos sobre o protagonista de Vastas Emo-
ções e Pensamentos Imperfeitos, romance que Rubem Fon- seca lançou em 1988? Não sabemos seu nome, mas sabemos que ele sofre de uma espécie de labirintite chamada Pseudos- síndrome de Ménière; sabemos que ele é cineasta e, tendo dificuldades para conseguir financiamento para um novo filme, vem fazendo filmes publicitários para um irmão a quem detesta, pastor protestante e dono de uma próspera igreja; sabemos que conserva a cadeira de rodas e um pacote de absorventes íntimos de uma mulher chamada Ruth e que “Ruth” se tornou um assunto tabu para ele, “Não quero fa- lar sobre Ruth, não ainda”; sabemos que seus sonhos (so- nhos mesmo, o processo onírico) não têm imagens. Dois fatos quase concomitantes arrastarão nosso prota- gonista a uma aventura das mais vorazes – a chegada às suas mãos de uma partida de pedras preciosas (de modo meio in- verossímil, mas o.k., adotemos o “suspension of disbelief”, como preconizava Coleridge) e um convite para rodar na A- lemanha um filme baseado em “Cavalaria Vermelha”, livro de contos do escritor russo (ucraniano, soviético, judeu) Isa- ac Babel. Os dois fatos concomitantes acabam transforman- do nosso cineasta num ladrão (a oportunidade faz o ladrão, etc.), num apropriador indébito das pedras (que pertenciam a uma quadrilha que as contrabandeia para o exterior incrus- tando-as em fantasias de carnaval) e, depois, no apropriador indébito de um manuscrito que o produtor do filme, na A- lemanha, o instiga a ir buscar em Ost Berlin, Berlim Orien- tal, aventura então arriscadíssima que envolve levar ilegal- mente para o setor comunista de Berlim cem mil dólares (o- cultados na roupa, casaco, sobretudo, etc.) e trazer de lá, ile- galmente, o tal manuscrito, roubado da Biblioteca Lenin e que, supostamente, seria o de um romance de Isaac Babel (o único romance do magistral contista), confiscado por mega- nhas do Stalin, da NKVD. (Babel foi preso no episódio e morreu, provavelmente fuzilado, em 1940.) Ao contrário do que acontece com grande parte dos protagonistas fonsequianos, o cineasta não é dado a grandes arroubos priápicos e tem uma relação mais cautelosa com as mulheres – rende-se a elas, simplesmente porque é impossí- vel não cometer esse ato de rendição; impõe um severo au- tocontrole aos próprios orgasmos e não chega à conclusão se isso – manter o órgão copulador ereto, “trabalhando” por períodos de tempo extremamente longos – ou é um exibi- cionismo dele (ou seja, narcisismo no mais alto grau) ou um ato de extrema generosidade (o que interessa é satisfazer a mulher, etc.); uma hora ele diz a Liliana, sua principal partner na história, “Ir para a cama com você é bom durante, depois é horrível”. A única pessoa com quem parece se sentir à vontade e com quem tem um sólido vínculo afetivo é o ve- lho Boris Gurian, judeu russo (fugiu do comunismo, depois fugiu do nazismo, chegando enfim ao Rio de Janeiro), litera- to, alcóolatra (saúde periclitante) e fanático por Isaac Babel. Boris se torna o mentor do cineasta em assuntos babelianos enquanto ele está esboçando o roteiro de “Cavalaria Verme- lha”. As discussões do cineasta com Boris são muito interes- santes; fundamentalmente trata-se de uma longa discussão entre cinema e literatura, Boris sustentando que cinema “não é nada”, uma coisa necessariamente simplificadora e superfi- cial por não ter os recursos metafóricos e polissêmicos da literatura (opinião essa que sabemos ser de Rubem Fonseca). Apesar de o episódio de Berlim ser muito interessante em si mesmo (Fonseca nos dá a vívida sensação de atraves- sarmos a fronteira entre as Berlins de então, lidarmos com guardas intimidadores, pagarmos vinte e cinco marcos de câmbio obrigatório, experimentarmos a paranoia do cineasta, etc.), a trama de “Vastas Emoções” concentra-se fundamen- talmente nos contrabandistas de pedras preciosas no encalço dele; descobrimos no final no livro que o chefe dos contra- bandistas, Alcobaça, tem uma espantosa história de vida (um grande spoiler aqui): acometido desde jovem por uma doen- ça de etiologia ignorada, mas que responde bem (e responde apenas) a um tratamento heterodoxo baseado na ingestão de diamante triturado (litoterapia), Alcobaça, que nasceu rico, gastou toda sua fortuna comprando diamantes para se man- ter vivo e saudável; destituído de bens (não exatamente, mas não vou cometer aqui outro spolier), passa a contrabandear pedras preciosas para que seu fornecedor de diamantes não lhe corte o suprimento. As situações de suspense são extremamente bem enca- deadas em “Vastas Emoções” (reli ontem em poucas horas as trezentas páginas do livro); sem os grandes personagens e sem a profundidade dramática de A Grande Arte (talvez o maior romance de Fonseca, talvez rivalizado apenas por A- gosto), mas sem o quase-desleixo quase-caricatural (diverti- díssimo, admito) de Bufo & Spallanzani , Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (uma definição de sonho, “um mundo de Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”) é instigante, imaginativo, agradabilíssimo de ler; Rubem Fon- seca é um homem de inteligência superior (coisa incomum entre escritores, por mais espantoso que isso possa parecer), que teve uma bem sucedida carreira profissional no mundo corporativo (diretor da Light, etc.); talvez sua singularidade como escritor de literatura ficcional em parte se explique (já que talento não é explicável) por ele nunca ter precisado cha- furdar no chinfrim ambiente literário brasileiro, com suas in- triguinhas provincianas, suas referenciazinhas, seus “ismos”, etc. Interessante notar, por exemplo, que as narrações que o cineasta faz de seus “sonhos sem imagens”, relatos que per- passam o romance inteiro, lembram muito o “Book of Dre- ams”, do Jack Kerouac (sem fazer alarde disso, Fonseca cla- ramente conhece os beats; em algum conto seu, não me lembro qual, há uma referência explícita ao William Burrou- ghs, etc.). Se não tivesse outro mérito (e tem, claro), “Vastas Emoções” no mínimo teria apresentado Isaac Babel ao pú- blico brasileiro; eu fui ler os “Contos de Odessa” só depois de ler o Fonseca; me diverti muito com o gângster Benia Krik (a judeuzada em Odessa era a mesma coisa que os sici- lianos em Nova York) e com aquela mania das famílias ju- daicas de mandarem seus filhos estudar violino, “Sabe quan- to o Jascha Heifetz está ganhando por apresentação? Oito- centos rublos!”. Rubem Fonseca escreveu uma crônica curiosa, publica- da em seu livro “O Romance Morreu”, em que ele narra uma viagem que fez para Berlim, na segunda metade dos a- nos 1980; a crônica pode ser uma leitura-apêndice interes- sante para quem já leu “Vastas Emoções”; a travessia para Berlim Oriental, feita através do mítico Checkpoint Charlie, claramente foi a experiência pessoal que serviu de base para sua elaboração ficcional; a experiência pessoal foi aquela coi- sa turística chinfrim de sempre (não, Fonseca não contra- bandeou dólares escondidos na cueca, nem trouxe para o o- cidente documentos roubados da Biblioteca Lenin, escritos em alfabeto cirílico; a vida privada de todos nós, mesmo a de um grande escritor, raramente escapa da mediocridade); ou- tra crônica interessante desse livro é a que fala do encontro do Rubem Fonseca com o poeta Dylan Thomas no bar do hotel Chelsea, em Nova York, em 1953, poucas semanas an- tes de Dylan morrer; o encontro em si não tem nada demais (a mediocridade mesmo dos grandes, etc), mas Fonseca des- creve assim Dylan Thomas: “Seu rosto era gordo e vulnerá- vel como um balão de encher”. (Uau. Craque é craque, vir- tuose é virtuose, palmas para o Rubem Fonseca, clap, clap, clap.) AGOSTO (1990)
Estou no Palácio do Catete, Museu da República, no
Rio de Janeiro. O mês é dezembro, o ano é 2003. Encontro- me sozinho nos amplos aposentos onde, há quase cinquenta anos, o então presidente da república Getúlio Dornelles Vargas se matou com um tiro no coração. O fato de eu ter lido há não muito tempo o romance Agosto, de Rubem Fonseca, intensifica a experiência de estar aqui, nesse lugar que parece (e talvez esteja mesmo) congelado no tempo, precisamente nas primeiras horas da manhã do dia 24 de Agosto de 1954. Observo a blusa do pijama de Getúlio (com as iniciais GV), exposta sobre uma mesa: o furo da bala, o chamuscado, um resto de sangue. Depois vou a uma das ja- nelas que dá para um amplo jardim e lembro-me da parte do livro quando o mordomo de Getúlio, Zaratini, observa Gre- gório Fortunato sentado num dos bancos, provavelmente algum desses que estou vendo agora. Gregório logo mais iria pressionar seu subordinado, o membro da guarda pessoal do presidente, Climério Euribes de Almeida, para que esse ar- ranjasse logo o tal pistoleiro para “bombardear o homem”, Carlos Lacerda. Lembro-me da divertida e pitoresca história contada pelo ator Toni Tornado, que interpretou Gregório na série Agosto, baseada no livro e exibida pela Rede Globo em 1993. Em entrevista ao Jô Soares, Toni contou que, num in- tervalo de uma gravação, feita aqui no palácio, ele foi dar uma volta, já caracterizado como Gregório (terno com bla- zer estilo jaquetão, chapéu, etc.). Entrou numa das salas e, ao ver uma funcionária do Museu da República, disse a ela, “boa noite”. A mulher, que trabalhava aqui desde o tempo em que o prédio era o palácio presidencial, virou-se para responder à saudação e, achando que estava diante da as- sombração do “Anjo Negro”, caiu dura, desmaiada. Saio do palácio e decido seguir até a Rua Marquês de Abrantes, que é continuação aqui da Rua do Catete. O co- missário de polícia Alberto Mattos, principal personagem de Agosto, morava nessa rua, no oitavo andar de um melancóli- co prédio, já melancólico em 1954; o Rio de Janeiro de então tinha graves problemas com abastecimento de água; Alberto dispunha dia sim, dia não, de água em casa; na cena em que ele vai fazer uma consulta médica por causa de sua úlcera o médico lava as mãos com uma garrafa de água mineral São Lourenço; na cena em que ele faz um nostálgico e evocativo passeio pela Rua Conde de Lages, zona do meretrício de alto padrão quando ele era jovem, em 1954 transformada numa rua de cortiços, “cabeças de porco”, Alberto observa mulhe- res transportando “latas d’água na cabeça”. Chego à Rua Marquês de Abrantes, convencido de que não deverá ser tão difícil reconhecer o prédio do comissário Alberto Mattos; “mas, ei, Alberto Mattos é um personagem ficcional”; justa- mente: justamente por Mattos ser um personagem ficcional é que eu descobrirei, com absoluta exatidão, em que prédio ele morava; e dormia o sono dos justos em seu sofá-cama Dra- go; e tentava estudar Direito Civil para prestar o concurso da magistratura; e afligia-se com a presença nunca solicitada de Salete; e, eventualmente, dava cabeçadas na parede. Agosto, de 1990, é o romance de Rubem Fonseca mais perfeitamente urdido e o que tem, se não os mais fascinan- tes, ao menos os personagens com maior consistência dra- mática criados pelo autor. Não me lembro qual crítico (Ha- rold Bloom?) afirmou que o cerne da ficção de primeira grandeza é o (grande) personagem; essa verdade me parece, a mim, como leitor, evidente, assim como o cerne da ficção medíocre é o personagem “idiota” não confrontado em sua idiotice (Rosencrantz, Guildenstern e Polônio eram três idio- tas e Shakespeare fez com eles o que eles bem mereciam; Ofélia, uma bobalhona, recebe tratamento um pouco melhor do autor, que a enlouquece e a faz se matar; se Saul Bellow fosse realmente um autor de primeira teria jogado aquela fi- lha maluca do Arthur Sammler, aquela criatura usuária de perucas baratas e cultivadora de plantas podres, num rio cheio de crocodilos). A história de Agosto se passa entre os dias 1º e 26 de Agosto de 1954, no Rio de Janeiro, então capital dos Esta- dos Unidos do Brasil. Começa com o assassinato de um fi- gurão chamado Paulo Machado Gomes Aguiar e desenrola- se com a investigação do crime, protagonizada pelo comissá- rio de polícia Alberto Mattos. Paulo Machado Gomes Aguiar tinha uma empresa de importação (em sociedade com a mu- lher e um amigo) e havia conseguido uma licença da Cexim – Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil – através de uma negociata cujos intermediários foram um lo- bista chamado Luiz Magalhães e Gregório Fortunato, for- malmente chefe da guarda pessoal do presidente Getúlio Vargas e informalmente seu capanga. Paralelamente à inves- tigação de Mattos, o livro narra a derrocada do presidente, a progressão fulminante de sua catástrofe (que culminou com seu suicídio, em 24 de Agosto), especialmente após o atenta- do sofrido pelo então jornalista Carlos Lacerda (futuramente governador da Guanabara, etc.), atentado em que morreu seu guarda costas, o major-aviador Rubens Florentino Vaz; logo se descobre que a ordem para o atentado partira de Gregório Fortunato (que por sua vez acusou o então depu- tado federal Euvaldo Lodi de haver “estimulado” a ação; suspeita-se também de Benjamim Vargas, irmão de Getúlio, como mandante); um membro da guarda pessoal de Getúlio Vargas, Climério Euribes de Almeida, fora encarregado de arrumar um pistoleiro e acabou arranjando um trapalhão ru- im de mira, na verdade um marceneiro desempregado, cha- mado Alcino João do Nascimento (surpreendentemente ain- da vivo em 2019). O atentado e a morte acidental do major Vaz criou um ambiente de conspiração aberta contra Vargas, por parte das Forças Armadas, e forte mobilização da opini- ão pública, capitaneada pelo partido UDN (partido de La- cerda), exigindo a renúncia ou deposição do presidente. A cafonalha retórica então grassou, “a nação coberta de opró- bio”, “a indignação da família brasileira”, “mar de lama”, “kakistocracia” (governo pelos piores elementos da socieda- de, termo inventado por Lacerda), etc. O único personagem interessante oriundo desse esgoto político do Brasil de 1954 é o (fictício) senador Vitor Freitas, do PSD (base governista). (Gregório Fortunato, o “prevari- cador de ébano”, razoavelmente interessante em sua adora- ção chauvinista por Getúlio, no fundo é apenas um gângster vulgar.) Freitas, cínico, amoral, inteligente e, não só como também, homossexual (obviamente enrustido, 1954, etc.), faz para seus interlocutores íntimos observações muito acu- radas sobre o derretimento, o “desempoderamento” do go- verno Vargas (a metáfora sovada dos ratos abandonando o navio que está indo a pique, etc.). Ao ser chamado de “cor- rupto filho da puta” por Pedro Lomagno (sócio do empresá- rio assassinado logo na abertura do romance), Freitas diz, “todos somos corruptos filhos da puta, aqui nessa mesa, aqui nesse país”. Em sua dimensão pessoal, Freitas também tem seus “esqueletos guardados no armário” – o síndico do pré- dio onde ele tinha sua garçonnière, após flagrá-lo no eleva- dor em companhia de um rapaz “limpo e bonito” “veneran- do Priapo” e insistir na reação moralista escandalizada, “você transforou esse prédio de família numa Sodoma!”, é morto por Clemente, fiel assessor de Freitas. Mas deixemos de lado a política, seus meandros e seus protagonistas sempre medíocres. (Política é coisa de genti- nha, atividade de segunda categoria.) Sigamos os grandes personagens dessa história, como o comissário de polícia Alberto Mattos. Alberto sofre de uma úlcera duodenal (esgo- tamento nervoso) e se automedica o tempo todo com Pep- samar e leite (acreditava-se na época que leite diminuía a aci- dez). É o único tira honesto da delegacia onde está lotado (todos levam dinheiro dos bicheiros, etc.). Tenta minimizar o sofrimento dos presos amontoados no xadrez, solta os deti- dos para averiguação, aplica injeções de penicilina nos infec- tados com gonococos. Em sua vida privada, ouve discos de ópera e é amado por uma jovem mulher chamada Salete, ex- garota de programa que agora é mantida por um “coronel”, o lobista Luiz Magalhães (que está metido, entre outros, na- quele rolo da licença da Cexim). Alberto, que tenta evitar a impositiva Salete (tratando-a de forma rude, etc.), quase sempre é vencido sexualmente por ela. Salete é patética e comovente em sua sina de mulher desprezada pelo homem a quem ama – faz uma ineficaz macumba com uma cueca de Alberto e a macumbeira, mãe Ingrácia, diz que o trabalho tem de ser feito com uma casquinha de ferida dele; tem ódio de sua origem favelada (Morro do Tuiuti, em São Cristóvão); um dia ao ver a mãe ao longe, anos depois de fugir de casa, mãe que ela supunha já ter morrido, Salete pensa, “a desgra- çada está ainda mais feia, mais velha e mais preta!”. Outro personagem pertencente à dimensão intimista de Alberto Mattos é o seu Emílio. Ex-chefe da claque do Tea- tro Municipal, o velhote, meio matreiro, vai atrás de Alberto quando vê a foto deste no jornal, numa reportagem sobre o assassinado de Paulo Machado Gomes Aguiar. Supõe que Alberto, que quando rapaz fazia parte da claque para poder ver as óperas sem pagar, está bem de vida, frequentando as “altas rodas”, etc. Fala nostalgicamente sobre os velhos tem- pos e logo insinua que está precisando de dinheiro, aluguel atrasado, penduras, etc. A caracterização que Rubem Fonse- ca faz de seu Emílio é mordaz (os ruídos que a dentadura mal ajustada faz dentro de sua boca, etc.) e, ao mesmo tem- po, carregada de afeto. Alberto encarna um princípio implicitamente cristão que poderia ser enunciado como “a ninguém será lícito igno- rar os sofrimentos alheios”. E é interessante notar como a compaixão, como o amor pelos fracos, os débeis, etc., na prática é cheia de contradições. Sim, porque lidar com os mi- seráveis é cansativo, além de repugnante (o fedor que o co- missário Alberto sente na cela superlotada do distrito); seu Emílio é um pobre coitado, mas ladino, finório, interesseiro; Salete é amorosa e bem intencionada, mas banal, arrogante (com pessoas em posições sociais aparentemente inferiores às dela, vendedoras de loja, etc.), manipuladora, que pensa a respeito da mãe “a desgraçada está mais feia e mais preta a- inda”. Não me lembro agora do filósofo (teólogo?) que disse que a caridade é indesejável porque fundamentalmente é uma paixão. Se Emílio e Salete recebessem o que de fato merecem escapariam do chicote? O fastio e o esgotamento nervoso de Alberto (que, quando nervoso, tem o impulso de bater com a cabeça na parede) são indícios de que ele no fundo sabe que não faz diferença ele ser um policial honesto (num mundo que é um “mar de lama”) ou um homem com- passivo (Emílio e Salete nunca deixarão de ser os egoístas que são, um interessado no “amigo rico” a quem pode re- correr para saldar os alugueis atrasados e os penduras nos bares, outra interessada em conquistar Alberto para que ele seja “o homem pra chamar de seu”). Patrícia Melo, discípula de Rubem Fonseca, escreveu as seguintes linhas em seu ro- mance “Valsa Negra”, de 2003: “Colecionadores de qualquer coisa. Bons vinhos, via- gens exóticas. Esse tipo de coisa. Essa gente. Aquelas mu- lheres. Aqueles assuntos. Odeio tudo isso, disse a Marie. E não pense que sou como eles, que adoro os pobres. Tenho um desprezo solene pelos pobres. A patuleia. A escumalha. Sujos, ignorantes, interesseiros, safados. Escrotos, como os vermes. Sempre engravidando. E engordando. E roubando e matando. E sendo atropelados. Acho que odeio mais os po- bres até. Minto. Odeio mais os ricos. A ralé, pelo menos, me comove.” Creio que uma consciência desse tipo esteja presente no comissário Alberto Mattos, mas, diferentemente da persona- gem Marie, de Patrícia Melo, Alberto perdoa “setenta vezes sete vezes”, como preconiza Cristo (reitero que Agosto nada tem de explicitamente cristão, e ainda bem). Alberto explicita esse seu caráter compassivo e perdoador quando diz estar sentindo pena de Getúlio Vargas, acuado pelos conspirado- res, opinião pública, etc., logo Alberto, que foi preso numa agitação estudantil no Estado Novo e levou uns socos e uns pontapés num corredor polonês formado na delegacia para recepcionar os agitadores. No denouement do romance, Al- berto, sabendo estar com uma hemorragia interna causada pela úlcera duodenal perfurada, finalmente dá a Salete aquilo que ela vinha querendo desde o começo da história: uma casquinha de ferida sua, embrulhada num pequeno papel. Pouco antes, ele havia soltado todos os presos do xadrez na delegacia. Haverá ainda um desfecho trágico o aguardando, um “decifra-me e te devoro assim mesmo”, desfecho trágico da magnífica “comédia de erros” concernente à investigação do assassinato de Paulo Machado Gomes Aguiar, “tragédia de erros”, portanto, que estrutura a história (deduções apres- sadas e equivocadas, ordens dadas e canceladas, suposições infundadas, etc.). Se Alberto fosse receber o que de fato me- recia, o final de Agosto seria bem diferente. Mas qual pode- ria ser um desfecho justo e feliz para Alberto? Tento imagi- nar: Alberto ouvindo discos de ópera com a cabeça deitada no regaço de sua amada Alice (sim, há uma Alice nessa his- tória, quase antípoda de Salete)? Alberto passando no con- curso da magistratura (concurso para o qual sempre tenta es- tudar em seus poucos momentos de folga)? Sei lá, as duas coisas parecem um pouco falsificadoras do verdadeiro cará- ter e da verdadeira dimensão de Alberto Mattos. Embora se- ja triste, muito triste admitir isso, o martírio lhe cai bem, como sempre cai bem a qualquer pessoa cujo reino, aparen- temente, não pertence a esse mundo. O CASO MOREL (1973)
Heloísa Wiedecker, vinte anos, só alcança o consumma-
tum est sexual, o orgasmo, ao ser espancada. Quando pede para levar socos e chutes de seu amante, o consagrado artista plástico Paul Morel (Paulo Morais), ela sempre diz, “põe o demônio no meu corpo”. Um dia esses jogos entre os dois termina mal, em óbito, “contusão da cabeça, com hemorra- gia subdural, e contusão torácica, com fratura de costelas, ruptura do pulmão direito e hemorragia interna”. Heloísa ti- nha um diário em que narrava sua rotina sexual com Paul, “Gosto de ser degradada por ele, sentir que Paul me possui, me pune, me sacrifica. Foi um orgasmo maravilhoso, ele me virou num golpe rápido, meus gemidos foram respondidos com socos no rosto até que meus olhos se incharam e eu mal podia ver o rosto do meu amor”. O diário é mandado anonimamente (por uma mulher) à polícia, com um bilhete que diz, “o assassino é Paul Morel”. Morel tem a prisão pre- ventiva decretada. O delegado Morais, responsável pelo ca- so, apresenta a Morel o ex-delegado Vilela, que se tornou es- critor após sair da polícia (“policial, artista, escritor, sempre com as mãos sujas”). Morel quer um leitor qualificado para opinar sobre as coisas que vem escrevendo, o esboço de um romance autobiográfico à clef; um texto confessional? (“a confissão é a prostituta das provas”). Além de escrever, Paul Morel ocupa-se na cela fazendo flexões, cinquenta a cada hora, quatrocentas por dia. Quer chegar a mil, como um membro do grupo terrorista Panteras Negras que aguarda a execução no corredor da morte. Ficamos sabendo, através de sua narração fragmentária, elusiva em certos momentos, constantemente cortada de modo abrupto por parágrafos alheios ao que está sendo dito, também cortada por frases e sentenças enigmáticas como “o pior dos venenos”, “nada temos a temer, exceto as pala- vras”, que Paul Morel, aliás, Paulo Morais, é um artista plás- tico consagrado, premiado em bienais importantes, mas que “secou” criativamente (o que em nada diminui seu prestígio artístico, muito pelo contrário). Próximo de completar cin- quenta anos, ele vem sentindo temor de ficar sexualmente impotente, o que aumenta sua voracidade sexual. Decide en- tão estabelecer uma espécie de harém em sua casa em Santa Teresa, numa duvidosa experiência de gregarismo “pós- família” (“família Manson”, “Children of God”, etc.) bem ao sabor dos anos 1970. Nada propriamente acontece nessa comunidade- comuna meio “age of aquarius”, exceto mulheres cozinhan- do (umas melhores no trivial, outras mais criativas nos quesi- tos culinários, as criativas, contudo, errando com mais fre- quência, ocasiões em que Paul Morel é obrigado a ir até a es- quina comprar umas pizzas), mulheres tomadas por fúrias dionisíacas quebrando móveis e abajures, ménages à trois, filmagens “criativas” em super-oito, etc. Heloisa Wiedecker, a tal que sente prazer sexual ao ser espancada (e que morrerá em decorrência disso), é uma das mulheres que compõe o harém. Mas difere muito das outras por ter uma ligação es- pecial (fome com vontade de comer) com Paul. Num pas- seio com ele pela Barra da Tijuca (ainda razoavelmente de- serta, hippies acampando em finais de semana, etc.), Heloísa reclama que, desde que a comunidade de Santa Teresa foi estabelecida, ele nunca mais fez com ela aquelas coisas que ela realmente gosta (levar socos, pontapés, etc.). Ele admite que sim, pois sempre “tem gente olhando” (há, há, a farsa intrínseca de todo “coletivismo”, a farsa grotesca de toda comunidade humana cheia de boas intenções, “boas vibra- ções”, etc.). Heloísa ordena, provocadora, dizendo palavrões e obscenidades, “põe do demônio no meu corpo”. Paul en- tão passa a socá-la e a chutá-la, na cabeça, tórax, etc. O ca- dáver dela é encontrado quatro dias depois (“flictenas putre- fativas”), etc. O propósito, tanto o de Paul Morel ao narrar sua histó- ria quanto o de Rubem Fonseca ao escrever o romance O Caso Morel, é confuso. Ou obscuro. (Para que, afinal de contas, Morel usa o escritor Vilela como leitor exclusivo das coisas que escreve? E qual o interesse de Vilela nisso? Não é um interesse heurístico, de investigação dos fatos, já que os fatos concernentes a Morel são tremendamente óbvios.) A impressão que tive, desde que li O Caso Morel pela primeira vez, foi a de que Fonseca não sabia escrever romances em 1973; aventurou-se no gênero por estímulo do editor, que lhe disse que romances vendiam muito mais do que livros de contos. Acabou (mal) ajambrando um livro cheio de cacoe- tes modernosos – ortografia aqui e ali propositalmente des- cuidada, pernosticismos como o uso da expressão “exit fula- na de tal” quando fulana de tal sai da cena; descontinuidades, “fragmentação”, frases arcanas; afirmações niilistas e escato- lógicas do tipo, “a arte é uma besteira”, “o fim da arte”, etc.; num dos parágrafos alheios ao que está sendo dito na narra- ção principal, espargidos pelo livro todo, somos informados de que, “A trama e a sequência tradicionais não têm mais significação... o escritor tende a uma consciência mais aguda de si mesmo no ato de criar. O exterior torna-se menor e o escritor afasta-se da realidade objetiva, afasta-se da história, da trama, do caráter definido, até que a percepção subjetiva do narrador é o único fato garantido na ficção”. Minha impressão nessa releitura se modificou um pou- co (não me recordo quando li O Caso Morel pela primeira vez; talvez em 2000, pois tenho uma vaga lembrança de conversar a respeito do livro com um cretino que veio a ser curador da FLIP anos depois, o sujeito mentindo que havia lido o livro, eu percebendo que ele estava mentindo; tive al- guma relação pessoal com a figura – ah, o meio literário bra- sileiro... – em 2000). À semelhança de Robert Coover em “Espancando a Empregada” (que faz troça da mesmice, da hilária banalidade de uma relação sadomasoquista ao narrar trinta e nove vezes, com pequenas variações, os peculiares jogos sexuais, vixpt!, onomatopeia de chicote, entre um pa- trão e uma empregada), de Norman Mailer num romance (cujo título me esqueci) em que o protagonista encontra a cabeça da esposa decepada dentro do recipiente onde ele guarda sua maconha (maconheiro não têm apenas a compul- são de defecar em caixa d’água e ficar nadando, ali, com os próprios cocôs boiando), de Pauline Reage em A História de O, de Sade (é claro), em suma, à semelhança desses todos, Rubem Fonseca nos lembra, em O Caso Morel, lançado no ápice da chamada “revolução sexual”, que sexo-sexualidade não é exatamente aquilo que o Wilhelm Reich defendia em Der Funktion das Orgasmus – que uma sexualidade livre e “sadia” geraria uma humanidade sem impulsos destrutivos, antissociais, etc. A libido, ao contrário do que pretendia Rei- ch, é, no mínimo, uma força amoral; não raras vezes senti- mos horror e repugnância ao nos percebermos instrumentos cegos do instinto de procriação (a adolescente Silene, da pe- ça Os Sete Gatinhos, de Nelson Rodrigues, espancando até a morte uma gata prenha, projetando no pobre animal a repul- sa e a vergonha que passa a sentir de si mesma ao descobrir- se grávida do Bibelô). O desejo, ao mesmo tempo que nos dá lampejos de “iluminação”, tônus “espiritual”, etc., nos ar- rasta para o desconhecido, necessariamente; e o autoconhe- cimento que se adquire nesse “adentrar o desconhecido” nem sempre é bom, porque o que podemos descobrir sobre nós mesmos nem sempre (aliás, quase nunca) é lisonjeiro; testemunhar o mal (o nosso, dos outros, do mundo, etc.), ainda que sem defesas simbólicas ou efetivas contra ele, ain- da que sem uma recusa explícita dele, esse simples testemu- nhar já é um ato moral, sobretudo se não nos recusamos a chamar o mal por seu devido nome, não relativizarmos nesse quesito, “há males que vem para o bem”, “muita luz neces- sariamente gera muita sombra, por uma lei cósmica de com- pensação e polaridade”, etc. (Uma pequena digressão: o pessoal “à esquerda” gosta de dizer que Rubem Fonseca foi o autor que deu o mais contundente testemunho da brutalização que supostamente a sociedade brasileira sofreu a partir do Golpe de 64 – que antes de 1964 éramos o paraíso da brejeirice, etc. Maria Rita Kehl diz que a partir dos anos 1990 Rubem Fonseca passou a escrever num estilo kitsch, afeito ao “bom gosto da classe média”, etc. (Uau... O período 2001-2006 talvez seja o mais esplendoroso da produção ficcional fonsequiana.) Tudo o que essa gente diz é barbaramente simplificador, não? Bom, o que esperar dessa gente, que ia ver as peças do Plínio Mar- cos só para aplaudir os palavrões, porque, no entender deles, os palavrões desafiavam a ditadura militar?) Rubem Fonseca, em O Caso Morel, escreveu um ro- mance falho, que datou, no pior sentido da palavra (em vá- rios aspectos O Caso Morel lembra um romance também lançado em 1973, aliás, Prêmio Jabuti de 1973, o hoje esque- cido “Clube de Campo”, de Rubens Teixeira Scavone). Mas já estavam presentes nele as percepções e as concepções do futuro estupendo romancista (A Grande Arte e Agosto) que Fonseca veio a ser, quando enfim dominou seu oficio e deu tratamento literário adequado à sua maneira peculiar de ver o mundo. O DOENTE MOLIÈRE (2000)
O propósito declarado do marquês anônimo, narrador
e protagonista de O Doente Molière, romance que Rubem Fonseca publicou em 2000, é expiar uma omissão – se não tivesse sido omisso (seu sentido de autopreservação o exigiu, por razões plenamente esclarecidas lá pelo meio do livro), ele talvez pudesse ter salvado seu amigo Jean-Baptiste Poquelin, vulgo Molière (ator, autor, comediante, etc.), que lhe confes- sou, já agonizante, ter sido envenenado. Em vez de buscar um médico (o que provavelmente seria inútil, dada a precari- edade da medicina do século XVII), o marquês foi atrás de um padre para que este ministrasse a Molière a unção dos enfermos. Dois padres se recusam a acompanhá-lo, um ter- ceiro chegou quando o dramaturgo já havia morrido; detes- tado pelo clero, sobretudo após a peça Tartufo (muitas auto- ridades religiosas defendiam que o autor e suas peças satíri- cas deveriam ser queimados numa fogueira), Molière só pô- de ser sepultado graças à intervenção do rei Luís XIV, e ain- da assim numa parte do cemitério destinada aos pagãos e aos suicidas. Falei nas razões “plenamente esclarecidas” do marquês anônimo, porque num primeiro momento ele justifica sua omissão para nós, leitores, com uma meia verdade – como estava tendo um caso com Armande, a mulher de Molière, ele facilmente seria tomado como suspeito pelo envenena- mento (o comborço que mata o marido corno, etc.). Sim, a justificativa soa verossímil, pois falar em venenos nos meios aristocráticos franceses da segunda metade do século XVII era como falar de corda em casa de enforcado – o hábito de se livrar de amantes e parentes indesejados usando-se subs- tâncias como vitríolo e arsênico era então disseminadíssimo. Mas, para além dessa justificativa verossímil, estava o verda- deiro motivo para o marquês ter se omitido – e esse motivo também envolvia um caso de envenenamento, um caso do qual, embora ele não fosse diretamente culpado, muito pro- vavelmente poderia ser considerado cúmplice. Morto e sepultado Molière, o marquês anônimo busca expiar sua omissão lançando-se à tarefa de descobrir quem matou seu amigo (sim, amigo; o fato de ele ter tido um longo caso com Armande, mulher de Molière, em nada modificava essa afeição). Os primeiros suspeitos aventados foram as ví- timas preferenciais das peças satíricas de Molière – clérigos, arrivistas vulgares, médicos charlatães, maridos e mulheres, etc. O marquês chega a uma lista com menos de dez nomes, nenhum deles especialmente suspeito, mas todos suspeitos de alguma forma. Sua investigação, contudo, não vai muito além de umas sondagens superficiais que faz em salões lite- rários e algumas poucas entrevistas com pessoas que em tese poderiam esclarecer alguma coisa sobre o caso. Ele acaba se justificando para nós, leitores, dizendo não ser fácil descobrir o culpado pela morte de Molière não sendo ele alguém le- galmente autorizado a usar “os processos normais de coação e tortura com a finalidade de obter a confissão de crimino- sos”. Omisso, frívolo e frouxo, o marquês anônimo não é mesmo alguém forjado para um empreendimento heurístico desse porte. A verdade lhe interessa desde que sirva para li- vrá-lo da encrenca na qual ele teme se ver envolvido, en- crenca essa que responde pelo nome Marie-Madeleine d’Aubray ou Marquesa de Brinvilliers. Amante do marquês anônimo – ele era loucamente apaixonado por sua inigualá- vel “voracidade crepitante” –, Marie-Madeleine foi uma das primeiras figuras da nobreza a ser descoberta, condenada e executada no rumoroso “Caso dos Venenos” (1670-1682), caso que teve como figura central uma feiticeira chamada Madame Voisin (aborteira, praticante de magia negra, prepa- radora de venenos, etc.) e que chegou a espirrar indiretamen- te em Luís XIV, dado que sua então amante oficial, Madame de Montespan, mãe de seis filhos legitimados de Luís, etc., era assídua cliente da bruxa. A morte de Molière enfim é esclarecida (a bruxa Voisin, presa numa masmorra e cheia de marcas de tortura, conta ao marquês quem, como, etc.). Apesar de o culpado ser mesmo um dos aventados pelo marquês em sua lista, esse esclareci- mento nada tem de triunfante – em parte pela banalidade do que é revelado, pela motivação genérica demais para o crime, portanto inverossímil, em parte porque o marquês foi uma figura coadjuvante (omisso, passivo, etc.) demais nesse pro- cesso de revelação. Rubem Fonseca já disse (indiretamente, através de al- gum de seus personagens, não me lembro qual) que escrever bem geralmente não é muito mais do que um paciente traba- lho de ourivesaria (metáfora para o cuidado artesanal na fei- tura do texto). Essa qualidade artesanal se destaca bastante em O Doente Molière; talvez porque os detalhes do livro, a reconstituição dos costumes e alguns episódios pitorescos da França do “Rei Sol” (pode-se considerar o livro um romance histórico), sejam mais interessantes do que o todo (enredo, etc.); particularmente divertida foi uma fofoca revelada ao marquês anônimo num dos salões literários, fofoca a respei- to do irmão de Luís XIV conhecido como Monsieur (Philip- pe, duque d’Orléans), uma bichona louca que participava de campanhas militares sempre travestido (maquiado, etc.) e que – a fofoca – tinha o hábito de dormir com “aquela parte do corpo que só os homens possuem” envolvida por cor- dões com pequenas imagens da Virgem Maria, pretendendo com isso proteger “aquela parte” contra quaisquer vicissitu- des. (Há, há!) Talvez a maior falha do livro seja, no final das contas, a tese do assassinato de Molière. Não por ela ser apenas uma tese ficcional, sem historicidade alguma (isso é irrelevante). A tese é frágil por uma simples lei de razão e proporção – é pouco provável que alguém decida cometer um ato tão irre- versível e de consequências tão graves quanto um assassina- to para vingar-se de um simples gracejo; o próprio marquês anônimo chegou a essa conclusão ao pensar nas pessoas sati- rizadas na peça As Preciosas Ridículas – que arrivistas inte- resseiras seriam incapazes de cometer qualquer ato intem- pestivo (assassinato, por exemplo) capaz de prejudicar seus próprios interesses. (Estava aqui pensando se conheço al- gum humorista que foi assassinado; sim, o Leon Eliachar; mas Leon foi morto não por ser humorista e sim porque es- tava envolvido com uma mulher casada e o marido traído não curtiu muito a coisa). (“Mas Stalin mandou matar aquele poeta que gracejou de seu bigode, dizendo que o bigode pa- recia feito com baratas.” Oras, Stalin podia matar o quanto quisesse sem haver qualquer consequência, porque Stalin era Stalin.) Sim, insisto que há qualquer coisa de desconjuntada, de insatisfatória e de flagrantemente desproporcional no “as- sassinato de Molière”. Pois, como bem disse uma vez o Mil- lôr Fernandes, que entendia magnificamente desse riscado, “Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: ne- nhum humorista atira pra matar”. O SELVAGEM DA ÓPERA (1994)
Tomei conhecimento do compositor Carlos Gomes
(1836-1896) lá pelos oito anos, quando eu me dedicava à numismática (coleção de cédulas e moedas antigas). A efígie de Gomes, que estampava uma moeda de trezentos réis cu- nhada em 1937, tinha uma severidade e uma afetação épica algo beethoveniana – sim, Carlos Gomes parecia Ludwig Van, só que de bigode (há alguns anos eu frequentemente zoava meu amigo Eurico Junqueira, perguntando pra ele on- de estava sua ex-cabeleira de Beethoven de gesso daqueles que ficam em cima do piano; Junqueira havia cortado o ca- belo, etc.). Não me lembro de quando fui informado de que a música tema do programa A Voz do Brasil era uma com- posição de Carlos Gomes, a protofonia de sua ópera O Gua- rani. (Quando eu era criança uma época A Voz do Brasil u- sou a música Spiral, do Vangelis, como tema.) Esses dois dados, efígie de moeda e música tema de um antipático pro- grama radiofônico oficial, “do governo”, me fizeram apre- ender Gomes não propriamente como músico, mas como um hierático símbolo cívico, patriótico, etc. Creio que não ocupei meu pensamento com Carlos Gomes até 1994, quan- do li o que o Paulo Francis escreveu sobre o então recém- lançado livro de Rubem Fonseca, O Selvagem da Ópera, uma biografia romanceada do compositor. Francis, que elo- giou bastante o livro e que, ao contrário de mim, era um a- preciador do gênero musical operístico, afirmou que o pro- blema de Gomes é que ele não era memorável, que era um talento derivativo (ou seja, não original) e que provavelmente ele explodiu (!) ao morrer (de câncer, aos sessenta anos) por ter reprimido durante a vida toda sua “mulatice”. Carlos Gomes, de fato mulato, oriundo da baixa classe média campineira (Campinas, SP), filho do “Maneco Músi- co”, a exemplo do pai dividia-se entre a música e a alfaiatari- a. Aos vinte e três anos, ambicionando uma carreira musical de fato, vai para São Paulo e, logo depois, para o Rio de Ja- neiro, onde logo cai nas graças do imperador, dom Pedro II, que subvenciona seus estudos musicais formais, aqui e, pos- teriormente, em Milão, Itália, onde Gomes vem a ter uma indiscutivelmente triunfante carreira como compositor. Seus indiscutíveis triunfos – afinal, ter óperas apresentadas com sucesso no Teatro Scala não é coisa para qualquer “caipira charlatão”, como Gomes se referia a si mesmo numa fre- quente atitude de autodefesa prévia – foram concomitantes a várias más vicissitudes, conflitos com editores e libretistas, morte de filhos ainda pequenos, seu ânimo bipolar, sua ra- bugice, sua insegurança e o desejo de ser incondicionalmente admirado, sua avaliação paranoide dos próprios reveses, etc., sem que isso (triunfos e más vicissitudes) tenha dado uma configuração trágica à sua trajetória pessoal. Os conflitos que Carlos Gomes enfrentou foram previsíveis e comuns (a pes- soas com sua projeção pública). Suas falas mostradas no li- vro (a quase totalidade transcrições literais de cartas, às quais Rubem Fonseca teve acesso através de colecionadores como Pedro Corrêa do Lago, aliás, seu genro), eram enfáticas e pomposas. Fonseca provavelmente intuiu que tentar recriar ficcionalmente a interioridade de Carlos Gomes, essa figura tão posada, “rígida e hierática como alguém que ouve o Hi- no Nacional”, como diria Nelson Rodrigues, seria inútil. Daí muito provavelmente a escolha que fez por uma forma lite- rária que, à primeira vista, pode parecer uma esdrúxula e va- zia experimentação formal, mas que se revelou perfeita para expressar a superficialidade – sim, superficialidade – de seu biografado. Rubem escolheu escrever a história de Carlos Gomes (que também é a história de outras figuras destacadas do im- pério, como Taunay, André Rebouças, além do próprio im- perador, Pedro II) como se estivesse escrevendo o texto bá- sico para a elaboração de um roteiro cinematográfico. Diz Fonseca, através do narrador em primeira pessoa do livro, que, “Ao contrário de um script, que tem suas rígidas regras de elaboração, o texto básico de um filme pode, deve mes- mo, ser escrito com abundância de informações, dentro de uma estrutura flexível”. O texto de O Selvagem da Ópera, mais do que visual, resulta voyeurístico. Sobre esse ponto em particular Fonseca diz, “Mais do que uma exploração dos poderes da imagem – assim como a literatura é mais do que uma exploração dos poderes da linguagem –, o cinema per- mite ao consumidor, como nenhuma outra arte, saciar seu voyeurismo escopofóbico, ver sem ser visto”. Várias vezes durante essa releitura (não me recordo quando li o livro pela primeira vez), e antes de chegar a essa explanação sobre o voyeurismo cinematográfico, o livro me deu, sim, a sensação de estar espiando uma espécie de Big Brother avant la lettre. Talvez porque, embora insuficiente do ponto de vista dra- mático, Carlos Gomes é uma figura plástica, icônica (que se presta bem a ser retratada em efígie de moeda), portanto fa- cilmente cinematografável. (Cogito que Gomes talvez seja também uma figura – bingo! – operística. Falei lá atrás do meu desinteresse por es- se gênero musical, apesar de a música ter sido meu interesse precípuo da adolescência até mais ou menos quarenta anos. Há uma passagem muito engraçada no livro, citada por Fon- seca a propósito do absurdo esboço do libreto de uma ópera cômica baseada na vida da coquete francesa Ninon de Len- clos, ópera que Carlos Gomes se recusou a escrever, basica- mente por ser muito suscetível à hipótese de não ser levado a sério como artista. Diz Fonseca que perguntaram ao poeta W. H. Auden, que escrevera o libreto para uma ópera de I- gor Stravinsky, se ele não achava que os libretos de ópera costumavam ser insensatos demais. E Auden respondeu que ópera tem mesmo de ser insensata, pois ninguém canta quando está se sentindo sensato.) É indiscutível o interesse histórico de O Selvagem da Ópera, sobretudo ao mostrar as ambiguidades do racismo à brasileira – um país que, ao mesmo tempo em que tinha es- cravos africanos, tinha um negro, o engenheiro André Re- bouças, como uma das figuras mais poderosas e proeminen- tes do império. Carlos Gomes mesmo, mulato (“passou de seis e meia é noite”, etc.), vive lá seus conflitos raciais, de modo pouco conscientizado, alisando o pixaim com ferro quente e não se sentindo nem um pouco ofendido quando alguém lhe diz algo que hoje, 2019, seria tomado como um intolerável insulto racista, como quando o libretista Ghislan- zoni (acho que foi ele) diz, meio a sério, meio de gozação, que Gomes descende de antropófagos (Gomes responde, bem humorado, “Só por parte de mãe”). Uma cena de fato pesada ocorre entre Carlos e sua mulher, a italiana Adelina, que culpa o marido pela morte precoce de vários filhos de- les, dizendo que não importa quantos filhos eles venham a ter, todos vão morrer porque o sangue de Carlos é ruim, “sangue de negro”. (Nelson Rodrigues explora mais ou me- nos esse tema em sua peça Anjo Negro, em que a mulher branca de um casal inter-racial mata afogados no tanque to- dos os filhos que tem com o marido, um “crioulão de ventas triunfais”.) O livro de Fonseca, que, a despeito de sua configuração ficcional, foi baseado em criteriosa pesquisa, corrige vários erros históricos difundidos sobre Carlos Gomes. E, pensan- do aqui na hipótese sobre se o tal texto básico que suposta- mente serviria para um futuro argumento e roteiro de filme poderia gerar um filme interessante, meu palpite (mais do que um palpite, na verdade) é que não. Figurões em geral e músicos em particular raramente são pessoas (personagens, portanto) interessantes. Amadeus, o filme (Milos Forman, USA, 1984), só é tão legal porque, no fundo, não passa de um “desenho animado”, Papa-Léguas Mozart versus Coyote Salieri, sem qualquer veracidade histórica. Ricardo III (figu- rão) só é ótimo porque William Shakespeare inventou estu- pendas mentiras sobre o pobre Richard Gloucester. Etc., etc. Pensando bem, creio que Carlos Gomes já foi cabal e sufici- entemente representado através da talvez única expressão artística condizente com seu caráter solene, hierático, pom- poso, rígido, “cívico” – portanto, com seu caráter empedra- do e imóvel: a estatuária pública. E DO MEIO DO MUNDO PROSTITUTO SÓ AMORES GUARDEI AO MEU CHARUTO (1997)
Sempre gostei de livros narrados por casanovas, sujei-
tos que vivem metidos no meio das pernas de duas ou mais mulheres ao mesmo tempo e que desfiam sua inevitável filo- sofia de alcova. E longe de mim qualquer consideração se- xista, literariamente falando – de bate-pronto, aqui, agora, me vem a esplendorosa imaginação lúbrica de Hilda Hilst em A Obscena Senhora D (o sujeito apelidado miseravelmente pela mulher de Dia Dez, por só copular com ela no dia em que recebia o ordenado, etc.); a hoje esquecida Fernanda Young narra num de seus notáveis romances dos anos 1990, não me lembro qual, uma deslumbrante relação voyeurística envolvendo um cônsul polonês e uma fulana que faz balé, se exercita naquelas barras, etc. Creio, sem dúvida, que uma es- critora de fato “safada” poderia conceber uma personagem como a linda, analfabeta e emocionalmente instável Mary Ja- ne Reed, a.k.a. Macaca, que aterroriza Alexander Portnoy a ponto de ele ir se esconder de seus simiescos assédios e, so- bretudo, reivindicações (“você me transformou numa prosti- tuta!”, etc.) em Israel (Mary Jane ganhou esse apelido por causa do episódio em que decidira comer uma banana en- quanto assistia a um casal de amigos copulando; uma vez, em minha adolescência, eu, Eduardo Haak, estava vendo um filme pornô com um bando de amigos quando decidi comer um pedaço de melancia; os amigos riram muito e me apeli- daram de “Magali”; minha decisão, a despeito do escárnio, “Magali”, etc., me pareceu perfeitamente justa – eu ter deci- dido comer um naco de melancia enquanto a tela mostrava Christy Canyon sendo fodida por Ron Jeremy mostra o quanto eu estava achando erótica essa coisa de ver um filme pornô cercado de marmanjos.) Sim, sim, eu acredito piamente na imaginação fescenina das mulheres. Contudo, pelo sim, pelo não, a Macaca foi in- ventada pelo Philip Roth; assim como foi o Philip Roth quem imaginou o titereiro aposentado Mickey Sabbath indo se masturbar para o túmulo de sua recém-falecida amada- amante Drenka; assim como Fridolin e Albertine, de Breve Romance de Sonho, foram concebidos por Arthur Schnit- zler; assim como Diabo no Corpo foi escrito por Raymond Radiguet; assim como Nelson Rodrigues, cada vírgula; assim como Gustave Flaubert; assim como D. H. Lawrence; assim como Rubem Fonseca, sobretudo através de seus persona- gens Gustavo Flávio, “gordo, mulato e pernóstico” (e capa- do, após a horripilante cena final de Bufo & Spalanzani), e Peter Mandrake. Os dois grandes personagens fesceninos fonsequianos, aliás, aparecem juntos no curto romance, lan- çado por Fonseca em 1997, E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto. A trama, suspense-e-resolução, de E do Meio etc. é simples – Gustavo Flávio começa a receber pelo correio fo- tos de ex-namoradas que logo em seguida aparecem assassi- nadas. O caso é investigado (por Mandrake, que é advogado criminalista, e pelo investigador Raul; embora amigos de longa data, os dois são quase antípodas na presente história). O assassino é descoberto, embora nem tudo concernente ao caso se esclareça com a descoberta; a evidência de que a his- tória por trás dos crimes é um pouco mais complexa acaba ficando por isso mesmo. O livro parece afirmar um princípio de Occam (a resposta mais simples é sempre a verdadeira) meio desconstruído: a resposta mais simples é apenas a apa- ziguadora “certeza” a que nos apegamos para nos distrair- mos da terrível desconfiança de que o universo, no fundo, é infinitamente inescrutável. (Aliás, desconstrução virou uma palavrinha fácil da boca de qualquer ignorante pedante, ago- ra até corte de cabelo vem acompanhado do adjetivo “des- construído”; o sentido original da palavra dizia respeito à ex- plicitação de uma contradição, até então latente, numa afir- mação qualquer; ou seja, desconstrução é malícia e suspicácia adotadas como princípios heurísticos; foi Sigmund Freud quem disseminou essa mania de ler maliciosamente as coisas, já que, como ele mesmo afirmou, só às vezes um charuto é apenas um charuto.) Creio ser razoavelmente certo dizer que E do Meio etc. seja uma dramatização da agnose – a desconfiança quanto ao ser humano ser capaz de conhecer, cabalmente, a verdade. Rubem Fonseca já havia tratado desse problema em A Grande Arte, romance lançado em 1983, de forma bem mais ambiciosa e com um resultado bastante superior. O uso de múltiplos narradores em E do Meio etc., uma técnica “pós- moderna” já meio sovada em 1997, dá o tom de agnose e subjetividade radical ao livro – múltiplos narradores são o must para debilitar a tese de verdades objetivas, já que cada um vê os acontecimentos de um jeito, etc. (Pessoalmente eu detesto o recurso. Nelson Rodrigues escreveu, para mim, sua pior peça, Boca de Ouro, usando essa coisa de múltiplos narradores.) Tudo que é sólido se desmancha no ar de vez porque, ainda por cima, o protagonista da história é Gustavo Flávio, um narrador absolutamente não confiável das pró- prias peripécias (sexuais), um tipo farsesco até a raiz do pixa- im alisado – Gustavo Flávio, o mulato que embranqueceu após ficar famoso (como escritor), o gordo que se tornou delgado, o acanhado sexual que se tornou um casanova ex- tremamente bem sucedido. (Antes de falar sobre casanovas literários, vou cometer uma pequena digressão. Há muitos e muitos anos eu traba- lhei como ghost writer para uma psicóloga que havia desen- volvido uma técnica para tratar pessoas que tinham fobia de dirigir automóveis. Uma das pacientes que entrevistei era uma ex-empregada doméstica que havia ascendido social- mente, etc. Ao que parecia, seu bloqueio psicológico para di- rigir tinha origem na relação traumática que tivera com um ex-patrão, um judeu milionário chamado Chaim. Recém- contratada na mansão de Chaim, a empregada ouvia o patrão ser chamado de Chaim, Chaim, não com a pronúncia hebrai- ca, ráin, mas com o ch com som de x. Então a empregada achou que o nome do patrão era Pixaim e um dia abordou-o, “senhor Pixaim”, etc. Chaim ficou uma onça ao ser chamado daquele modo e respondeu, puxando o cabelo da pobre em- pregada, “Pixaim? Pixaim é seu cabelo! Meu nome é ráin!”.) Casanovas literários, vamos lá. Estou bastante impressionado com a recente leitura que fiz do livro A Arte Sagrada de William Shakespeare, de Mar- tin Lings. Li o livro inteiro e depois, simultaneamente, reli a peça Winter’s Tale e reli o ensaio de Lings sobre essa peça. O livro, a despeito da erudição do autor (e do viés perenialis- ta, claro), é bastante simples – ele analisa as peças maduras de Shakespeare usando um arcabouço teórico oriundo da te- ologia cristã, que depois foi assimilado à literatura por Dante Alighieri. Segundo a exegese bíblica, o texto das Escrituras tem quatro sentidos – o literal, que simplesmente narra os acontecimentos “históricos”; o alegórico, que aponta para aquilo em que o fiel deve crer; o moral, que aponta para o modo como o fiel deve se conduzir, agir, etc.; por fim, o sentido anagógico, que aponta para onde o fiel deve tender, o caminho da salvação e/ou santificação. A adaptação literá- ria disso é simples, bastando substituir “fiel” por “leitor”, “Escrituras” por qualquer texto literário. A partir desse con- ceito dos quatro sentidos Martin Lings concebe que todos heróis shakespearianos das peças maduras são “peregrinos purgatoriais”, homens suspensos entre o céu e o inferno, en- tre a salvação e a danação. Dessa perspectiva, até mesmo o sanguinário e aparentemente niilista príncipe Hamlet revela fortes traços crísticos – o filho que recebe do pai “sobrena- tural” a terrível tarefa de derrotar o usurpador do trono, à custa da própria renúncia a qualquer possibilidade de felici- dade mundana (renúncia essa vivida dramaticamente por Hamlet ao se ver compelido a rejeitar o amor de Ofélia) e à custa do próprio martírio (Hamlet sabe que não sairá vivo de um embate com o usurpador fratricida Cláudio). (Satanás, simbolicamente, é um usurpador, pois por meio do engodo, Eva e a serpente, etc., ele destrona o homem como o sobe- rano desse mundo). E por aí vai. O comissário de polícia Alberto Mattos, protagonista do romance Agosto, talvez seja o grande personagem dramá- tico criado por Rubem Fonseca, do que talvez seja seu gran- de, seu monumental romance. Há na trajetória de Mattos, como na de Hamlet, uma grande e insuspeitada dose de imi- tatio Christi – a renúncia a qualquer possibilidade de felici- dade terrena (seu constante repúdio às ofertas amorosas de Salete tem analogia com a maneira como o príncipe Hamlet trata Ofélia), a compaixão (Mattos sente pena até de Getúlio Vargas, o algoz por trás de uma violência arbitrária sofrida por ele quando estudante), o autossacrifício em nome de um bem superior aos próprios interesses egoístas (a fidelidade à verdade e à justiça, o repúdio à mentira e ao erro; eu digo, no final do ensaio que escrevi sobre Agosto, que o martírio cai bem a Mattos, come sempre cai bem “a qualquer pessoa cujo reino, aparentemente, não pertence a esse mundo”). Agosto tem mesmo algo de “sagrado” e, sem muito esforço, é pos- sível ver em seu texto os sentidos literal, alegórico, moral e anagógico. Já para E do Meio do Mundo Prostituto Só A- mores Guardei ao Meu Charuto, uma história que possivel- mente é uma dramatização da agnose (a impossibilidade do saber), além de poder ser enquadrada também no gênero farsesco, tragicômico (as coisas começam mal e terminam bem, “bem está o que Benfica, ó pá”), esse arcabouço teóri- co não serve muito. Gustavo Flávio é um álazon, um ridícu- lo soldado fanfarrão sempre a jactar-se de suas conquistas amorosas, seu conhecimento sobre charutos e mulheres, sua erudição literária; e o destino fatal do álazon, do soldado fan- farrão, é encontrar-se com o eíron (raiz grega da palavra iro- nia), o sujeito que sempre sabe mais, bem mais do que dá a entender (Mandrake e Raul, no livro) e que mostra ao álazon que este, apesar de sua jactância toda, sempre sabe menos, bem menos do que deveria saber. (Northrop Frye fala bas- tante de eíron e álazon em seu livro Anatomia da Crítica, li- vro no qual ele também recria à sua maneira os quatro senti- dos, literal, alegórico, etc.) A grande tradição da literatura libertina afirmava uma espécie de candura existente na safardanagem; no fundo a- queles atos todos tinham lá sua pureza; seus arautos tinham algo de santos; todo o cinema de Walter Hugo Khouri, por exemplo, com seus escabrosos casais incestuosos (pai e filha, Marcelo e Berenice), pode ser interpretado pela chave da busca da ascese pela via torta da inebriação sensual (incesto, no sentido literal, é, justificadamente, algo escabroso; porém o par Marcelo e Berenice é muito mais simbólico – alegóri- co, moral e anagógico, portanto – do que literal). Khouri era um modernista, alguém afinado com D. H. Lawrence. Já Rubem Fonseca é francamente pós-moderno, ou seja, al- guém dado a desconstruir, a explicitar contradições latentes em verdades aparentemente irretocáveis; o pós-moderno é um tipo que circula por ambiências modernas, só que meio arruinadas, meio esculhambadas (conversava outro dia com um amigo sobre aquele prédio modernista no centro de São Paulo que, abandonado, virou uma “ocupação”, pegou fogo e desabou; falávamos sobre como o episódio era alegórico da falência do ideário moderno, etc.). Gustavo Flávio, narra- dor não muito confiável das próprias estripulias sexuais, filó- sofo de alcova de segunda mão, mostra o quanto Rubem Fonseca, a despeito de seu declarado ateísmo – e a despeito de uma supostamente deliberada suspensão de juízos morais que alguns críticos enxergam em sua literatura –, Gustavo Flávio (além de toda galeria de tipos grotescos presentes na ficção fonsequiana) mostra o quanto Rubem, no fundo, é um autor moralizador. Não há candura ou pureza latente nas “safardanagens” dos libertinos criados por Rubem. Prostitu- tas não são “sacerdotisas” de um suposto “rito sagrado”, como pretendem muitos neopagãos atuais (inspirados por D. H. Lawrence, por exemplo), mas são o que são, banais criaturas submundanas, frequentemente perigosas, etc. Li- bertinos não são criaturas que mergulham no inferno para, em seguida, ascender ao céu, mas tipos bem duvidosos, tipos capazes de largar a mulher que engravidaram em frente à cli- nica de aborto e que sentem vontade de rir assim que a mu- lher, ao descer do carro, pisa em merda de cachorro (resumo do conto O Relatório de Carlos). Por trás de todo libertino criado por Rubem Fonseca ou há alguém risivelmente ingê- nuo, ou há alguém miseravelmente irônico. Salve-se quem puder. MANDRAKE: A BÍBLIA E A BENGALA (2005)
Mandrake: A Bíblia e a Bengala, romance que Rubem
Fonseca lançou em 2005, na verdade é composto por duas novelas, cada uma com mais ou menos cem páginas, que te- nuamente se ligam – uma situação que fica em suspenso na primeira história se resolve na segunda. As duas histórias, embora independentes, são semelhantes: ambas são tramas policiais clássicas (crimes acontecem, crimes são investiga- dos, criminosos são descobertos e punidos, ou seja, hybris, hamartia e nemesis), ambas exploram o fetiche pelo objeto único ou raro (um incunábulo impresso no século XV por Gutenberg, uma bengala Swaine), em ambas Rubem Fonseca se autoparodia como em nenhum outro livro de Rubem Fonseca. Sim, A Bíblia e a Bengala é um compêndio exagerado, caricatural portanto, de personagens e situações tipicamente fonsequianas: um anão delinquente (de nome Waise – órfão, em alemão –, filho de um monge com uma freira), o caráter salomônico (setecentas esposas, trezentas concubinas) de Pe- ter Mandrake, os charutos comburidos, o legista sádico e sempre exibicionista de sua perícia como autopsiador; há menção a Michel Zevaco, um francês autor de folhetins de onde se originou o termo rocambolesco para uma trama com peripécias exageradas (Rocambole era um personagem de Zevaco); Michel Zevaco, a darmos crédito ao livro José como sendo de fato uma autobiografia publicada por Fonse- ca em 2011, foi seu primeiro ídolo literário; é curioso como Nelson Rodrigues e Rubem Fonseca têm influências seme- lhantes – Michel Zevaco (Nelson até cunhou a expressão “chapelão de Michel Zevaco”), Ponson du Terrail (outro fo- lhetinista francês), ópera, apesar de não só não haver ne- nhuma continuidade entre os dois autores como Rubem Fonseca, na única menção que faz a Nelson Rodrigues (num de seus contos, não me lembro agora qual), diz pela boca de um personagem que já está mais do que na hora de o teatro brasileiro sair do “subúrbio sórdido do Nelson Rodrigues”. Quem conhece Mandrake de outros carnavais se de- cepcionará um pouco com um certo afrouxamento moral do personagem em A Bíblia e a Bengala; suas mulheres funda- mentais sempre se caracterizaram por uma boa índole (Berta Bronstein, Ada, Bebel Leitão, etc.), e agora vemos Mandrake com a cabeça completamente virada por uma fulana de índo- le bem duvidosa chamada Karin Altolaguirre; e cheio de condescendências para com uma falsa condessa, uma perua italiana sessentona bem chegada num trambique; e uma ou- tra, que além de trair o marido com Mandrake, também o traía fazendo ménage bissexual com uma amiga e um surfis- ta, surfista que fornecia cocaína para ela, surfista para quem essa fulana faz uma proposta das mais escabrosas, etc. Ne- nhuma mulher, realmente, se safa aqui; a empregada domés- tica de Mandrake, que tem a humilde ambição de ter uma ca- sinha no subúrbio com um pezinho de manga, acaba reve- lando ser uma pessoa venal (ambição é ambição, não impor- ta que modesta); há uma oligofrênica que atropelou e matou um pedestre por estar dirigindo e falando no celular; há uma bibliotecária velhusca, uma patética e histérica virgem louca que é facilmente convencida a cometer um crime por um su- jeitinho que lhe faz inéditas promessas de amor, casamento, lua-de-mel em Paris, etc.; numa trama secundária de uma das novelas, Mandrake e o sócio Weksler (ex-Wexler) interme- deiam um caso de extorsão protagonizado por uma vigaristi- nha com piercing na língua e tatuagem no cóccix disposta a acusar (injustamente) de estupro um figurão. John Lennon disse numa de suas canções que a mulher é o crioulo do mundo, woman is the nigger of the world; Fonseca parece dizer em A Bíblia e a Bengala que a mulher é o esgoto do mundo, a origem da corrupção do homem, etc. (Walter Franco afirma, numa de suas poucas músicas realmente bo- as, que a mulher é a senha do motim.) Já os homens fundamentais nas duas novelas, por sua vez, são justos e íntegros (a relativa “queda” de Mandrake pode ser atribuída a um temporário “feitiço de Circe”); We- xler (prefiro a grafia com x), um velho judeu com a severida- de moral de Moisés ao repudiar a demagogia de Aarão e sua complacência com a idolatria, usa a palavra alemã schaden- freude, alegria com o infortúnio do próximo, para definir o esgoto em que o mundo se transformou (ou que sempre foi, embora velhos ranzinzas tendam a ser mais implicantes com o tempo presente); diz Wexler que só o idioma alemão tem palavras capazes de expressar adequadamente certas desgra- ças (Wexler perdeu os pais no holocausto nazista, etc.) (We- xler encontrou a palavra schadenfreude para expressar seu desencanto com a humanidade; Moisés, ao final da ópera de Arnold Schoenberg, Moses und Aron, confessa, impotente, “ah... a palavra que me falta...”.) Raul, velho amigo de Man- drake, policial que trabalha na investigação de homicídios, é um demônio acusador, um escrutinador severo que busca nossas culpas recônditas e nos conduz, por fim, à expiação; em seus traços mais amenos, o honesto Raul cria rãs e na- mora uma loura robusta com olhos bonitos (definição de Mandrake). Falei lá atrás em trama policial clássica e mencionei i- mediatamente hybris, hamartia e nemesis, arrogância, erro trágico e punição, o trio parada dura que tem levado homens e mulheres a entrarem pelo cano desde a Grécia Antiga. Tal- vez o prazer proporcionado por esse tipo de trama tenha al- go a ver com a recolocação do mundo nos eixos, com a res- tauração do equilíbrio cósmico, além, é claro, de ter a ver com o esclarecimento daquilo que é aparentemente incom- preensível, com a solução de enigmas, etc. (o homem, essa criatura tão cercada por mistérios esmagadores, tem mesmo uma carência insaciável por esclarecimentos, ainda que fic- cionais, “de mentirinha”). Mas nós, admiradores do Rubem Fonseca, sabemos que além disso tudo também encontrare- mos nesse autor uma abundante fonte que saciará nosso apetite pelo grotesco e pelo esdrúxulo; se Alberto Mattos de Agosto é sem dúvida seu maior personagem dramático, to- cante mesmo, com algo de imitatio Christi, o anão José Zak- kai, a.k.a. Nariz de Ferro, de A Grande Arte, é sem dúvida o personagem mais impressionante de Rubem Fonseca, um demônio caricatural que recria o mundo à imagem e seme- lhança de suas próprias deformidades. O sociólogo francês Jean Baudrillard falou uma vez que a publicidade comercial a partir dos anos 1970 adotou a estratégia da concupiscência, da violação e do mal-estar (aliás, o livro em que ele afirmou isso tem o elucidativo título de A Transparência do Mal – Análise Sobre Fenômenos Extremos). Segundo Baudrillard, por alguma razão misteriosa (que ele identifica de alguma forma com o esgotamento do ideário moderno e com a tran- sição para a tal da “pós-modernidade”), nossos gostos eleti- vos e nossas pulsões cederam lugar à nossa permanente re- pulsa diante de tudo. O.k., o.k., eu só acho que o pendor pa- ra o grotesco e o gosto pelo “mundo cão” existem desde que o mundo é mundo, não tendo necessariamente algo a ver com modernidade/pós-modernidade. O Inferno de Dante Alighieri, com seus gulosos afundados até a cintura numa lama fétida, etc., etc., é “mundo cão” ao extremo. Medeia, a mãe que mata os filhos para punir marido infiel, idem. O a- não fonsequiano José Zakkai enfiando uma barata viva na boca de um desafeto podia perfeitamente ser um persona- gem dantesco, empregando exatamente esse castigo contra, sei lá, as almas dos que foram condenados ao inferno por te- rem mentido muito quando vivos. Arrisco aqui uma afirma- ção “peripatética”: é próprio do homem apreciar o horror exposto de forma transparente porque é próprio do homem o prazer de saber, seja lá o que for. E também não podemos nos esquecer de que o horror, quando passa de uma certa medida, se torna caricatural, portanto cômico; o demoníaco José Zakkai é muito engraçado, no final das contas; Rubem Fonseca não costuma muito ser definido como um mestre do humor negro, mas em grande medida ele é isso; assim como Dante Alighieri talvez possa ser definido assim em sua commedia, assim como Eurípedes e sua Medeia infanticida, assim como Dostoievski (confesso que acabei rindo muito naquela cena terrível de Crime e Castigo em que a madrasta da Sônia, depois de ser despejada do apartamento, etc., im- provisa com os filhos pequenos um desesperado show mambembe pelas ruas de São Petersburgo; pra mim é inegá- vel que aquilo tem uma dimensão cômica). O judeu Wexler (sempre me lembro do grande, do i- nolvidável Luís Carlos Miele no papel de Wexler na fracas- sada série Mandrake, feita pela HBO em 2005) apegou-se à palavra schadenfreude, a abominável tendência do homem a alegrar-se com a desgraça alheia, para definir o mundo mo- ralmente pútrido de A Bíblia e a Bengala. Mas o juiz severo (e sábio) sabe que seu oposto complementar é um moishe pipik, um bufão (Wexler sempre levou numa boa as goza- ções de seu querido amigo Peter Mandrake, “Vou ler o Pro- tocolo dos Sábios do Sião pra ver se curo essa ressaca, We- xler”, etc.). A feia e mesquinha schadenfreude, alegria com o infortúnio do próximo, sem dúvida tem um insuspeitado pa- rentesco com a bela e generosa capacidade que temos para rir dos infortúnios todos – dos nossos e dos alheios. Ainda bem pra todos nós. DIÁRIO DE UM FESCENINO (2003)
Ao escrever um e-mail a um amigo (sou um homem do
século XX, ainda uso e-mail) a propósito desses breves en- saios sobre os romances de Rubem Fonseca, arrisquei a ex- plicação: venho-os escrevendo numa tentativa de me apossar conscientemente da influência desse autor, uma influência imensa (Fonseca foi o autor que mais li, e reli, e reli, de 1996 para cá), embora, até aqui, essa influência tenha permanecido difusa. Depois de afirmar isso, parei para pensar na palavra apossar. Apossar, posse, possessividade, ciúme, pretensão à exclusividade relacional, etc. Ora-veja: embora eu não seja ciumento no âmbito amoroso, percebo que o sou como lei- tor de meus (pouquíssimos) autores preferidos e como frui- dor de arte em geral. No fundo tenho a convicção de que apenas eu de fato conheço, de que apenas eu entendi plena- mente esse pequeno punhado de artistas que cultuo – e que apenas eu, portanto, estou habilitado a pronunciar sentenças sobre eles. (Embora essa afirmação soe um pouco como as coisas que o Nietzsche doidão disse em Ecce Homo, soe como uma arrogância desvairada minha, o fato é que apenas eu, realmente, estou habilitado a dizer coisas sobre minha experiência, pessoal e intransferível, como leitor de Rubem Fonseca.) Diário de um Fescenino, romance que Rubem lançou em 2003, usa a forma literária diário para narrar uma aventu- ra em que o escritor Rufus acabou se metendo, impulsiona- do por seu furor gonádico – envolver-se sexualmente ao mesmo tempo com duas irmãs, Virna e Clorinda (“Clorinda? Isso é nome de mulatinha”, diz sua despeitada amante ante- rior, a então já quase chutada pra córner Lucia), sendo que Virna na verdade é mãe de Clorinda (Virna ficou grávida na adolescência e os pais acharam melhor registrar Clorinda como filha deles); ser posteriormente acusado de estupro por Virna, quando ele enfim confessa estar amando as duas irmãs, ou melhor, mãe e filha (a denúncia de Virna parece verossímil; ela tem prazer sexual ao ser espancada e sempre pede que Rufus lhe bata na cama, então ela tem mesmo um monte de hematomas, marcas de mordidas, etc., quando vai fazer o exame de corpo de delito). Tudo o mais no livro são anotações, citações, esboços de reflexões, algumas interes- santes, a maior parte meros testemunhos do ramerrão coti- diano do qual ninguém consegue escapar, enredados que somos na inexorável sucessão de segundas, terças, quartas- feiras, etc. Numa anotação particularmente interessante, da- tada de 05 de setembro, lemos, “Barthes diz que o que o diá- rio postula não é a trágica pergunta do louco, ‘Quem sou eu?’, mas a cômica pergunta do desnorteado, ‘Sou?’”. No mais, as entradas no diário de Rufus nos informam coisas como suas dimensões fálicas (ele usa camisinhas que medem 186 mm de comprimento por 55 mm de largura); vemos Ru- fus expressando sua inquietação com o fato de que a maior parte dos leitores de literatura sofra da Síndrome de Zuc- kerman (relativo ao personagem Nathan Zuckerman, de Phi- lip Roth), ou seja, atribuem ao autor opiniões e comporta- mentos que são apenas do personagem (a suspeita é de que leitores no fundo sejam bestalhões iguais aos bestalhões que passam o dia vendo TV); lemos sinopses do bildungsroman, romance de formação, que Rufus alegadamente vem tentan- do escrever; lemos comparações entre suas amantes simultâ- neas do momento – que a voz de fulana é límpida e que seus gemidos têm uma leveza colorida, que a voz de sicrana é turva e que seus gemidos são cheios de sombras, que essa dissimilitude entre as duas é bem-vinda, etc. Raramente artistas falando sobre seu trabalho dizem coisas interessantes. E os mais desinteressantes são os artis- tas bem-sucedidos, pois tudo o que eles falam sempre soa como se estivessem pagando de gostosões. Eventualmente, ao observar um figurão, consigo perceber a vacuidade e a banalidade que há por trás dessas presenças constituídas, fundamentalmente, de uma continuada e avassaladora expo- sição midiática. Muito possivelmente Rubem Fonseca deci- diu ser um preservador intransigente da própria privacidade (não dá entrevistas, evita ser fotografado, etc.) para não cair nessa coisa absolutamente farsesca que é intrínseca ao papel do sujeito célebre. Seus personagens mais frequentes (e mais encantadores) por certo refletem esse seu valor, esse seu não deslumbramento com o grand monde: são anônimos e mo- destos policiais, cruciverbalistas (sujeito que monta palavras cruzadas), ventanistas, advogados, matadores de aluguel, al- guns escritores fracassados (o melhor provavelmente é o do conto A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro, que en- sina prostitutas analfabetas a ler), arremessadores de anões, etc. Rufus, apesar de ser um figurão, adquire sua dignidade dramática ao confessar-se não um canalha, mas um autor pleno de suas condutas discutíveis no âmbito amoroso; e ao expor-se como um desmistificar dessa coisa de escrever fic- ção. Em última análise, o que o “salva” (e o que verdadeira- mente o conecta a nós, leitores) é o ato de confessar-se; não importa que, sendo agnóstico, ele faça suas confissões para a única instância superior concebível para ele – ele mesmo (creio que mesmo na confissão católica, em que o fiel con- fessa seus pecados a Deus, haja um forte elemento de “con- fissão a si mesmo”; talvez porque a participação de Deus nisso se limite a Ele ser testemunha desse nosso esforço de sermos sinceros; no mais, talvez o único arrependimento de fato concebível para nós seja a lucidez incontornável que podemos adquirir a respeito das reais motivações que exis- tem por trás de nossos atos). A “absolvição” de Rufus se consuma plenamente para nós, seus semelhantes, ao o compreendermos como o autor pleno (e confesso) das próprias condutas; a absolvição, aliás, é um desfecho clássico da história que termina bem (toda história que termina bem termina em algum rito de integra- ção – casamento, perdão, reencontro com um bem que se supunha definitivamente perdido, etc.). Já a absolvição de fato de Rufus (lembremo-nos de que ele está às voltas com uma acusação grave, uma acusação falsa, mas aparentemente consistente, de estupro) dependerá mais de uma justiça poé- tica do que de qualquer procedimento jurídico corriqueiro. Mas mesmo que ele não consiga vir a se safar da sanha vin- gativa de uma ex-amante (o céu não conhece fúria maior que a da mulher humilhada no amor), nada que advir disso será de fato crucial. Para nós – e isso é o que verdadeiramente importa –, Rufus já está mais do que absolvido. O SEMINARISTA (2009)
Há alguns anos esbocei uma teoria (para uso próprio:
jamais tive a menor vontade de ser crítico de literatura) que dividia os personagens literários em sentenciadores e fasci- nadores. Percebi, na ocasião, que todas ações dramáticas (a- tos humanos que geram reações) se relacionavam necessari- amente com violações, de leis, de tabus, de mandamentos divinos, ou seja, roubar, matar, cometer adultério, etc. (dizia Nelson Rodrigues que a adúltera e o suicida eram os grandes sentenciadores sobre as questões cruciais do ser humano). Mesmo um personagem como o cômico (pela desarticulação e pela fascinante espontaneidade) Holden Caulfield, do J. D. Salinger, no fundo é um sentenciador – sua simples presença e suas simples enunciações querem dizer, sempre, que o homem maduro é um farsante, um rei que necessariamente está nu; e sem dúvida que Holden é um violador, ao colocar em dúvida um valor caro à ordem social estabelecida, a su- posta respeitabilidade e maturidade dos adultos (aos quaren- ta e oito anos consigo ver nosso velho Holden como o que de fato ele é – um sentenciador sui generis, um bobo da cor- te, um sujeito de quem se espera, e só se espera, que diga o desconcertante consentido). Rubem Fonseca dá voz a outro tipo de sentenciador sui generis em seu romance de 2009, O Seminarista. Chamado eufemisticamente de Especialista (seu patrão é o Despachan- te), trata-se de um matador profissional, que apareceu em vá- rios contos publicados pelo autor nessas duas primeiras dé- cadas do século XXI. Assassinos não são exatamente uma novidade na ficção fonsequiana; mas há uma diferença nítida entre seus assassinos mais antigos (geralmente motivados por ódio social, ressentimento, vingança) e os mais recentes, em geral motivados por misantropia pura e simples (o fastio com o próximo, esse eterno atravancador do nosso espaço vital) e, até mesmo, misericórdia (como no Conto de Amor, em que um pai explode com uma bomba o filho deficiente por – não há muita dúvida quanto a isso – amá-lo demais). O matador de aluguel, José, vulgo Especialista, ex- seminarista, etc., não parece ter outra motivação para matar além de isso ser um trabalho bem pago e para o qual ele tem verdadeira vocação (matar, para ele, não é algo problemático, como seria para 99% de nós). Ele até emprega justificativas moralizantes para o que faz, “todas pessoas que eu mato não prestam”, mas não ouvimos a palavra “bingo!” dentro de nossa cabeça quando ele diz isso – intuímos que essa racio- nalização não nos revela nada acerca da verdadeira realidade de José; no mais, o fascínio com sua “frieza” e “psicopatia” não seria suficiente para manter aceso nosso interesse por suas condutas. O caráter sui generis de José tem, sem dúvi- da, outra “etiologia”. Vamos tentar esclarecer isso. Em que pese nosso horror com a ideia do homicídio, matar, ao que parece, foi uma ação corriqueira e não especi- almente desencadeadora de remorsos ou sanções para nos- sos antepassados. Édipo mata o pai (sem o saber), Laio, co- mo quem esmaga uma barata com o pé (o incesto é infini- tamente mais desgraçante que o assassinato no mundo de Sófocles); Medeia não hesita em matar os próprios filhos pa- ra punir o marido infiel; a bíblia é repleta de assassinos “im- punes” – Moisés (que mata o tal egípcio), Sansão (que mata mil homens com a queixada de um jumento), Caim, etc.; em Shakespeare o assassinato só é reprovado quando motivado por cobiça, perfídia ou injustiça; no mais das vezes, é um le- gítimo e justo ato reparador (Tito Andrônico degola os dois rapazes que estupraram e deceparam a língua e as mãos de sua filha e os serve assados para que a mãe deles – sem o sa- ber – os coma). Só a partir de Dostoievski é que parece que o homem começa a hesitar em agir como um sentenciador desse tipo. No entanto, o universo ficcional de Dostoievski, emi- nentemente psicológico, é muito distinto do de Rubem Fon- seca. E o que admiramos como leitores num e noutro autor é, naturalmente, muito diverso. A literatura moderna, aliás, tem os mais variados escopos para colocar assassinos em ce- na; Dostoievski trata da culpa, arrependimento, perdão e a salvação da alma do assassino Raskolnikov; em O Estrangei- ro, de Albert Camus, a discussão central (enfadonha, aliás) é se o estado tem direito de matar (pena de morte) o misan- tropo e assassino Meursault; A Sangue Frio, de Truman Ca- pote, mostra a vacuidade boçal dos assassinos da família do fazendeiro Herb Clutter; Flannery O’Connor em Um Ho- mem Bom é Difícil de Encontrar mostra a credulidade sonsa (e trágica) de uma velhota que acredita na bondade infinita do homem, o que a impede de ver um assassino como aquilo que ele realmente é; mais próximo da concepção ficcional de Rubem Fonseca sobre o homicídio está Bret Easton Ellis em Psicopata Americano, uma concepção meio “limito-me a mostrar os fatos, já que os fatos falam por si”. Claro que essa coisa de “os fatos falam por si” levou muito intérpretes a explicações insulsas para o livro de Ellis, como a de que o livro era uma alegoria da “desumanização” promovida pelo yuppismo dos anos 1980 (assim como pululam explicações insulsas para as páginas mais brutais de Rubem Fonseca, a- quela papo-furado de que a ficção de Fonseca é um teste- munho da brutalização da sociedade brasileira promovida pela ditadura militar de 1964, que antes disso éramos o para- íso da brejeirice, etc.). Ellis e Fonseca como ficcionistas ten- dem ao descritivo minucioso e perfeitamente objetivo dos atos atrozes. Há, sem dúvida, nessa exposição objetiva do macabro um ensaio sobre certas possibilidades que o real pode nos oferecer, “tais coisas são possíveis, não duvidem de que há semelhantes (!) nossos que têm estômago para tanto”. Mas há algo além nessa exposição crua da violência, e algo bem mais importante e bem mais expressivo do que o mero tratamento ficcional verossímil da tendência que certos homens, em certas circunstâncias, têm para o comportamen- to bestial (e muito, muito mais importante do que discussões manjadas e furadas do tipo “a desigualdade social como cau- sa da violência”, etc.) – o que as páginas mais atrozes de Fonseca (e de Ellis) afirmam é que o mal não é algo relativo, tampouco uma abstração, mas sim algo tangível e objetivo, um espírito de destruição, desagregação e discórdia que sempre se manifesta concretamente na realidade, ainda que sua raiz provavelmente tenha origem metafísica. E, sendo de origem metafísica, o modo mais adequado para expressar es- se “espírito” é a narrativa mítica. Aparentemente, o grande engenho, a grande sacada es- tilística de Rubem Fonseca em sua fase tardia (nos contos protagonizados pelo Especialista, por exemplo, assim como em O Seminarista, embora o romance seja inferior aos con- tos) foi desdramatizar o homicídio, tratá-lo como um ato tão sem consequências (jurídicas, morais, etc.) quanto atravessar uma rua ou cortar as unhas dos pés. De certa forma, Fonse- ca restaura o ethos “grego”, “bíblico” e “shakespeariano” a respeito do ato de matar; sem dúvida ele faz nesses trabalhos um interessante emprego do anacronismo (colocar numa história cheia de referências atuais uma ética arcaica); mas talvez o que Rubem Fonseca faça nesses trabalhos seja mais do que um mero emprego interessante (e desconcertante) do anacronismo, seja na verdade a concepção de narrativas ver- dadeiramente míticas, arquetípicas. (Não tenho como não pensar na palavra mítico ao evocar um de seus mais impres- sionantes contos recentes, do livro Amálgama, de 2013, que narra a história da favelada que rouba o bebê que a filha aca- bou de ter para vendê-lo, mas que ao ver que o bebê nasceu sem um braço e sem uma perna joga-o numa lixeira porque “ninguém iria querer comprar aquilo”.) Tais peças ficcionais “míticas” do período maduro, tar- dio, da produção de Rubem Fonseca têm normalmente uma atmosfera abstrata e vagamente irreal (há antecedentes na produção de Fonseca, como o conto Passeio Noturno, de 1975, do sujeito que sai por aí de carro atropelando mulheres para descarregar as tensões do dia-a-dia, mas o gênero mítico predomina de fato em sua fase mais recente); seus protago- nistas podem ser chamados personagens irônicos, de acordo com a tipologia de Northrop Frye, tipos que tendem ao gro- tesco e em quem contemplamos (e admiramos) a sub- humanidade (Frye assinala que o personagem irônico, o mais baixo de sua tipologia, paradoxalmente tem grande afinidade com o personagem mais elevado, o mítico, em geral um deus, imortal e soberano). O resultado dessa revitalização de arquétipos feita por Fonseca é fabuloso, e atentemos aqui para a polissemia da palavra fabuloso, que significa tanto fá- bula, narrativa alegórica (mítica, portanto), quanto grandioso, admirável, esplêndido. Ainda que o romance O Seminarista não seja o melhor exemplo desse esplendor, é um curioso exemplo do que para mim é a grande fase de Rubem Fonse- ca, uma fase cheia de trabalhos que evidenciam a consuma- ção plena de seu talento (todos os livros de contos lançados por ele entre 2001 e 2013 são rigorosamente primorosos), uma fase que seus comentaristas mais frequentes ainda insis- tem, não sei por que, em depreciar. ROMANCE NEGRO E OUTRAS HISTÓRIAS (1992)
Romance Negro e Outras Histórias, volume de contos
que Rubem Fonseca lançou em 1992, é o mais casto de seus livros. Epifânio/Augusto, o peripatético protagonista do conto A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro, leva prostitutas desdentadas e analfabetas para casa para, apenas, ensiná-las a ler; ao servir-se de banheiros públicos em suas deambulações (“solvitur ambulando”, etc.), usa o cotovelo para abrir as portas, tamanho é seu pavor de doenças sexu- almente transmissíveis; o conto Olhar talvez mostre apenas como um sujeito pode deslocar sua exuberante imaginação luxuriosa (e sua capacidade simbolizadora) do sexo para a comida (aliás, frequentemente me ocorre que essa moda in- sulsa de programas de TV como Master Chef e esse hype da cultura gastronômica – pega bem homem que sabe cozinhar, etc. – tem uma óbvia relação com a incapacidade sexual da maioria das pessoas; a gula, em sua simploriedade (e, com- plementarmente, em sua sofisticação sempre afetada), é a concupiscência dos medíocres; O Livro de Panegíricos mos- tra um homem entrevado que, dentre outras coisas, não tem como não contemplar ironicamente seus antigos furores li- bidinais (esse personagem, o ex-homem galante observado em sua senilidade degradada, é frequente na ficção fonsequi- ana e parece ter raiz autobiográfica, sendo o pai de Rubem o modelo desse personagem); o triângulo amoroso de A Santa de Schönberg (um dos piores contos já escritos por Rubem Fonseca, forçadamente obscuro, pseudokafkiano, etc.) tem sua culminância erótica no incerto desejo que o personagem Roberto tem de lamber os dentes da personagem Marie (u- ma parte dura, hirta, insensível a carícias – e virtualmente pouco contaminada de seu corpo); a relação do protagonista de Romance Negro com sua mulher, no fundo uma relação vingativa, também é rígida, hirsuta, fixada na ambígua admi- ração fetichista que ele tem pela ossatura dela; em Labaredas nas Trevas vemos como a verdadeira volúpia do escritor Jo- seph Conrad era centrada em sua vaidade literária e no ódio rancoroso que devotava ao também escritor Stephen Crane; A Recusa dos Carniceiros nos dá informações históricas cu- riosas, e só – somos informados de que lá por 1830 havia no império brasileiro uma lei que obrigava açougueiros a de- sempenhar a função de carrascos em execuções públicas, na falta de um carrasco, e que os açougueiros estavam revolta- dos, se recusando a desempenhar o papel, etc. Uma castidade profilática, triste, mesquinha, sem um pingo de “virtude” (Agostinho de Hipona articula muito bem castidade e virtude, por exemplo, como o drama das paixões desordenadas que pode nos acometer) perpassa esse de livro de Fonseca. Talvez essa “castidade” seja um reflexo de como a epidemia de aids afetou a imaginação das pessoas naquele tempo (em 1992 a soropositividade ainda era uma sentença de morte a curto prazo); afinal, não é nem um pou- co irrelevante o impacto sobre o imaginário causado pela de- sestabilização da dimensão simbólica do sexo que essa epi- demia trouxe (um símbolo natural de vida, pulsão, expansão, euforia, etc., tornar-se um símbolo de morte, agonia, constri- ção, pavor). Talvez, concomitante a isso, o desconstrucio- nismo e o “pós-modernismo” tivessem entrado fundo de- mais na cabeça das pessoas na década anterior, anos 1980 (aquele papo de que um texto não se refere a nada fora dele, ou seja, tudo aquilo que dizemos não tem qualquer relação com qualquer realidade objetiva, ou seja, podemos pensar o que quisermos sobre o que quer que seja, ou seja, todas nos- sas tentativas de representação e simbolização são duvidosas, senão completamente inúteis). Falando em símbolo (especificamente, em símbolos de- sestabilizados), creio que, no fundo (ou seja, inconsciente- mente), esses personagens infelizes todos de Romance Ne- gro e Outras Histórias estejam vivenciando o drama da difi- culdade (ou incapacidade) de estabelecer relações simbólicas possíveis, verossímeis, prováveis ou até mesmo certas com o mundo; o que mais próximo chega de entender o próprio drama (sendo, por isso, de longe o melhor personagem dra- mático do livro) é o pastor Raimundo, de A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro; sem entender propriamente o que se passa consigo, emprega com sinceridade todo esforço cognitivo de que é capaz para tentar esclarecer os sinais con- fusos (e, aparentemente, ameaçadores) que as circunstâncias lhe impõe; ainda que falhe na interpretação (ou seja, na sim- bolização dos tais sinais) e termine “devorado” pela esfinge indecifrada, seu desfecho trágico é digno, pleno, completo, não ambíguo. Eu não incluiria nenhum conto de Romance Negro e Outras Histórias num the best of Rubem Fonseca. A história do pastor Raimundo é boa, mas o conto A Arte de Andar etc. é sobrecarregado demais com as divagações peripatéticas do protagonista Augusto/Epifânio. Vários dos contos do livro tem uma voz meio artificial, em que não se reconhece muito como sendo a voz de Rubem Fonseca; a ambientação internacional de alguns contos revela o quanto a cor local (carioca, brasileira) é importante (diria que fundamental) na ficção fonsequiana. Embora estivesse sem lançar livros de contos desde 1979, quando publicou O Cobrador, não ouso dizer que Rubem houvesse momentaneamente perdido a mão para o gênero; creio que, como autor, resolveu assumir o risco de buscar um caminho novo para sua ficção e, se mais errou do que acertou em Romance Negro etc., ele foi acertando mais (e cada vez mais) nos outros livros de contos que lançou nos anos 1990 (Buraco na Parede, Histórias de Amor e Confraria dos Espadas); digo acertando no sentido de ir dominando, até dominar magnificamente, o estilo esca- tológico, grotesco, meio rabelaisiano que caracterizou boa parte de sua produção entre 2001 e 2013, um estilo que já se encontrava embrionário no conto Olhar (de Romance Ne- gro) e que vemos plenamente manifesto no conto como Vi- agem de Núpcias, lançado cinco anos depois. Para mim, pela grande quantidade de contos excepcionais dados à luz, a fase entre 2001 e 2013 representa o verdadeiro momento de ex- celência e maturidade artística de Rubem Fonseca. Falarei mais detidamente sobre isso quando analisar os livros do pe- ríodo. O COBRADOR (1979)
Creio que qualquer pessoa razoavelmente sensível, inte-
ligente, etc., já se perguntou, que merda que eu estou fazen- do nessa merda de planeta? A revolta com a precariedade, com a insuficiência, com a falibilidade, com a brutalidade, com a feiura, com o nonsense do mundo é um estado de â- nimo a que o homem sempre está, com razoável justeza, bastante predisposto. E isso, provavelmente, desde sempre. O Livro de Jó , escrito no século VI a.C., talvez seja o pri- meiro relato que dramatizou essa tenebrosa vivência dos in- fortúnios terrestres; sem dúvida é o livro bíblico que lemos com mais interesse, porque todos sabemos que somos can- didatos a Jós, porque o drama dele está realmente próximo do nosso; no texto Deus diz ao pobre Jó, então já reduzido a um farrapo humano, que ele tanto seria incompetente para subjugar Behemot (o monstro da obediência cega às leis mundanas, ao peso maciço de necessidades naturais, etc.) quanto seria incompetente para prender com um anzol a lín- gua do monstro Leviatã (traduzindo a alegoria: nossa mente tem uma infraestrutura monstruosa e demoníaca, verdadeira planta baixa de nosso espírito de rebelião, infraestrutura essa manifestada em nossa linguagem e seus vitupérios, blasfê- mias, cizânias, etc.). Deus diz, em suma, que só Ele pode subjugar essas forças incomensuravelmente superiores às forças de um mero mortal (Jó, eu, você). O problema nosso é que, na aparente ausência de Deus (Woody Allen tem ótimas piadas a esse respeito, “Como vou saber se Deus existe? Se ao menos ele tossisse às vezes...”), temos de lidar sozinhos com os monstros Behemot e Levia- tã. O Cobrador, livro de contos que Rubem Fonseca lançou em 1979, narra fundamentalmente o drama de um bando de Jós tentando enfrentar monstros de estatura bíblica (bíbli- cammm, como diria o Lobão) num mundo sem Deus; o au- todenominnadO Cobrador, protagonista do conto homôni- mo, saí por aí matando e degolando voluptuosamente as pessoas que julga serem as responsáveis por sua miséria e to- tal malogro existencial; em Onze de Maio três idosos se a- motinam no asilo em que foram depositados, sequestram o diretor, saqueiam a geladeira, então ocorre a um deles estu- prar a companhia feminina do tal diretor, um gordo a quem um dos amotinados chama insultuosamente de Edmundo, o imundo; porém, o velho que havia cogitado o estupro hesita em consumá-lo (muito senil para executar competentemente um introductio penis intra vas?) e tem um momento de luci- dez seguida de uma reflexão muito veraz sobre o ethos revo- lucionário: sim, o que fazer depois de tomar a Bastilha? Tu- do isso apenas para saquearmos uma geladeira e nos empan- turrarmos de cerveja e presunto?; em Almoço na Serra no Domingo de Carnaval o namorado empobrecido (e social- mente muito ressentido) de uma menina rica, uma burguesi- nha fútil, a estupra (sodomiza, aparentemente) para puni-la pela morte de seu ex-lagarto de estimação; os outros contos do livro não tratam propriamente de conflitos de classe; Pi- errô da Caverna, uma obra prima de Rubem Fonseca, escrita num único parágrafo que dura catorze páginas, trata da rela- ção amorosa (plenamente consumada) de um escritor coroa com uma menina de doze anos, “onde foi que ela adquiriu essa sabedoria selvagem toda?”, se pergunta ele, perplexo an- te as selvagens sabedorias da menina que usa uma perturba- dora pulseirinha de ouro num dos tornozelos; Encontro no Amazonas, não sei se obra prima, mas um conto excelente, é uma história meio capitão Willard indo rio adentro no encal- ço do coronel Kurtz; Mandrake, uma boa história típica do advogado criminalista Paulo Mendes, vulgo Mandrake – mu- lheres, charutos, o sócio Wexler, algum burguês canalha sen- do achacado por algum lúmpen escroto, etc.; A Caminho de Assunção é um conto curto e contundente (general Osório com o queixo estraçalhado por uma bala tentando com difi- culdade falar às tropas), talvez inspirado nos contos de A Cavalaria Vermelha, de Isaac Babel; Livro de Ocorrências, também um conto curto, uma deliciosa (para quem gosta) peça de humor negro; O Jogo do Morto, um conto médio sobre comerciantes da Baixada Fluminense que têm o hábito de fazer apostas cafajestes sobre quantas pessoas o Esqua- drão da Morte matará num determinado período de tempo; por fim, H.M.S. Cormorant em Paranaguá, um conto esqui- sito (ruim, na verdade) protagonizado pelo poeta Álvares de Azevedo, que, além de declamar coisas como e do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto!, vive se travestindo, conversando com o fantasma de Lord Byron até que, por fim, consuma um amor proibido, incestuoso, com a irmã (talvez tudo seja apenas um delírio do poeta, que ao final do texto já está tomado pela apneia pré-agônica, tu- berculose, etc.). Ainda que apenas três contos de O Cobrador tratem explicitamente de conflitos com teor social (os três na ver- dade são quase conclames à ação revolucionária), o livro, quando evocado, tem mesmo um clima bem enragé; talvez porque as imagens de assassinato, esquartejamento, degola- ção, estupro, etc., do conto O Cobrador se fixem com mais facilidade em nossa memória, como leitores (Fonseca diz que escreveu esse conto de modo propositalmente chocante, como resposta à censura, que havia proibido o livro Feliz Ano Novo, em 1975); talvez porque, embora ele não seja o melhor conto do livro, ele é o mais inquietante (o final, es- pecialmente, é bobo, quando O Cobrador enuncia sua nova profissão de fé e diz, num tom de quase manifesto, que ago- ra vai sair por aí com sua amada Ana Palindrômica – uma beldade egressa da alta burguesia de Ipanema – explodindo bombas em festas de bacanas, etc.); e é inquietante por vá- rios motivos – porque, predispostos que somos ao apelo da rebelião, não temos muita dificuldade em nos identificarmos com aquele monstro, o que pode ser altamente perturbador (quem, depois de ser esnobado ou humilhado em alguma si- tuação, não teceu sua fantasia homicida ou mesmo genocida que atire a primeira pedra); porque, ciosos de nossa seguran- ça e sanidade, queremos duvidar de que um ser humano tão odioso como O Cobrador seja real ou mesmo possível; por- que, ameaçados (chantageados) por sua possibilidade concre- ta, nos perguntamos se afinal de contas também não somos meio culpados pelas injustiças que existem no mundo; em- bora imperfeito, O Cobrador é mesmo um conto vital, por tudo o que ele suscita; pouco importa que a ação dO Cobra- dor seja destrambelhada e seus objetivos políticos, delirantes; ao que parece, a esquerda adotou depois de 1968 uma estra- tégia chamada diversitária que elegeu o lúmpen proletariado (vagabundos, bandidos, drogados, prostitutas, etc.) como a nova classe revolucionária; O Cobrador não é outra coisa que um lúmpen com uma alegada disposição revolucionária; e aí?, levar a sério suas ameaças?, ou não levar a sério as bra- vatas de um tipo que, no final das contas, provavelmente não passa de uma caricatura? Para tentar responder isso vou voltar ao ponto, pacífico ao meu ver, de que somos todos revolucionários em poten- cial, sobretudo em nossa imaturidade; além de vivermos num mundo precário e terrivelmente falível, todos somos oprimidos de alguma forma e desejamos, naturalmente, nos livrar daquilo que nos oprime, constrange, diminui; em su- ma, poucas coisas nos entusiasmam mais, quando somos jo- vens (ou seja, imaturos) do que ouvir a senha do motim que nos arrastará para uma ação supostamente libertadora; levar ou não levar a sério O Cobrador é, portanto, uma questão de ser imaturo (levá-lo a sério) ou maduro (vê-lo apenas como um bicho-papão grotesco, um palhaço sinistro); ser maduro é entender o que há de pueril e de simplificador nesses fáceis pensamentos de justiçamento (teorias revolucionárias, teori- as que pretensamente “explicam” toda a realidade, etc.) que podem nos ocorrer; ser maduro é ser cético e cauteloso, ter noção da intrincada complexidade do real, etc. Numa de suas mais brilhantes exposições, o filósofo Olavo de Carvalho explicita a grande forçada de barra que está no fundo do pensamento marxista (marxista em particu- lar, embora a coisa se aplique a todo pensamento revolucio- nário, pensamento que, segundo Olavo, tem sempre uma ra- iz gnóstica, “o mundo é ruim e cabe a nós fazermos um mundo melhor”; a exposição que farei disso é longa e pode- rá soar meio digressiva, mas vale a pena porque reduz a pó e destroços o que parece ser uma sólida teoria sobre o funcio- namento da realidade): afirma Olavo de Carvalho que a for- çada de barra do marxismo começa por ele dar por conheci- do aquilo que, absolutamente, não é conhecido (afirmar, por exemplo, que o fim da História será o advento de uma soci- edade sem classes); depois, por usar esse futuro hipotético (e altamente duvidoso) como chave explicativa tanto para o passado conhecido quanto para os eventos presentes (se o fim da História é esse, tais eventos passados, nesse enredo, que se concluirá dessa maneira, tiveram tal e tal significado, etc.). A própria noção de História, como uma metanarrativa que supostamente abarca todas narrativas concernentes a co- letividades humanas, é exposta por Olavo em sua imensa fragilidade; o que ele diz, resumidamente, é que é forçar de- mais a barra admitir que o sentido da história da comunidade humana X é essencialmente igual ao da comunidade humana Y porque o que ambas fazem, fundamentalmente, é se apos- sar de bens naturais para fazer deles o uso econômico que acharem mais apropriado, advindo necessariamente desse apossar-se e desse dispor dos bens a organização da socieda- de e seus conflitos subsequentes (entre explorados e explo- radores), daí a luta de classes, etc. A quase absurdidade total da teoria marxista não salta aos olhos à primeira vista porque, ainda segundo Olavo de Carvalho, ela tem uma sutil analogia com o modo como nós, indivíduos, vivemos nossas vidas dentro da estrutura da rea- lidade, dando-nos, assim, a impressão de ser ela uma teoria bastante razoável e verossímil; aliás, acrescento aqui que nós, membros da civilização judaico-cristã, somos todos portado- res desse cheque não descontado (sem fundos?) que nos promete, num futuro hipotético (e duvidoso?), a Jerusalém Celestial, a vida eterna e bem-aventurada, etc., ou seja, sabe- mos que faz parte de nossa realidade lidarmos com promes- sas que no fundo não sabemos se poderão ser cumpridas, que faz parte da vida tentarmos ter tanta certeza quanto pos- sível acerca de nossas incertas esperanças últimas, teleológi- cas; ah, sim, a analogia entre Marx e a lógica de nossas vidi- nhas que faz o marxismo nos soar tão verossímil: qualquer afirmação que fazemos acerca de nosso próprio futuro, indi- vidual, no fundo é apenas hipotética; mas o sentido de nossa história presente depende desse alvo, dessa hipótese futura (por exemplo, o sujeito vai à faculdade todo dia porque, fa- zendo isso, daqui a quatro ou cinco anos muito provavel- mente ganhará um diploma de bacharel; ainda que meramen- te hipotético, o futuro sempre tem de fazer parte de qual- quer ação nossa, presente, que tenha em vista um objetivo). Isso tudo, que mais funciona do que deixa de funcionar nu- ma esfera privada (as pessoas em geral se formam, se casam, aprendem idiomas, compram imóveis, tudo conquistas que dependem de um esforço cumulativo, ou seja, de um equa- cionamento de presente e futuro), isso tudo se torna uma paródia grotesca quando aplicado não mais a indivíduos, mas comunidades humanas, nações, etc. Esse perfeito desmonte do pensamento revolucionário feito por Olavo de Carvalho em nada invalida as peças fic- cionais de Rubem Fonseca que dramatizam homens perdi- dos em seus impulsos para a rebelião, Jós num mundo sem Deus; ainda que qualquer racionalização sobre justiça social sempre seja falaciosa (é fácil nos esquecermos de que Leviatã é um monstro), todos experimentamos, individual e dramati- camente, as insuficiências, as precariedades e as falibilidades do mundo; ainda que propostas revolucionárias sejam inva- riavelmente cretinas (Michael Oakeshott diz que sempre de- vemos ser céticos a respeito de a razão especulativa ser capaz de criar modelos de organização social exequíveis), o homem que vocifera ou, até mesmo, pega em armas quando ultraja- do pelo destino não o é; talvez caiba apenas à literatura dar um testemunho da dignidade dramática desse homem. E sem dúvida que Rubem Fonseca faz em O Cobrador exata- mente isso. O BURACO NA PAREDE (1995)
Ano passado, 2018, abandonei definitivamente a leitura
dos Contos Romanos, do Alberto Moravia, um livro que a princípio me empolgou bastante e no qual julguei perceber muitas afinidades com a ficção de Rubem Fonseca – o texto fluente, conciso e expressivo, a narração coloquial em 1ª. pessoa, os protagonistas invariavelmente egressos dos baixos estratos da sociedade italiana, etc. Moravia escrevia magnifi- camente bem, criava personagens cativantes, situações fic- cionais sempre interessantes, mas colocava absolutamente tudo a perder em finais ruins, finais em que seus persona- gens acabavam se mostrando apenas uns tipos irritadinhos ante a constatação de suas terríveis impotências; tudo em Moravia (ao menos nos Contos Romanos, não li outros li- vros dele) sempre termina num decepcionante tom de creti- na comédia de estouvados e estereotipados italianos, num idiota tom de “mamma mia!”. Plínio Marcos, que usou como base para sua obra-prima Dois Perdidos Numa Noite Suja o conto de Moravia O Terror de Roma (desse livro), uma hora põe na boca de Paco, que vinha aloprando progressivamente seu colega de quarto Tonho, chamando-o de “Boneca do Negrão”, etc., a fala, “Homem que é homem não foge do pau”, ou seja, não foge da briga, do desafio, do chamado aos atos restauradores da própria dignidade. É isso: colocados em situações que clamam para que ajam como homens, para que botem o pau na mesa, os personagens de Alberto Mora- via dos Contos Romanos terminam agindo como bebês cho- rões. Esse malogro artístico não acontece em O Buraco na Parede, livro que Rubem Fonseca lançou em 1995 e que, pe- la quantidade de contos excepcionais (apenas um mediano, Os Idiotas que Falam Outra Língua), é um de seus livros de maior qualidade. A afinidade com o Moravia de Contos Romanos se deve a que Fonseca explora nesse livro, como em nenhum outro seu, o drama da impotência existencial, do fracasso e da humilhação. A vigorosa reação “pau na mesa” em geral não ocorre a esses personagens de Rubem Fonseca não porque eles sejam covardes, bebês chorões irritadiços, mas simplesmente porque essa reação não é viável em certas circunstâncias; nemesis cobra o que supostamente lhe é de- vido; suas vítimas não sabem em que hybris e em que ha- martia incorreram para serem punidas; o kafkiano Joseph K. sabe direitinho do que se trata isso; a maioria de nós, vez ou outra, também. O Buraco na Parede é um livro asfixiante, repleto de imagens impiedosas, das mais impiedosas já concebidas por Rubem – a striper que parece, a seu entediado espectador, pela posição em que ela está, ajoelhada, e pelos traços de seu rosto, amulatados ou indígenas, um grotesco anfíbio (sapo) gigante; a instalação de arte contemporânea que mostra um porco apodrecendo dentro de uma caixa de vidro; o sujeito que acompanha a exumação dos corpos do pai e de um ir- mão e que compara o estado de degradação, maior e menor, em que se encontram seus esqueletos; o balão construído pa- ra se elevar a milhares de pés e se deslocar centenas de qui- lômetros, mas cuja bucha, inexplicavelmente, falha e ele cai no mar, poucos minutos depois de se erguer; o sujeito que tem uma reação alérgica a um medicamento e que começa a asfixiar-se diante de um apatetado e inerte médico; os cabe- los oxigenados da servente do Hospital Miguel Couto que gosta de se fazer passar por enfermeira, cabelos que parecem mais oxigenados ainda quando ela se torna um cadáver esta- telado numa calçada, esperando o rabecão do IML; o bancá- rio desempregado que atribui sua extrema lascívia ao fato de ter manuseado durante anos e anos cédulas de dinheiro no- víssimas, recém saídas do Banco Central; o CEO que aden- tra humilhado o insondável (e grotesco) mundo do curandei- rismo para tentar se livrar de uma doença rara para a qual a medicina convencional não tem cura; o novo-rico que se vinga dos que o chamam de cavalgadura tornando-se um es- critor de sucesso (ele encomenda um livro a uma miserável estudante de letras que se autodenomina Ghost Writer e que ganha a vida escrevendo livros para outros assinarem); o fra- cassado que mora numa sórdida pensão e que atende pron- tamente ao pedido ignóbil da jovem por quem está apaixo- nado, mesmo sabendo que a recompensa que poderá advir disso seja altamente improvável. Creio que essa estase, essa passividade angustiante em que quase todos personagens de O Buraco na Parede se en- contram se deve a que estejam lidando com símbolos ainda inarticulados – eles pressentem o inimigo, o adversário, mas não sabem quem ou o que exatamente é esse opositor. Co- nhecendo os livros subsequentes de Rubem Fonseca, creio que também seja certo dizer que essa angústia fundada na obscuridade e no desconhecimento (por que nemesis está me punindo?) irá se arrefecendo, isso porque seus persona- gens futuros irão cada vez mais se apossar e compreender os símbolos com os quais lidam, cada vez mais se assenhorarão de si mesmos e do mundo, tanto quanto isso é possível (a maioria experimentará esse assenhoramento de forma irôni- ca, descobrindo coisas como a linguagem secreta das fezes e seu poder precognitivo, o que servirá para o estabelecimento da copromancia, por exemplo; ainda que irônico, um asse- nhoramento como esse não deixa de ser uma conquista cog- nitiva notável). É curiosa a curva evolutiva que se percebe na ficção de Rubem Fonseca – uma ficção que quando surgiu foi definida como “brutalista” e na qual, superficialmente, só se enxerga- va a denúncia de mazelas sociais, centros urbanos desorde- nados, “tecnocratas afiando o arame farpado”, etc., e que gradualmente evoluiu para formas mais abstratas, mais arcai- cas, mais arquetípicas, mais conscientemente simbólicas (essa simbologia toda sempre esteve, ainda que meio latente, pre- sente na ficção fonsequiana, para qualquer leitor que o lesse com atenção e verdadeira abertura de espírito; Duzentos e Vinte e Cinco Gramas, conto seu de 1963, é um óbvio pre- decessor de sua ficção escatológica da primeira década do século XXI); Shakespeare evoluiu de forma semelhante, sen- do sua última peça, A Tempestade, tremendamente arcaica (fabulosa, mítica, etc.). C. G. Jung explicaria essa curva evolutiva de Rubem Fonseca falando em integração de conteúdos antes inconsci- entes ao self; Freud falaria em transformação de neuroses antes inconscientes em miséria humana comum (conscienti- zada); católicos falariam em amor fati ante os misteriosos de- sígnios de Deus, que por misteriosas (mas no fundo sempre benévolas) razões deixa Seus filhos sofrerem; reencarnacio- nistas falariam em algum resgate cármico; talvez todos di- gam, em algum sentido, fundamentalmente a mesma coisa. Eu, como sou um homem modesto (nenhuma ironia nessa afirmação), sempre prefiro o que os ficcionistas, ainda que modestamente (todo ficcionista é, no fundo, um ser salutar- mente modesto), têm a dizer com seus modestos recursos ficcionais. HISTÓRIAS DE AMOR (1997)
Não sei por que as fezes, a merda, os excrementos, etc.,
quando aparecem na literatura ficcional, costumam dar, tan- to a nós, leitores, quanto ao personagem, um profundo sen- tido de epifania, de esclarecimento, de completude, de sínte- se, de consumação. Como todo símbolo, a matéria fecal é expressiva e elusiva ao mesmo tempo; é impressionante, mas difícil de interpretar (como um sonho, especialmente aqueles nossos sonhos mais impressionantes para os quais mesmo as mais engenhosas e inteligentes explicações parecem pálidas ante a força numinosa e agregadora do sonho em si); sobre essa dificuldade que os símbolos oferecem para serem apre- endidos, por exemplo, até hoje não entendi bem o significa- do daquela visão que C. G. Jung teve quando criança – Deus defecando, a divina matéria fecal despencando do céu e des- pedaçando o teto de uma igreja; a visão, segundo Jung, teve um grande papel em seu processo de individuação, mas o exatamente como talvez fosse indizível até mesmo para Jung; e sobre a afirmação com que abro esse parágrafo, a respeito da extrema expressividade e da imensa força resolu- tiva do excrementício na ficção: um amigo, grande admira- dor de Saul Bellow, discordou de minha opinião de que O Planeta do Senhor Sammler termina como uma magnífica novela (ou conto longo) lá pela página cinquenta (não como um entrópico e enfadonho romance lá pela página duzen- tos), quando ocorre o episódio altamente epifânico do bate- dor de carteiras exibindo ameaçadoramente as partes puden- das a um perplexo Arthur Sammler. (Eu continuo concor- dando com minha opinião: Sammler se encerra soberbamen- te na página cinquenta.) Em suma, parece ser uma proprie- dade do símbolo que ele seja, em si mesmo, indeslindável, mas que tenha sempre uma ampla capacidade de iluminar, de esclarecer aspectos da consciência de seu contemplador. Não proponho com essas considerações iniciais que a simbologia, stricto sensu, seja a chave explicativa para a fic- ção; como disciplina autônoma que é, a literatura ficcional só deve explicações a si mesma e só se subordina às leis que lhes são próprias. No entanto, como arte imitativa que tam- bém é (de ações, de situações, de caracteres humanos), é per- feitamente cabível que a ficção retrate personagens experi- mentando epifanias com seja lá quais símbolos forem (ex- crementos inclusive), já que faz parte da vida homens e mu- lheres terem esse tipo de vivência; Thales Lima Prado, um dos personagens centrais de A Grande Arte (talvez o perso- nagem central), tem uma evidente experiência epifânica de- pois de um específico contato íntimo com uma garota de programa; precisamente, depois de sodomizá-la e de ouvi-la gritar, em aparente êxtase, “eu vou sujar seu pau com minha merda!”, e de, ao lavar-se no bidê, sentir um cheiro que ele define como tectônico, Lima Prado percebe que uma inibi- ção dele, fortemente limitadora, foi vencida; julga-se, então, mais plenamente dono de si e, supostamente apaixonado pe- la tal garota, decide trazê-la para sua vida (ele no papel de co- ronel, ela no papel de teúda-e-manteúda). Rubem Fonseca sempre foi um escritor muito consci- ente a respeito de os símbolos fazerem parte constitutiva da experiência humana comum; como grande autor que é, seus símbolos nunca são óbvios, nunca são meras alegorias disso ou daquilo (por exemplo, a cachorrinha Baleia como um pi- egas e banalíssimo símbolo da miséria e da brutalidade em Vidas Secas); o personagem devorado pela esfinge indecifra- da é frequente na ficção de Fonseca (destaquei recentemente o pastor Raimundo, do conto A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro); também é frequente o personagem que, da- da sua expressividade e singularidade, acaba apreendido por nós, leitores, quase como símbolo (e melhor ainda que não compreendamos exatamente símbolo de que ele é), como o anão José Zakkai, o Nariz de Ferro, de A Grande Arte. Essa característica de Rubem Fonseca foi se tornando cada vez mais pronunciada à medida que ele amadureceu como autor, que se tornou mais consciente de seu relativamente pequeno repertório de obsessões (todo obsessivo, ou seja, todo ser fortemente individualizado, tem apenas três ou quatro ideias fixas, segundo Nelson Rodrigues; T. S. Eliot insistia em só três, birth, copulation and death, that’s all; e por aí vai). (Lembrei-me agora de que às vezes o símbolo enigmá- tico presente na ficção é uma simples frase, enunciada por alguém alheio à ação principal que está se desenrolando, co- mo a vendedora de flores em Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, anunciando, flores para los muertos, ou como a garota mexicana aparentemente drogada do con- to Outra Área Cinzenta, de Bret Easton Ellis, que diz ape- nas, mi hermano.) Historias de Amor foi lançado por Rubem Fonseca em 1997, junto ao romance E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto (ambos vinham num box, que, aliás, eu tenho). Em que pese a relativa inexpressividade desse livro de contos se comparado a outros de Rubem Fon- seca (o livro, no geral, é médio), como peça encaixada no conjunto da obra do autor é interessante por dar testemunho de uma transição de fase; claramente Histórias de Amor a- ponta para produção ficcional de Fonseca característica de primeira década do século XXI, ou seja, do que entendo por sua fase madura (consciência cada vez maior de seu pequeno repertório de obsessões, etc.); esse título, aliás, Histórias de Amor, pouco sintetiza seu apanhado de contos, já que o te- ma amor é secundário na maioria deles; Cidade de Deus é uma variação macabra (e muito engenhosa) da macabra peça Medeia, de Eurípedes; O Amor de Jesus no Coração no fun- do trata da disputa entre o tira bom (Guedes, que estreou como personagem fonsequiano no romance Bufo & Spal- lanzani), que acredita no primado da inteligência na investi- gação dos crimes, e o tira mau (Leitão), que acredita no pri- mado do achaque, da violência e da ameaça (uma disputa i- dêntica ocorre em Agosto, tendo como o tira bom o comis- sário Alberto Mattos e o tira ruim o comissário Pádua); Car- pe Diem é um conto meio longo demais, cheio das revira- voltas rocambolescas, que mostra um casal de amantes conspirando para o assassinato de seus cônjuges; Besty é um conto curto e despretensioso, urdido com uma lógica meio daquela brincadeira “o que é, o que é?”; em O Anjo da Guarda vemos o mesmo cuidador de idosos do conto Livro de Panegíricos (Romance Negro e Outras Histórias, 1992), que em idos tempos apareceu no conto Fevereiro ou Março (Os Prisioneiros, 1963) no papel de gigolô (vendedor de sangue, fisiculturista, etc.); aliás, foi nesse lúmpen sempre en- fiado em situações moralmente nebulosas que Fonseca de certa forma experimentou e consolidou as características de seus futuros assassinos de aluguel; Família é um conto de mediano para ruim sobre um casal de lésbicas e as expectati- vas do pai de um delas (apesar de ruim, julgo notar nele um esboço do futuro conto A Escolha, do livro Pequenas Cria- turas, de 2003, um dos mais extraordinários contos já escri- tos por Rubem Fonseca); o ótimo conto Viagem de Núpcias também antecipa, por seu final feliz (um final feliz fonsequi- ano, claro), os contos de Pequenas Criaturas; assim como antecipa os contos de Secreções, Excreções e Desatinos, de 2001, pelo destaque dado ao elemento escatológico. A maneira correta, portanto, de ler Histórias de Amor é como se o título do livro fosse Em Breve, o Melhor de Ru- bem Fonseca. Mas claro que, tendo um conto vigoroso co- mo Cidade de Deus, contos razoavelmente bons como O Amor de Jesus no Coração e Anjo da Guarda, um conto simpático como Besty e um conto ótimo como Viagem de Núpcias, Histórias de Amor pode ser lido (e fruído com pra- zer) com seu título original mesmo. LÚCIA McCARTNEY(1967)
Lucia McCartney foi o primeiro nome associado ao
Rubem Fonseca com o qual eu tomei contato na vida. Eu era criança e soube, não me lembro como, que havia um fil- me chamado Lúcia McCartney (Lúcia McCartney, uma Ga- rota de Programa, direção de David Neves, 1971). Um dia, ainda pequeno, eu vi na TV uma cena de um filme em preto e branco com o ator Paulo José (então meu ídolo, por causa do Shazan, Xerife & Cia) e cheguei à conclusão, por uma as- sociação meio delirante (eu achava o Paulo José parecido com o Paul McCartney, aquele mesmo ar apatetado- perplexo, etc.), de que o filme era Lúcia McCartney (não era; o filme ou era O Homem Nu, direção de Roberto Santos, 1968, ou As Amorosas, direção de Walter Hugo Khouri, também de 1968). Tenho um fiapo de lembrança, de alguns anos depois, de uma cena isolada de Lúcia (agora sim, sem dúvida alguma: a cena é mesmo do filme) – o ator Paulo Villaça dizendo ao telefone, “comi uma crioula”. (Essa fala, no livro, é do Peter Mandrake e pertence ao conto O Caso de F. A., que foi, na feitura do roteiro do filme, costurado – mal costurado, aliás – ao conto Lúcia McCartney.) Certamente só vi o filme intei- ro depois que o Canal Brasil entrou no ar, em 1998; apesar da imensa e enigmática presença de Adriana Prieto no papel principal (Adriana, bela, diáfana e “varada de luz, como um santo de vitral”, parecia mesmo uma pessoa tragicamente destinada a morrer cedo), o filme não é lá essas coisas. Olhando para a folha de rosto de meu exemplar (livro) de Lúcia McCartney e lendo ali, escrito à caneta, meu nome e a data 12/02/1996, me obrigo a uma possível correção; nessa sequência de textos em que falo de minha experiência como leitor de Rubem Fonseca e arrisco algumas opiniões críticas sobre sua obra afirmo que o primeiro livro que li dele foi A Grande Arte, nesse mesmo e remotíssimo ano de 1996 (sentado num Fran´s Café perto do Mackenzie, etc.); essa lembrança é nítida e precisa, mas talvez a leitura de Lúcia McCartney tenha vindo antes; até me lembro com precisão de quando comprei Lúcia, numa loja no Cal Center chamada Prosa & Verso, quando também comprei uma edição bilín- gue de poemas do W. H. Auden; porém, sinceramente, não me lembro de ter lido Lúcia McCartney nessa época; o que provavelmente aconteceu foi que comprei o livro e o deixei na estante. Aliás, 1996 foi o ano em que fui mais CDF (cu de fer- ro) na minha, digamos, formação literária; eu lia, em média, de quatro a cinco horas por dia, de dois a três livros por se- mana; estava estudando os poetas T. S. Eliot e W. H. Auden, além de versificação (Abc da Literatura, de Ezra Pound), não porque eu gostasse de poesia (jamais gostei de poesia, poesia lírica, segundo a definição aristotélica – lírica, épica, dramáti- ca), mas porque estudar os (raros) bons poetas é um excelen- te aprendizado de “engenharia de frase”, de eufonia, ritmo, etc. Decorei, em inglês e português, trechos inteiros dos principais poemas Eliot e vários de Auden; evocava-os, de- gustando e assimilando “carnalmente” cada fonema, cada sí- laba, palavra, verso, imagens (o sol que se põe “como um paciente anestesiado sobre a mesa”, etc.). Em prosa, insistia na leitura de coisas abstrusas como Ulisses, de James Joyce, ou V., do Thomas Pynchon (do qual só me lembro de um personagem brasileiro que é traficante de armas e que se chama Da Conho). Não abandonava livros chatos ou livros que eu não estivesse entendendo nada. Em 1996 eu já estava com vinte e cinco anos (!) e precisava vencer o ignorante e semianalfabeto funcional que ainda julgava ser; media-me apenas com os homens cultos que eu conhecia e admirava (Paulo Francis, por exemplo), sem qualquer autocomplacên- cia; sim, eu sabia que eu era um ignorantão, mas estava de- terminado a deixar de o ser. Claro que havia uma formidável falta de medida nessa minha atitude, em si mesma atilada, autodesafiadora, etc.; o problema é que quando temos vinte e cinco anos não temos como compreender o que é longo prazo, o que são décadas; não temos como compreender o verdadeiro e profundo sen- tido das memórias que acalentamos, sentimental e ingenua- mente; não conseguimos extrair qualquer proposição dos fa- tos que testemunhamos e que, por algum motivo, nos im- pressionaram; nossos traumas ainda têm um sentido obscu- ro; até mesmo nossos verdadeiros interesses ainda são es- sencialmente ignorados por nós mesmos; talvez fosse deses- perador termos, aos vinte e cinco anos, a noção de que cer- tos entendimentos que podemos vir a ter a felicidade de ad- quirir demoram muito para acontecer e de não há como ace- lerá-los; algumas modestas certezas que tenho hoje eu só ad- quiri com trinta e cinco, quarenta anos (Nelson Rodrigues dizia que, antes dos trinta anos, o homem não sabe dizer se- quer bom dia a uma mulher); com quarenta e oito volta e meia ainda me percebo “limpando gavetas”, jogando coisas fora, e fico sinceramente feliz quando noto em mim algum sintoma de “idiotia” do qual ainda não havia me dado conta; gênios literários precoces, como Raymond Radiguet (ou mesmo Bret Easton Ellis), são milagres e não devemos me- dir nossos êxitos e, sobretudo, nossos fracassos comparan- do-os com eventos miraculosos; Rubem Fonseca, por exem- plo, lançou seu primeiro (e notável) livro aos trinta e oito anos, em 1963, ou seja, numa época em que homens dessa idade eram, sem qualquer possibilidade de apelação, irrever- síveis e consumados coroas; creio que essas reflexões sobre maturidade e imaturidade sejam em si mesmas interessantes; de qualquer forma, tentarei amarrá-las melhor a partir de al- gumas considerações que farei sobre o livro Lúcia McCart- ney, lançado por Rubem Fonseca em 1967. Aclamado já em sua estreia, em 1963, com o livro de contos Os Prisioneiros, seguido do consolidador A Coleira do Cão, de 1965, Rubem Fonseca lançou em 1967 um livro que patenteou uma certa irregularidade que estava presente em seus dois primeiros livros e que talvez tenha passado meio batida, dado o entusiasmo que esses livros suscitaram na época por sua então originalidade temática, etc. Lúcia McCartney, o tal livro de 1967, é um livro francamente irre- gular, ao passo que os dois anteriores eram disfarçadamente irregulares; usando umas metáforas futebolísticas: entre 1963 e 65 Rubem já se mostrava craque, fazia uns golaços como Duzentos e Vinte e Cinco Gramas, mas metia muitas bolas na trave ou perdia gols feitos (A Força Humana), episódios que se diluíam em sua forte aura de goleador; em 1967, uma precoce má fase pareceu mesmo dar as caras; alguns gols bri- lhantes, mas já recebidos com alguma hesitação, “o rapaz é bom, mas talvez não seja tão bom quanto nosso entusiasmo inicial nos levou a crer”. (Pronto, chega de metáforas futebo- lísticas.) Lúcia McCartney é mesmo um livro descaradamente irregular; há contos excelentes, como O Desempenho (que me parece uma versão mais bem acabada ou a versão de fato cabal do aclamado conto A Força Humana, que tem um fi- nal extremamente falho, no meu entender – daí talvez ser o maior, o mais estupendo gol que Rubem Fonseca não fez); contos bons, como A Matéria do Sonho (protagonizado pelo personagem fonsequiano cuidador de velhos ainda adoles- cente), Meu Interlocutor (uma interessante variação do trio Vronski-Alexei-Anna Karenina, mulher-marido-amante), O Caso de F. A. (um história de Peter Mandrake, o persona- gem numa versão ainda meio tosca, contratado para tirar uma moça daquele lugar) e Lúcia McCartney (a paixão, ao mesmo tempo imensa e frívola, de Lúcia por José Roberto, ela primeiro cogitando se matar porque o amante-amado- cliente foi embora e em seguida decidindo ir à boate à noite para se divertir, isso tudo diz enciclopédias a respeito do amor, paixão, sexo, maturidade-versus-imaturidade, etc.); contos curiosos, como O Quarto Selo (uma inusitada e iso- lada incursão de Rubem Fonseca pela ficção científica, cy- berpunk avant la lettre num distópico e futurista Rio de Ja- neiro, etc.; Fausto Fawcett, não tão distópico, explorou esse veio, cyberpunk carioca, em seu estupendo – e, não sei por que, estupidamente ignorado – Santa Clara Poltergeist, de 1994; sim, é livro, romance, e dos bons); contos razoáveis, como Manhã de Sol (um flagrante de furto narrado num es- tilo meio modernoso, mas o.k.); dispensáveis, como Um Dia na Vida, que lembra um conto menor de John Cheever, uma colagem de pequenos episódios descontínuos (a mãe que anui com a bichalouquice do filho colocando um colar de pérolas no pescoço do rapaz, etc.), cujo título não me recor- do; contos divertidos, como Asteriscos, que lembra muito o Giovanni Papini em Gog, tirando o maior sarro dos artistas modernos e suas extravagâncias presunçosas; alguns poemas dispensáveis – Âmbar Gris, Corrente, Os Inocentes – que lembram as poetagens do poetastro (além de esquartejador, estuprador, terrorista, etc.) Cobrador; contos banais e mera- mente pitorescos como Relato de Ocorrência (o povo fa- minto que esquarteja uma vaca atropelada por um ônibus); e uma sequência (o terço final do livro) de talvez os piores contos do Rubem Fonseca, contos escritos meio em inglês, meio em português (talvez Rubem estivesse buscando o efei- to que o Anthony Burgess alcançou com o dialeto nadsat em Laranja Mecânica), experimentações modernosas joycianas (o conto Zoom), obscuridades à Franz Kafka, William Bur- roughs, etc.; arrisco o palpite de que Rubem Fonseca escre- veu a maior parte desses maus contos na época em que mo- rou em Nova York, 1953, ou seja, quando era um rapaz de vinte e oito anos intoxicado de literatura e ainda ignorante de sua própria voz autoral; talvez apenas por ser pessoalmente afeiçoado a eles incluiu-os em Lúcia McCartney. A tese de que Rubem Fonseca ainda não tinha uma mestria de fato consistente nos anos 1960, de que talvez ele cultivasse uma ou outra noção equivocada sobre si mesmo como artista que o levava vez ou outra a fazer apostas (sem- pre arriscadas) em “experimentações” (experimental é aquela arte feita a partir de premissas cujo valor é apenas hipotético; talvez a experiência dê em alguma coisa que preste, talvez não), ou seja, a tese de que Rubem Fonseca era (e percebeu que era) um artista ainda imaturo e consideravelmente hesi- tante aos quarenta anos me parece consideravelmente sólida; depois de Lúcia McCartney Rubem demorou oito anos para publicar outro livro de contos, Feliz Ano Novo, em 1975; seria interessante saber o que ele fez nesse intervalo, como confrontou as próprias imperfeições e gestou pacientemente seu esplendoroso futuro; o processo certamente envolveu eliminações, “limpezas de gavetas”, admirações literárias re- legadas a ex-admirações; falando a partir de minha experiên- cia, somente já perto dos quarenta anos eu pude provar a verdade daquilo que o Nelson Rodrigues dizia em tom de aparente provocação, de que o único autor que ele havia lido na vida tinha sido o Dostoiévski; segundo Nelson, há um esbanjamento numérico meio idiota nesses literatos que sa- em metendo a cara em tudo que é livro (eu aos vinte e cinco anos); o artista (e homem) maduro sabe que sua mestria se manifesta em pouquíssimos elementos, precisamente alguns, de maneira nenhuma outros; estilo, afinal, é limite (como é boba, retórica e demagógica a palavra ilimitado); é muito provável que Rubem Fonseca passou, entre 1967 e 1975, por uma depuração desse tipo; o salto de qualidade entre sua produção ficcional numa data e noutra é imenso; Feliz Ano Novo tem a mais arrebatadora sequência de obras-primas de ficção curta que já vi – Feliz Ano Novo, Corações Solitários, Abril, no Rio, em 1970, Botando pra Quebrar, Passeio No- turno I e II, Dia dos Namorados; aos cinquenta anos um depurado Rubem Fonseca finalmente esplendeu, como um daqueles atiradores de facas de circo sem absolutamente ne- nhuma dúvida, nenhuma hesitação sobre a própria perícia em sua arte. CARNE CRUA (2018)
Não deixo de me surpreender com o fato de que artis-
tas comprovadamente bons cometam, eventualmente, obras indiscutivelmente ruins. Por um lado sei que a excelência é mesmo inconstante; por outro, acho espantoso que a exce- lência às vezes se mostre tão profundamente inconstante; um bom autor, no mínimo porque tem experiência e discer- nimento (do que é bom e do que é ruim), devia ser imune a certos equívocos. Mas isso não ocorre. (Penso, agora, nas péssimas, nas horripilantes letras que Vinícius de Moraes es- creveu para uma série de músicas estupendas do Claudio Santoro. E pensar em Vinícius de Moraes inevitavelmente me faz pensar naquela piada, “Sabe por que saco de japonês se chama Vinícius? Porque ele vive com o toquinho”. Aí es- tá, eu não consigo pensar em Vinícius de Moraes sem que me venha à cabeça essa piada infame.) Por trás desse fenômeno aparentemente misterioso, as musas que, por algum capricho, resolvem se ausentar, etc., está na verdade um fato muito simples: um gênio, ou mesmo um mero talento notável, se faz com um número limitado de elementos, elementos esses que se manifestam num número necessariamente limitado de surpreendentes criações; de maneira nenhuma o gênio ou o talento têm o dom da ines- gotabilidade; eu diria que gênio/talento é aquele ser humano capaz de ter, se tanto, uns dez (a coisa é contabilizável mes- mo) pensamentos brilhantes ou perfeitamente acurados so- bre um assunto; as outras cinquenta mil ideias que passarão por sua cabeça vida afora serão perfeitamente irrelevantes, intranscendentes, opacas, opacas ou até mesmo indubita- velmente cretinas; tenho poucas dúvidas, por exemplo, de que o J. D. Salinger parou de escrever em 1965 porque sim- plesmente disse tudo que precisava (ou era capaz de dizer) nos quatro livros que publicou; também tenho poucas dúvi- das de que o Philip Roth escreveu bem além do que precisa- va ou que era de fato capaz de dizer; de Roth acho funda- mental mesmo apenas o Portnoy’s Complaint; lembro-me com simpatia de Goodbye, Columbus e realmente adoro a- queles diálogos descarados que ele tem com suas amantes em Deception; o resto de sua produção é apenas isso, resto (o.k., algumas cenas esparsas muito divertidas; em Operação Shylock Philip Roth ouvindo perplexo o falso Philip Roth que anda pregando o diasporismo dizer que os poloneses se ajoelharão e chorarão de alegria quando os judeus voltarem de trem à Polônia, “Nossos judeus voltaram! Nossos judeus voltaram!”; em O Teatro de Sabbath, Mickey Sabbath indo se masturbar para o túmulo de Drenka, sua amante recém- falecida, etc.). E de que maneira essa minha teoria se aplica à trajetória criativa de Rubem Fonseca? Pelos exemplos que citei, de Sa- linger e Roth, parece que a ascensão e queda de um autor é um processo linear – o sujeito escreve, esgota sua quota de dez ideias brilhantes e então pede a toalha (ou segue escre- vendo de maneira mais ou menos vexaminosa, com a pilha meio fraca; ou vive o resto da vida fazendo uma espécie de jogo de difícil, de excêntrico, como Salinger); eventualmente pode ser que o processo se dê assim, mas também se verifica que esse processo de altos e baixos criativos se dê numa li- nha temporal circular, reversível; depois do mediano Lúcia McCartney, de 1967, Rubem Fonseca lançou o estupendo Feliz Ano Novo, em 1975, seguido do bom O Cobrador, em 1979, depois um médio, Romance Negro e Outras Histórias, em 1992, seguido de um bom, Buraco na Parede, em 1995 (citei só livros de contos dele para não comparar alhos com bugalhos). Em seus apogeus criativos Rubem mostra ser um autor altamente consciente de seu pequeno repertório de ob- sessões e um habilíssimo usuário desse repertório (uma pro- posição que se amplia num corolário que se amplia num es- cólio, etc.); em suas criações menos brilhantes, Rubem em geral parte de uma premissa artística cuja validade é apenas hipotética, ou do manuseio de uma ordem simbólica com a qual ele não tem verdadeira intimidade e da qual, portanto, ele não tem como prever todas as implicações e consequên- cias; seus erros formidáveis como ficcionista são raros, como os que cometeu no livro Carne Crua, de 2018, do qual talvez se salve apenas o conto Carne Crua (a história de um sujeito que devora um rottweiler e depois devora a dona do cão); como não podemos suspeitar de imperícia (Rubem Fonseca, definitivamente, conhece seu métier), a tese mais provável é a da negligência; Rubem parece nesse livro momentanea- mente cansado do jogo, cansado de buscar engenho e veros- similhança, cansado de urdir tramas que tenham peripécia e reconhecimento, como recomendava Aristóteles; dada essa sua disposição, a avacalhação proposital podia ser uma estra- tégia e acabar gerando alguma coisa divertida (me vem à ca- beça imediatamente O Caderno Rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst); admito que até ri algumas vezes em Carne Crua como quem ri de uma piada tão ruim, mas tão ruim que até se torna engraçada; no mais, as razões para um grande escri- tor colocar no mercado, aos noventa e três anos, um livro que sem dúvida ele percebeu ser ruim ao terminá-lo para mim são obscuras. As melhores reflexões que conheço sobre esse tema, os limites e as oscilações da excelência na experiência humana, estão no conto O Imortal, de Jorge Luis Borges (de longe, esse é meu conto preferido desse autor). Nesse conto Borges tenta conceber que efeito a eternidade teria sobre os homens (eu, você, Rubem Fonseca, etc.); a conclusão é desconcertan- te – em seus primeiros mil anos como um ser fadado a ser eterno Homero involuiu do poeta que escreveu a Ilíada para um poetastro que teve a ideia de jerico de cantar a guerra das rãs e a guerra dos ratos (sempre gargalho quando leio essa passagem do conto) e, depois, para um troglodita inarticula- do que se alimentava apenas de carne de serpente. Diz assim Borges: “Doutrinada por um exercício de séculos, a república dos homens imortais atingira a perfeição da tolerância e qua- se do desdém. Sabia que num prazo infinito a todo homem acontecem todas as coisas. Por suas virtudes passadas ou fu- turas, todo homem é credor de toda bondade, mas também de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar as cifras pares e as cifras ím- pares tendem ao equilíbrio, do mesmo modo também se a- nulam e se corrigem o engenho e a estupidez, e talvez o rús- tico Poema do Cid seja o contrapeso exigido por um único epíteto das Églogas (...) Encarados assim, todos os nossos atos são justos, mas também são indiferentes. Não há méri- tos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisseia; pos- tulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mu- danças, o impossível é não compor, nem uma única vez, a Odisseia”. Não me escandaliza imaginar o infinito encadeamento da realidade desse modo, como um jogo de precisas com- pensações; já pensei coisas assim a respeito da minha vida, que décadas de vivências opacas talvez fosse o preço a ser pago por dez minutos de alguma intelecção impressionante; não acredito nem deixo de acreditar nisso; não me impres- siono nem deixo de me impressionar, como me ocorre com qualquer hipótese imaginativa engenhosa; Rubem Fonseca pagar tributo à mediocridade num único livro ruim para es- crever outros quase trinta entre bons, razoáveis e excelentes? A troca me parece mais do que justa. OS PRISIONEIROS (1963)
Eu me lembro exatamente da primeira vez em que li Os
Prisioneiros, o livro de estreia de Rubem Fonseca, publicado em 1963; foi em 1997, num fim de semana que passei na praia; estava com umas queimaduras brabas nas costas e nos ombros (fui caminhar na praia e me esqueci de passar filtro solar) e, deitado no chão da sala para aliviar um pouco aque- le ardor todo, peguei o livro e me pus a ler. Talvez a leitura tenha sofrido alguma interrupção, pois uma turma meio ba- rulhenta (amigos meus e dos meus irmãos) entrava e saía de casa o tempo todo; lembro-me bem de um tal de Sapito, a- migo de um amigo nosso, o Salviano-Salvicley-Salvatore (“salve, salve, Salviano...”); Sapito era um tipo meio grotesco (fonsequiano, me ocorre agora), que lembrava um anão que tivesse crescido, mas que conservara várias características do nanismo, como a voz (um voz esganiçada, parecida com a do ator Joe Pesci); o sujeito era daquele tipo que tenta se im- por falando mais que os outros, falando mais alto que todo mundo, soltando piadas supostamente muito engraçadas o tempo todo; e que, ao perceber que nem todo mundo está achando o máximo sua perfórmance, apela para o coitadis- mo, para a pieguice e para a chantagem emocional rasteira; havia uma história de que ele havia aparecido recentemente na TV, numa reportagem sobre irregularidades na empresa onde ele trabalhava, e que ele dissera para o repórter, “eu não sei de nada, eu só ganho duzentos real (sic)”. (Há, há. Credo. O sujeito era realmente um coitado.) De uma forma ou de outra, li o livro inteiro, ali, deitado no chão; o conto que mais me marcou naquela primeira leitura foi o Gazela, de um casal que vem de trem do Rio para São Paulo; talvez a descrição do frio paulistano tenha ajudado a fixar o conto em minha memória, já que eu estava todo esturricado, ar- dendo, etc. (Ocorre-me agora uma certa semelhança entre esse conto e o romance A Ladeira da Memória, do José Ge- raldo Vieira; o trem noturno Rio – São Paulo, o casal sexu- almente inibido, a hesitação que pode nos levar a perder o momento único em que determinada coisa deve ser feita, a memória que se torna nossa algoz, etc.) Seguramente reli um conto ou outro de Os Prisioneiros nesses vinte e dois anos. Talvez em alguma ocasião até o te- nha relido inteiro. Mas na releitura que fiz ontem pela pri- meira vez apreendi sua unidade; notei claramente que o tema que perpassa os contos de Os Prisioneiros é o desejo, preci- samente o drama do desejo. Drama, porque os mais fundos desejos humanos são erráticos e, no mais, inexprimíveis; as pessoas se sentem tensionadas (desejantes), deduzem um motivo para isso, equacionam um modo de descarregar a tensão e terminam sempre decepcionadas ou perplexas; nin- guém, jamais, atinge o alvo que supostamente pretendia a- tingir; todas nossas parcas satisfações são sempre vicárias, substitutas. (Podemos escapar desse estado de perplexidade contínua quando amadurecemos e aprendemos que qualquer projeto existencial mais amplo é motivado primordialmente pelo senso de dever. Ainda que aqui e ali tenhamos de fazer acordos com nossos desejos, seremos prudentes na negocia- ção, pois saberemos que estamos lidando com um trapacei- ro, um aconselhador muito pouco confiável. E por aí vai.) Percebe-se em Os Prisioneiros um certo frescor juvenil na prosa de Rubem Fonseca (ele tinha trinta e oito anos em 1963); os casais são descritos com mais romantismo, amores antigos e inesquecíveis são evocados, homens e mulheres pa- recem mais disponíveis emocionalmente uns para os outros; às vezes Rubem parece meio hesitante quanto à sua verda- deira voz autoral; se em Duzentos e Vinte e Cinco Gramas e Fevereiro ou Março já aparece, perfeitamente definida, a voz que todos reconhecemos como sendo a voz de Rubem Fon- seca, em outros momentos ele se expressa num estilo de humor vagamente surreal que parece influenciado por Cam- pos de Carvalho (Rubem, em entrevistas dadas nesse início de carreira, declarou admirar o autor de O Púcaro Búlgaro). De qualquer forma, o desejo está ali, com seu caráter evasivo e inapreensível; pode-se pensar nos contos de Os Prisionei- ros como os antepassados amenos, de certa forma ainda nu- tridos com o leite da bondade humana, de contos como A Escolha, de 2003, uma das mais extraordinárias (e cruéis) pe- ças ficcionais de Rubem; nesse conto é narrada a história de um sujeito que tem de decidir se o que ele deseja mais é uma dentadura ou uma cadeira de rodas (as opções, na circuns- tância em que ele se vê, são excludentes). O sujeito, que não é burro, no fundo sabe que está protagonizando uma peça de amarga ironia, sem dúvida metafórica de uma condição humana geral, que transcende (e muito) aquela sua particular situação de miséria (só pobre da Porta da Esperança do Síl- vio Santos fica todo alegre, chora, etc., porque ganhou uma cadeira de rodas ou uma dentadura; Rubem Fonseca sabe que o tédio, a acídia e a insaciabilidade não conhecem fron- teiras de classe). Sobre os contos de Os Prisioneiros, o desejo errático, sem possibilidade de ser devidamente saciado, aparece na curiosidade malsã do sujeito que, depois de ser desafiado por um médico legista (um tipo sádico, pernóstico e, à sua ma- neira, muito engraçado), decide assistir à autópsia da amante, que foi assassinada a facadas (Duzentos e Vinte e Cinco Gramas); está na ambígua abordagem (tentativa de alicia- mento?) feita pelo marido da condessa Bernstroff ao lúmpen (fisiculturista, vendedor de sangue, gigolô, etc.) que protago- niza e narra o conto Fevereiro ou Março; está no sempre ri- dículo fenômeno hype e naquilo que René Girard chamava de desejo mimético (fulano só deseja algo porque sicrano de- seja, etc.), fenômenos estes deliciosamente esculachados por Rubem em Natureza Podre ou Franz Potocki e o Mundo; está no casal de Teoria do Consumo Conspícuo – ela, que tem um nariz perfeito, mas que cismou de desejar fazer uma rinoplastia, ele, que supostamente estava morrendo de desejo de levá-la para a cama, mas que súbita e inexplicavelmente perde essa disposição (só por que ela lhe pediu duzentos contos – duzentos real, há, há – pra fazer a plástica?); está no amor imperfeitamente consumado do casal aparentemente clandestino que vem de trem do Rio para São Paulo, do con- to Gazela; está no casal do conto Curriculum Vitae, em que o sujeito imagina um monte de insultos dirigidos à namorada enquanto ela penteia os cabelos e diz que sim, que está pres- tando atenção na história que ele está contando, a respeito de um sujeito que só conseguia tocar bongô acompanhando Jesus, Alegria dos Homens, de J. S. Bach (uma alegoria meio boba de uma subjetividade tão radical que obviamente não encontra o que fazer no mundo objetivo); talvez o único personagem do livro que atinge o alvo que realmente pre- tendia é o Henri (do conto homônimo), um aparentemente banal comerciante de móveis que na verdade é um necro- mante, assassino e esquartejador; o conto O Inimigo, que fe- cha o volume, talvez tenha uma relação oblíqua, indireta, com a supressão dos desejos – um homem acometido de transtorno obsessivo compulsivo, paranoico com assaltos, apegado a memórias da juventude que, de tão fantásticas (um amigo, estudante de parapsicologia, que uma vez afir- mou ter levitado, etc.), parece que não aconteceram realmen- te; há ainda o conto que narra uma fracassada sessão de psi- coterapia, o conto dos membros de uma organização inspi- rada nas ideias de Erich Fromm e Norman Mailer que tenta converter um conformista incorrigível num inconformista e o conto do entrevistador do censo que vai à casa de um su- jeito que acaba confessando que decidiu se matar; os três contos são dispensáveis (Rubem inclusive excluiu O Con- formista Incorrigível na edição dos Contos Reunidos, de 1994). Na análise que fiz do livro Lúcia McCartney afirmei que os dois primeiros livros de Rubem Fonseca eram disfarça- damente irregulares, ao passo que Lúcia o era explicitamente; a afirmação me parece mesmo correta; em 1963 a prosa de Rubem já era perfeitamente nítida e precisa, ou seja, ele já era um mestre consumado em projetar, de maneira continua e expressiva, o sonho ficcional na mente do leitor (essa defi- nição, inquestionável ao meu ver, é do John Gardner, autor do melhor livro de narratologia que já li, The Art of Ficcion); a relativa debilidade do jovem Rubem Fonseca estava na he- sitação eventual quanto à própria voz, o que gerou aqui e ali textos meio despersonalizados, claramente derivativos de fontes alheias a seus verdadeiros interesses; seu amadureci- mento como autor consistiu em cada vez entrar menos nes- ses desvios, em cada vez sair menos dos próprios trilhos (a- inda que tenha cometido exatamente esse erro em alguns contos de Romance Negro e Outras Histórias, de 1992). Em larga medida, aos trinta e oito anos Rubem Fonseca já sabia exatamente quem ele era (“Yo sé quien soy”, como disse o altamente autoconsciente Don Quixote de La Mancha). E seus acertos, sem dúvida, já eram muito, muito maiores do que qualquer erro pontual. A COLEIRA DO CÃO (1965)
Corrijo algo que escrevi nos ensaios anteriores, que os
dois primeiros livros de Rubem Fonseca eram disfarçada- mente irregulares; a afirmação mais ou menos se aplica a Os Prisioneiros, mas não ao segundo livro, A Coleira do Cão. Publicado em 1965, esse livro dá testemunho de um Rubem Fonseca solar, joie de vivre, erótico como nunca mais ele vi- ria a ser (haverá muita atividade sexual na futura ficção fon- sequiana, mas não propriamente erotismo); mesmo o conto mais noir do volume, A Coleira do Cão, tem uma malemo- lência, um calor arquetipicamente carioca; o delegado Vilela, protagonista do conto, é um ensaio do futuro comissário Alberto Mattos, de Agosto; é o único tira honesto da delega- cia onde está lotado (todos recebem o levado dos bicheiros); tem ojeriza à violência, à ilegalidade, à arbitrariedade (não anda armado, abomina a tortura; a discussão que tem com um subordinado, que justifica a tortura como um método eficaz de fazer criminosos abrirem o bico, “com esses milha- res de favelados que tem por aí não podemos nos dar ao lu- xo de brincar de polícia inglesa”, subordinado esse que diz que não odeia os presos que tortura, que depois muitos deles se tornam seus amigos, que inclusive uma vez ele até jogou no bicho para um deles, e com o próprio dinheiro, essa dis- cussão, terrível e risível, no final das contas – mais brasileira e carioca, impossível –, é uma daquelas coisas que o Nelson Rodrigues chamava de momento da consciência humana). Esse testemunhar de uma circunstância mais feliz da realidade (devia mesmo ser difícil alguém ser tão niilista vi- vendo na zona sul do Rio de Janeiro de 1965) acabou geran- do um Rubem Fonseca que não temos como não tomar co- mo atípico; e não há notas falsas nessa atipicidade, ou hesita- ção quanto à sua verdadeira voz autoral, como nos casos em que Rubem escreveu, aqui e ali, contos equivocados, força- damente modernosos, experimentais, etc. (os piores exem- plos que me vêm à cabeça são os contos Zoom, de 1967, e A Santa de Schönberg, de 1992); reconhecemos plenamente o autor, sua individualidade e sua coesão espiritual nos contos de A Coleira do Cão; o que soa atípico é uma atitude mais equilibrada e serena (ante uma realidade mais equilibrada e serena, claro) que, por algum motivo, foi descontinuada em sua obra; vemos algo como um caminho, pessoal e artístico, que poderia ter sido, mas que não foi. Por exemplo, rara- mente podemos usar em relação a um conto do Rubem Fonseca a palavra encantador (embora normalmente lhe cai- bam uma penca de outros adjetivos elogiosos, fascinante, sensacional, genial, brilhante, etc.); pois o conto Madona, de um adolescente que tenta aproveitar um fim de semana a sós no aparamento da família em Copacabana para tentar fazer, oras-oras, a única coisa em que pensamos quando temos ca- torze, quinze anos, só pode ser chamado de absolutamente encantador; não cometerei spoilers, mas há uma cena belís- sima, fortemente simbólica (de anseio por ascese?), em que o rapaz vai com uma turma à cabeceira da pista do Galeão (de- liciosamente não vigiada); o barato da brincadeira é sentir os aviões decolando, passando a poucos metros deles, provo- cando tremendos deslocamentos de ar, as turbinas emitindo ensurdecedores 130 decibéis, etc.; apesar de haver alguma coisa deliciosamente datada em Madona, o conto tem o vi- gor daquilo que é permanentemente atual, daquilo que não só era de um determinado jeito, mas que sempre foi e sem- pre será assim. O erotismo (ou seja, encantamento e forte tendência à aproximação entre os sexos) está em Os Graus, em que um coroa tem uma grande surpresa ao descobrir o que a garota (apesar de jovem, casada) com quem ele está tendo um caso realmente pensa dele; em O Grande e o Pequeno, que mos- tra uma família portuguesa (cujos membros se orgulham de um talvez fantasioso passado aristocrático, julgando-se des- cendentes do estribeiro-mor de um rei) opondo-se à escolha amorosa de um de seus jovens membros; em O Gravador, curioso conto que mostra uma situação antepassada das atu- ais relações amorosas virtuais; em Relatório de Carlos, que narra a história de um advogado bem sucedido que começa a ter um caso com uma fulana e se apaixona perdidamente por ela, apesar de no fundo saber que a fulana não passa de uma bela de uma bisca (esse conto foi adaptado para o cinema pelo diretor Flávio Tambellini, em 1974; o filme, Relatório de um Homem Casado, é muito bom e muito fiel ao conto); aliás, está nesse conto uma das cenas mais cruelmente hilá- rias já concebidas por Rubem Fonseca, em que o tal advoga- do deixa a tal da bisca em frente a uma clínica de aborto (na- da de acompanhá-la?, que coisa feia, hem?) e que ela, assim que sai do carro, mete o pé num monte de matéria fecal ca- nina; o conto A Opção é um inconclusivo, artificioso e chato debate de estudantes de medicina a respeito de um caso apa- rentemente concreto de transexualidade (o assunto já era en- fadonho em 1965); o celebrado conto A Força Humana eu considero, como já disse, pelo seu final falho, o maior gol que Rubem Fonseca não fez (semelhante àquele chute do meio de campo que Pelé deu ao ver o goleiro tcheco adian- tado, em 1970); o conto (que não tem o erotismo caracterís- tico do restante do livro), de fato é esplêndido, mas é como uma música rigorosamente tonal que terminasse num acorde não resolutivo; a rapaziada atual, tão sensível à incorreção política, provavelmente teria achaques e convulsões ao ler certas passagens de A Força Humana, como quando João, o dono da academia de ginástica, explica ao Waterloo para que serve alguém ser famoso, “Em primeiro lugar, para não an- dar esfarrapado como um mendigo, e tomar banho quando quiser, e comer – peru, morango, você já comeu morango? – , e ter um lugar confortável para morar, e ter mulher, não uma nega fedorenta, uma loura, muitas mulheres andando atrás de você, brigando pra ter você, entendeu?”. De alguma forma podemos pensar no livro de contos Pequenas Criaturas, que Rubem Fonseca lançou em 2003, como uma retomada dessa linha solar que foi descontinuada em 1965; um Rubem Fonseca de finais felizes e amenos, sensível aos aspectos benevolentes que a vida mostra, aqui e ali, às pequenas (mas muito reais) realizações acessíveis a nós, pequenas criaturas, como gerar filhos, apaixonar-se (e tudo dar certo), conseguir uma dentadura e uma cadeira de rodas (quando achávamos que só poderíamos ter uma coisa ou outra), etc. Porém, pensar nessa relativa equivalência exi- ge esforço; podemos até fazer de conta, hoje, que a vida po- de ser simples e razoavelmente plena, mas no fundo sabe- mos que estamos expostos, sem qualquer proteção “placen- tária”, ao indecifrável e ao inominável; sabemos que lidamos o tempo todo com símbolos desestabilizados, que talvez não signifiquem aquilo que intuímos; vemos à nossa frente cami- nhos que se bifurcam que se bifurcam que se bifurcam, etc., todos igualmente duvidosos, todos com um tremendo po- tencial maligno para nos submergir para sempre numa in- terminável infinitude (paródia satânica do infinito) de erros minuciosos; voltar atrás, a certas concepções “cosmológicas” (nosso lugar, simbólico, no universo), é impossível, já que perdemos certas ingenuidades e inocências, mas avançar é duvidoso (avançar para onde?); descrevi aí, até que razoa- velmente, o que era chamado lá pelo final do século XX de “condição pós-moderna” e que de certa maneira ainda é a regra do jogo que estamos jogando (ou sendo jogados?); não por acaso o tema fundamental da ficção de Rubem Fonseca, esgotado o furor enragé de Feliz Ano Novo e O Cobrador (1975 e 1979), foi o drama desalentador do sujeito devorado pela esfinge indecifrada (e talvez indecifrável), como o Peter Mandrake em A Grande Arte, ou a variação decifra-me e te devoro do mesmo jeito, drama do qual padece o comissário Alberto Mattos em Agosto. Talvez o mundo solar, joie de vivre, erótico, alicerçado em símbolos estáveis, de A Coleira do Cão só possa ser re- tomado ironicamente; mas e se não?; às vezes (não poucas vezes, na verdade) experimentamos na vida real certas esta- bilidades e permanências que não temos como explicar; o conto Madona é datado e não é; adolescentes continuam tentando aproveitar seus finais de semana longe dos pais da melhor forma que podem (e esse da melhor forma significa a mesma coisa de sempre, afinal, os hormônios sexuais são os mesmos de sempre e os costumes entre os sexos, exceto em certas camadas sociais mais experimentais, ínfimas aliás, não são diferentes do que sempre foram); a realidade é tão ampla (e tão estreita) e tão imprevisível (e tão previsível, afinal, nihil novi sub sole) que às vezes (ou sempre?) ela nos dá uma es- pantosa confirmação de que tudo, absolutamente tudo que existe não só era de um determinado jeito, mas que as coisas sempre foram assim e que continuarão sendo, pelos séculos dos séculos. FELIZ ANO NOVO (1975)
Nathanael Lessa, protagonista do conto Corações Soli-
tários, aconselha assim Pedro Redgrave, “Sejam, como os outros, egoístas, dissimulados, implacáveis, intolerantes e hi- pócritas. Explorem. Espoliem. É legítima defesa”. E ainda aconselha o desdentado Odontos Silva, “Ponha os dentes novamente e morda. Se a dentada não for boa, dê murros e pontapés”. Embora se apliquem a situações específicas do conto, os conselhos de Lessa-West poderiam fazer parte de um decálogo normatizador dos costumes retratados em Feliz Ano Novo, livro de contos de Rubem Fonseca lançado em 1975. Resumem o espírito do livro, em suma: ultraviolência à Anthony Burgess em Laranja Mecânica (o conto Feliz Ano Novo), violência festiva (o conto Botando pra Quebrar), vio- lência meio “ato de liberdade” existencialista (os contos Pas- seio Noturno, I e II), violência “estratégica” (o conto 74 De- graus); saindo um pouco dessa violência em primeiro plano, o conto Nau Catrineta, notável exemplar de um estilo que creio ser ainda inexistente (ou muito inexplorado), o gótico lusitano, faz revisionismo (ficcional, creio) de um episódio histórico em que supostamente Deus salvou a tripulação de um navio, quando o que de fato aconteceu para salvar essa tripulação foi um macabro pacto de canibalismo; Abril, no Rio, em 1970 mostra um aspirante a craque que espera que um olheiro do Madureira (o treinador Jair Rosa Pinto) o alce à glória, mas Jajá Barra Mansa não aparece no treino, o aspi- rante joga mal, etc. (se abril é o mais cruel dos meses, segun- do Eliot, a esperança, sempre, é a mais cruel das disposi- ções); Dia dos Namorados é uma sofisticada chanchada pro- tagonizada pelo Peter Mandrake, que é solicitado para tirar um banqueiro das garras de um travesti que, com uma gilete apontada para a própria carótida, está ameaçando fazer uma loucura; O Campeonato é uma divertida pornochanchada que nos anos 1970 poderia ter sido dirigida pelo Carlo Mossy; Entrevista é um conto curto e notavelmente enge- nhoso que narra um episódio de empoderamento feminino avant la lettre; Agruras de um Jovem Escritor é uma vertigi- nosa e muito engraçada tragédia de erros (apesar de sua bre- ve aparição, o detetive Jacó tirando os sapatos e borrifando perfume nas meias tem uma das mais extraordinárias carac- terizações de personagem já feitas por Rubem Fonseca); In- testino Grosso narra uma entrevista com um escritor meio malcriado cujas opiniões provavelmente pouco têm a ver com as de Rubem, mas que seus comentaristas mais habitu- ais se apressaram em tomar como suas (a disseminada, retó- rica e brega imagem dos tecnocratas afiando o arame farpa- do está nesse conto; aliás, o livro Feliz Ano Novo foi proibi- do pela ditadura ao se tornar best seller, poucos meses após o lançamento; talvez menos por seu conteúdo – a alegação foi que o livro “atentava contra a moral e os bons costumes da família brasileira”, aquele lero-lero todo –, do que por seu sucesso; medíocres, civis ou militares, nunca toleram o triun- fo do talento); por fim, O Outro e O Pedido são contos in- sulsos no meio de um monte de contos extraordinariamente bons. Para além da afirmação – verdadeira – de que Feliz Ano Novo tem uma das mais impressionantes sequências de o- bras-primas de ficção curta (da literatura em geral), o que provavelmente o coloca como o melhor livro de contos de Rubem Fonseca, é certo dizer que o livro não se esgota nes- sa constatação de excelência, com esse topo do pódio; sua clareza e imensa vitalidade nos lembra que há momentos, históricos e pessoais, em que nossas ações e pensamentos se apresentam mais energizados do que em outros; em que a inteligibilidade do mundo nos parece maior, em que as rela- ções causais (causas e efeitos) parecem ter explicações razo- avelmente verossímeis; em que, potencializados sabe-se lá por que fontes energéticas, dionisíacas, etc., parece que va- mos conseguir escapar do destino de ser uma melancólica espécie sempre esmagada pelo inominável e pelo indecifrá- vel; apesar de mostrar aspectos bestiais da natureza humana – o atropelador doloso de Passeio Noturno, os bandidos de Feliz Ano Novo, matando, estuprando, defecando nas rou- pas de cama da mansão, muito legal, uma coisa muito boa, etc. –, o clima de Feliz Ano Novo, o livro, é paradoxalmente otimista, “sim, temos esse lado feroz, mas daremos conta de- le”; claro que essa euforia antropocentrista nunca dura mui- to; a inteligibilidade (ilusória) acaba nos escapando, perce- bemos que continuamos sem saber nada, a complexidade das coisas se exponenciabiliza, tornamo-nos arcanos e su- persticiosos (porque talvez todos atos cognitivos humanos no fundo não passem de superstições); a história humana tem mesmo esse movimento pendular de autoconfiança-e- otimismo versus desconfiança-e-prostração; falei em costu- mes retratados no primeiro parágrafo desse artigo, sendo que costume é algo meio circunscrito a uma determinada época, um zeitgeist que de repente muda e deixa um monte de gente suspirando pelos bons tempos que se foram; a dé- cada de 1970, sem dúvida, foi um momento de uma huma- nidade supostamente mais dona do próprio nariz (expressão da época), disposta a se definir em seus próprios termos, sem prestar contas a “metafísicas”; até mesmo o imenso (e aparentemente contraditório) interesse popular por esote- rismo, espiritismo, OVNIs (revista Planeta, etc.) característi- co daquele tempo tinha em seu fundo a crença numa discur- sividade lúcida e, no final das contas, desmistificadora desses assuntos; Feliz Ano Novo é um produto dos anos 1970, nu- trido por seu espírito, mas claro que ele transcende, e muito, esse dado; seus leitores mais jovens, sem lembranças pesso- ais e afetivas dos anos 1970, por certo não compreendem bem de onde vem a clareza e a vitalidade desse livro e, por certo também, fazem uma leitura mais fria dele; de qualquer forma, sem dúvida constatam sua excelência e topo de pó- dio. E isso é o que realmente interessa. A CONFRARIA DOS ESPADAS (1998)
Rubem Fonseca encerrou a década de 1990 com um li-
vro eminentemente pitoresco. Lançado em 1998, A Confra- ria dos Espadas se caracteriza pelo inusitado tratado com (relativa) leveza, o que às vezes lhe dá um clima meio de A- credite se Quiser, ou seja, um clima de um show de quase- horrores apresentado por um sóbrio (mas no fundo debo- chado) mestre de cerimônias (o personagem de um dos con- tos do livro, aliás, se autonomeia mestre de cerimônias); mesmo o mais hardcore dos contos, Anjos das Marquises (aliás, um dos mais virtuosísticos já escritos por Rubem), é uma irônica peça de humor negro, quase um “terrir”; assim como o deliciosamente cômico A Festa tem um quê de ma- cabro; assim como o divertido (e, no final, triunfalmente erótico) AA expõe de forma frívola uma situação bastante ignóbil; assim como o aparentemente mais sério e denso dos contos, Livre-Arbítrio, que põe em pauta questões delicadas como: alguém que decide continuar vivendo, em vez de de- cidir soberanamente sobre a conveniência e oportunidade da própria morte, não está apenas deixando que continue fun- cionando um conjunto tosco de reflexos mecânicos? (seria essa uma definição razoável sobre o que é a vida?, etc.), mesmo esse conto aparentemente mais sério no fundo é a- penas pseudossério; O Vendedor de Seguros é um mais ou menos típico (e bom) conto fonsequiano protagonizado por um matador profissional; À Maneira de Godard e A Confra- ria dos Espadas mostram aspectos problemáticos da sexuali- dade dramatizados-carnavalizados (ou seja, exibidos e pre- tensamente discutidos) em indevidos espaços públicos – um homem e uma mulher heterossexuais porém aversivos aos genitais do sexo oposto que tentam superar essa aversão com um troço esquisito (com ares de terapêutica new age) chamado jogo do partejar, uma agremiação de homens hete- rossexuais que, depois de dominarem a ambicionada técnica do Múltiplo Orgasmo Sem Ejaculação, passam a se julgar monstruosos e desejam voltar a ser macacos (ou seja, um conjunto tosco de reflexos mecânicos, etc.); por fim, o tal- vez-poema (e talvez mau poema) Um Dia na Vida de Dois Pactários, que tem uma passagem de intensa e resplandecen- te beleza (poética?) que define assim a natureza da ligação que há entre os amantes: um pacto de incêndio contra esse espaço de rotina cinzenta entre o nascimento e a morte que chamam vida. Talvez A Confraria dos Espadas seja o conjunto de contos mais ambíguos, no melhor sentido que a palavra po- de ter, de Rubem Fonseca; nada é propriamente o que pare- ce (embora as coisas que componham esse mundo, radical- mente intranscendente, estejam condenadas a ser simples- mente aquilo que elas são); e, em vez de se angustiarem por não saberem exatamente com o que estão lidando e por fra- cassarem nas tentativas de elucidação (o drama do homem devorado pela esfinge indecifrada, etc.), os personagens de A Confraria etc. parecem simplesmente aceitar que a realidade é mesmo cheia de coisas esquisitas (pitorescas) e de eventos arbitrários e aleatórios sobre os quais não temos qualquer controle; não existe, portanto, destino dramático possível pa- ra uma espécie tão incapaz como a nossa, mas apenas desfe- chos irônicos (drama exige a possibilidade da escolha, de que a partir da arrogância – hybris – o personagem cometa o er- ro trágico – hamartia – que será punido por nemesis, etc.). O jogo que os personagens de A Confraria dos Espadas jogam com a realidade não tem a opção de vitória; pode ocorrer a um ou outro personagem uma subjetiva autoavaliação de boa performance, mas não há escala para que isso possa ser aferido objetivamente (isso me lembra os “triunfos” que eu obtinha jogando fliperama no Guarujá lá por 1981, fazendo, sei lá, cinco milhões de pontos naquelas máquinas da Taito, por um lado me sentindo triunfante, por outro me pergun- tando, “certo, mas esses milhões todos não são a pontuação que qualquer imbecil faz ao jogar nessas máquinas?”). Ou, hum, pode haver, sim, uma escala aferidora num universo onde não há medida, ratio, proporção? Como bem notou o crítico literário canadense Nor- throp Frye, os personagens irônicos (sub-humanos) sempre acabam apresentando uma paradoxal afinidade com os per- sonagens míticos (sobre-humanos – deuses, basicamente); se Deus cria, ex nihilo e por uma decisão soberana e arbitrária, universos, seres, simbolismos, etc., o sub-humano também cria seus universos, soberana e arbitrariamente (é próprio do sub criar mundos à imagem e semelhança das próprias de- formidades e limitações); ambos, deuses e pseudodeuses, o- niscientes e oniscientes, não comportam qualquer dúvida (só o ser humano é tensionado pela incerteza); (um acréscimo: Jorge Luis Borges, numa feliz definição, disse que o homem é um deus falível; pois o sub-homem, forjador de seu pró- prio universo e de um completo e fechado sistema simbólico que o descreve, não tem como não ser rigorosamente infalí- vel); voltando ao Rubem Fonseca: essa exposição teórica tem de fato alguma relação com sua obra tardia (fim década de 1990, primeira década do século XXI)? No texto dessa série sobre o livro O Buraco na Parede, de 1994, eu escrevi o seguinte: “Conhecendo os livros subsequentes de Rubem Fonse- ca, creio que também seja certo dizer que essa angústia fun- dada na obscuridade e no desconhecimento (por que neme- sis está me punindo?) irá se arrefecendo, isso porque seus personagens futuros irão cada vez mais se apossar e compre- ender os símbolos com os quais lidam, cada vez mais se as- senhorarão de si mesmos e do mundo, tanto quanto isso é possível (a maioria experimentará esse assenhoramento de forma irônica, descobrindo coisas como a linguagem secreta das fezes e seu poder precognitivo, o que servirá para o es- tabelecimento da copromancia, por exemplo; ainda que irô- nico, um assenhoramento como esse não deixa de ser uma conquista cognitiva notável)”. E mais: “É curiosa a curva evolutiva que se percebe na ficção de Rubem Fonseca – uma ficção que quando surgiu foi defi- nida como brutalista e na qual, superficialmente, só se en- xergava a denúncia de mazelas sociais, centros urbanos de- sordenados, tecnocratas afiando o arame farpado, etc., e que gradualmente evoluiu para formas mais abstratas, mais arcai- cas, mais arquetípicas, mais conscientemente simbólicas (...)”. O resultado dessa maturação foi artisticamente esplen- doroso; os livros de contos que Rubem lançou em 2001, 2003 e 2006 estão entre seus melhores; e nos lançados até pelo menos 2013 há vários contos que são, definitivamente, obras-primas; esses livros, embora tenham alguma afinidade com A Confraria dos Espadas, não se atêm ao pitoresco, ao grotesco apreendido, no final das contas, como gracioso; seus personagens, embora habitem o mesmo universo go- vernado pela fatalidade de Confraria, tentam escapar do fata- lismo, do destino incontornável de acabarem sendo perso- nagens involuntários de um show de quase-horrores prova- velmente concebido para a diversão de um deus sádico (sim, para o homem do início do século XXI as questões susten- tadas pelo gnosticismo não estão nem perto de se esgota- rem); em suma, se a única coisa que cabe a esses persona- gens fonsequianos (e a nós, por extensão) é acabar discer- nindo alguma coisa como a linguagem secreta da matéria fe- cal, sem dúvida que nós (e eles) nos empenharemos em ser os melhores copromantas que pudermos. CALIBRE 22 (2017)
Rubem Fonseca já disse várias vezes que a regra de ou-
ro para se escrever boa ficção é amar seu personagem como a si mesmo. Várias vezes enquanto eu relia os contos de Ca- libre 22, livro que Rubem lançou em 2017, eu pensei em va- riações dessa frase: suspeite de seu personagem como de si mesmo, deboche de seu personagem como de si mesmo, não leve muito a sério seu personagem etc. Embora se trate de um livro de um craque, de alguém que, definitivamente, sabe arranjar as palavras de modo a fazê-las funcionar, há no fundo de Calibre 22 uma coisa suspicaz, senescente, debilita- da; no raso, vemos aqui e ali talvez sintomas disso, como, por exemplo, a literatura ser tratada com escárnio pelo autor, “eu acho ler uma merda, o sujeito tem que ser cretino para ficar sentado olhando as páginas de um livro”, “toda a litera- tura e tudo o que se escrevia era sempre a mesma merda”, “é fácil escrever um livro, surfar é muito mais difícil”, etc. Creio que essa debilitação de fundo (muito mais do que essas de- clarações explícitas da suposta futilidade da ficção, aliás, to- das muito divertidas) acabou afetando a credibilidade de vá- rios contos potencialmente muito bons de Calibre 22. (O- corre-me aqui a sensação de estar sendo injusto; dou uma espiada no sumário do livro e penso, “mas esse conto é re- almente muito bom, e aquele ali também, e aquele, idem”; talvez ocorra, enquanto escrevo esse texto, de eu pegar o Ca- libre 22 e reler alguma parte para ver qual opinião minha so- bre ele prevalece.) O teorético Rubem Fonseca também já disse, ao refletir sobre a excelência ficcional, que o segredo da boa literatura reside no como – como narrar, como tratar assuntos, dra- mas, conflitos que, no fundo, são os mesmos de sempre. Não deve ter escapado aos leitores atentos de Rubem que sua prosa (o seu como) modificou-se depois que ele lançou os dois únicos livros em que se expõe pessoalmente, o vo- lume de crônicas O Romance Morreu, de 2007, e o breve (visivelmente abortado) ensaio autobiográfico José, de 2011; a prosa cautelosa, opaca e, hum, inibida desses dois livros parece ter dominado sua voz ficcional ou, ao menos, ter ten- tado dominar (seus livros de contos de 2011, 2013 e 2015 ainda têm vários momentos verdadeiramente brilhantes, a- fins com o the best of); de uma maneira ou de outra, uma crise parece ter se instalado ali; não tenho dificuldade de i- maginar Rubem Fonseca cogitando: por que não suspeitar desse gabola desse Peter Mandrake (aliás, Paulo Mendes), mostrando-o como um sujeito agora dado ao humor pito- resco e a invencionices bobas como dizer que Mandrake é mesmo o sobrenome dele, versão anglicizada de Mandrágo- ra, etc.? (As tiradas de Mandrake pra cima do amigo e sócio Wexler eram muito divertidas antigamente, “Vou ficar lendo Os Protocolos dos Sábios do Sião pra ver se curo essa ressa- ca”, “Meu cartão já está cheio e, além disso, não danço com advogados carecas”, “‘Lero-lero’? ‘Comer mosca’? Isso lá é jeito de um judeu falar? Tsc, tsc...”.) Um conto e um personagem, justamente por causa do como, sobressaem em Calibre 22 – o velhote (e aqui a pala- vra senescente adquire um inesperado bom sentido) solitá- rio, repetitivo e meio rabugento de O Morcego, o Mico e o Velho que Não Era Corcunda. Rubem Fonseca, apesar de já ser nonagenário (nasceu em 1925), raramente escreve (ou es- creveu) como velho (aliás, lembro-me de um notável conto de Pequenas Criaturas em que Rubem, já quase octagenário, criou um absolutamente verossímil jovem casal – ele, um ex- frequentador de raves que, entrado nos trinta anos, parou com as drogas, adotou uma rotina atlética e saudável, etc., ela, um pouco mais jovem, ainda frequentadora de festas, usuária de MDMA, etc.). Em suma, quer o velho se torne sua principal voz autoral daqui pra frente, quer não, o fato é que a coisa ficou bem boa; enquanto nós, jovens ou mais ou menos jovens, manifestamos nossas indignações publicando fotos e frases nas redes sociais, o velhinho de Rubem Fonse- ca vai atrás dos malfeitores (espancadores de mulheres, as- sassinos de homossexuais, etc.) e lhes mete tiros de pistola calibre 45 (uau!, há, há!); claro, estamos falando de ficção, de expressão simbólica; de qualquer forma, dentro dessa ordem simbólica sempre testemunhamos com admiração a força re- solutiva que há no assassinato; do psicodélico doutor Phibes (Vincent Price em seu melhor papel) executando barroquís- simos homicídios baseados nas pragas bíblicas do Egito ao príncipe Hamlet fazendo o que provavelmente todos nós fa- ríamos no lugar dele todos experimentamos, como especta- dores, esse consummatum est; a proposição a ser extraída do fato bruto (e mudo) é que toda a ordem jurídica (the law’s delay, as delongas da lei, como, aliás, diz Hamlet) não passa de uma quase ingênua tentativa de substituir o bom e velho homicídio como ato resolutivo e reparador (e que ótimo que uma ordem jurídica conseguiu se estabelecer no mundo e mais ou menos disciplinar essas coisas; porém, em nossa camada mais primitiva e arcaica ainda acreditamos que reso- lutivo mesmo é meter o trabuco na fuça do sem-vergonha e bum!). Bem, o.k., e daí? Quer dizer que a literatura de Rubem Fonseca (boa parte dela, aliás, boa parte dos contos de Cali- bre 22) serve apenas para saciar nosso gosto por sangue, pa- ra apaziguar nossa nostalgia de um mundo descomplicado no qual matar não levava ninguém aos sofrimentos excruci- antes do Raskolnikov? (Cogitando aqui: talvez o príncipe Hamlet fizesse o seguinte comentário sobre o pobre Raskol- nikov, “Quando um pé de chinelo se mete a querer matar, a coisa só pode dar em merda mesmo”.) Se é que é pertinente falar em serventia quando falamos em ficção, a literatura ser- ve, sem dúvida, para ensaiar possibilidades do real; serve pa- ra termos vislumbres de certas verdades, não como concei- tos filosóficos bem-acabados, mas como expressões de im- pressões; serve para darmos testemunho de nossos dramas, serve para investigarmos nossos impulsos e desejos mais “inconfessáveis” (não é errado conceber a literatura como um confessionário secular; Nelson Rodrigues, que compre- endia profundamente essa serventia da ficção, criou talvez o mais estupendo desses confessionários, o tal terreno baldio habitado apenas pela cabra vadia, aonde vamos, sempre à meia-noite, a hora que, segundo Machado de Assis, apavora, dizer aquelas verdades que não diríamos nem para o médium depois de mortos); Rubem Fonseca jamais se esgotou como um mero promotor de banhos de sangue para saciar banais apetites hematófagos; Calibre 22, que não pode ser chamado propriamente de bom livro (nem de mau, tampouco de me- díocre), provavelmente é um primeiro esboço de algo que pode vir a ser; oxalá Rubem tenha tempo e energia para ma- turar uma nova fase ficcional talvez prenunciada por esse li- vro, fase essa (hipótese) caracterizada por uma voz ficcional senescente não debilitada pela suspeita, pelo não levar-se muito a sério; suas possibilidades de êxito, dado seu talento, são grandes; sendo o idoso uma espécie de náufrago, ou seja, alguém que não tem muito mais a perder, ou seja, alguém que pode realmente se dar ao luxo de ser franco e honesto, é muito verossímil testemunharmos um velho nesse papel de emissor de juízos e sentenças cabais; a figura arquetípica do velho sábio de barbas brancas expressa justamente essa ver- dade – e o matiz fonsequiano disso, um velho sábio que por- ta uma pistola calibre 45 e que não hesita em dispará-la con- tra a cabeça dos malfeitores, não altera em nada a essência do arquétipo. Sentemos e aguardemos. AMÁLGAMA E HISTÓRIAS CURTAS (2013 e 2015)
Os livros Amálgama, de 2013, e Histórias Curtas, de
2015, têm, cada um, trinta e poucos contos, mas apenas dois contos em cada volume são de fato bons; o livro Amálgama é melhor que Histórias Curtas, porque tem um número mai- or de contos razoáveis e porque seus dois bons contos são, na verdade, excelentes: Conto de Amor e, especialmente, O Filho, que abre o volume; esses dois contos, aliás, têm seme- lhanças, como a brevidade, o uso de personagens que são deficientes físicos e as ações principais contidas nas histórias, ações de uma torpeza tão ilimitada e tão absurda que não dá pra acabar não rindo delas, como rimos dos lances mais tor- pes e surreais dos contos do Donald Barthelme (os risos que Barthelme nos provoca, contudo, são razoavelmente inocen- tes, ao passo que Rubem Fonseca, de um modo meio demo- níaco, nos leva a rir de coisas das quais, por mais caricatu- ralmente que estejam expostas, de modo algum deveríamos rir); já os dois bons contos de Histórias Curtas são apenas bons: Jardim de Flores, que mostra uma espécie de alquimis- ta invertido (pervertido, na verdade) em ação (putrefactio, etc.), e O Reencontro, que mostra de modo implacável co- mo um amor aparentemente sublime pode não sobreviver a um dado tão prosaico como os quilos a mais (Rubem Fon- seca gosta muito de usar a palavra enxúndia para se referir à engorda) que podemos adquirir com a passagem do tempo. (Uma digressão: lembrei-me agora de que quando eu era pequeno uma época eu cismei de fazer troça das pessoas estropiadas e deformadas que via quando ia ao centro da ci- dade; se o centro de São Paulo ainda hoje é consideravel- mente trash, posso afirmar que nos anos 1970-80 era bem pior; aliás, ano passado fui lá pela primeira vez com minha filha e ela ficou especialmente horrorizada com um travesti idoso, andando com os peitos de fora e urrando, que vimos na Praça da Sé; aí eu sei que meu pai me advertiu que era pa- ra eu parar com aquelas gozações e imitações, porque se eu continuasse um anjo podia passar por mim, dizer amém e eu ia ficar igual aos deformados, estropiados, etc.; outra adver- tência que meu pai me fez: eu cismara que o ator Sadi Cabral havia morrido e que fora enterrado com um par de salsichas pendurado nas orelhas; quem havia morrido fora um outro ator igualmente idoso, não me lembro quem, mas eu cismei com o Sadi Cabral e fiquei imaginando-o no caixão, sendo velado com as tais salsichas amarradas nos lóbulos das ore- lhas; então, quando conseguia parar de rir, eu insistia em perguntar a meu pai, “Mas por que ele foi enterrado assim?”; meu pai, quando enfim se cansou de sorrir amarelo da relati- va – relativa pra ele – graça daquela cena, me advertiu, “chii- ip, menino, olha o respeito com os mortos”.) Voltando a falar sobre o livro Amálgama, especifica- mente sobre o conto O Filho: por sua virtual perfeição (de caracterizações, de percurso da ação, de escolhas vocabula- res, de economia de meios, de encadeamento de peripécias, de desfecho, etc.), creio que valha dar uma esmiuçada nesse conto, sem dúvida uma das mais notáveis obras-primas da produção tardia de Rubem Fonseca. (Ainda que me ocorra a dúvida: discorrer, por meio de paráfrase, sobre um conto tão perfeitamente concebido e executado como O Filho não se- ria oferecer aos leitores uma versão debilitada, necessaria- mente spoiler, “estragadora”, de uma obra-prima literária? Espero que não ou, ao menos, não totalmente. Então vamos lá.) A favelada Jéssica tem dezesseis anos e está grávida. A mãe pergunta se ela sabe quem é o pai; Jéssica diz que não, mas que isso não faz diferença, já que os homens são mesmo todos uns merdas. A mãe diz que é melhor tirar, mas Jéssica diz que vai ter o bebê; para apaziguar a mãe, ela afirma que se não conseguir criá-lo poderá vendê-lo; a mãe, ao saber que bebês podem ser vendidos, tem sua cobiça tremenda- mente atiçada, pois está precisando de dinheiro para com- prar uma dentadura (comprar uma dentadura é um achado semântico dos mais espetaculares; Rubem já havia usado es- sa expressão no conto A Escolha, do livro Pequenas Criatu- ras, “um sujeito que disse ser advogado apareceu aqui em ca- sa e me pediu um dinheiro dizendo que ia fazer o dono do circo me dar grana suficiente para comprar quinhentas den- taduras”); o parto de Jéssica é marcado com a dona Gertru- des, que exerce na favela as funções de parteira e aborteira, benzedeira e feiticeira, ou seja, a mulher é uma espécie de versão maloqueira da Madame Voisin; a mãe de Jéssica, que pretendia roubar o neto e sair correndo com ele debaixo do braço assim que ele nascesse, para então o entregar ao com- prador de bebês, para, então, com o dinheiro comprar uma dentadura, etc., sai correndo quando o vê, mas sai correndo de susto, porque a criança nasceu com uma deformidade; no denouemént, a garota Jéssica tem “alta”, sai do barraco da parteira e, num ato de terrível, macabra e implacável raciona- lidade, joga o filho na primeira lata de lixo que encontra – racionalidade, sim, porque ela não ia criar um bebê deforma- do e, principalmente, porque ninguém iria querer comprar aquilo. Ao reler O Filho lembrei-me de um conto de Donald Barthelme (aliás, conto analisado pelo crítico literário inglês David Lodge em A Arte da Ficção, lançado aqui no Brasil pela L&PM, um livro apenas razoável – Lodge é parcimoni- oso e às vezes irritantemente em cima do muro, além de provincianamente britânico) em que um sujeito ganha um bebê de presente de um casal de amigos, casal que por sua vez achou o tal bebê quando foi a um banco; o propósito desse tipo de encadeamento de situações absurdas, comum na chamada ficção pós-modernista, nunca ficou muito claro para mim como leitor; a explicação mais frequente é que esse tipo de ficção serve para nos lembrar de que, no fundo, as páginas dos livros são apenas papel borrado com tinta tipo- gráfica e que, se nós nos deixamos iludir por esse negócio de literatura, bem, o problema é nosso; apesar desse princípio tão francamente duvidoso (Hamlet seria apenas papel borra- do com tinta tipográfica?), a ficção pós-modernista às vezes é divertida e muito engraçada (sobretudo o que poderia ser chamado de subprodutos dela; me vem à cabeça imediata- mente os livros do tabloide humorístico O Planeta Diário, como Apelo à Razão, de Perry White, e o escabroso A Vin- gança do Bastardo, da Eleonora V. Vorsky, pseudônimo do Alexandre Machado, marido da recém-falecida Fernanda Young; o também recém-falecido autor infanto-juvenil João Carlos Marinho – infanto-juvenil numas: leiam os extraordi- nários contos de Pai Mental e Outras Histórias e tirem suas conclusões – igualmente poderia ser chamado de “autor pós- moderno” por conta de seu divertidíssimo e maluquíssimo O Caneco de Prata). Rubem Fonseca, que é um homem notavelmente culto, obviamente sempre soube (e, claro, continua sabendo) por onde anda o status quaestionis literário; porém, como autor altamente seguro de sua própria personalidade artística, de sua voz, jamais embarcou na barca furada de qualquer mo- dismo acadêmico; assimilou traços de modernismo e pós- modernismo após ver que certas “ferramentas” oriundas desses universos de fato funcionavam na prática (Rubem tem grande pendor artesanal; ele já afirmou, por exemplo, que a boa ficção às vezes é apenas um paciente trabalho de ourivesaria). A frieza e a perfeição mecânica do conto O Fi- lho tem, de fato, afinidade com o universo ficcional bar- thelmeniano; mas Rubem deixa esses metaficcionistas todos no chinelo (Robert Coover, Donald Barthelme, John Barth, Thomas Pynchon – bom apenas em O Leilão do Lote 49 –, isso sem falar nos que vieram na rabeira dessa turma, como o superestimado David Foster Wallace – tentei ler Infinite Jest duas vezes e não rolou de jeito nenhum); porque Rubem de fato é um artista; porque Rubem sabe que coisas como verossimilhança não podem simplesmente ser depostas por decreto; porque Rubem sabe que a literatura nunca foi e ja- mais será apenas um monte de papeis tingidos com tinta ti- pográfica. SECREÇÕES, EXCREÇÕES E DESATINOS (2001)
Os quatro livros de contos que Rubem Fonseca lançou
entre 2001 e 2011 estão entre seus melhores, não só pela e- xuberante quantidade de bons contos contidos neles, mas, sobretudo, pela miraculosa quantidade de contos extraordi- nários. Creio que o melhor desses livros, quantitativa e quali- tativamente, seja o Secreções, Excreções e Desatinos, de 2001; um pouco atrás fica o Pequenas Criaturas, de 2002, que, embora tenha duas das maiores realizações ficcionais de Rubem, os contos A Escolha e Escuridão e Lucidez, além de outros doze excelentes (que sem dúvida figuram no the best of do autor), por outro lado também carrega uma quantidade considerável (dezesseis) de contos apenas medianos; depois, Ela e Outras Mulheres, de 2006, que, dos vinte e sete contos, tem onze entre ótimos e excelentes e dois que talvez sejam obras-primas, Joana, e, mais certamente, Karin; por fim, Axi- las e Outras Histórias Indecorosas, de 2011, que dos dezoito contos tem catorze que estão entre bons e ótimos. Essa ex- celência toda caracteriza, portanto, a primeira década do sé- culo XXI como o grande momento de Rubem Fonseca, seu apogeu criativo, período em que testemunhamos seu pleno e maduro domínio da arte ficcional (a produção desse período é superior à dos anos 1960 e indiscutivelmente superior à dos anos 1990; talvez os livros de 2001-2011 superem até mesmo o que Rubem produziu nos anos 1970; quantitativa- mente sem dúvida que superam – e tenho a suspeita de que não só quantitativamente). Reler Secreções, Excreções e Desatinos me deu uma sensação parecida com a que tenho ao reler William Shakes- peare (e lembrei-me de ter tido essa impressão nas outras vezes em que reli Secreções etc.); ou seja, tive a impressão de testemunhar um conteúdo fortemente mítico, arcaico e, ao mesmo tempo, perfeitamente atual. Rubem Fonseca, por ter o senso do eterno e do perene (especialmente nessa fase tar- dia de sua produção), jamais incorre em provincianismos temporais para caracterizar o presente; Secreções, enfim, tem uma voz sem hesitação cuja solidez se relaciona necessaria- mente com esse alicerce mítico, atemporal, eterno. Não por acaso esse é o único livro de Rubem Fonseca em que o sobrenatural se faz presente (em quatro contos), sendo tal presença não o centro do interesse narrativo, mas apenas um dos dados das circunstâncias em que os persona- gens se veem (fazendo um paralelo: é como na peça Hamlet, que tem um fantasma, mas não é uma história de fantasmas; parece-me óbvio que qualquer pessoa madura sabe que o u- niverso tem de tudo, inclusive assombrações; reações exage- radas a isso apenas denotam personalidades constrangedo- ramente pueris). O mundo de Secreções, Excreções e Desatinos é um mundo de personagens que, por meio de uma talvez justa, talvez exacerbada autoconsciência, aparentemente afastaram a ameaça de serem esmagados por esfinges indecifráveis; pessoas que foram sábias para constatar que, embora as leis últimas que determinam a causalidade do mundo não sejam acessíveis a nosso conhecimento (engloba-se aí o sobrenatu- ral), podemos discernir um grande número de regras sobre o funcionamento da realidade, e sem dúvida as discernimos; dessa forma nos concedemos uma pequena salvação através do conhecimento (não, não se trata de alguma idiotice ilumi- nista do tipo “projeto de emancipação total do homem”) e adquirimos, assim, uma talvez suficiente ciência do bem e do mal para sermos razoavelmente justos sentenciadores e exe- cutores de sentenças; no mais, nossas conquistas cognitivas todas talvez não passem de copromancias, de um eterno e quase ridículo deslindar da merda, mas, por que não?, se é isso que nos cabe como espécie, sejamos os melhores co- promantas que pudermos. Toda essa autoconsciência irônica (mas não autodepre- ciativa) está espalhada pelos catorze contos de Secreções, Excreções e Desatinos, como veremos a seguir. (Falei da sensação meio shakesperiana que esse livro me dá; sim, sem dúvida, mas acrescentaria outro autor teatral elisabetano, o fictício Richard Wharfinger, personagem de O Leilão do Lo- te 49, romance de Thomas Pynchon lançado em 1966; den- tre os vários pendores que Rubem Fonseca tem estão tam- bém o pendor para o burlesco, o grotesco e o farsesco; nesse sentido ele é mais wharfingeriano do que shakesperiano; A Tragédia do Mensageiro, peça fictícia desse autor fictício, é hilária – “um desenho do Papa-Léguas escrito em versos brancos” – e sinistra, combinação frequente na ficção de Rubem.) O conto que abre Secreções etc., Copromancia, conta a história de um sujeito que, a partir do interesse solipsista pe- las próprias fezes, descobre nelas uma linguagem que ex- pressa conteúdos precognitivos; esse conhecimento, contu- do, não o livra de ser alcançado pelos misteriosos desígnios do destino, contra os quais nada poderá fazer; Coincidências é um bom e tipicamente fonsequiano conto de ação envol- vendo submundo, matador de aluguel, etc.; Agora Você (ou José e Seus Irmãos) é um conto desnecessário que mostra pessoas desnecessárias falando coisas desnecessárias numa desnecessária sessão de terapia em grupo; A Natureza, em Oposição à Graça mostra um sutil pacto demoníaco (obser- vem bem: os pactários estão lá) em que, curiosamente (ou aparentemente), o príncipe das trevas, numa interessantíssi- ma manifestação inconspícua, não pede nada em troca para o beneficiário de seus prodígios; O Estuprador cumpre a tremenda façanha de desdefinir estupro; Belos Dentes e um Bom Coração mostra um sentenciador que realmente com- preende seu próximo e faz da mentira uma serva da verdade; Beijinhos no Rosto é um dispensável conto sobre câncer, tentativa de suicídio, etc. (se eu, Eduardo Haak, fosse propor uma regra de ouro para se escrever boa ficção, a regra seria: jamais crie um personagem idiota, ou seja, fantasioso a res- peito de si mesmo, inconsequente, inábil, inepto, pueril; ja- mais crie um personagem que não consegue transcender as constrições que lhe são impostas por sua vidinha; de alguma forma esse conto do Rubem me fez pensar nessas coisas); Aroma Cactáceo é outro bom conto sobre matadores de a- luguel; Mulheres e Homens Apaixonados é uma comédia- tragédia de erros tremendamente engenhosa e cheia de ver- dades sobre destino, escolhas e nossa aparentemente incoer- cível tendência para o erro; A Entrega é um conto de ação enigmático, elíptico e, ao mesmo tempo, muito claro no que oferece aos nossos olhos; Mecanismo de Defesa é um conto óbvio sobre masturbação, protagonizado por alguém que não consegue transcender as constrições impostas por sua vidinha; Encontros e Desencontros é um conto leve, mas rigorosamente concebido, com peripécia, reconhecimento, etc.; por fim, O Corcunda e a Vênus de Botticelli, que talvez seja a mais esplendorosa peça ficcional já escrita sobre a se- dução (o último conto do livro na verdade é Vida, um dis- pensável e breve texto sobre flatulência); sem dúvida que O Corcunda etc. é um dos mais excepcionais contos já escritos por Rubem Fonseca; o conto ecoa a famosa cena de Ricardo III, de William Shakespeare, em que Richard Gloucester se- duz Lady Anne (em frente ao cadáver do marido dela!, mari- do assassinado por ele, Dick Vigarista!); porém, o corcunda shakesperiano é um sujeito ameaçadoramente aliciador (ape- sar das palavras blandiciosas com que corteja Anne), ao pas- so que o corcunda fonsequiano é inteligente, paciente, estra- tégico – ou seja, sedutor de fato; sua prosódia tem uma e- nigmática afinidade com a prosódia extravagante de outro grande personagem de Rubem, o anão José Zakkai, o Nariz de Ferro (de A Grande Arte), embora nada haja de extrava- gante nos pensamentos e na expressão verbal do corcunda; de alguma forma Rubem Fonseca conseguiu caracterizar in- diretamente e numa linguagem sóbria sua deformidade física, sem usar símbolos explícitos do disforme; talvez Rubem te- nha alcançado esse resultado através da profunda autocons- ciência do personagem (que sabe que sua aparência grotesca é um dado incontornável; Zakkai também é um grotesco as- sumido e altamente autoconsciente, embora se expresse de modo diverso, etc.). Falei lá atrás que a regra de ouro para se escrever pés- sima ficção é criar um personagem que não consegue trans- cender as constrições que lhe são impostas por sua vidinha, que não consegue superar o ramerrão, etc.; o corcunda fon- sequiano consegue, a despeito daquela desalentadora (e ver- dadeira) afirmação de Sigmund Freud, de que anatomia é destino. Um personagem idiota se serviria desse destino em particular (anatômico) para sentir (e estimular no próximo) pena de si mesmo. Já o personagem prodigioso (o determi- nado, o audaz, etc.) acaba fazendo desse mesmo destino algo bem, bem mais interessante: fazendo dele aquilo que bem entender. AXILAS E OUTRAS HISTÓRIAS INDECOROSAS (2011)
Sua mulher se tornou um estorvo e dar o bilhete azul
pra ela será uma aporrinhação dos diabos? É simples: embe- bede-a e a jogue do vigésimo andar. Um chato vive insistin- do em te contar piadas idiotas? Estrangule-o. Você odeia mulheres burras, tatuadas e com peitos de silicone? Esgane- as todas. Seu filho, que era um bebezinho lindo (apesar de ter Síndrome de Down), se tornou um adulto feio, gordo e extremamente malcriado? Dê-lhe uma facada no coração. Sim, esses enredos não deixam dúvidas de que a misantropia é o assunto fundamental de Axilas e Outras Histórias Inde- corosas, livro que Rubem Fonseca lançou em 2011 (até o presente momento é seu último grande livro). Diferentemen- te de outro misantropo fonsequiano, o cobrador, que em 1979 saía por aí matando, estuprando e decapitando para cobrar uma suposta dívida social, os homicidas de Axilas etc. não têm qualquer motivação política – eles agem como agem simplesmente porque o homem, se formos observar bem, está sempre a um passo de sentir repulsa de seus semelhan- tes (o que significa dizer que o homem está sempre a dois passos do ódio e, hum, a uns três passos de virar um assassi- no). Ama a humanidade, detesta seu próximo, como dizia Edmund Burke; ou quanto mais trivial o defeito, maior a raiva que ele provoca (não me lembro quem é o autor dessa frase). Pensando aqui se a motivação desses misantropos homicidas todos do Rubem Fonseca não seria fundamen- talmente estética (creio que sim e já, já elaboro isso) lembrei- me de uma passagem de um romance de Jean-Paul Sartre que li quando tinha dezessete, dezoito anos (não me lembro em qual livro foi; Sartre pra mim é literatura infanto-juvenil da pior espécie, ou seja, aquela que não dá pra reler quando viramos adultos). O tal personagem sartriano, sem dúvida um misantropo, tece uma curiosa fantasia homicida ao ob- servar uma vulgarérrima e banal prostituta – imagina-se fa- zendo um monte de furos com um revólver (objeto que ele descreve como “aquela coisa que explode e faz barulho”) ao redor do umbigo da mulher. Se eu me lembro razoavelmente da cena, o sujeito sente muita vontade de rir do que imagi- nou – uma mulherzinha grotesca com um monte de furos de bala lhe emoldurando o umbigo. A questão do sujeito, por- tanto, não era exatamente matá-la, mas matá-la de forma ri- dícula. Seu julgamento, portanto, era, antes de mais nada, um julgamento estético. Cultivo alguma suspeita de que o mundo pode realmen- te se tornar um lugar insuportável talvez menos por sua ten- dência às catástrofes (guerras, desastres naturais, epidemias) do que pela tendência que o homem tem para o mau-gosto e pela vocação que ele tem para criar e disseminar coisas idio- tas – pensamentos capengas, clichês, novelas e séries de tele- visão (dizem que quando um imbecil está morrendo afogado ele vê passar em sua mente não um filme, mas uma novela das oito, inteirinha; a piada é ótima, ou seja, quem contá-la corre pouco risco de ser estrangulado por um misantropo fonsequiano); falei em mau-gosto, que de modo algum pode ser subestimado; embora a apreciação do belo possa parecer moralmente neutra (e para alguns até mesmo uma coisa frí- vola), a falta de discernimento estético costuma vir acompa- nhada da falta de discernimentos outros; o ser simplório (que, aliás, costuma declarar sua simploriedade com muito orgulho) invariavelmente amesquinha a vida com suas atitu- des, opiniões e preferências, preferências estéticas inclusive – sua influência, portanto, acaba não sendo moralmente neu- tra. Lembro-me de discutir com amigos que a mediocridade arquitetônica de certos balneários (Vila Caiçara, Praia Gran- de, por exemplo) tinha uma evidente relação com a mentali- dade de seus frequentadores – operários simplórios do ABCD, farofeiros, caipiras e cafonas das mais diversas pro- cedências; e que o Guarujá, por mais avacalhação que tenha sofrido com a passagem dos anos, sempre foi e sempre será um lugar onde foram construídos prédios projetados pelo arquiteto modernista Gregori Warchavchik e que isso, sem dúvida, tem relação com a mentalidade, senão de seus fre- quentadores atuais, ao menos dos antigos; e que essa exce- lência em particular pode ser desencadeadora de excelências outras, de despertares cognitivos, etc. Eu sei o quanto pode ser temerário afirmar que o bur- ro, o inepto, o cafona sempre está muito próximo de se tor- nar um malfeitor (a simples experiência desmentirá isso a- bundantemente); outra dificuldade ao se abordar esse assun- to é que, por a experiência, por o arrebatamento estético nos ocorrer de forma pré-conceitual, nossas opiniões estéticas nunca deixarão de ser, em alguma medida, preconceitos, sendo que todos sabemos que os preconceitos não são admi- tidos como testemunhas legítimas para a confirmação de verdades (ainda que um preconceito, sem dúvida, possa a- firmar algo rigorosamente verdadeiro). A despeito disso tudo lá estão os misantropos fonse- quianos, experimentando um infinito fastio com a chinfrim espécie humana e sentenciando à morte mulheres burras, ta- tuadas (uma tatuagem logo acima do cóccix em que se lê, “Jesus Salva!”) e siliconadas, porque a simples presença de uma pessoa com essas características na tessitura do real é necessariamente deletéria, sem nenhum atenuante. A lei que rege esse universo ficcional em particular não é a lei da razo- abilidade e da tolerância, tampouco a lei daquilo que é realis- ticamente verossímil, mas uma primitiva lei psicológica que nos predispõe a querer eliminar tudo aquilo que atravanca nosso espaço vital; Rubem Fonseca faz com frequência um uso interessantíssimo desse recurso, o anacronismo (injetar uma ética arcaica numa situação cheia de referências con- temporâneas). Há nisso tudo um desmascaramento do ho- mem supostamente civilizado, uma afirmação de que não precisamos cavar muito para encontrarmos em nosso interi- or sítios arqueológicos dos mais macabros, onde correm rios de sangue, etc.? É claro que há. E nada há propriamente de novo nesse desmascaramento. Nem todos contos de Axilas e Outras Histórias Indeco- rosas são a respeito de a convivência entre os homens ser uma verdadeira arte das sensações insuportáveis (uma ótima definição de Michel Foucault para tortura); Paixão, embora mostre um marido que decidiu eliminar uma esposa megera, é uma engenhosíssima história de crime quase perfeito, cheia de reviravoltas, etc.; Axilas, Mordida, Confiteor e Janela Sem Cortina (esse conto colocou em circulação a palavra cruci- verbalista, que é o profissional que monta palavras cruzadas) também são histórias de crime, com elementos de fetichismo erótico; o conto mais atípico de Axilas etc. (talvez o melhor e, sem dúvida, um dos melhores de Rubem Fonseca) é o que abre o volume, Sapatos. Pode-se dizer que Sapatos é a mesma história narrada por Alberto Moravia no conto O Terror de Roma, que é a mesma história narrada por Plínio Marcos na peça Dois Per- didos Numa Noite Suja – o sujeito que acha que o mundo o rejeita porque ele não tem um par de calçados que preste e que sua sorte, sem dúvida nenhuma, vai mudar quando esti- ver usando uns pisantes bacanas; na verdade no conto de Rubem quem é apegado a essa ilusão quanto ao poder con- tido num par de sapatos novos é a mãe do sujeito descalço; o sujeito no fundo sabe que sapatos são apenas sapatos, ou seja, ele sabe que ninguém, tampouco um mero objeto feti- chizado, pode fazer por ele aquilo que por negligência ele se abstiver de fazer; isso o coloca numa perspectiva muito dife- rente (muito superior) da dos personagens descalços do Al- berto Moravia e do Plínio Marcos; no caso de Plínio, é o a- pego de Tonho à ilusão pueril de que sua vida seria total- mente diferente se ele tivesse sapatos bons que permite que ele seja tão terrivelmente manipulado pelo crápula do Paco; em suma, os Tonhos da vida, enquanto insistirem em depo- sitar esperanças descabidas em coisas exteriores a eles mes- mos (em políticos, em líderes religiosos, em pares de sapa- tos, etc.), permanecerão vulneráveis aos aliciamentos feitos por demagogos, manipulações, etc. O descalço fonsequiano acaba ganhando da mãe um par de sapatos novos, bonitos, importados (obtidos de for- ma suspeita, etc.). Os sapatos, porém, têm um número me- nor do que o que ele usa (“pé de pobre não tem tamanho”); eles apertam e doem, mas ele os calça e insiste em andar com eles, desafiador, vamos ver só quem manda aqui, você não sabe com quem se meteu. Após muita dor, sofrimento e de- terminação, os sapatos terminam por lacear – sim, quem manda ali é o sujeito; quem escolhe o que fazer com sapatos apertados é o sujeito; quem coloca um mero par de sapatos em seu devido e insignificante lugar é ele (e apenas ele): o su- jeito. Gosto muito desse sujeito e de sua atitude toda. ELA E OUTRAS MULHERES (2006)
Talvez o conto que represente a síntese, a unidade de
um livro (de contos) seja aquele que imediatamente vem à nossa memória quando pensamos, “tal livro, aquele que tem aquele conto assim, assim”. Em Ela e Outras Mulheres, livro que Rubem Fonseca lançou em 2006, esse conto para mim é Karin. Há vários contos excelentes nesse volume, mas preci- so me esforçar um pouco para evocá-los, “ah, aquele conto assim, assim, tá, agora lembrei”. Talvez o que explique a faci- lidade com que Karin venha à minha memória é que ele seja o excelente entre os excelentes (nem sempre é o caso; um conto menor do livro Pequenas Criaturas, O Bordado, é es- pecialmente memorável apenas por um de seus personagens, um tatuador, ter um modo muito peculiar de falar); sobre a excelência de Karin, é claro que isso tem a ver com o fato de ele ser um conto engenhoso (peripécia e reconhecimento es- tão lá), mas de modo algum o conto se esgota nessa defini- ção – o que o alça à verdadeira (e imensa) grandeza é que ele é um dos mais realistas (não apela em nenhum momento à nossa suspensão temporária da incredulidade) e trágicos que Rubem já escreveu. Seu protagonista, que conhecemos pela alcunha de Gordo, é um simplório e manso porteiro de prédio que não cultiva maus pensamentos sobre nada e sobre ninguém (nem sobre si mesmo), que aparentemente não tem recalques, res- sentimentos, rancores, alguém cuja saciedade existencial se consuma de forma absolutamente plena ao se encher de pão com manteiga e doce de leite (as melhores coisas que exis- tem no mundo para nosso mal-aventurado pobre de espírito, pois, como logo veremos, será dele o reino das trevas). Sendo o sujeito um manso, um inofensivo que está lá no cantinho dele, só abrindo o portão para os moradores e engordando (e às vezes se masturbando com as revistas jo- gadas fora que ele encontra na lixeira do prédio), em que hy- bris (arrogância) ele poderá incorrer que o levará à hamartia (erro trágico), especificamente à tragédia do descontrole e da incontinência? Os termos simploriedade e arrogância pare- cem contraditórios, mas na verdade não são; a hybris que frequentemente está no cerne da criatura simplória é ignorar, arrogantemente, seu próprio lado sombrio, é julgar-se sem imaginação ou propensão para o mal (a ninguém será lícito ignorar as próprias sombras, pois poderá facilmente ser do- minado por elas, afirmação essa que é um possível corolário do conhece-te a ti mesmo). Nosso infausto Gordo parece sequer pressentir as insaciedades outras que carrega dentro de si (ele não sabe, ou finge não saber, que nem só de pão com manteiga vive o homem, etc.); e que, ao ignorar tais in- saciedades, está deixando desguarnecido o flanco por onde a catástrofe (e sua progressão fulminante) invadirá sua vida. As adolescentes do prédio o tratam de forma jocosa, mas afetuosa, lhe dão barras de doce de leite de presente, toma, Gordo, etc. Duas vão a um baile de carnaval e no meio da madrugada uma delas, a Karin, chega de táxi, sozi- nha, bêbada, dizendo que não está se sentindo bem. O pres- tativo Gordo sai da guarita e a ajuda a se locomover, sugere que ela se deite um pouco e a conduz ao quarto usado pelos funcionários do prédio. Então um contato corporal não premeditado acontece entre os dois – a garota se desequili- bra e um de seus seios acaba pressionando a carne enxundi- osa do Gordo. Ele, que nunca tinha tido um contato corpo- ral daquele tipo, sente como se um raio o tivesse atravessa- do. Gordo empurra Karin para o sofá e consuma um rápi- do, agônico e constrangido estupro. A garota começa a cho- rar e ele pede desesperadas desculpas, pelo amor de Deus, não sei onde eu estava com a cabeça, me perdoa, etc. Ela in- siste que vai denunciá-lo à polícia, então o Gordo a agarra pelo pescoço e a mata por esganadura (constrição mecânica do pescoço feita com as mãos, diferente do estrangulamento, que é feito com laço, corda, etc.). Em seguida, Gordo arrasta seu corpo até a caixa d’água do prédio, levanta sua tampa e o arremessa lá. Abandona a portaria e vai até uma agência ban- cária, que ainda está fechada, para sacar o dinheiro que tem na poupança, com o qual pretende fugir. Um trabalhador, sem nenhum antecedente desabona- dor, alguém que jamais cometeu qualquer tipo de violência, um sujeito prestativo, solícito, portador de bons sentimentos como gratidão em poucos e desgraçantes minutos se torna um estuprador e um assassino (subjugado pelo impulso erra- do para matar, aquele que todo homem tem, segundo Ma- teus, de A Grande Arte, que é quem percebe, durante uma briga na Boca do Lixo paulistana, que o boliviano Camilo Fuentes tem o raro instinto certo, cooptando-o assim para o Escritório Central). Em face dessa ambiguidade e complexi- dade toda esperarmos que a conta um dia feche porque está determinado que caberá à Justiça (ordenamento jurídico, “dos delitos e das penas”, etc.) pronunciar sobre o Gordo a palavra última, a palavra definitiva, a palavra restauradora da ordem cósmica, é sermos tremendamente ingênuos – a Justi- ça é, quando muito, um mero sistema de disciplina social, e apenas isso (coibir delitos com a ameaça de punição, tirar vagabundos de cena, etc.). Só a ficção, a poesia trágica, é ca- paz de dar uma última palavra de tamanha envergadura. (Quaisquer outros discursos sobre o fato, feministas denun- ciando feminicídio, etc., igualmente não passam de meros, ainda que legítimos (o.k., o Gordo cometeu um crime terrí- vel, estuprou e matou uma jovem, portanto merece apodre- cer na cadeia), conclames à disciplina social. Para muito além dessas questõezinhas, que só empol- gam talentos inferiores como Albert Camus, está nosso Ru- bem Fonseca, que nessas páginas em particular demonstrou ser um poeta trágico que pouco (ou nada) fica a dever àque- les gregos famosos, Sófocles, Ésquilo e Eurípedes. Lemos a história do Gordo e sentimos imenso horror e piedade com seu trágico destino. E isso simplesmente porque, por mais que no fundo ele fosse mesmo um arrogante (por insistir na arrogância de ignorar-se, por supor-se inalcançável pelo mal, etc.), ele não merecia acabar sendo uma tão absoluta vítima de si mesmo. PEQUENAS CRIATURAS (2002)
A humanidade é um monte de merda, assim sentencia o
demoníaco e fanfarrão José Zakkai, de A Grande Arte, após torturar e matar o assassino profissional Rafael (o anão Zak- kai introduz em sua cavidade bucal uma barata viva e o gol- peia várias vezes com uma tesoura de podar rosas). Curioso (talvez mais do que meramente curioso) que esse livro, que está cheio de grandes canalhas, provavelmente os maiores que Rubem Fonseca já criou, tenha a palavra grande no títu- lo; e que o Pequenas Criaturas, livro povoado apenas por canalhas chinfrins (quando canalhas, já que alguns não têm tônus nem para isso), tenha no título a palavra pequeno. Lançado em 2002, Pequenas Criaturas é um livro de contos com finais felizes, o que a rigor o caracteriza como um livro cômico (comédia tradicionalmente é o tipo de his- tória em que as coisas dão certo no final – as pessoas conse- guem o que desejavam, casamentos são feitos, mal- entendidos são desfeitos, reconciliações ocorrem, em suma, as coisas se consumam em variados ritos de integração). Mas sendo Rubem Fonseca o autor que é, seus finais felizes são bastante ambíguos e duvidosos; os êxitos que seus pequenos personagens alcançam são medíocres e sua duração não de- verá ser muito extensa. No mundo de Pequenas Criaturas ninguém tem apontado contra si o dedo de um demônio a- cusador (não há um José Zakkai para lhes dizer, a humani- dade é um monte de matéria fecal); a presença do mal, por- tanto, é difusa, volátil, atmosférica, soft, parcelada em 48 prestações, etc.; não temos um Zakkai, mas podemos contar com coachings, equipes de trabalho, aliciadoras frases de au- toajuda, mulheres narcisistas, ciumentas e ranhetas (do tipo que questionam por que William Shakespeare, um homem, um homem misógino, etc., foi eleito a personalidade do mi- lênio). Todo mundo, nesse mundinho, acaba realizando seus sonhos – e poucos, dentre esses, percebem a imensa ironia que sempre há nessas circunstâncias aparentemente felizes em que sonhos são realizados. De fato, as tais pequenas criaturas fonsequianas invari- avelmente conseguem o que querem: uma mulherzinha ciu- menta e possessiva consegue que o relutante namorado tatue no pênis o nome dela, Maria Auxiliadora; outra mulherzinha, de forma surpreendentemente engenhosa e astuciosa, conse- gue engravidar de seu ídolo; uma fulaninha, atriz de terceiro time da TV, consegue o posto de madrinha de bateria de uma escola de samba (ainda que a madrinha preterida se vin- gue atacando a atrizinha com uma navalha); um casal de lés- bicas consegue enfim viver juntas, na casa do pai de uma de- las, um ex-homofóbico; um sujeito que perdeu a dentadura e ficou paralítico num incêndio consegue ganhar uma cadeira de rodas e uma dentadura nova; um sujeito, que embora fra- casse ao tentar escrever um livro, consegue esganar a vizinha que sempre o chama de gordo molenga; um ignóbil espreita- dor enfim consegue favores sexuais de uma vizinha atraente; uma velhota igrejeira consegue convencer a amiga, outra ve- lhota igrejeira, que dar esmolas só atrai cada vez mais mise- ráveis para o bairro delas e que os mendigos em geral não passam de farsantes; um aleijado consegue enfim parar de esconder sua parte mutilada quando está com mulheres em situação íntima; uma balzaca ainda atraente consegue se se- parar do marido que, embora seja um homem decente, gene- roso, etc., é baixinho e gorducho. Poucos personagens de Pequenas Criaturas são dados a resoluções radicais, violentas; há um pai que vinga a morte da filha, matando a tiros o sujeito que a atropelou; há um la- drão que, contrariando o conselho do avô, um português ventanista, decide praticar assaltos à mão armada. Dos pou- cos personagens que percebem a sinistra ironia das circuns- tâncias em que se encontram, o mais notável é o protagonis- ta de A Escolha, o tal sujeito que consegue uma dentadura e uma cadeira de rodas. (Eu tenho esse breve conto – cinco páginas – como tão rigorosamente perfeito, como tão es- plendoroso, que uma vez o decorei inteiro.) E o único conto do livro que não retrata vidinhas, que é protagonizado por dois grandes personagens (um deles uma figura enigmática e provocantemente sedutora, talvez um demônio, talvez o demônio da falsa luz, talvez o demônio das trevas falsamente triunfantes, talvez um híbrido dos dois), é o virtuosístico e soberbo Escuridão e Lucidez. Embora esses dois contos, justamente os que têm os personagens mais extraordinários de Pequenas Criaturas, se- jam os melhores do livro (e certamente estão entre os me- lhores do Rubem Fonseca), não deixo de pensar que um personagem medíocre possa ser bastante desafiador para um ficcionista; o medíocre tende a ser retratado ou com escárnio ou com complacência, que podem ser (e costumam de fato ser) duas saídas banais, ficcionalmente falando; puxando um exemplo oriundo das artes plásticas, o pintor Iberê Camargo conseguia resultados artísticos soberbos retratando a medio- cridade humana, velhotas com ar debiloide, etc., sem ser complacente ou escarnecedor (acho que essa série do Iberê, das velhotas, etc., se chama retratos cretinos). Creio que Ru- bem tenha se saído muito bem desse desafio imposto pelo personagem espesso realizando seus sonhos; os efeitos que tais personagens desencadeiam são sutis e, até certo ponto, limitados por um certo imediatismo, espacial e temporal; sendo tão intranscendentes e incapazes (velhotas fofoquei- ras, mulherzinhas faladeiras, periguetes ambiciosas, etc.), es- sas pequenas criaturas parecem também incapazes de criar e difundir qualquer tipo de malignidade de fato maligna; mas sua simples e espessa presença acaba por difundir um mal- estar, uma toxidade que nos leva à conclusão de que a medi- ocridade não é uma força moralmente neutra – que, apesar de sua irrelevância, o medíocre trabalha, sim, para o princí- pio do mal, da catástrofe, da desagregação. Não tenho dúvida, portanto (e Rubem Fonseca certa- mente não tem), de que por trás dos coachings, das equipes de trabalho, dos propagadores de frases de autoajuda, dos manipuladores, dos influenciadores, dos aliciadores, de mu- lherzinhas chatinhas que coagem namorados a tatuarem o nome delas no pênis, de mulherzinhas ranhetas que chamam Shakespeare de misógino, etc., não tenho dúvida de que por trás disso tudo, dessa malignidade macia, espargida de forma difusa, volátil, atmosférica, em 48 suaves prestações, etc., es- teja de fato o princípio do mal – vejo nitidamente ali, na moita, o chefão de um bandinho de medíocres testas de fer- ro, sim, ele, o demônio da falsa luz (ou o demônio das trevas falsamente triunfantes, provavelmente um híbrido dos dois), fazendo um tremendo trabalho de destruição do mundo ao torná-lo, simplesmente, um lugar insípido.