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Rubem Fonseca

Ensaios Críticos

Eduardo Haak

Outubro de 2019
SUMÁRIO

A Grande Arte (1983)


Bufo & Spallanzani (1985)
Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988)
Agosto (1990)
O Caso Morel (1973)
O Doente Molière (2000)
O Selvagem da Ópera (1994)
E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao
Meu Charuto (1997)
Mandrake: A Bíblia e a Bengala (2005)
Diário de um Fescenino (2003)
O Seminarista (2009)
Romance Negro e Outras Histórias (1992)
O Cobrador (1979)
O Buraco na Parede (1995)
Histórias de Amor (1997)
Lúcia McCartney (1967)
Carne Crua (2018)
Os Prisioneiros (1963)
A Coleira do Cão (1965)
Feliz Ano Novo (1975)
A Confraria dos Espadas (1998)
Calibre 22 (2017)
Amálgama e Histórias Curtas (2013 e 2015)
Secreções, Excreções e Desatinos (2001)
Axilas e Outras Histórias Indecorosas (2011)
Ela e Outras Mulheres (2006)
Pequenas Criaturas (2002)
A GRANDE ARTE (1983)

1 - "POSSO CHAMÁ-LO PELO SOBRIQUET?"

Li A Grande Arte pela primeira vez em 1996. As pri-


meiras cento e poucas páginas eu li num Fran’s Café que e-
xistia na Rua Doutor Vila Nova, Vila Buarque, enquanto ca-
bulava aula. Eu era então um aluno de vinte e cinco anos
matriculado no Instituto Presbiteriano Mackenzie, no curso
de Administração de Empresas (já havia feito dois anos de
Ciências Econômicas, na mesma FCECA – Faculdade de
Ciências Econômicas, Contabilidade e Administração – e
decidira mudar para Administração porque a matemática era
menos puxada). Nessa altura dos acontecimentos eu passava
a maior parte do meu tempo lendo literatura na Biblioteca
George Alexander, a biblioteca central (cada faculdade tinha
uma biblioteca setorial); construída em 1926, talvez essa seja
a biblioteca mais bonita de São Paulo. Os inspiradores desse
meu ato de rebeldia eram o dramaturgo Eugene O’Neill (que
foi expulso de Harvard ao arremessar uma garrafa contra a
janela do escritório do então magnífico reitor dessa magnífi-
ca universidade, o futuro presidente dos Estados Unidos
Woodrow Wilson) e, creiam, o Diogo Mainardi (que, matri-
culado num curso de Economia em Londres, cabulava aula
para ficar lendo o que seu mentor intelectual, Ivan Lessa, lhe
indicava). Aos vinte e cinco anos eu pretendia, no fundo, a-
pesar de minha adesão formal ao mundo careta da Adminis-
tração, vir a ser um escritor de ficção, um literato. (Mentira:
eu odiava o mundo marginal dos artistas e queria lidar com o
que realmente move o mundo, as mulheres, etc.: a grana; eu
queria fazer um milhão de dólares até os trinta anos, como
os yuppies dos anos oitenta apregoavam.) (Mentira: todos os
ídolos que eu tinha aos vinte e cinco anos, os modelos exis-
tenciais apaixonantes que eu buscava emular, os caras que eu
queria ser quando crescesse – e Rubem Fonseca estava pres-
tes a se tornar um desses caras –, todos, todos eram escrito-
res.)
Reli A Grande Arte creio que seis ou sete vezes nesses
últimos vinte e três anos. Os únicos autores que releio, que
releio sempre, como num ato litúrgico, são Nelson Rodri-
gues, Rubem Fonseca, o Hamlet, de William Shakespeare e
Less Than Zero, do Bret Easton Ellis. Reli mais uma vez A
Grande Arte entre dezembro e janeiro desse ano (2019). Ali-
ás, reli duas vezes – na primeira releitura, li o livro em ordem
inversa, do último capítulo ao primeiro; tentei assim apreciar
cada capítulo em si mesmo, como uma narrativa possivel-
mente autônoma, como se cada capítulo fosse um conto;
terminada esse leitura, li na ordem do primeiro capítulo ao
último, especialmente atento ao modo (técnica, etc.) que
Fonseca usou para fazer a trama avançar. Foi uma leitura a-
tenta de um livro que, sim, eu já conhecia bem em seu deta-
lhamento de superfície, seus principais personagens, etc. Mas
que eu creio ter conhecido bem melhor depois disso tudo.
Vão aí minhas impressões e insights dessa recente relei-
tura.
Na primeira fase da história (a primeira e a segunda fa-
ses estão contidas nas primeiras 160 páginas do livro, parte
essa que tem o subtítulo PERCOR, “perfurar e cortar”), há
uma sequência de acontecimentos aparentemente interliga-
dos – um caso de chantagem envolvendo uma fita de video-
cassete (o romance foi lançado em 1983), três garotas de
programa mortas por esganadura (constrição mecânica do
pescoço feita com as mãos, diferente do estrangulamento,
que é a constrição feita com laço, corda, etc.) e marcadas a
faca com a letra P (“que no alfabeto dos antigos semitas que-
ria dizer ‘boca’”); o personagem Roberto Mitry, alvo da
chantagem – ele esqueceu a tal fita no apartamento de uma
massagista e passou a ser chantageado por ela –, contrata os
serviços do escritório de advocacia de Peter Mandrake (cri-
minalista) e seu sócio Wexler (causas cíveis, trabalhistas, etc.)
para que o caso seja resolvido sem a interferência da polícia,
etc. Mitry diz desconhecer o conteúdo da fita, afirmando que
ela “pertence a terceiros”; alega, ao assinar a procuração para
que o escritório o represente em juízo, estar pressentindo
ameaças outras, que ele não diz quais são, reafirmando ser
apenas um pressentimento, “Não tenho inimigos”, etc. Ro-
berto Mitry, com a aparência óbvia de pertencer à alta bur-
guesia (“parece um desses tipos que enriqueceram mano-
brando na bolsa, escorchando os fodidos”, como diz Man-
drake), é um tipo enigmático, paranoico, pernóstico (“Posso
chamá-lo pelo sobriquet?”), sarcástico, sádico sexual, cocai-
nômano, que sempre está mastigando algo (que descobrire-
mos, umas cem páginas adiante, ser raiz de ginseng). Tem
uns quarenta anos, seu peito é flácido e ele usa um monte
“balangandãs de ouro”. Na altura dos acontecimentos em
que as três garotas de programa (uma delas, nascida Oswal-
da, Cila na fase prostituição e Laura Lins na fase madame,
dona de botique elegante no Leblon, etc.) já foram mortas,
Peter Mandrake blefa para Roberto Mitry que “a polícia já
está com a fita de videocassete”, apenas para testar a reação
dele. Mitry desconfia que Mandrake está com a fita, o que ele
nega (e não está mesmo). Poucas semanas depois Peter é vi-
sitado em casa por dois tipos (que mais adiante saberemos
que se chamam Rafael e Camilo Fuentes, técnicos – ou seja,
matadores – de uma organização chamada Escritório Cen-
tral, uma holding que usa negócios legais – Banco Aquiles,
Fun, Pleasure, etc. – como fachada e como lavanderia para o
dinheiro oriundo de seus verdadeiros negócios, tráfico de
cocaína, prostituição, etc., “Tóxico e putaria, coisas que dão
muito dinheiro nesse país esfuziante”, como dirá o anão José
Zakkai – falarei, ô se falarei, detidamente de Zakkai mais a-
diante; Zakkai,o Nariz de Ferro, provavelmente é a criação
ficcional mais impressionante de Rubem Fonseca). Os mata-
dores Camilo e Rafael perguntam a Peter, de modo não mui-
to amistoso, “Cadê a fita?”, etc. A situação termina com Pe-
ter esfaqueado no abdômen e sua namorada (uma das) Ada
seviciada – especificamente, Ada é sodomizada com o cabo
de uma faca. Esse episódio inaugura a segunda fase da histó-
ria.
Nessa segunda fase, o objetivo de Peter Mandrake dei-
xa de ser heurístico, de investigação dos fatos; passamos en-
tão a acompanhá-lo em sua guerra pessoal para se vingar dos
malfeitores de Ada. E é aqui que o título do livro se explica
– Mandrake adota como divisa um dos poucos versos que
chegaram a nós do poeta grego Arquíloco (680 a.C.), “Eu
tenho umA Grande Arte: eu firo duramente aqueles que me
ferem”. Peter Mandrake consegue que um antigo conhecido,
o professor Hermes (hoje também ligado ao Escritório Cen-
tral, descobriremos mais adiante), o instrua no manejo de
armas brancas. Compra uma mortífera faca Randall. Numa
única madrugada de instruções, Peter aprende as técnicas
consagradas para a luta com facas, manobras como in quar-
tata, passata sotto, etc. A partir de uma dica do tira Raul (tal-
vez seu único outro amigo, além de Wexler), que identifica o
matador Camilo Fuentes (Fuentes, preso sob suspeita de ter
ligação com uma considerável quantidade de cocaína apre-
endida num prédio na Rua Barata Ribeiro, vem usando o
cordão com um unicórnio de ouro que ele arrebatou de Pe-
ter no episódio do esfaqueamento; esse objeto tem um pro-
fundo valor sentimental para Peter, pois foi um presente que
ganhou de sua amada Berta Bronstein, então já uma ines-
quecível ex); como eu dizia, a partir da dica de Raul Peter
empreende uma viagem no Trem da Morte, que liga Bauru,
São Paulo, a Corumbá, Mato Grosso do Sul, Puerto Quijar-
ro/Puerto Suarez, Bolívia, no encalço de Camilo (que foi
solto pela polícia, que pretende grampeá-lo na fronteira, por
suspeitar de que ele esteja envolvido num negócio bem mai-
or do que esse no qual quase foi flagrado – uns quilos de co-
caína no prédio da Barata Ribeiro).
Já que falei em Berta Bronstein, uma história protago-
nizada por Peter Mandrake não seria verossímil se não mos-
trasse seu priapismo e seu sempre múltiplo envolvimento
romântico com mulheres; em A Grande Arte vemos Man-
drake em excelente forma, envolvido ao mesmo tempo com
Ada (a que foi sodomizada com o cabo de uma faca pelo
Mão Perfumada, Rafael), Lilibeth (personagem de uma trama
secundária do livro) e a jovem Bebel. Isso sem falar em seu
envolvimento casual com Mercedes, durante a viagem de
trem para a Bolívia (Mercedes é uma policial que se faz pas-
sar por prostituta), e em suas evocações a mulheres passadas,
como Berta Bronstein (uma judia pálida de cabelos lisos e
escuros com quem Peter jogava xadrez, sempre nu) e Eva
Cavalcanti Méier. Mandrake é deliciosamente machista (“Fi-
que aí boazinha lendo o Tio Patinhas”, “Isso é Simone de
Beauvoir, seu idiota!”) e suas mulheres são sempre são dó-
ceis, amáveis e absolutamente dúcteis (não há feministas ou
víboras de túmulo de faraó, lacraias de ralo entupido, no fan-
tástico mundo de Peter Mandrake); numa adorável cena de
A Grande Arte que mostra a realidade intimista de Peter, ele
diz a Ada (que é natureba, etc.) que Berta Bronstein sempre
tinha um vinho para ele gelando na geladeira, então Ada diz
que iogurtes são melhores para a saúde dele, aí Peter diz, “A
Berta tinha seios grandes”, e Ada diz, “Por que então não
volta para ela?, devia ser emocionante mesmo, ficar bebendo
vinho e jogando xadrez o dia todo, ainda mais com uma mu-
lher de seios grandes”. Essa cena, que teria tudo para dege-
nerar num daqueles desagradabilíssimos enfrentamentos
verbais entre homem e mulher, no caso de Peter Mandrake
culmina com a Ada, a que não tem seios grandes e a que
nunca tem um vinho gelando na geladeira, ajoelhada aos pés
de Peter, implorando, “Casa comigo!”. Grande Peter Man-
drake! (Há, há.) (O livro também não seria verossímil se não
mostrasse sua grande amizade com o sócio Wexler, “Eu sou
seu único amigo”, diz Wexler; Peter então menciona seu an-
tigo sócio, Figenbaum, e Wexler diz, “Figenbaum está mor-
to”. Figenbaum é mencionado algumas vezes no livro, sem-
pre acompanhado de uma frase em iídiche, a waycher
mentsch diment, frase que nenhum amigo ou conhecido ju-
deu conseguiu me traduzir e que o tradutor Google também
não conseguiu, detectando o idioma como luxemburguês.)
Concluídas as peripécias da fase vingativa de Peter
Mandrake (ele não mata Camilo Fuentes, ou porque não
conseguiu, ou porque nunca esteve realmente determinado a
isso), inicia-se a segunda parte do livro, Retrato de Família,
fase em que vemos um Mandrake eminentemente conjectu-
ral esmiuçando a história familiar e pessoal de Thales Lima
Prado, primo em primeiro grau de Roberto Mitry, filho de
uma união incestuosa entre irmãos (a irmã, demente, era
mantida trancada no porão da mansão da família, na Aveni-
da Paulista; Lima Prado só toma conhecimento desse segre-
do familiar ao vasculhar as cartas de sua avó, Laurinda, mor-
ta recentemente), banqueiro de fachada, na verdade o chefão
da organização criminosa Escritório Central (tráfico, prosti-
tuição, etc.). A fonte direta dessas informações para Man-
drake é o tal anão José Zakkai, o Nariz de Ferro, e as indire-
tas são fundamentalmente os Cadernos do Lima Prado, um
diário escrito com uma caligrafia praticamente indecifrável
que chega às mãos de Mandrake após Thales Lima Prado
suicidar-se cravando uma faca na própria axila (“Foi para o
Campo de Asfódelos, encontrar-se com Ajax”, como diz o
erudito Mandrake a seu amigo, o tira Raul).
José Zakkai, o Nariz de Ferro, sem dúvida uma das
maiores criações ficcionais de Rubem Fonseca, não dá tantas
informações assim a Mandrake. Membro jurado de morte do
Escritório Central (Thales Lima Prado o julga excessivamen-
te ganancioso e, no mais, pouco confiável), Zakkai está em
guerra aberta com a organização; trata-se de um anão cabo-
tino, uma paródia satânica do Eu sou o Eu sou, alguém que
vive recriando o mundo à imagem e semelhança de suas
próprias deformidades:
“Percebo que o senhor está querendo me catalogar,
mas não adianta, nem mesmo eu sei se sou branco ou preto,
mouro ou judeu, o que aliás não tem a menor importância
de uma forma ou de outra. Sou um homem que sabe das
coisas, passo os dias no telefone para me informar. Os jor-
nais não dizem nada e a televisão, bah, a televisão é o ópio
do povo, como disse Lenin. Conheço a alma humana e sei o
que motiva banqueiros, parlamentares, generais, jornalistas,
ministros, tiras como o Raul, ladies que fuçam no interespa-
ço ocluso, como disse Balzac. Ligo para um lado e outro da
cortina e no fim do dia já sei para onde o vento vai soprar.
Aí abro minha vela, estás me entendendo, e vou vendendo
minhas especiarias para os ofuscados, e o produto converto
em diamantes e selos, uma fortuna que posso transportar na
boceta de uma virgem, se precisar fugir de alguma conjuntu-
ra. Mas esse momento ainda não chegou, a época é de plan-
tar a grana e colhê-la dourada e sumarenta nas vísceras dos
ambiciosos, como disse o Mahatma Gandhi. Não cheiro
mais, nem vendo o que você está pensando, tem muita gente
levando e o vício legal dá mais, que o diga a Souza Cruz.
Conheço todos os bacanas do mundo e sei que a bunda de-
les é mole. Quando era menino via as mulheres passarem
desdenhosas nos seus carros, as mãos coruscando de joias, e
almejava ardentemente tê-las segurando o meu pau. Tam-
bém queria, na mesma época, conhecer o Carlitos, mas ele
morreu antes. Morreu, fodeu-se. Nunca tive um ídolo. Pen-
sei numa época em Jesus Cristo, mas ele foi um fracassado,
como disse o cardeal arcebispo. Estás me entendendo, trafi-
quei amendoim, graxa de sapato, chicletes, cano de chumbo,
erva, pó, limão roubado da feira, não nessa ordem. Fui den-
tista da meia-noite. Morei nos bueiros, com os ratos. Já cus-
piram, mijaram e cagaram em mim. Ou eu morria ou virava
essa maravilha que sou.”
Falei em fase eminentemente conjectural de Mandrake
e explico: um detalhe bem importante que fatalmente escapa
numa leitura superficial e não suficientemente atenta de A
Grande Arte é que tudo nesse livro é produto da consciência
do personagem Peter Mandrake – uns 40 % da narrativa se
refere a coisas acontecidas direta e pessoalmente com ele,
portanto são recriações fidedignas do que realmente aconte-
ceu, e uns 60 % são elaborações meramente conjecturais, em
que o texto passa a ser narrado em terceira pessoa (só apa-
rentemente; lá pelas tantas sempre acaba aparecendo entre
parênteses um comentário pessoal do Mandrake sobre o que
está sendo narrado – narrado por ele mesmo, dando uma de
narrador onisciente). (É fácil acabarmos fazendo uma leitura
desatenta de A Grande Arte – é fácil nos deixarmos levar pe-
la mera fluidez do texto e pelo mero fascínio da sucessão
vertiginosa de situações cujo nexo causal é tênue, ou enigmá-
tico, porque não suficientemente explicitado, pelas situações
esdrúxulas com um pé na inverossimilhança, pelo barro-
quismo, e assim perdermos a noção de seu todo, seu conjun-
to.)
Não é errado, portanto, definir a trama de A Grande
Arte como o confronto de uma consciência individual (de
Peter Mandrake) com uma esfinge indecifrável e inexpugná-
vel. Sim, porque há aspectos da realidade que são evasivos,
realidades que prosperam em segredo (e só prosperam em
segredo, como a realidade do crime; talvez a realidade de
Deus e seus inescrutáveis desígnios também só prospere
graças aos segredos todos que a envolvem; talvez haja uma
dimensão metafórica, metafísica, em A Grande Arte, sem
dúvida de cunho agnóstico, a impossibilidade do saber, etc.,
que evidentemente também não se revela numa leitura su-
perficial.
A leitura desse livro talvez seja decepcionante para
quem gosta de esclarecimentos cabais sobre as coisas; A
Grande Arte tem grande afinidade com a ficção pós-
modernista de Thomas Pynchon, notadamente o Pynchon
de O Leilão do Lote 49 – a agnose, a trama picaresca (Pyn-
chon, aliás, escreveu a quarta capa do livro de contos A Con-
fraria dos Espadas, que Fonseca lançou em 1998), os perso-
nagens extravagantes, etc. Harold Bloom (que implicitamen-
te aponta O Leilão do Lote 49 como o melhor livro de Pyn-
chon, ao analisá-lo no livro Como e Por Que Ler) diz que
Édipa Maas, protagonista e heroína do livro, ao final da his-
tória encontra-se num lugar e numa situação sobre os quais é
impossível fazer qualquer afirmação definitiva – e que esse
lugar/situação indeterminável não é o pior lugar para alguém
estar. Talvez o mesmo possa ser dito sobre Peter Mandrake
ao final de A Grande Arte; ele enfrentou a esfinge e adquiriu
a consciência de que ela é indeslindável e invencível; resta-
lhe apenas o talvez pobre consolo das amizades (Wexler e
Raul), dos charutos (“panatelas, escuros, curtos, ou Pimentel
número dois”) e das mulheres (sempre no plural: mulheres)

2 - CAMILO FUENTES

De todos personagens de A Grande Arte, talvez o mai-


or, pela complexidade de suas motivações e por sua dimen-
são, no final das contas, trágica, é o técnico de linha de mon-
tagem (matador) Camilo Fuentes. (Mas lembremo-nos: os
trechos do livro narrados em terceira pessoa, discurso indire-
to livre, como os que descrevem as ações de Camilo em sua
dimensão intimista, na verdade foram escritos por Peter
Mandrake dando uma de narrador onisciente. Peter não tem
nenhum contato direto com Camilo Fuentes na história; o vê
quando Camilo e Rafael o visitam em seu apartamento; o vê
na delegacia, através daquele falso espelho da sala de interro-
gatório; o vê no trem da morte; e o vê num restaurante em
Puerto Quijarro. Sem dúvida Peter Mandrake baseou-se em
depoimentos para escrever a história de Camilo Fuentes; as-
sim como não há dúvida de que o Camilo exposto na narra-
tiva enquanto pensa, age e tece seus juízos é apenas uma hi-
pótese, uma conjectura de Mandrake; uma conjectura veros-
símil, mas apenas conjectura.)
O Escritório Central, organização criminosa que usa
empresas legais de fachada, testas de ferro, etc., para lavar o
dinheiro oriundo de seus verdadeiros negócios, tráfico de
drogas e prostituição, é cheio de eufemismos (a começar por
Escritório Central); os matadores são técnicos; as pessoas
que serão executadas, mas que ainda não foram, estão em
backlog; e por aí vai. Camilo Fuentes foi descoberto por Ma-
teus, um olheiro do Escritório Central (não olheiro, na ver-
dade, mas o responsável pela linha de montagem da organi-
zação, os trabalhos sujos, os dirty deeds), num episódio o-
corrido num bar na Boca do Lixo, em São Paulo. (Pela des-
crição, um bar que misturava artistas, marginais e burgueses
entediados em busca de fortes emoções, trata-se do Bar So-
berano, lendário reduto do pessoal do cinema paulista nos
anos 1960 e 70, situado na Rua do Triumpho.)
Até então um bandido irrelevante, o boliviano Camilo
Fuentes sem qualquer esforço põe a nocaute no bar dois
playboys fortões que o provocaram para impressionar suas
minas. Mateus imediatamente nota que aquele índio parrudo
tem um raro talento – o ódio frio, o instinto certo para ma-
tar, sim, o instinto certo, porque o impulso errado qualquer
homem tem. Atrai Camilo com uma conversa estilo Davi e
Golias – a luta do pequeno contra o grande, parasitas que
escorcham multidões de fodidos e que merecem mais é se-
rem justiçados mesmo. (O mundo vai ficar ruim para quem
tem todos os dentes, dirá em algum momento de A Grande
Arte o anão José Zakkai, o Nariz de Ferro, também entusias-
ta dessa luta do pequeno contra o grande; não tenho como
não evocar aqui o Bandido da Luz Vermelha vociferando
terceiro mundo vai explodir, quem está de sapato não sobra,
não pode sobrar!, ou mesmo Raskolnikov julgando a velha
usurária em seu tribunal revolucionário íntimo e chegando
ao veredito de que o que a velha merece é mesmo uma boa
machadada no crânio.)
Esse apelo soa como música aos ouvidos de Camilo
Fuentes. Trata-se de um homem construído de ódio e res-
sentimento, para quem matar é quase sempre a única opção
para não morrer – viu o pai ser morto por brasileiros escro-
tos e indignos numa escaramuça de fronteira quando era cri-
ança; teve de servir a esses mesmos brasileiros, em serviços
sempre humilhantes e miseravelmente pagos, durante toda
sua juventude; brasileiros, que conluiados com governantes
bolivianos corruptos, sempre roubaram e espoliaram as ri-
quezas de seu país (não conheço outro livro que mostra o
profundo ódio que os bolivianos têm dos brasileiros, vistos
como imperialistas arrogantes, cruéis, espoliadores, etc.).
Camilo faz um primeiro serviço para o Escritório Cen-
tral: mata um advogado num prédio na Avenida Brigadeiro
Luiz Antônio, estrangulando-o num hall de elevadores com
um fio de náilon disfarçado dentro de um ioiô. Torna-se um
matador de fé da organização, sério, disciplinado, extrema-
mente competente. Tem como parceiro em vários serviços o
técnico Rafael, que insiste em chamá-lo por um apelido que
ele odeia, China. Ao malsucedido serviço que faz com Rafael
na casa de Peter Mandrake (Mandrake sobrevive à facada)
segue-se sua imprevista prisão num prédio na Rua Barata
Ribeiro, suspeito de ter relação com uma considerável quan-
tidade de cocaína apreendida ali pela polícia. Essa prisão se-
lará seu destino: tendo entrado no radar da polícia, torna-se
alguém perigoso para a organização, um arquivo vivo; sua
morte, portanto, é decretada.
Camilo escapa de uma emboscada em São Paulo, no
Cine Marabá, onde tinha um encontro marcado com um
jornaleiro e informante seu (descobre que o informante foi
morto e prevê acertadamente que haverá no cinema gente da
organização querendo pôr as mãos nele; mata os dois técni-
cos no banheiro do cinema, numa cena de ação que, sem
dúvida, não tem semelhante na literatura brasileira). Volta
para o Rio e permanece na encolha, morando num hotel.
Nesse momento de recolhimento, acaba conhecendo Miri-
am, enquanto está fazendo compras num supermercado.
Miriam tinha tido uma aparição rápida e incidental logo
no primeiro capítulo de A Grande Arte – Mandrake atuara
para ela como advogado-amigo numa ação de desapropria-
ção (a prefeitura do Rio estava então eliminando os últimos
remanescentes da zona de prostituição do Mangue, Miriam
era cafetina e tinha ali uma casa de mulheres). À semelhança
do encontro Raskolnikov-Sônia, esse encontro de Camilo
com Miriam significará para ele a possibilidade de redenção
através do amor (para reforçar o sentido praticamente arque-
típico do acontecimento, trata-se do amor de uma prostitu-
ta); Camilo humaniza-se com Miriam; pela primeira vez trata
uma mulher (sobretudo uma brasileira) não como se fosse
uma cadela – pela primeira vez Camilo Fuentes diz a uma
mulher eu gosto de você. Decide sumir em algum recanto do
Brasil acompanhado por sua amada, não matar mais, viver
uma vida pacata criando porcos e galinhas. Mas a organiza-
ção está no encalço dele, assim como agora também está no
encalço do anão José Zakkai, o Nariz de Ferro, sentenciado
a morte por ser ambicioso demais. Zakkai oferece a Camilo
que se una a ele na guerra que está travando contra a organi-
zação. Camilo diz, “Eu faço minhas guerras sozinho”. Zak-
kai, estrategista militar, diz que nas guerras quem não tem
aliados sempre acaba destruído. Sempre.
Camilo alia-se a Zakkai. Os dois vão atrás do técnico
Rafael, que em horas mais amenas cultiva rosas no terreno
de casa. De alguma forma Zakkai soube que Rafael está com
a famigerada fita de videocassete que deu origem à história
toda (Rafael matou Roberto Mitry, a mando da organização,
e procurou a fita no apartamento dele; disse não ter encon-
trado, mas é possível que tenha mentido nesse ponto; talvez
o próprio Mitry, por algum motivo pessoal, tenha mentido o
tempo todo a respeito do esquecimento da fita na casa da
massagista, a chantagem, etc.). Aqui ocorre uma das cenas
mais espantosas e grotescas do livro – Camilo e Zakkai tor-
turam Rafael enfiando uma barata viva em sua boca. Termi-
naram por mata-lo a golpes de tesoura (“Eu não mato um
homem amarrado”, diz Camilo, “Pois eu mato”, diz Zakkai)
e enfim encontram a fita. Em seguida é combinado um en-
contro com um sujeito da organização, o professor Hermes
(aquele que instruiu Mandrake no começo do livro sobre o
manejo de armas brancas, ensinando-o manobras como in
quartata e passata sotto e sobretudo ensinado quais partes do
corpo são as mais vulneráveis num ataque a faca; aprende-
mos com Hermes que a artéria subclávia, quando atingida,
faz o sangue jorrar como se fosse uma fonte e a vítima perde
a consciência em dois segundos). Pretende-se que nesse en-
contro seja feita a troca da fita por uns documentos de inte-
resse do Zakkai, provavelmente parar serem usados em sua
guerra. O encontro acontece num apartamento no edifício
Balança Mas Não Cai (Avenida Presidente Vargas, 2007, Rio
de Janeiro) e se transforma numa luta entre Hermes (faca) e
Camilo (machete). Camilo leva a melhor e despedaça o crâ-
nio do professor.
Esse acontecimento parece apontar a vitória de Zakkai
em sua guerra contra o Escritório Central, pois não muito
adiante Thales Lima Prado, o chefão da organização-
holding-o-escambau, recebe um telefonema que ouve em si-
lêncio e poucas horas depois comete um mítico suicídio,
sendo encontrado por seu fiel secretário, o Capitão Virguli-
no, com uma faca enterrada numa das axilas (“Foi para o
Campo de Asfódelos”, etc.). E de fato Zakkai sai vitorioso –
continua tocando seus negócios e ainda dando uns parcos
esclarecimentos ao Mandrake sobre aquela embrulhada de
acontecimentos todos. A nonchalance de Zakkai é absolu-
tamente formidável e muito indicativa de alguém que sabe
que, agora, pouco ou nada tem a temer – Mandrake diz a ele
que está com os Cadernos do Lima Prado (o tal diário escri-
to numa inescrutável caligrafia) e Zakkai diz, simplesmente,
“No que me concerne, você ponde limpar a bunda com e-
les”.
Camilo Fuentes, o redimido pelo amor de uma mulher,
tem sua nova e pacata vida interrompida numa manhã en-
quanto consertava o telhado de casa – um grupo de técnicos
(mandados, é óbvio, pelo novo chefão do Escritório Central,
José Zakkai) vai a seu encontro e lhe dá tantos tiros que o
cadáver torna-se uma irreconhecível pasta de sangue, ossos e
vísceras expostas. Mas antes de chegar a esse final trágico e
inglório, Camilo pediu a Miriam que um dia devolvesse a Pe-
ter Mandrake o cordão com o unicórnio de ouro (peça que
Camilo arrebatara do pescoço de Mandrake naquele episódio
da visita ao apartamento) e que lhe dissesse que ele, Camilo,
nunca fora ladrão, que ele nunca roubara o que quer que
fosse durante sua vida toda.
BUFO & SPALLANZANI (1985)

Anotei a lápis na folha de rosto de meu exemplar de


Bufo & Spallanzani (10ª. edição, Editora Francisco Alves,
1985) meu nome e a data em que comprei o livro:
27/10/2000. Ao contrário da minha primeira leitura de A
Grande Arte (num Fran’s Café perto do Mackenzie, em
1996), não me lembro que impressão tive ao ler Bufo etc.
pela primeira vez. Talvez fascínio, perplexidade, algum ator-
doamento. Relendo-o agora com a devida atenção (já o reli
algumas vezes nesses últimos dezenove anos, mas sempre de
modo distraído) finalmente entendi o porquê de sua trama
nunca ter se fixado por muito tempo na minha memória –
tudo que Ivan Canabrava/Gustavo Flávio, o narrador do li-
vro, nos conta, embora seja fascinante pelos lances insólitos,
soa como deslavadas mentiras contadas por um mentiroso
inteligente, erudito (pernóstico), etc. (Um mentiroso burro,
ordinário, vulgar, seria facilmente refutável e destituído de
interesse, o que definitivamente não é o caso de I-
van/Gustavo.) Vamos lendo/ouvindo a história, interessa-
díssimos, ainda que já de cara suspeitemos que o narrador é
aquilo que a narratologia chama de “narrador não confiável”.
Essa falta de credibilidade do narrador necessariamente nos
coloca numa posição defensiva, cautelosa (a posição que
sempre adotamos ao lidar com mentirosos); boa parte de
nossa atenção se concentra em discernir, “o que será que es-
tá por trás dessa óbvia mentira?”, “quanto de mentira e
quanto de verdade tem nisso que acabei de ouvir?”, etc. Re-
sumidamente, Bufo & Spallanzani oferece ao leitor a para-
doxal experiência de fruir uma história meio mal contada (a-
quele ruído que notamos quando nos contam uma mentira
ou uma meia verdade), mas, ao mesmo tempo, muito bem
contada, com aquela estrutura de peripécia (parece que vai
acontecer isso, mas acontece outra coisa) e reconhecimento
(“o assassino, por incrível que pareça, era mesmo o mordo-
mo”, etc.) que Aristóteles dizia ser a condição sine qua non
para uma boa narrativa dramática existir. Sim, excelente nar-
rativa, afinal, estamos lendo um livro de um mestre, Rubem
Fonseca.
Ivan Canabrava quando ainda Ivan Canabrava (futura-
mente ele mudará o nome para Gustavo Flávio, homenagem
a Gustave Flaubert) era um magro (futuramente engordará)
e insignificante funcionário de uma companhia de seguros
(futuramente será um escritor de sucesso), casado com uma
mulher bonita, mas apoteoticamente medíocre chamada Zil-
da; Zilda tem o hábito de falar consigo mesma em 3ª. pessoa
do singular, “Olha só, Zilda, o que esse panaca desse seu
marido acabou de fazer”, etc.; Ivan não tem a sexualidade
muito pronunciada (futuramente será um sátiro, “gordo, mu-
lato e pernóstico”). (É verossímil que um gordo pernóstico
seja um sedutor de mulheres extremamente bem sucedido,
com altíssimo escore? Mulato, ao contrário de mulata – pa-
lavra cheia de sugestões lascivas, “mulata do Sargentelli”,
“mulata do Di Cavalcanti”, etc. –, é um termo anódino do
ponto de vista sexual; mas o.k., admitamos que Ivan se tor-
nará no futuro um Casanova, “gordo, mulato e pernóstico”.)
O episódio que causará uma transformação radical na
vida de Ivan começa com a suspeita de uma fraude na com-
panhia de seguros – Ivan levanta a suspeita de que um certo
Maurício Estrucho simulou a própria morte para receber um
prêmio de um milhão de dólares de um seguro de vida; a si-
mulação foi feita com uma mistura de veneno de sapo (bufo
marinus) e uma substância homeopática chamada pyrethrum
parthenium; tal mistura tem um efeito “zumbificante” (a
pessoa que a ingere parece morta – qualquer médico que a
examine sem dúvida declarará o óbito –, mas na verdade não
está); ninguém na companhia leva a sério a suspeita-
investigação de Ivan, que decide agir por conta própria e de
maneira radical para provar sua tese, indo arrombar o túmu-
lo onde Maurício Estrucho NÃO está enterrado (quem a-
companha Ivan nessa empreitada aparentemente maluca é
Minolta, uma hippie gente fina e absolutamente caricata,
“você interrompeu minha meditação transcendental”, “acho
que vou escrever um poema sobre o mico leão dourado”,
“tóxico?, sai fora, isso agora é coisa de bancário”, etc.), que
Ivan acolheu em seu apartamento imediatamente após sepa-
rar-se de Zilda; um coveiro do Cemitério São João Baptista
flagra-os e interpreta a ação como uma ação de ladrões de
túmulo e começa a gritar por socorro; Ivan acaba dando um
golpe de picareta na cabeça do coveiro, que morre; Ivan é
julgado e condenado a uma internação no manicômio judici-
ário; Ivan escapa do manicômio com a ajuda de Minolta e
outro hippie “gente fina”, disfarçado de padre; Ivan passa
dez anos escondido (evadido da justiça) em Iguaba, litoral
fluminense, tutelado-protegido por Minolta (aliás, Minolta é
nome de máquina fotográfica), que o faz descobrir os praze-
res da cama e da mesa, “você, que me transformou num sáti-
ro e num glutão”, etc.; Ivan emerge desses dez anos de re-
clusão como Gustavo Flávio, escritor de sucesso, etc.
No presente Gustavo Flávio está tentando escrever um
romance protagonizado pelo naturalista italiano Lazzaro
Spallanzani (1729-1799), num computador TRS-80 (escrever
livro em computador era uma novidade excêntrica em 1985),
e está prestes a se ver envolvido em outra enrascada; Delfina
Delamare, que era amante de Gustavo, apareceu morta no
carro dela (Mercedes-Benz), numa rua sem saída no Jardim
Botânico (Rua Diamantina), com um tiro no coração; na
mão direita de Delfina havia um revólver Calibre 22, nique-
lado. A hipótese de suicídio seria razoável, já que Delfina
descobrira recentemente estar com leucemia e o médico lhe
dera poucos meses de vida. A perícia, porém, não encontrou
vestígios de pólvora em sua mão, ou seja, Delfina não se ma-
tou, foi morta. O detetive Guedes, que investiga o caso,
primeiro suspeita do marido, Eugênio Delamare (senão co-
mo executor ao menos como mandante do crime), depois de
Gustavo Flávio, amante de Delfina (Eugênio, corno bravís-
simo, jurou a Gustavo que irá castrá-lo, promessa que ele
cumpre no final do livro, numa das cenas mais horripilantes
já concebidas por Rubem Fonseca). As suspeitas de Guedes
são temporariamente dirimidas pela confissão espontânea de
um certo Agenor, que diz ter matado a “madame” após as-
saltá-la e ter tentado estuprá-la; mas há vários furos na con-
fissão e Guedes logo tira a história a limpo – Agenor recebeu
dinheiro para confessar, etc., o que coloca Gustavo Flávio
mais uma vez no radar da polícia.
Guedes é o único personagem não farsesco do livro –
suas cogitações são razoáveis, suas ações, inteligentes e éti-
cas, etc.; interessante notar que, embora Gustavo Flávio seja
um “narrador não confiável”, não há por que duvidarmos
dele quando descreve as ações e cogitações do detetive Gue-
des. (O “desvendador” é um tipo de personagem em que
Fonseca é sempre craque – Peter Mandrake, comissário Al-
berto Mattos – do romance Agosto – e, ainda que sem o
mesmo carisma e densidade, detetive Guedes.)
Bufo & Spallanzani dá ao final da leitura uma certa
sensação de “sim, e daí?”, apesar de a morte de Delfina De-
lamare ser esclarecida, de a história “fechar”. Desconfio que
o crítico John Gardner (“The Art of Ficction”, um dos mais
notáveis e pessoais livros de narratologia que já li) diria que
Fonseca falhou em “Bufo” por ter sido “frígido”, ou seja,
não suficientemente interessado nas reais motivações de seus
personagens, desleixado em alguns aspectos da trama (inve-
rossimilhanças, “história meio mal contada”, etc.). Talvez es-
se hipotético diagnóstico de Gardner seja certo – talvez a
melhor relação que possamos estabelecer com Bufo & Spal-
lanzani , como leitores, seja curtir o que o livro tem de virtu-
osístico, insólito, impressionante (afinal, trata-se de Rubem
Fonseca), mas sem a necessidade de levá-lo a sério ou justifi-
cá-lo com rigor. Certas coisas são boas (se não boas ao me-
nos deliciosas) justamente porque são frívolas – a curiosa
história de Ivan Canabrava/Gustavo Flávio está aí, de certa
forma provando que a frivolidade também é filha de Deus.
VASTAS EMOÇÕES E PENSAMENTOS IMPER-
FEITOS (1988)

O que sabemos sobre o protagonista de Vastas Emo-


ções e Pensamentos Imperfeitos, romance que Rubem Fon-
seca lançou em 1988? Não sabemos seu nome, mas sabemos
que ele sofre de uma espécie de labirintite chamada Pseudos-
síndrome de Ménière; sabemos que ele é cineasta e, tendo
dificuldades para conseguir financiamento para um novo
filme, vem fazendo filmes publicitários para um irmão a
quem detesta, pastor protestante e dono de uma próspera
igreja; sabemos que conserva a cadeira de rodas e um pacote
de absorventes íntimos de uma mulher chamada Ruth e que
“Ruth” se tornou um assunto tabu para ele, “Não quero fa-
lar sobre Ruth, não ainda”; sabemos que seus sonhos (so-
nhos mesmo, o processo onírico) não têm imagens.
Dois fatos quase concomitantes arrastarão nosso prota-
gonista a uma aventura das mais vorazes – a chegada às suas
mãos de uma partida de pedras preciosas (de modo meio in-
verossímil, mas o.k., adotemos o “suspension of disbelief”,
como preconizava Coleridge) e um convite para rodar na A-
lemanha um filme baseado em “Cavalaria Vermelha”, livro
de contos do escritor russo (ucraniano, soviético, judeu) Isa-
ac Babel. Os dois fatos concomitantes acabam transforman-
do nosso cineasta num ladrão (a oportunidade faz o ladrão,
etc.), num apropriador indébito das pedras (que pertenciam a
uma quadrilha que as contrabandeia para o exterior incrus-
tando-as em fantasias de carnaval) e, depois, no apropriador
indébito de um manuscrito que o produtor do filme, na A-
lemanha, o instiga a ir buscar em Ost Berlin, Berlim Orien-
tal, aventura então arriscadíssima que envolve levar ilegal-
mente para o setor comunista de Berlim cem mil dólares (o-
cultados na roupa, casaco, sobretudo, etc.) e trazer de lá, ile-
galmente, o tal manuscrito, roubado da Biblioteca Lenin e
que, supostamente, seria o de um romance de Isaac Babel (o
único romance do magistral contista), confiscado por mega-
nhas do Stalin, da NKVD. (Babel foi preso no episódio e
morreu, provavelmente fuzilado, em 1940.)
Ao contrário do que acontece com grande parte dos
protagonistas fonsequianos, o cineasta não é dado a grandes
arroubos priápicos e tem uma relação mais cautelosa com as
mulheres – rende-se a elas, simplesmente porque é impossí-
vel não cometer esse ato de rendição; impõe um severo au-
tocontrole aos próprios orgasmos e não chega à conclusão
se isso – manter o órgão copulador ereto, “trabalhando” por
períodos de tempo extremamente longos – ou é um exibi-
cionismo dele (ou seja, narcisismo no mais alto grau) ou um
ato de extrema generosidade (o que interessa é satisfazer a
mulher, etc.); uma hora ele diz a Liliana, sua principal partner
na história, “Ir para a cama com você é bom durante, depois
é horrível”. A única pessoa com quem parece se sentir à
vontade e com quem tem um sólido vínculo afetivo é o ve-
lho Boris Gurian, judeu russo (fugiu do comunismo, depois
fugiu do nazismo, chegando enfim ao Rio de Janeiro), litera-
to, alcóolatra (saúde periclitante) e fanático por Isaac Babel.
Boris se torna o mentor do cineasta em assuntos babelianos
enquanto ele está esboçando o roteiro de “Cavalaria Verme-
lha”. As discussões do cineasta com Boris são muito interes-
santes; fundamentalmente trata-se de uma longa discussão
entre cinema e literatura, Boris sustentando que cinema “não
é nada”, uma coisa necessariamente simplificadora e superfi-
cial por não ter os recursos metafóricos e polissêmicos da
literatura (opinião essa que sabemos ser de Rubem Fonseca).
Apesar de o episódio de Berlim ser muito interessante
em si mesmo (Fonseca nos dá a vívida sensação de atraves-
sarmos a fronteira entre as Berlins de então, lidarmos com
guardas intimidadores, pagarmos vinte e cinco marcos de
câmbio obrigatório, experimentarmos a paranoia do cineasta,
etc.), a trama de “Vastas Emoções” concentra-se fundamen-
talmente nos contrabandistas de pedras preciosas no encalço
dele; descobrimos no final no livro que o chefe dos contra-
bandistas, Alcobaça, tem uma espantosa história de vida (um
grande spoiler aqui): acometido desde jovem por uma doen-
ça de etiologia ignorada, mas que responde bem (e responde
apenas) a um tratamento heterodoxo baseado na ingestão de
diamante triturado (litoterapia), Alcobaça, que nasceu rico,
gastou toda sua fortuna comprando diamantes para se man-
ter vivo e saudável; destituído de bens (não exatamente, mas
não vou cometer aqui outro spolier), passa a contrabandear
pedras preciosas para que seu fornecedor de diamantes não
lhe corte o suprimento.
As situações de suspense são extremamente bem enca-
deadas em “Vastas Emoções” (reli ontem em poucas horas
as trezentas páginas do livro); sem os grandes personagens e
sem a profundidade dramática de A Grande Arte (talvez o
maior romance de Fonseca, talvez rivalizado apenas por A-
gosto), mas sem o quase-desleixo quase-caricatural (diverti-
díssimo, admito) de Bufo & Spallanzani , Vastas Emoções e
Pensamentos Imperfeitos (uma definição de sonho, “um
mundo de Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”) é
instigante, imaginativo, agradabilíssimo de ler; Rubem Fon-
seca é um homem de inteligência superior (coisa incomum
entre escritores, por mais espantoso que isso possa parecer),
que teve uma bem sucedida carreira profissional no mundo
corporativo (diretor da Light, etc.); talvez sua singularidade
como escritor de literatura ficcional em parte se explique (já
que talento não é explicável) por ele nunca ter precisado cha-
furdar no chinfrim ambiente literário brasileiro, com suas in-
triguinhas provincianas, suas referenciazinhas, seus “ismos”,
etc. Interessante notar, por exemplo, que as narrações que o
cineasta faz de seus “sonhos sem imagens”, relatos que per-
passam o romance inteiro, lembram muito o “Book of Dre-
ams”, do Jack Kerouac (sem fazer alarde disso, Fonseca cla-
ramente conhece os beats; em algum conto seu, não me
lembro qual, há uma referência explícita ao William Burrou-
ghs, etc.). Se não tivesse outro mérito (e tem, claro), “Vastas
Emoções” no mínimo teria apresentado Isaac Babel ao pú-
blico brasileiro; eu fui ler os “Contos de Odessa” só depois
de ler o Fonseca; me diverti muito com o gângster Benia
Krik (a judeuzada em Odessa era a mesma coisa que os sici-
lianos em Nova York) e com aquela mania das famílias ju-
daicas de mandarem seus filhos estudar violino, “Sabe quan-
to o Jascha Heifetz está ganhando por apresentação? Oito-
centos rublos!”.
Rubem Fonseca escreveu uma crônica curiosa, publica-
da em seu livro “O Romance Morreu”, em que ele narra
uma viagem que fez para Berlim, na segunda metade dos a-
nos 1980; a crônica pode ser uma leitura-apêndice interes-
sante para quem já leu “Vastas Emoções”; a travessia para
Berlim Oriental, feita através do mítico Checkpoint Charlie,
claramente foi a experiência pessoal que serviu de base para
sua elaboração ficcional; a experiência pessoal foi aquela coi-
sa turística chinfrim de sempre (não, Fonseca não contra-
bandeou dólares escondidos na cueca, nem trouxe para o o-
cidente documentos roubados da Biblioteca Lenin, escritos
em alfabeto cirílico; a vida privada de todos nós, mesmo a de
um grande escritor, raramente escapa da mediocridade); ou-
tra crônica interessante desse livro é a que fala do encontro
do Rubem Fonseca com o poeta Dylan Thomas no bar do
hotel Chelsea, em Nova York, em 1953, poucas semanas an-
tes de Dylan morrer; o encontro em si não tem nada demais
(a mediocridade mesmo dos grandes, etc), mas Fonseca des-
creve assim Dylan Thomas: “Seu rosto era gordo e vulnerá-
vel como um balão de encher”. (Uau. Craque é craque, vir-
tuose é virtuose, palmas para o Rubem Fonseca, clap, clap,
clap.)
AGOSTO (1990)

Estou no Palácio do Catete, Museu da República, no


Rio de Janeiro. O mês é dezembro, o ano é 2003. Encontro-
me sozinho nos amplos aposentos onde, há quase cinquenta
anos, o então presidente da república Getúlio Dornelles
Vargas se matou com um tiro no coração. O fato de eu ter
lido há não muito tempo o romance Agosto, de Rubem
Fonseca, intensifica a experiência de estar aqui, nesse lugar
que parece (e talvez esteja mesmo) congelado no tempo,
precisamente nas primeiras horas da manhã do dia 24 de
Agosto de 1954. Observo a blusa do pijama de Getúlio (com
as iniciais GV), exposta sobre uma mesa: o furo da bala, o
chamuscado, um resto de sangue. Depois vou a uma das ja-
nelas que dá para um amplo jardim e lembro-me da parte do
livro quando o mordomo de Getúlio, Zaratini, observa Gre-
gório Fortunato sentado num dos bancos, provavelmente
algum desses que estou vendo agora. Gregório logo mais iria
pressionar seu subordinado, o membro da guarda pessoal do
presidente, Climério Euribes de Almeida, para que esse ar-
ranjasse logo o tal pistoleiro para “bombardear o homem”,
Carlos Lacerda.
Lembro-me da divertida e pitoresca história contada
pelo ator Toni Tornado, que interpretou Gregório na série
Agosto, baseada no livro e exibida pela Rede Globo em
1993. Em entrevista ao Jô Soares, Toni contou que, num in-
tervalo de uma gravação, feita aqui no palácio, ele foi dar
uma volta, já caracterizado como Gregório (terno com bla-
zer estilo jaquetão, chapéu, etc.). Entrou numa das salas e, ao
ver uma funcionária do Museu da República, disse a ela,
“boa noite”. A mulher, que trabalhava aqui desde o tempo
em que o prédio era o palácio presidencial, virou-se para
responder à saudação e, achando que estava diante da as-
sombração do “Anjo Negro”, caiu dura, desmaiada.
Saio do palácio e decido seguir até a Rua Marquês de
Abrantes, que é continuação aqui da Rua do Catete. O co-
missário de polícia Alberto Mattos, principal personagem de
Agosto, morava nessa rua, no oitavo andar de um melancóli-
co prédio, já melancólico em 1954; o Rio de Janeiro de então
tinha graves problemas com abastecimento de água; Alberto
dispunha dia sim, dia não, de água em casa; na cena em que
ele vai fazer uma consulta médica por causa de sua úlcera o
médico lava as mãos com uma garrafa de água mineral São
Lourenço; na cena em que ele faz um nostálgico e evocativo
passeio pela Rua Conde de Lages, zona do meretrício de alto
padrão quando ele era jovem, em 1954 transformada numa
rua de cortiços, “cabeças de porco”, Alberto observa mulhe-
res transportando “latas d’água na cabeça”. Chego à Rua
Marquês de Abrantes, convencido de que não deverá ser tão
difícil reconhecer o prédio do comissário Alberto Mattos;
“mas, ei, Alberto Mattos é um personagem ficcional”; justa-
mente: justamente por Mattos ser um personagem ficcional é
que eu descobrirei, com absoluta exatidão, em que prédio ele
morava; e dormia o sono dos justos em seu sofá-cama Dra-
go; e tentava estudar Direito Civil para prestar o concurso da
magistratura; e afligia-se com a presença nunca solicitada de
Salete; e, eventualmente, dava cabeçadas na parede.
Agosto, de 1990, é o romance de Rubem Fonseca mais
perfeitamente urdido e o que tem, se não os mais fascinan-
tes, ao menos os personagens com maior consistência dra-
mática criados pelo autor. Não me lembro qual crítico (Ha-
rold Bloom?) afirmou que o cerne da ficção de primeira
grandeza é o (grande) personagem; essa verdade me parece,
a mim, como leitor, evidente, assim como o cerne da ficção
medíocre é o personagem “idiota” não confrontado em sua
idiotice (Rosencrantz, Guildenstern e Polônio eram três idio-
tas e Shakespeare fez com eles o que eles bem mereciam;
Ofélia, uma bobalhona, recebe tratamento um pouco melhor
do autor, que a enlouquece e a faz se matar; se Saul Bellow
fosse realmente um autor de primeira teria jogado aquela fi-
lha maluca do Arthur Sammler, aquela criatura usuária de
perucas baratas e cultivadora de plantas podres, num rio
cheio de crocodilos).
A história de Agosto se passa entre os dias 1º e 26 de
Agosto de 1954, no Rio de Janeiro, então capital dos Esta-
dos Unidos do Brasil. Começa com o assassinato de um fi-
gurão chamado Paulo Machado Gomes Aguiar e desenrola-
se com a investigação do crime, protagonizada pelo comissá-
rio de polícia Alberto Mattos. Paulo Machado Gomes Aguiar
tinha uma empresa de importação (em sociedade com a mu-
lher e um amigo) e havia conseguido uma licença da Cexim –
Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil –
através de uma negociata cujos intermediários foram um lo-
bista chamado Luiz Magalhães e Gregório Fortunato, for-
malmente chefe da guarda pessoal do presidente Getúlio
Vargas e informalmente seu capanga. Paralelamente à inves-
tigação de Mattos, o livro narra a derrocada do presidente, a
progressão fulminante de sua catástrofe (que culminou com
seu suicídio, em 24 de Agosto), especialmente após o atenta-
do sofrido pelo então jornalista Carlos Lacerda (futuramente
governador da Guanabara, etc.), atentado em que morreu
seu guarda costas, o major-aviador Rubens Florentino Vaz;
logo se descobre que a ordem para o atentado partira de
Gregório Fortunato (que por sua vez acusou o então depu-
tado federal Euvaldo Lodi de haver “estimulado” a ação;
suspeita-se também de Benjamim Vargas, irmão de Getúlio,
como mandante); um membro da guarda pessoal de Getúlio
Vargas, Climério Euribes de Almeida, fora encarregado de
arrumar um pistoleiro e acabou arranjando um trapalhão ru-
im de mira, na verdade um marceneiro desempregado, cha-
mado Alcino João do Nascimento (surpreendentemente ain-
da vivo em 2019). O atentado e a morte acidental do major
Vaz criou um ambiente de conspiração aberta contra Vargas,
por parte das Forças Armadas, e forte mobilização da opini-
ão pública, capitaneada pelo partido UDN (partido de La-
cerda), exigindo a renúncia ou deposição do presidente. A
cafonalha retórica então grassou, “a nação coberta de opró-
bio”, “a indignação da família brasileira”, “mar de lama”,
“kakistocracia” (governo pelos piores elementos da socieda-
de, termo inventado por Lacerda), etc.
O único personagem interessante oriundo desse esgoto
político do Brasil de 1954 é o (fictício) senador Vitor Freitas,
do PSD (base governista). (Gregório Fortunato, o “prevari-
cador de ébano”, razoavelmente interessante em sua adora-
ção chauvinista por Getúlio, no fundo é apenas um gângster
vulgar.) Freitas, cínico, amoral, inteligente e, não só como
também, homossexual (obviamente enrustido, 1954, etc.),
faz para seus interlocutores íntimos observações muito acu-
radas sobre o derretimento, o “desempoderamento” do go-
verno Vargas (a metáfora sovada dos ratos abandonando o
navio que está indo a pique, etc.). Ao ser chamado de “cor-
rupto filho da puta” por Pedro Lomagno (sócio do empresá-
rio assassinado logo na abertura do romance), Freitas diz,
“todos somos corruptos filhos da puta, aqui nessa mesa, aqui
nesse país”. Em sua dimensão pessoal, Freitas também tem
seus “esqueletos guardados no armário” – o síndico do pré-
dio onde ele tinha sua garçonnière, após flagrá-lo no eleva-
dor em companhia de um rapaz “limpo e bonito” “veneran-
do Priapo” e insistir na reação moralista escandalizada, “você
transforou esse prédio de família numa Sodoma!”, é morto
por Clemente, fiel assessor de Freitas.
Mas deixemos de lado a política, seus meandros e seus
protagonistas sempre medíocres. (Política é coisa de genti-
nha, atividade de segunda categoria.) Sigamos os grandes
personagens dessa história, como o comissário de polícia
Alberto Mattos. Alberto sofre de uma úlcera duodenal (esgo-
tamento nervoso) e se automedica o tempo todo com Pep-
samar e leite (acreditava-se na época que leite diminuía a aci-
dez). É o único tira honesto da delegacia onde está lotado
(todos levam dinheiro dos bicheiros, etc.). Tenta minimizar o
sofrimento dos presos amontoados no xadrez, solta os deti-
dos para averiguação, aplica injeções de penicilina nos infec-
tados com gonococos. Em sua vida privada, ouve discos de
ópera e é amado por uma jovem mulher chamada Salete, ex-
garota de programa que agora é mantida por um “coronel”,
o lobista Luiz Magalhães (que está metido, entre outros, na-
quele rolo da licença da Cexim). Alberto, que tenta evitar a
impositiva Salete (tratando-a de forma rude, etc.), quase
sempre é vencido sexualmente por ela. Salete é patética e
comovente em sua sina de mulher desprezada pelo homem a
quem ama – faz uma ineficaz macumba com uma cueca de
Alberto e a macumbeira, mãe Ingrácia, diz que o trabalho
tem de ser feito com uma casquinha de ferida dele; tem ódio
de sua origem favelada (Morro do Tuiuti, em São Cristóvão);
um dia ao ver a mãe ao longe, anos depois de fugir de casa,
mãe que ela supunha já ter morrido, Salete pensa, “a desgra-
çada está ainda mais feia, mais velha e mais preta!”.
Outro personagem pertencente à dimensão intimista de
Alberto Mattos é o seu Emílio. Ex-chefe da claque do Tea-
tro Municipal, o velhote, meio matreiro, vai atrás de Alberto
quando vê a foto deste no jornal, numa reportagem sobre o
assassinado de Paulo Machado Gomes Aguiar. Supõe que
Alberto, que quando rapaz fazia parte da claque para poder
ver as óperas sem pagar, está bem de vida, frequentando as
“altas rodas”, etc. Fala nostalgicamente sobre os velhos tem-
pos e logo insinua que está precisando de dinheiro, aluguel
atrasado, penduras, etc. A caracterização que Rubem Fonse-
ca faz de seu Emílio é mordaz (os ruídos que a dentadura
mal ajustada faz dentro de sua boca, etc.) e, ao mesmo tem-
po, carregada de afeto.
Alberto encarna um princípio implicitamente cristão
que poderia ser enunciado como “a ninguém será lícito igno-
rar os sofrimentos alheios”. E é interessante notar como a
compaixão, como o amor pelos fracos, os débeis, etc., na
prática é cheia de contradições. Sim, porque lidar com os mi-
seráveis é cansativo, além de repugnante (o fedor que o co-
missário Alberto sente na cela superlotada do distrito); seu
Emílio é um pobre coitado, mas ladino, finório, interesseiro;
Salete é amorosa e bem intencionada, mas banal, arrogante
(com pessoas em posições sociais aparentemente inferiores
às dela, vendedoras de loja, etc.), manipuladora, que pensa a
respeito da mãe “a desgraçada está mais feia e mais preta a-
inda”. Não me lembro agora do filósofo (teólogo?) que disse
que a caridade é indesejável porque fundamentalmente é
uma paixão. Se Emílio e Salete recebessem o que de fato
merecem escapariam do chicote? O fastio e o esgotamento
nervoso de Alberto (que, quando nervoso, tem o impulso de
bater com a cabeça na parede) são indícios de que ele no
fundo sabe que não faz diferença ele ser um policial honesto
(num mundo que é um “mar de lama”) ou um homem com-
passivo (Emílio e Salete nunca deixarão de ser os egoístas
que são, um interessado no “amigo rico” a quem pode re-
correr para saldar os alugueis atrasados e os penduras nos
bares, outra interessada em conquistar Alberto para que ele
seja “o homem pra chamar de seu”). Patrícia Melo, discípula
de Rubem Fonseca, escreveu as seguintes linhas em seu ro-
mance “Valsa Negra”, de 2003:
“Colecionadores de qualquer coisa. Bons vinhos, via-
gens exóticas. Esse tipo de coisa. Essa gente. Aquelas mu-
lheres. Aqueles assuntos. Odeio tudo isso, disse a Marie. E
não pense que sou como eles, que adoro os pobres. Tenho
um desprezo solene pelos pobres. A patuleia. A escumalha.
Sujos, ignorantes, interesseiros, safados. Escrotos, como os
vermes. Sempre engravidando. E engordando. E roubando e
matando. E sendo atropelados. Acho que odeio mais os po-
bres até. Minto. Odeio mais os ricos. A ralé, pelo menos, me
comove.”
Creio que uma consciência desse tipo esteja presente no
comissário Alberto Mattos, mas, diferentemente da persona-
gem Marie, de Patrícia Melo, Alberto perdoa “setenta vezes
sete vezes”, como preconiza Cristo (reitero que Agosto nada
tem de explicitamente cristão, e ainda bem). Alberto explicita
esse seu caráter compassivo e perdoador quando diz estar
sentindo pena de Getúlio Vargas, acuado pelos conspirado-
res, opinião pública, etc., logo Alberto, que foi preso numa
agitação estudantil no Estado Novo e levou uns socos e uns
pontapés num corredor polonês formado na delegacia para
recepcionar os agitadores. No denouement do romance, Al-
berto, sabendo estar com uma hemorragia interna causada
pela úlcera duodenal perfurada, finalmente dá a Salete aquilo
que ela vinha querendo desde o começo da história: uma
casquinha de ferida sua, embrulhada num pequeno papel.
Pouco antes, ele havia soltado todos os presos do xadrez na
delegacia. Haverá ainda um desfecho trágico o aguardando,
um “decifra-me e te devoro assim mesmo”, desfecho trágico
da magnífica “comédia de erros” concernente à investigação
do assassinato de Paulo Machado Gomes Aguiar, “tragédia
de erros”, portanto, que estrutura a história (deduções apres-
sadas e equivocadas, ordens dadas e canceladas, suposições
infundadas, etc.). Se Alberto fosse receber o que de fato me-
recia, o final de Agosto seria bem diferente. Mas qual pode-
ria ser um desfecho justo e feliz para Alberto? Tento imagi-
nar: Alberto ouvindo discos de ópera com a cabeça deitada
no regaço de sua amada Alice (sim, há uma Alice nessa his-
tória, quase antípoda de Salete)? Alberto passando no con-
curso da magistratura (concurso para o qual sempre tenta es-
tudar em seus poucos momentos de folga)? Sei lá, as duas
coisas parecem um pouco falsificadoras do verdadeiro cará-
ter e da verdadeira dimensão de Alberto Mattos. Embora se-
ja triste, muito triste admitir isso, o martírio lhe cai bem,
como sempre cai bem a qualquer pessoa cujo reino, aparen-
temente, não pertence a esse mundo.
O CASO MOREL (1973)

Heloísa Wiedecker, vinte anos, só alcança o consumma-


tum est sexual, o orgasmo, ao ser espancada. Quando pede
para levar socos e chutes de seu amante, o consagrado artista
plástico Paul Morel (Paulo Morais), ela sempre diz, “põe o
demônio no meu corpo”. Um dia esses jogos entre os dois
termina mal, em óbito, “contusão da cabeça, com hemorra-
gia subdural, e contusão torácica, com fratura de costelas,
ruptura do pulmão direito e hemorragia interna”. Heloísa ti-
nha um diário em que narrava sua rotina sexual com Paul,
“Gosto de ser degradada por ele, sentir que Paul me possui,
me pune, me sacrifica. Foi um orgasmo maravilhoso, ele me
virou num golpe rápido, meus gemidos foram respondidos
com socos no rosto até que meus olhos se incharam e eu
mal podia ver o rosto do meu amor”. O diário é mandado
anonimamente (por uma mulher) à polícia, com um bilhete
que diz, “o assassino é Paul Morel”. Morel tem a prisão pre-
ventiva decretada. O delegado Morais, responsável pelo ca-
so, apresenta a Morel o ex-delegado Vilela, que se tornou es-
critor após sair da polícia (“policial, artista, escritor, sempre
com as mãos sujas”). Morel quer um leitor qualificado para
opinar sobre as coisas que vem escrevendo, o esboço de um
romance autobiográfico à clef; um texto confessional? (“a
confissão é a prostituta das provas”). Além de escrever, Paul
Morel ocupa-se na cela fazendo flexões, cinquenta a cada
hora, quatrocentas por dia. Quer chegar a mil, como um
membro do grupo terrorista Panteras Negras que aguarda a
execução no corredor da morte.
Ficamos sabendo, através de sua narração fragmentária,
elusiva em certos momentos, constantemente cortada de
modo abrupto por parágrafos alheios ao que está sendo dito,
também cortada por frases e sentenças enigmáticas como “o
pior dos venenos”, “nada temos a temer, exceto as pala-
vras”, que Paul Morel, aliás, Paulo Morais, é um artista plás-
tico consagrado, premiado em bienais importantes, mas que
“secou” criativamente (o que em nada diminui seu prestígio
artístico, muito pelo contrário). Próximo de completar cin-
quenta anos, ele vem sentindo temor de ficar sexualmente
impotente, o que aumenta sua voracidade sexual. Decide en-
tão estabelecer uma espécie de harém em sua casa em Santa
Teresa, numa duvidosa experiência de gregarismo “pós-
família” (“família Manson”, “Children of God”, etc.) bem ao
sabor dos anos 1970.
Nada propriamente acontece nessa comunidade-
comuna meio “age of aquarius”, exceto mulheres cozinhan-
do (umas melhores no trivial, outras mais criativas nos quesi-
tos culinários, as criativas, contudo, errando com mais fre-
quência, ocasiões em que Paul Morel é obrigado a ir até a es-
quina comprar umas pizzas), mulheres tomadas por fúrias
dionisíacas quebrando móveis e abajures, ménages à trois,
filmagens “criativas” em super-oito, etc. Heloisa Wiedecker,
a tal que sente prazer sexual ao ser espancada (e que morrerá
em decorrência disso), é uma das mulheres que compõe o
harém. Mas difere muito das outras por ter uma ligação es-
pecial (fome com vontade de comer) com Paul. Num pas-
seio com ele pela Barra da Tijuca (ainda razoavelmente de-
serta, hippies acampando em finais de semana, etc.), Heloísa
reclama que, desde que a comunidade de Santa Teresa foi
estabelecida, ele nunca mais fez com ela aquelas coisas que
ela realmente gosta (levar socos, pontapés, etc.). Ele admite
que sim, pois sempre “tem gente olhando” (há, há, a farsa
intrínseca de todo “coletivismo”, a farsa grotesca de toda
comunidade humana cheia de boas intenções, “boas vibra-
ções”, etc.). Heloísa ordena, provocadora, dizendo palavrões
e obscenidades, “põe do demônio no meu corpo”. Paul en-
tão passa a socá-la e a chutá-la, na cabeça, tórax, etc. O ca-
dáver dela é encontrado quatro dias depois (“flictenas putre-
fativas”), etc.
O propósito, tanto o de Paul Morel ao narrar sua histó-
ria quanto o de Rubem Fonseca ao escrever o romance O
Caso Morel, é confuso. Ou obscuro. (Para que, afinal de
contas, Morel usa o escritor Vilela como leitor exclusivo das
coisas que escreve? E qual o interesse de Vilela nisso? Não é
um interesse heurístico, de investigação dos fatos, já que os
fatos concernentes a Morel são tremendamente óbvios.) A
impressão que tive, desde que li O Caso Morel pela primeira
vez, foi a de que Fonseca não sabia escrever romances em
1973; aventurou-se no gênero por estímulo do editor, que
lhe disse que romances vendiam muito mais do que livros de
contos. Acabou (mal) ajambrando um livro cheio de cacoe-
tes modernosos – ortografia aqui e ali propositalmente des-
cuidada, pernosticismos como o uso da expressão “exit fula-
na de tal” quando fulana de tal sai da cena; descontinuidades,
“fragmentação”, frases arcanas; afirmações niilistas e escato-
lógicas do tipo, “a arte é uma besteira”, “o fim da arte”, etc.;
num dos parágrafos alheios ao que está sendo dito na narra-
ção principal, espargidos pelo livro todo, somos informados
de que, “A trama e a sequência tradicionais não têm mais
significação... o escritor tende a uma consciência mais aguda
de si mesmo no ato de criar. O exterior torna-se menor e o
escritor afasta-se da realidade objetiva, afasta-se da história,
da trama, do caráter definido, até que a percepção subjetiva
do narrador é o único fato garantido na ficção”.
Minha impressão nessa releitura se modificou um pou-
co (não me recordo quando li O Caso Morel pela primeira
vez; talvez em 2000, pois tenho uma vaga lembrança de
conversar a respeito do livro com um cretino que veio a ser
curador da FLIP anos depois, o sujeito mentindo que havia
lido o livro, eu percebendo que ele estava mentindo; tive al-
guma relação pessoal com a figura – ah, o meio literário bra-
sileiro... – em 2000). À semelhança de Robert Coover em
“Espancando a Empregada” (que faz troça da mesmice, da
hilária banalidade de uma relação sadomasoquista ao narrar
trinta e nove vezes, com pequenas variações, os peculiares
jogos sexuais, vixpt!, onomatopeia de chicote, entre um pa-
trão e uma empregada), de Norman Mailer num romance
(cujo título me esqueci) em que o protagonista encontra a
cabeça da esposa decepada dentro do recipiente onde ele
guarda sua maconha (maconheiro não têm apenas a compul-
são de defecar em caixa d’água e ficar nadando, ali, com os
próprios cocôs boiando), de Pauline Reage em A História de
O, de Sade (é claro), em suma, à semelhança desses todos,
Rubem Fonseca nos lembra, em O Caso Morel, lançado no
ápice da chamada “revolução sexual”, que sexo-sexualidade
não é exatamente aquilo que o Wilhelm Reich defendia em
Der Funktion das Orgasmus – que uma sexualidade livre e
“sadia” geraria uma humanidade sem impulsos destrutivos,
antissociais, etc. A libido, ao contrário do que pretendia Rei-
ch, é, no mínimo, uma força amoral; não raras vezes senti-
mos horror e repugnância ao nos percebermos instrumentos
cegos do instinto de procriação (a adolescente Silene, da pe-
ça Os Sete Gatinhos, de Nelson Rodrigues, espancando até a
morte uma gata prenha, projetando no pobre animal a repul-
sa e a vergonha que passa a sentir de si mesma ao descobrir-
se grávida do Bibelô). O desejo, ao mesmo tempo que nos
dá lampejos de “iluminação”, tônus “espiritual”, etc., nos ar-
rasta para o desconhecido, necessariamente; e o autoconhe-
cimento que se adquire nesse “adentrar o desconhecido”
nem sempre é bom, porque o que podemos descobrir sobre
nós mesmos nem sempre (aliás, quase nunca) é lisonjeiro;
testemunhar o mal (o nosso, dos outros, do mundo, etc.),
ainda que sem defesas simbólicas ou efetivas contra ele, ain-
da que sem uma recusa explícita dele, esse simples testemu-
nhar já é um ato moral, sobretudo se não nos recusamos a
chamar o mal por seu devido nome, não relativizarmos nesse
quesito, “há males que vem para o bem”, “muita luz neces-
sariamente gera muita sombra, por uma lei cósmica de com-
pensação e polaridade”, etc.
(Uma pequena digressão: o pessoal “à esquerda” gosta
de dizer que Rubem Fonseca foi o autor que deu o mais
contundente testemunho da brutalização que supostamente
a sociedade brasileira sofreu a partir do Golpe de 64 – que
antes de 1964 éramos o paraíso da brejeirice, etc. Maria Rita
Kehl diz que a partir dos anos 1990 Rubem Fonseca passou
a escrever num estilo kitsch, afeito ao “bom gosto da classe
média”, etc. (Uau... O período 2001-2006 talvez seja o mais
esplendoroso da produção ficcional fonsequiana.) Tudo o
que essa gente diz é barbaramente simplificador, não? Bom,
o que esperar dessa gente, que ia ver as peças do Plínio Mar-
cos só para aplaudir os palavrões, porque, no entender deles,
os palavrões desafiavam a ditadura militar?)
Rubem Fonseca, em O Caso Morel, escreveu um ro-
mance falho, que datou, no pior sentido da palavra (em vá-
rios aspectos O Caso Morel lembra um romance também
lançado em 1973, aliás, Prêmio Jabuti de 1973, o hoje esque-
cido “Clube de Campo”, de Rubens Teixeira Scavone). Mas
já estavam presentes nele as percepções e as concepções do
futuro estupendo romancista (A Grande Arte e Agosto) que
Fonseca veio a ser, quando enfim dominou seu oficio e deu
tratamento literário adequado à sua maneira peculiar de ver o
mundo.
O DOENTE MOLIÈRE (2000)

O propósito declarado do marquês anônimo, narrador


e protagonista de O Doente Molière, romance que Rubem
Fonseca publicou em 2000, é expiar uma omissão – se não
tivesse sido omisso (seu sentido de autopreservação o exigiu,
por razões plenamente esclarecidas lá pelo meio do livro), ele
talvez pudesse ter salvado seu amigo Jean-Baptiste Poquelin,
vulgo Molière (ator, autor, comediante, etc.), que lhe confes-
sou, já agonizante, ter sido envenenado. Em vez de buscar
um médico (o que provavelmente seria inútil, dada a precari-
edade da medicina do século XVII), o marquês foi atrás de
um padre para que este ministrasse a Molière a unção dos
enfermos. Dois padres se recusam a acompanhá-lo, um ter-
ceiro chegou quando o dramaturgo já havia morrido; detes-
tado pelo clero, sobretudo após a peça Tartufo (muitas auto-
ridades religiosas defendiam que o autor e suas peças satíri-
cas deveriam ser queimados numa fogueira), Molière só pô-
de ser sepultado graças à intervenção do rei Luís XIV, e ain-
da assim numa parte do cemitério destinada aos pagãos e aos
suicidas.
Falei nas razões “plenamente esclarecidas” do marquês
anônimo, porque num primeiro momento ele justifica sua
omissão para nós, leitores, com uma meia verdade – como
estava tendo um caso com Armande, a mulher de Molière,
ele facilmente seria tomado como suspeito pelo envenena-
mento (o comborço que mata o marido corno, etc.). Sim, a
justificativa soa verossímil, pois falar em venenos nos meios
aristocráticos franceses da segunda metade do século XVII
era como falar de corda em casa de enforcado – o hábito de
se livrar de amantes e parentes indesejados usando-se subs-
tâncias como vitríolo e arsênico era então disseminadíssimo.
Mas, para além dessa justificativa verossímil, estava o verda-
deiro motivo para o marquês ter se omitido – e esse motivo
também envolvia um caso de envenenamento, um caso do
qual, embora ele não fosse diretamente culpado, muito pro-
vavelmente poderia ser considerado cúmplice.
Morto e sepultado Molière, o marquês anônimo busca
expiar sua omissão lançando-se à tarefa de descobrir quem
matou seu amigo (sim, amigo; o fato de ele ter tido um longo
caso com Armande, mulher de Molière, em nada modificava
essa afeição). Os primeiros suspeitos aventados foram as ví-
timas preferenciais das peças satíricas de Molière – clérigos,
arrivistas vulgares, médicos charlatães, maridos e mulheres,
etc. O marquês chega a uma lista com menos de dez nomes,
nenhum deles especialmente suspeito, mas todos suspeitos
de alguma forma. Sua investigação, contudo, não vai muito
além de umas sondagens superficiais que faz em salões lite-
rários e algumas poucas entrevistas com pessoas que em tese
poderiam esclarecer alguma coisa sobre o caso. Ele acaba se
justificando para nós, leitores, dizendo não ser fácil descobrir
o culpado pela morte de Molière não sendo ele alguém le-
galmente autorizado a usar “os processos normais de coação
e tortura com a finalidade de obter a confissão de crimino-
sos”.
Omisso, frívolo e frouxo, o marquês anônimo não é
mesmo alguém forjado para um empreendimento heurístico
desse porte. A verdade lhe interessa desde que sirva para li-
vrá-lo da encrenca na qual ele teme se ver envolvido, en-
crenca essa que responde pelo nome Marie-Madeleine
d’Aubray ou Marquesa de Brinvilliers. Amante do marquês
anônimo – ele era loucamente apaixonado por sua inigualá-
vel “voracidade crepitante” –, Marie-Madeleine foi uma das
primeiras figuras da nobreza a ser descoberta, condenada e
executada no rumoroso “Caso dos Venenos” (1670-1682),
caso que teve como figura central uma feiticeira chamada
Madame Voisin (aborteira, praticante de magia negra, prepa-
radora de venenos, etc.) e que chegou a espirrar indiretamen-
te em Luís XIV, dado que sua então amante oficial, Madame
de Montespan, mãe de seis filhos legitimados de Luís, etc.,
era assídua cliente da bruxa.
A morte de Molière enfim é esclarecida (a bruxa Voisin,
presa numa masmorra e cheia de marcas de tortura, conta ao
marquês quem, como, etc.). Apesar de o culpado ser mesmo
um dos aventados pelo marquês em sua lista, esse esclareci-
mento nada tem de triunfante – em parte pela banalidade do
que é revelado, pela motivação genérica demais para o crime,
portanto inverossímil, em parte porque o marquês foi uma
figura coadjuvante (omisso, passivo, etc.) demais nesse pro-
cesso de revelação.
Rubem Fonseca já disse (indiretamente, através de al-
gum de seus personagens, não me lembro qual) que escrever
bem geralmente não é muito mais do que um paciente traba-
lho de ourivesaria (metáfora para o cuidado artesanal na fei-
tura do texto). Essa qualidade artesanal se destaca bastante
em O Doente Molière; talvez porque os detalhes do livro, a
reconstituição dos costumes e alguns episódios pitorescos da
França do “Rei Sol” (pode-se considerar o livro um romance
histórico), sejam mais interessantes do que o todo (enredo,
etc.); particularmente divertida foi uma fofoca revelada ao
marquês anônimo num dos salões literários, fofoca a respei-
to do irmão de Luís XIV conhecido como Monsieur (Philip-
pe, duque d’Orléans), uma bichona louca que participava de
campanhas militares sempre travestido (maquiado, etc.) e
que – a fofoca – tinha o hábito de dormir com “aquela parte
do corpo que só os homens possuem” envolvida por cor-
dões com pequenas imagens da Virgem Maria, pretendendo
com isso proteger “aquela parte” contra quaisquer vicissitu-
des. (Há, há!)
Talvez a maior falha do livro seja, no final das contas, a
tese do assassinato de Molière. Não por ela ser apenas uma
tese ficcional, sem historicidade alguma (isso é irrelevante).
A tese é frágil por uma simples lei de razão e proporção – é
pouco provável que alguém decida cometer um ato tão irre-
versível e de consequências tão graves quanto um assassina-
to para vingar-se de um simples gracejo; o próprio marquês
anônimo chegou a essa conclusão ao pensar nas pessoas sati-
rizadas na peça As Preciosas Ridículas – que arrivistas inte-
resseiras seriam incapazes de cometer qualquer ato intem-
pestivo (assassinato, por exemplo) capaz de prejudicar seus
próprios interesses. (Estava aqui pensando se conheço al-
gum humorista que foi assassinado; sim, o Leon Eliachar;
mas Leon foi morto não por ser humorista e sim porque es-
tava envolvido com uma mulher casada e o marido traído
não curtiu muito a coisa). (“Mas Stalin mandou matar aquele
poeta que gracejou de seu bigode, dizendo que o bigode pa-
recia feito com baratas.” Oras, Stalin podia matar o quanto
quisesse sem haver qualquer consequência, porque Stalin era
Stalin.) Sim, insisto que há qualquer coisa de desconjuntada,
de insatisfatória e de flagrantemente desproporcional no “as-
sassinato de Molière”. Pois, como bem disse uma vez o Mil-
lôr Fernandes, que entendia magnificamente desse riscado,
“Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: ne-
nhum humorista atira pra matar”.
O SELVAGEM DA ÓPERA (1994)

Tomei conhecimento do compositor Carlos Gomes


(1836-1896) lá pelos oito anos, quando eu me dedicava à
numismática (coleção de cédulas e moedas antigas). A efígie
de Gomes, que estampava uma moeda de trezentos réis cu-
nhada em 1937, tinha uma severidade e uma afetação épica
algo beethoveniana – sim, Carlos Gomes parecia Ludwig
Van, só que de bigode (há alguns anos eu frequentemente
zoava meu amigo Eurico Junqueira, perguntando pra ele on-
de estava sua ex-cabeleira de Beethoven de gesso daqueles
que ficam em cima do piano; Junqueira havia cortado o ca-
belo, etc.). Não me lembro de quando fui informado de que
a música tema do programa A Voz do Brasil era uma com-
posição de Carlos Gomes, a protofonia de sua ópera O Gua-
rani. (Quando eu era criança uma época A Voz do Brasil u-
sou a música Spiral, do Vangelis, como tema.) Esses dois
dados, efígie de moeda e música tema de um antipático pro-
grama radiofônico oficial, “do governo”, me fizeram apre-
ender Gomes não propriamente como músico, mas como
um hierático símbolo cívico, patriótico, etc. Creio que não
ocupei meu pensamento com Carlos Gomes até 1994, quan-
do li o que o Paulo Francis escreveu sobre o então recém-
lançado livro de Rubem Fonseca, O Selvagem da Ópera,
uma biografia romanceada do compositor. Francis, que elo-
giou bastante o livro e que, ao contrário de mim, era um a-
preciador do gênero musical operístico, afirmou que o pro-
blema de Gomes é que ele não era memorável, que era um
talento derivativo (ou seja, não original) e que provavelmente
ele explodiu (!) ao morrer (de câncer, aos sessenta anos) por
ter reprimido durante a vida toda sua “mulatice”.
Carlos Gomes, de fato mulato, oriundo da baixa classe
média campineira (Campinas, SP), filho do “Maneco Músi-
co”, a exemplo do pai dividia-se entre a música e a alfaiatari-
a. Aos vinte e três anos, ambicionando uma carreira musical
de fato, vai para São Paulo e, logo depois, para o Rio de Ja-
neiro, onde logo cai nas graças do imperador, dom Pedro II,
que subvenciona seus estudos musicais formais, aqui e, pos-
teriormente, em Milão, Itália, onde Gomes vem a ter uma
indiscutivelmente triunfante carreira como compositor. Seus
indiscutíveis triunfos – afinal, ter óperas apresentadas com
sucesso no Teatro Scala não é coisa para qualquer “caipira
charlatão”, como Gomes se referia a si mesmo numa fre-
quente atitude de autodefesa prévia – foram concomitantes a
várias más vicissitudes, conflitos com editores e libretistas,
morte de filhos ainda pequenos, seu ânimo bipolar, sua ra-
bugice, sua insegurança e o desejo de ser incondicionalmente
admirado, sua avaliação paranoide dos próprios reveses, etc.,
sem que isso (triunfos e más vicissitudes) tenha dado uma
configuração trágica à sua trajetória pessoal. Os conflitos que
Carlos Gomes enfrentou foram previsíveis e comuns (a pes-
soas com sua projeção pública). Suas falas mostradas no li-
vro (a quase totalidade transcrições literais de cartas, às quais
Rubem Fonseca teve acesso através de colecionadores como
Pedro Corrêa do Lago, aliás, seu genro), eram enfáticas e
pomposas. Fonseca provavelmente intuiu que tentar recriar
ficcionalmente a interioridade de Carlos Gomes, essa figura
tão posada, “rígida e hierática como alguém que ouve o Hi-
no Nacional”, como diria Nelson Rodrigues, seria inútil. Daí
muito provavelmente a escolha que fez por uma forma lite-
rária que, à primeira vista, pode parecer uma esdrúxula e va-
zia experimentação formal, mas que se revelou perfeita para
expressar a superficialidade – sim, superficialidade – de seu
biografado.
Rubem escolheu escrever a história de Carlos Gomes
(que também é a história de outras figuras destacadas do im-
pério, como Taunay, André Rebouças, além do próprio im-
perador, Pedro II) como se estivesse escrevendo o texto bá-
sico para a elaboração de um roteiro cinematográfico. Diz
Fonseca, através do narrador em primeira pessoa do livro,
que, “Ao contrário de um script, que tem suas rígidas regras
de elaboração, o texto básico de um filme pode, deve mes-
mo, ser escrito com abundância de informações, dentro de
uma estrutura flexível”. O texto de O Selvagem da Ópera,
mais do que visual, resulta voyeurístico. Sobre esse ponto em
particular Fonseca diz, “Mais do que uma exploração dos
poderes da imagem – assim como a literatura é mais do que
uma exploração dos poderes da linguagem –, o cinema per-
mite ao consumidor, como nenhuma outra arte, saciar seu
voyeurismo escopofóbico, ver sem ser visto”. Várias vezes
durante essa releitura (não me recordo quando li o livro pela
primeira vez), e antes de chegar a essa explanação sobre o
voyeurismo cinematográfico, o livro me deu, sim, a sensação
de estar espiando uma espécie de Big Brother avant la lettre.
Talvez porque, embora insuficiente do ponto de vista dra-
mático, Carlos Gomes é uma figura plástica, icônica (que se
presta bem a ser retratada em efígie de moeda), portanto fa-
cilmente cinematografável.
(Cogito que Gomes talvez seja também uma figura –
bingo! – operística. Falei lá atrás do meu desinteresse por es-
se gênero musical, apesar de a música ter sido meu interesse
precípuo da adolescência até mais ou menos quarenta anos.
Há uma passagem muito engraçada no livro, citada por Fon-
seca a propósito do absurdo esboço do libreto de uma ópera
cômica baseada na vida da coquete francesa Ninon de Len-
clos, ópera que Carlos Gomes se recusou a escrever, basica-
mente por ser muito suscetível à hipótese de não ser levado
a sério como artista. Diz Fonseca que perguntaram ao poeta
W. H. Auden, que escrevera o libreto para uma ópera de I-
gor Stravinsky, se ele não achava que os libretos de ópera
costumavam ser insensatos demais. E Auden respondeu que
ópera tem mesmo de ser insensata, pois ninguém canta
quando está se sentindo sensato.)
É indiscutível o interesse histórico de O Selvagem da
Ópera, sobretudo ao mostrar as ambiguidades do racismo à
brasileira – um país que, ao mesmo tempo em que tinha es-
cravos africanos, tinha um negro, o engenheiro André Re-
bouças, como uma das figuras mais poderosas e proeminen-
tes do império. Carlos Gomes mesmo, mulato (“passou de
seis e meia é noite”, etc.), vive lá seus conflitos raciais, de
modo pouco conscientizado, alisando o pixaim com ferro
quente e não se sentindo nem um pouco ofendido quando
alguém lhe diz algo que hoje, 2019, seria tomado como um
intolerável insulto racista, como quando o libretista Ghislan-
zoni (acho que foi ele) diz, meio a sério, meio de gozação,
que Gomes descende de antropófagos (Gomes responde,
bem humorado, “Só por parte de mãe”). Uma cena de fato
pesada ocorre entre Carlos e sua mulher, a italiana Adelina,
que culpa o marido pela morte precoce de vários filhos de-
les, dizendo que não importa quantos filhos eles venham a
ter, todos vão morrer porque o sangue de Carlos é ruim,
“sangue de negro”. (Nelson Rodrigues explora mais ou me-
nos esse tema em sua peça Anjo Negro, em que a mulher
branca de um casal inter-racial mata afogados no tanque to-
dos os filhos que tem com o marido, um “crioulão de ventas
triunfais”.)
O livro de Fonseca, que, a despeito de sua configuração
ficcional, foi baseado em criteriosa pesquisa, corrige vários
erros históricos difundidos sobre Carlos Gomes. E, pensan-
do aqui na hipótese sobre se o tal texto básico que suposta-
mente serviria para um futuro argumento e roteiro de filme
poderia gerar um filme interessante, meu palpite (mais do
que um palpite, na verdade) é que não. Figurões em geral e
músicos em particular raramente são pessoas (personagens,
portanto) interessantes. Amadeus, o filme (Milos Forman,
USA, 1984), só é tão legal porque, no fundo, não passa de
um “desenho animado”, Papa-Léguas Mozart versus Coyote
Salieri, sem qualquer veracidade histórica. Ricardo III (figu-
rão) só é ótimo porque William Shakespeare inventou estu-
pendas mentiras sobre o pobre Richard Gloucester. Etc., etc.
Pensando bem, creio que Carlos Gomes já foi cabal e sufici-
entemente representado através da talvez única expressão
artística condizente com seu caráter solene, hierático, pom-
poso, rígido, “cívico” – portanto, com seu caráter empedra-
do e imóvel: a estatuária pública.
E DO MEIO DO MUNDO PROSTITUTO SÓ
AMORES GUARDEI AO MEU CHARUTO (1997)

Sempre gostei de livros narrados por casanovas, sujei-


tos que vivem metidos no meio das pernas de duas ou mais
mulheres ao mesmo tempo e que desfiam sua inevitável filo-
sofia de alcova. E longe de mim qualquer consideração se-
xista, literariamente falando – de bate-pronto, aqui, agora,
me vem a esplendorosa imaginação lúbrica de Hilda Hilst em
A Obscena Senhora D (o sujeito apelidado miseravelmente
pela mulher de Dia Dez, por só copular com ela no dia em
que recebia o ordenado, etc.); a hoje esquecida Fernanda
Young narra num de seus notáveis romances dos anos 1990,
não me lembro qual, uma deslumbrante relação voyeurística
envolvendo um cônsul polonês e uma fulana que faz balé, se
exercita naquelas barras, etc. Creio, sem dúvida, que uma es-
critora de fato “safada” poderia conceber uma personagem
como a linda, analfabeta e emocionalmente instável Mary Ja-
ne Reed, a.k.a. Macaca, que aterroriza Alexander Portnoy a
ponto de ele ir se esconder de seus simiescos assédios e, so-
bretudo, reivindicações (“você me transformou numa prosti-
tuta!”, etc.) em Israel (Mary Jane ganhou esse apelido por
causa do episódio em que decidira comer uma banana en-
quanto assistia a um casal de amigos copulando; uma vez,
em minha adolescência, eu, Eduardo Haak, estava vendo um
filme pornô com um bando de amigos quando decidi comer
um pedaço de melancia; os amigos riram muito e me apeli-
daram de “Magali”; minha decisão, a despeito do escárnio,
“Magali”, etc., me pareceu perfeitamente justa – eu ter deci-
dido comer um naco de melancia enquanto a tela mostrava
Christy Canyon sendo fodida por Ron Jeremy mostra o
quanto eu estava achando erótica essa coisa de ver um filme
pornô cercado de marmanjos.)
Sim, sim, eu acredito piamente na imaginação fescenina
das mulheres. Contudo, pelo sim, pelo não, a Macaca foi in-
ventada pelo Philip Roth; assim como foi o Philip Roth
quem imaginou o titereiro aposentado Mickey Sabbath indo
se masturbar para o túmulo de sua recém-falecida amada-
amante Drenka; assim como Fridolin e Albertine, de Breve
Romance de Sonho, foram concebidos por Arthur Schnit-
zler; assim como Diabo no Corpo foi escrito por Raymond
Radiguet; assim como Nelson Rodrigues, cada vírgula; assim
como Gustave Flaubert; assim como D. H. Lawrence; assim
como Rubem Fonseca, sobretudo através de seus persona-
gens Gustavo Flávio, “gordo, mulato e pernóstico” (e capa-
do, após a horripilante cena final de Bufo & Spalanzani), e
Peter Mandrake. Os dois grandes personagens fesceninos
fonsequianos, aliás, aparecem juntos no curto romance, lan-
çado por Fonseca em 1997, E do Meio do Mundo Prostituto
Só Amores Guardei ao Meu Charuto.
A trama, suspense-e-resolução, de E do Meio etc. é
simples – Gustavo Flávio começa a receber pelo correio fo-
tos de ex-namoradas que logo em seguida aparecem assassi-
nadas. O caso é investigado (por Mandrake, que é advogado
criminalista, e pelo investigador Raul; embora amigos de
longa data, os dois são quase antípodas na presente história).
O assassino é descoberto, embora nem tudo concernente ao
caso se esclareça com a descoberta; a evidência de que a his-
tória por trás dos crimes é um pouco mais complexa acaba
ficando por isso mesmo. O livro parece afirmar um princípio
de Occam (a resposta mais simples é sempre a verdadeira)
meio desconstruído: a resposta mais simples é apenas a apa-
ziguadora “certeza” a que nos apegamos para nos distrair-
mos da terrível desconfiança de que o universo, no fundo, é
infinitamente inescrutável. (Aliás, desconstrução virou uma
palavrinha fácil da boca de qualquer ignorante pedante, ago-
ra até corte de cabelo vem acompanhado do adjetivo “des-
construído”; o sentido original da palavra dizia respeito à ex-
plicitação de uma contradição, até então latente, numa afir-
mação qualquer; ou seja, desconstrução é malícia e suspicácia
adotadas como princípios heurísticos; foi Sigmund Freud
quem disseminou essa mania de ler maliciosamente as coisas,
já que, como ele mesmo afirmou, só às vezes um charuto é
apenas um charuto.)
Creio ser razoavelmente certo dizer que E do Meio etc.
seja uma dramatização da agnose – a desconfiança quanto ao
ser humano ser capaz de conhecer, cabalmente, a verdade.
Rubem Fonseca já havia tratado desse problema em A
Grande Arte, romance lançado em 1983, de forma bem mais
ambiciosa e com um resultado bastante superior. O uso de
múltiplos narradores em E do Meio etc., uma técnica “pós-
moderna” já meio sovada em 1997, dá o tom de agnose e
subjetividade radical ao livro – múltiplos narradores são o
must para debilitar a tese de verdades objetivas, já que cada
um vê os acontecimentos de um jeito, etc. (Pessoalmente eu
detesto o recurso. Nelson Rodrigues escreveu, para mim, sua
pior peça, Boca de Ouro, usando essa coisa de múltiplos
narradores.) Tudo que é sólido se desmancha no ar de vez
porque, ainda por cima, o protagonista da história é Gustavo
Flávio, um narrador absolutamente não confiável das pró-
prias peripécias (sexuais), um tipo farsesco até a raiz do pixa-
im alisado – Gustavo Flávio, o mulato que embranqueceu
após ficar famoso (como escritor), o gordo que se tornou
delgado, o acanhado sexual que se tornou um casanova ex-
tremamente bem sucedido.
(Antes de falar sobre casanovas literários, vou cometer
uma pequena digressão. Há muitos e muitos anos eu traba-
lhei como ghost writer para uma psicóloga que havia desen-
volvido uma técnica para tratar pessoas que tinham fobia de
dirigir automóveis. Uma das pacientes que entrevistei era
uma ex-empregada doméstica que havia ascendido social-
mente, etc. Ao que parecia, seu bloqueio psicológico para di-
rigir tinha origem na relação traumática que tivera com um
ex-patrão, um judeu milionário chamado Chaim. Recém-
contratada na mansão de Chaim, a empregada ouvia o patrão
ser chamado de Chaim, Chaim, não com a pronúncia hebrai-
ca, ráin, mas com o ch com som de x. Então a empregada
achou que o nome do patrão era Pixaim e um dia abordou-o,
“senhor Pixaim”, etc. Chaim ficou uma onça ao ser chamado
daquele modo e respondeu, puxando o cabelo da pobre em-
pregada, “Pixaim? Pixaim é seu cabelo! Meu nome é ráin!”.)
Casanovas literários, vamos lá.
Estou bastante impressionado com a recente leitura que
fiz do livro A Arte Sagrada de William Shakespeare, de Mar-
tin Lings. Li o livro inteiro e depois, simultaneamente, reli a
peça Winter’s Tale e reli o ensaio de Lings sobre essa peça.
O livro, a despeito da erudição do autor (e do viés perenialis-
ta, claro), é bastante simples – ele analisa as peças maduras
de Shakespeare usando um arcabouço teórico oriundo da te-
ologia cristã, que depois foi assimilado à literatura por Dante
Alighieri. Segundo a exegese bíblica, o texto das Escrituras
tem quatro sentidos – o literal, que simplesmente narra os
acontecimentos “históricos”; o alegórico, que aponta para
aquilo em que o fiel deve crer; o moral, que aponta para o
modo como o fiel deve se conduzir, agir, etc.; por fim, o
sentido anagógico, que aponta para onde o fiel deve tender,
o caminho da salvação e/ou santificação. A adaptação literá-
ria disso é simples, bastando substituir “fiel” por “leitor”,
“Escrituras” por qualquer texto literário. A partir desse con-
ceito dos quatro sentidos Martin Lings concebe que todos
heróis shakespearianos das peças maduras são “peregrinos
purgatoriais”, homens suspensos entre o céu e o inferno, en-
tre a salvação e a danação. Dessa perspectiva, até mesmo o
sanguinário e aparentemente niilista príncipe Hamlet revela
fortes traços crísticos – o filho que recebe do pai “sobrena-
tural” a terrível tarefa de derrotar o usurpador do trono, à
custa da própria renúncia a qualquer possibilidade de felici-
dade mundana (renúncia essa vivida dramaticamente por
Hamlet ao se ver compelido a rejeitar o amor de Ofélia) e à
custa do próprio martírio (Hamlet sabe que não sairá vivo de
um embate com o usurpador fratricida Cláudio). (Satanás,
simbolicamente, é um usurpador, pois por meio do engodo,
Eva e a serpente, etc., ele destrona o homem como o sobe-
rano desse mundo). E por aí vai.
O comissário de polícia Alberto Mattos, protagonista
do romance Agosto, talvez seja o grande personagem dramá-
tico criado por Rubem Fonseca, do que talvez seja seu gran-
de, seu monumental romance. Há na trajetória de Mattos,
como na de Hamlet, uma grande e insuspeitada dose de imi-
tatio Christi – a renúncia a qualquer possibilidade de felici-
dade terrena (seu constante repúdio às ofertas amorosas de
Salete tem analogia com a maneira como o príncipe Hamlet
trata Ofélia), a compaixão (Mattos sente pena até de Getúlio
Vargas, o algoz por trás de uma violência arbitrária sofrida
por ele quando estudante), o autossacrifício em nome de um
bem superior aos próprios interesses egoístas (a fidelidade à
verdade e à justiça, o repúdio à mentira e ao erro; eu digo, no
final do ensaio que escrevi sobre Agosto, que o martírio cai
bem a Mattos, come sempre cai bem “a qualquer pessoa cujo
reino, aparentemente, não pertence a esse mundo”). Agosto
tem mesmo algo de “sagrado” e, sem muito esforço, é pos-
sível ver em seu texto os sentidos literal, alegórico, moral e
anagógico. Já para E do Meio do Mundo Prostituto Só A-
mores Guardei ao Meu Charuto, uma história que possivel-
mente é uma dramatização da agnose (a impossibilidade do
saber), além de poder ser enquadrada também no gênero
farsesco, tragicômico (as coisas começam mal e terminam
bem, “bem está o que Benfica, ó pá”), esse arcabouço teóri-
co não serve muito. Gustavo Flávio é um álazon, um ridícu-
lo soldado fanfarrão sempre a jactar-se de suas conquistas
amorosas, seu conhecimento sobre charutos e mulheres, sua
erudição literária; e o destino fatal do álazon, do soldado fan-
farrão, é encontrar-se com o eíron (raiz grega da palavra iro-
nia), o sujeito que sempre sabe mais, bem mais do que dá a
entender (Mandrake e Raul, no livro) e que mostra ao álazon
que este, apesar de sua jactância toda, sempre sabe menos,
bem menos do que deveria saber. (Northrop Frye fala bas-
tante de eíron e álazon em seu livro Anatomia da Crítica, li-
vro no qual ele também recria à sua maneira os quatro senti-
dos, literal, alegórico, etc.)
A grande tradição da literatura libertina afirmava uma
espécie de candura existente na safardanagem; no fundo a-
queles atos todos tinham lá sua pureza; seus arautos tinham
algo de santos; todo o cinema de Walter Hugo Khouri, por
exemplo, com seus escabrosos casais incestuosos (pai e filha,
Marcelo e Berenice), pode ser interpretado pela chave da
busca da ascese pela via torta da inebriação sensual (incesto,
no sentido literal, é, justificadamente, algo escabroso; porém
o par Marcelo e Berenice é muito mais simbólico – alegóri-
co, moral e anagógico, portanto – do que literal). Khouri era
um modernista, alguém afinado com D. H. Lawrence. Já
Rubem Fonseca é francamente pós-moderno, ou seja, al-
guém dado a desconstruir, a explicitar contradições latentes
em verdades aparentemente irretocáveis; o pós-moderno é
um tipo que circula por ambiências modernas, só que meio
arruinadas, meio esculhambadas (conversava outro dia com
um amigo sobre aquele prédio modernista no centro de São
Paulo que, abandonado, virou uma “ocupação”, pegou fogo
e desabou; falávamos sobre como o episódio era alegórico
da falência do ideário moderno, etc.). Gustavo Flávio, narra-
dor não muito confiável das próprias estripulias sexuais, filó-
sofo de alcova de segunda mão, mostra o quanto Rubem
Fonseca, a despeito de seu declarado ateísmo – e a despeito
de uma supostamente deliberada suspensão de juízos morais
que alguns críticos enxergam em sua literatura –, Gustavo
Flávio (além de toda galeria de tipos grotescos presentes na
ficção fonsequiana) mostra o quanto Rubem, no fundo, é
um autor moralizador. Não há candura ou pureza latente nas
“safardanagens” dos libertinos criados por Rubem. Prostitu-
tas não são “sacerdotisas” de um suposto “rito sagrado”,
como pretendem muitos neopagãos atuais (inspirados por
D. H. Lawrence, por exemplo), mas são o que são, banais
criaturas submundanas, frequentemente perigosas, etc. Li-
bertinos não são criaturas que mergulham no inferno para,
em seguida, ascender ao céu, mas tipos bem duvidosos, tipos
capazes de largar a mulher que engravidaram em frente à cli-
nica de aborto e que sentem vontade de rir assim que a mu-
lher, ao descer do carro, pisa em merda de cachorro (resumo
do conto O Relatório de Carlos). Por trás de todo libertino
criado por Rubem Fonseca ou há alguém risivelmente ingê-
nuo, ou há alguém miseravelmente irônico. Salve-se quem
puder.
MANDRAKE: A BÍBLIA E A BENGALA (2005)

Mandrake: A Bíblia e a Bengala, romance que Rubem


Fonseca lançou em 2005, na verdade é composto por duas
novelas, cada uma com mais ou menos cem páginas, que te-
nuamente se ligam – uma situação que fica em suspenso na
primeira história se resolve na segunda. As duas histórias,
embora independentes, são semelhantes: ambas são tramas
policiais clássicas (crimes acontecem, crimes são investiga-
dos, criminosos são descobertos e punidos, ou seja, hybris,
hamartia e nemesis), ambas exploram o fetiche pelo objeto
único ou raro (um incunábulo impresso no século XV por
Gutenberg, uma bengala Swaine), em ambas Rubem Fonseca
se autoparodia como em nenhum outro livro de Rubem
Fonseca.
Sim, A Bíblia e a Bengala é um compêndio exagerado,
caricatural portanto, de personagens e situações tipicamente
fonsequianas: um anão delinquente (de nome Waise – órfão,
em alemão –, filho de um monge com uma freira), o caráter
salomônico (setecentas esposas, trezentas concubinas) de Pe-
ter Mandrake, os charutos comburidos, o legista sádico e
sempre exibicionista de sua perícia como autopsiador; há
menção a Michel Zevaco, um francês autor de folhetins de
onde se originou o termo rocambolesco para uma trama
com peripécias exageradas (Rocambole era um personagem
de Zevaco); Michel Zevaco, a darmos crédito ao livro José
como sendo de fato uma autobiografia publicada por Fonse-
ca em 2011, foi seu primeiro ídolo literário; é curioso como
Nelson Rodrigues e Rubem Fonseca têm influências seme-
lhantes – Michel Zevaco (Nelson até cunhou a expressão
“chapelão de Michel Zevaco”), Ponson du Terrail (outro fo-
lhetinista francês), ópera, apesar de não só não haver ne-
nhuma continuidade entre os dois autores como Rubem
Fonseca, na única menção que faz a Nelson Rodrigues (num
de seus contos, não me lembro agora qual), diz pela boca de
um personagem que já está mais do que na hora de o teatro
brasileiro sair do “subúrbio sórdido do Nelson Rodrigues”.
Quem conhece Mandrake de outros carnavais se de-
cepcionará um pouco com um certo afrouxamento moral do
personagem em A Bíblia e a Bengala; suas mulheres funda-
mentais sempre se caracterizaram por uma boa índole (Berta
Bronstein, Ada, Bebel Leitão, etc.), e agora vemos Mandrake
com a cabeça completamente virada por uma fulana de índo-
le bem duvidosa chamada Karin Altolaguirre; e cheio de
condescendências para com uma falsa condessa, uma perua
italiana sessentona bem chegada num trambique; e uma ou-
tra, que além de trair o marido com Mandrake, também o
traía fazendo ménage bissexual com uma amiga e um surfis-
ta, surfista que fornecia cocaína para ela, surfista para quem
essa fulana faz uma proposta das mais escabrosas, etc. Ne-
nhuma mulher, realmente, se safa aqui; a empregada domés-
tica de Mandrake, que tem a humilde ambição de ter uma ca-
sinha no subúrbio com um pezinho de manga, acaba reve-
lando ser uma pessoa venal (ambição é ambição, não impor-
ta que modesta); há uma oligofrênica que atropelou e matou
um pedestre por estar dirigindo e falando no celular; há uma
bibliotecária velhusca, uma patética e histérica virgem louca
que é facilmente convencida a cometer um crime por um su-
jeitinho que lhe faz inéditas promessas de amor, casamento,
lua-de-mel em Paris, etc.; numa trama secundária de uma das
novelas, Mandrake e o sócio Weksler (ex-Wexler) interme-
deiam um caso de extorsão protagonizado por uma vigaristi-
nha com piercing na língua e tatuagem no cóccix disposta a
acusar (injustamente) de estupro um figurão. John Lennon
disse numa de suas canções que a mulher é o crioulo do
mundo, woman is the nigger of the world; Fonseca parece
dizer em A Bíblia e a Bengala que a mulher é o esgoto do
mundo, a origem da corrupção do homem, etc. (Walter
Franco afirma, numa de suas poucas músicas realmente bo-
as, que a mulher é a senha do motim.)
Já os homens fundamentais nas duas novelas, por sua
vez, são justos e íntegros (a relativa “queda” de Mandrake
pode ser atribuída a um temporário “feitiço de Circe”); We-
xler (prefiro a grafia com x), um velho judeu com a severida-
de moral de Moisés ao repudiar a demagogia de Aarão e sua
complacência com a idolatria, usa a palavra alemã schaden-
freude, alegria com o infortúnio do próximo, para definir o
esgoto em que o mundo se transformou (ou que sempre foi,
embora velhos ranzinzas tendam a ser mais implicantes com
o tempo presente); diz Wexler que só o idioma alemão tem
palavras capazes de expressar adequadamente certas desgra-
ças (Wexler perdeu os pais no holocausto nazista, etc.) (We-
xler encontrou a palavra schadenfreude para expressar seu
desencanto com a humanidade; Moisés, ao final da ópera de
Arnold Schoenberg, Moses und Aron, confessa, impotente,
“ah... a palavra que me falta...”.) Raul, velho amigo de Man-
drake, policial que trabalha na investigação de homicídios, é
um demônio acusador, um escrutinador severo que busca
nossas culpas recônditas e nos conduz, por fim, à expiação;
em seus traços mais amenos, o honesto Raul cria rãs e na-
mora uma loura robusta com olhos bonitos (definição de
Mandrake).
Falei lá atrás em trama policial clássica e mencionei i-
mediatamente hybris, hamartia e nemesis, arrogância, erro
trágico e punição, o trio parada dura que tem levado homens
e mulheres a entrarem pelo cano desde a Grécia Antiga. Tal-
vez o prazer proporcionado por esse tipo de trama tenha al-
go a ver com a recolocação do mundo nos eixos, com a res-
tauração do equilíbrio cósmico, além, é claro, de ter a ver
com o esclarecimento daquilo que é aparentemente incom-
preensível, com a solução de enigmas, etc. (o homem, essa
criatura tão cercada por mistérios esmagadores, tem mesmo
uma carência insaciável por esclarecimentos, ainda que fic-
cionais, “de mentirinha”). Mas nós, admiradores do Rubem
Fonseca, sabemos que além disso tudo também encontrare-
mos nesse autor uma abundante fonte que saciará nosso
apetite pelo grotesco e pelo esdrúxulo; se Alberto Mattos de
Agosto é sem dúvida seu maior personagem dramático, to-
cante mesmo, com algo de imitatio Christi, o anão José Zak-
kai, a.k.a. Nariz de Ferro, de A Grande Arte, é sem dúvida o
personagem mais impressionante de Rubem Fonseca, um
demônio caricatural que recria o mundo à imagem e seme-
lhança de suas próprias deformidades. O sociólogo francês
Jean Baudrillard falou uma vez que a publicidade comercial a
partir dos anos 1970 adotou a estratégia da concupiscência,
da violação e do mal-estar (aliás, o livro em que ele afirmou
isso tem o elucidativo título de A Transparência do Mal –
Análise Sobre Fenômenos Extremos). Segundo Baudrillard,
por alguma razão misteriosa (que ele identifica de alguma
forma com o esgotamento do ideário moderno e com a tran-
sição para a tal da “pós-modernidade”), nossos gostos eleti-
vos e nossas pulsões cederam lugar à nossa permanente re-
pulsa diante de tudo. O.k., o.k., eu só acho que o pendor pa-
ra o grotesco e o gosto pelo “mundo cão” existem desde que
o mundo é mundo, não tendo necessariamente algo a ver
com modernidade/pós-modernidade. O Inferno de Dante
Alighieri, com seus gulosos afundados até a cintura numa
lama fétida, etc., etc., é “mundo cão” ao extremo. Medeia, a
mãe que mata os filhos para punir marido infiel, idem. O a-
não fonsequiano José Zakkai enfiando uma barata viva na
boca de um desafeto podia perfeitamente ser um persona-
gem dantesco, empregando exatamente esse castigo contra,
sei lá, as almas dos que foram condenados ao inferno por te-
rem mentido muito quando vivos. Arrisco aqui uma afirma-
ção “peripatética”: é próprio do homem apreciar o horror
exposto de forma transparente porque é próprio do homem
o prazer de saber, seja lá o que for. E também não podemos
nos esquecer de que o horror, quando passa de uma certa
medida, se torna caricatural, portanto cômico; o demoníaco
José Zakkai é muito engraçado, no final das contas; Rubem
Fonseca não costuma muito ser definido como um mestre
do humor negro, mas em grande medida ele é isso; assim
como Dante Alighieri talvez possa ser definido assim em sua
commedia, assim como Eurípedes e sua Medeia infanticida,
assim como Dostoievski (confesso que acabei rindo muito
naquela cena terrível de Crime e Castigo em que a madrasta
da Sônia, depois de ser despejada do apartamento, etc., im-
provisa com os filhos pequenos um desesperado show
mambembe pelas ruas de São Petersburgo; pra mim é inegá-
vel que aquilo tem uma dimensão cômica).
O judeu Wexler (sempre me lembro do grande, do i-
nolvidável Luís Carlos Miele no papel de Wexler na fracas-
sada série Mandrake, feita pela HBO em 2005) apegou-se à
palavra schadenfreude, a abominável tendência do homem a
alegrar-se com a desgraça alheia, para definir o mundo mo-
ralmente pútrido de A Bíblia e a Bengala. Mas o juiz severo
(e sábio) sabe que seu oposto complementar é um moishe
pipik, um bufão (Wexler sempre levou numa boa as goza-
ções de seu querido amigo Peter Mandrake, “Vou ler o Pro-
tocolo dos Sábios do Sião pra ver se curo essa ressaca, We-
xler”, etc.). A feia e mesquinha schadenfreude, alegria com o
infortúnio do próximo, sem dúvida tem um insuspeitado pa-
rentesco com a bela e generosa capacidade que temos para
rir dos infortúnios todos – dos nossos e dos alheios. Ainda
bem pra todos nós.
DIÁRIO DE UM FESCENINO (2003)

Ao escrever um e-mail a um amigo (sou um homem do


século XX, ainda uso e-mail) a propósito desses breves en-
saios sobre os romances de Rubem Fonseca, arrisquei a ex-
plicação: venho-os escrevendo numa tentativa de me apossar
conscientemente da influência desse autor, uma influência
imensa (Fonseca foi o autor que mais li, e reli, e reli, de 1996
para cá), embora, até aqui, essa influência tenha permanecido
difusa. Depois de afirmar isso, parei para pensar na palavra
apossar. Apossar, posse, possessividade, ciúme, pretensão à
exclusividade relacional, etc. Ora-veja: embora eu não seja
ciumento no âmbito amoroso, percebo que o sou como lei-
tor de meus (pouquíssimos) autores preferidos e como frui-
dor de arte em geral. No fundo tenho a convicção de que
apenas eu de fato conheço, de que apenas eu entendi plena-
mente esse pequeno punhado de artistas que cultuo – e que
apenas eu, portanto, estou habilitado a pronunciar sentenças
sobre eles. (Embora essa afirmação soe um pouco como as
coisas que o Nietzsche doidão disse em Ecce Homo, soe
como uma arrogância desvairada minha, o fato é que apenas
eu, realmente, estou habilitado a dizer coisas sobre minha
experiência, pessoal e intransferível, como leitor de Rubem
Fonseca.)
Diário de um Fescenino, romance que Rubem lançou
em 2003, usa a forma literária diário para narrar uma aventu-
ra em que o escritor Rufus acabou se metendo, impulsiona-
do por seu furor gonádico – envolver-se sexualmente ao
mesmo tempo com duas irmãs, Virna e Clorinda (“Clorinda?
Isso é nome de mulatinha”, diz sua despeitada amante ante-
rior, a então já quase chutada pra córner Lucia), sendo que
Virna na verdade é mãe de Clorinda (Virna ficou grávida na
adolescência e os pais acharam melhor registrar Clorinda
como filha deles); ser posteriormente acusado de estupro
por Virna, quando ele enfim confessa estar amando as duas
irmãs, ou melhor, mãe e filha (a denúncia de Virna parece
verossímil; ela tem prazer sexual ao ser espancada e sempre
pede que Rufus lhe bata na cama, então ela tem mesmo um
monte de hematomas, marcas de mordidas, etc., quando vai
fazer o exame de corpo de delito). Tudo o mais no livro são
anotações, citações, esboços de reflexões, algumas interes-
santes, a maior parte meros testemunhos do ramerrão coti-
diano do qual ninguém consegue escapar, enredados que
somos na inexorável sucessão de segundas, terças, quartas-
feiras, etc. Numa anotação particularmente interessante, da-
tada de 05 de setembro, lemos, “Barthes diz que o que o diá-
rio postula não é a trágica pergunta do louco, ‘Quem sou
eu?’, mas a cômica pergunta do desnorteado, ‘Sou?’”. No
mais, as entradas no diário de Rufus nos informam coisas
como suas dimensões fálicas (ele usa camisinhas que medem
186 mm de comprimento por 55 mm de largura); vemos Ru-
fus expressando sua inquietação com o fato de que a maior
parte dos leitores de literatura sofra da Síndrome de Zuc-
kerman (relativo ao personagem Nathan Zuckerman, de Phi-
lip Roth), ou seja, atribuem ao autor opiniões e comporta-
mentos que são apenas do personagem (a suspeita é de que
leitores no fundo sejam bestalhões iguais aos bestalhões que
passam o dia vendo TV); lemos sinopses do bildungsroman,
romance de formação, que Rufus alegadamente vem tentan-
do escrever; lemos comparações entre suas amantes simultâ-
neas do momento – que a voz de fulana é límpida e que seus
gemidos têm uma leveza colorida, que a voz de sicrana é
turva e que seus gemidos são cheios de sombras, que essa
dissimilitude entre as duas é bem-vinda, etc.
Raramente artistas falando sobre seu trabalho dizem
coisas interessantes. E os mais desinteressantes são os artis-
tas bem-sucedidos, pois tudo o que eles falam sempre soa
como se estivessem pagando de gostosões. Eventualmente,
ao observar um figurão, consigo perceber a vacuidade e a
banalidade que há por trás dessas presenças constituídas,
fundamentalmente, de uma continuada e avassaladora expo-
sição midiática. Muito possivelmente Rubem Fonseca deci-
diu ser um preservador intransigente da própria privacidade
(não dá entrevistas, evita ser fotografado, etc.) para não cair
nessa coisa absolutamente farsesca que é intrínseca ao papel
do sujeito célebre. Seus personagens mais frequentes (e mais
encantadores) por certo refletem esse seu valor, esse seu não
deslumbramento com o grand monde: são anônimos e mo-
destos policiais, cruciverbalistas (sujeito que monta palavras
cruzadas), ventanistas, advogados, matadores de aluguel, al-
guns escritores fracassados (o melhor provavelmente é o do
conto A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro, que en-
sina prostitutas analfabetas a ler), arremessadores de anões,
etc. Rufus, apesar de ser um figurão, adquire sua dignidade
dramática ao confessar-se não um canalha, mas um autor
pleno de suas condutas discutíveis no âmbito amoroso; e ao
expor-se como um desmistificar dessa coisa de escrever fic-
ção. Em última análise, o que o “salva” (e o que verdadeira-
mente o conecta a nós, leitores) é o ato de confessar-se; não
importa que, sendo agnóstico, ele faça suas confissões para a
única instância superior concebível para ele – ele mesmo
(creio que mesmo na confissão católica, em que o fiel con-
fessa seus pecados a Deus, haja um forte elemento de “con-
fissão a si mesmo”; talvez porque a participação de Deus
nisso se limite a Ele ser testemunha desse nosso esforço de
sermos sinceros; no mais, talvez o único arrependimento de
fato concebível para nós seja a lucidez incontornável que
podemos adquirir a respeito das reais motivações que exis-
tem por trás de nossos atos).
A “absolvição” de Rufus se consuma plenamente para
nós, seus semelhantes, ao o compreendermos como o autor
pleno (e confesso) das próprias condutas; a absolvição, aliás,
é um desfecho clássico da história que termina bem (toda
história que termina bem termina em algum rito de integra-
ção – casamento, perdão, reencontro com um bem que se
supunha definitivamente perdido, etc.). Já a absolvição de
fato de Rufus (lembremo-nos de que ele está às voltas com
uma acusação grave, uma acusação falsa, mas aparentemente
consistente, de estupro) dependerá mais de uma justiça poé-
tica do que de qualquer procedimento jurídico corriqueiro.
Mas mesmo que ele não consiga vir a se safar da sanha vin-
gativa de uma ex-amante (o céu não conhece fúria maior que
a da mulher humilhada no amor), nada que advir disso será
de fato crucial. Para nós – e isso é o que verdadeiramente
importa –, Rufus já está mais do que absolvido.
O SEMINARISTA (2009)

Há alguns anos esbocei uma teoria (para uso próprio:


jamais tive a menor vontade de ser crítico de literatura) que
dividia os personagens literários em sentenciadores e fasci-
nadores. Percebi, na ocasião, que todas ações dramáticas (a-
tos humanos que geram reações) se relacionavam necessari-
amente com violações, de leis, de tabus, de mandamentos
divinos, ou seja, roubar, matar, cometer adultério, etc. (dizia
Nelson Rodrigues que a adúltera e o suicida eram os grandes
sentenciadores sobre as questões cruciais do ser humano).
Mesmo um personagem como o cômico (pela desarticulação
e pela fascinante espontaneidade) Holden Caulfield, do J. D.
Salinger, no fundo é um sentenciador – sua simples presença
e suas simples enunciações querem dizer, sempre, que o
homem maduro é um farsante, um rei que necessariamente
está nu; e sem dúvida que Holden é um violador, ao colocar
em dúvida um valor caro à ordem social estabelecida, a su-
posta respeitabilidade e maturidade dos adultos (aos quaren-
ta e oito anos consigo ver nosso velho Holden como o que
de fato ele é – um sentenciador sui generis, um bobo da cor-
te, um sujeito de quem se espera, e só se espera, que diga o
desconcertante consentido).
Rubem Fonseca dá voz a outro tipo de sentenciador sui
generis em seu romance de 2009, O Seminarista. Chamado
eufemisticamente de Especialista (seu patrão é o Despachan-
te), trata-se de um matador profissional, que apareceu em vá-
rios contos publicados pelo autor nessas duas primeiras dé-
cadas do século XXI. Assassinos não são exatamente uma
novidade na ficção fonsequiana; mas há uma diferença nítida
entre seus assassinos mais antigos (geralmente motivados
por ódio social, ressentimento, vingança) e os mais recentes,
em geral motivados por misantropia pura e simples (o fastio
com o próximo, esse eterno atravancador do nosso espaço
vital) e, até mesmo, misericórdia (como no Conto de Amor,
em que um pai explode com uma bomba o filho deficiente
por – não há muita dúvida quanto a isso – amá-lo demais).
O matador de aluguel, José, vulgo Especialista, ex-
seminarista, etc., não parece ter outra motivação para matar
além de isso ser um trabalho bem pago e para o qual ele tem
verdadeira vocação (matar, para ele, não é algo problemático,
como seria para 99% de nós). Ele até emprega justificativas
moralizantes para o que faz, “todas pessoas que eu mato não
prestam”, mas não ouvimos a palavra “bingo!” dentro de
nossa cabeça quando ele diz isso – intuímos que essa racio-
nalização não nos revela nada acerca da verdadeira realidade
de José; no mais, o fascínio com sua “frieza” e “psicopatia”
não seria suficiente para manter aceso nosso interesse por
suas condutas. O caráter sui generis de José tem, sem dúvi-
da, outra “etiologia”. Vamos tentar esclarecer isso.
Em que pese nosso horror com a ideia do homicídio,
matar, ao que parece, foi uma ação corriqueira e não especi-
almente desencadeadora de remorsos ou sanções para nos-
sos antepassados. Édipo mata o pai (sem o saber), Laio, co-
mo quem esmaga uma barata com o pé (o incesto é infini-
tamente mais desgraçante que o assassinato no mundo de
Sófocles); Medeia não hesita em matar os próprios filhos pa-
ra punir o marido infiel; a bíblia é repleta de assassinos “im-
punes” – Moisés (que mata o tal egípcio), Sansão (que mata
mil homens com a queixada de um jumento), Caim, etc.; em
Shakespeare o assassinato só é reprovado quando motivado
por cobiça, perfídia ou injustiça; no mais das vezes, é um le-
gítimo e justo ato reparador (Tito Andrônico degola os dois
rapazes que estupraram e deceparam a língua e as mãos de
sua filha e os serve assados para que a mãe deles – sem o sa-
ber – os coma). Só a partir de Dostoievski é que parece que
o homem começa a hesitar em agir como um sentenciador
desse tipo.
No entanto, o universo ficcional de Dostoievski, emi-
nentemente psicológico, é muito distinto do de Rubem Fon-
seca. E o que admiramos como leitores num e noutro autor
é, naturalmente, muito diverso. A literatura moderna, aliás,
tem os mais variados escopos para colocar assassinos em ce-
na; Dostoievski trata da culpa, arrependimento, perdão e a
salvação da alma do assassino Raskolnikov; em O Estrangei-
ro, de Albert Camus, a discussão central (enfadonha, aliás) é
se o estado tem direito de matar (pena de morte) o misan-
tropo e assassino Meursault; A Sangue Frio, de Truman Ca-
pote, mostra a vacuidade boçal dos assassinos da família do
fazendeiro Herb Clutter; Flannery O’Connor em Um Ho-
mem Bom é Difícil de Encontrar mostra a credulidade sonsa
(e trágica) de uma velhota que acredita na bondade infinita
do homem, o que a impede de ver um assassino como aquilo
que ele realmente é; mais próximo da concepção ficcional de
Rubem Fonseca sobre o homicídio está Bret Easton Ellis em
Psicopata Americano, uma concepção meio “limito-me a
mostrar os fatos, já que os fatos falam por si”. Claro que essa
coisa de “os fatos falam por si” levou muito intérpretes a
explicações insulsas para o livro de Ellis, como a de que o
livro era uma alegoria da “desumanização” promovida pelo
yuppismo dos anos 1980 (assim como pululam explicações
insulsas para as páginas mais brutais de Rubem Fonseca, a-
quela papo-furado de que a ficção de Fonseca é um teste-
munho da brutalização da sociedade brasileira promovida
pela ditadura militar de 1964, que antes disso éramos o para-
íso da brejeirice, etc.). Ellis e Fonseca como ficcionistas ten-
dem ao descritivo minucioso e perfeitamente objetivo dos
atos atrozes. Há, sem dúvida, nessa exposição objetiva do
macabro um ensaio sobre certas possibilidades que o real
pode nos oferecer, “tais coisas são possíveis, não duvidem
de que há semelhantes (!) nossos que têm estômago para
tanto”. Mas há algo além nessa exposição crua da violência, e
algo bem mais importante e bem mais expressivo do que o
mero tratamento ficcional verossímil da tendência que certos
homens, em certas circunstâncias, têm para o comportamen-
to bestial (e muito, muito mais importante do que discussões
manjadas e furadas do tipo “a desigualdade social como cau-
sa da violência”, etc.) – o que as páginas mais atrozes de
Fonseca (e de Ellis) afirmam é que o mal não é algo relativo,
tampouco uma abstração, mas sim algo tangível e objetivo,
um espírito de destruição, desagregação e discórdia que
sempre se manifesta concretamente na realidade, ainda que
sua raiz provavelmente tenha origem metafísica. E, sendo de
origem metafísica, o modo mais adequado para expressar es-
se “espírito” é a narrativa mítica.
Aparentemente, o grande engenho, a grande sacada es-
tilística de Rubem Fonseca em sua fase tardia (nos contos
protagonizados pelo Especialista, por exemplo, assim como
em O Seminarista, embora o romance seja inferior aos con-
tos) foi desdramatizar o homicídio, tratá-lo como um ato tão
sem consequências (jurídicas, morais, etc.) quanto atravessar
uma rua ou cortar as unhas dos pés. De certa forma, Fonse-
ca restaura o ethos “grego”, “bíblico” e “shakespeariano” a
respeito do ato de matar; sem dúvida ele faz nesses trabalhos
um interessante emprego do anacronismo (colocar numa
história cheia de referências atuais uma ética arcaica); mas
talvez o que Rubem Fonseca faça nesses trabalhos seja mais
do que um mero emprego interessante (e desconcertante) do
anacronismo, seja na verdade a concepção de narrativas ver-
dadeiramente míticas, arquetípicas. (Não tenho como não
pensar na palavra mítico ao evocar um de seus mais impres-
sionantes contos recentes, do livro Amálgama, de 2013, que
narra a história da favelada que rouba o bebê que a filha aca-
bou de ter para vendê-lo, mas que ao ver que o bebê nasceu
sem um braço e sem uma perna joga-o numa lixeira porque
“ninguém iria querer comprar aquilo”.)
Tais peças ficcionais “míticas” do período maduro, tar-
dio, da produção de Rubem Fonseca têm normalmente uma
atmosfera abstrata e vagamente irreal (há antecedentes na
produção de Fonseca, como o conto Passeio Noturno, de
1975, do sujeito que sai por aí de carro atropelando mulheres
para descarregar as tensões do dia-a-dia, mas o gênero mítico
predomina de fato em sua fase mais recente); seus protago-
nistas podem ser chamados personagens irônicos, de acordo
com a tipologia de Northrop Frye, tipos que tendem ao gro-
tesco e em quem contemplamos (e admiramos) a sub-
humanidade (Frye assinala que o personagem irônico, o mais
baixo de sua tipologia, paradoxalmente tem grande afinidade
com o personagem mais elevado, o mítico, em geral um
deus, imortal e soberano). O resultado dessa revitalização de
arquétipos feita por Fonseca é fabuloso, e atentemos aqui
para a polissemia da palavra fabuloso, que significa tanto fá-
bula, narrativa alegórica (mítica, portanto), quanto grandioso,
admirável, esplêndido. Ainda que o romance O Seminarista
não seja o melhor exemplo desse esplendor, é um curioso
exemplo do que para mim é a grande fase de Rubem Fonse-
ca, uma fase cheia de trabalhos que evidenciam a consuma-
ção plena de seu talento (todos os livros de contos lançados
por ele entre 2001 e 2013 são rigorosamente primorosos),
uma fase que seus comentaristas mais frequentes ainda insis-
tem, não sei por que, em depreciar.
ROMANCE NEGRO E OUTRAS HISTÓRIAS
(1992)

Romance Negro e Outras Histórias, volume de contos


que Rubem Fonseca lançou em 1992, é o mais casto de seus
livros. Epifânio/Augusto, o peripatético protagonista do
conto A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro, leva
prostitutas desdentadas e analfabetas para casa para, apenas,
ensiná-las a ler; ao servir-se de banheiros públicos em suas
deambulações (“solvitur ambulando”, etc.), usa o cotovelo
para abrir as portas, tamanho é seu pavor de doenças sexu-
almente transmissíveis; o conto Olhar talvez mostre apenas
como um sujeito pode deslocar sua exuberante imaginação
luxuriosa (e sua capacidade simbolizadora) do sexo para a
comida (aliás, frequentemente me ocorre que essa moda in-
sulsa de programas de TV como Master Chef e esse hype da
cultura gastronômica – pega bem homem que sabe cozinhar,
etc. – tem uma óbvia relação com a incapacidade sexual da
maioria das pessoas; a gula, em sua simploriedade (e, com-
plementarmente, em sua sofisticação sempre afetada), é a
concupiscência dos medíocres; O Livro de Panegíricos mos-
tra um homem entrevado que, dentre outras coisas, não tem
como não contemplar ironicamente seus antigos furores li-
bidinais (esse personagem, o ex-homem galante observado
em sua senilidade degradada, é frequente na ficção fonsequi-
ana e parece ter raiz autobiográfica, sendo o pai de Rubem o
modelo desse personagem); o triângulo amoroso de A Santa
de Schönberg (um dos piores contos já escritos por Rubem
Fonseca, forçadamente obscuro, pseudokafkiano, etc.) tem
sua culminância erótica no incerto desejo que o personagem
Roberto tem de lamber os dentes da personagem Marie (u-
ma parte dura, hirta, insensível a carícias – e virtualmente
pouco contaminada de seu corpo); a relação do protagonista
de Romance Negro com sua mulher, no fundo uma relação
vingativa, também é rígida, hirsuta, fixada na ambígua admi-
ração fetichista que ele tem pela ossatura dela; em Labaredas
nas Trevas vemos como a verdadeira volúpia do escritor Jo-
seph Conrad era centrada em sua vaidade literária e no ódio
rancoroso que devotava ao também escritor Stephen Crane;
A Recusa dos Carniceiros nos dá informações históricas cu-
riosas, e só – somos informados de que lá por 1830 havia
no império brasileiro uma lei que obrigava açougueiros a de-
sempenhar a função de carrascos em execuções públicas, na
falta de um carrasco, e que os açougueiros estavam revolta-
dos, se recusando a desempenhar o papel, etc.
Uma castidade profilática, triste, mesquinha, sem um
pingo de “virtude” (Agostinho de Hipona articula muito
bem castidade e virtude, por exemplo, como o drama das
paixões desordenadas que pode nos acometer) perpassa esse
de livro de Fonseca. Talvez essa “castidade” seja um reflexo
de como a epidemia de aids afetou a imaginação das pessoas
naquele tempo (em 1992 a soropositividade ainda era uma
sentença de morte a curto prazo); afinal, não é nem um pou-
co irrelevante o impacto sobre o imaginário causado pela de-
sestabilização da dimensão simbólica do sexo que essa epi-
demia trouxe (um símbolo natural de vida, pulsão, expansão,
euforia, etc., tornar-se um símbolo de morte, agonia, constri-
ção, pavor). Talvez, concomitante a isso, o desconstrucio-
nismo e o “pós-modernismo” tivessem entrado fundo de-
mais na cabeça das pessoas na década anterior, anos 1980
(aquele papo de que um texto não se refere a nada fora dele,
ou seja, tudo aquilo que dizemos não tem qualquer relação
com qualquer realidade objetiva, ou seja, podemos pensar o
que quisermos sobre o que quer que seja, ou seja, todas nos-
sas tentativas de representação e simbolização são duvidosas,
senão completamente inúteis).
Falando em símbolo (especificamente, em símbolos de-
sestabilizados), creio que, no fundo (ou seja, inconsciente-
mente), esses personagens infelizes todos de Romance Ne-
gro e Outras Histórias estejam vivenciando o drama da difi-
culdade (ou incapacidade) de estabelecer relações simbólicas
possíveis, verossímeis, prováveis ou até mesmo certas com o
mundo; o que mais próximo chega de entender o próprio
drama (sendo, por isso, de longe o melhor personagem dra-
mático do livro) é o pastor Raimundo, de A Arte de Andar
nas Ruas do Rio de Janeiro; sem entender propriamente o
que se passa consigo, emprega com sinceridade todo esforço
cognitivo de que é capaz para tentar esclarecer os sinais con-
fusos (e, aparentemente, ameaçadores) que as circunstâncias
lhe impõe; ainda que falhe na interpretação (ou seja, na sim-
bolização dos tais sinais) e termine “devorado” pela esfinge
indecifrada, seu desfecho trágico é digno, pleno, completo,
não ambíguo.
Eu não incluiria nenhum conto de Romance Negro e
Outras Histórias num the best of Rubem Fonseca. A história
do pastor Raimundo é boa, mas o conto A Arte de Andar
etc. é sobrecarregado demais com as divagações peripatéticas
do protagonista Augusto/Epifânio. Vários dos contos do
livro tem uma voz meio artificial, em que não se reconhece
muito como sendo a voz de Rubem Fonseca; a ambientação
internacional de alguns contos revela o quanto a cor local
(carioca, brasileira) é importante (diria que fundamental) na
ficção fonsequiana. Embora estivesse sem lançar livros de
contos desde 1979, quando publicou O Cobrador, não ouso
dizer que Rubem houvesse momentaneamente perdido a
mão para o gênero; creio que, como autor, resolveu assumir
o risco de buscar um caminho novo para sua ficção e, se
mais errou do que acertou em Romance Negro etc., ele foi
acertando mais (e cada vez mais) nos outros livros de contos
que lançou nos anos 1990 (Buraco na Parede, Histórias de
Amor e Confraria dos Espadas); digo acertando no sentido
de ir dominando, até dominar magnificamente, o estilo esca-
tológico, grotesco, meio rabelaisiano que caracterizou boa
parte de sua produção entre 2001 e 2013, um estilo que já se
encontrava embrionário no conto Olhar (de Romance Ne-
gro) e que vemos plenamente manifesto no conto como Vi-
agem de Núpcias, lançado cinco anos depois. Para mim, pela
grande quantidade de contos excepcionais dados à luz, a fase
entre 2001 e 2013 representa o verdadeiro momento de ex-
celência e maturidade artística de Rubem Fonseca. Falarei
mais detidamente sobre isso quando analisar os livros do pe-
ríodo.
O COBRADOR (1979)

Creio que qualquer pessoa razoavelmente sensível, inte-


ligente, etc., já se perguntou, que merda que eu estou fazen-
do nessa merda de planeta? A revolta com a precariedade,
com a insuficiência, com a falibilidade, com a brutalidade,
com a feiura, com o nonsense do mundo é um estado de â-
nimo a que o homem sempre está, com razoável justeza,
bastante predisposto. E isso, provavelmente, desde sempre.
O Livro de Jó , escrito no século VI a.C., talvez seja o pri-
meiro relato que dramatizou essa tenebrosa vivência dos in-
fortúnios terrestres; sem dúvida é o livro bíblico que lemos
com mais interesse, porque todos sabemos que somos can-
didatos a Jós, porque o drama dele está realmente próximo
do nosso; no texto Deus diz ao pobre Jó, então já reduzido a
um farrapo humano, que ele tanto seria incompetente para
subjugar Behemot (o monstro da obediência cega às leis
mundanas, ao peso maciço de necessidades naturais, etc.)
quanto seria incompetente para prender com um anzol a lín-
gua do monstro Leviatã (traduzindo a alegoria: nossa mente
tem uma infraestrutura monstruosa e demoníaca, verdadeira
planta baixa de nosso espírito de rebelião, infraestrutura essa
manifestada em nossa linguagem e seus vitupérios, blasfê-
mias, cizânias, etc.). Deus diz, em suma, que só Ele pode
subjugar essas forças incomensuravelmente superiores às
forças de um mero mortal (Jó, eu, você).
O problema nosso é que, na aparente ausência de Deus
(Woody Allen tem ótimas piadas a esse respeito, “Como vou
saber se Deus existe? Se ao menos ele tossisse às vezes...”),
temos de lidar sozinhos com os monstros Behemot e Levia-
tã. O Cobrador, livro de contos que Rubem Fonseca lançou
em 1979, narra fundamentalmente o drama de um bando de
Jós tentando enfrentar monstros de estatura bíblica (bíbli-
cammm, como diria o Lobão) num mundo sem Deus; o au-
todenominnadO Cobrador, protagonista do conto homôni-
mo, saí por aí matando e degolando voluptuosamente as
pessoas que julga serem as responsáveis por sua miséria e to-
tal malogro existencial; em Onze de Maio três idosos se a-
motinam no asilo em que foram depositados, sequestram o
diretor, saqueiam a geladeira, então ocorre a um deles estu-
prar a companhia feminina do tal diretor, um gordo a quem
um dos amotinados chama insultuosamente de Edmundo, o
imundo; porém, o velho que havia cogitado o estupro hesita
em consumá-lo (muito senil para executar competentemente
um introductio penis intra vas?) e tem um momento de luci-
dez seguida de uma reflexão muito veraz sobre o ethos revo-
lucionário: sim, o que fazer depois de tomar a Bastilha? Tu-
do isso apenas para saquearmos uma geladeira e nos empan-
turrarmos de cerveja e presunto?; em Almoço na Serra no
Domingo de Carnaval o namorado empobrecido (e social-
mente muito ressentido) de uma menina rica, uma burguesi-
nha fútil, a estupra (sodomiza, aparentemente) para puni-la
pela morte de seu ex-lagarto de estimação; os outros contos
do livro não tratam propriamente de conflitos de classe; Pi-
errô da Caverna, uma obra prima de Rubem Fonseca, escrita
num único parágrafo que dura catorze páginas, trata da rela-
ção amorosa (plenamente consumada) de um escritor coroa
com uma menina de doze anos, “onde foi que ela adquiriu
essa sabedoria selvagem toda?”, se pergunta ele, perplexo an-
te as selvagens sabedorias da menina que usa uma perturba-
dora pulseirinha de ouro num dos tornozelos; Encontro no
Amazonas, não sei se obra prima, mas um conto excelente, é
uma história meio capitão Willard indo rio adentro no encal-
ço do coronel Kurtz; Mandrake, uma boa história típica do
advogado criminalista Paulo Mendes, vulgo Mandrake – mu-
lheres, charutos, o sócio Wexler, algum burguês canalha sen-
do achacado por algum lúmpen escroto, etc.; A Caminho de
Assunção é um conto curto e contundente (general Osório
com o queixo estraçalhado por uma bala tentando com difi-
culdade falar às tropas), talvez inspirado nos contos de A
Cavalaria Vermelha, de Isaac Babel; Livro de Ocorrências,
também um conto curto, uma deliciosa (para quem gosta)
peça de humor negro; O Jogo do Morto, um conto médio
sobre comerciantes da Baixada Fluminense que têm o hábito
de fazer apostas cafajestes sobre quantas pessoas o Esqua-
drão da Morte matará num determinado período de tempo;
por fim, H.M.S. Cormorant em Paranaguá, um conto esqui-
sito (ruim, na verdade) protagonizado pelo poeta Álvares de
Azevedo, que, além de declamar coisas como e do meio do
mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto!, vive
se travestindo, conversando com o fantasma de Lord Byron
até que, por fim, consuma um amor proibido, incestuoso,
com a irmã (talvez tudo seja apenas um delírio do poeta, que
ao final do texto já está tomado pela apneia pré-agônica, tu-
berculose, etc.).
Ainda que apenas três contos de O Cobrador tratem
explicitamente de conflitos com teor social (os três na ver-
dade são quase conclames à ação revolucionária), o livro,
quando evocado, tem mesmo um clima bem enragé; talvez
porque as imagens de assassinato, esquartejamento, degola-
ção, estupro, etc., do conto O Cobrador se fixem com mais
facilidade em nossa memória, como leitores (Fonseca diz
que escreveu esse conto de modo propositalmente chocante,
como resposta à censura, que havia proibido o livro Feliz
Ano Novo, em 1975); talvez porque, embora ele não seja o
melhor conto do livro, ele é o mais inquietante (o final, es-
pecialmente, é bobo, quando O Cobrador enuncia sua nova
profissão de fé e diz, num tom de quase manifesto, que ago-
ra vai sair por aí com sua amada Ana Palindrômica – uma
beldade egressa da alta burguesia de Ipanema – explodindo
bombas em festas de bacanas, etc.); e é inquietante por vá-
rios motivos – porque, predispostos que somos ao apelo da
rebelião, não temos muita dificuldade em nos identificarmos
com aquele monstro, o que pode ser altamente perturbador
(quem, depois de ser esnobado ou humilhado em alguma si-
tuação, não teceu sua fantasia homicida ou mesmo genocida
que atire a primeira pedra); porque, ciosos de nossa seguran-
ça e sanidade, queremos duvidar de que um ser humano tão
odioso como O Cobrador seja real ou mesmo possível; por-
que, ameaçados (chantageados) por sua possibilidade concre-
ta, nos perguntamos se afinal de contas também não somos
meio culpados pelas injustiças que existem no mundo; em-
bora imperfeito, O Cobrador é mesmo um conto vital, por
tudo o que ele suscita; pouco importa que a ação dO Cobra-
dor seja destrambelhada e seus objetivos políticos, delirantes;
ao que parece, a esquerda adotou depois de 1968 uma estra-
tégia chamada diversitária que elegeu o lúmpen proletariado
(vagabundos, bandidos, drogados, prostitutas, etc.) como a
nova classe revolucionária; O Cobrador não é outra coisa
que um lúmpen com uma alegada disposição revolucionária;
e aí?, levar a sério suas ameaças?, ou não levar a sério as bra-
vatas de um tipo que, no final das contas, provavelmente
não passa de uma caricatura?
Para tentar responder isso vou voltar ao ponto, pacífico
ao meu ver, de que somos todos revolucionários em poten-
cial, sobretudo em nossa imaturidade; além de vivermos
num mundo precário e terrivelmente falível, todos somos
oprimidos de alguma forma e desejamos, naturalmente, nos
livrar daquilo que nos oprime, constrange, diminui; em su-
ma, poucas coisas nos entusiasmam mais, quando somos jo-
vens (ou seja, imaturos) do que ouvir a senha do motim que
nos arrastará para uma ação supostamente libertadora; levar
ou não levar a sério O Cobrador é, portanto, uma questão de
ser imaturo (levá-lo a sério) ou maduro (vê-lo apenas como
um bicho-papão grotesco, um palhaço sinistro); ser maduro
é entender o que há de pueril e de simplificador nesses fáceis
pensamentos de justiçamento (teorias revolucionárias, teori-
as que pretensamente “explicam” toda a realidade, etc.) que
podem nos ocorrer; ser maduro é ser cético e cauteloso, ter
noção da intrincada complexidade do real, etc.
Numa de suas mais brilhantes exposições, o filósofo
Olavo de Carvalho explicita a grande forçada de barra que
está no fundo do pensamento marxista (marxista em particu-
lar, embora a coisa se aplique a todo pensamento revolucio-
nário, pensamento que, segundo Olavo, tem sempre uma ra-
iz gnóstica, “o mundo é ruim e cabe a nós fazermos um
mundo melhor”; a exposição que farei disso é longa e pode-
rá soar meio digressiva, mas vale a pena porque reduz a pó e
destroços o que parece ser uma sólida teoria sobre o funcio-
namento da realidade): afirma Olavo de Carvalho que a for-
çada de barra do marxismo começa por ele dar por conheci-
do aquilo que, absolutamente, não é conhecido (afirmar, por
exemplo, que o fim da História será o advento de uma soci-
edade sem classes); depois, por usar esse futuro hipotético (e
altamente duvidoso) como chave explicativa tanto para o
passado conhecido quanto para os eventos presentes (se o
fim da História é esse, tais eventos passados, nesse enredo,
que se concluirá dessa maneira, tiveram tal e tal significado,
etc.). A própria noção de História, como uma metanarrativa
que supostamente abarca todas narrativas concernentes a co-
letividades humanas, é exposta por Olavo em sua imensa
fragilidade; o que ele diz, resumidamente, é que é forçar de-
mais a barra admitir que o sentido da história da comunidade
humana X é essencialmente igual ao da comunidade humana
Y porque o que ambas fazem, fundamentalmente, é se apos-
sar de bens naturais para fazer deles o uso econômico que
acharem mais apropriado, advindo necessariamente desse
apossar-se e desse dispor dos bens a organização da socieda-
de e seus conflitos subsequentes (entre explorados e explo-
radores), daí a luta de classes, etc.
A quase absurdidade total da teoria marxista não salta
aos olhos à primeira vista porque, ainda segundo Olavo de
Carvalho, ela tem uma sutil analogia com o modo como nós,
indivíduos, vivemos nossas vidas dentro da estrutura da rea-
lidade, dando-nos, assim, a impressão de ser ela uma teoria
bastante razoável e verossímil; aliás, acrescento aqui que nós,
membros da civilização judaico-cristã, somos todos portado-
res desse cheque não descontado (sem fundos?) que nos
promete, num futuro hipotético (e duvidoso?), a Jerusalém
Celestial, a vida eterna e bem-aventurada, etc., ou seja, sabe-
mos que faz parte de nossa realidade lidarmos com promes-
sas que no fundo não sabemos se poderão ser cumpridas,
que faz parte da vida tentarmos ter tanta certeza quanto pos-
sível acerca de nossas incertas esperanças últimas, teleológi-
cas; ah, sim, a analogia entre Marx e a lógica de nossas vidi-
nhas que faz o marxismo nos soar tão verossímil: qualquer
afirmação que fazemos acerca de nosso próprio futuro, indi-
vidual, no fundo é apenas hipotética; mas o sentido de nossa
história presente depende desse alvo, dessa hipótese futura
(por exemplo, o sujeito vai à faculdade todo dia porque, fa-
zendo isso, daqui a quatro ou cinco anos muito provavel-
mente ganhará um diploma de bacharel; ainda que meramen-
te hipotético, o futuro sempre tem de fazer parte de qual-
quer ação nossa, presente, que tenha em vista um objetivo).
Isso tudo, que mais funciona do que deixa de funcionar nu-
ma esfera privada (as pessoas em geral se formam, se casam,
aprendem idiomas, compram imóveis, tudo conquistas que
dependem de um esforço cumulativo, ou seja, de um equa-
cionamento de presente e futuro), isso tudo se torna uma
paródia grotesca quando aplicado não mais a indivíduos, mas
comunidades humanas, nações, etc.
Esse perfeito desmonte do pensamento revolucionário
feito por Olavo de Carvalho em nada invalida as peças fic-
cionais de Rubem Fonseca que dramatizam homens perdi-
dos em seus impulsos para a rebelião, Jós num mundo sem
Deus; ainda que qualquer racionalização sobre justiça social
sempre seja falaciosa (é fácil nos esquecermos de que Leviatã
é um monstro), todos experimentamos, individual e dramati-
camente, as insuficiências, as precariedades e as falibilidades
do mundo; ainda que propostas revolucionárias sejam inva-
riavelmente cretinas (Michael Oakeshott diz que sempre de-
vemos ser céticos a respeito de a razão especulativa ser capaz
de criar modelos de organização social exequíveis), o homem
que vocifera ou, até mesmo, pega em armas quando ultraja-
do pelo destino não o é; talvez caiba apenas à literatura dar
um testemunho da dignidade dramática desse homem. E
sem dúvida que Rubem Fonseca faz em O Cobrador exata-
mente isso.
O BURACO NA PAREDE (1995)

Ano passado, 2018, abandonei definitivamente a leitura


dos Contos Romanos, do Alberto Moravia, um livro que a
princípio me empolgou bastante e no qual julguei perceber
muitas afinidades com a ficção de Rubem Fonseca – o texto
fluente, conciso e expressivo, a narração coloquial em 1ª.
pessoa, os protagonistas invariavelmente egressos dos baixos
estratos da sociedade italiana, etc. Moravia escrevia magnifi-
camente bem, criava personagens cativantes, situações fic-
cionais sempre interessantes, mas colocava absolutamente
tudo a perder em finais ruins, finais em que seus persona-
gens acabavam se mostrando apenas uns tipos irritadinhos
ante a constatação de suas terríveis impotências; tudo em
Moravia (ao menos nos Contos Romanos, não li outros li-
vros dele) sempre termina num decepcionante tom de creti-
na comédia de estouvados e estereotipados italianos, num
idiota tom de “mamma mia!”. Plínio Marcos, que usou como
base para sua obra-prima Dois Perdidos Numa Noite Suja o
conto de Moravia O Terror de Roma (desse livro), uma hora
põe na boca de Paco, que vinha aloprando progressivamente
seu colega de quarto Tonho, chamando-o de “Boneca do
Negrão”, etc., a fala, “Homem que é homem não foge do
pau”, ou seja, não foge da briga, do desafio, do chamado aos
atos restauradores da própria dignidade. É isso: colocados
em situações que clamam para que ajam como homens, para
que botem o pau na mesa, os personagens de Alberto Mora-
via dos Contos Romanos terminam agindo como bebês cho-
rões.
Esse malogro artístico não acontece em O Buraco na
Parede, livro que Rubem Fonseca lançou em 1995 e que, pe-
la quantidade de contos excepcionais (apenas um mediano,
Os Idiotas que Falam Outra Língua), é um de seus livros de
maior qualidade. A afinidade com o Moravia de Contos
Romanos se deve a que Fonseca explora nesse livro, como
em nenhum outro seu, o drama da impotência existencial, do
fracasso e da humilhação. A vigorosa reação “pau na mesa”
em geral não ocorre a esses personagens de Rubem Fonseca
não porque eles sejam covardes, bebês chorões irritadiços,
mas simplesmente porque essa reação não é viável em certas
circunstâncias; nemesis cobra o que supostamente lhe é de-
vido; suas vítimas não sabem em que hybris e em que ha-
martia incorreram para serem punidas; o kafkiano Joseph K.
sabe direitinho do que se trata isso; a maioria de nós, vez ou
outra, também.
O Buraco na Parede é um livro asfixiante, repleto de
imagens impiedosas, das mais impiedosas já concebidas por
Rubem – a striper que parece, a seu entediado espectador,
pela posição em que ela está, ajoelhada, e pelos traços de seu
rosto, amulatados ou indígenas, um grotesco anfíbio (sapo)
gigante; a instalação de arte contemporânea que mostra um
porco apodrecendo dentro de uma caixa de vidro; o sujeito
que acompanha a exumação dos corpos do pai e de um ir-
mão e que compara o estado de degradação, maior e menor,
em que se encontram seus esqueletos; o balão construído pa-
ra se elevar a milhares de pés e se deslocar centenas de qui-
lômetros, mas cuja bucha, inexplicavelmente, falha e ele cai
no mar, poucos minutos depois de se erguer; o sujeito que
tem uma reação alérgica a um medicamento e que começa a
asfixiar-se diante de um apatetado e inerte médico; os cabe-
los oxigenados da servente do Hospital Miguel Couto que
gosta de se fazer passar por enfermeira, cabelos que parecem
mais oxigenados ainda quando ela se torna um cadáver esta-
telado numa calçada, esperando o rabecão do IML; o bancá-
rio desempregado que atribui sua extrema lascívia ao fato de
ter manuseado durante anos e anos cédulas de dinheiro no-
víssimas, recém saídas do Banco Central; o CEO que aden-
tra humilhado o insondável (e grotesco) mundo do curandei-
rismo para tentar se livrar de uma doença rara para a qual a
medicina convencional não tem cura; o novo-rico que se
vinga dos que o chamam de cavalgadura tornando-se um es-
critor de sucesso (ele encomenda um livro a uma miserável
estudante de letras que se autodenomina Ghost Writer e que
ganha a vida escrevendo livros para outros assinarem); o fra-
cassado que mora numa sórdida pensão e que atende pron-
tamente ao pedido ignóbil da jovem por quem está apaixo-
nado, mesmo sabendo que a recompensa que poderá advir
disso seja altamente improvável.
Creio que essa estase, essa passividade angustiante em
que quase todos personagens de O Buraco na Parede se en-
contram se deve a que estejam lidando com símbolos ainda
inarticulados – eles pressentem o inimigo, o adversário, mas
não sabem quem ou o que exatamente é esse opositor. Co-
nhecendo os livros subsequentes de Rubem Fonseca, creio
que também seja certo dizer que essa angústia fundada na
obscuridade e no desconhecimento (por que nemesis está
me punindo?) irá se arrefecendo, isso porque seus persona-
gens futuros irão cada vez mais se apossar e compreender os
símbolos com os quais lidam, cada vez mais se assenhorarão
de si mesmos e do mundo, tanto quanto isso é possível (a
maioria experimentará esse assenhoramento de forma irôni-
ca, descobrindo coisas como a linguagem secreta das fezes e
seu poder precognitivo, o que servirá para o estabelecimento
da copromancia, por exemplo; ainda que irônico, um asse-
nhoramento como esse não deixa de ser uma conquista cog-
nitiva notável).
É curiosa a curva evolutiva que se percebe na ficção de
Rubem Fonseca – uma ficção que quando surgiu foi definida
como “brutalista” e na qual, superficialmente, só se enxerga-
va a denúncia de mazelas sociais, centros urbanos desorde-
nados, “tecnocratas afiando o arame farpado”, etc., e que
gradualmente evoluiu para formas mais abstratas, mais arcai-
cas, mais arquetípicas, mais conscientemente simbólicas (essa
simbologia toda sempre esteve, ainda que meio latente, pre-
sente na ficção fonsequiana, para qualquer leitor que o lesse
com atenção e verdadeira abertura de espírito; Duzentos e
Vinte e Cinco Gramas, conto seu de 1963, é um óbvio pre-
decessor de sua ficção escatológica da primeira década do
século XXI); Shakespeare evoluiu de forma semelhante, sen-
do sua última peça, A Tempestade, tremendamente arcaica
(fabulosa, mítica, etc.).
C. G. Jung explicaria essa curva evolutiva de Rubem
Fonseca falando em integração de conteúdos antes inconsci-
entes ao self; Freud falaria em transformação de neuroses
antes inconscientes em miséria humana comum (conscienti-
zada); católicos falariam em amor fati ante os misteriosos de-
sígnios de Deus, que por misteriosas (mas no fundo sempre
benévolas) razões deixa Seus filhos sofrerem; reencarnacio-
nistas falariam em algum resgate cármico; talvez todos di-
gam, em algum sentido, fundamentalmente a mesma coisa.
Eu, como sou um homem modesto (nenhuma ironia nessa
afirmação), sempre prefiro o que os ficcionistas, ainda que
modestamente (todo ficcionista é, no fundo, um ser salutar-
mente modesto), têm a dizer com seus modestos recursos
ficcionais.
HISTÓRIAS DE AMOR (1997)

Não sei por que as fezes, a merda, os excrementos, etc.,


quando aparecem na literatura ficcional, costumam dar, tan-
to a nós, leitores, quanto ao personagem, um profundo sen-
tido de epifania, de esclarecimento, de completude, de sínte-
se, de consumação. Como todo símbolo, a matéria fecal é
expressiva e elusiva ao mesmo tempo; é impressionante, mas
difícil de interpretar (como um sonho, especialmente aqueles
nossos sonhos mais impressionantes para os quais mesmo as
mais engenhosas e inteligentes explicações parecem pálidas
ante a força numinosa e agregadora do sonho em si); sobre
essa dificuldade que os símbolos oferecem para serem apre-
endidos, por exemplo, até hoje não entendi bem o significa-
do daquela visão que C. G. Jung teve quando criança – Deus
defecando, a divina matéria fecal despencando do céu e des-
pedaçando o teto de uma igreja; a visão, segundo Jung, teve
um grande papel em seu processo de individuação, mas o
exatamente como talvez fosse indizível até mesmo para
Jung; e sobre a afirmação com que abro esse parágrafo, a
respeito da extrema expressividade e da imensa força resolu-
tiva do excrementício na ficção: um amigo, grande admira-
dor de Saul Bellow, discordou de minha opinião de que O
Planeta do Senhor Sammler termina como uma magnífica
novela (ou conto longo) lá pela página cinquenta (não como
um entrópico e enfadonho romance lá pela página duzen-
tos), quando ocorre o episódio altamente epifânico do bate-
dor de carteiras exibindo ameaçadoramente as partes puden-
das a um perplexo Arthur Sammler. (Eu continuo concor-
dando com minha opinião: Sammler se encerra soberbamen-
te na página cinquenta.) Em suma, parece ser uma proprie-
dade do símbolo que ele seja, em si mesmo, indeslindável,
mas que tenha sempre uma ampla capacidade de iluminar, de
esclarecer aspectos da consciência de seu contemplador.
Não proponho com essas considerações iniciais que a
simbologia, stricto sensu, seja a chave explicativa para a fic-
ção; como disciplina autônoma que é, a literatura ficcional só
deve explicações a si mesma e só se subordina às leis que
lhes são próprias. No entanto, como arte imitativa que tam-
bém é (de ações, de situações, de caracteres humanos), é per-
feitamente cabível que a ficção retrate personagens experi-
mentando epifanias com seja lá quais símbolos forem (ex-
crementos inclusive), já que faz parte da vida homens e mu-
lheres terem esse tipo de vivência; Thales Lima Prado, um
dos personagens centrais de A Grande Arte (talvez o perso-
nagem central), tem uma evidente experiência epifânica de-
pois de um específico contato íntimo com uma garota de
programa; precisamente, depois de sodomizá-la e de ouvi-la
gritar, em aparente êxtase, “eu vou sujar seu pau com minha
merda!”, e de, ao lavar-se no bidê, sentir um cheiro que ele
define como tectônico, Lima Prado percebe que uma inibi-
ção dele, fortemente limitadora, foi vencida; julga-se, então,
mais plenamente dono de si e, supostamente apaixonado pe-
la tal garota, decide trazê-la para sua vida (ele no papel de co-
ronel, ela no papel de teúda-e-manteúda).
Rubem Fonseca sempre foi um escritor muito consci-
ente a respeito de os símbolos fazerem parte constitutiva da
experiência humana comum; como grande autor que é, seus
símbolos nunca são óbvios, nunca são meras alegorias disso
ou daquilo (por exemplo, a cachorrinha Baleia como um pi-
egas e banalíssimo símbolo da miséria e da brutalidade em
Vidas Secas); o personagem devorado pela esfinge indecifra-
da é frequente na ficção de Fonseca (destaquei recentemente
o pastor Raimundo, do conto A Arte de Andar nas Ruas do
Rio de Janeiro); também é frequente o personagem que, da-
da sua expressividade e singularidade, acaba apreendido por
nós, leitores, quase como símbolo (e melhor ainda que não
compreendamos exatamente símbolo de que ele é), como o
anão José Zakkai, o Nariz de Ferro, de A Grande Arte. Essa
característica de Rubem Fonseca foi se tornando cada vez
mais pronunciada à medida que ele amadureceu como autor,
que se tornou mais consciente de seu relativamente pequeno
repertório de obsessões (todo obsessivo, ou seja, todo ser
fortemente individualizado, tem apenas três ou quatro ideias
fixas, segundo Nelson Rodrigues; T. S. Eliot insistia em só
três, birth, copulation and death, that’s all; e por aí vai).
(Lembrei-me agora de que às vezes o símbolo enigmá-
tico presente na ficção é uma simples frase, enunciada por
alguém alheio à ação principal que está se desenrolando, co-
mo a vendedora de flores em Um Bonde Chamado Desejo,
de Tennessee Williams, anunciando, flores para los muertos,
ou como a garota mexicana aparentemente drogada do con-
to Outra Área Cinzenta, de Bret Easton Ellis, que diz ape-
nas, mi hermano.)
Historias de Amor foi lançado por Rubem Fonseca em
1997, junto ao romance E do Meio do Mundo Prostituto Só
Amores Guardei ao Meu Charuto (ambos vinham num box,
que, aliás, eu tenho). Em que pese a relativa inexpressividade
desse livro de contos se comparado a outros de Rubem Fon-
seca (o livro, no geral, é médio), como peça encaixada no
conjunto da obra do autor é interessante por dar testemunho
de uma transição de fase; claramente Histórias de Amor a-
ponta para produção ficcional de Fonseca característica de
primeira década do século XXI, ou seja, do que entendo por
sua fase madura (consciência cada vez maior de seu pequeno
repertório de obsessões, etc.); esse título, aliás, Histórias de
Amor, pouco sintetiza seu apanhado de contos, já que o te-
ma amor é secundário na maioria deles; Cidade de Deus é
uma variação macabra (e muito engenhosa) da macabra peça
Medeia, de Eurípedes; O Amor de Jesus no Coração no fun-
do trata da disputa entre o tira bom (Guedes, que estreou
como personagem fonsequiano no romance Bufo & Spal-
lanzani), que acredita no primado da inteligência na investi-
gação dos crimes, e o tira mau (Leitão), que acredita no pri-
mado do achaque, da violência e da ameaça (uma disputa i-
dêntica ocorre em Agosto, tendo como o tira bom o comis-
sário Alberto Mattos e o tira ruim o comissário Pádua); Car-
pe Diem é um conto meio longo demais, cheio das revira-
voltas rocambolescas, que mostra um casal de amantes
conspirando para o assassinato de seus cônjuges; Besty é um
conto curto e despretensioso, urdido com uma lógica meio
daquela brincadeira “o que é, o que é?”; em O Anjo da
Guarda vemos o mesmo cuidador de idosos do conto Livro
de Panegíricos (Romance Negro e Outras Histórias, 1992),
que em idos tempos apareceu no conto Fevereiro ou Março
(Os Prisioneiros, 1963) no papel de gigolô (vendedor de
sangue, fisiculturista, etc.); aliás, foi nesse lúmpen sempre en-
fiado em situações moralmente nebulosas que Fonseca de
certa forma experimentou e consolidou as características de
seus futuros assassinos de aluguel; Família é um conto de
mediano para ruim sobre um casal de lésbicas e as expectati-
vas do pai de um delas (apesar de ruim, julgo notar nele um
esboço do futuro conto A Escolha, do livro Pequenas Cria-
turas, de 2003, um dos mais extraordinários contos já escri-
tos por Rubem Fonseca); o ótimo conto Viagem de Núpcias
também antecipa, por seu final feliz (um final feliz fonsequi-
ano, claro), os contos de Pequenas Criaturas; assim como
antecipa os contos de Secreções, Excreções e Desatinos, de
2001, pelo destaque dado ao elemento escatológico.
A maneira correta, portanto, de ler Histórias de Amor é
como se o título do livro fosse Em Breve, o Melhor de Ru-
bem Fonseca. Mas claro que, tendo um conto vigoroso co-
mo Cidade de Deus, contos razoavelmente bons como O
Amor de Jesus no Coração e Anjo da Guarda, um conto
simpático como Besty e um conto ótimo como Viagem de
Núpcias, Histórias de Amor pode ser lido (e fruído com pra-
zer) com seu título original mesmo.
LÚCIA McCARTNEY(1967)

Lucia McCartney foi o primeiro nome associado ao


Rubem Fonseca com o qual eu tomei contato na vida. Eu
era criança e soube, não me lembro como, que havia um fil-
me chamado Lúcia McCartney (Lúcia McCartney, uma Ga-
rota de Programa, direção de David Neves, 1971). Um dia,
ainda pequeno, eu vi na TV uma cena de um filme em preto
e branco com o ator Paulo José (então meu ídolo, por causa
do Shazan, Xerife & Cia) e cheguei à conclusão, por uma as-
sociação meio delirante (eu achava o Paulo José parecido
com o Paul McCartney, aquele mesmo ar apatetado-
perplexo, etc.), de que o filme era Lúcia McCartney (não era;
o filme ou era O Homem Nu, direção de Roberto Santos,
1968, ou As Amorosas, direção de Walter Hugo Khouri,
também de 1968).
Tenho um fiapo de lembrança, de alguns anos depois,
de uma cena isolada de Lúcia (agora sim, sem dúvida alguma:
a cena é mesmo do filme) – o ator Paulo Villaça dizendo ao
telefone, “comi uma crioula”. (Essa fala, no livro, é do Peter
Mandrake e pertence ao conto O Caso de F. A., que foi, na
feitura do roteiro do filme, costurado – mal costurado, aliás
– ao conto Lúcia McCartney.) Certamente só vi o filme intei-
ro depois que o Canal Brasil entrou no ar, em 1998; apesar
da imensa e enigmática presença de Adriana Prieto no papel
principal (Adriana, bela, diáfana e “varada de luz, como um
santo de vitral”, parecia mesmo uma pessoa tragicamente
destinada a morrer cedo), o filme não é lá essas coisas.
Olhando para a folha de rosto de meu exemplar (livro)
de Lúcia McCartney e lendo ali, escrito à caneta, meu nome
e a data 12/02/1996, me obrigo a uma possível correção;
nessa sequência de textos em que falo de minha experiência
como leitor de Rubem Fonseca e arrisco algumas opiniões
críticas sobre sua obra afirmo que o primeiro livro que li dele
foi A Grande Arte, nesse mesmo e remotíssimo ano de 1996
(sentado num Fran´s Café perto do Mackenzie, etc.); essa
lembrança é nítida e precisa, mas talvez a leitura de Lúcia
McCartney tenha vindo antes; até me lembro com precisão
de quando comprei Lúcia, numa loja no Cal Center chamada
Prosa & Verso, quando também comprei uma edição bilín-
gue de poemas do W. H. Auden; porém, sinceramente, não
me lembro de ter lido Lúcia McCartney nessa época; o que
provavelmente aconteceu foi que comprei o livro e o deixei
na estante.
Aliás, 1996 foi o ano em que fui mais CDF (cu de fer-
ro) na minha, digamos, formação literária; eu lia, em média,
de quatro a cinco horas por dia, de dois a três livros por se-
mana; estava estudando os poetas T. S. Eliot e W. H. Auden,
além de versificação (Abc da Literatura, de Ezra Pound), não
porque eu gostasse de poesia (jamais gostei de poesia, poesia
lírica, segundo a definição aristotélica – lírica, épica, dramáti-
ca), mas porque estudar os (raros) bons poetas é um excelen-
te aprendizado de “engenharia de frase”, de eufonia, ritmo,
etc. Decorei, em inglês e português, trechos inteiros dos
principais poemas Eliot e vários de Auden; evocava-os, de-
gustando e assimilando “carnalmente” cada fonema, cada sí-
laba, palavra, verso, imagens (o sol que se põe “como um
paciente anestesiado sobre a mesa”, etc.). Em prosa, insistia
na leitura de coisas abstrusas como Ulisses, de James Joyce,
ou V., do Thomas Pynchon (do qual só me lembro de um
personagem brasileiro que é traficante de armas e que se
chama Da Conho). Não abandonava livros chatos ou livros
que eu não estivesse entendendo nada. Em 1996 eu já estava
com vinte e cinco anos (!) e precisava vencer o ignorante e
semianalfabeto funcional que ainda julgava ser; media-me
apenas com os homens cultos que eu conhecia e admirava
(Paulo Francis, por exemplo), sem qualquer autocomplacên-
cia; sim, eu sabia que eu era um ignorantão, mas estava de-
terminado a deixar de o ser.
Claro que havia uma formidável falta de medida nessa
minha atitude, em si mesma atilada, autodesafiadora, etc.; o
problema é que quando temos vinte e cinco anos não temos
como compreender o que é longo prazo, o que são décadas;
não temos como compreender o verdadeiro e profundo sen-
tido das memórias que acalentamos, sentimental e ingenua-
mente; não conseguimos extrair qualquer proposição dos fa-
tos que testemunhamos e que, por algum motivo, nos im-
pressionaram; nossos traumas ainda têm um sentido obscu-
ro; até mesmo nossos verdadeiros interesses ainda são es-
sencialmente ignorados por nós mesmos; talvez fosse deses-
perador termos, aos vinte e cinco anos, a noção de que cer-
tos entendimentos que podemos vir a ter a felicidade de ad-
quirir demoram muito para acontecer e de não há como ace-
lerá-los; algumas modestas certezas que tenho hoje eu só ad-
quiri com trinta e cinco, quarenta anos (Nelson Rodrigues
dizia que, antes dos trinta anos, o homem não sabe dizer se-
quer bom dia a uma mulher); com quarenta e oito volta e
meia ainda me percebo “limpando gavetas”, jogando coisas
fora, e fico sinceramente feliz quando noto em mim algum
sintoma de “idiotia” do qual ainda não havia me dado conta;
gênios literários precoces, como Raymond Radiguet (ou
mesmo Bret Easton Ellis), são milagres e não devemos me-
dir nossos êxitos e, sobretudo, nossos fracassos comparan-
do-os com eventos miraculosos; Rubem Fonseca, por exem-
plo, lançou seu primeiro (e notável) livro aos trinta e oito
anos, em 1963, ou seja, numa época em que homens dessa
idade eram, sem qualquer possibilidade de apelação, irrever-
síveis e consumados coroas; creio que essas reflexões sobre
maturidade e imaturidade sejam em si mesmas interessantes;
de qualquer forma, tentarei amarrá-las melhor a partir de al-
gumas considerações que farei sobre o livro Lúcia McCart-
ney, lançado por Rubem Fonseca em 1967.
Aclamado já em sua estreia, em 1963, com o livro de
contos Os Prisioneiros, seguido do consolidador A Coleira
do Cão, de 1965, Rubem Fonseca lançou em 1967 um livro
que patenteou uma certa irregularidade que estava presente
em seus dois primeiros livros e que talvez tenha passado
meio batida, dado o entusiasmo que esses livros suscitaram
na época por sua então originalidade temática, etc. Lúcia
McCartney, o tal livro de 1967, é um livro francamente irre-
gular, ao passo que os dois anteriores eram disfarçadamente
irregulares; usando umas metáforas futebolísticas: entre 1963
e 65 Rubem já se mostrava craque, fazia uns golaços como
Duzentos e Vinte e Cinco Gramas, mas metia muitas bolas
na trave ou perdia gols feitos (A Força Humana), episódios
que se diluíam em sua forte aura de goleador; em 1967, uma
precoce má fase pareceu mesmo dar as caras; alguns gols bri-
lhantes, mas já recebidos com alguma hesitação, “o rapaz é
bom, mas talvez não seja tão bom quanto nosso entusiasmo
inicial nos levou a crer”. (Pronto, chega de metáforas futebo-
lísticas.) Lúcia McCartney é mesmo um livro descaradamente
irregular; há contos excelentes, como O Desempenho (que
me parece uma versão mais bem acabada ou a versão de fato
cabal do aclamado conto A Força Humana, que tem um fi-
nal extremamente falho, no meu entender – daí talvez ser o
maior, o mais estupendo gol que Rubem Fonseca não fez);
contos bons, como A Matéria do Sonho (protagonizado pelo
personagem fonsequiano cuidador de velhos ainda adoles-
cente), Meu Interlocutor (uma interessante variação do trio
Vronski-Alexei-Anna Karenina, mulher-marido-amante), O
Caso de F. A. (um história de Peter Mandrake, o persona-
gem numa versão ainda meio tosca, contratado para tirar
uma moça daquele lugar) e Lúcia McCartney (a paixão, ao
mesmo tempo imensa e frívola, de Lúcia por José Roberto,
ela primeiro cogitando se matar porque o amante-amado-
cliente foi embora e em seguida decidindo ir à boate à noite
para se divertir, isso tudo diz enciclopédias a respeito do
amor, paixão, sexo, maturidade-versus-imaturidade, etc.);
contos curiosos, como O Quarto Selo (uma inusitada e iso-
lada incursão de Rubem Fonseca pela ficção científica, cy-
berpunk avant la lettre num distópico e futurista Rio de Ja-
neiro, etc.; Fausto Fawcett, não tão distópico, explorou esse
veio, cyberpunk carioca, em seu estupendo – e, não sei por
que, estupidamente ignorado – Santa Clara Poltergeist, de
1994; sim, é livro, romance, e dos bons); contos razoáveis,
como Manhã de Sol (um flagrante de furto narrado num es-
tilo meio modernoso, mas o.k.); dispensáveis, como Um Dia
na Vida, que lembra um conto menor de John Cheever, uma
colagem de pequenos episódios descontínuos (a mãe que
anui com a bichalouquice do filho colocando um colar de
pérolas no pescoço do rapaz, etc.), cujo título não me recor-
do; contos divertidos, como Asteriscos, que lembra muito o
Giovanni Papini em Gog, tirando o maior sarro dos artistas
modernos e suas extravagâncias presunçosas; alguns poemas
dispensáveis – Âmbar Gris, Corrente, Os Inocentes – que
lembram as poetagens do poetastro (além de esquartejador,
estuprador, terrorista, etc.) Cobrador; contos banais e mera-
mente pitorescos como Relato de Ocorrência (o povo fa-
minto que esquarteja uma vaca atropelada por um ônibus); e
uma sequência (o terço final do livro) de talvez os piores
contos do Rubem Fonseca, contos escritos meio em inglês,
meio em português (talvez Rubem estivesse buscando o efei-
to que o Anthony Burgess alcançou com o dialeto nadsat em
Laranja Mecânica), experimentações modernosas joycianas
(o conto Zoom), obscuridades à Franz Kafka, William Bur-
roughs, etc.; arrisco o palpite de que Rubem Fonseca escre-
veu a maior parte desses maus contos na época em que mo-
rou em Nova York, 1953, ou seja, quando era um rapaz de
vinte e oito anos intoxicado de literatura e ainda ignorante de
sua própria voz autoral; talvez apenas por ser pessoalmente
afeiçoado a eles incluiu-os em Lúcia McCartney.
A tese de que Rubem Fonseca ainda não tinha uma
mestria de fato consistente nos anos 1960, de que talvez ele
cultivasse uma ou outra noção equivocada sobre si mesmo
como artista que o levava vez ou outra a fazer apostas (sem-
pre arriscadas) em “experimentações” (experimental é aquela
arte feita a partir de premissas cujo valor é apenas hipotético;
talvez a experiência dê em alguma coisa que preste, talvez
não), ou seja, a tese de que Rubem Fonseca era (e percebeu
que era) um artista ainda imaturo e consideravelmente hesi-
tante aos quarenta anos me parece consideravelmente sólida;
depois de Lúcia McCartney Rubem demorou oito anos para
publicar outro livro de contos, Feliz Ano Novo, em 1975;
seria interessante saber o que ele fez nesse intervalo, como
confrontou as próprias imperfeições e gestou pacientemente
seu esplendoroso futuro; o processo certamente envolveu
eliminações, “limpezas de gavetas”, admirações literárias re-
legadas a ex-admirações; falando a partir de minha experiên-
cia, somente já perto dos quarenta anos eu pude provar a
verdade daquilo que o Nelson Rodrigues dizia em tom de
aparente provocação, de que o único autor que ele havia lido
na vida tinha sido o Dostoiévski; segundo Nelson, há um
esbanjamento numérico meio idiota nesses literatos que sa-
em metendo a cara em tudo que é livro (eu aos vinte e cinco
anos); o artista (e homem) maduro sabe que sua mestria se
manifesta em pouquíssimos elementos, precisamente alguns,
de maneira nenhuma outros; estilo, afinal, é limite (como é
boba, retórica e demagógica a palavra ilimitado); é muito
provável que Rubem Fonseca passou, entre 1967 e 1975, por
uma depuração desse tipo; o salto de qualidade entre sua
produção ficcional numa data e noutra é imenso; Feliz Ano
Novo tem a mais arrebatadora sequência de obras-primas de
ficção curta que já vi – Feliz Ano Novo, Corações Solitários,
Abril, no Rio, em 1970, Botando pra Quebrar, Passeio No-
turno I e II, Dia dos Namorados; aos cinquenta anos um
depurado Rubem Fonseca finalmente esplendeu, como um
daqueles atiradores de facas de circo sem absolutamente ne-
nhuma dúvida, nenhuma hesitação sobre a própria perícia
em sua arte.
CARNE CRUA (2018)

Não deixo de me surpreender com o fato de que artis-


tas comprovadamente bons cometam, eventualmente, obras
indiscutivelmente ruins. Por um lado sei que a excelência é
mesmo inconstante; por outro, acho espantoso que a exce-
lência às vezes se mostre tão profundamente inconstante;
um bom autor, no mínimo porque tem experiência e discer-
nimento (do que é bom e do que é ruim), devia ser imune a
certos equívocos. Mas isso não ocorre. (Penso, agora, nas
péssimas, nas horripilantes letras que Vinícius de Moraes es-
creveu para uma série de músicas estupendas do Claudio
Santoro. E pensar em Vinícius de Moraes inevitavelmente
me faz pensar naquela piada, “Sabe por que saco de japonês
se chama Vinícius? Porque ele vive com o toquinho”. Aí es-
tá, eu não consigo pensar em Vinícius de Moraes sem que
me venha à cabeça essa piada infame.)
Por trás desse fenômeno aparentemente misterioso, as
musas que, por algum capricho, resolvem se ausentar, etc.,
está na verdade um fato muito simples: um gênio, ou mesmo
um mero talento notável, se faz com um número limitado de
elementos, elementos esses que se manifestam num número
necessariamente limitado de surpreendentes criações; de
maneira nenhuma o gênio ou o talento têm o dom da ines-
gotabilidade; eu diria que gênio/talento é aquele ser humano
capaz de ter, se tanto, uns dez (a coisa é contabilizável mes-
mo) pensamentos brilhantes ou perfeitamente acurados so-
bre um assunto; as outras cinquenta mil ideias que passarão
por sua cabeça vida afora serão perfeitamente irrelevantes,
intranscendentes, opacas, opacas ou até mesmo indubita-
velmente cretinas; tenho poucas dúvidas, por exemplo, de
que o J. D. Salinger parou de escrever em 1965 porque sim-
plesmente disse tudo que precisava (ou era capaz de dizer)
nos quatro livros que publicou; também tenho poucas dúvi-
das de que o Philip Roth escreveu bem além do que precisa-
va ou que era de fato capaz de dizer; de Roth acho funda-
mental mesmo apenas o Portnoy’s Complaint; lembro-me
com simpatia de Goodbye, Columbus e realmente adoro a-
queles diálogos descarados que ele tem com suas amantes
em Deception; o resto de sua produção é apenas isso, resto
(o.k., algumas cenas esparsas muito divertidas; em Operação
Shylock Philip Roth ouvindo perplexo o falso Philip Roth
que anda pregando o diasporismo dizer que os poloneses se
ajoelharão e chorarão de alegria quando os judeus voltarem
de trem à Polônia, “Nossos judeus voltaram! Nossos judeus
voltaram!”; em O Teatro de Sabbath, Mickey Sabbath indo
se masturbar para o túmulo de Drenka, sua amante recém-
falecida, etc.).
E de que maneira essa minha teoria se aplica à trajetória
criativa de Rubem Fonseca? Pelos exemplos que citei, de Sa-
linger e Roth, parece que a ascensão e queda de um autor é
um processo linear – o sujeito escreve, esgota sua quota de
dez ideias brilhantes e então pede a toalha (ou segue escre-
vendo de maneira mais ou menos vexaminosa, com a pilha
meio fraca; ou vive o resto da vida fazendo uma espécie de
jogo de difícil, de excêntrico, como Salinger); eventualmente
pode ser que o processo se dê assim, mas também se verifica
que esse processo de altos e baixos criativos se dê numa li-
nha temporal circular, reversível; depois do mediano Lúcia
McCartney, de 1967, Rubem Fonseca lançou o estupendo
Feliz Ano Novo, em 1975, seguido do bom O Cobrador, em
1979, depois um médio, Romance Negro e Outras Histórias,
em 1992, seguido de um bom, Buraco na Parede, em 1995
(citei só livros de contos dele para não comparar alhos com
bugalhos). Em seus apogeus criativos Rubem mostra ser um
autor altamente consciente de seu pequeno repertório de ob-
sessões e um habilíssimo usuário desse repertório (uma pro-
posição que se amplia num corolário que se amplia num es-
cólio, etc.); em suas criações menos brilhantes, Rubem em
geral parte de uma premissa artística cuja validade é apenas
hipotética, ou do manuseio de uma ordem simbólica com a
qual ele não tem verdadeira intimidade e da qual, portanto,
ele não tem como prever todas as implicações e consequên-
cias; seus erros formidáveis como ficcionista são raros, como
os que cometeu no livro Carne Crua, de 2018, do qual talvez
se salve apenas o conto Carne Crua (a história de um sujeito
que devora um rottweiler e depois devora a dona do cão);
como não podemos suspeitar de imperícia (Rubem Fonseca,
definitivamente, conhece seu métier), a tese mais provável é
a da negligência; Rubem parece nesse livro momentanea-
mente cansado do jogo, cansado de buscar engenho e veros-
similhança, cansado de urdir tramas que tenham peripécia e
reconhecimento, como recomendava Aristóteles; dada essa
sua disposição, a avacalhação proposital podia ser uma estra-
tégia e acabar gerando alguma coisa divertida (me vem à ca-
beça imediatamente O Caderno Rosa de Lori Lamby, de
Hilda Hilst); admito que até ri algumas vezes em Carne Crua
como quem ri de uma piada tão ruim, mas tão ruim que até
se torna engraçada; no mais, as razões para um grande escri-
tor colocar no mercado, aos noventa e três anos, um livro
que sem dúvida ele percebeu ser ruim ao terminá-lo para
mim são obscuras.
As melhores reflexões que conheço sobre esse tema, os
limites e as oscilações da excelência na experiência humana,
estão no conto O Imortal, de Jorge Luis Borges (de longe,
esse é meu conto preferido desse autor). Nesse conto Borges
tenta conceber que efeito a eternidade teria sobre os homens
(eu, você, Rubem Fonseca, etc.); a conclusão é desconcertan-
te – em seus primeiros mil anos como um ser fadado a ser
eterno Homero involuiu do poeta que escreveu a Ilíada para
um poetastro que teve a ideia de jerico de cantar a guerra das
rãs e a guerra dos ratos (sempre gargalho quando leio essa
passagem do conto) e, depois, para um troglodita inarticula-
do que se alimentava apenas de carne de serpente. Diz assim
Borges:
“Doutrinada por um exercício de séculos, a república
dos homens imortais atingira a perfeição da tolerância e qua-
se do desdém. Sabia que num prazo infinito a todo homem
acontecem todas as coisas. Por suas virtudes passadas ou fu-
turas, todo homem é credor de toda bondade, mas também
de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro.
Assim como nos jogos de azar as cifras pares e as cifras ím-
pares tendem ao equilíbrio, do mesmo modo também se a-
nulam e se corrigem o engenho e a estupidez, e talvez o rús-
tico Poema do Cid seja o contrapeso exigido por um único
epíteto das Églogas (...) Encarados assim, todos os nossos
atos são justos, mas também são indiferentes. Não há méri-
tos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisseia; pos-
tulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mu-
danças, o impossível é não compor, nem uma única vez, a
Odisseia”.
Não me escandaliza imaginar o infinito encadeamento
da realidade desse modo, como um jogo de precisas com-
pensações; já pensei coisas assim a respeito da minha vida,
que décadas de vivências opacas talvez fosse o preço a ser
pago por dez minutos de alguma intelecção impressionante;
não acredito nem deixo de acreditar nisso; não me impres-
siono nem deixo de me impressionar, como me ocorre com
qualquer hipótese imaginativa engenhosa; Rubem Fonseca
pagar tributo à mediocridade num único livro ruim para es-
crever outros quase trinta entre bons, razoáveis e excelentes?
A troca me parece mais do que justa.
OS PRISIONEIROS (1963)

Eu me lembro exatamente da primeira vez em que li Os


Prisioneiros, o livro de estreia de Rubem Fonseca, publicado
em 1963; foi em 1997, num fim de semana que passei na
praia; estava com umas queimaduras brabas nas costas e nos
ombros (fui caminhar na praia e me esqueci de passar filtro
solar) e, deitado no chão da sala para aliviar um pouco aque-
le ardor todo, peguei o livro e me pus a ler. Talvez a leitura
tenha sofrido alguma interrupção, pois uma turma meio ba-
rulhenta (amigos meus e dos meus irmãos) entrava e saía de
casa o tempo todo; lembro-me bem de um tal de Sapito, a-
migo de um amigo nosso, o Salviano-Salvicley-Salvatore
(“salve, salve, Salviano...”); Sapito era um tipo meio grotesco
(fonsequiano, me ocorre agora), que lembrava um anão que
tivesse crescido, mas que conservara várias características do
nanismo, como a voz (um voz esganiçada, parecida com a
do ator Joe Pesci); o sujeito era daquele tipo que tenta se im-
por falando mais que os outros, falando mais alto que todo
mundo, soltando piadas supostamente muito engraçadas o
tempo todo; e que, ao perceber que nem todo mundo está
achando o máximo sua perfórmance, apela para o coitadis-
mo, para a pieguice e para a chantagem emocional rasteira;
havia uma história de que ele havia aparecido recentemente
na TV, numa reportagem sobre irregularidades na empresa
onde ele trabalhava, e que ele dissera para o repórter, “eu
não sei de nada, eu só ganho duzentos real (sic)”. (Há, há.
Credo. O sujeito era realmente um coitado.) De uma forma
ou de outra, li o livro inteiro, ali, deitado no chão; o conto
que mais me marcou naquela primeira leitura foi o Gazela,
de um casal que vem de trem do Rio para São Paulo; talvez a
descrição do frio paulistano tenha ajudado a fixar o conto
em minha memória, já que eu estava todo esturricado, ar-
dendo, etc. (Ocorre-me agora uma certa semelhança entre
esse conto e o romance A Ladeira da Memória, do José Ge-
raldo Vieira; o trem noturno Rio – São Paulo, o casal sexu-
almente inibido, a hesitação que pode nos levar a perder o
momento único em que determinada coisa deve ser feita, a
memória que se torna nossa algoz, etc.)
Seguramente reli um conto ou outro de Os Prisioneiros
nesses vinte e dois anos. Talvez em alguma ocasião até o te-
nha relido inteiro. Mas na releitura que fiz ontem pela pri-
meira vez apreendi sua unidade; notei claramente que o tema
que perpassa os contos de Os Prisioneiros é o desejo, preci-
samente o drama do desejo. Drama, porque os mais fundos
desejos humanos são erráticos e, no mais, inexprimíveis; as
pessoas se sentem tensionadas (desejantes), deduzem um
motivo para isso, equacionam um modo de descarregar a
tensão e terminam sempre decepcionadas ou perplexas; nin-
guém, jamais, atinge o alvo que supostamente pretendia a-
tingir; todas nossas parcas satisfações são sempre vicárias,
substitutas. (Podemos escapar desse estado de perplexidade
contínua quando amadurecemos e aprendemos que qualquer
projeto existencial mais amplo é motivado primordialmente
pelo senso de dever. Ainda que aqui e ali tenhamos de fazer
acordos com nossos desejos, seremos prudentes na negocia-
ção, pois saberemos que estamos lidando com um trapacei-
ro, um aconselhador muito pouco confiável. E por aí vai.)
Percebe-se em Os Prisioneiros um certo frescor juvenil
na prosa de Rubem Fonseca (ele tinha trinta e oito anos em
1963); os casais são descritos com mais romantismo, amores
antigos e inesquecíveis são evocados, homens e mulheres pa-
recem mais disponíveis emocionalmente uns para os outros;
às vezes Rubem parece meio hesitante quanto à sua verda-
deira voz autoral; se em Duzentos e Vinte e Cinco Gramas e
Fevereiro ou Março já aparece, perfeitamente definida, a voz
que todos reconhecemos como sendo a voz de Rubem Fon-
seca, em outros momentos ele se expressa num estilo de
humor vagamente surreal que parece influenciado por Cam-
pos de Carvalho (Rubem, em entrevistas dadas nesse início
de carreira, declarou admirar o autor de O Púcaro Búlgaro).
De qualquer forma, o desejo está ali, com seu caráter evasivo
e inapreensível; pode-se pensar nos contos de Os Prisionei-
ros como os antepassados amenos, de certa forma ainda nu-
tridos com o leite da bondade humana, de contos como A
Escolha, de 2003, uma das mais extraordinárias (e cruéis) pe-
ças ficcionais de Rubem; nesse conto é narrada a história de
um sujeito que tem de decidir se o que ele deseja mais é uma
dentadura ou uma cadeira de rodas (as opções, na circuns-
tância em que ele se vê, são excludentes). O sujeito, que não
é burro, no fundo sabe que está protagonizando uma peça
de amarga ironia, sem dúvida metafórica de uma condição
humana geral, que transcende (e muito) aquela sua particular
situação de miséria (só pobre da Porta da Esperança do Síl-
vio Santos fica todo alegre, chora, etc., porque ganhou uma
cadeira de rodas ou uma dentadura; Rubem Fonseca sabe
que o tédio, a acídia e a insaciabilidade não conhecem fron-
teiras de classe).
Sobre os contos de Os Prisioneiros, o desejo errático,
sem possibilidade de ser devidamente saciado, aparece na
curiosidade malsã do sujeito que, depois de ser desafiado por
um médico legista (um tipo sádico, pernóstico e, à sua ma-
neira, muito engraçado), decide assistir à autópsia da amante,
que foi assassinada a facadas (Duzentos e Vinte e Cinco
Gramas); está na ambígua abordagem (tentativa de alicia-
mento?) feita pelo marido da condessa Bernstroff ao lúmpen
(fisiculturista, vendedor de sangue, gigolô, etc.) que protago-
niza e narra o conto Fevereiro ou Março; está no sempre ri-
dículo fenômeno hype e naquilo que René Girard chamava
de desejo mimético (fulano só deseja algo porque sicrano de-
seja, etc.), fenômenos estes deliciosamente esculachados por
Rubem em Natureza Podre ou Franz Potocki e o Mundo;
está no casal de Teoria do Consumo Conspícuo – ela, que
tem um nariz perfeito, mas que cismou de desejar fazer uma
rinoplastia, ele, que supostamente estava morrendo de desejo
de levá-la para a cama, mas que súbita e inexplicavelmente
perde essa disposição (só por que ela lhe pediu duzentos
contos – duzentos real, há, há – pra fazer a plástica?); está no
amor imperfeitamente consumado do casal aparentemente
clandestino que vem de trem do Rio para São Paulo, do con-
to Gazela; está no casal do conto Curriculum Vitae, em que
o sujeito imagina um monte de insultos dirigidos à namorada
enquanto ela penteia os cabelos e diz que sim, que está pres-
tando atenção na história que ele está contando, a respeito
de um sujeito que só conseguia tocar bongô acompanhando
Jesus, Alegria dos Homens, de J. S. Bach (uma alegoria meio
boba de uma subjetividade tão radical que obviamente não
encontra o que fazer no mundo objetivo); talvez o único
personagem do livro que atinge o alvo que realmente pre-
tendia é o Henri (do conto homônimo), um aparentemente
banal comerciante de móveis que na verdade é um necro-
mante, assassino e esquartejador; o conto O Inimigo, que fe-
cha o volume, talvez tenha uma relação oblíqua, indireta,
com a supressão dos desejos – um homem acometido de
transtorno obsessivo compulsivo, paranoico com assaltos,
apegado a memórias da juventude que, de tão fantásticas
(um amigo, estudante de parapsicologia, que uma vez afir-
mou ter levitado, etc.), parece que não aconteceram realmen-
te; há ainda o conto que narra uma fracassada sessão de psi-
coterapia, o conto dos membros de uma organização inspi-
rada nas ideias de Erich Fromm e Norman Mailer que tenta
converter um conformista incorrigível num inconformista e
o conto do entrevistador do censo que vai à casa de um su-
jeito que acaba confessando que decidiu se matar; os três
contos são dispensáveis (Rubem inclusive excluiu O Con-
formista Incorrigível na edição dos Contos Reunidos, de
1994).
Na análise que fiz do livro Lúcia McCartney afirmei que
os dois primeiros livros de Rubem Fonseca eram disfarça-
damente irregulares, ao passo que Lúcia o era explicitamente;
a afirmação me parece mesmo correta; em 1963 a prosa de
Rubem já era perfeitamente nítida e precisa, ou seja, ele já
era um mestre consumado em projetar, de maneira continua
e expressiva, o sonho ficcional na mente do leitor (essa defi-
nição, inquestionável ao meu ver, é do John Gardner, autor
do melhor livro de narratologia que já li, The Art of Ficcion);
a relativa debilidade do jovem Rubem Fonseca estava na he-
sitação eventual quanto à própria voz, o que gerou aqui e ali
textos meio despersonalizados, claramente derivativos de
fontes alheias a seus verdadeiros interesses; seu amadureci-
mento como autor consistiu em cada vez entrar menos nes-
ses desvios, em cada vez sair menos dos próprios trilhos (a-
inda que tenha cometido exatamente esse erro em alguns
contos de Romance Negro e Outras Histórias, de 1992). Em
larga medida, aos trinta e oito anos Rubem Fonseca já sabia
exatamente quem ele era (“Yo sé quien soy”, como disse o
altamente autoconsciente Don Quixote de La Mancha). E
seus acertos, sem dúvida, já eram muito, muito maiores do
que qualquer erro pontual.
A COLEIRA DO CÃO (1965)

Corrijo algo que escrevi nos ensaios anteriores, que os


dois primeiros livros de Rubem Fonseca eram disfarçada-
mente irregulares; a afirmação mais ou menos se aplica a Os
Prisioneiros, mas não ao segundo livro, A Coleira do Cão.
Publicado em 1965, esse livro dá testemunho de um Rubem
Fonseca solar, joie de vivre, erótico como nunca mais ele vi-
ria a ser (haverá muita atividade sexual na futura ficção fon-
sequiana, mas não propriamente erotismo); mesmo o conto
mais noir do volume, A Coleira do Cão, tem uma malemo-
lência, um calor arquetipicamente carioca; o delegado Vilela,
protagonista do conto, é um ensaio do futuro comissário
Alberto Mattos, de Agosto; é o único tira honesto da delega-
cia onde está lotado (todos recebem o levado dos bicheiros);
tem ojeriza à violência, à ilegalidade, à arbitrariedade (não
anda armado, abomina a tortura; a discussão que tem com
um subordinado, que justifica a tortura como um método
eficaz de fazer criminosos abrirem o bico, “com esses milha-
res de favelados que tem por aí não podemos nos dar ao lu-
xo de brincar de polícia inglesa”, subordinado esse que diz
que não odeia os presos que tortura, que depois muitos deles
se tornam seus amigos, que inclusive uma vez ele até jogou
no bicho para um deles, e com o próprio dinheiro, essa dis-
cussão, terrível e risível, no final das contas – mais brasileira
e carioca, impossível –, é uma daquelas coisas que o Nelson
Rodrigues chamava de momento da consciência humana).
Esse testemunhar de uma circunstância mais feliz da
realidade (devia mesmo ser difícil alguém ser tão niilista vi-
vendo na zona sul do Rio de Janeiro de 1965) acabou geran-
do um Rubem Fonseca que não temos como não tomar co-
mo atípico; e não há notas falsas nessa atipicidade, ou hesita-
ção quanto à sua verdadeira voz autoral, como nos casos em
que Rubem escreveu, aqui e ali, contos equivocados, força-
damente modernosos, experimentais, etc. (os piores exem-
plos que me vêm à cabeça são os contos Zoom, de 1967, e A
Santa de Schönberg, de 1992); reconhecemos plenamente o
autor, sua individualidade e sua coesão espiritual nos contos
de A Coleira do Cão; o que soa atípico é uma atitude mais
equilibrada e serena (ante uma realidade mais equilibrada e
serena, claro) que, por algum motivo, foi descontinuada em
sua obra; vemos algo como um caminho, pessoal e artístico,
que poderia ter sido, mas que não foi. Por exemplo, rara-
mente podemos usar em relação a um conto do Rubem
Fonseca a palavra encantador (embora normalmente lhe cai-
bam uma penca de outros adjetivos elogiosos, fascinante,
sensacional, genial, brilhante, etc.); pois o conto Madona, de
um adolescente que tenta aproveitar um fim de semana a sós
no aparamento da família em Copacabana para tentar fazer,
oras-oras, a única coisa em que pensamos quando temos ca-
torze, quinze anos, só pode ser chamado de absolutamente
encantador; não cometerei spoilers, mas há uma cena belís-
sima, fortemente simbólica (de anseio por ascese?), em que o
rapaz vai com uma turma à cabeceira da pista do Galeão (de-
liciosamente não vigiada); o barato da brincadeira é sentir os
aviões decolando, passando a poucos metros deles, provo-
cando tremendos deslocamentos de ar, as turbinas emitindo
ensurdecedores 130 decibéis, etc.; apesar de haver alguma
coisa deliciosamente datada em Madona, o conto tem o vi-
gor daquilo que é permanentemente atual, daquilo que não
só era de um determinado jeito, mas que sempre foi e sem-
pre será assim.
O erotismo (ou seja, encantamento e forte tendência à
aproximação entre os sexos) está em Os Graus, em que um
coroa tem uma grande surpresa ao descobrir o que a garota
(apesar de jovem, casada) com quem ele está tendo um caso
realmente pensa dele; em O Grande e o Pequeno, que mos-
tra uma família portuguesa (cujos membros se orgulham de
um talvez fantasioso passado aristocrático, julgando-se des-
cendentes do estribeiro-mor de um rei) opondo-se à escolha
amorosa de um de seus jovens membros; em O Gravador,
curioso conto que mostra uma situação antepassada das atu-
ais relações amorosas virtuais; em Relatório de Carlos, que
narra a história de um advogado bem sucedido que começa a
ter um caso com uma fulana e se apaixona perdidamente por
ela, apesar de no fundo saber que a fulana não passa de uma
bela de uma bisca (esse conto foi adaptado para o cinema
pelo diretor Flávio Tambellini, em 1974; o filme, Relatório
de um Homem Casado, é muito bom e muito fiel ao conto);
aliás, está nesse conto uma das cenas mais cruelmente hilá-
rias já concebidas por Rubem Fonseca, em que o tal advoga-
do deixa a tal da bisca em frente a uma clínica de aborto (na-
da de acompanhá-la?, que coisa feia, hem?) e que ela, assim
que sai do carro, mete o pé num monte de matéria fecal ca-
nina; o conto A Opção é um inconclusivo, artificioso e chato
debate de estudantes de medicina a respeito de um caso apa-
rentemente concreto de transexualidade (o assunto já era en-
fadonho em 1965); o celebrado conto A Força Humana eu
considero, como já disse, pelo seu final falho, o maior gol
que Rubem Fonseca não fez (semelhante àquele chute do
meio de campo que Pelé deu ao ver o goleiro tcheco adian-
tado, em 1970); o conto (que não tem o erotismo caracterís-
tico do restante do livro), de fato é esplêndido, mas é como
uma música rigorosamente tonal que terminasse num acorde
não resolutivo; a rapaziada atual, tão sensível à incorreção
política, provavelmente teria achaques e convulsões ao ler
certas passagens de A Força Humana, como quando João, o
dono da academia de ginástica, explica ao Waterloo para que
serve alguém ser famoso, “Em primeiro lugar, para não an-
dar esfarrapado como um mendigo, e tomar banho quando
quiser, e comer – peru, morango, você já comeu morango? –
, e ter um lugar confortável para morar, e ter mulher, não
uma nega fedorenta, uma loura, muitas mulheres andando
atrás de você, brigando pra ter você, entendeu?”.
De alguma forma podemos pensar no livro de contos
Pequenas Criaturas, que Rubem Fonseca lançou em 2003,
como uma retomada dessa linha solar que foi descontinuada
em 1965; um Rubem Fonseca de finais felizes e amenos,
sensível aos aspectos benevolentes que a vida mostra, aqui e
ali, às pequenas (mas muito reais) realizações acessíveis a
nós, pequenas criaturas, como gerar filhos, apaixonar-se (e
tudo dar certo), conseguir uma dentadura e uma cadeira de
rodas (quando achávamos que só poderíamos ter uma coisa
ou outra), etc. Porém, pensar nessa relativa equivalência exi-
ge esforço; podemos até fazer de conta, hoje, que a vida po-
de ser simples e razoavelmente plena, mas no fundo sabe-
mos que estamos expostos, sem qualquer proteção “placen-
tária”, ao indecifrável e ao inominável; sabemos que lidamos
o tempo todo com símbolos desestabilizados, que talvez não
signifiquem aquilo que intuímos; vemos à nossa frente cami-
nhos que se bifurcam que se bifurcam que se bifurcam, etc.,
todos igualmente duvidosos, todos com um tremendo po-
tencial maligno para nos submergir para sempre numa in-
terminável infinitude (paródia satânica do infinito) de erros
minuciosos; voltar atrás, a certas concepções “cosmológicas”
(nosso lugar, simbólico, no universo), é impossível, já que
perdemos certas ingenuidades e inocências, mas avançar é
duvidoso (avançar para onde?); descrevi aí, até que razoa-
velmente, o que era chamado lá pelo final do século XX de
“condição pós-moderna” e que de certa maneira ainda é a
regra do jogo que estamos jogando (ou sendo jogados?); não
por acaso o tema fundamental da ficção de Rubem Fonseca,
esgotado o furor enragé de Feliz Ano Novo e O Cobrador
(1975 e 1979), foi o drama desalentador do sujeito devorado
pela esfinge indecifrada (e talvez indecifrável), como o Peter
Mandrake em A Grande Arte, ou a variação decifra-me e te
devoro do mesmo jeito, drama do qual padece o comissário
Alberto Mattos em Agosto.
Talvez o mundo solar, joie de vivre, erótico, alicerçado
em símbolos estáveis, de A Coleira do Cão só possa ser re-
tomado ironicamente; mas e se não?; às vezes (não poucas
vezes, na verdade) experimentamos na vida real certas esta-
bilidades e permanências que não temos como explicar; o
conto Madona é datado e não é; adolescentes continuam
tentando aproveitar seus finais de semana longe dos pais da
melhor forma que podem (e esse da melhor forma significa a
mesma coisa de sempre, afinal, os hormônios sexuais são os
mesmos de sempre e os costumes entre os sexos, exceto em
certas camadas sociais mais experimentais, ínfimas aliás, não
são diferentes do que sempre foram); a realidade é tão ampla
(e tão estreita) e tão imprevisível (e tão previsível, afinal, nihil
novi sub sole) que às vezes (ou sempre?) ela nos dá uma es-
pantosa confirmação de que tudo, absolutamente tudo que
existe não só era de um determinado jeito, mas que as coisas
sempre foram assim e que continuarão sendo, pelos séculos
dos séculos.
FELIZ ANO NOVO (1975)

Nathanael Lessa, protagonista do conto Corações Soli-


tários, aconselha assim Pedro Redgrave, “Sejam, como os
outros, egoístas, dissimulados, implacáveis, intolerantes e hi-
pócritas. Explorem. Espoliem. É legítima defesa”. E ainda
aconselha o desdentado Odontos Silva, “Ponha os dentes
novamente e morda. Se a dentada não for boa, dê murros e
pontapés”. Embora se apliquem a situações específicas do
conto, os conselhos de Lessa-West poderiam fazer parte de
um decálogo normatizador dos costumes retratados em Feliz
Ano Novo, livro de contos de Rubem Fonseca lançado em
1975. Resumem o espírito do livro, em suma: ultraviolência à
Anthony Burgess em Laranja Mecânica (o conto Feliz Ano
Novo), violência festiva (o conto Botando pra Quebrar), vio-
lência meio “ato de liberdade” existencialista (os contos Pas-
seio Noturno, I e II), violência “estratégica” (o conto 74 De-
graus); saindo um pouco dessa violência em primeiro plano,
o conto Nau Catrineta, notável exemplar de um estilo que
creio ser ainda inexistente (ou muito inexplorado), o gótico
lusitano, faz revisionismo (ficcional, creio) de um episódio
histórico em que supostamente Deus salvou a tripulação de
um navio, quando o que de fato aconteceu para salvar essa
tripulação foi um macabro pacto de canibalismo; Abril, no
Rio, em 1970 mostra um aspirante a craque que espera que
um olheiro do Madureira (o treinador Jair Rosa Pinto) o alce
à glória, mas Jajá Barra Mansa não aparece no treino, o aspi-
rante joga mal, etc. (se abril é o mais cruel dos meses, segun-
do Eliot, a esperança, sempre, é a mais cruel das disposi-
ções); Dia dos Namorados é uma sofisticada chanchada pro-
tagonizada pelo Peter Mandrake, que é solicitado para tirar
um banqueiro das garras de um travesti que, com uma gilete
apontada para a própria carótida, está ameaçando fazer uma
loucura; O Campeonato é uma divertida pornochanchada
que nos anos 1970 poderia ter sido dirigida pelo Carlo
Mossy; Entrevista é um conto curto e notavelmente enge-
nhoso que narra um episódio de empoderamento feminino
avant la lettre; Agruras de um Jovem Escritor é uma vertigi-
nosa e muito engraçada tragédia de erros (apesar de sua bre-
ve aparição, o detetive Jacó tirando os sapatos e borrifando
perfume nas meias tem uma das mais extraordinárias carac-
terizações de personagem já feitas por Rubem Fonseca); In-
testino Grosso narra uma entrevista com um escritor meio
malcriado cujas opiniões provavelmente pouco têm a ver
com as de Rubem, mas que seus comentaristas mais habitu-
ais se apressaram em tomar como suas (a disseminada, retó-
rica e brega imagem dos tecnocratas afiando o arame farpa-
do está nesse conto; aliás, o livro Feliz Ano Novo foi proibi-
do pela ditadura ao se tornar best seller, poucos meses após
o lançamento; talvez menos por seu conteúdo – a alegação
foi que o livro “atentava contra a moral e os bons costumes
da família brasileira”, aquele lero-lero todo –, do que por seu
sucesso; medíocres, civis ou militares, nunca toleram o triun-
fo do talento); por fim, O Outro e O Pedido são contos in-
sulsos no meio de um monte de contos extraordinariamente
bons.
Para além da afirmação – verdadeira – de que Feliz Ano
Novo tem uma das mais impressionantes sequências de o-
bras-primas de ficção curta (da literatura em geral), o que
provavelmente o coloca como o melhor livro de contos de
Rubem Fonseca, é certo dizer que o livro não se esgota nes-
sa constatação de excelência, com esse topo do pódio; sua
clareza e imensa vitalidade nos lembra que há momentos,
históricos e pessoais, em que nossas ações e pensamentos se
apresentam mais energizados do que em outros; em que a
inteligibilidade do mundo nos parece maior, em que as rela-
ções causais (causas e efeitos) parecem ter explicações razo-
avelmente verossímeis; em que, potencializados sabe-se lá
por que fontes energéticas, dionisíacas, etc., parece que va-
mos conseguir escapar do destino de ser uma melancólica
espécie sempre esmagada pelo inominável e pelo indecifrá-
vel; apesar de mostrar aspectos bestiais da natureza humana
– o atropelador doloso de Passeio Noturno, os bandidos de
Feliz Ano Novo, matando, estuprando, defecando nas rou-
pas de cama da mansão, muito legal, uma coisa muito boa,
etc. –, o clima de Feliz Ano Novo, o livro, é paradoxalmente
otimista, “sim, temos esse lado feroz, mas daremos conta de-
le”; claro que essa euforia antropocentrista nunca dura mui-
to; a inteligibilidade (ilusória) acaba nos escapando, perce-
bemos que continuamos sem saber nada, a complexidade
das coisas se exponenciabiliza, tornamo-nos arcanos e su-
persticiosos (porque talvez todos atos cognitivos humanos
no fundo não passem de superstições); a história humana
tem mesmo esse movimento pendular de autoconfiança-e-
otimismo versus desconfiança-e-prostração; falei em costu-
mes retratados no primeiro parágrafo desse artigo, sendo
que costume é algo meio circunscrito a uma determinada
época, um zeitgeist que de repente muda e deixa um monte
de gente suspirando pelos bons tempos que se foram; a dé-
cada de 1970, sem dúvida, foi um momento de uma huma-
nidade supostamente mais dona do próprio nariz (expressão
da época), disposta a se definir em seus próprios termos,
sem prestar contas a “metafísicas”; até mesmo o imenso (e
aparentemente contraditório) interesse popular por esote-
rismo, espiritismo, OVNIs (revista Planeta, etc.) característi-
co daquele tempo tinha em seu fundo a crença numa discur-
sividade lúcida e, no final das contas, desmistificadora desses
assuntos; Feliz Ano Novo é um produto dos anos 1970, nu-
trido por seu espírito, mas claro que ele transcende, e muito,
esse dado; seus leitores mais jovens, sem lembranças pesso-
ais e afetivas dos anos 1970, por certo não compreendem
bem de onde vem a clareza e a vitalidade desse livro e, por
certo também, fazem uma leitura mais fria dele; de qualquer
forma, sem dúvida constatam sua excelência e topo de pó-
dio. E isso é o que realmente interessa.
A CONFRARIA DOS ESPADAS (1998)

Rubem Fonseca encerrou a década de 1990 com um li-


vro eminentemente pitoresco. Lançado em 1998, A Confra-
ria dos Espadas se caracteriza pelo inusitado tratado com
(relativa) leveza, o que às vezes lhe dá um clima meio de A-
credite se Quiser, ou seja, um clima de um show de quase-
horrores apresentado por um sóbrio (mas no fundo debo-
chado) mestre de cerimônias (o personagem de um dos con-
tos do livro, aliás, se autonomeia mestre de cerimônias);
mesmo o mais hardcore dos contos, Anjos das Marquises
(aliás, um dos mais virtuosísticos já escritos por Rubem), é
uma irônica peça de humor negro, quase um “terrir”; assim
como o deliciosamente cômico A Festa tem um quê de ma-
cabro; assim como o divertido (e, no final, triunfalmente
erótico) AA expõe de forma frívola uma situação bastante
ignóbil; assim como o aparentemente mais sério e denso dos
contos, Livre-Arbítrio, que põe em pauta questões delicadas
como: alguém que decide continuar vivendo, em vez de de-
cidir soberanamente sobre a conveniência e oportunidade da
própria morte, não está apenas deixando que continue fun-
cionando um conjunto tosco de reflexos mecânicos? (seria
essa uma definição razoável sobre o que é a vida?, etc.),
mesmo esse conto aparentemente mais sério no fundo é a-
penas pseudossério; O Vendedor de Seguros é um mais ou
menos típico (e bom) conto fonsequiano protagonizado por
um matador profissional; À Maneira de Godard e A Confra-
ria dos Espadas mostram aspectos problemáticos da sexuali-
dade dramatizados-carnavalizados (ou seja, exibidos e pre-
tensamente discutidos) em indevidos espaços públicos – um
homem e uma mulher heterossexuais porém aversivos aos
genitais do sexo oposto que tentam superar essa aversão
com um troço esquisito (com ares de terapêutica new age)
chamado jogo do partejar, uma agremiação de homens hete-
rossexuais que, depois de dominarem a ambicionada técnica
do Múltiplo Orgasmo Sem Ejaculação, passam a se julgar
monstruosos e desejam voltar a ser macacos (ou seja, um
conjunto tosco de reflexos mecânicos, etc.); por fim, o tal-
vez-poema (e talvez mau poema) Um Dia na Vida de Dois
Pactários, que tem uma passagem de intensa e resplandecen-
te beleza (poética?) que define assim a natureza da ligação
que há entre os amantes: um pacto de incêndio contra esse
espaço de rotina cinzenta entre o nascimento e a morte que
chamam vida.
Talvez A Confraria dos Espadas seja o conjunto de
contos mais ambíguos, no melhor sentido que a palavra po-
de ter, de Rubem Fonseca; nada é propriamente o que pare-
ce (embora as coisas que componham esse mundo, radical-
mente intranscendente, estejam condenadas a ser simples-
mente aquilo que elas são); e, em vez de se angustiarem por
não saberem exatamente com o que estão lidando e por fra-
cassarem nas tentativas de elucidação (o drama do homem
devorado pela esfinge indecifrada, etc.), os personagens de A
Confraria etc. parecem simplesmente aceitar que a realidade
é mesmo cheia de coisas esquisitas (pitorescas) e de eventos
arbitrários e aleatórios sobre os quais não temos qualquer
controle; não existe, portanto, destino dramático possível pa-
ra uma espécie tão incapaz como a nossa, mas apenas desfe-
chos irônicos (drama exige a possibilidade da escolha, de que
a partir da arrogância – hybris – o personagem cometa o er-
ro trágico – hamartia – que será punido por nemesis, etc.). O
jogo que os personagens de A Confraria dos Espadas jogam
com a realidade não tem a opção de vitória; pode ocorrer a
um ou outro personagem uma subjetiva autoavaliação de
boa performance, mas não há escala para que isso possa ser
aferido objetivamente (isso me lembra os “triunfos” que eu
obtinha jogando fliperama no Guarujá lá por 1981, fazendo,
sei lá, cinco milhões de pontos naquelas máquinas da Taito,
por um lado me sentindo triunfante, por outro me pergun-
tando, “certo, mas esses milhões todos não são a pontuação
que qualquer imbecil faz ao jogar nessas máquinas?”). Ou,
hum, pode haver, sim, uma escala aferidora num universo
onde não há medida, ratio, proporção?
Como bem notou o crítico literário canadense Nor-
throp Frye, os personagens irônicos (sub-humanos) sempre
acabam apresentando uma paradoxal afinidade com os per-
sonagens míticos (sobre-humanos – deuses, basicamente); se
Deus cria, ex nihilo e por uma decisão soberana e arbitrária,
universos, seres, simbolismos, etc., o sub-humano também
cria seus universos, soberana e arbitrariamente (é próprio do
sub criar mundos à imagem e semelhança das próprias de-
formidades e limitações); ambos, deuses e pseudodeuses, o-
niscientes e oniscientes, não comportam qualquer dúvida (só
o ser humano é tensionado pela incerteza); (um acréscimo:
Jorge Luis Borges, numa feliz definição, disse que o homem
é um deus falível; pois o sub-homem, forjador de seu pró-
prio universo e de um completo e fechado sistema simbólico
que o descreve, não tem como não ser rigorosamente infalí-
vel); voltando ao Rubem Fonseca: essa exposição teórica
tem de fato alguma relação com sua obra tardia (fim década
de 1990, primeira década do século XXI)? No texto dessa
série sobre o livro O Buraco na Parede, de 1994, eu escrevi o
seguinte:
“Conhecendo os livros subsequentes de Rubem Fonse-
ca, creio que também seja certo dizer que essa angústia fun-
dada na obscuridade e no desconhecimento (por que neme-
sis está me punindo?) irá se arrefecendo, isso porque seus
personagens futuros irão cada vez mais se apossar e compre-
ender os símbolos com os quais lidam, cada vez mais se as-
senhorarão de si mesmos e do mundo, tanto quanto isso é
possível (a maioria experimentará esse assenhoramento de
forma irônica, descobrindo coisas como a linguagem secreta
das fezes e seu poder precognitivo, o que servirá para o es-
tabelecimento da copromancia, por exemplo; ainda que irô-
nico, um assenhoramento como esse não deixa de ser uma
conquista cognitiva notável)”.
E mais:
“É curiosa a curva evolutiva que se percebe na ficção
de Rubem Fonseca – uma ficção que quando surgiu foi defi-
nida como brutalista e na qual, superficialmente, só se en-
xergava a denúncia de mazelas sociais, centros urbanos de-
sordenados, tecnocratas afiando o arame farpado, etc., e que
gradualmente evoluiu para formas mais abstratas, mais arcai-
cas, mais arquetípicas, mais conscientemente simbólicas
(...)”.
O resultado dessa maturação foi artisticamente esplen-
doroso; os livros de contos que Rubem lançou em 2001,
2003 e 2006 estão entre seus melhores; e nos lançados até
pelo menos 2013 há vários contos que são, definitivamente,
obras-primas; esses livros, embora tenham alguma afinidade
com A Confraria dos Espadas, não se atêm ao pitoresco, ao
grotesco apreendido, no final das contas, como gracioso;
seus personagens, embora habitem o mesmo universo go-
vernado pela fatalidade de Confraria, tentam escapar do fata-
lismo, do destino incontornável de acabarem sendo perso-
nagens involuntários de um show de quase-horrores prova-
velmente concebido para a diversão de um deus sádico (sim,
para o homem do início do século XXI as questões susten-
tadas pelo gnosticismo não estão nem perto de se esgota-
rem); em suma, se a única coisa que cabe a esses persona-
gens fonsequianos (e a nós, por extensão) é acabar discer-
nindo alguma coisa como a linguagem secreta da matéria fe-
cal, sem dúvida que nós (e eles) nos empenharemos em ser
os melhores copromantas que pudermos.
CALIBRE 22 (2017)

Rubem Fonseca já disse várias vezes que a regra de ou-


ro para se escrever boa ficção é amar seu personagem como
a si mesmo. Várias vezes enquanto eu relia os contos de Ca-
libre 22, livro que Rubem lançou em 2017, eu pensei em va-
riações dessa frase: suspeite de seu personagem como de si
mesmo, deboche de seu personagem como de si mesmo,
não leve muito a sério seu personagem etc. Embora se trate
de um livro de um craque, de alguém que, definitivamente,
sabe arranjar as palavras de modo a fazê-las funcionar, há no
fundo de Calibre 22 uma coisa suspicaz, senescente, debilita-
da; no raso, vemos aqui e ali talvez sintomas disso, como,
por exemplo, a literatura ser tratada com escárnio pelo autor,
“eu acho ler uma merda, o sujeito tem que ser cretino para
ficar sentado olhando as páginas de um livro”, “toda a litera-
tura e tudo o que se escrevia era sempre a mesma merda”, “é
fácil escrever um livro, surfar é muito mais difícil”, etc. Creio
que essa debilitação de fundo (muito mais do que essas de-
clarações explícitas da suposta futilidade da ficção, aliás, to-
das muito divertidas) acabou afetando a credibilidade de vá-
rios contos potencialmente muito bons de Calibre 22. (O-
corre-me aqui a sensação de estar sendo injusto; dou uma
espiada no sumário do livro e penso, “mas esse conto é re-
almente muito bom, e aquele ali também, e aquele, idem”;
talvez ocorra, enquanto escrevo esse texto, de eu pegar o Ca-
libre 22 e reler alguma parte para ver qual opinião minha so-
bre ele prevalece.)
O teorético Rubem Fonseca também já disse, ao refletir
sobre a excelência ficcional, que o segredo da boa literatura
reside no como – como narrar, como tratar assuntos, dra-
mas, conflitos que, no fundo, são os mesmos de sempre.
Não deve ter escapado aos leitores atentos de Rubem que
sua prosa (o seu como) modificou-se depois que ele lançou
os dois únicos livros em que se expõe pessoalmente, o vo-
lume de crônicas O Romance Morreu, de 2007, e o breve
(visivelmente abortado) ensaio autobiográfico José, de 2011;
a prosa cautelosa, opaca e, hum, inibida desses dois livros
parece ter dominado sua voz ficcional ou, ao menos, ter ten-
tado dominar (seus livros de contos de 2011, 2013 e 2015
ainda têm vários momentos verdadeiramente brilhantes, a-
fins com o the best of); de uma maneira ou de outra, uma
crise parece ter se instalado ali; não tenho dificuldade de i-
maginar Rubem Fonseca cogitando: por que não suspeitar
desse gabola desse Peter Mandrake (aliás, Paulo Mendes),
mostrando-o como um sujeito agora dado ao humor pito-
resco e a invencionices bobas como dizer que Mandrake é
mesmo o sobrenome dele, versão anglicizada de Mandrágo-
ra, etc.? (As tiradas de Mandrake pra cima do amigo e sócio
Wexler eram muito divertidas antigamente, “Vou ficar lendo
Os Protocolos dos Sábios do Sião pra ver se curo essa ressa-
ca”, “Meu cartão já está cheio e, além disso, não danço com
advogados carecas”, “‘Lero-lero’? ‘Comer mosca’? Isso lá é
jeito de um judeu falar? Tsc, tsc...”.)
Um conto e um personagem, justamente por causa do
como, sobressaem em Calibre 22 – o velhote (e aqui a pala-
vra senescente adquire um inesperado bom sentido) solitá-
rio, repetitivo e meio rabugento de O Morcego, o Mico e o
Velho que Não Era Corcunda. Rubem Fonseca, apesar de já
ser nonagenário (nasceu em 1925), raramente escreve (ou es-
creveu) como velho (aliás, lembro-me de um notável conto
de Pequenas Criaturas em que Rubem, já quase octagenário,
criou um absolutamente verossímil jovem casal – ele, um ex-
frequentador de raves que, entrado nos trinta anos, parou
com as drogas, adotou uma rotina atlética e saudável, etc.,
ela, um pouco mais jovem, ainda frequentadora de festas,
usuária de MDMA, etc.). Em suma, quer o velho se torne
sua principal voz autoral daqui pra frente, quer não, o fato é
que a coisa ficou bem boa; enquanto nós, jovens ou mais ou
menos jovens, manifestamos nossas indignações publicando
fotos e frases nas redes sociais, o velhinho de Rubem Fonse-
ca vai atrás dos malfeitores (espancadores de mulheres, as-
sassinos de homossexuais, etc.) e lhes mete tiros de pistola
calibre 45 (uau!, há, há!); claro, estamos falando de ficção, de
expressão simbólica; de qualquer forma, dentro dessa ordem
simbólica sempre testemunhamos com admiração a força re-
solutiva que há no assassinato; do psicodélico doutor Phibes
(Vincent Price em seu melhor papel) executando barroquís-
simos homicídios baseados nas pragas bíblicas do Egito ao
príncipe Hamlet fazendo o que provavelmente todos nós fa-
ríamos no lugar dele todos experimentamos, como especta-
dores, esse consummatum est; a proposição a ser extraída do
fato bruto (e mudo) é que toda a ordem jurídica (the law’s
delay, as delongas da lei, como, aliás, diz Hamlet) não passa
de uma quase ingênua tentativa de substituir o bom e velho
homicídio como ato resolutivo e reparador (e que ótimo que
uma ordem jurídica conseguiu se estabelecer no mundo e
mais ou menos disciplinar essas coisas; porém, em nossa
camada mais primitiva e arcaica ainda acreditamos que reso-
lutivo mesmo é meter o trabuco na fuça do sem-vergonha e
bum!).
Bem, o.k., e daí? Quer dizer que a literatura de Rubem
Fonseca (boa parte dela, aliás, boa parte dos contos de Cali-
bre 22) serve apenas para saciar nosso gosto por sangue, pa-
ra apaziguar nossa nostalgia de um mundo descomplicado
no qual matar não levava ninguém aos sofrimentos excruci-
antes do Raskolnikov? (Cogitando aqui: talvez o príncipe
Hamlet fizesse o seguinte comentário sobre o pobre Raskol-
nikov, “Quando um pé de chinelo se mete a querer matar, a
coisa só pode dar em merda mesmo”.) Se é que é pertinente
falar em serventia quando falamos em ficção, a literatura ser-
ve, sem dúvida, para ensaiar possibilidades do real; serve pa-
ra termos vislumbres de certas verdades, não como concei-
tos filosóficos bem-acabados, mas como expressões de im-
pressões; serve para darmos testemunho de nossos dramas,
serve para investigarmos nossos impulsos e desejos mais
“inconfessáveis” (não é errado conceber a literatura como
um confessionário secular; Nelson Rodrigues, que compre-
endia profundamente essa serventia da ficção, criou talvez o
mais estupendo desses confessionários, o tal terreno baldio
habitado apenas pela cabra vadia, aonde vamos, sempre à
meia-noite, a hora que, segundo Machado de Assis, apavora,
dizer aquelas verdades que não diríamos nem para o médium
depois de mortos); Rubem Fonseca jamais se esgotou como
um mero promotor de banhos de sangue para saciar banais
apetites hematófagos; Calibre 22, que não pode ser chamado
propriamente de bom livro (nem de mau, tampouco de me-
díocre), provavelmente é um primeiro esboço de algo que
pode vir a ser; oxalá Rubem tenha tempo e energia para ma-
turar uma nova fase ficcional talvez prenunciada por esse li-
vro, fase essa (hipótese) caracterizada por uma voz ficcional
senescente não debilitada pela suspeita, pelo não levar-se
muito a sério; suas possibilidades de êxito, dado seu talento,
são grandes; sendo o idoso uma espécie de náufrago, ou seja,
alguém que não tem muito mais a perder, ou seja, alguém
que pode realmente se dar ao luxo de ser franco e honesto, é
muito verossímil testemunharmos um velho nesse papel de
emissor de juízos e sentenças cabais; a figura arquetípica do
velho sábio de barbas brancas expressa justamente essa ver-
dade – e o matiz fonsequiano disso, um velho sábio que por-
ta uma pistola calibre 45 e que não hesita em dispará-la con-
tra a cabeça dos malfeitores, não altera em nada a essência
do arquétipo. Sentemos e aguardemos.
AMÁLGAMA E HISTÓRIAS CURTAS (2013 e
2015)

Os livros Amálgama, de 2013, e Histórias Curtas, de


2015, têm, cada um, trinta e poucos contos, mas apenas dois
contos em cada volume são de fato bons; o livro Amálgama
é melhor que Histórias Curtas, porque tem um número mai-
or de contos razoáveis e porque seus dois bons contos são,
na verdade, excelentes: Conto de Amor e, especialmente, O
Filho, que abre o volume; esses dois contos, aliás, têm seme-
lhanças, como a brevidade, o uso de personagens que são
deficientes físicos e as ações principais contidas nas histórias,
ações de uma torpeza tão ilimitada e tão absurda que não dá
pra acabar não rindo delas, como rimos dos lances mais tor-
pes e surreais dos contos do Donald Barthelme (os risos que
Barthelme nos provoca, contudo, são razoavelmente inocen-
tes, ao passo que Rubem Fonseca, de um modo meio demo-
níaco, nos leva a rir de coisas das quais, por mais caricatu-
ralmente que estejam expostas, de modo algum deveríamos
rir); já os dois bons contos de Histórias Curtas são apenas
bons: Jardim de Flores, que mostra uma espécie de alquimis-
ta invertido (pervertido, na verdade) em ação (putrefactio,
etc.), e O Reencontro, que mostra de modo implacável co-
mo um amor aparentemente sublime pode não sobreviver a
um dado tão prosaico como os quilos a mais (Rubem Fon-
seca gosta muito de usar a palavra enxúndia para se referir à
engorda) que podemos adquirir com a passagem do tempo.
(Uma digressão: lembrei-me agora de que quando eu
era pequeno uma época eu cismei de fazer troça das pessoas
estropiadas e deformadas que via quando ia ao centro da ci-
dade; se o centro de São Paulo ainda hoje é consideravel-
mente trash, posso afirmar que nos anos 1970-80 era bem
pior; aliás, ano passado fui lá pela primeira vez com minha
filha e ela ficou especialmente horrorizada com um travesti
idoso, andando com os peitos de fora e urrando, que vimos
na Praça da Sé; aí eu sei que meu pai me advertiu que era pa-
ra eu parar com aquelas gozações e imitações, porque se eu
continuasse um anjo podia passar por mim, dizer amém e eu
ia ficar igual aos deformados, estropiados, etc.; outra adver-
tência que meu pai me fez: eu cismara que o ator Sadi Cabral
havia morrido e que fora enterrado com um par de salsichas
pendurado nas orelhas; quem havia morrido fora um outro
ator igualmente idoso, não me lembro quem, mas eu cismei
com o Sadi Cabral e fiquei imaginando-o no caixão, sendo
velado com as tais salsichas amarradas nos lóbulos das ore-
lhas; então, quando conseguia parar de rir, eu insistia em
perguntar a meu pai, “Mas por que ele foi enterrado assim?”;
meu pai, quando enfim se cansou de sorrir amarelo da relati-
va – relativa pra ele – graça daquela cena, me advertiu, “chii-
ip, menino, olha o respeito com os mortos”.)
Voltando a falar sobre o livro Amálgama, especifica-
mente sobre o conto O Filho: por sua virtual perfeição (de
caracterizações, de percurso da ação, de escolhas vocabula-
res, de economia de meios, de encadeamento de peripécias,
de desfecho, etc.), creio que valha dar uma esmiuçada nesse
conto, sem dúvida uma das mais notáveis obras-primas da
produção tardia de Rubem Fonseca. (Ainda que me ocorra a
dúvida: discorrer, por meio de paráfrase, sobre um conto tão
perfeitamente concebido e executado como O Filho não se-
ria oferecer aos leitores uma versão debilitada, necessaria-
mente spoiler, “estragadora”, de uma obra-prima literária?
Espero que não ou, ao menos, não totalmente. Então vamos
lá.)
A favelada Jéssica tem dezesseis anos e está grávida. A
mãe pergunta se ela sabe quem é o pai; Jéssica diz que não,
mas que isso não faz diferença, já que os homens são mesmo
todos uns merdas. A mãe diz que é melhor tirar, mas Jéssica
diz que vai ter o bebê; para apaziguar a mãe, ela afirma que
se não conseguir criá-lo poderá vendê-lo; a mãe, ao saber
que bebês podem ser vendidos, tem sua cobiça tremenda-
mente atiçada, pois está precisando de dinheiro para com-
prar uma dentadura (comprar uma dentadura é um achado
semântico dos mais espetaculares; Rubem já havia usado es-
sa expressão no conto A Escolha, do livro Pequenas Criatu-
ras, “um sujeito que disse ser advogado apareceu aqui em ca-
sa e me pediu um dinheiro dizendo que ia fazer o dono do
circo me dar grana suficiente para comprar quinhentas den-
taduras”); o parto de Jéssica é marcado com a dona Gertru-
des, que exerce na favela as funções de parteira e aborteira,
benzedeira e feiticeira, ou seja, a mulher é uma espécie de
versão maloqueira da Madame Voisin; a mãe de Jéssica, que
pretendia roubar o neto e sair correndo com ele debaixo do
braço assim que ele nascesse, para então o entregar ao com-
prador de bebês, para, então, com o dinheiro comprar uma
dentadura, etc., sai correndo quando o vê, mas sai correndo
de susto, porque a criança nasceu com uma deformidade; no
denouemént, a garota Jéssica tem “alta”, sai do barraco da
parteira e, num ato de terrível, macabra e implacável raciona-
lidade, joga o filho na primeira lata de lixo que encontra –
racionalidade, sim, porque ela não ia criar um bebê deforma-
do e, principalmente, porque ninguém iria querer comprar
aquilo.
Ao reler O Filho lembrei-me de um conto de Donald
Barthelme (aliás, conto analisado pelo crítico literário inglês
David Lodge em A Arte da Ficção, lançado aqui no Brasil
pela L&PM, um livro apenas razoável – Lodge é parcimoni-
oso e às vezes irritantemente em cima do muro, além de
provincianamente britânico) em que um sujeito ganha um
bebê de presente de um casal de amigos, casal que por sua
vez achou o tal bebê quando foi a um banco; o propósito
desse tipo de encadeamento de situações absurdas, comum
na chamada ficção pós-modernista, nunca ficou muito claro
para mim como leitor; a explicação mais frequente é que esse
tipo de ficção serve para nos lembrar de que, no fundo, as
páginas dos livros são apenas papel borrado com tinta tipo-
gráfica e que, se nós nos deixamos iludir por esse negócio de
literatura, bem, o problema é nosso; apesar desse princípio
tão francamente duvidoso (Hamlet seria apenas papel borra-
do com tinta tipográfica?), a ficção pós-modernista às vezes
é divertida e muito engraçada (sobretudo o que poderia ser
chamado de subprodutos dela; me vem à cabeça imediata-
mente os livros do tabloide humorístico O Planeta Diário,
como Apelo à Razão, de Perry White, e o escabroso A Vin-
gança do Bastardo, da Eleonora V. Vorsky, pseudônimo do
Alexandre Machado, marido da recém-falecida Fernanda
Young; o também recém-falecido autor infanto-juvenil João
Carlos Marinho – infanto-juvenil numas: leiam os extraordi-
nários contos de Pai Mental e Outras Histórias e tirem suas
conclusões – igualmente poderia ser chamado de “autor pós-
moderno” por conta de seu divertidíssimo e maluquíssimo
O Caneco de Prata).
Rubem Fonseca, que é um homem notavelmente culto,
obviamente sempre soube (e, claro, continua sabendo) por
onde anda o status quaestionis literário; porém, como autor
altamente seguro de sua própria personalidade artística, de
sua voz, jamais embarcou na barca furada de qualquer mo-
dismo acadêmico; assimilou traços de modernismo e pós-
modernismo após ver que certas “ferramentas” oriundas
desses universos de fato funcionavam na prática (Rubem
tem grande pendor artesanal; ele já afirmou, por exemplo,
que a boa ficção às vezes é apenas um paciente trabalho de
ourivesaria). A frieza e a perfeição mecânica do conto O Fi-
lho tem, de fato, afinidade com o universo ficcional bar-
thelmeniano; mas Rubem deixa esses metaficcionistas todos
no chinelo (Robert Coover, Donald Barthelme, John Barth,
Thomas Pynchon – bom apenas em O Leilão do Lote 49 –,
isso sem falar nos que vieram na rabeira dessa turma, como
o superestimado David Foster Wallace – tentei ler Infinite
Jest duas vezes e não rolou de jeito nenhum); porque Rubem
de fato é um artista; porque Rubem sabe que coisas como
verossimilhança não podem simplesmente ser depostas por
decreto; porque Rubem sabe que a literatura nunca foi e ja-
mais será apenas um monte de papeis tingidos com tinta ti-
pográfica.
SECREÇÕES, EXCREÇÕES E DESATINOS
(2001)

Os quatro livros de contos que Rubem Fonseca lançou


entre 2001 e 2011 estão entre seus melhores, não só pela e-
xuberante quantidade de bons contos contidos neles, mas,
sobretudo, pela miraculosa quantidade de contos extraordi-
nários. Creio que o melhor desses livros, quantitativa e quali-
tativamente, seja o Secreções, Excreções e Desatinos, de
2001; um pouco atrás fica o Pequenas Criaturas, de 2002,
que, embora tenha duas das maiores realizações ficcionais de
Rubem, os contos A Escolha e Escuridão e Lucidez, além de
outros doze excelentes (que sem dúvida figuram no the best
of do autor), por outro lado também carrega uma quantidade
considerável (dezesseis) de contos apenas medianos; depois,
Ela e Outras Mulheres, de 2006, que, dos vinte e sete contos,
tem onze entre ótimos e excelentes e dois que talvez sejam
obras-primas, Joana, e, mais certamente, Karin; por fim, Axi-
las e Outras Histórias Indecorosas, de 2011, que dos dezoito
contos tem catorze que estão entre bons e ótimos. Essa ex-
celência toda caracteriza, portanto, a primeira década do sé-
culo XXI como o grande momento de Rubem Fonseca, seu
apogeu criativo, período em que testemunhamos seu pleno e
maduro domínio da arte ficcional (a produção desse período
é superior à dos anos 1960 e indiscutivelmente superior à
dos anos 1990; talvez os livros de 2001-2011 superem até
mesmo o que Rubem produziu nos anos 1970; quantitativa-
mente sem dúvida que superam – e tenho a suspeita de que
não só quantitativamente).
Reler Secreções, Excreções e Desatinos me deu uma
sensação parecida com a que tenho ao reler William Shakes-
peare (e lembrei-me de ter tido essa impressão nas outras
vezes em que reli Secreções etc.); ou seja, tive a impressão de
testemunhar um conteúdo fortemente mítico, arcaico e, ao
mesmo tempo, perfeitamente atual. Rubem Fonseca, por ter
o senso do eterno e do perene (especialmente nessa fase tar-
dia de sua produção), jamais incorre em provincianismos
temporais para caracterizar o presente; Secreções, enfim, tem
uma voz sem hesitação cuja solidez se relaciona necessaria-
mente com esse alicerce mítico, atemporal, eterno.
Não por acaso esse é o único livro de Rubem Fonseca
em que o sobrenatural se faz presente (em quatro contos),
sendo tal presença não o centro do interesse narrativo, mas
apenas um dos dados das circunstâncias em que os persona-
gens se veem (fazendo um paralelo: é como na peça Hamlet,
que tem um fantasma, mas não é uma história de fantasmas;
parece-me óbvio que qualquer pessoa madura sabe que o u-
niverso tem de tudo, inclusive assombrações; reações exage-
radas a isso apenas denotam personalidades constrangedo-
ramente pueris).
O mundo de Secreções, Excreções e Desatinos é um
mundo de personagens que, por meio de uma talvez justa,
talvez exacerbada autoconsciência, aparentemente afastaram
a ameaça de serem esmagados por esfinges indecifráveis;
pessoas que foram sábias para constatar que, embora as leis
últimas que determinam a causalidade do mundo não sejam
acessíveis a nosso conhecimento (engloba-se aí o sobrenatu-
ral), podemos discernir um grande número de regras sobre o
funcionamento da realidade, e sem dúvida as discernimos;
dessa forma nos concedemos uma pequena salvação através
do conhecimento (não, não se trata de alguma idiotice ilumi-
nista do tipo “projeto de emancipação total do homem”) e
adquirimos, assim, uma talvez suficiente ciência do bem e do
mal para sermos razoavelmente justos sentenciadores e exe-
cutores de sentenças; no mais, nossas conquistas cognitivas
todas talvez não passem de copromancias, de um eterno e
quase ridículo deslindar da merda, mas, por que não?, se é
isso que nos cabe como espécie, sejamos os melhores co-
promantas que pudermos.
Toda essa autoconsciência irônica (mas não autodepre-
ciativa) está espalhada pelos catorze contos de Secreções,
Excreções e Desatinos, como veremos a seguir. (Falei da
sensação meio shakesperiana que esse livro me dá; sim, sem
dúvida, mas acrescentaria outro autor teatral elisabetano, o
fictício Richard Wharfinger, personagem de O Leilão do Lo-
te 49, romance de Thomas Pynchon lançado em 1966; den-
tre os vários pendores que Rubem Fonseca tem estão tam-
bém o pendor para o burlesco, o grotesco e o farsesco; nesse
sentido ele é mais wharfingeriano do que shakesperiano; A
Tragédia do Mensageiro, peça fictícia desse autor fictício, é
hilária – “um desenho do Papa-Léguas escrito em versos
brancos” – e sinistra, combinação frequente na ficção de
Rubem.)
O conto que abre Secreções etc., Copromancia, conta a
história de um sujeito que, a partir do interesse solipsista pe-
las próprias fezes, descobre nelas uma linguagem que ex-
pressa conteúdos precognitivos; esse conhecimento, contu-
do, não o livra de ser alcançado pelos misteriosos desígnios
do destino, contra os quais nada poderá fazer; Coincidências
é um bom e tipicamente fonsequiano conto de ação envol-
vendo submundo, matador de aluguel, etc.; Agora Você (ou
José e Seus Irmãos) é um conto desnecessário que mostra
pessoas desnecessárias falando coisas desnecessárias numa
desnecessária sessão de terapia em grupo; A Natureza, em
Oposição à Graça mostra um sutil pacto demoníaco (obser-
vem bem: os pactários estão lá) em que, curiosamente (ou
aparentemente), o príncipe das trevas, numa interessantíssi-
ma manifestação inconspícua, não pede nada em troca para
o beneficiário de seus prodígios; O Estuprador cumpre a
tremenda façanha de desdefinir estupro; Belos Dentes e um
Bom Coração mostra um sentenciador que realmente com-
preende seu próximo e faz da mentira uma serva da verdade;
Beijinhos no Rosto é um dispensável conto sobre câncer,
tentativa de suicídio, etc. (se eu, Eduardo Haak, fosse propor
uma regra de ouro para se escrever boa ficção, a regra seria:
jamais crie um personagem idiota, ou seja, fantasioso a res-
peito de si mesmo, inconsequente, inábil, inepto, pueril; ja-
mais crie um personagem que não consegue transcender as
constrições que lhe são impostas por sua vidinha; de alguma
forma esse conto do Rubem me fez pensar nessas coisas);
Aroma Cactáceo é outro bom conto sobre matadores de a-
luguel; Mulheres e Homens Apaixonados é uma comédia-
tragédia de erros tremendamente engenhosa e cheia de ver-
dades sobre destino, escolhas e nossa aparentemente incoer-
cível tendência para o erro; A Entrega é um conto de ação
enigmático, elíptico e, ao mesmo tempo, muito claro no que
oferece aos nossos olhos; Mecanismo de Defesa é um conto
óbvio sobre masturbação, protagonizado por alguém que
não consegue transcender as constrições impostas por sua
vidinha; Encontros e Desencontros é um conto leve, mas
rigorosamente concebido, com peripécia, reconhecimento,
etc.; por fim, O Corcunda e a Vênus de Botticelli, que talvez
seja a mais esplendorosa peça ficcional já escrita sobre a se-
dução (o último conto do livro na verdade é Vida, um dis-
pensável e breve texto sobre flatulência); sem dúvida que O
Corcunda etc. é um dos mais excepcionais contos já escritos
por Rubem Fonseca; o conto ecoa a famosa cena de Ricardo
III, de William Shakespeare, em que Richard Gloucester se-
duz Lady Anne (em frente ao cadáver do marido dela!, mari-
do assassinado por ele, Dick Vigarista!); porém, o corcunda
shakesperiano é um sujeito ameaçadoramente aliciador (ape-
sar das palavras blandiciosas com que corteja Anne), ao pas-
so que o corcunda fonsequiano é inteligente, paciente, estra-
tégico – ou seja, sedutor de fato; sua prosódia tem uma e-
nigmática afinidade com a prosódia extravagante de outro
grande personagem de Rubem, o anão José Zakkai, o Nariz
de Ferro (de A Grande Arte), embora nada haja de extrava-
gante nos pensamentos e na expressão verbal do corcunda;
de alguma forma Rubem Fonseca conseguiu caracterizar in-
diretamente e numa linguagem sóbria sua deformidade física,
sem usar símbolos explícitos do disforme; talvez Rubem te-
nha alcançado esse resultado através da profunda autocons-
ciência do personagem (que sabe que sua aparência grotesca
é um dado incontornável; Zakkai também é um grotesco as-
sumido e altamente autoconsciente, embora se expresse de
modo diverso, etc.).
Falei lá atrás que a regra de ouro para se escrever pés-
sima ficção é criar um personagem que não consegue trans-
cender as constrições que lhe são impostas por sua vidinha,
que não consegue superar o ramerrão, etc.; o corcunda fon-
sequiano consegue, a despeito daquela desalentadora (e ver-
dadeira) afirmação de Sigmund Freud, de que anatomia é
destino. Um personagem idiota se serviria desse destino em
particular (anatômico) para sentir (e estimular no próximo)
pena de si mesmo. Já o personagem prodigioso (o determi-
nado, o audaz, etc.) acaba fazendo desse mesmo destino algo
bem, bem mais interessante: fazendo dele aquilo que bem
entender.
AXILAS E OUTRAS HISTÓRIAS INDECOROSAS
(2011)

Sua mulher se tornou um estorvo e dar o bilhete azul


pra ela será uma aporrinhação dos diabos? É simples: embe-
bede-a e a jogue do vigésimo andar. Um chato vive insistin-
do em te contar piadas idiotas? Estrangule-o. Você odeia
mulheres burras, tatuadas e com peitos de silicone? Esgane-
as todas. Seu filho, que era um bebezinho lindo (apesar de
ter Síndrome de Down), se tornou um adulto feio, gordo e
extremamente malcriado? Dê-lhe uma facada no coração.
Sim, esses enredos não deixam dúvidas de que a misantropia
é o assunto fundamental de Axilas e Outras Histórias Inde-
corosas, livro que Rubem Fonseca lançou em 2011 (até o
presente momento é seu último grande livro). Diferentemen-
te de outro misantropo fonsequiano, o cobrador, que em
1979 saía por aí matando, estuprando e decapitando para
cobrar uma suposta dívida social, os homicidas de Axilas etc.
não têm qualquer motivação política – eles agem como agem
simplesmente porque o homem, se formos observar bem,
está sempre a um passo de sentir repulsa de seus semelhan-
tes (o que significa dizer que o homem está sempre a dois
passos do ódio e, hum, a uns três passos de virar um assassi-
no).
Ama a humanidade, detesta seu próximo, como dizia
Edmund Burke; ou quanto mais trivial o defeito, maior a
raiva que ele provoca (não me lembro quem é o autor dessa
frase). Pensando aqui se a motivação desses misantropos
homicidas todos do Rubem Fonseca não seria fundamen-
talmente estética (creio que sim e já, já elaboro isso) lembrei-
me de uma passagem de um romance de Jean-Paul Sartre
que li quando tinha dezessete, dezoito anos (não me lembro
em qual livro foi; Sartre pra mim é literatura infanto-juvenil
da pior espécie, ou seja, aquela que não dá pra reler quando
viramos adultos). O tal personagem sartriano, sem dúvida
um misantropo, tece uma curiosa fantasia homicida ao ob-
servar uma vulgarérrima e banal prostituta – imagina-se fa-
zendo um monte de furos com um revólver (objeto que ele
descreve como “aquela coisa que explode e faz barulho”) ao
redor do umbigo da mulher. Se eu me lembro razoavelmente
da cena, o sujeito sente muita vontade de rir do que imagi-
nou – uma mulherzinha grotesca com um monte de furos de
bala lhe emoldurando o umbigo. A questão do sujeito, por-
tanto, não era exatamente matá-la, mas matá-la de forma ri-
dícula. Seu julgamento, portanto, era, antes de mais nada, um
julgamento estético.
Cultivo alguma suspeita de que o mundo pode realmen-
te se tornar um lugar insuportável talvez menos por sua ten-
dência às catástrofes (guerras, desastres naturais, epidemias)
do que pela tendência que o homem tem para o mau-gosto e
pela vocação que ele tem para criar e disseminar coisas idio-
tas – pensamentos capengas, clichês, novelas e séries de tele-
visão (dizem que quando um imbecil está morrendo afogado
ele vê passar em sua mente não um filme, mas uma novela
das oito, inteirinha; a piada é ótima, ou seja, quem contá-la
corre pouco risco de ser estrangulado por um misantropo
fonsequiano); falei em mau-gosto, que de modo algum pode
ser subestimado; embora a apreciação do belo possa parecer
moralmente neutra (e para alguns até mesmo uma coisa frí-
vola), a falta de discernimento estético costuma vir acompa-
nhada da falta de discernimentos outros; o ser simplório
(que, aliás, costuma declarar sua simploriedade com muito
orgulho) invariavelmente amesquinha a vida com suas atitu-
des, opiniões e preferências, preferências estéticas inclusive –
sua influência, portanto, acaba não sendo moralmente neu-
tra. Lembro-me de discutir com amigos que a mediocridade
arquitetônica de certos balneários (Vila Caiçara, Praia Gran-
de, por exemplo) tinha uma evidente relação com a mentali-
dade de seus frequentadores – operários simplórios do
ABCD, farofeiros, caipiras e cafonas das mais diversas pro-
cedências; e que o Guarujá, por mais avacalhação que tenha
sofrido com a passagem dos anos, sempre foi e sempre será
um lugar onde foram construídos prédios projetados pelo
arquiteto modernista Gregori Warchavchik e que isso, sem
dúvida, tem relação com a mentalidade, senão de seus fre-
quentadores atuais, ao menos dos antigos; e que essa exce-
lência em particular pode ser desencadeadora de excelências
outras, de despertares cognitivos, etc.
Eu sei o quanto pode ser temerário afirmar que o bur-
ro, o inepto, o cafona sempre está muito próximo de se tor-
nar um malfeitor (a simples experiência desmentirá isso a-
bundantemente); outra dificuldade ao se abordar esse assun-
to é que, por a experiência, por o arrebatamento estético nos
ocorrer de forma pré-conceitual, nossas opiniões estéticas
nunca deixarão de ser, em alguma medida, preconceitos,
sendo que todos sabemos que os preconceitos não são admi-
tidos como testemunhas legítimas para a confirmação de
verdades (ainda que um preconceito, sem dúvida, possa a-
firmar algo rigorosamente verdadeiro).
A despeito disso tudo lá estão os misantropos fonse-
quianos, experimentando um infinito fastio com a chinfrim
espécie humana e sentenciando à morte mulheres burras, ta-
tuadas (uma tatuagem logo acima do cóccix em que se lê,
“Jesus Salva!”) e siliconadas, porque a simples presença de
uma pessoa com essas características na tessitura do real é
necessariamente deletéria, sem nenhum atenuante. A lei que
rege esse universo ficcional em particular não é a lei da razo-
abilidade e da tolerância, tampouco a lei daquilo que é realis-
ticamente verossímil, mas uma primitiva lei psicológica que
nos predispõe a querer eliminar tudo aquilo que atravanca
nosso espaço vital; Rubem Fonseca faz com frequência um
uso interessantíssimo desse recurso, o anacronismo (injetar
uma ética arcaica numa situação cheia de referências con-
temporâneas). Há nisso tudo um desmascaramento do ho-
mem supostamente civilizado, uma afirmação de que não
precisamos cavar muito para encontrarmos em nosso interi-
or sítios arqueológicos dos mais macabros, onde correm rios
de sangue, etc.? É claro que há. E nada há propriamente de
novo nesse desmascaramento.
Nem todos contos de Axilas e Outras Histórias Indeco-
rosas são a respeito de a convivência entre os homens ser
uma verdadeira arte das sensações insuportáveis (uma ótima
definição de Michel Foucault para tortura); Paixão, embora
mostre um marido que decidiu eliminar uma esposa megera,
é uma engenhosíssima história de crime quase perfeito, cheia
de reviravoltas, etc.; Axilas, Mordida, Confiteor e Janela Sem
Cortina (esse conto colocou em circulação a palavra cruci-
verbalista, que é o profissional que monta palavras cruzadas)
também são histórias de crime, com elementos de fetichismo
erótico; o conto mais atípico de Axilas etc. (talvez o melhor
e, sem dúvida, um dos melhores de Rubem Fonseca) é o que
abre o volume, Sapatos.
Pode-se dizer que Sapatos é a mesma história narrada
por Alberto Moravia no conto O Terror de Roma, que é a
mesma história narrada por Plínio Marcos na peça Dois Per-
didos Numa Noite Suja – o sujeito que acha que o mundo o
rejeita porque ele não tem um par de calçados que preste e
que sua sorte, sem dúvida nenhuma, vai mudar quando esti-
ver usando uns pisantes bacanas; na verdade no conto de
Rubem quem é apegado a essa ilusão quanto ao poder con-
tido num par de sapatos novos é a mãe do sujeito descalço;
o sujeito no fundo sabe que sapatos são apenas sapatos, ou
seja, ele sabe que ninguém, tampouco um mero objeto feti-
chizado, pode fazer por ele aquilo que por negligência ele se
abstiver de fazer; isso o coloca numa perspectiva muito dife-
rente (muito superior) da dos personagens descalços do Al-
berto Moravia e do Plínio Marcos; no caso de Plínio, é o a-
pego de Tonho à ilusão pueril de que sua vida seria total-
mente diferente se ele tivesse sapatos bons que permite que
ele seja tão terrivelmente manipulado pelo crápula do Paco;
em suma, os Tonhos da vida, enquanto insistirem em depo-
sitar esperanças descabidas em coisas exteriores a eles mes-
mos (em políticos, em líderes religiosos, em pares de sapa-
tos, etc.), permanecerão vulneráveis aos aliciamentos feitos
por demagogos, manipulações, etc.
O descalço fonsequiano acaba ganhando da mãe um
par de sapatos novos, bonitos, importados (obtidos de for-
ma suspeita, etc.). Os sapatos, porém, têm um número me-
nor do que o que ele usa (“pé de pobre não tem tamanho”);
eles apertam e doem, mas ele os calça e insiste em andar com
eles, desafiador, vamos ver só quem manda aqui, você não
sabe com quem se meteu. Após muita dor, sofrimento e de-
terminação, os sapatos terminam por lacear – sim, quem
manda ali é o sujeito; quem escolhe o que fazer com sapatos
apertados é o sujeito; quem coloca um mero par de sapatos
em seu devido e insignificante lugar é ele (e apenas ele): o su-
jeito.
Gosto muito desse sujeito e de sua atitude toda.
ELA E OUTRAS MULHERES (2006)

Talvez o conto que represente a síntese, a unidade de


um livro (de contos) seja aquele que imediatamente vem à
nossa memória quando pensamos, “tal livro, aquele que tem
aquele conto assim, assim”. Em Ela e Outras Mulheres, livro
que Rubem Fonseca lançou em 2006, esse conto para mim é
Karin. Há vários contos excelentes nesse volume, mas preci-
so me esforçar um pouco para evocá-los, “ah, aquele conto
assim, assim, tá, agora lembrei”. Talvez o que explique a faci-
lidade com que Karin venha à minha memória é que ele seja
o excelente entre os excelentes (nem sempre é o caso; um
conto menor do livro Pequenas Criaturas, O Bordado, é es-
pecialmente memorável apenas por um de seus personagens,
um tatuador, ter um modo muito peculiar de falar); sobre a
excelência de Karin, é claro que isso tem a ver com o fato de
ele ser um conto engenhoso (peripécia e reconhecimento es-
tão lá), mas de modo algum o conto se esgota nessa defini-
ção – o que o alça à verdadeira (e imensa) grandeza é que ele
é um dos mais realistas (não apela em nenhum momento à
nossa suspensão temporária da incredulidade) e trágicos que
Rubem já escreveu.
Seu protagonista, que conhecemos pela alcunha de
Gordo, é um simplório e manso porteiro de prédio que não
cultiva maus pensamentos sobre nada e sobre ninguém (nem
sobre si mesmo), que aparentemente não tem recalques, res-
sentimentos, rancores, alguém cuja saciedade existencial se
consuma de forma absolutamente plena ao se encher de pão
com manteiga e doce de leite (as melhores coisas que exis-
tem no mundo para nosso mal-aventurado pobre de espírito,
pois, como logo veremos, será dele o reino das trevas).
Sendo o sujeito um manso, um inofensivo que está lá
no cantinho dele, só abrindo o portão para os moradores e
engordando (e às vezes se masturbando com as revistas jo-
gadas fora que ele encontra na lixeira do prédio), em que hy-
bris (arrogância) ele poderá incorrer que o levará à hamartia
(erro trágico), especificamente à tragédia do descontrole e da
incontinência? Os termos simploriedade e arrogância pare-
cem contraditórios, mas na verdade não são; a hybris que
frequentemente está no cerne da criatura simplória é ignorar,
arrogantemente, seu próprio lado sombrio, é julgar-se sem
imaginação ou propensão para o mal (a ninguém será lícito
ignorar as próprias sombras, pois poderá facilmente ser do-
minado por elas, afirmação essa que é um possível corolário
do conhece-te a ti mesmo). Nosso infausto Gordo parece
sequer pressentir as insaciedades outras que carrega dentro
de si (ele não sabe, ou finge não saber, que nem só de pão
com manteiga vive o homem, etc.); e que, ao ignorar tais in-
saciedades, está deixando desguarnecido o flanco por onde a
catástrofe (e sua progressão fulminante) invadirá sua vida.
As adolescentes do prédio o tratam de forma jocosa,
mas afetuosa, lhe dão barras de doce de leite de presente,
toma, Gordo, etc. Duas vão a um baile de carnaval e no
meio da madrugada uma delas, a Karin, chega de táxi, sozi-
nha, bêbada, dizendo que não está se sentindo bem. O pres-
tativo Gordo sai da guarita e a ajuda a se locomover, sugere
que ela se deite um pouco e a conduz ao quarto usado pelos
funcionários do prédio. Então um contato corporal não
premeditado acontece entre os dois – a garota se desequili-
bra e um de seus seios acaba pressionando a carne enxundi-
osa do Gordo. Ele, que nunca tinha tido um contato corpo-
ral daquele tipo, sente como se um raio o tivesse atravessa-
do.
Gordo empurra Karin para o sofá e consuma um rápi-
do, agônico e constrangido estupro. A garota começa a cho-
rar e ele pede desesperadas desculpas, pelo amor de Deus,
não sei onde eu estava com a cabeça, me perdoa, etc. Ela in-
siste que vai denunciá-lo à polícia, então o Gordo a agarra
pelo pescoço e a mata por esganadura (constrição mecânica
do pescoço feita com as mãos, diferente do estrangulamento,
que é feito com laço, corda, etc.). Em seguida, Gordo arrasta
seu corpo até a caixa d’água do prédio, levanta sua tampa e o
arremessa lá. Abandona a portaria e vai até uma agência ban-
cária, que ainda está fechada, para sacar o dinheiro que tem
na poupança, com o qual pretende fugir.
Um trabalhador, sem nenhum antecedente desabona-
dor, alguém que jamais cometeu qualquer tipo de violência,
um sujeito prestativo, solícito, portador de bons sentimentos
como gratidão em poucos e desgraçantes minutos se torna
um estuprador e um assassino (subjugado pelo impulso erra-
do para matar, aquele que todo homem tem, segundo Ma-
teus, de A Grande Arte, que é quem percebe, durante uma
briga na Boca do Lixo paulistana, que o boliviano Camilo
Fuentes tem o raro instinto certo, cooptando-o assim para o
Escritório Central). Em face dessa ambiguidade e complexi-
dade toda esperarmos que a conta um dia feche porque está
determinado que caberá à Justiça (ordenamento jurídico,
“dos delitos e das penas”, etc.) pronunciar sobre o Gordo a
palavra última, a palavra definitiva, a palavra restauradora da
ordem cósmica, é sermos tremendamente ingênuos – a Justi-
ça é, quando muito, um mero sistema de disciplina social, e
apenas isso (coibir delitos com a ameaça de punição, tirar
vagabundos de cena, etc.). Só a ficção, a poesia trágica, é ca-
paz de dar uma última palavra de tamanha envergadura.
(Quaisquer outros discursos sobre o fato, feministas denun-
ciando feminicídio, etc., igualmente não passam de meros,
ainda que legítimos (o.k., o Gordo cometeu um crime terrí-
vel, estuprou e matou uma jovem, portanto merece apodre-
cer na cadeia), conclames à disciplina social.
Para muito além dessas questõezinhas, que só empol-
gam talentos inferiores como Albert Camus, está nosso Ru-
bem Fonseca, que nessas páginas em particular demonstrou
ser um poeta trágico que pouco (ou nada) fica a dever àque-
les gregos famosos, Sófocles, Ésquilo e Eurípedes. Lemos a
história do Gordo e sentimos imenso horror e piedade com
seu trágico destino. E isso simplesmente porque, por mais
que no fundo ele fosse mesmo um arrogante (por insistir na
arrogância de ignorar-se, por supor-se inalcançável pelo mal,
etc.), ele não merecia acabar sendo uma tão absoluta vítima
de si mesmo.
PEQUENAS CRIATURAS (2002)

A humanidade é um monte de merda, assim sentencia o


demoníaco e fanfarrão José Zakkai, de A Grande Arte, após
torturar e matar o assassino profissional Rafael (o anão Zak-
kai introduz em sua cavidade bucal uma barata viva e o gol-
peia várias vezes com uma tesoura de podar rosas). Curioso
(talvez mais do que meramente curioso) que esse livro, que
está cheio de grandes canalhas, provavelmente os maiores
que Rubem Fonseca já criou, tenha a palavra grande no títu-
lo; e que o Pequenas Criaturas, livro povoado apenas por
canalhas chinfrins (quando canalhas, já que alguns não têm
tônus nem para isso), tenha no título a palavra pequeno.
Lançado em 2002, Pequenas Criaturas é um livro de
contos com finais felizes, o que a rigor o caracteriza como
um livro cômico (comédia tradicionalmente é o tipo de his-
tória em que as coisas dão certo no final – as pessoas conse-
guem o que desejavam, casamentos são feitos, mal-
entendidos são desfeitos, reconciliações ocorrem, em suma,
as coisas se consumam em variados ritos de integração). Mas
sendo Rubem Fonseca o autor que é, seus finais felizes são
bastante ambíguos e duvidosos; os êxitos que seus pequenos
personagens alcançam são medíocres e sua duração não de-
verá ser muito extensa. No mundo de Pequenas Criaturas
ninguém tem apontado contra si o dedo de um demônio a-
cusador (não há um José Zakkai para lhes dizer, a humani-
dade é um monte de matéria fecal); a presença do mal, por-
tanto, é difusa, volátil, atmosférica, soft, parcelada em 48
prestações, etc.; não temos um Zakkai, mas podemos contar
com coachings, equipes de trabalho, aliciadoras frases de au-
toajuda, mulheres narcisistas, ciumentas e ranhetas (do tipo
que questionam por que William Shakespeare, um homem,
um homem misógino, etc., foi eleito a personalidade do mi-
lênio). Todo mundo, nesse mundinho, acaba realizando seus
sonhos – e poucos, dentre esses, percebem a imensa ironia
que sempre há nessas circunstâncias aparentemente felizes
em que sonhos são realizados.
De fato, as tais pequenas criaturas fonsequianas invari-
avelmente conseguem o que querem: uma mulherzinha ciu-
menta e possessiva consegue que o relutante namorado tatue
no pênis o nome dela, Maria Auxiliadora; outra mulherzinha,
de forma surpreendentemente engenhosa e astuciosa, conse-
gue engravidar de seu ídolo; uma fulaninha, atriz de terceiro
time da TV, consegue o posto de madrinha de bateria de
uma escola de samba (ainda que a madrinha preterida se vin-
gue atacando a atrizinha com uma navalha); um casal de lés-
bicas consegue enfim viver juntas, na casa do pai de uma de-
las, um ex-homofóbico; um sujeito que perdeu a dentadura e
ficou paralítico num incêndio consegue ganhar uma cadeira
de rodas e uma dentadura nova; um sujeito, que embora fra-
casse ao tentar escrever um livro, consegue esganar a vizinha
que sempre o chama de gordo molenga; um ignóbil espreita-
dor enfim consegue favores sexuais de uma vizinha atraente;
uma velhota igrejeira consegue convencer a amiga, outra ve-
lhota igrejeira, que dar esmolas só atrai cada vez mais mise-
ráveis para o bairro delas e que os mendigos em geral não
passam de farsantes; um aleijado consegue enfim parar de
esconder sua parte mutilada quando está com mulheres em
situação íntima; uma balzaca ainda atraente consegue se se-
parar do marido que, embora seja um homem decente, gene-
roso, etc., é baixinho e gorducho.
Poucos personagens de Pequenas Criaturas são dados a
resoluções radicais, violentas; há um pai que vinga a morte
da filha, matando a tiros o sujeito que a atropelou; há um la-
drão que, contrariando o conselho do avô, um português
ventanista, decide praticar assaltos à mão armada. Dos pou-
cos personagens que percebem a sinistra ironia das circuns-
tâncias em que se encontram, o mais notável é o protagonis-
ta de A Escolha, o tal sujeito que consegue uma dentadura e
uma cadeira de rodas. (Eu tenho esse breve conto – cinco
páginas – como tão rigorosamente perfeito, como tão es-
plendoroso, que uma vez o decorei inteiro.) E o único conto
do livro que não retrata vidinhas, que é protagonizado por
dois grandes personagens (um deles uma figura enigmática e
provocantemente sedutora, talvez um demônio, talvez o
demônio da falsa luz, talvez o demônio das trevas falsamente
triunfantes, talvez um híbrido dos dois), é o virtuosístico e
soberbo Escuridão e Lucidez.
Embora esses dois contos, justamente os que têm os
personagens mais extraordinários de Pequenas Criaturas, se-
jam os melhores do livro (e certamente estão entre os me-
lhores do Rubem Fonseca), não deixo de pensar que um
personagem medíocre possa ser bastante desafiador para um
ficcionista; o medíocre tende a ser retratado ou com escárnio
ou com complacência, que podem ser (e costumam de fato
ser) duas saídas banais, ficcionalmente falando; puxando um
exemplo oriundo das artes plásticas, o pintor Iberê Camargo
conseguia resultados artísticos soberbos retratando a medio-
cridade humana, velhotas com ar debiloide, etc., sem ser
complacente ou escarnecedor (acho que essa série do Iberê,
das velhotas, etc., se chama retratos cretinos). Creio que Ru-
bem tenha se saído muito bem desse desafio imposto pelo
personagem espesso realizando seus sonhos; os efeitos que
tais personagens desencadeiam são sutis e, até certo ponto,
limitados por um certo imediatismo, espacial e temporal;
sendo tão intranscendentes e incapazes (velhotas fofoquei-
ras, mulherzinhas faladeiras, periguetes ambiciosas, etc.), es-
sas pequenas criaturas parecem também incapazes de criar e
difundir qualquer tipo de malignidade de fato maligna; mas
sua simples e espessa presença acaba por difundir um mal-
estar, uma toxidade que nos leva à conclusão de que a medi-
ocridade não é uma força moralmente neutra – que, apesar
de sua irrelevância, o medíocre trabalha, sim, para o princí-
pio do mal, da catástrofe, da desagregação.
Não tenho dúvida, portanto (e Rubem Fonseca certa-
mente não tem), de que por trás dos coachings, das equipes
de trabalho, dos propagadores de frases de autoajuda, dos
manipuladores, dos influenciadores, dos aliciadores, de mu-
lherzinhas chatinhas que coagem namorados a tatuarem o
nome delas no pênis, de mulherzinhas ranhetas que chamam
Shakespeare de misógino, etc., não tenho dúvida de que por
trás disso tudo, dessa malignidade macia, espargida de forma
difusa, volátil, atmosférica, em 48 suaves prestações, etc., es-
teja de fato o princípio do mal – vejo nitidamente ali, na
moita, o chefão de um bandinho de medíocres testas de fer-
ro, sim, ele, o demônio da falsa luz (ou o demônio das trevas
falsamente triunfantes, provavelmente um híbrido dos dois),
fazendo um tremendo trabalho de destruição do mundo ao
torná-lo, simplesmente, um lugar insípido.

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