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GNOSE

ESTUDOS ESOTÉRICOS
Dados de Catalogação (CIP) Internacional
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mouravieff, Boris.
Gnose: estudos esotéricos / Boris Mouravieff; tradu­
ção Roberto Mara. — São Paulo : ícone, 1989. —
(Coleção esoterismo)

ISBN 85-274-0082-0

1. Ciências ocultas 2. Gnosticismo I. Titulo.


II. Série.

CDD—299.932
89-0210 -135.4

índices para catálogo sistemático:

1. Esoterismo : Ocultismo 135.4


2. Gnose : Esoterismo : Ocultismo 135.4
3. Gnosticismo : Religião 299.932
Boris Mouravieff

GNOSE
ESTUDOS ESOTÉRICOS

Traduçãor

Roberto Mara

Tcone
editora
^Copyright 1989 by ícone Editora Ltda.

Produção: Anízio de Oliveira

Capa: Wagner Veneziani Costa

Revisão: Luiz Roberto S. Seabra Malta

Todos os direitos reservados.


Proitída a reprodução total ou parcial desta obra.

ÍCONE EDITORA LTDA.


Rua Anhagúera, 56/66 - Barra Funda
01135-São Paulo-SP.
Tefe. (011) 826-7074/826-9510
O AUTOR

Falecido, na Suiça, Boris Mouravieff foi um destacado


estudioso da história russa. Ensaísta e difusor da filosofia
esotérica. Editou durante os anos em Bruxelas a revista
Syntheses, publicação especializada em temas tradicionais.
Ditou seminários sobre o esoterismo na Universidade de
Genebra e criou, nessa cidade, o Centro de Estudos Cris­
tãos Esotéricos.
Seu estudo do Ciclo Esotérico foi escrito por ordem e
sob controle da Grande Confraternidade Esotérica e foi ex­
traído diretamente das fontes da Tradição cristã: textos sa­
grados, os comentários de que foram objeto - em especial
essa soma que representa a Filocalia - e, finalmente, o en­
sinamento e a disciplina, assim como foram transmitidas
pelas pessoas regularmente investidas.
ADVERTÊNCIA AO LEITOR

As pessoas interessadas nos problemas esotéricos pro­


vavelmente leram a obra de Pedro Ouspensky intitulada
Fragmentos de um ensinamento desconhecido, publicada
pelos seus herdeiros. As idéias que ali se encontram foram
reunidas pelo autor através de seus contatos com “G". E
"G" indica qual seria a base do seu ensinamento: “Para
benefício dos que já sabem, direi, se assim o querem, que
é o Cristianismo esotérico".
é curioso, levando isso em conta, que o título fale de
um ensinamento desconhecido. A Tradição esotérica cristã
sempre esteve viva em certos conventos da Grécia, Rússia
e outros lugares. E se é certo que esse conhecimento se
envolveu de hermetismo, sua existência era conhecida e seu
acesso jamais foi proibido àqueles que seriamente se inte­
ressassem por tais problemas.
Ainda que algumas passagens possam dar a impressão
de que se trata, a partir de certo ponto de vista, de uma
espécie de sincretismo de diferentes ensinamentos tradicio­
nais, não duvidamos que, no essencial, os fragmentos do
sistema exposto na obra de Ouspensky têm sua origem na
revelação da Grande Confraternidade esotérica, a qual o
Apóstolo São Paulo faz alusão na sua epístola aos Roma­
nos.1 Como consequência, esses fragmentos foram extraí-

1. Romanos, VIII, 28-30.

7
dos da verdadeira fonte. Não obstante, como o título o
indica, o livro de Ouspensky não contém mais que frag­
mentos de uma Tradição que até uma recente época foi
transmitida por via oral, e cujo estudo no seu conjunto
constitui a única possibilidade de acesso à Revelação.
Nossas relações com Pedro Ouspensky, a quem muito
conhecemos, foram narradas em um artigo da Revista Syn-
theses.2 Devemos destacar que apesar do vivo desejo de
publicar seu trabalho em vida, Ouspensky sempre hesitou
em fazé-lo. Insistimos mesmo com o risco de uma divulga­
ção fragmentária e na inexatidão do exposto sobre certos
pontos essenciais. Apóia nossas afirmações o fato de que
Fragmentos tenha sido publicado somente depois da morte
do autor, mais de 20 anos depois de ter concluído sua
redação.
O estudo que aqui apresentamos provém diretamente
das fontes da Tradição cristã oriental: os textos sagrados,
os comentários de que foram objeto — em especial essa
suma que representa a Filocalia — e, finalmente, o ensina­
mento e a disciplina tal como as transmitiram as pessoas
regularmente investidas. Encontram-se, pois, semelhanças
entre o conteúdo do nosso estudo e a obra de Ouspensky,
já que as fontes são, em parte, as mesmas. Porém, uma
atenta comparação deixará claro o caráter incompleto
dessa obra, bem como os erros e os desvios que implicam a
respeito da doutrina. Conhece-se a grande importância dos
esquemas na Tradição esotérica, concebidos para permitir
a transmissão do Conhecimento através dos séculos, apesar
da morte das civilizações. Os erros de base num esquema
de particular importância já foram expostos no artigo men­
cionado de Syntheses. Além disso, o que dizer do lugar
dado ao homem no esquema intitulado "Diagrama de
todas as coisas vivas?" Depois de tantas considerações que
tendem a mostrar a "nulidade" do homem não evoluído
esotericamente e o ínfimo lugar que lhe corresponde no
Universo, é colocado, nesse esquema artificialmente com­
plicado, no nível dos Anjos e dos Arcanjos. Isto é, no Rei-

2. Wolune Saint-Lambert, Bruxelles, edição 144, novembro de 1957.

8
no de Deus, que figura no esquadro superior, ainda que
Cristo tenha afirmado categoricamente que a entrada nesse
Reino está proibida àqueles que não alcançaram o segundo
Nascimento3, objetivo e meta do trabalho esotérico. Se­
gundo o Evangelho,4 o lugar do homem exterior — aquele
em quem este trabalho ainda não produziu frutos, mas
cujas faculdades latentes estão-se desenvolvendo — no
esquema acima citado, encontra-se entre os dois esqua­
dros, onde ele forma o laço entre o mundo visível e o mun­
do invisível. Poderíamos multiplicar os exemplos desta
natureza.
Existe algo mais grave: o conceito de homem-máquina
traz como consequência sua irresponsabilidade, a qual está
em contradição formal com a doutrina do pecado, do
arrependimento e do acesso à salvação, base do ensinamen­
to de Cristo.
Toda a boa-fé, a inteligência humana e a boa vontade
não bastam para impedir os erros e os desvios em tudo o
que se refere ao campo da Revelação e que não se inspira
total mente nela. Os erros e desvios de Fragmentos testemu­
nham que essa obra não foi escrita por ordem nem sob o
controle da Grande Confraternidade esotérica. Os dados
em que se baseia este livro têm um caráter fragmentário.
No campo esotérico, todo conhecimento fragmentário é
fonte de perigo. Assim o testemunham os trabalhos de
autores antigos, como Santo Irineu, Clemente de Alexan­
dria, Eusebio de Cesaréia, quando tratam das heresias dos
primeiros séculos de nossa era. Com eles se aprende, por
exemplo, que certas escolas gnósticas, ao constatar a imper­
feição do mundo criado e sem buscar as razões de ser desta
imperfeição, chegaram a tais conceitos do pensamento, tais
como a debilidade do Criador, sua incompetência ou,
inclusive, sua maldade. O incompleto é, desta maneira,
a própria fonte das heresias. Somente o que a Tradição
chama de Pleroma, isto é, a Plenitude, incluindo a Gnose5
em seu conjunto, oferece a garantia contra todo desvio.
3. João, III, 3 e seguintes.
4. Marcos, IV, 11.
5. São Paulo, Efésios, III, 18, 19.

9
PREFACIO

Os estudos esotéricos ajudam a penetrar o sentido da


evolução atual do homem e da sociedade humana; daí o
crescente interesse que suscitam os meios cultivados. Para­
doxalmente, entre as pessoas de cultura européia, que se
sentem impulsionadas à busca desta índole, grande número
dirige seus olhares às tradições não cristãs: hinduísta,
budista, sufi e outras. E, sem dúvida, apaixonante compa­
rar o pensamento esotérico nesses diferentes sistemas. A
Tradição ó Una. O que/aprofunda seus estudos não deixará
de sentir o impacto desta unidade essencial. Porém, para
aqueles que desejam ir mais além da pura especulação, o
problema é exposto sob uma luz diferente. Esta Tradição
única tem sido e é apresentada sempre sob múltiplas
formas, cada uma das quais está minuciosamente adaptada
à mentalidade e ao espírito do grupo humano ao qual se
dirige a sua Palavra, assim como à missão para a qual esse
grupo foi investido. Desta maneira, para o mundo cristão,
o meio mais fácil ou, em todo caso, o menos difícil para
alcançar o objetivo, é seguir a Doutrina esotérica que se
encontra na base da Tradição cristã. Com efeito, o pensa­
mento do homem nascido e formado no seio de nossa civi­
lização, seja ou não cristão, crente ou ateu, está impregna­
do por 20 séculos de cultura cristã. É-lhe incomparavel­
mente mais fácil empreender seus estudos a partir dos
dados do seu meio, do que tomar um novo ponto de parti­
da e ter de adaptar-se ao espírito de um meio distante ao
seu. Tal mudança não está isenta de perigos e dá, geralmen­
te, produtos h íbridos.
É preciso acrescentar que, se todas as grandes religiões
surgidas da Tradição única são mensagens de verdade —

11
otkorovenié instiny — cada uma delas se dirige somente a
uma fração da humanidade. Somente o Cristianismo afir­
mou, desde o início, seu caráter ecuménico. Jesus disse: "E
será pregado este evangelho do reino por todo o mundo para
testemunho a todas as nações*'.1 A potência de profecia do
Verbo, expressada nesta frase, explode depois de 20 sécu­
los; a Boa Nova, em princípio ensinada a um grupo restrito
de discípulos, expandiu-se por toda a terra. Esta prodigiosa
expansão se deve a que, na sua perfeita expressão, a doutri­
na cristã proclama a ressurreição geral. No entanto, as
outras doutrinas, ainda que pertencendo à Verdade, ten­
dem, essencial mente, à salvação individual e não são,
então, mais que uma revelação parcial da Tradição.
O presente ensinamento é, pois, fundamentalmente
cristão.
A Tradição esotérica cristã baseia-se no Cânone, no
Rito, no Menólogo e na Doutrina. Esta última é um con­
junto de regras, tratados e comentários dos doutores da
Igreja ecuménica. Em sua grande parte, esses textos têm
sido reunidos numa recompilação intitulada Filocalia. A
essas fontes devem juntar-se escritos isolados de autores
antigos e modernos, religiosos e leigos.
A maior parte dos escritos da Filocalia foi redigida
para pessoas que já haviam adquirido certa cultura esotéri­
ca. O mesmo se pode dizer de certos aspectos dos textos
do Cânone, incluídos os Evangelhos. Por se dirigir a todos,
esses textos não podiam levar em conta as atitudes de cada
um. O Bispo Teofano, o Eremita, no seu prefácio à Filoca­
lia, insiste no fato de que ninguém pode, sem ajuda, conse­
guir penetrar a Doutrina. Por esta razão, a ciência esotéri­
ca, paralelamente às fontes escritas, conserva e cultiva uma
Tradição oral que vivifica a escrita. A Ortodoxia oriental
soube conservar íntacta esta Tradição, aplicando especial­
mente a regra absoluta do hermetismo. De geração em gera­
ção, desde a época dos Apóstolos, conduziu seus discípulos
até a experiência mística.

1. Mateus, XXIV, M.

12
Se durante quase 20 séculos o hermetismo constituiu
uma salvaguarda, constatamos que as circunstâncias muda­
ram. No ciclo atual da História, assim como na época do
Advento de Cristo, o véu se levanta parcialmente. Desta
maneira, para os que querem ir mais além do conhecimen­
to livresco que nunca supera o campo da informação, a
quem busca intensamente apreender o verdadeiro sentido
da vida, aos que desejam compreender o significado da
missão do cristão na Nova Era, a eles se oferece a possibili­
dade de iniciarem-se nesta Sabedoria divina, "misteriosa e
oculta".2
Recorremos ao texto eslavo das Escrituras cada vez
que o sentido dado por outras versões parecia apresentar
certa obscuridade. Há duas razões para isto: a primeira
é que a tradução do eslavo foi feita numa época ainda rica
em exegeses sagradas e em que o espírito dos textos se
mantinha próximo ao sentido original; a segunda se relacio­
na com a firmeza da linguagem, pois as línguas eslavas
modernas — o russo, em particular — se mantêm muito
próximas ao eslavo antigo que, por outro lado, está sempre
em uso nos ofícios religiosos dos países eslavos.
Quanto à antiguidade do texto eslavo, podemos dizer
que se atribui a Constantino, o Filósofo, mais conhecido
com o nome de São Cirilo, e a seu irmão São Método,
ambos sábios gregos de Salônica, que conheciam com per­
feição o eslavo. Ao chegar a Chersonea Taurica no século
IX, Santo Cirilo já ali encontra o Evangelho escrito nesta
língua. É altamente provável que tenha sido redigido num
período em que ainda se mantinham vivas as formas intro­
duzidas pela pregação do Apóstolo Santo André, que foi
quem ensinou o Cristianismo na Rússia, no primeiro século
da nossa Era.
A firmeza da linguagem é um elemento de suma im­
portância, quando se quer alcançar o sentido original de
um texto; sabe-se que a firmeza da língua copta é o que
permitiu a Champollion, a partir de fórmulas litúrgicas em

2. Coríntiot, 11,6-8.

13
tal língua, estabelecer a equivalência das escrituras coptas
com os hieróglifos egípcios. O velho eslavo se mantém vivo
e muito pouco se modificou: as fórmulas rituais, em parti­
cular, assim o testemunham. Por todas estas razões, o texto
eslavo do Novo Testamento, igual aos escritos dos Antigos,
traduzidos para essa língua, apresentam um valor muito
especial para o atual pesquisador.

14
INTRODUÇÃO

0 homo sapiens vive imerso nas circunstâncias a tal


ponto que se esquece e esquece aonde vai. No entanto, sabe,
sem percebê-io, que a morte muda tudo.
Como explicar que o intelectual que realiza maravi­
lhosas descobertas e o tecnocrata que as explora tenham
deixado o problema do nosso fim de lado, fora do campo
de suas investigações? Como explicar que o enigma traçado
pelo problema da morte deixe indiferente à Ciência que,
não obstante, tudo ousa e tudo pretende? Como expli­
car que a Ciência, em lugar de opor-se à sua irmã maior, a
Religião, não tenha unido seus esforços aos seus para resol­
ver o problema do Ser que, de fato, é o problema da morte?
Que o homem morra na sua cama ou a bordo de uma
nave interplanetária, a condição humana não muda no mais
mínimo detalhe.
A Felicidade? Mas se nos é ensinado que a felicidade
dura enquanto dure a Ilusão... E o que é a Ilusão? Nin­
guém o sabe. Porém, estamos imersos nela.
Se soubéssemos o que é a Ilusão, saberíamos, por
oposição, o que é a Verdade. "E a verdade vos libertará".1
Enquanto fenômeno psicológico, foi a Ilusão, alguma
vez, submetida a uma análise crítica com intervenção dos
mais recentes dados da Ciência? Parece que não; contudo,
não se pode dizer que o homem seja preguiçoso ou que
nao procure. E um inquiridor apaixonado. Porém, busca ao
lado do essencial.

1 João. VIII, 32

15
0 que, sobretudo, chama a atenção, é que o homem
moderno confunda progresso moral e progresso técnico e
que o desenvolvimento da Ciência prossiga num perigoso
isolamento.
O explosivo progresso das técnicas nada mudou no
essencial da natureza humana e nada mudará porque opera
no campo das circunstâncias e somente superficialmente
toca a vida interior do homem. Porém se sabe, desde a mais
distante antiguidade, que o essencial não se encontra fora
do homem, mas nele mesmo.
O consenso geral admite que a humanidade chegou a
um ciclo importante de sua história. O espírito cartesiano
que arruinou a escolástica encontra-se, por sua vez, supera­
do. A lógica da História reclama um espírito novo. O divór­
cio entre o conhecimento tradicional, cuja depositária é a
Religião, e o conhecimento adquirido, fruto da Ciência,
corre o risco de fazer desaparecer a civilização cristã, tão
rica em promessas nas suas origens.
é uma aberração crer que, por sua própria natureza, a
Ciência se oponha à Tradição. Mesmo assim, afirmamos
energicamente que a Tradição não implica nenhuma ten­
dência oposta à Ciência. Pelo contrário, seu prodigioso
desenvolvimento foi previsto pelos Apóstolos.
A esse respeito, a célebre fórmula de São Paulo: "A
Fé, a Esperança, o Amor",2 resume um amplo programa
de evolução do saber humano. Ao se examinar esta fórmu­
la em relação com seu contexto,3 verifica-se que os dois
primeiros termos são temporários, enquanto o terceiro é
permanente. Segundo o Apóstolo, era válida para a época
em que foi enunciada4 e que seu significado devia evoluir
com o tempo. É o que ocorreu, no exato sentido previsto
por São Paulo. A Ciência,5 e em forma geral o Conheci-

2. I Coríntios, XIII, 13. O terceiro termo é o Amor e não a Caridade. O matiz


é importante. O amor 6 uma força numenal, a caridade é uma atitude, uma
das manifestações do Amor.
3. Ibid., 1-12.
4. "Agora" diz São Paulo versículo 13.
5. Ibid., versículo 9e seguintes.

16
mento,6 chamados a substituir a Fé e a Esperança — essas
categoriís-limite acessíveis, segundo o Apóstolo, à menta­
lidade da época em que ele ensinava — conheceram, desde
então, um extraordinário desenvolvimento. E acrescenta:
"'Quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias
de menino".7 É assim como se descreve a passagem da Fé
ao Conhecimento. São Paulo precisa, então,8 que este últi­
mo, ainda que necessário para a evolução, não é um estado
definitivo, já que somente pode ter um caráter parcial. E
acrescenta: "Quando, porém, vier o que é perfeito, então o
que é em parte desaparecerá."9 O perfeito é o Amor,
que carrega em si a consumação de todas as virtudes, de
todas as profecias, de todos os mistérios e de todo o Co­
nhecimento.10 São Paulo insiste sobre este ponto e conclui
com esta recomendação: "Procurai atingir o amor."11
Mediante os esforços conjugados da Ciência tradicio­
nal — baseada na Revelação e, em consequência, na Fé e na
Esperança — e da Ciência adquirida — campo do conheci­
mento positivo — pode-se esperar que se cumpra o progra­
ma traçado por São Paulo e que finalmente se alcance o
Amor em sua expressão integral.
Desenvolver os postulados da Ciência tradicional para
fazer ressurgir os laços que a unem à Ciência positiva é,
precisamente, um dos objetos da presente publicação.
O autor está persuadido de que somente a síntese
desses dois ramos do saber é suscetível de resolver o pro­
blema do homem, cuja solução condiciona a de todos os
demais problemas planteados na atualidade.
Segundo a Tradição, a evolução humana — depois de
um longo período pré-histórico — se estende numa suces­
são de três ciclos: Ciclo do Pai - que a história somente

6. Ibid.
7. Ibid., versículo 11.
8. Ibid., versículo 9.
9. Ibid., versículo 10.
10. I Coríntios, XIII.
11.1 Conríntios, XIV, I.

17
conhece de forma incompleta; Ciclo do Filho — que chega
a seu fim; e Ciclo do Espírito Santo — ao qual chegamos
atualmente.
A Antropologia situa a aparição dohomo sapiens fos-
silis há 40 mil anos. A vida estava, então, caracterizada
pelo matriarcado, surgido do sistema do matrimónio coleti­
vo. Faz, aproximadamente, 14 mil anos, com a aparição do
homo sapiens recens, o regime de gensmatriarcale gradual­
mente cedeu lugar ao gens patriarcale, caracterizado pela
poligamia. O progresso foi indubitável, ainda que o sistema
estivesse marcado de bestialidade, estando a mulher reduzi­
da à condição de mercadoria vivente. Adiante, as antigas
tendências prevaleceram, todavia, por longo tempo. Aristó-
teles o testemunha quando descreve a atitude das classes
altas de seu tempo diante do problema da mulher. Diz que
se mantinham mulheres legítimas para gerar cidadãos se­
gundo a lei, prostitutas para o prazer e, por último, concu­
binas para o uso cotidiano. Tal concepção deixa para o
Amor um espaço muito reduzido.
Jesus introduziu, nas relações humanas, algo que era
pratícamente desconhecido antes dele. A lei da selva:
"Olho por olho, dente por dente",12 é substituída pelo
novo mandamento: "Amai-vos uns aos outros".13
Produziu-se uma revolução nas relações entre o homem
e a mulher: o Amor havia-se introduzido na vida social. A
"mercadoria" de ontem obtinha direito de cidadania. Não
imediatamente, por certo, nem integralmente. De toda ma­
neira, ficava exposto o princípio da escolha recíproca no
amor. Foi a revelação do romance.
0 romance, pelo qual a sociedade cristã viveu o prin­
cípio da escolha recíproca, alcançou seu apogeu na Idade
Média. Apesar de haver decaído, desde então, apesar da
atual tendência ao retorno a formas regressivas nas relações
entre os sexos, o romance segue sendo o ideal confesso de
nossa sociedade. Por isso mesmo não é exato falar da

12. Êxodo, XXI, 24, Deuteronômio, XIX, 21; Lsvítico, XXIV, 20.
13. João, XIII, 34; ibid., XV, 12; I João, III, 11.

18
morte do romance. Uma revolução prepara-se em silêncio
para substituir o romance livre — marca da ,era cristã —
pelo romance único, atributo da era do Espírito Santo.
Liberado da servidão da procriação, este romance do
amanhã está chamado a cimentar a união indissolúvel dos
seres estritamente polares, união que assegurará sua inte­
gração no seio do Absoluto. Diz o Apóstolo São Paulo:
"No Senhor, todavia, nem a mulher é independente do
homem, nem o homem, independente da mulher"!4
A visão de tal romance cumula os melhores espíritos
há milénios. Se é reencontrada no amor platónico, base do
romance único, nos mitos do Andrógino, de Orfeu e Eurí-
dice, de Pigmaleão eGalatéia... É a aspiração do coração
humano, que chora em segredo sua profunda solidão. Este
romance constitui a meta essencial do trabalho esotérico.
Trata-se do amor que unirá o homem a esse ser único para
ele, a Mulher-irmã,1* glória do homem como ele mesmo
será glória de Deus.16 Adentrados na luz de Tabor, sendo
ambos somente um, verão, então, surgir o Amor verdadei­
ro, transfigurador, vencedor da Morte.
O Amor é o Alfa e o õmega da vida. 0 resto nada
mais tem do que um significado secundário. O homem
nasce com o Alfa. O propósito do presente trabalho consis­
te em indicar o caminho que conduz a õmega.

BORIS MOURAVIEFF

14. I Coríntios, XI. 11.


15. Ibid., IX, 5.
16. Ibid., XI, 7.

19
PRIMEIRA PARTE:

0 HOMEM
CAPITULO I

A filosofia positiva estuda o homem em geral, ou me­


lhor dito, o homem abstrato. A filosofia esotérica aplica-se
ao homem concreto: o próprio investigador é o objeto de
seus estudos. Partindo da constatação de que o homem é
desconhecido, sua meta é fazer com que se conheça a si
mesmo, tal como é e tal como poderia — em certas condi­
ções — chegar a ser.
Em princípio, o objetivo último da ciência positiva é
o mesmo. Porém, a orientação dos esforços é diametral­
mente oposta. Partindo do centro, a ciência positiva irradia
em todas as direções e, com a especialização, caminha em
direção à periferia, em cujo limite cada ponto constituiria
uma disciplina separada. A partir da multiplicidade e varie­
dade observadas na periferia acessível a nossos sentidos, a
ciência esotérica dirige-se em direção ao centro. Tende a
uma síntese mais e mais geral.
O método da ciência esotérica é o mesmo que o da
ciência positiva: a observação, a análise crítica dos dados
observados, a rigorosa dedução a partir dos fatos estabele­
cidos. Entretanto, esta semelhança de método implica uma
diferença de aplicação, dado o caráter íntimo de grande
parte dos trabalhos esotéricos, caráter que nem sempre
permite expor os resultados das experiências vividas, nem
debater publicamente sua validade. Por esta razão, aplica-
se, aqui, o mesmo método com a mesma rigorosa objetivi­
dade, porém em sentido inverso: na ciência positiva um
postulado é aceito se não puder ser refutado; aqui será
refutado, se não forem encontrados fatos ou fenômenos
que o confirmem.

23
Na civilização ocidental, a vida interior do indivíduo
— com toda a sua riqueza — encontra-se relegada ao último
plano da existência. O homem está tão enredado na engre­
nagem da vida mecanizada que não lhe resta tempo para
dar uma parada, nem o poder de atenção necessário para
dirigir a si mesmo seu olhar mental. O homem passa seus
dias absorvido pelas circunstâncias. A imensa máquina que
o arrasta gira sem cessar, impedindo-o deter-se, com o risco
de ser destroçado. Hoje como ontem e amanhã como hoje, o
homem esgota-se nessa corrida desenfreada, lançado a uma
direção que, em definitivo, não o conduz a nenhum lugar.
A vida passa quase despercebida, rápida como um raio de
luz; depois, sempre ausente de si mesmo, cai, devorado.
Quando, a quem vive sob esta pressão constante da
vida contemporânea é pedido que volte para si mesmo seu
olhar mental, em geral, responde que não tem tempo para
entregar-se a um tal exercício. Ao se insistir, ele consen­
te, na maioria dos casos dirá que nada vê. Névoa. Obscuri­
dade. Em alguns raros casos, o observador informará que
percebe algo que não saberia definir, porque esse algo
muda todo o tempo.
Esta última observação é correta. Com efeito, tudo
muda em nós e a cada instante. Basta o menor choque
exterior — agradável ou desagradável, feliz ou desgraçado —
para que nosso conteúdo interior adote um novo aspecto.
Se continuamos a observação interior sem tomar par­
tido, esta introspecção nos permite constatar, muito rapi­
damente, e não sem surpresa, que nosso Eu, do qual esta­
mos habitualmente tão orgulhosos, não é sempre igual a si
mesmo: muda. Logo, a impressão se define; começamos a
notar que, na realidade, não vive em nós um único homem,
mas vários, cada um com seus próprios gostos, suas aspira­
ções próprias e perseguindo seus próprios fins. Logo desco­
brimos em nós um mundo cheio de vida e cores que, até
ontem, ignorávamos quase que por completo.
Continuando a experiência, logo distinguiremos três
correntes nessa vida em perpétuo movimento: a da vida,
por assim dizer vegetal, dos instintos; a da vida animal dos
sentimentos; e, finalmente, a corrente da vida propriamen-

24
te humana, caracterizada pelo pensamento e pela palavra.
Algo assim como se em nós existissem três pessoas. Mas
onde tudo está entremeado de uma estranha maneira.
Podemos apreciar, então, o valor da introspecção
como método de trabalho prático que permite conhecer-se
e entrar em si mesmo. À medida que progredimos, nos
damos mais e mais conta da real situação em que nos
encontramos. Enfim, o conteúdo interior do homem é
análogo a um recipiente cheio de farpas metálicas em está­
gio de mistura por ação mecânica, de tal modo que qual­
quer choque sofrido pelo recipiente provocará um deslo­
camento das partículas de farpas. É assim que a vida real
escapa ao ser humano, devido a essa mudança permanente
de sua vida interior.

Figura 1

Não obstante, como veremos mais adiante, esta insen­


sata e perigosa situação pode ser favoravelmente modifica­
da. Isso requer trabalho, esforços conscientes e persisten­
tes. A introspecção mantida incansavelmente traz como
conseqíiência uma sensibilização interior que, por sua vez,
intensificará a amplitude e a frequência dos movimentos
por ocasião do deslocamento das partículas das farpas.
Desta forma, os choques que antes passavam despercebidos
provocarão, daí em diante, vivas reações. Por sua contínua
amplificação, estes movimentos chegarão a produzir uma
fricção de tal intensidade entre as partículas de farpas, que,
um dia, poder-se-á sentir o fogo interior acender-se por si
mesmo.

25
Figura 2
>—►
í>
à. ' ■ •• •-••
4 -<

Não basta uma simples labareda nem basta que o fogo


arda sob as cinzas. Um fogo vivo, ardente, uma vez aceso,
deve ser cuidadosamente mantido pela vontade de apurar e
cultivar a sensibilidade. Se isto ocorre, nosso estado pode
mudar: o calor da chama provocará em nós a soldagem.1

Figura 3
Daí em diante, o conteúdo interior já não formará um
conglomerado de partículas de farpas; formará um bloco.
Os choques sofridos já não provocarão no homem, como
antes, uma mudança interior. Alcançado este ponto, terá
adquirido a firmeza e permanecerá ele mesmo em meio às
tempestades da vida.

1. Marcos, IX, 49; I Coríntios, III, 11-13; I Pedro, I, 7; IV, 12.

26
Tal é a perspectiva que se abre a quem estuda a ciên­
cia esotérica. Para alcançar o estágio que se acaba de
descrever, terá de desembaraçar-se, desde a origem, de toda
ilusão a respeito de si mesmo, por cara que seja, pois, tole­
rada, a princípio, uma ilusão desta índole crescerá ao longo
do caminho e, para dela se desfazer, serão necessários sofri­
mentos e esforços complementares.
Enquanto o homem não tenha alcançado a soldagem,
sua vida se constitui numa existência fática, já que ela pró­
pria muda a cada instante. Dado que essas mudanças se
produzem sob o efeito de choques interiores, que ele quase
nunca pode prever, é-lhe igualmente impossível estimar, de
antemão, suas próprias mudanças exteriores. Vive oscilan­
do com os acontecimentos, ocupado em tudo recompor
com subterfúgios. Na realidade, avança em direção ao des­
conhecido, oscilando ao acaso. Este estado de coisas é cha­
mado na Tradição Lei do Acaso ou Lei do Acidente e é a lei
principal, sob cujo império leva o homem, tal como é, sua
ilusória existência.
A ciência esotérica assinala as possibilidades e os
meios para subtraír-se a essa lei. Ajuda a iniciar uma nova
vida, sensata; a ser lógico consigo mesmo e, finalmente, a
tornar-se senhor de si mesmo.
Para empreender com proveito este caminho, o homem
deve, antes de tudo, ver com clareza sua atual condição.
Uma imagem que se encontra nas fontes mais antigas per­
mite representar e reter a imagem mental desta situação.
Trata-se da carruagem.
Nesta imagem a carruagem representa a estrutura do
homem. O corpo físico está figurado pela carroceria. Os
cavalos representam as sensações, os sentimentos e as
paixões. O cocheiro é o conjunto das faculdades intelec­
tuais, incluída a razão. A pessoa sentada na carruagem é o
amo.
Em seu estado normal, todo o sistema encontra-se em
perfeito estado de funcionamento: o cocheiro sustém fir­
memente as rédeas nas mãos e conduz o conjunto, seguin­
do a rota indicada pelo amo. Porém, não é assim que acon­
tecem as coisas na imensa maioria dos casos. Para começar.

27
o amo está ausente. Toda a equipe deve buscá-lo para
pôr-se à sua disposição. Tudo se encontra em mau estado:
os eixos não estão lubrificados e rangem, as rodas estão
mal fixadas; o leme tem um jogo perigoso, os cavalos,
ainda que de nobre raça, estão fracos e mal alimentados; os
arreios estão gastos, as rédeas não são fortes. 0 cocheiro
dorme. Suas mãos, caídas sobre os joelhos, apenas seguram
as rédeas que, a cada momento, parecem escapar-lhe.
A carruagem avança, apesar de tudo, porém, de ma­
neira tal que nada de bom pressagia. Com efeito, abando­
nando a rota, lança-se por uma inclinação e, agora, a car-
roceria arrasta aos cavalos, incapazes de detê-la. Caído em
profundo sono, o cocheiro oscila sobre seu banco com
risco de cair. Triste sorte espera, sem dúvida, a uma tal
carruagem.
Esta imagem oferece uma profunda analogia com a
condição da maior parte dos homens. Merece ser tomada
como objeto de meditação.
Apesar de tudo, a salvação pode aparecer. Outro
cocheiro, este bem acordado, pode passar pela mesma rota
e perceber na carruagem a sua desgraçada situação. Se não
anda muito apressado, se deterá, talvez, para ir em auxílio
da equipe em apuros. Em primeiro lugar, ajudará os cava­
los, para deter a queda da carroceria pela inclinação. Depois,
despertará o homem adormecido e tratará, com ele, de
colocar a carruagem na rota, emprestará forragem e dinhei­
ro. Talvez também dê conselhos para o cuidado com os
cavalos, a localização de um albergue e de um carroceiro e,
até, inclusive, indique a rota a seguir.
Continuando, corresponderá ao cocheiro aproveitar a
ajuda e as indicações recebidas. Dele será a incumbência,
desde então, de pôr as coisas em ordem e, de olhos abertos,
prosseguir o caminho que havia abandonado.
Deverá lutar, sobretudo, contra o sono. Se dormir
novamente, se a carruagem abandonar a rota e voltar a
correr perigo, não poderá esperar que a sorte lhe sorria
outra vez, que outro cocheiro passe nesse momento por
esse lugar e acuda em sua ajuda.

28
Temos visto que a prática da introspecção rápida nos
permite constatar que nossa vida interior muda quase a
cada instante. No entanto, o homem pretende ter continui­
dade nas idéias e ser consequente nos atos. A vida exige
que dê tal impressão e ele dificilmente pode desembaraçar-
se dessa exigência. A palavra dada, o compromisso tomado,
os votos pronunciados o prendem, apesar das contínuas
mudanças que acaba de descobrir nele, e que lhe explicam,
por fim, a causa profunda de suas dificuldades, de seus
conflitos internos e externos e das quedas que marcaram
sua vida.
O homem reage como pode contra a constante pres­
são das dificuldades e obrigações que sobre ele pesam.
Quanto às mudanças interiores, as percebe geralmente
pelas reações instintivas compensadoras, que provoca e
adota, em cada circunstância, uma atitude definida. Procu­
ra, a qualquer preço, se não for, ao menos, parecer lógico
consigo mesmo e senhor de seus atos. Diante de um golpe
de sorte ou um êxito inesperado, trata de persuadir aos que
o rodeiam, e indiretamente convencer a si mesmo, que não
está nada surpreso, que havia previsto o desenvolvimento
dos fatos e que tudo havia sido calculado de antemão. Caso
contrário, se fracassa, colocará a culpa nos outros, nos
acontecimentos e, em geral, nas circunstâncias.
Isto acontece porque a fricção das farpas metálicas
produz em nós uma sensação desagradável e sentimos a
necessidade de nos desembaraçarmos delas o mais rápido
possível. O movimento das farpas se detém quando encon­
tramos uma solução: o falso motivo que nos permite deter
o choque. É assim que o homem nos parece constante­
mente preocupado em recompor seu interior com subterfú­
gios. Isto, com o tempo, torna-se automático.
Sendo assim as coisas, cabe-nos perguntar como defi­
nir essas mudanças internas. O que é que muda?
Ao falar de si mesmo o homem diz: Eu. E, talvez, o
termo mais enigmático e menos definido da linguagem
humana. Com efeito, ao falar de seu corpo, o homem o
trata na terceira pessoa, o que é correto. Agora, ao falar de
sua Alma, trata-a, também, na terceira pessoa. Afirma,
assim, que ele não é nem seu corpo nem sua Alma. Ainda

29
que pareça, à primeira vista, paradoxal, esta é a regra para a
imensa maioria dos seres humanos. Mas se o homem não é
corpo nem Alma, o que é, então, o homem? O que é esse
Eu que sente nele e ao qual se esforça por comunicar-lhe,
ainda que mais seja uma aparência de continuidade lógica?
As partículas de farpas, cuja posição relativa muda
todo o tempo, são, precisamente, as que, em seu conjunto,
representam nosso Eu. Este Eu não é constante, adota uma
multidão de diferentes aspectos, porém é, em todo caso, o
Eu com o qual o homem -■ tal como nasceu sobre a Terra
— evolui na vida.
Esse Eu não somente não é nem constante nem per­
manente, mas também, além disso, é múltiplo, dado que
cada um dos três homens que coexistem no homem, e dos
quais falamos antes, é igualmente um sujeito composto.
De modo que nosso Eu é, na realidade, um conjunto for­
mado por uma multidão de pequenos Eus, relativamente
autónomos, cada um com sua tendência e atua à sua ma­
neira. Esta é a natureza do nosso Eu, "legião", segundo o
Evangelho.2
Agora pode-se dar uma resposta precisa à pergunta: o
que é o homem? É a Personalidade. Noutras palavras, é Sr.
X, identificado com esse organismo psíquico que nele vive,
que nada oferece — ou muito pouco — de estável; que
muda conforme as impressões recebidas — agradáveis ou
desagradáveis -- e, inclusive, preso ao destino dos choques
físicos.
Jesus disse: "A qualquer que te ferir na face direita,
volta-lhe também a outra".3 Quem é capaz de fazer isso?
Somente aquele que, tendo dominado em si as reações
instintivas e bestiais, tenha alcançado o consequente domí­
nio sobre o deslocamento mecânico das partículas de
farpas. No homem primitivo prevalece a fórmula:’ "Olho
por olho, dente por dente",4 sua meta é preservar a farpa
de reações anárquicas. Mas continuar sendo uno, mesmo
úepois de ter recebido uma bofetada e, num estado de
calma interior imutável oferecer a outra face, isto somente
2. Marcos, V, 9, Lucas, VIII, 30.
3. Mateus, V 39; Lucas, VI, 29.
4. Êxodo, XXI, 24; Deuteronômio, XIX, 21.

30
é possível para um ser verdadeiramente senhor de sí mes­
mo. As Escrituras oferecem numerosos exemplos, que mos­
tram a premente necessidade que o homem chegue a ser
senhor de si mesmo.
Para chegar a sê-lo, será necessário estudar a estrutura
de nossa Personalidade. Neste caso, como em todos os
outros, o Conhecimento nos conduz ao poder.
Voltemos novamente à imagem dos três homens que
coexistem no homem. Na realidade, trata-se das três gran­
des correntes de nossa vida psíquica: intelectual, emocional
e instintivo-motora. Aproximadamente e sem delimitação
nítida — mais adiante se verá o porquê — essas três corren­
tes correspondem a nossos pensamentos, a nossos senti­
mentos e a nossos sentidos e sensações.
Os centros de gravidade de cada um desses três modos
de nossa vida psíquica se situam, respectivamente, no cére­
bro, no coração e no abdómen. Os termos não devem ser
tomados ao pé da letra.
No momento em que um dos três centros receba ou
emane um impulso, os outros dois — ainda que participem
nele — adotam, em geral, uma atitude passiva, de maneira
que o que dirige, nesse momento, a ação fala em nome da
Personalidade em seu conjunto, com o qual representa o
homem em sua totalidade. Este estado de coisas será exa­
minado em detalhe mais adiante. Por ora, tratemos de
fixar as idéias expostas, mediante um esquema que se irá
completando à medida que avancem nossos estudos e que
servirá como instrumento corrente de trabalho.

terceiro andar ca beça-cérebro

segundo andar peito-coração

primeiro andar flancos-a bdômen

Figura 4

31
Estes três centros representam as três correntes que
compõem nossa vida psíquica. Cada um tem dupla função:
recepção e manifestação. A partir deste ponto de vista, o
sistema encontra-se concebido admiravelmente. Cada
centro, em sua zona, responde perfeitamente às necessida­
des da vida interior e exterior do homem.
Recordemos novamente que a teoria das funções e da
localização dos centros psíquicos, no sentido de que são
centros de gravidade, é convencional. Pensamos principal­
mente com a cabeça, mas não exclusivamente. O mesmo
podemos dizer no que concerne ao coração, onde localiza­
mos o centro emocional. O centro motor organiza a vida
instintiva, assim como a motricidade e os movimentos psí­
quicos; sua atividade se encontra, portanto, espalhada por
todo o corpo, porém colocamo-lo no primeiro andar — que
corresponde aos flancos e ao abdómen — por razões que se
esclarecerão mais adiante.
A Personalidade humana, esse móvel conjunto de par­
tículas de farpas, de nenhuma maneira está destinada à ina­
tividade. Muito ao contrário, todo esse corpo psíquico
constitui um organismo concebido para desempenhar
determinado papel. O que ocorre é que geralmente não se
utiliza para esse fim, porque nos servimos dele sem conhe­
cê-lo, sem tê-lo estudado e compreendido.
Os estudos esotéricos começam, precisamente, pelo
estudo do conteúdo, da estrutura e do funcionamento da
própria Personalidade.
Precisemos as funções psíquicas dos três centros:
— o centro intelectual registra, pensa, calcula, combi­
na, investiga etc.;
— o centro emocional tem por campo os sentimentos,
as emoções e as paixões refinadas;
— o centro motor dirige os cinco sentidos, acumula a
energia no organismo por meio de suas funções ins­
tintivas e dirige o consumo dessa energia por meio
de suas funções motrizes.

O centro motor é o melhor organizado dos três. En­


quanto os outros dois se constituem e se organizam somen-

32
te à medida que a criança cresce e se desenvolve, o centro
motor funciona já desde a concepção. É, por isto, o mais
antigo e o mais bem ordenado. É, por assim dizer, o mais
sábio, ainda que às vezes cometa erros.
Os outros dois centros, em troca, nos proporcionam
sérias dificuldades. São anárquicos, com frequência um se
imiscui no domínio do outro e no do centro motor, de
forma tal que este se decompõe.
De fato, não temos nem pensamento puro nem senti­
mento puro e nossas ações tampouco são puras. Tudo está
misturado em nós, e até conflitante, por todo tipo de con­
siderações provenientes tanto do centro intelectual que,
com seus cálculos, turva a pureza do sentimento, como do
centro emocional, que enreda os cálculos do centro intelec­
tual.
É impossível pôr ordem na nossa vida psíquica, tirá-la
de seu estado de perpétua anarquia e de sua profunda sem-
razão, sem antes ter estudado a fundo a estrutura da pró­
pria Personalidade. Graças a este estudo, poderá o pesqui­
sador proceder ao ordenamento e organização desse orga­
nismo. Não existe outro meio mais que o trabalho sobre si
mesmo, a observação interior.

33
CAPÍTULO II

De fato, as idéias simples são as mais difíceis de


captar. Escapa-nos a causa da extrema complexidade de
nossa mente, que nos incita a complicar tudo. Não obstan­
te, as idéias e as fórmulas simples são as que mais impor­
tam na vida.
Dito isto, encaremos a relação entre as noções: saber e
compreender.
Podemos saber sem compreender; porém, não pode­
mos compreender sem saber. Depreende-se disto que com­
preender é saber, mais a soma de algo imponderável. Toca­
mos, aqui, num problema simples e ao mesmo tempo mui­
to difícil.
Passa-se do saber ao compreender, através da paulati­
na assimilação do saber. A capacidade de assimilação tem
seus limites, é função da capacidade de conteúdo do
homem, a continência, e esta é diferente em cada pessoa.
Trata-se de uma das noções fundamentais da ciência
esotérica: o que se chama o ser da pessoa. Esta noção ofe­
rece diferentes aspectos. Pelo que aqui nos interessa, o ser
se manifesta pela capacidade de absorção de uma pessoa.
O saber se encontra espalhado em qualquer parte.
Porém, está fora de nós. A compreensão, em troca, encon­
tra-se dentro de nós.
Ao se verter, num copo, o conteúdo de um recipiente,
é óbvio que o copo não poderá conter mais do que o volu­
me de líquido equivalente à sua capacidade. O que sobra,
derramará. Exatamente o mesmo acontece conosco. So­
mente somos capazes de compreender o que corresponde à
capacidade de conteúdo do nosso ser, à sua continência.

35
Disse Jesus a seus discípulos: "Tenho ainda muito que
vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora".1
Para poder evoluir no sentido esotérico do termo,
devemos, sobretudo, preocuparmò-nos em fazer nosso ser
crescer, em elevar o seu nível.
0 Evangelho não tem uma terminologia especial, é
uma das razões de sua popularidade: é acessível a todos. A
Tradição esotérica cristã segue seu exemplo e se abstém de
criar um vocabulário especial, que se constituiria em mais
uma dificuldade no caminho que, por si só, não é dos mais
fáceis. Parte do princípio de que, se alguém se dá ao traba­
lho de refletir a fundo, tudo pode ser expressado, sem
recorrer a neologismos, é necessário esclarecer o sentido
das palavras empregadas.
Em primeiro lugar, precisaremos o que a Tradição
entende por Consciência e derivados. Tanto na linguagem
corrente como na literatura filosófica são atribuídos â pala­
vra consciência diferentes significados; às vezes, vem segui­
da de qualificativos, expressões como, por exemplo,
"superconsciência", "consciência cósmica" etc.
Na ciência esotérica atribuiu-se ao termo Consciên­
cia sua máxima significação, a que corresponde ao plano
divino. 0 Bispo Teofano, o Eremita, um dos comentadores
mais autorizados, diz: o caminho para a perfeição é o cami­
nho para a Consciência. Ele não atribui, pois, ao termo
Consciência o significado corrente.
Nós não possuímos a Consciência. O que chamamos
consciência é um dos seus derivados, únicos acessíveis ao
homem tal como "entre os nascidos de mulher".2
Existem quatro níveis de consciência: a Consciência —
chamada absoluta — e suas três derivadas:
---------------------------------- • Consciência absoluta

Consciência do Eu real

Consciência de vigília

Figura 5
Subconsciência

1. João, XVI, 12.


2. Mateus, XI, 11.

36
De baixo para cima, encontramos, em primeiro lugar,
a subconsciência. É a consciência crepuscular da qual
dispomos, por exemplo, durante o sono, em que controla o
organismo sem nenhuma interferência. Esta direção
subconsciente de certas funções do corpo se prolonga,
também, durante o estado de vigília.
O campo da subconsciência é muito vasto e muito
pouco estudado. Costuma localizar-se ali tudo o que entra
no domínio da consciência de vigília, é assim que se lhe
atribuem não somente os reflexos e, em geral, as funções
da vida instintiva, o que é correto, mas também os relâm­
pagos provenientes de níveis superiores e designados com
termos vagos como intuição, sexto sentido etc., o que é um
erro. A razão deste erro consiste em considerar a consciên­
cia de vigília como o ponto culminante da consciência.
A ciência esotérica distingue dois níveis superiores de
consciência, mais além da consciência de vigília. Não os
possuímos por direito de nascimento nem os adquirimos
pela educação ou instrução habituais. Porém, podem ser
alcançados como resultado de esforços especiais adequada­
mente dirigidos.
O primeiro nível superior é o da consciência de si, em
outras palavras: consciência do Eu real. Em seguida, no
pico, se encontra ainda o nível da Consciência propriamen­
te dita.
Noutras palavras, de baixo para cima, podemos defi­
nir esses quatro níveis:

1.a subconsciência é a consciência crepuscular do


corpo. Sua força não depende do nível cultural do
indivíduo. Com frequência, os seres primitivos ou
elementares têm uma consciência do corpo mais
forte do que os intelectuais;

2. a consciência de vigília é a consciência diurna da


personalidade. Casos patológicos à parte, sua ampli­
tude e sua força se desenvolvem com o desenvolvi­
mento cultural do indivíduo, é a consciência subje­
tiva do Eu;

37
3. a consciência do Eu real é a consciência da Indivi­
dualidade, isto é, é a consciência objetiva do Eu
individual;

4. a Consciência é a consciência absoluta e a consciên­


cia do Absoluto.

Mais adiante voltaremos sobre a questão da Consciên­


cia, quando pudermos contar com mais elementos para
sentir e compreender o verdadeiro sentido deste termo.
Quanto à consciência do Eu real, podemos fazer uma idéia
dela, ainda que não seja mais do que de sua forma passiva.
Conhecemo-la como o único ponto permanente que existe
entre nós e que se esconde por trás de nossa Personalidade
sempre mutante, sempre arrastada pela torrente de pensa­
mentos, sentimentos, paixões ou sensações que por ela
passam e comprometem o homem em sua totalidade em
atos, com frequência, irrefletidos, que, mais tarde, ele pró­
prio reprovará. Este ponto permanente é o Juiz imparcial
que julga em nós nossos próprios atos; Juiz cuja voz se
percebe debilmente, encoberta pela algazarra interna ou
pelos acontecimentos. Porém, ainda que débil e passiva,
esta forma evanescente da consciência do Eu real é sempre
justa e objetiva.
A doutrina do pecado eda responsabilidade por nossos
atos nenhum sentido teria se a consciência do Eu real não
nos advertisse do perigo, quando nos defrontamos com
uma tentação. Sua presença em nós é o que torna possível
a evolução esotérica,3 cujo sentido profundo, como temos
visto, é a evolução em direção da Consciência. Porém, dado
que no homem tal como nasce, o Eu real somente se mani­
festa em sua forma passiva, esse Juiz interior pronuncia seu
veredicto unicamente naqueles casos em que a própria Per­
sonalidade lhe submete seus próprios atos à consideração.

3. Nada pode nascer de nada, é necessário um grão para que nasça a planta:
Mateus, XIII, 31, Marcos, IV, 31; Lucas, XIII, 19

38
Na vida corrente, o contato com o Eu real somente
ocorre excepcionalmente. Não obstante, o homem preten­
de situar-se no nível de consciência que corresponde a esse
Eu, do qual possuiria atributos, tais como o poder de
medir as consequências de seus atos, um querer que se
afirma com continuidade, a faculdade de atuar e o compor­
tamento próprio de um ser coerente consigo mesmo.
Basta um exame objetivo dos fatos para desmentir
tais pretensões. Consideremos, por exemplo, o caso dos
compromissos que assumimos. Bem claro está que nem
sempre os cumprimos, e que, se os respeitamos, é, com fre­
quência, ao preço de lutas conosco mesmos.
O que acontece é que, na realidade, não atuamos no
plano da consciência do Eu real, mas no plano da consciên­
cia de vigília, própria do Eu da Personalidade. Nos identifi­
camos com ele, seja qual for a faceta que apresenta. Sua
instabilidade molda nossas atitudes. Em um dado momen­
to, um pequeno eu ou um grupo de pequenos eus que
compõem a Personalidade decidem alqo e se comprome­
tem. Logo, dá lugar a outro pequeno eu ou grupo de pe­
quenos eus que desaprovam a ação empreendida e suas
consequências. As mudanças que ocasiona a entrada em
cena dos diversos componentes da Personalidade são, às
vezes, tão radicais — sobretudo se atuamos sob a influência
de uma paixão, de um sentimento violento ou baseando-
nos num cálculo errado —, que nos parece que um estranho
atuou em nosso lugar. Na maior parte das decisões que
lamentamos ter tomado, não reconhecemos a nós mesmos.
Existe uma considerável distância entre o que o homem
se atribui possuir — as qualidades próprias ao Eu real -e o
que tem, na realidade. Alcançar o nível de consciência que
corresponde a esse Eu real está no terreno do possível, da
esperança, como diz o Apóstolo São Paulo. Todavia,
antes de fazer seu o que já pensa possuir, o homem deverá
realizar conscientemente um considerável trabalho sobre si
mesmo.
Enquanto o homem, contra toda evidência, continuar
sentindo-se seguro de si mesmo e, com mais razão, enquanto
ainda estiver satisfeito de si, continuará vivendo no absurdo

39
e na inconsequência, tomando seus desejos e ilusões por
realidades. É mister ter passado pela queda, pela derrota
moral, é preciso tê-la constatado e aceito sem subterfúgios
nem atenuantes. Mal, então, inicia-se a busca, descobrem-se
as razões do trabalho sobre si e se adquirem as forças
necessárias para levá-lo a cabo. Isto vale para todo mundo.
Há somente uma exceção: os justos. Para eles, este traba-
’ho é uma alegria e, posto que são justos, para eles não
lá nenhuma falha a constatar. Mas quem é justo, entre
nós? Quem tem, ao menos, boa-fé? De uma maniera ou de
outra, somos todos corruptos. E ainda que a experiência
cotidiana demonstre o contrário, o homem se crê um ser
de certa importância. Esta opinião é consequência de
uma deficiência de nosso juízo. Na realidade, estamos
todos na mesma situação. A soma algébrica de nossas quali­
dades e de nossos defeitos é quase a mesma para cada um
de nós. Não há que se fazer ilusões, o total da soma não é
muito alto. É um infinito sim que, como tal, tende a esse
zero que é a Morte.
Criar, a partir deste infinitésimo, uma unidade sobre
a base das faculdades latentes que pretendemos já possuir,
tal é o trabalho que a ciência esotérica propõe aos que a
estudam, considerados, a princípio, como doentes, aos
quais se aplica o que proclamava Jesus: "Os sãos não preci­
sam de médico, e, sim, os doentes".4
O problema de fazer de si uma unidade, partindo pra-
ticamente do nada, leva-nos a examinar, novamente, a
questão do ser, agora sob um aspecto um tanto diferente.
Trata-se, para empregar a linguagem dos alquimistas, de
uma transmutação, de uma transformação de nossa exis­
tência fática — cujo único valor é o de uma potencialidade
— em uma existência real, mediante a realização dessa
potencialidade. Trata-se de elevar, progressívamente, o
nível de nosso ser. O trabalho se realiza, segundo um pro­
grama estabelecido, por etapas.
Correlativamente aos quatro níveis de consciência se
distinguem quatro níveis do ser: um nível superior do ser e
três níveis subordinados.
4. Mateus, IX, 12; Marcos, II, 17; Lucas, V, 31.

40
I
Figura 6

Como no caso da Consciência, o nível superior do ser


é a superação dos níveis inferiores. O mais baixo nível é
próprio a todo corpo vivente, segundo, presume-se, uma
escala de valores. Certos animais, especialmente entre os
mamíferos superiores, tocam o nível seguinte, que é o
nível humano. É assim que a maior parte dos mamíferos
podem ter, e têm, representações de objetos e fenômenos,
função própria do nível inferior da consciência humana de
vigília, porém não podem ir mais além e não dispõem da
faculdade de generalização, mediante a qual o homem
alcança as noções.
O terceiro nível do ser corresponde ao da consciência
do Eu real; é o nível dos homens esotericamente evoluídos,
falando com propriedade: viventes, os que tenham adquiri­
do o Eu real permanente, inquebrantável. Finalmente, o
quarto nível pertence ao homem perfeito, realizado, aquele
que por seu desenvolvimento esotérico chegou ao fim da
evolução possível nas condições do nosso planeta.
A questão do ser encontra-se estreitamente ligada ao
problema do poder. Já indicamos que, ao não ter em si
mais que um Eu instável, mutante, fático, o homem não
tem e não pode ter continuidade nem em suas idéias nem
em seus atos. Por isso é que não pode fazer.
Estabelecemos a relação entre as noções saber e com­
preender. Trata-se, agora, de estabelecer a relação entre
as noções saber e fazer.5 Pelo exposto, pode-se compreen-

5. Savoir-faire, no original.

41
der facilmente que não há possibilidade de passar direta­
mente do saber ao fazer. Geral mente, o fracassso desta ten­
tativa é atribuído à falta de vontade. Não é exato. Não é
a vontade ou, mais exatamente, a intensidade do desejo
o que falta nestes casos, mas precisamente, o ser que
permitirá em primeiro lugar compreender o saber adquiri­
do, para se obter, assim, o poder que dá acesso ao fazer. O
encadeamento apresenta-se como se segue:

(forma paniva) (forma ativa)

sabar-urcompr—nder sar-comoraender-fazer

Dizíamos que a aquisição do saber é relativamente


fácil. Notavelmente mais difícil resulta a aquisição do ser.
É precisamente o ser quem nos conduz à compreensão e,
daí, ao fazer. A fórmula é a mesma em todos os campos.

42
CAPITULO III

Temos situado a Personalidade entre o corpo e a


Alma; ligada a um e à outra, está, em geral, mais ligada ao
primeiro. Mesmo assim, constatamos que o Eu do qual
falamos cotidianamente corresponde à Personalidade,
designada pelo nome.
Propõe-se, agora, a questão de saber o que é, em si
mesma, a Personalidade, é claro que a pessoa a sente.
Notam-se suas atitudes, seus desejos, seus atos; porém não
pode ser representada.
Com efeito, quando se pensa em si próprio, evoca-se
uma imagem; a do corpo vestido e de um rosto com expres­
são digna, atraente. Esta imagem é somente um reflexo da
Personalidade. Se se quer descobri-la, ter-se-á que ir mais a
fundo. Somente a introspecção torna visível seu verdadeiro
rosto. A introspecção permite-nos constatar que existe em
nós uma espécie de pequena "nebulosa",1 imponderável
ou quase, dotada da capacidade de sentir, pensar, experi­
mentar sentimentos, atuar. Uma atenção persistente nos
fará notar, com surpresa, que esta "nebulosa" se move:às
vezes está localizada no cérebro, às vezes desce ao coração,
ao plexo solar etc. Depois de impressões violentas — um
grande terror, por exemplo —, pode descer ao longo do
corpo, até os pés. Tudo acontece, então, como se ela tives­
se abandonado a direção geral do corpo — direção que con­
trola quando se situa no cérebro — para atuar somente
através dos reflexos mais elementares. Passada a emoção, a
"nebulosa" volta a subir ao alto da cabeça, onde permane-

1. Kloube, nos textos russos da Tradição.

43
ce a maior parte do tempo. Diz-se, então, que a pessoa
voltou a ser ela mesma.
Muito mais preocupado pelo problema de parecer do
que pelo de ser, dissolvido nas circunstâncias, sempre
ausente de si mesmo — ou caindo, em suas horas de descan­
so, numa sonolenta suficiência —, o homem contemporâ­
neo já não sente nele a pulsação da vida interior. Necessita
fazer esforços, exercícios e praticar a observação interior
para alcançar essas primeiras descobertas.
A Personalidade depende do corpo físico, muito mais
do que geralmente se admite. Basta uma dor localizada, de
certa intensidade, para que todas nossas generosas idéias e
todos nossos refinados sentimentos sejam relegados ao
fundo da consciência. Pelo contrário, quando a pessoa é
capaz de controlar sua dor e continuar com sangue frio
cumprindo sua tarefa, a atitude se considera heroica, até
um ponto tal que o fato se reveste de um caráter excepcio-
nal.
A íntima dependência da Personalidade face ao corpo
físico em que mora e funciona, leva logicamente à conclu­
são de que é através deste que devemos atuar para alcan­
çá-la, estudá-la e, por último, exercer uma ação sobre ela.
É por isto que todos os exercícios psíquicos exigem
um treinamento físico. 0 princípio é geral; sua aplicação
difere e depende do método de ensino esotérico. Com o
presente método — essencialmente psicológico —, o treina­
mento físico está reduzido ao mínimo, porém dele não se
pode prescindir. Damos, no momento, as indicações neces­
sárias e suficientes que, observadas, permitirão resolver o
primeiro problema de treinamento físico: encontrara pos­
tura do corpo mais adequada aos exercícios psíquicos. A
experiência milenar demonstra que somente uma postura
responde á exigência: detalhes à parte, deve-se colocar a
cabeça, o pescoço e a coluna vertebral em uma mesma
Unha reta, e esta Unha deve ser vertical. Salvo casos espe­
ciais, que requerem indicações precisas, esta regra deve
ser observada estritamente, ao se estar em pé ou sentado.
Antes de abordar os exercícios psíquicos ou psicológicos,
deve-se ter encontrado esta postura e ter-se familiarizado
com ela. Para os ocidentais que praticam em sua casa, o

44
mais conveniente é sentar-se sobre um assento duro de 25 a
35 centímetros de altura, as pernas cruzadas, de preferên­
cia a direita sobre a esquerda, as mãos abertas sobre os joe­
lhos. Esta postura é uma das variantes da que tradicional­
mente se conhece como a postura do sábio.
Algumas indicações complementares: os músculos
devem estar completamente distendidos, a cabeça alta, os
ombros naturalmente jogados para trás, o talhe curvado de
tal modo que, visto de perfil, a coluna vertebral apresente
uma ligeira convexidade para frente. Os olhos podem estar
abertos ou fechados, porém, no princípio, convém fechá-
los, para evitar que se cansem e perturbem o exercício. A
posição deve ser praticada diária e regularmente. A regulari­
dade do treinamento e a escolha de uma hora certa para fazê-
lo são condições necessárias. As tendências se acentuam,diz
uma lei esotérica; e também: o ritmo multiplica o resulta­
do. Porém, não se deve andar demasiadamente rápido.
Outra máxima tradicional, diz : apresse-se lentamente.
Cumpridas tais condições, os exercícios de posturas
serão feitos todas as manhãs, em jejum, durante dois ou
três minutos no máximo, no começo. Com vagar se irá
prolongando sua duração, sempre com a expressa condição
de manter, durante todo o exercício, uma imobilidade
completa, inclusive, dos olhos.
Pois bem, que meio de controle permitirá saber em
qual momento encontrou-se a postura do sábio? A resposta
é categórica: pela sensação de repouso experimentada. Um
quarto de hora de postura correta deixa uma sensação de
descanso que horas de sono não proporcionam.
Uma vez encontrada a postura, e não antes — confor­
me os casos demandarão semanas ou meses —, se iniciarão
os exercícios com o objetivo de sentir a "nebulosa".
Cabe mencionar que a unidade de medida do tempo
é individual e muda, em especial, com a idade. A unidade
de base é, para cada um, o intervalo entre duas pulsações
cardíacas com o corpo em repouso. Deve-se adquirira me­
mória interior desta unidade, desta pulsação, já que o
ritmo dos exercícios esotéricos está sempre, conforme ela,
regrado.

45
Os primeiros exercícios serão feitos como se segue:
aspirar durante quatro pulsações, reter a respiração durante
quatro pulsações e expirar durante quatro pulsações. Exe­
cutar o movimento harmoniosamente, sem sobressaltos.
Pode aparecer estremecimento: a continuidade dos exercí­
cios o eliminará nos dias seguintes. Do mesmo modo se
surgir angústia. Em troca, se se está doente — ainda que se
trate de um simples resfriado ou um pouco de febre —, os
exercícios devem ser interrompidos.
Quanto ao resultado, sua aparição é, em cada caso,
individual: em alguns chega quase imediatamente, em
outros, no final de um longo período de treinamento. Mas
o que obtém resultado facilmente, também facilmente o
pode perder, enquanto aquele que o alcança por um traba­
lho persistente, o possuirá solidamente.
A primeira sensação da "nebulosa" aparece, geralmen­
te, durante o terceiro tempo do exercício, no decurso da
expiração. Sente-se que passa pela laringe e ao longo da
glândula da tireoide. A sensação é agradável. Mais tarde,
quando a "nebulosa" for sentida desde o ápice da cabeça
até o coração — ou mais além —, o estudante saberá que
deu um grande passo à frente.
Sentir a "nebulosa" já é muito, porém não é mais que
o primeiro passo. Temos dito, com certas reservas, que é
assim que a Personalidade se faz sentir em nós. Sobre o
plano psíquico, a "nebulosa" pensa, sente, atua, muda
constantemente. Pela sensação direta, dá a branda impres­
são de uma massa nevoenta de caráter amorfo. Tal impres­
são é falsa.
A Personalidade é um organismo. Como tal, tem uma
estrutura. Porém, sua estrutura nos escapa, porque não a
conhecemos nem a estudamos, pois nossa atenção se
encontra constantemente retida pelos fatos e eventos
externos e pelas consequentes reações mecânicas que pro­
vocam em nós.
Os primeiros ensaios de observação interior nos con­
duziram a distinguir três correntes de vida psíquica, repre­
sentadas pelos três centros (Figura 4). Deve ficar claro que
estes centros não são pontos físicos nem órgãos colocados

46
em lugares determinados de nosso corpo. São antes centros
de gravidade de cada uma das três correntes de nossa vida
psíquica. Tampouco esta definição é totalmente exata. O
centro motor, por exemplo, desempenha uma parte ativa em
todo movimento físico ou psíquico; como o pensamento
leva em si um movimento, o centro motor está presente
nele e rege a parte motriz do fenômeno. O mesmo ocorre
com os sentimentos, paixões, sensações etc.: uma descober­
ta feita pelo centro intelectual com a ajuda do centro
motor é imediatamente comunicado a este último, transmi­
te ao centro emocional, onde provoca as reações correspon­
dentes. A transmissão pode se efetuar em outra ordem.
Foi assim que Arquimedes, transbordando de felicidade
pela descoberta do princípio que leva seu nome, correu
pela cidade de Siracusa gritando "Eureka"'. pensamento,
emoção, movimento. Isto nos mostra que os três centros
psíquicos que abarcam, regem, expressam a vida de nossa
Personalidade e constituem sua estrutura não sao autóno­
mos.
Com a continuidade da introspecção poder-se-á cons­
tatar que cada um dos centros está dividido em duas partes:
positiva e negativa. Normalmente, ambas atuam em con­
junção: estão polarizadas, como o estão os órgãos duplos
do corpo, que cocorrem para o cumprimento das mesmas
funções ou são suscetíveis de participar, ao mesmo tempo,
na execução de um mesmo trabalho, como por exemplo,
nossos braços. Reflexo da polarização universal, esta divi­
são dos centros lhes permite estabelecerem comparações,
considerar as duas faces dos problemas que lhes são pro­
postos: a parte positiva do centro, o que poderíamos
chamar o direito do problema, e a parte negativa, o contrá­
rio. O centro inteiro opera uma síntese e extrai conclusões
inspiradas nas constatações feitas por cada uma das partes.
Tal é, por exemplo, o processo de análise crítica. Como se
verifica, seria um erro considerar que os nomes dessas
partes têm conotação com um papel benéfico ou maléfico,
conforme sejam elas positivas ou negativas. Esta designação
não implica um juízo de valor, como não implica, tampou­
co, a constatação da existência de cargas positivas e negati­
vas nas partículas elementares.

41
Se considerarmos o funcionamento do centro motor,
perceberemos que ambas as partes são inseparáveis uma da
outra, tanto na sua estrutura como na sua ação. Pode-se
dizer, sob certas reservas, que a parte positiva do centro
corresponde ao conjunto das funções instintivas do orga­
nismo psicofísico do homem e sua parte negativa às
funções motoras. Noutras palavras, o centro motor é — no
sentido mais amplo do termo — o organizador do nosso
corpo, o que equilibra as energias que sua parte positiva
acumula e as que sua parte negativa consome.
Esta simetria, esta polaridade, tornam a se encontrar
nos outros centros.
As idéias construtivas, criadoras, nascem na parte
positiva do centro intelectual. A parte negativa faz uma
avaliação da idéia, toma, por assim dizer, sua medida —
com base nesta polaridade funcional — e o centro na sua
totalidade, julga.

Do mesmo modo, no centro emotivo, a parte negativa


se opõe à ação da parte positiva ao tempo em que a com­
pleta, permitindo assim ao centro distinguir, por exem­
plo, o agradável do desagradável.
Contudo, podemos usar mal as faculdades das par­
tes negativas e esse uso apresenta um perigo efetivo. Isto é
patente no caso do centro motor, somente que, aqui, o
esgotamento físico atua como controle e detém os exces­
sos de consumo de energia. Quando se trata de outros cen­
tros, o mau uso das partes negativas adota formas muito
mais insidiosas, que trazem consequências indesejáveis
tanto para nosso corpo como para nosso psiquismo. É
assim que a parte negativa do centro intelectual alimenta
os ciúmes, os maus pensamentos, a hipocrisia, as suspeitas,
a traição etc. A parte negativa do centro emocional recebe
todas as impressões desagradáveis e serve de veículo às
emoções negativas, cujo amplo teclado vai desde a melan­
colia até o ódio. Teremos ocasião de aprofundar o proble­
ma das emoções negativas, cujo papel destruidor se desco­
nhece por completo, se bem que represente, de fato, um
dos obstáculos essenciais para a evolução esotérica.

48
Figura 7

A estrutura dos centros não se limita à sua divisão em


duas partes: positiva e negativa. Cada metade se divide,
ainda, em três setores. Completado o esquema precedente,
apresenta-se como se segue:

Figura 8

Em cada centro há, pois, tanto no lado positivo como


no lado negativo, um setor que possui em estado puro as
características do centro: setores puramente intelectuais —
positivo e negativo — no centro intelectual; setores pura­
mente emocionais — positivo e negativo — no centro emo­
cional; setores puramente motores — positivo e negativo —
ao centro motor. Ao lado destes setores puros encontram-
se setores compostos que são, por assim dizer, os represen­
tantes dos outros dois centros. Em conjunto, os setores são
os seguintes:

49
Para o centro intelectual:

1. intelectual puro
2. intelectual-emocional positivo e negativo
3. intelectual-motor

Para o centro emocional:

1. emocional puro
2. emocional-intelectual positivo e negativo
3. emocional-motor

Para o centro motor:

a) parte positiva:
1. instintivo puro
2. instintivo-intelectual
3. instintivo-emocional
b) parte negativa:
1. motor puro
2. motor-intelectual
3. motor-emocional

Há, então, no total, dez e oito setores que formam,


em seu conjunto, a estrutura da Personalidade.
Graças a este sistema, nenhum dos três centros pode —
casos patológicos à parte — atuar de maneira puramente
autónoma; todo o sistema coloca-se, simultaneamente, em
movimento, através dos setores que representam aos dós
outros centros. Subentende-se que a participação destes no
trabalho do primeiro estará, sempre, matizada por ele.
O sistema dos centros é complexo. Responde perfeita­
mente às necessidades, pois permite perceber todos os ele­
mentos psicofísicos do Universo, reagir às impressões assim
recebidas, alcançar os conceitos e proceder a operações
complexas.
O estudo da estrutura da Personalidade permite abor­
dar um problema que cumpre importante papel na ciência
esotérica: o problema dos tipos humanos. Se é exato que

50
cada homem representa, de alguma maneira, um universo à
parte, não é menos certo que os tipos humanos se repetem.
Com frequência se repetem, muito mais frequentementedo
que comumente se acredita; na realidade, não são muitos. No
total, não existem mais que três tipos fundamentais. Estes
tipos se distinguem pela preponderância de tal ou qual dos
três centros psíquicos na Personalidade: o homem, sobre­
tudo intelectual, que pensa, calcula, busca; o homem emo­
cional por excelência, sentimental, artista, romântico; por
último, o homem de ação. Na Doutrina são chamados
assim:

— homem 1: é aquele no qual o centro de gravidade


psíquico reside no centro motor;

— homem 2: é aquele no qual o centro de gravidade


psíquico reside no centro emocional;

— homem 3: é aquele no qual o centro de gravidade


psíquico reside no centro intelectual.

O homem, tal como nasce da mulher, pertence, obri­


gatoriamente, a um dos três tipos fundamentais nos quais
está compreendida toda a humanidade, seja qual for a
raça, a casta ou a classe. Trata-se de uma lei da Natureza e
não é dado ao homem subtrair-se a ela, passando de um
tipo a outro, segundo sua conveniência.
Veremos, entretanto, que existem outros tipos, supe­
riores aos três tipos fundamentais, porém — salvo casos
totalmente excepcionais — não se pertence a esses tipos su­
periores por direito de nascimento. A criação dos tipos
sqperiores é o resultado de um longo processo de gestação
ao qual Jesus aludia quando, falando a Nicodemo, dizia-lhe
que o homem deve nascer de novo. Para elevar-se a tais
níveis, é necessário realizar esforços conscientes e persis­
tentes, de acordo com as regras instituídas desde milénios
pela ciência esotérica.

51
CAPÍTULO IV

O homem exterior1 tem três Eus: o Eu do corpo (físi­


co), o Eu da Personalidade (psíquico) e, em potência, o Eu
real espiritual). Teoricamente, o Eu real deveria ter as­
sumido a responsabilidade do comando de todo o siste­
ma. Entretanto, desde a queda de Adão, o Eu real está rele­
gado, do ponto de vista do foro interno, ao último plano da
consciência de vigília, dominado pelo Eu psíquico da Per­
sonalidade. Porém esta, que dirige, por assim dizer, interi­
namente, carece de unidade. Mutante, flutuante, múltipla,
somente pode atuar de maneira desordenada. Tanto é
assim, que o Eu do corpo que, normalmente, deveria ob
decer ao Eu psíquico, com frequência lhe impõe seus pró­
prios movimentos. Um exemplo banal de tal domínio está
no adultério oriundo de uma atração sexual sem nenhum
laço espiritual. (Não confundir com a exploração da atra­
ção sexual com metas determinadas pelos cálculos do
centro intelectual da Personalidade.)
Se passamos em revista, em nossa vida, a diferentes
exemplos de relação entre os três Eus, nos será proveitoso
voltar a meditar sobre o símbolo da Carruagem, que ofere­
ce numerosas e instrutivas analogias a respeito.
Usamos o Eu da Personalidade em estado de vigília.
Durante o sono, perdemos conhecimento desse Eu e o do
corpo toma o seu lugar. Desde então, as funções puramen­
te fisiológicas têm um caráter contínuo, porém é quando o
homem acabou de adormecer ou seja, quando o Eu psíquico
se desvanece e já não se imiscui na atividade do Eu do
corpo — que o Eu do corpo atua sobre o plano que lhe é
1. Marcos, IV, 11.

53
próprio, sem freios e de caso pensado. Cabe observar que o
Eu do corpo nunca desaparece totalmente em casos de
letargia ou de anestesia, nem sequer em coma.
0 centro motor serve de órgão de manifestação ao Eu
do corpo. Será visto, mais adiante, que não é o único a
cumprir esta função. Quanto ao Eu psíquico, o da nossa
Personalidade, se expressa, geralmente, pelos centros emo­
cional e intelectual. Não obstante, na maioria dos casos,
utiliza esses centros de maneira inadequada e costuma,
além disso, intervir no funcionamento do centro motor.
Consequência imediata deste estado de coisas é a ilogicida-
de de nossa vida psíquica: o Eu do corpo entra em compe­
tência com o Eu da Personalidade, o qual, enquanto múlti­
pla, não tem — e não pode ter — continuidade lógica nas
idéias nem nos atos. Assim o homem passa a sua vida, de
ações e reações e de reações em ações. Esta incoerência de
nossa vida é fartamente conhecida e serve, com frequência,
de trama para as produções de romancistas e dramaturgos.
Na Tradição, evoca-se assiduamente nestes casos a ima­
gem de uma coexistência de três homens no homem: um
que pensa, outro que sente e outro que atua. São descritas
suas intromissões nos domínios alheios, intromissões que,
conforme os casos, podem ser, ou não, naturais, saudáveis
ou danosas. As intervenções não naturais são sempre noci­
vas e nelas radica-se a causa de boa parte de nossos confli­
tos internos e externos. Às vezes suaves, noutros casos
violentas, estas intromissões se agravam ainda mais pelo
fato de que os centros, dado a sua divisão em setores, não
podem atuar de maneira autónoma, ainda quando cada um
pretenda impor-se aos outros. Quanto mais forte for a ação
empreendida por um centro, tanto mais forte será o arrasto
mecânico que sofrem os outros dois — casos patológicos à
parte.
Dado que o Eu da Personalidade está formado por um
número considerável de pequenos Eus dispostos em dife­
rentes grupos que, por sua vez, regem nossas atitudes e
nossas ações, como conciliar este estado caótico com a
continuidade, ainda que não seja mais que aparente, de
nossa vida psíquica? São três os elementos que fundamen­
tam esta aparência de continuidade:

54
— o nome;
— a experiência fixada pela memória,
— a faculdade de mentir a si próprio e de mentir aos
demais.

O nome que levamos corresponde ao Eu da Personali­


dade, ou seja, ao conjunto das partículas de farpas, qual­
quer que seja a posição recíproca que estas adotem. Desde
a adolescência, o nome corresponde, também, à representa­
ção que o homem faz de si mesmo em estado de vigília,
mais, com frequência, a soma de uma imagem ideal de si,
imagem do que aspira a ser o futuro.
Por isso se aferra ao seu nome como a uma tábua de
salvação. Com efeito, tudo o que existe tem um nome; sem
nome não podemos imaginar nenhuma existência psíquica
ou física, real ou fática.
No caso do homem, seu nome e sobrenome cobrem o
conjunto do que se pode definir como seu universo pró­
prio, tanto em seus elementos concretos como nos imagi­
náveis, assiduamente considerados por ele como reais.
A memória é função direta do ser do indivíduo.
Quanto mais alto for o nível de ser, tanto mais forte será a
memória e tanto maior sua capacidade de conter. A perda
da memória traz como consequência a perda da noção do
nome e de todo o conjunto ao qual se refere e faz do
homem normal um louco: a questão da continuidade já
não se propõe.
A faculdade de mentir é o terceiro elemento constitu­
tivo de nossa vida fática que ajuda esta, substancialmente,
a proporcionar essa aparência de continuidade. Podemos
compreender sem dificuldade o papel que a faculdade
de mentir desempenha, se procuramos imaginar o que
seria nossa existência caso esta possibilidade nos fosse
negada. Os choques e conflitos que deveríamos enfrentar
nos tornariam a vida impossível. Neste aspecto, as menti­
ras servem de amortecedores, como os amortecedores dos
vagões de trem servem para amortecer os choques. É assim
que a faculdade de mentir faz menos contraditória nossa
vida e contribui, eficazmente, para nos dar a impressão de

55
continuidade. Uma vez mais encontramo-nos diante do
fato de que nos atribuíamos faculdades que somente
possuímos como possibilidades a desenvolver. Temos a
pretensão de sermos verazes. Mas dizer a verdade e viver
na verdade é uma possibilidade que somente poderá ser
real muito mais tarde, como consequência de um traba­
lho assíduo sobre nós mesmos. No entanto, estamos conde­
nados a mentir e aquele que o nega está atestando a dificul­
dade em que nos encontramos para olhar a verdade de
frente.
Devemos deter-nos um momento na questão da men­
tira, questão de grande importância sobre a qual voltare­
mos mais de uma vez. A faculdade de mentir é função da
capacidade de imaginar que é, por sua vez, uma faculdade
criadora, já que antes de criar algo será preciso imaginá-lo.
Este dom pertence exclusivamente aos humanos, os ani­
mais não dispõem dele. Graças ao dom da imaginação, dom
divino, temos a faculdade de mentir. Mentimos por moti­
vos diversos, em geral porque desejamos melhorar situa­
ções que nos parecem insustentáveis ou difíceis de acei­
tar. A mentira abre, então, o caminho a mecanismos de
racionalização ou de justificativa, que são os agentes dos
"remendos" internos. Veremos mais adiante como as
linhas de conduta das pessoas que nos rodeiam se entrecru-
zam e provocam, nas relações humanas, choques que dão
origem a situações difíceis, às vezes insolúveis, verdadeiros
nós górdios. Nestes momentos, com a melhor boa-fé, recor­
remos à mentira.
A atitude da Doutrina esotérica frente à mentira é
clara e realista. Não pede que se deixe o ato de mentir.
Ninguém poderia sustentar um tal compromisso. Porém, se
o homem não pode mentir aos demais, não sucede o mes­
mo no que a ele concerne. Pede-se-lhe, então, expressamen­
te, que cesse de mentir a si próprio. Trata-se de uma forma
cuja razão facilmente se compreende. O objetivo do traba­
lho esotérico é caminhar em direção da Consciência, isto é,
em direção da Verdade. Seria um contradictio in objecto
querer aproximar-se da verdade, enquanto se continua
mentindo, crendo nas próprias mentiras, é preciso destruir

56
sem piedade qualquer tentativa de mentir a si mesmo. Nes­
te ponto, não se tolerarão acordos parciais nem se admi­
tirão desculpas de nenhuma índole. E, posto que na nossa
atual situação não podemos viver sem mentir aos outros,
devemos, em todo caso, ser conscientes de nossas mentiras.

Há, todavia, outra recomendação a fazer neste campo.


No conjunto das mentiras aos demais, devemos exercitar­
mo-nos para distinguir as que são indispensáveis, inevitáveis
ou simplesmente úteis, das que não o são, em absoluto. A
Doutrina pede aos que a estudam, que se lute energicamen­
te contras as mentiras inúteis.
Somente mediante um treino desta natureza se chega­
rá progressivamente a dominar em si a tendência a mentir.
Quanto às tentativas de forçar as coisas no que concerne à
mentira dos demais, estão, de antemão, destinadas ao
fracasso, porque vivemos em um mundo afundado na men­
tira e movido pela mentira, é interessante observar que o
Decálogo que impõe ao homem os mandamentos a obser­
var somente lhe proíbe mentir num pequeno setor das rela­
ções humanas, o do falso testemunho, e inclusive somente
quando esteja dirigido contra seu próximo 2
O costume de mentir a si próprio se desenvolve
desde a infância e é preciso lutar contra ele com todos os
meios disponíveis. Uma de suas variantes encontra-se
muito difundida, por, à primeira vista, aparecer como uma
atitude positiva, que se adapta a não importa que caso,
tanto na linguagem falada como na escrita, em uma conver­
sação mundana ou em uma tese de doutorado. Esta atitude
se traduz pela expressão: sim, mas... Seu uso, em si, não
implica nada de nocivo; pelo contrário, é útil e até indis­
pensável nas discussões, controvérsias e debates onde tanto
se faz uso dela. Agora, aplicada a si mesmo, com o objetivo
de suavizar um choque ou de recuperar a paz interior após
uma transgressão, ou para desculpar suas ações ou seus
defeitos, esta locução se cristaliza em nós para criar, com o
tempo, um verdadeiro mecanismo autotranqúiiizador.

2. Deuteronômio, V, 20.

57
Cabe observar que seus efeitos não têm nenhuma compara­
ção com os do sangue frio, a presença de espírito ou outros
clarões da consciência. Pelo contrário, trata-se de um ver­
dadeiro mecanismo de anestesia mental, baseado na menti­
ra refinada e disfarçada, que vai semeando no homem a
hipocrisia frente a si mesmo.
Este autotranqúilizador, como os outros amortecedo­
res mentais, deve ser destru ído.
Voltemos ao estudo do Eu da Personalidade. Estabe­
leceu-se que esse Eu, no estado em que se encontra, é
"areia" movediça. A imagem da areia, assim como a da
"legião" usada no Evangelho,3 estão muito próximas da
realidade, porque o que tomamos por nosso Eu é, de fato,
a justaposição de um número considerável de pequenos
Eus. Na Personalidade, cada pequeno eu ou grupo de
pequenos eus, entra em cena conforme as circunstâncias.
Existem múltiplas combinações entre esses eus, mas seu
número é limitado e pode ser calculado.
Temos visto que, segundo a Tradição, o homem
possui três centros psíquicos, cada um dividido em seis
setores, o que eleva a 18 o número de órgãos da consciên­
cia da Personalidade. Cada pequeno eu nada mais é do que
uma fração da consciência desta Personalidade, do conjun­
to do Eu psíquico; fração que, momentaneamente, se
afirma como totalidade desse Eu. Aplicando o cálculo algé­
brico às possíveis combinações que resultam da existência
de três centros e de 18 setores, encontramos que o número
de tais combinações se eleva a 987. A consciência fracioná-
ria traduz o deficiente estado em que se encontra a Perso­
nalidade. No momento, diremos que esta consciência
fracionária surge no homem como corolário das diversas
possibilidades de combinações dos setores que participam,
a cada momento, da recepção das impressões e da expres­
são dos desejos, dos sentimentos e das opiniões. Os setores
agrupam-se, em geral, de três em três ou de dois em dois;
é bastante raro que somente um setor participe de um esta­
do psíquico. Até oue se tenham soldadas as farpas, as 987
combinações dos centros e seus setores dão nascimento a
3. Marcos, V, 9; Lucas, VIII, 30.

58
igual número de tomadas de consciência parciais da Perso­
nalidade, que se afirmam como o Eu na sua totalidade, Eu
que nesse momento elas acreditam expressar.
As combinações que se fazem e desfazem em nós, sem
cessar, a partir desses pequenos eus, tecem nossa vida, e
seus resultados são nocivos. Como a farpa no copo, a vida
se modifica sem parar, anarquicamente, ao acaso dos acon­
tecimentos, sem intervenção de um plano preestabelecido
para alcançar uma meta premeditada. Isto faz pensar no
fenômeno de interferência de ondas, representável grafica­
mente por um entrecruzamento de sinusoides.

Figura 9

Este fenômeno tem como resultado um esgotamento


que conduz o homem à morte. Mais adiante será visto o
problema de outro ângulo, que explicará melhor as causas
do envelhecimento e da morte. Do ponto de vista esotéri­
co, a morte é uma falha. A fricção das farpas que se produz
na vida corrente não é suficientemente intensa para fazer
brotar o fogo interior suscetível de transfigurar todo o ser,
o qual lhe permitirá vencer a Morte. Porém, é amplamente
suficiente para esgotar por completo a reserva das forças
vitais e acarretar a morte. A este caso, entre outros, se apli­
cam as palavras do Apocalipse:
"Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente. Quem
dera fosses frio ou quente! Assim, porque és morno, e nem és quente
nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca, pois dizes:
Estou rico e abastado, e não preciso de coisa alguma, e nem sabes
que tus és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu. Aconselho-te que
de mim compres ouro refinado pelo fogo para te enriqueceres, vesti­
mentas brancas para te vestires, a fim de que não seja manifesta a ver­
gonha da tua nudez, e colírio para ungires os teus olhos, a fim de que
vejas."4
4. Apocalipse, III, 15-18.

59
CAPITULO V

Na formação e no desenvolvimento dos três centros


psíquicos da Personalidade não há sincronização.
O centro motor já se encontra desenvolvido no recém-
nascido. Sua parte positiva-sensitiva se forma e cresce no
seio materno desde a concepção e durante toda a gravidez,
de modo tal que, no momento do nascimento, já funciona
no ritmo normal. A partir daí não mais sofrerá mudanças
qualitativas. Pelo contrário, a parte negativa-motriz do
centro se acha muito menos desenvolvida. Pode-se dizer
que, se a parte instintiva do recém-nascido funciona com
75% do seu rendimento normal, apenas 25% correspondem
à parte motora, afetada quase totalmente pelos movimen­
tos interiores do corpo. Durante todo o crescimento — antes
e depois da puberdade — esta parte do centro motor sofre
um desenvolvimento não somente quantitativo como tam­
bém qualitativo. Todo o fazer do Eu físico — desde o pegar
o seio, pela criança, até os mais complexos movimentos —
exige em cada caso um certo desenvolvimento de caráter
qualitativo, desenvolvimento este que dura toda a vida.
O centro emotivo caracteriza-se, no recém-nascido,
pela pureza. Enquanto a criança não aprende a mentir,
conserva a maravilhosa faculdade, própria desse centro, de
discernir espontaneamente — e sobre uma ampla gama — o
verdadeiro do falso. Com o tempo, a educação e tudo o
que se inculca na criança, este centro se decompõe e essa
faculdade se perde, para ser reencontrada somente muito
mais tarde, através do trabalho esotérico, exercícios espe­
ciais e esforços persistentes. Normalmente, o centro emotivo
está longe de ser encontrado no recém-nascido tão desen-

61
volvido como o centro motor e, em geral, durante a vida
do homem 1,2, 3 ou exterior não sofre um desenvolvimen­
to comparável ao dos outros dois centros.
Enquanto a instrução é o centro das preocupações das
famílias e dos poderes públicos, o desenvolvimento emoti­
vo da criança está quase totalmente preso ao acaso. Na civi­
lização contemporânea, isto leva a um extraordinário
empobrecimento da vida afetiva. Já no século XVIII o
abade Prevost assinalava:

"Poucas pessoas conhecem a força dos movimentos especiais


do coração. O comum dos homens não é sensível a mais do que a
cinco ou seis paixões, no círculo das quais passa sua vida e a elas se
reduzem todas suas imaginações. Tirem-lhes o amor e o ódio, o pra­
zer e a dor, a esperança e a tristeza, nãosentem nada mais.”

E acrescenta:

"'Mas as pessoas de caráter mais nobre podem se emocionar de


mil diferentes formas. Parece que elas puderam receber idéias e sen­
sações que superam as normas comuns da natureza."

O desenvolvimento do centro emotivo é o principal


objetivo da cultura esotérica. Como se verá mais tarde,
somente por este centro o homem poderá encontrar a
chave que abre a porta de acesso à vida superior.
O centro intelectual no recém-nascido está em estado
embrionário. O intenso desenvolvimento que sofre conti­
nua ao longo da vida e toma, de maneira assídua, na nossa
civilização, formas hipertrofiadas.
O que se chama formação do homem consiste, quase
exclusivamente, na formação de seu centro intelectual, por
meio da instrução, da experiência pessoal e do trabalho
analítico ou construtivo, original ou de recompilação.
O centro intelectual da criança é uma folha em
branco. Podemos compará-lo com um sistema de discos
fonográficos virgens. Tal sistema é amplo, ordenado e está
munido de um dispositivo — o das associações — pelo qual
o disco que chega ao seu término faz saltar, automatica­
mente, outro disco, cujo conteúdo se associa ao primeiro.

62
Do mesmo modo, o disco que gira no interlocutor pode
provocar em nós, sempre por associação, o colocar em
andamento de um disco correspondente. Assim é como
nasce o diálogo e, em geral, a conversação.
Este procedimento é mecânico, é facilmente observa­
do no curso de uma conversação entre pessoas que se co­
nhecem pouco. Tal prática cai forçosamente ao nível ele­
mentar dos interesses mais banais: o tempo, as novidades
políticas ou locais. Escuta-se os discos se forem em movi­
mento e girar sem interrupção, passar de uma pessoa a outra,
enquanto os rostos permanecem fixos numa máscara que,
no consenso geral, testemunha uma atitude amável.
A gravação dos discos é levada a cabo praticamente
até o infinito, a discoteca é ampla e o aparato registrador
muito sensível. Quando alguém fala, é possível distinguir
com bastante facilidade se os discos estão girando ou se
eátá falando desde o fundo de si mesmo, em cujo caso em­
prega uma linguagem de imagens, rústica, às vezes torpe.
No primeiro caso, a linguagem torna-se encantadora. É im­
portante fazer tais observações sobre si mesmo, a fim de
constatar estas variações de linguagem. Em um momento é
Eu quem fala; logo, insensivelmente, não é mais eu, um
disco gravado começa a girar em mim. Coisa curiosa: uma
vez colocado em andamento, é quase impossível deté-lo
enquanto não se tenha esgotado seu conteúdo.
Há discos que se conservam cuidadosamente; outros
esperam novas gravações. Uma série especial costuma
representar a técnica profissional. Cada um, na esfera da
sua atividade, cria uma coleção de discos — inconsciente­
mente, é claro — que utiliza para cobrir as necessidades de
sua profissão.
Porém, ao lado desses discos, existem outros, cujo
conteúdo carece de sentido e não correspondem a neces­
sidades nem a fatos. A esta categoria pertence, por exem­
plo, o estilo anedótico, essas pequenas histórias espirituo­
sas ou que assim parecem a quem as conta. A observação
interior permitirá descobrir todo um repertório composto
dessa classe de discos. Esta descoberta oferece possibilida­
de de trabalhar com o fito de dominar o surgimento desta

63
classe de discos e de tratar de eliminá-los completamente.
Para isso, é preciso, em primeiro lugar, aprender a distin-
gui-los dos discos úteis e providos de sentido, mediante a
análise de seu conteúdo e pelo "sabor" intelectual que pro­
voca seu andamento, como também pela entonação carác­
ter ística que a voz adquire. Em segundo lugar, deve-se tra­
tar de captar o instante de sua aparição, já que — se verá
mais adiante o porquê — nesse preciso instante é possível
tornar-se senhor desses discos e suprimir 09 que são inúteis.
A experiência mostra que a criança se identifica com
o Eu do corpo, sob cuja obediência se encontra a Persona­
lidade, ainda muito subdesenvolvida nela. Prova disto é
que, falando de si mesma, ao evocar seu nome, atributo da
Personalidade, o faz na terceira pessoa, tal como o adulto
— identificado com a Personalidade — trata a Alma na ter­
ceira pessoa. Com efeito, ainda que menos aparente, a obe­
diência da Personalidade ao Eu do corpo subsiste com fre­
quência no adulto.
Consciente deste domínio, quem se dedica às práticas
esotéricas tenta submetê-lo e costuma recorrer, para tal
fim, a perigosos métodos. É assim que em certas técnicas
esotéricas ortodoxas, muçulmanas, hindus, comete-se o
erro de recorrer a mortificações que sobrepujam os limites
do sentido comum. Esquece-se que o corpo é a cavalgadura
que estamos chamados a cavalgar durante toda a nossa
vida, e que é um instrumento insubstituível. Certamente,
deve ser adestrado, disciplinado e mantido em sua posição
de obediência, porém não é menos certo que deve ser
convenientemente cuidado e atendido. O resultado a pro­
curar neste campo será sempre um estado de disciplina que
não comprometa o vigor nem a saúde.
O instrumento que emite sons discordantes tem de ser
afinado e não fazer cessar a cacofonia cortando as cordas.
A formação do caráter efetua-se paralelamente ao
crescimento e ao desenvolvimento dos centros psíquicos
do homem. Temos visto que a Personalidade está constituí­
da por pequenos eus, cada um dos quais se afirma, a seu
turno, por uma das combinações possíveis dos centros e
seus setores. Estes pequenos eus formam as farpas que, em

64
certas condições, friccão e fogo, seo suscetíveis de uma trans­
formação radicai por aquilo que temos chamado a solda­
gem: neste momento, o caráter do homem pode ser consi­
derado efetivamente formado. Logo, então, adquirem-se
as qualidades ideais: firmeza no homem, doçura na mulher.
Já não momentaneamente — até a próxima tormenta —,
mas de forma permanente, matizada sempre pela natureza
de cada pessoa. Enquanto a soldagem não for total, o que
chamamos de caráter pode ser comoarado a uma tenda
armada sobre a areia de uma praia, exposta aos ventos e às
tempestades. Esse caráter representa, na realidade, o agru­
pamento de certo número de pequenos eus, constituído
em função de fatores, tais como: predisposições inatas,
educação, instrução, atrações pessoais em todos os planos
da consciência — especialmente na subconsciência —, por
último, associações fortuitas. Tais agrupamentos se consti­
tuem sobre bases muito variáveis. O grau de firmeza dos
laços que unem os pequenos eus pode originar uma frágil
federação ou, pelo contrário, constituir uma soldagem
parcial. Essa soldagem pode produzir-se de diversas formas:
sob a forma de casca — anular ou lateral — ou sob a forma
de coágulos:

Ba
Figura 10 Figura 11
No primeiro caso, o caráter usa uma consciência — su­
perficial — de forma e de aparência. O caso não é raro
entre os anglo-saxões e os germânicos. Esta classe de
homens tem seus princípios, mas é essencialmente pragmá­
tica. No segundo caso, a orientação do caráter é mais rígi­
da. O caso é mais frequente entre os grupos humanos surgi­
dos dos romanos. Com o tempo, orientou-se para o culto
da lógica formal e da formação do espírito cartesiano.

65
0 terceiro caso não se caracteriza pela formação de
um só agrupamento de partículas no seio dos pequenos
eus, mas de dois grupos, que aparecem como coágulos em
meio a uma fluida massa.

Figura 12

Tais casos costumam-se encontrar entre os eslavos e


no Próximo e Médio Oriente. A presença de dois agrupa­
mentos no lugar de um torna mais frágil o conjunto da Per­
sonalidade, sobretudo para a defesa dos interesses pessoais
do indivíduo. Pelo contrário, tal estrutura o faz "bilate­
ral", ou seja, mais objetivo e, em consequência, mais com­
preensivo. Quando há dois coágulos, um está constituído
por pequenos eus de caráter emotivo e o outro por peque­
nos eus de caráter intelectual. Ao produzir-se um choque
interior ou exterior, estabelece-se entre ambos uma estreita
colaboração e, por um tempo, formam um bloco. O caráter
torna-se, então, particularmente firme, capaz de tomar
decisões ou de sustentar uma luta heroica. Porém, nas con­
dições habituais, o caráter desses grupos humanos — para
quem o interesse, a aventura ou o lucro não constituem um
impulso suficiente para romper o equilíbrio entre ambos os
coágulos e tender à soldagem geral — deve magnetizar-se,
sempre, por algum motivo desinteressado: idéia, crença,
doutrina, adoração, confiança etc. A formação de dois coá­
gulos tem, às vezes, efeitos nitidamente negativos: o ho­
mem torna-se incapaz de tomar decisões, porque em cada
caso encontra tantos argumentos a favor da abstenção
como da ação. A literatura russa oferece mais de um exem­
plo de tipos humanos desta espécie, especialmente as obras
de Dostoievsky. A cristalização simultânea de dois coágu-

66
los na massa dos pequenos eus, pode provocar um desdo­
bramento da Personalidade. Casos de formação de trêscoá-
gulos existem, também, mas pertencem à categoria dos
casos patológicos, cujo exame não entra no quadro do
presente estudo, somente mencionaremos que a formação
de três ou mais coágulos evolui, no geral, em direção à dis­
solução completa da Personalidade.
Examinemos, agora, a posição que a Personalidade do
adulto ocupa com respeito no Eu real, nosso foro interno,
esse Juiz supremo, equitativo, imparcial, porém passivo.
Podemos representar essa posição relativa no seguinte
esquema:

Figura 13

O círculo da esquerda representa o Eu da Personalida­


de, ou seja, o conjunto dos pequenos eus que, no fundo, é
um Não-Eu. O círculo da direita é o Eu real. Nos homens
1, 2 ou 3 domina a Personalidade. É ela quem atua, en­
quanto o Eu real que, desde a queda de Adão, ocupa no
homem uma posição eminentemente passiva, sofre as con-
seqúências de seus atos. A Personalidade persegue seus pró­
prios fins e atua por seu capricho, transgredindo, assidua-
damente, os princípios e máximas do Eu real. Esta observa­
ção permite captar o profundo sentido das palavras do
Apóstolo São Paulo: "Não faço o que prefiro, e sim, o que
detesto".1

1. Romanos, VII, 5.

67
Tal é a situação do homem que passa sua vida na igno­
rância de suas faculdades latentes, isto é, da Vida real. Sua
existência fática é apenas um empréstimo: é, portanto,
temporária e chega a seu fim com a morte, segundo a pala­
vra divina: "Porque tu és pó e ao pó tomarás"?
Quais são o sentido e a meta de tal existência? Não se
poderá encontrar uma explícita resposta a esta pergunta, a
menos que seja examinada num contexto mais amplo: o da
vida do Cosmos. Então se compreenderá o sentido da vida
humana, sua razão 'de ser objetiva, em relação à economia
do Universo. Pelo contrário, considerada sob o ângulo indi­
vidual, subjetivo, tal existência parece absurda. Assim o
têm visto e dito, sempre, os grandes espíritos. Pushkin cla­
mava: dom maravilhoso, dom inútil, vida, com que objeti­
vo nos é dada?
Tocamos, agora, num grande problema, o problema
da Morte. Quanto mais o homem se identifica com sua Per­
sonalidade, menos pensa na morte. Contra toda evidência,
vendo que todos morrem ao seu redor, o homem não tem
o sentimento espontâneo de sua mortalidade. Ainda que
dotado de uma fecunda imaginação, somente com grandes
dificuldades pode representar, a si mesmo, a morte. Deve
fazer um esforço para considerar a idéia de sua própria
morte e criar uma imagem dela. O mais que pode fazer,
neste sentido, é evocar a imagem de seu próprio cadáver,
mas não poderá excluir dessa representação o observador
que contempla a imagem. É um fato conhecido e certos
autores creram nele ver a prova de nossa imortalidade. Há
nisto algo de verdade. O esforço mental tendente à repre­
sentação de sua própria morte debilita um pouco no homem,
sem que ele o note, a identificação com seu corpo e tam­
bém com sua Personalidade, para identificá-lo, em troca —
ainda que não seja mais que parcialmente e por breves ins­
tantes —, com seu Eu real. 0 resto do tempo não se dá
conta, permanece esquecido em algum lugar do mais pro­
fundo de nossa consciência de vigília, que é consciência do
Eu de nossa Personalidade, acompanhada da consciência
do Eu do corpo.
2. Gánesis, III, 19.

68
Este exercício é útil e inclusive necessário. Na ortodo­
xia esotérica é imposto aos estudantes, junto com a prece
de Jesus, como exercício de cada dia, sob o título de lem­
brança da morte. Porque a morte é, ela somente, o único
acontecimento real que nos sucede indefectivelmente.
Noutras palavras, ter, constantemente, presente no espírito
a idéia da morte que se aproxima dia a dia é o meio concre­
to para enfrentar a implacável realidade ante a qual tor­
nam-se pálidas todas as alegrias e todas as preocupações da
Personalidade. Assim é como aprendemos que, com efeito,
"tudo é vaidade e tormento do espírito".3
A situação não terá saída enquanto o homem, afir­
mando-se como Personalidade, continuar identificado com
sua consciência relativa, fazendo seus os objetivos e interes­
ses dela. Esse é o "espaçoso caminho que levaà perdição".4
• Porém, onde estão, então, "a estreita porta" e o "aper­
tado o caminho que conduz para a vida"?5 O breve exame
realizado sobre as relações entre a Personalidade e o Eu real
indica onde devemos buscar a resposta. Sobre este ponto,
devem concentrar-se os esforços daquele que busca uma
saída para esta existência fática, onde ele mede a vaidade.
Nisso reside toda a esperança.
Partindo destas constatações, a ciência esotérica con­
sidera o homem não como algo já pronto, mas como uma
possibilidade. Observa que o crescimento e o desenvolvi­
mento biológico, psíquico e moral do homem exterior se
detém, espontaneamente, em certo nível. O homem, sem
dúvida, continua atuando e atua, inclusive, de forma cons­
trutiva nos planos elevados da sua consciência de vigília,
em todos os campos; e em especial, no campo profissional,
pode fazer descobertas e prestar serviços substanciais à
sociedade, porém não pode, ta! como é, elevar seu nível de

3. Eclesiastes, L, 74; II, 17.


4. Mateus, VII, 13.
5. Ibld., 14.

69
ser. Imediatamente, entra em vigor o processo de degenera­
ção: começa pelo corpo físico e leva o homem ao envelhe­
cimento; depois, à morte.
O estreito caminho que conduz à vida oferece a pos­
sibilidade real de inverter a situação representada no esque­
ma anterior (Figura 13). Trata-se de introduzir entre a Per­
sonalidade e o Eu real passivo um laço permanente, contí­
nuo, que torne constante a presença do Eu real no campo
de ação da Personalidade. Então, com o tempo e segundo a
intensidade dos esforços, a situação pode-se modificar
totalmente: à medida que o Eu real — como o "grão de
mostarda"6 — se prender na vida psíquica, dominada até
então pela Personalidade, esta se submeterá pouco a pouco
à vontade do Juiz e, identificando-se com ele, o homem
reencontrará seu Eu real na sua integridade e permanência.
Para ele, a vida perde, então, seu caráter fático, para
tornar-se lógica e sensata. Esta nova condição pode ser
representada pelo seguinte esquema, que mostra uma mo­
dificação essencial com relação ao anterior:

I Eu

Não-Eu
Figura 14

O laço permanente a introduzir entre a Personalidade


e o Eu real é o Conhecimento esotérico. O saber e o saber-
fazer que este permite adquirir constituem a pedra filosofal
da mística medieval e são suscetíveis de provocar no ho­
mem a transmutação desejada.

6. Mateus, XIII, 31, Marcos, IV, 31, Lucas, XIII, 19.

70
A grande dificuldade que torna tão estreito e penoso
o caminho consiste em que a transmutação significa, para a
Personalidade, a perda da sua posição dominante: deve
inclinar-se e submeter-se. E o que faz o problema mais difí­
cil ainda é que a Personalidade deve, de antemão, admitir
esta nova situação. Mais ainda, deve aspirar a ela e desejá-la
intensamente, porque, já o temos dito, o Eu real se encon­
tra em estado passivo no homem exterior. Como a perspec-
tiva de aparição deste Eu e de sua presença permanente na
vida cotidiana acarreta para a Personalidade a perda de seu
livre arbítrio, esta reage vivamente. Nos melhores casos, a
reação não é contínua, mas se traduz por reações que
podem chegar a ser perigosas. É o orgulho da Personalida­
de, que pretende que siga afirmando-se como autoridade
suprema. Compreender-se-á, melhor, agora, que, para com­
prometer-se no estreito caminho, isto é, no trabalho esoté­
rico, o homem-Personalidade deve aceitar, previamente, o
seu fracasso. Enquanto esteja satisfeito de si mesmo, deve
considerar-se rico, no sentido do Evangelho. E sabemos
que “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agu­
lha, do que entrar um rico no reino de Deus*'.7
Na descoberta deste caminho está o verdadeiro senti­
do de nossa vida, esse dom maravilhoso e, de outro modo,
inútil, segundo Pushkin. Este dom oferece uma possibilida­
de. A sua realização nos chama a voz de nosso foro inter­
no. Para alcançar o êxito é preciso trabalhar sem descanso,
com receio de não chegar a tempo. É preciso agir, disse
Jesus, enquanto é dia, a noite vem, quando ninguém pode
trabalhar.8
Se é constante a presença, no espírito, da imagem da
morte, apreciaremos, então, com amargos lamentos, o
valor da jornada perdida.

7. Mateus. XIX, 24, Marcos, X, 25, Lucas, XVIII, 25.


8. João, IX, 4.

71
CAPITULO VI

Tocamos, agora, o campo do esoterismo propriamen­


te dito. O Apóstolo São Paulo diz: ''Cuidado que alguém
vos venha a enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, con­
forme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do
mundo e não segundo Cristo: porquanto nele habita cor­
poralmente toda a plenitude da Divindade. Também nele
estais aperfeiçoados. Ele é o cabeça de todo principado e
potestade".1
Este texto é relevante. O Apóstolo estabelece uma
nítida distinção entre a filosofia positiva baseada sobre as
especulações do que ele chama "a mente carnal"2, assim
como sobre a tradição puramente humana, por uma parte
e, por outra parte, o saber superior, cuja única fonte, diz
ele, é Cristo. Para São Paulo, a mente carnal não é outra
senão a da Personalidade dominada, nos meios cultos, por
uma formação eminentemente intelectual. Agora, apesar
de toda a fineza da arte do raciocínio, esta mente não pode
franquear os limites do racionalismo agnóstico. Fechada
neste círculo, a razão humana não sabe e não pode saber
nada do que se encontra mais além dos seus limites.
Esta distinção entre o saber acessível à Personalidade
e o saber superior, proveniente do plano divino, surge com
maior evidência ainda, na comparação dos seguintes textos
do Apóstolo São João. A afirmação: "Ninguém jamais viu
Deus"3 aparece em flagrante contradição com as palavras

1. Colossenses, II, 8-10.


2. Ibid., 18.
3. João, I, 18.

73
de Jesus citadas pelo mesmo Evangelista: "Se alguém me
ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e vire­
mos para ele e faremos nele nossa morada"4 e "não sabeis
que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita
em vós".5 E no Apocalipse: "Eis que estou à porta, e bato,
se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em
sua casa, e cearei com ele e ele comigo".6
Poder-se-iam multiplicar as citações das Sagradas Es­
crituras em apoio destes textos. Retomemos a definição
pelo Apóstolo São Paulo dessas duas classes de saber que,
aparentemente, não têm uma medida comum; "Ora, o
homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus,
porque lhe são loucura, e não pode entendê-las porque elas
se discernem espiritualmente. Porém o homem espiritual
julga todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado por nin­
guém".7
A concordância destes textos permite afirmar que os
Apóstolos faziam uma nítida distinção entre duas classes
de saber: um relativo, limitado, ignorante do outro, e este
outro, absoluto, ilimitado, englobando o primeiro. O Após­
tolo São Paulo atribui o primeiro ao homem chamado ani­
mal, o outro ao homem chamado espiritual.
O que devemos entender por estas duas classes de
seres humanos? Existe um meio pelo qual o homem.animal
poderia converter-se em homem espiritual?
Também podemos dizer que estes textos nos colocam
frente ao problema da diferença essencial de qualidade,
entre sabedoria humana e sabedoria divina. Fica por saber
se é possível — e de que maneira — iniciar-se nesta última
ou dela aproximar-se.
Vimos que o Eu real se manifesta raramente no
homem e que o faz quando a Personalidade recorre a ele.
Sua atitude é comparável à de um juiz que mora no seu
palácio sem procurar ditar sentença, e cuja atitude passiva
se apõe à atitude ativa da Personalidade. Vimos,-da mes-

4. Ibid., XIV, 23.


5. I Coríntios, III, 16.
6. Apocalipse, III, 20.
7. I Corfntios, II, 14-15.

74
ma forma, que ao se introduzir entre a Personalidade e
o Eu real o laço do conhecimento esotérico, sua posição
recíproca pode chegar a se inverter. O Eu real toma-se,
então, ativo. A Personalidade e o Eu do corpo submetem-
se inteiramente ao Eu real, que se converte no absoluto e
indiscutível amo.
Esta mudança repentina da situação caracteriza-se por
uma particular inversão na atitude do homem frente a seus
próprios desejos. Enquanto antes ele queria o que deseja­
va, agora ma is deseja o que quer.
A medida que progride no conhecimento esotérico, o
pesquisador nele constata a realização desta mudança:
quanto mais avança, mais profundo e extenso se torna.
Quando nele constata este fenômeno, sabe que avança e
pode medir seus progressos.
Examinemos, agora, os órgãos pelos quais o Eu real se
manifesta no homem e como se poderia aumentar e inten­
sificar sua manifestação.
Além dos três centros psíquicos da Personalidade —
que adiante chamaremos de centros inferiores temos em
nós outros centros, superiores, independentes do corpo
físico e da Personalidade. Juntos, esses centros superiores
representam nossa Alma, aquela que, em linguagem corren­
te, tratamos na terceira pessoa. A presença destes centros
em nosso foro interno e as raras mensagens imparciais e
objetivas que por seu intermédio captamos, nos dão essa
impressão do Eu real, que temos concebido sob o aspecto
de um Juiz que reside em um palácio. Mas veremos, em
seguida, que esse não é o único aspecto do Eu real. Longe
disso, a doutrina dos centros superiores não somente dis­
sipará a aparente contradição dos textos antes citados, mas
também ajudará a penetrar no sentido de numerosos pon­
tos obscuros das Sagradas Escrituras, da Tradição, da vida
e, o que é essencial, nos permitirá melhor compreensão de
nós mesmos.
No homem exterior, os centros inferiores não estão
integralmente desenvolvidos, enquanto os centros superio­
res são perfeitos e trabalham com pleno rendimento, mas
tal como somos, não captamos mais do que uma ínfima

75
parte de suas mensagens. A causa disto reside no fato de
que o homem se afirma em si mesmo, enquanto Personali­
dade. Esta ilusão tem efeitos imediatos: o orgulho, o ego­
centrismo e o egoísmo. Eles formam uma espécie de tela
que somente deixa passar as mensagens mais elementares,
provenientes dos centros superiores, cujas emissões conti­
nuam, não obstante, sem cessar: batem à porta. Porém, a
nós, corresponde escutar a voz e abrir.
Se deixamos de lado a linguagem das imagens de São
João, diremos que é a deficiência de nossos centros inferio­
res o que nos impede de captar as emissões dos centros
superiores. Como temos visto, dos três centros inferiores,
o centro motor é o único que funciona mais ou menos nor­
malmente. Isto é importante, dado que o centro motor
participa de todos os nossos movimentos psíquicos, razão
pela qual devemos utilizá-lo com fins esotéricos. Portanto,
não é necessário educá-lo, pois seu desenvolvimento incom­
pleto não lhe permite cumprir esse papel. De modo seme­
lhante, o centro intelectual deve ser despertado por todo
tipo de choques e impulsos porque, por ser o mais lento
dos três, tem uma natural tendência à sonolência e à inati­
vidade. Dizia Goethe: "O homem é frágil, dorme todo o
tempo." A educação superior do centro intelectual, como
também a do centro motor, é feita por meio de exercícios
esotéricos apropriados, complemento necessário à forma­
ção teórica.
Dos centros inferiores, o centro emotivo está em
situação menos vantajosa. Na nossa civilização — já o fize­
mos notar — não costuma receber nem educação racional
nem instrução sistemática. Sua formação e desenvolvimen­
to acham-se jogados no acaso, ao estar a educação religiosa
altamente intelectualizada e racionalizada, em nossos dias.
Todo o tipo de considerações ditadas pelo saber e vaidade
mundanas, a prática habitual da mentira — sobretudo a si
próprio — e a hipocrisia — da qual ninguém está de todo
isento — imprimem ao centro emotivo uma perigosa defor­
mação. Com assiduidade tomada por um sentimento de
inferioridade e por sua consequente necessidade de com­
pensação, habituado a criticar, a julgar a todo momento e

76
a todas as coisas, prisioneiro à estranha voluptuosidade das
emoções negativas, este centro chega a se tornar irreconhe ­
cível. Degenera até o ponto de se transformar no instru­
mento de destruição do nosso ser, ao qual precipita em
direção ao envelhecimento e à morte.
Os dois centros superiores trabalham num ritmo
muito mais rápido do que os centros inferiores. Destes —
já o temos dito — o mais lento é o centro intelectual. O
centro motor é consideravelmente mais rápido. Porém, o
mais rápido deveria ser o centro emotivo, se não se encon­
trasse, em nós, no estado de desordem que acabamos de
mencionar. Trabalha, então, em raienti, no mesmo ritmo
do centro motor.
O esquema do homem, completado com a inclusão
dos centros superiores, assim se apresenta:

Figura 15

Ao nível do coração, encontra-se o centro emotivo


superior, ao da cabeça, o centro intelectual superior. Suas
funções são diferentes. A Tradição os chama, âs vezes, de
os olhos da Alma. São Tiago, o Sírio, diz; "Enquanto que
os dois olhos do corpo vêem as coisas de uma maneira
idêntica, os olhos da Alma as vêem de diferente modo: um
contempla a verdade em imagens e em símbolos, o outro,
face a face."8 Noutras palavras, as mensagens captadas
pelo centro emotivo superior podem ser traduzidas em
representações ou, na linguagem humana, mas unicamente

8. Filocalia, São Tiago, o Sírio, 82/72.

77
sob a forma de imagens e de símbolos. Tal é, por exemplo,
o caso do Apocalipse. No seu conjunto, este texto é ininte­
ligível, se for abordado por meio dos centros inferiores.
Para captar seu verdadeiro sentido, é preciso lê-lo com a
ajuda do centro emotivo superior. Assim foi revelado a São
João na ilha de Patmos e, somente assim, pode-se compre­
ender essa mensagem de tão alta importância. Certamente,
o Eu da Personalidade pode lê-lo, mas não compreenderá
mais do que uma pequena parte, o sentido profundo de
suas grandiosas visões permanecerá oculto. Quanto ao
centro intelectual superior, as mensagens captadas por ele
são de natureza transcendente e, como tais, não podem, de
nenhuma maneira, ser traduzidos à linguagem humana.
Os centros superiores trabalham em nós sem cessar e
com pleno rendimento. Não percebemos suas mensagens
não somente porque nossos centros inferiores estão subde­
senvolvidos, mas também porque não estão equilibrados.
Devemos, portanto, aplicarmo-nos a estimular em nós o
crescimento da Personalidade, a equilibrar e a ordenar o
trabalho de nossos três centros. Ao praticar assiduamente
introspecção, devemos nos esforççar por distinguir em
nós o trabalho de cada um desses centros, mais tarde de
suas duas partes e, finalmente, dos setores. Desta maneira,
voltaremos a entrar em nós mesmos.
Se, mediante exercícios apropriados, logramos
desenvolver por completo e equilibrar perfeitamente
nossos centros inferiores, poderemos estabelecer um laço
permanente com nossos centros superiores. Este vínculo se
estabelece, gradualmente, a partir do centro emotivo infe­
rior. À medida que se purifica e se desenvolve, este vai
adquirindo seu ritmo normal, o que lhe permite estabelecer
contato com o centro emotivo superior. Mais tarde, e atra­
vés deste último, entrará em contato com o centro intelec­
tual superior.
Como não existe laço entre o centro intelectual infe­
rior e o centro intelectual superior, a cultura intelectual —
objeto quase exclusivo de nossa formação — não pode con­
duzir-nos até os planos superiores da consciência. Apesar
do refinamento de sua inteligência, e sejam quais forem a

78
extensão e profundidade dos conhecimentos que adquiriu,
o homem exterior permanece fechado no círculo da razão.
A saída somente é possível pelo lado do coração. Por esta
razão, a cultura da vida emocional é o centro de atenção
da preocupação e dos esforços exigidos pelo ensinamento
esotérico. Entretanto, se a cultura puramente intelectual,
racional e positiva não pode conduzir-nos diretamente aos
planos superiores da Vida, nem por isso devemos pensar
que é inútil. Sob o ponto de vista esotérico, conserva todo
seu valor e será de grande utilidade ao se formar, em nós, a
Individualidade. Mas é preciso começar pelo princípio: o
treinamento do coração e o refinamento da vida emotiva.
Uma autoridade na matéria, o Bispo Teofano, o Eremita, é
categórico: "Ali, nem a dignidade nem a erudição ajudam
em nada/' _______________

®o
Figura 16

O acesso ao centro emotivo superior é o acesso ao


nível de consciência do Eu real individual. O acesso ao cen­
tro intelectual superior eleva ao nível da Consciência, que
é, pela comunhão interior que implica, participação no Eu
universal, é o fim da evolução possível para o homem nas
condições terrestres, porém é uma perspectiva grandiosa. O
Apóstolo São Paulo diz, a propósito: "Sabemos que todas
as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus,
daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Por­
quanto aos que de antemão conheceu, também os predesti­
nou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de
que ele seja o primogénito entre muitos irmãos."9

9. Romanos, VIII, 28-29.

79
Em resumo, nossos centros superiores são clarões divi­
nos: um surge do outro. O centro emotivo superior —
clarão do Filho — e o centro intelectual superior — clarão
do Pai sob seu aspecto consubstanciai de Espírito Santo.
Agora se compreenderá melhor ainda o sentido profundo
dos textos citados no início deste capítulo, assim como a
diferença essenciat — assinalada por São Paulo — entre filo­
sofia e tradição humanas, por um lado, e Tradição esotéri­
ca por outro.
Se tentarmos abranger com um olhar o caminho a
percorrer desde o nascimento até o ápice do esoterismo,
poderemos concebê-lo como a evolução do Eu, adotando
formas sempre novas, sem, por isso, eliminar as antigas.
Quatro níveis do Eu correspondem aos quatro níveis
do ser e da consciência:
Níveis da consciência Níveis do ser Níveis do Eu
------------- - --------------- - Consciência Eu universal

Consciência do Eu real Eu real, individual


Eu pessoal psíquico
Consciência de vigília
Eu do corpo físico
Subconsciência

Figura 17
_L
Gabriel Derjavine definiu esta evolução na sua célebre
fórmula; "Eu sou verme, eu sou escravo, eu sou rei, eu sou
Deus."
As considerações que precedem nos levam a pergun-
tarmo-nos quais são, na evolução, o sentido e a missão da
Personalidade, esse fino e complexo organismo que é,
entretanto, um Nao-Eu com o qual nos identificamos e do
qual devemos desapegarmo-nos, ao preço de esforços parti­
cularmente penosos.
Desde a queda de Adão, o homem espiritual — no
futuro homem animal — perdeu o contato com os centros
superiores, quer dizer, com a Arvore da Vida, dando pre­
eminência a seus centros inferiores, isto é, à Arvore do
conhecimento do Bem e do Mai. Agora, pela Personalidade
e seus três centros, possuímos em nós — em estado embrio-

80
nário ou em desenvolvimento — todos os elementos que
compõem o Universo e que a Tradição ortodoxa chama o
"Mundo", elementos que estão representados pelas corres­
pondentes parcelas de nossa Personalidade. À medida que
o homem adquire o controle e o domínio de sua Personali­
dade, com a ajuda deste complexo instrumento, chega a
conhecer o Universo em todas as suas partes e a estabelecer
com ele laços conscientes e orgânicos; tudo isto, segundo o
princípio de Platão, de acordo com o qual, "o semelhante
somente pode ser captado e compreendido pelo semelhan­
te".

Eis aqui o sentido objetivo e o lugar da Personalidade


na evolução do Eu: por uma espécie de identificação cons­
ciente, fruto de apropriados exercícios de concentração, o
pesquisador chegará a conhecer o Não-Eu exterior, por
meio do Não-Eu interior, isto é, de sua Personalidade. Este
procedimento, ao qual voltaremos mais tarde, lhe dará
acesso aos poderes. "Procura penetrar na câmara interior e
verás a câmara exterior (o Universo), porque uma e outra
não são mais que uma".10

Podemos, agora, compreender e definir melhor a


noção de esoterismo. No sentido estrito do termo, enten­
de-se por esoterismo os fatos e os atos acessíveis aos cen­
tros superiores, isto é, a zona da consciência do Eu real e
da Consciência. No amplo sentido do termo, a acepção de
esoterismo se estende aos dois escalões de acesso a essa
zona e compreende, em primeiro lugar, o exoterismo,
caracterizado pelo abandono da crença na Personalidade
como valor permanente e, em seguida, o mesoterismo,
estado de aproximação ao Eu real. No esquema seguin­
te, esses três graus do esoterismo estão figurados por três
círculos concêntricos, fora dos quais se encontra a selva,
zona onde o homem exterior vive, segundo a Personalida­
de.

10. Filocalia, São Tiago, o SiTio, 2/30.

81
Figura 18

Visto em perspectiva, o esquema assim se apresenta:

Figura 19

Vejamos, agora, como pode o homem chegar ao eso­


terismo desde o ponto de vista prático, como deve traba­
lhar para estabelecer os laços permanentes que lhe ofere­
cem a possibilidade de evoluir. A Tradição trata este pro­
blema com a ajuda do esquema que se segue, de certa for­
ma o mais importante esquema do ensinamento esotérico.
Encerra uma multidão de ideias que sobrepujam ampla­
mente os comentários deste momento. Recomendamos
voltar ao esquema com frequência e meditá-lo.

<1
Figura 20

82
As setas pretas representam as influências criadas na
vida pela própria vida. É uma primeira espécie de influên­
cia, chamadas influências "A", em meio das quais encon­
tra-se o homem. Notar-se-á que cobrem de maneira mais ou
menos parelha toda a superfície do círculo da vida. Como
no caso de todas as forças irradiantes da natureza, seu efei­
to é inversamente proporcional ao quadrado da distância,
de modo que o homem sofre, sobretudo, a influência das
setas imediatamente à sua volta, e é arrastado, a cada instan­
te, pela resultante do momento. A influência das setas "A"
sobre o homem exterior é imperativa; empurrado, avança,
errante, pelo círculo da sua vida, do nascimento à morte,
seguindo uma linha quebrada com, às vezes, perigosas mu­
danças de orientação.
O conjunto das influências "A" forma a Lei do Acaso
ou Lei de Acidente, sob cujo império está situada a sorte
humana. Se examinamos o esquema, percebemos que cada
seta preta está contrabalançada neutralizada em alguma
parte por outra seta de igual força e diametralmente opos­
ta, de modo que se fosse permitido neutralizarem-se efeti­
vamente, seu resultado geral seria igual a zero. Isto significa
que, no seu conjunto, as influências "A" são de natureza
ilusória, ainda que o efeito de cada uma delas seja efetiva­
mente- real, é por esta razão que o homem exterior as toma
por realidade.
O círculo branco representa o Centro esotérico, situa­
do fora das leis gerais da vida.
As setas brancas representam as influências "B". São
influências jogadas no redemoinho da vida desde o Centro
esotérico. Criadas fora da vida, estas setas estão todas
orientadas na mesma direção. No seu conjunto, formam
uma espécie de campo magnético.
Dado que as influências “A" se neutralizam, as
influências "B" constituem, de fato, a única realidade.
O pequeno círculo riscado representa, neste esquema,
o homem tomado isoladamente. Os riscos significam que a
natureza do homem exterior não é homogénea: está entre-
mesclada.

83
Se o homem passa a sua vida sem distinguir as influên­
cias "A" e "B", terminá-la-á como começou, isto é, meca­
nicamente, movido pela Lei do Acaso. Conforme a natu­
reza e intensidade das forças resultantes às quais esteja sub­
metido, poderá fazer uma brilhante carreira, no sentido de
que o mundo dá a essa expressão, mas chegará ao fim dos
seus dias sem ter aprendido nem compreendido nada do
Real. "Ea terra voltará à terra/'
Na vida, cada ser está submetido a uma espécie de
exame. Discerne-se a existência das fluências "B", adquire-
se o gosto de recolhê-las e absorvê-las, se aspira a assimilá-
las cada vez mais, sua natureza interior— entremesclada —
sofrerá pouco a pouco uma certa evolução. Se os esforços
de absorver as influências "B" forem constantes e sufi­
cientemente intensos, poder-se-á nele formar um centro
magnético, representado no esquema pelo pequeno espaço
em branco.
Se, uma vez nele nascido, esse centro for cuidadosa­
mente desenvolvido, tomará corpo e exercerá, por sua vez,
influência sobre as resultantes das setas "A" sempre ativas,
de maneira que sobrevirá a estas um desvio. Este desvio
pode ser violento. Em geral, constitui uma transgressão à
lei da vida exterior e provoca conflitos ao homem e à sua
volta. Se perde a batalha, sai dela com a convicção de que
as influências "B" não são mais do que ilusão e que a única
realidade está representada pelas influências "A". O centro
magnético que se havia formado nele se reabsorve e, pouco
a pouco, desaparece. Do ponto de vista esotérico, sua
nova situação é pior do que a anterior, quando ele quase
não discernia as influências "B". Neste caso, faz-se alusão
à parábola do espírito impuro e da casa vazia.11
Mas se resulta vencedor neste primeiro combate, seu
centro magnético, consolidado e reforçado, o atrairá para
um homem de influência "C", mais forte que ele e possui­
dor de um centro magnético mais potente. Assim, por via
de sucessão, ao estar este em relação com um homem de
influência "D", estará relacionado ao Centro esotérico
"E".
11. Mateus, XII, 43-45, Hebreus, VI, 4-8, II Pedro. III, 17.

84
A seguir, o homem já não estará isolado na vida. C
verdade que continuará vivendo como antes, sob a ação das
influências "A", que por longo tempo, ainda, exercerão
sua ascendência sobre ele. Porém, pouco a pouco, e graças
ao efeito da influência em cadeia "B" — "C" — "D" —
"E", desenvolver-se-á o seu centro magnético e, à medida
que crescer, o homem sairá da influência da Lei de Aciden­
te, para entrar no domínio da Consciência.
Se alcançar tal resultado antes de sua morte, poderá
dizer que não viveu sua vida em vão.
Examinemos, agora, o mesmo esquema, porém sob
um diferente aspecto:

Figura 21

Este segundo esquema, com os centros magnéticos


pretos, representa o caso em que o homem se engana.
Acreditando absorver as influências "B", ao fazer a sele­
ção, absorve as influências "A" — setas pretas — que, de
alguma maneira, são paralelas às setas brancas das influên­
cias "B". Isto o relacionará com pessoas que possuem cen­
tros magnéticos da mesma natureza, o que faz com que
eles mesmos se enganem e enganem aos outros, pessoas que
não têm laço direto nem indireto com o Centro esotérico.
Última observação. Que garantia pode ter o homem
de que não se enganará e não cairá, no segundo caso? A
resposta é simples: a pureza do centro magnético deve ser
escrupulosamente observada desde o início e ao longo de
toda a evolução.

85
Repetimos que o comentário desse esquema não é
exaustivo. Outros comentários são ainda possíveis, e as
pessoas que estudam assiduamente a doutrina estão convi­
dadas a meditá-lo para aprofundar o ensinamento. Perce­
berão que o esquema compreende toda uma série de leis da
vida humana, expostas nos Evangelhos sob a forma de
parábolas, imagens e alusões.

86
CAPITULO VII

Examinaremos agora as mudanças que se produzem


no organismo psíquico, isto é, na Personalidade, depois da
aparição e do crescimento de um centro magnético, em
nós. De maneira geral, pode-se dizer que sua irradiação aju­
dará eficazmente a levar a cabo o desenvolvimento dos cen­
tros inferiores. Além disso, sob sua proteção, as relações
entre os três centros se modificarão radicalmente, com a
correspondente influência sobre a vida do homem. Por sua
vez, isso produzirá certas repercussões sobre as relações
com o que o cerca.
Temos visto que pelo sistema dos setores os três cen­
tros se encontram numa interdependência permanente, de
maneira que todo movimento num deles produz, automati­
camente, a réplica nos outros dois. De modo que, enquan­
to a vida psíquica do indivíduo for composta por nada
mais do que diversas combinações e movimentos dos
centros inferiores, o homem não pode tomar uma decisão
certa. Nele, tudo está misturado, como resultado do fun­
cionamento desses laços mecânicos. É evidente que as
réplicas dos outros centros não têm a mesma potência que
o movimento do centro pelo qual se produz a ação. Contu­
do, o homem não pode desembaraçar-se dele, nas condi­
ções ordinárias. Esse fenômeno, acompanhado de um sub­
desenvolvimento e um desarranjo variáveis dos centros e
seus setores, é causa das dúvidas e dos conflitos internos
em que o homem se debate com tanta frequência. Por
outro lado, estes fazeres de laços mecânicos têm uma sig­
nificação peculiar e desempenham um papel positivo na vida
psíquica do indivíduo. Vistos em conjunto, constituem o

87
órgão — ou melhor dito, o instrumento — da moral. Dado
que na vida exterior do Eu real é débil e raramente escutada,
o homem — identificado quase constantemente com o Eu da
Personalidade — atua, em geral, sem levar em conta esta
voz íntima, ainda quando deva, de imediato, arrepender-se
disso. Em tais condições, os laços mecânicos entre os três
centros são, na prática, o único freio aos seus desejos anár­
quicos.
Este instrumento da moral se acomoda às tradições
do meio e da família, e se forma desde a infância, pela
educação, é evidente que sem este instrumento a organiza­
ção da vida social sob todas as suas formas resulta impen­
sável. Não obstante, por sua natureza, não pode servir
como garantia de uma boa e equitativa conduta dos huma­
nos; para assegurar sua existência na paz, a sociedade
humana se viu obrigada, em todas as épocas, a recorrer à
coação e à aplicação de penas: remédios necessários, dado
que a moral nunca teria sido o bastante potente para
refrear as tendências extremas e anárquicas da Personalida­
de. Esta carece, com efeito, dessa espécie de consciência
que se procura nas práticas religiosas sob a forma de
"temor a Deus".1
• Compreender-se-á, facilmente, do que precede, que
a moral não é, em absoluto, idêntica à Consciência, é uma
espécie de substituto desta, baseada, não como a autêntica
Consciência sobre um juízo direto, espontâneo e simples,
mas, sobretudo, um conjunto de considerações entre as
quais jogam seu papel, a raça, a civilização, a época, a
casta, o meio ou os interesses pessoais, ao ponto de mudar
a noção de moral, em função de variações desses compo­
nentes. Distingue-se, pois, a moral de um homem culto da
de um selvagem, a moral da sociedade romana da moral da
Idade Média e, esta última, da dos nossos dias. Não se
deve crer que a moral segue, com o tempo, uma curva
ascendente de progresso. Por outro lado, sob o ponto de
vista esotérico, a noção de progresso, tal como é concebida
habitualmente, não tem valor absoluto. Fruto dos esforços

1. Jó, XXVIII, 28; Salmos, CX, 10; Provérbios, I, 7e IX, 10; Eclesiastes, XII, 15

88
de Personalidades que são em si mesmas areias movediças,
o progresso não representa, em si, nenhuma garantia de
solidez. A experiência das guerras e das recentes revoluções
oferece provas irrefutáveis sobre a extrema fragilidade de
tudo aquilo que, todavia, no século XIX, se considerava
como as bases inquebrantáveis da moral humana, ao menos
entre os povos civilizados.
Os laços mecânicos entre os centros podem ser esque­
maticamente representados como segue:

Figura 22

Normalmente, no homem exterior, estes laços são


suficientemente sólidos para funcionarem durante toda
a vida. Não obstante, nas condições da vida moderna —
febril e bastante desequilibrada — esses laços, especialmen­
te o que une o centro intelectual e o centro emotivo, se
encontram como que desregrados. Às vezes, até se pode
observar sua ruptura. Esta ruptura ocasiona no indivíduo a
perda da noção e do sentido da moral. A alteração desses
laços, desde seu afrouxamento até sua desaparição, provo­
ca toda uma série de fenômenos psicológicos. O processo
caracteriza-se por uma hipocrisia mais e mais pronunciada
e culmina na ruptura completa dos laços, com o que o
homem se transforma numa pessoa amoral.
Dissemos que a aparição do centro magnético é sus­
cetível de provocar no organismo psíquico uma profunda
modificação. Alcançado um certo grau de crescimento,
esse centro estabelece laços diretos — já não mecânicos,
mas conscientes — com cada um dos três centros, como
mostra o seguinte esquema:

89
Figura 23

Suficientemente consolidados, estes novos laços subs­


tituirão os antigos que, então, caem. Neste momento, o
homem recupera a faculdade de ter pensamentos e senti­
mentos puros, isto é, não submetidos à mistura provenien­
te da interdependência mecânica dos centros. No que suce­
de, cada centro poderá trabalhar isoladamente, porém sob o
estrito controle do centro magnético, que assegura a coor­
denação.
Ao se tratar de nossa natureza moral, a aparição e o
crescimento do centro magnético têm por objeto substituir
progressivamente elementos desta natureza moral, pelos
elementos correspondentes da Consciência. Paramos,
então, de ser vítimas de movimentos impulsivos; nossa
reação âs impressões e choques externos torna-se mais e
mais reflexiva e consciente. Mas não podemos supor que
uma transformação tão radical da vida interior e exterior
pode sobrevir bruscamente. Salvo raríssimas exceções —
concernentes aos justos por natureza —, esta evolução apa­
rece como um longo processo, como um combate ininter­
rupto, uma sucessão de êxitos e quedas. Mais de uma vez o
pesquisador sofrerá crises de desalento. Mais de uma vez
sentir-se-á jogado fora de sua própria vida; às vezes se senti­
rá aplastado pelo peso de provas e dificuldades, as quais
surgirão no curso de suas buscas, é compreensível, porque,
no seu ensinamento, a ciência esotérica vai mais além da
simples informação: aponta, com efeito, a transformação
do ser daqueles que a estudam, preocupação esta totalmen­
te distante da ciência positiva. Como geralmente tem a ver
com injustos, porém aspirantes à luz, ela os chama, segun-

90
do as palavras de São Paulo, "uma vez que vos despistes do
velho homem com os seus feitos, e vos revestistes do novo
homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a
imagem daquele que o criou."2 Se a ciência esotérica tudo
lhe oferece, também tudo o pede, em troca, é preciso tudo
pagar, é impossível chegar ao Verdadeiro pela via da men­
tira ou por um jogo hipócrita. Aqui se trata de ser e não de
parecer. Nesta ordem de idéias, deve-se buscar o sentido
profundo dessa terrível história de Ananias e de Safira, que
São Lucas nos narra Atos dos Apóstolos?
Assim se apresentam as coisas vistas desde baixo, por
assim dizer, desde o ponto de vista da Personalidade, que
se fundamenta na máximã: "Isto é meu e aquilo também".
Um sábio disse que Deus sorri quando escuta o homem
raciocinar dessa maneira. Porque as coisas vistas de cima se
apresentam sob um aspecto totalmente diferente. A Perso­
nalidade do homem exterior é mortal. Em consequência,
todos os valores a que aspira são temporários: na realidade,
lhe são emprestados. Perecíveis, são, por conseguinte, ilu­
sórios.
A ciência esotérica indica o caminho na direção do'
permanente. Porém, para alcançá-lo, exige do homem que
desapegue seu coração do perecível, que o conduz ao abis­
mo. Segundo a palavra de Jesus, lhe vende "ouro puro" —
que ele não sabe reconhecer — contra a falsa moeda que ele
crê verdadeira. E o homem teme ser enganado, vacila,
sofre. Eis aqui a origem desse grande malentendido que é
a vida humana vista sob o ângulo pessoal. Todo o Evange­
lho está ali. Dirige-se àqueles que aspiram à Vida.
"Se alguém quer ignorá-lo, que o ignore", diz São
Paulo. Será excluído do estreito caminho para recair sobre
o espaçoso caminho que o conduzirá, sabe-se, à Morte.
Agora compreendemos melhor o sentido e a absoluta
necessidade dessa exigência comum a todas as religiões e a
todas as tradições esotéricas: a humildade.
Definamos, em primeiro lugar, a noção de orgulho,
seu oposto. No sentido esotérico, o orgulho é a afirmação,
2. Colossenses, 111,9-10, Efésios, IV, 22-24.
3. Atos, V, 1-11.

91
por parte da Personalidade, de sua primazia com respeito
ao Eu real. No homem exterior, tal atitude é natural e, se
tem êxito na vida, isso o confirma na sua atitude. Mas a lei
esotérica é formal. Deus diz: “Estou à porta e bato"4. Isto
significa que todo homem se encontra sob uma pressão
permanente, proveniente do Centro esotérico, sob a forma
das influências "B". Porém, é o próprio homem que,
por seus próprios esforços, deve "abrir a porta", em outras
palavras, discernir e assimilar essa influências. Então, a Per­
sonalidade, sobrepujando sua natureza orgulhosa, deve
abrandar-se e aceitar a primazia do Eu real. E deve fazê-lo
previamente, por um ato de fé e de esperança, "e partiu
sem saber aonde ia".5 Estamos, deste modo, convidados a
dar crédito a Deus. Tal é o papel da humildade como con­
dição sine qua non de um trabalho esotérico construtivo.
Compreende-se o significado da antiga máxima: "Deus
resiste aos soberbos, contudo aos humildes concede a sua
graça."6 Devemos nos cuidar em tomá-lo no sentido meta­
fórico; a Personalidade, que impera habitualmente no
homem, deve, com o Eu do corpo, inclinar-se diante do Eu

Figura 24

4. Apocalipse, III, 20.


5. Hebreus, XI, 8.
6. Tiago, IV, 6; Provérbios, XXIX, 23; Pedro, V, 5.

92
real e render-lhe homenagem. A grande dificuldade a
vencer para se chegar a este ponto é esta: a Ilusão, crendo-
se realidade, tem a Realidade por ilusão. A força da ilusão
atua, sobretudo no homem, por meio do seu centro sexual
ou, mais exatamente, às suas expensas. Sem levar em conta
os laços, o esquema completo do homem assim se apresen­
ta: (Figura 24)

0 centro sexual é análogo aos centros superiores: é


indivisível, não contém parte negativa, nem está subdividi­
do em setores. Porém o centro intelectual inferior, o cen­
tro emotivo inferior, ou ambos, por sua vez, podem
usurpar-lhe uma parte de sua energia. Produzem-se, então,
fenômenos negativos, daí essa confusão entre o fantástico
e o Real e todo o tipo de manifestações de intransigência.
Se resistimos à prova, o Eu da Personalidade se deslo­
cará daí em diante, com mais e mais frequência, para resi­
dir no centro magnético. Simultaneamente, quanto mais
permanecer o Eu nesse centro, e mais se identificar corn­
eie, tanto mais progredirá o crescimento do centro.
Quando, tendo tomado corpo, o centro magnético es­
tabelece uma autoridade inquestionável sobre os três cen­
tros da Personalidade, o homem até o momento 1,2 ou 3,
se transforma no homem 4. Ao longo desta etapa de sua
evolução, sua tarefa consistirá em reconhecer o modo de
funcionamento dos três centros psíquicos, atribuir a cada
um deles o papel que lhes é próprio e equilibrá-los. Assim
se aperfeiçoa o crescimento do centro magnético e começa
seu desenvolvimento. Este é função dos esforços conscien­
tes produzidos para desenvolver até o limite os centros
inferiores. À medida que avança este desenvolvimento, o
centro magnético absorve o centro emotivo inferior, ao
tempo em que se identifica mais e mais com o centro emo­
tivo superior. Quando os três centros inferiores estão
plenamente desenvolvidos e equilibrados, o centro magné­
tico se identifica definitivamente com o centro emotivo su­
perior, arrastando consigo — e absorvendo ao mesmo tem­
po — o centro emotivo inferior. Daí em diante, o centro
emotivo inferior e o centro magnético serão parte integran­
te do centro emotivo superior.

93
Figura 25

Realizada esta união, quem continua o trabalho sobre


si mesmo chegará a ser homem 5.
Em oposição aos homens 1, 2 ou 3, chamados ho­
mens exteriores, os homens 5, 6 e 7 são interiores.1 •
Ao estabelecer um laço entre o centro emotivo supe­
rior e o centro intelectual superior, o homem se transfor­
ma em homem 6. Depois disso, lhe restarão por consolidar
os resultados obtidos. Esta consolidação constitui a última
etapa da evolução esotérica.
As tarefas nas diferentes etapas da evolução podem
ser definidas da seguinte forma:
— homem 4 = reconhecer a existência dos três centros
inferiores, fazê-los crescer, desenvolvê-los até o
limite e regular seu funcionamento,
— homem 5 = adquirir novas faculdades: poderes,8
— homem 6 =desenvolver até o limite as faculdades
assim adquiridas,
— homem 7 =consolidar os resultados obtidos.
Esta consolidação se obtém mediante a sublimação do
sexo.

7. Romanos, VII, 22.


8. São os dons do Espírito Santo — I Coríntios, XII, XIV.

94
Ao considerar o esquema completo do homem (Figu­
ra 24), deve-se ter presente na mente, subentendido, o mes­
mo esquema abaixo, sob um ângulo um tanto diferente:

Figura 26

Este é o esquema do homem que chegou a ser com­


pleto e imortal, no sentido das palavras do Apóstolo São
Paulo: "Nem todos dormiremos, mas transformados sere­
mos todos."9 Colocado agora no meio do esquema, o
centro emotivo superior absorveu o centro emotivo inferior.
0 significado do pontilhado será explicado posteriormente,
assim como também o estabelecimento do laço com o
centro sexual.
Enquanto os homens 1, 2 ou 3 — movidos pela ener­
gia do centro sexual expandida através dos três centros —
utilizam o Eu provisório da Personalidade, Eu instável, mu-
tante, ilógico consigo mesmo e que implica uma existência
fática, a situação muda por completo quando, franqueada
a etapa do homem 4, o pesquisador chega a ser homem
interior 5, logo 6 e, por último 7.
— chegado a homem 5, consente de maneira perma­
nente à consciência do seu EU REAL,
— chegado a homem 6, consente em permanência na
CONSCIÊNCIA;
— chegado a homem 7, consente a liberdade, obtendo
uma verdadeira VONTADE.

9. I Coríntios, XV, 51.

95
Eu — Consciência — Vontade constituem o tríplice
objetivo da ciência esotérica e são a recompensa aos esfor­
ços realizados conscientemente e com perseverança. Aqui
chega a seu fim a evolução esotérica possível nas condições
da humanidade terrestre.
Por esta evolução, o homem animal redime-se da
queda de Adão, vem a ser homem espiritual e se inicia na
sabedoria divina.
Uma observação importante: apesar da exigência
formal de humildade, não devemos cair no extremo de che­
gar a descuidar do nosso Eu psíquico, a depreciá-lo ou a
maltratá-lo, como não devemos, tampouco, descuidar, nem
depreciar nem maltratar nosso corpo, submetendo-o a mor­
tificações excessivas. Devemos tão-somente dar-lhes o
valor que lhes corresponde e cessar de atribuir-lhes a auto­
ridade suprema ou as qualidades do Eu real. Paralelamente,
é preciso que lutemos por todos os meios contra o espírito
de suficiência, sabendo que o Eu da Personalidade não é
mais do que um Eu provisório, perecível em si. Se nos obs­
tinamos em nos identificarmos com ele, nos reafirmamos
como sujeitos da Lei de Acidente e nos encaminhamos,
efetivamente, na direção da Morte.
Sem cair em extremos, devemos tratar a nossa Perso­
nalidade — o Eu provisório — e o nosso corpo no qual habi­
ta, como um bom cavaleiro trata de seu cavalo. Cuidando
deste Eu ao mesmo tempo em que o adestramos, podere­
mos percorrer o longo caminho que conduz à meta. E ante
cada esforço a realizar, devemos medir nossas forças. Por­
que o cavalo não sabe aonde vai o cavaleiro, único respon­
sável por um e pelo outro.

FIM DA PRIMEIRA PARTE:

0 Homem"

96
SEGUNDA PARTE:

0 UNIVERSO
CAPITULO VIII

Paralelamente ao estudo do homem, vimos que a


ciência esotérica persegue o estudo do Universo. Porque
se trata de separar o homem do seu contexto orgânico. Enca­
ra o homem no conjunto da vida sobre a Terra, elemento
do mundo planetário que gravita ao redor do Sol, ele pró­
prio uma das estrelas da Via-Láctea, nosso Mundo, nascido
no seio do Absoluto manifesto, que assegura sua existência
e subsistência.
O fato de que o homem tenda mais e mais a isolar-se
da Terra em seus movimentos, que caminhe usando calça­
dos, se desloque em automóvel, cm trem ou avião, faz com
que, em seu subconsciente, se afirme a idéia de sua separação
da Natureza. Porém, apesar de todos os instrumentos criados
ou por criar, não poderá deixar de ser parte integrante da
Mãe-Terra, porque o Universo todo está vivo e todo forma
parte do conjunto. Esta é a razão profunda pela qual, ao
lado do estudo do homem, é necessário o estudo do Uni­
verso.
A tradição ortodoxa considera o universo como um
ser vivente. Orígenes, compara-o a um imenso organismo.
Esta concepção conservou-se mais ou menos intacta na
tradição esotérica; encontra-se expressa, ainda que um
pouco abreviada, na prece litúrgica com responsório,
chamada a Grande Ektenia.
Em outros tempos, esta concepção era exposta num
esquema que parte de Deus enquanto Alma de nossa Alma,

99
e chega, gradualmente, a Deus, que compreende, nele, tudo
o que existe. Este esquema está formado por 12 círculos
concêntricos, que representam, partindo do centro, os ele­
mentos dados na Figura 27.

Esta dupla concepção do Deus único — como Alma


da nossa Alma e como Deus abraçando o Universo por ele
criado — é característica da Ortodoxia esotérica, é encon­
trada, também, nos Evangelhos e nos Apóstolos; entretan­
to, geralmente passa despercebida. Já a mencionamos ao
citar as palavras de Sto Tiago, o Sírio, ao falar da identi­
dade das câmaras interior e exterior.1 Citemos, a respeito,
o discurso pronunciado por São Paulo, em Atenas. São Lu­
cas o faz chegar a nós, nos seguintes termos:

"... Todos os atenienses, assim como os estrangeiros que ali


viviam, passavam o tempo com gosto, dizendo eescutando qualquer
boa nova. Paulo, em pé no meio do Aerópago, diz:
Atenienses! Vejo-os como gente particularmente piedosa. Por­
que, percorrendo vossa cidade e visitando vossos santuários, encon­
trei um altar com esta inscrição: Ao deus desconhecido.
Aquele que vós reverenciais sem conhecer, eu vim para anun-
ciá-lo a vós.
Deus, que criou o Universo e tudo o que ali se encontra, sendo
Senhor do Céu e da Terra, de nenhum modo habita em templos
feitos pela mão do homem. E Ele não exige, de nenhuma maneira,
ser servido oela mão do homem como se Ele tivesse necessidade de
alguma coisa. Ele, que a todos dá a vida e o alento, e todas as coisas.
Ele fez com que todos os homens, saídos de um só sangue, ha­
bitem toda a superfície da terra, tendo determinado a duração dos
tempos e os limites da morada.
A fim de que eles buscassem a Deus, embora Ele não esteja
longe de cada um de nós. Não o sentirão e não o encontrarão? Pois
por Ele vivemos, por Ele nos movemos, por Ele existimos".2

1. Filocalia, Santo Tiago, o Sírio, 2do/309 sermão.


2. Hechos, XVII, 21-28. Tradução do texto eslavo. Grifo nosso

100
1. Deus, Alma de nossa Alma 8. Nosso planeta
2. Alma 9. Nosso sistema solar
3. Homem 10. Via-Láctea, nossa Galáxia,
4. Morada nosso Mundo
5. Casa 11. Todos os Mundos, semelhantes
6. Cidade e não-semelhantes
7. País 12. Deus que abraça tudo

Figura 27

O mundo astronómico que observamos do nosso pla­


neta, assim nos aparece, porque vemos o corpo do Uni­
verso a partir do interior. E não o captamos no seu conjun­
to, porque as nossas observações estão feitas na nossa pró­
pria escala, e esta, em relação ao conjunto, é infinitesimal.
O que nos confunde são as distâncias entre os astros, lares
de matéria vivente, parcelas do organismo universal, vistas

101
sob uma perspectiva interna; parecem-nos imensa. Entre­
tanto a densidade do Universo em seu conjunto é análoga à
do nosso corpo.
0 homem, no Universo, é semelhante a um microor-
ganismo no corpo humano. Se pudéssemos transformarmo-
nos em micróbios, veríamos o nosso corpo, do interior,
como o céu estrelado guarnecido das galáxias, que são
nossos órgãos. Se, pelo contrário, pudéssemos tornarmo-
nos imensos e ver o Universo na sua própria escala, o vería­
mos como um corpo vivente. Este é o efeito do Princípio
da Relatividade.
Como elemento do organismo universal, serve aos fins
deste;
Como indivíduo isolado, pode perseguir seus próprios
fins.
Para compreender melhor como e por que esses dois
objetivos estão ligados, tomemos um exemplo. A posição
do homem no Universo é análoga à de uma célula no corpo
humano. Cada célula faz parte de um órgão que, por sua
vez, como elemento de um grupo de órgãos, assegura a boa
caminhada de tal ou qual função do organismo. Examine­
mos, por este ângulo, o destino de uma célula do nosso
corpo. Está submetida a duas categorias de leis, ou, para
simplificar, digamos que se encontra colocada sobà influên­
cia de duas leis.
A primeira retém a célula no seu lugar. É chamada, na
ciência esotérica. Lei Gerai. A segunda, que permite à célu­
la certa liberdade de ação, denomina-se Lei de Exceção. A
primeira lei, conservadora, vigia para que o órgão do qual a
célula faz parte funcione sem freios. Para isso, a primeira
condição é que as células que o compõem cumpram, du­
rante toda a sua vida, o papel que lhes foi indicado. Esta
lei obriga, então, às células a permanecerem em seus res-
pectivos lugares, a cumprir, ali, seu trabalho e consagrar-lhe
sua própria vida.
E evidente que se esta lei não retivesse as células do
corpo dentro dos limites de cada órgão, se não as obrigasse
a contribuir no seu funcionamento, o órgão não poderia
existir. De modo que esta lei é benéfica; ao assegurar a

102
existência dos órgãos, permite ao corpo durar como con­
junto. Sabemos, porém, que a extirpação total de certos
órgãos do corpo humano é compatível com a sobrevi­
vência. No estágio atual de nossos conhecimentos, pare­
ceria que, em alguns casos, tal extirpação não ocasiona ao
organismo maiores inconvenientes, do ponto de vista
funcional. Com mais razão, o organismo tolera secciona­
mentos parciais de órgãos, sem que se veja comprometido
o papel jogado por ele na economia geral. Isto mostra que
o desaparecimento de algumas células de um órgão do qual
representam uma parte ínfima passa despercebida; com
efeito, a função não é afetada. E como o papel essencial da
Lei Gera! é velar pela continuidade da função, este desapa­
recimento lhe escapa. Não lhe provoca maiores prejuízos.
Simbolicamente, poder-se-ia dizer que as células que esca­
param a esta lei entraram, agora, no domínio da Lei de Ex­
ceção. Esta evasão de algumas células é um fenômeno que
se produz constantemente. Da célula epidérmica à célula
nervosa nossas células se renovam constantemente. Porém,
ao lado desta renovação, por dentro, existem desapareci­
mentos, compensados ou não por novas unidades.
Até aqui, a analogia com o destino do homem e a Lei
de Exceção pode ser considerada completa.
Porém, a analogia detém-se aqui, ao menos ao estágio
atual dos nossos conhecimentos. Com efeito, nesse movi­
mento da vida das migrações e das mortes celulares, nada
nos permite pensar que a passagem da Lei Gera! á Lei de
Exceção resulta, para as células, de um ato consciente.
Quanto ao homem, a questão é totalmente diferente.
O homem, célula da humanidade, faz parte da vida
orgânica sobre a Terra. Esta vida em seu conjunto represen­
ta um órgão muito sensível do nosso planeta, que desempe­
nha um papel importante na economia do sistema solar. En­
quanto célula deste órgão, o homem se encontra sob o imoé-
rio da Lei Gerai, que o retém ao seu lugar. É verdade que esta
lei lhe deixa certa margem, uma espécie de tolerância, que
lhe permite movimentos livres, dentro dos limites que
ela fixa. No interior deste limites, objetivamente muito
restritos, mas que subjetivamente parecem vastos, o ho-

103
mem pode dar livre curso às suas fantasias e às suas ambi­
ções. Sem ir demasiado longe na definição dos limites nem
na descrição detalhada dos componentes desta Lei Gerai,
podemos dizer, por exemplo, que a fome, a escravidão do
trabalho para garantir nossa subsistência, são alguns de
seus fatores. A cadeia: instinto sexual, reprodução, afã dos
pais por seus filhos, são outros. A máxima esotérica que
se aplica a este aspecto da vida está concebida se: o amor
carnal é necessário para o bem gerai. Finalmente, o medo e
seus corolários constituem o terceiro grupo de fatores em
questão. Em síntese, a margem admitida para os movimen­
tos livres tolerados pela Lei Gerai tem como limite o que
pode ser descrito com um termo sem dúvida pouco cientí­
fico, mas muito gráfico: a felicidade burguesa. Carreira,
não importa em qual ramo da atividade humana, fortuna,
família, amores, honras etc. Porém, tudo isto com a condi­
ção sine qua non de uma aceitação, ainda que não seja mais
que subconsciente, mas sem reservas do caráter inevitável
da Morte.
Enquanto o homem aceitar sem luta o princípio da
aniquilação final de sua Personalidade, pode atuar na vida
sem atrair sobre si a pressão incrementada pela Lei Gerai.
Ocorre algo totalmente diferente ao empreender a
luta com o fito de ultrapassar os limites que ela impõe.
Choca-se, então, com uma ação centrada, sobre ele, desta
Lei e seus derivados. Atua simultaneamente em vários
planos: físico, psíquico e moral. Sua ação sobre o plano
moral foi concebida pelo homem, desde tempos imemorá­
veis, sob a forma de um personagem:o Diabo.
Na Tradição ortodoxa, a demonologia ocupa um lugar
de destaque. Ali se encontram constatações práticas, obser­
vações refinadas e profundas sobre as formas sutis e insi­
diosas que a ação do Diabo toma nas mais diferentes
circunstâncias, já que chega a utilizar, para seus fins, até a
boa-fé dos humanos.
Encontram-se ali preciosos conselhos baseados na
experiência acumulada através de milénios e de particular
utilidade para os estudantes da ciência esotérica. Porque,
uma vez obtidos os primeiros resultados positivos, indefec-

104
tivelmente, encontrar-se-ão expostos à oposição ativa da lei
ao jogo do Maligno.
é necessário dar-se conta de que, ao se colocar sob a
égide da Lei de Exceção, o homem se dirige ao encontro da
Lei Geral, que ele está chamado, inclusive, a reinverter na
escala individual, bem entendido. Não se deve esquecer — a
não ser para um "ataque de surpresa" — que a salvação
depende da vitória sobre o Diabo, forma personalizada, já
o temos dito, do aspecto moral da Lei Geral. E isto assim
é,ainda que essa lei enquanto lei cósmica seja naturalmente
uma lei divina. Não é necessário amedrontar-se, porque a
Lei de Exceção é também uma lei divina.3 Escolhendo-a, o
homem serve, também, ao interesse do conjunto; de outro
modo, porém de forma incomparavelmente mais eficaz. Na
sua luta contra a primeira lei, está submetido a provas que,
com frequência, tomam a forma de tentações. Estudos pro­
fundos têm-se consagrado a tal tema na doutrina ortodoxa.
Como se disse antes, contém conselhos preciosos de ordem
prática, em cujos detalhes o quadro da presente obra não
nos permite entrar. Que se nos permita, entretanto, chamar
a atenção sobre a forma indireta da ação diabólica. Se ao
caminhar diretamente à meta, que é a liberação e a salva­
ção, o homem transpõe, sucessivamente, os obstáculos e,
por isso, dá provas de uma força que lhe permite desafiar
o domínio da Lei Geral, esta mesma lei começa a agir sobre
ele indiretamente, em geral através de seus mais próximos;
quando eles não seguem a mesma rota. Esta ação está inseri­
da no plano moral, toma, com frequência, formas emoti­
vas, apelando a seus sentimentos nobres, generosos, desin­
teressados, à sua caridade, às suas obrigações, â sua pieda­
de. Busca conduzi-lo a um caminho sem saída, insinuando-
lhe, assim, que ele retorna ao seu dever, que, desta forma,
continua andando pelo caminho reto etc. Isto esclarece o
sentido profundo das palavras de Jesus, quando diz que
"assim os inimigos do homem serão os da sua própria
casa".4
3. Não se esquecerá que Jacó luta toda uma noite contra o anjo, vencendo-o e
recebe dele o sobrenome de Israel, que quer dizer quem lutou contra Deus,
ou. forte contra Deus.
4. Mateus, X. 36.

105
Repitamo-lo, porque é importante: o trabalho esotéri­
co, por sua natureza, é um trabalho revolucionário. O pes­
quisador aspira a mudar de status, a vencer a Morte e alcan­
çar a Salvação. Tal é o objetivo dado a este trabalho pelo
Evangelho e pelos Apóstolos. Como o diz São Paulo "Se
viverdes segundo a carne, caminhais para a morte."5 Mas,
por outro lado, não esqueçamos que disse "Nem todos
morreremos, mas transformados seremos todos."6
O homem que vive passivamente — inclusive sendo
um excelente cidadão — sob a égide da primeira lei, insensi­
velmente, sem percebê-lo, introduz-se no "espaçoso cami­
nho que conduz para a perdição"; aquele que escolhe a Lei
de Exceção toma "o apertado caminho que conduz à
Vida".7
O Universo compreende vasta escala de elementos,
partindo do Absoluto como foco da vida e indo por múlti­
plas ramificações até a casca externa, a epiderme represen­
tada pelo conjunto dos satélites dos planetas.
Mas antes de abordar o estudo da estrutura do Univer­
so, é bom indicar as condições da Criação. A Tradição
ortodoxa ensina que o Universo foi criado por um sacrifí­
cio de Deus. Será mais bem compreendido o sentido deste
postulado, ao se levar em consideração que ele distingue o
estado da Divindade manifesta do da Divindade não-mani-
festa em consequência não limitada e livre de todo condi­
cionamento.
O sacrifício de Deus consiste em uma limitação de Si
pela manifestação. Quais são as condições desta limitação?
São três: em primeiro lugar, o Universo é criado no Espaço,
logo no Tempo, finalmente no Equilíbrio.
Estas três condições fundamentais da Criação se mani­
festam no Universo sob a forma dos três princípios de base
da vida: princípio estático, princípio dinâmico e princípio
neutralizante.
Qualquer criação pode ser analisada e estudada à luz
destes três princípios que se expressam de forma análoga à

5. Romanos, VIII, 13.


6. I Coríntios, XV, 51. Texto já citado.
7. Mateus, VII, 13.

106
que descrevemos, falando das condições da criação do
Mundo e isto uniformemente em todos os escalões do Cos­
mos.
Ao se tomar, por exemplo, a criação de uma empresa,
pode-se dizer que, em primeiro lugar, a idéia deve ser con­
cebida como possível, estudando o projeto e estabelecendo
os planos. Isto, em virtude do princípio estático. Logo,
passa-se à realização, de acordo com o princípio dinâmico.
Os dois princípios atuam num mundo manifestado, cada
um segundo uma lei apropriada, que será estudada mais
adiante.
Na prática, a empresa assim criada terá todas as pos­
sibilidades de desmoronar, se os dirigentes não levarem em
consideração e não aplicarem judiciosamente à sua criação
o terceiro princípio, o do equilíbrio. O princípio do Equi­
líbrio deve estar presente desde os primeiros estudos do
projeto, ao longo de sua realização, e ser observado, estrita­
mente, durante a caminhada da empresa. De forma muito
geral, pode-se dizer que os promotores, não importa em
que ramo da atividade humana, devem, antes de tudo,
observar o equilíbrio entre os esforços que a empresa exige
para sua criação e os meios de que dispõem para sua reali­
zação. Trata-se de estudos científicos, e isto se aplica igual­
mente aos estudos esotéricos, é necessário, também, res­
peitar o equilíbrio, mas de outra forma: no caso do plano
de estudos, corresponde à natureza e à estrutura do objeto
estudado.

Falando da criação do Universo, é necessário referir-se


à noção de Eternidade, da qual se tem, geralmente, uma
errónea idéia. Habitualmente, representa-se a Eternidade
como um prolongamento ao infinito do Tempo. Agora, a
Eternidade não é o Tempo; é, diríamos, perpendicular ao
Tempo. Logo, não é infinita, mas limitada: a Tradição
coloca, juntos, o fim da Eternidade e o fim do Mundo.
Também se vangloria a Deus em seu estado pré-eterno. Na
festa de Natal, se canta:

A Virgem, neste dia, gera o Preexistente,


E a Terra-caverna aporta ao Inacessível,

107
Os Anjos e os pastores cantam louvores,
Os Magos caminham com a Estrela,
É para nós que nasceu o pequeno jovenzinho
o Deus pré-eterno.8

No que concerne ao fim do mundo, ele é apresentado


na forma da Consumação, que é, segundo a palavra de
Jesus, a Proclamação das obras e dos fatos consumados. •
Dois dos três princípios fundamentais da Criação, o
Espaço e o Equilíbrio, não implicam por si próprios nenhum
risco para o Universo criado. Não é o mesmo no que con­
cerne ao Tempo. Princípio dinâmico que permite toda a
ação, incluída a criação e toda realização, implica como
contrapartida a certeza da aniquilação final de tudo o que
foi criado. Sobre isto, cabe recordar o mito de Cronos
devorando a seus filhos.
Para dissimular esta ameaça, a Sabedoria divina intro­
duziu na ação do Tempo um dispositivo que evita a des­
truição imediata do mundo criado. Trata-se de uma das
duas leis básicas cujo princípio, funcionamento e efeito,
estudaremos nos capítulos seguintes. De momento, será
suficiente dizer que graças a esta lei artificial a marcha do
Tempo fecha-se em ciclos e, desta maneira, evitam-se den­
tro de certos limites seus efeitos destruidores. E o Tempo
não trabalha conforme suas retas, mas seguindo curvas; eia
"gira".
Os ciclos voltam a se fechar e se repetem. Graças a
esta ação cíclica, o próprio Universo e todos os elementos
que o compõem podem durar. Cada elemento o faz segun­
do seu próprio ciclo. Os Antigos conheceram bem esta lei;
sua filosofia não admitia as linhas retas; tinha por base o
princípio cíclico.
Tratemos, agora, de dar uma imagem geral da estrutu­
ra do Universo. Eis aqui os elementos do que se chama, na
ciência esotérica, o Raio da Criação ou, mais raramente,
Cone da Criação do Mundo.
O esquema é estabelecido da seguinte maneira. A Ter­
ra tem a Lua por satélite. É o limite, o último escalão da
8. Tradução do eslavo antigo.

108
Criação, depois do qual não existe mais nada. Com efeito,
a Lua — igual aos satélites dos outros planetas não tem
satélite.
Voltando, agora, nosso olhar para o centro, encontra­
mos que a Terra faz parte do Mundo Planetário que gravita
ao redor do Sol, regente do nosso sistema. O Sol é uma das
estrelas do sistema conhecido com o nome de Via-Láctea,
sistema ao qual pertence o conjunto do sistema solar. Sabe-
se que a Via-Láctea não é única em seu género. No céu,
observam-se outras galáxias semelhantes à nossa e se pode,
igualmente, supor mundos que não se lhe assemelham.
Essas grandes unidades em seu conjunto constituem Todos
os Mundos, dito de outro modo, todo o conteúdo do Uni­
verso que gravita ao redor do que se chama na Tradição o
Sol Central, ou seja, o Absoluto, isto é, Deus manifesto.
Assim se apresenta o esquema:

— Absoluto

— Todos os Mundos

— Nosso Mundo — Via-Láctea

— Sol

— Mundo Planetário

— Terra
Figura 28
— Lua

Ele será empregado habitualmente em nossos estudos


como um esquema cômodo para seguir e apoiar nossos
raciocínios, sem esquecer, contudo, que não representa
mais do que um Raio da Criação e não o Universo no seu
conjunto. Porque o conjunto do Universo é análogo em sua
estrutura a uma árvore onde, partindo da raiz — o Absolu­
to do nosso esquema — todo um sistema de ramificações
alcança a folhagem, da qual uma das folhas seria a analogia
da Lua no nosso Raio.

109
E, ao se querer estabelecer um esquema que se apro­
xime mais ainda da realidade, deve-se, então, colocar todos
os escalões da figura 28 , uns dentro dos outros, para figu­
rar o conjunto de um grande círculo que representa o
Absoluto, abarcando tudo e em cujo seio existe e vive tudo
o que existe e vive.

/\ z^x

Figura 29

NOTA: Por razões técnicas, a representação neste esquema


se detém no quinto escalão.

110
CAPÍTULO IX

Acabamos de indicar as três condições básicas segun­


do as quais foi criado o Universo. Vamos agora estudar as
duas leis fundamentais que regem tudo o que existe e vive
em todos os escalões do Universo criado. A primeira destas
leis condiciona a existência de tudo o que preenche o Cos­
mo, quer se trate, de seres, objetos ou acontecimentos.
A segunda lei fundamental rege toda ação, todo movi­
mento, em especial o processo da vida sob todas as formas,
até os movimentos mais sutis e mais íntimos do pensamen­
to e do sentimento.
Assim, estas duas leis fundamentais são onipresentes e
onipenetrantes, de maneira que, ninguém, nem nada no
Universo, pode a elas escapar.

A ciência esotérica chama a primeira lei de a Lei de


Três. Sua definição explica tal denominação:
Reflexão:
Tudo o que existe, existe como resultado da ação
convergente sobre um mesmo ponto e no mesmo momento
de três forças: passiva, ativa e neutraiizante.
Recordar-se-á que estas três forças refletem as três
condições básicas da criação do Universo, das quais já
temos falado. Como tais, representam no Universo criado a
manifestação das três condições da Criação, concebidas na
preexistência do Mundo pela Divindade não-manifesta.
Desta forma, a força passiva é a derivada da condição está­
tica: o Espaço; a força ativa é a derivada da condição dinâ­
mica: o Tempo; finalmente, a força neutraiizante assegura
no Universo a manutenção do Equilíbrio sobre todos os
planos e todos os escalões.

111
Subentende-se que, enquanto forças, estas três forças
são atuantes. Sua designação está feita de acordo com o
papel que cada uma delas desempenha na cooperação que
dá nascimento ao fenômeno considerado.
Vista deste ângulo, a vida no Universo não é mais do
que um perpétuo processo de criação em todos os domí­
nios, sobre todos os planos e em todos os escalões. E em
cada acontecimento, grande ou pequeno, importante ou
insignificante, se reproduz — guardada a proporção — um
ato análogo à Primeira Criação; a do Universo inteiro, ato
pelo qual atuam as três forças em questão, já o dissemos,
como uma réplica das três condições concebidas na pre­
existência do Universo criado. O exemplo clássico que dão
nas escolas esotéricas sobre o jogo das três forças é o pão.
Para fazer pão é necessário ter farinha, fogo e água. A fari­
nha, neste exemplo, é o condutor da força passiva, o fogo,
da força ativa, a água, da força neutralizante.
Continuando, é preciso indicar que a substância que
num caso serve de condutora da força passiva, pode, em
outros, ser condutora da força ativa e, em outro, veículo da
força neutralizante. Examinemos estas alternâncias em
outro exemplo clássico, o da concepção de uma criança. A
mulher aparece aqui como a força passiva, o marido como
a força ativa, o amor carnal como a força neutralizante;
estando presentes estas três condições, torna-se possível a
concepção. Ao se passar do plano carnal para o plano
moral, vê-se que a situação está invertida. A mulher é a que
atua — ou ao menos é chamada a atuar —, enquanto inspi-
radora, como força ativa, enquanto o homem, quando a
cooperação nesse plano é fecunda, figura como força pas­
siva. Assim como a mulher sobre o plano físico leva, duran­
te a gravidez, o fruto do amor carnal, em seguida o traz ao
mundo, alimenta e educa, assim, no plano moral, é o ho­
mem que concebe a idéia inspirada ou fecundada pela
mulher, desenvolve-a nele e, finalmente, a põe no mundo
sob a forma de uma obra ou, dito de outra forma, geral­
mente, de uma criação.
O caráter primordial da força passiva pode ser ilustra­
do com numerosos exemplos. Tomemos o caso de uma

112
compra: a mercadoria oferecida é o que constitui a força
passiva; a necessidade ou o desejo do comprador intervém
como força ativa, e o preço pago pelo objeto constitui a
força neutralizante. Em geral, a oferta intervém como
força passiva, a demanda como força ativa e o pagamento
como força neutralizante.
Que a força ativa é uma força e enquanto tal apresenta
um caráter ativo, o testemunha claramente o plano psicológi­
co; por mais ativa que seja, a sedução feminina representa,
no romance, a força passiva.
No que concerne à terceira força, a neutralizante, ela
escapa assiduamente de nossa observação, seja por causa
do caráter bipolar de nosso psiquismo, seja porque sua
natureza pode, em numerosos casos, deixá-la na obscuri­
dade. Ocorre que, às vezes, desempenha um papel catalisa­
dor muito menos evidente do que aquele de laço, que é
fundamentalmente o seu.
Conforme a ação das três forças através da matéria, a
tradição faz as seguintes distinções:
Quando uma substância serve de condutor â força
passiva, se chama oxigénio (O); quando serve de condutor
à força ativa, se chama carbono (C); quando serve de con­
dutor à força neutralizante, se chama nitrogénio (Azoe)
(N). Considerada independentemente das forças que con­
duz, a substância é chamada hidrogénio (H).
Se a concorrência das forças permanece estéril, e isto
quer dizer no sentido esotérico que sua cooperação não foi
íntegra, o defeito pode provir de uma das três forças, de
duas delas ou inclusive das três. A análise do caso à luz da
presente lei pode facilitar em grande medida a sua determi­
nação, ou causas do fracasso. Por exemplo, com a mesma
farinha, o pão será ruim e inclusive incomível, se for colo­
cada água em demasia — ou não o bastante — ou se o fogo
é fraco ou demasiado forte.
Esta última constatação nos permite apreender o sen­
tido e o efeito de uma lei subsidiária da/e/de três. Pode-se
ver que a mesma farinha, força passiva no nosso exemplo,
poderia sofrer um fracasso como consequência da falha da
força ativa (fogo), da força neutralizante (água), ou de

113
ambas. Isto leva-nos à conclusão de que a ação das forças
ativa e neutralizante deve ser regrada de acordo com o con­
teúdo da força passiva, que intervém como o elemento
estável, como uma constante. A força passiva contém, em
si, todas as possibilidades da criação do fenômeno, enquan­
to a força ativa intervém nele como o realizador, e a força
neutralizante, como o regulador das relações entre as
outras duas forças, dosando-as de forma ótima. Isto explica
e justifica a atribuição da primazia no mundo fenomenal à
força passiva.
Assinalemos que esta primazia provém, igualmente,
das condições da primeira Criação. Com efeito, para passar
do estado não-manifesto, quer dizer monopolar, concen­
trado sobre a consciência única do Ser no qual mora a Di­
vindade antes da criação do Mundo, a primeira idéia que a
faz sair da não-manifestação para entrar no estado manifes­
to é, necessariamente, a idéia do Tu. Esta idéia, concebida
pelo sacrifício divino da limitação de Si, teve no Amor,
força neutralizante, por terceira força. Na linguagem aces­
sível aos humanos. São João o expressa, dizendo que
"Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigénito, para que todo o que nele crê não pereça, mas
tenha vida eterna."1 Vê-se que a atitude do Absoluto
manifesto está, ela própria, regulamentada de acordo com
a força passiva — o Mundo —, Tu universal, considerado
como de sua solicitude.
Assim, a partir da Criação, a existência divina se torna
bipolar, sendo o Amor a força neutralizante que assegura
as relações entre o Eu e o Tu universais.
E isto não somente a fim de se convencer de sua efi­
cácia, mas também com o objetivo de acelerar a reeduca-
ção de nossa inteligência sobre bases esotéricas.
Sabemos que a estrutura do centro intelectual inferior
é bipolar. Esta estrutura está perfeitamente adaptada ao
que a Tradição ortodoxa chama de o "Mundo". Esse
"Mundo" está constituído pelo conjunto das influências
"A" das quais antes se falou, é o mundo em que vivemos o

1. João III, 16.

114
que aparece à Personalidade humana como o único real
porém que, de fato, é relativo e inclusive ilusório. Já exa­
minamos o esquema das influências "A” e "B” (Figura
20) e, como temos dito, todas as setas "A" têm uma con­
trapartida que as neutraliza. Isto simboliza a criação do
mundo a partir do zero, por sua separação em dois grupos
de forças iguais em potência e diametralmente opostas em
direção.
A estrutura bipolar da inteligência responde exata­
mente à estrutura do mundo, permite ao homem estudar e
reconhecer todas as influências "A", orientar-se no campo
imediato e distante de sua ação, aplicar ali suas atitudes
para a investigação, calcular, combinar, intervir, atuar e,
inclusive, criar, dentro dos limites do campo de ação dessas
influências.
Entretanto, sabe-se que de fato este "Mundo” é ilusó­
rio; que as influências "B” representam, na vida, a única
realidade imperecível. Por acaso não disse Jesus: "Não acu­
muleis para vós tesouros sobre a terra, onde a traça e a
ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas
ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem
corroem, e onde ladrões não escavam nem roubam.”2

Compreendamos bem que se trata de dois mundos


que se interpenetram: o mundo constituído pelo conjunto
das influências "A", a "terra” e o mundo esotérico, o "céu”,
formado pelas influências "B".
Estudando atentamente o jogo das três forças, o pes­
quisador se exercitará em reconhecer a ação das influên­
cias "A" e "B" e em distinguir entre ambas. Eis aqui um
dos elementos essenciais desta reeducação da qual antes se
falou.
Cuidemos, entretanto, de dar à diferença entre influ­
ências "A” e "B” uma interpretação sem matizes. As
influências "A" atuam em virtude da Lei Gerai, em con­
sequência conforme è vontade divina, e já se conhece uma
de suas razões de ser: servir ao interesse do Conjunto. Não

2. Mateus, VI, 19-20.

115
esqueçamos que tudo é relativo. Assim, quem estuda a
ciência esotérica não deve atacar ingenuamente as influên­
cias "A", o que poderia conduzi-lo a catástrofes. Tal foi,
por outro lado, a instrutiva e tão mal compreendida expe­
riência de Dom Quixote. As influências "A" desempenham
um papel positovo da economia do Universo e opõem uma
força esmagadora a qualquer que pretenda atacá-las de fren­
te em seu conjunto. A tarefa do pesquisador é outra. Pros­
seguindo sua formação esotérica, não deve procurar ani­
quilar as influências "A", nem abrir heroicamente um cami­
nho no meio delas, mas tratar de escapar a seu domínio.
O que importa compreender, também, é que .'tão
podemos alcançar esta meta, presos a nossas próprias
forças. Absorvendo as influências "B", influências divinas
de um nível superior, em consequência mais potentes, e
confiando nelas, dando, ao mesmo tempo, provas de capa­
cidade e devoção, nos subtraímos ao império das influên­
cias "A", regidas pela Lei Gera! e assistidas pela Lei de Aci­
dente.
Aqueles cujos esforços se vêem coroados pelo êxito e
que alcançam os níveis mais elevados do Ser, são utiliza­
dos, imediatamente, para participarem na organização de
um elo determinado pelo Cosmos.
Em geral é um trabalho no domínio das influências
"A" que se relaciona à missão a cumprir. Agora, este traba­
lho exige, antes de tudo, o estudo do mundo bipolar. A
inteligência é o único instrumento de que dispomos para
tal fim. Tal é, por outro lado, sua verdadeira razão de ser,
como também a razão de ser de sua estrutura, que reflete
exatamente o mundo das influências "A". Este instrumen­
to permite, então, ao homem, seguir o princípio de Platão,
apreender e conhecer o semelhante peio semelhante.
Sabendo isto, o estudante da ciência esotérica deve
cuidar-se dos extremos em que caem certos ensinamentos;
não deve desperdiçar nem descuidar de suas faculdades
intelectuais. A inteligência deve ser desenvolvida e aguçada
até o limite do possível; o pensamento deve tornar-se fino
como a ponta de uma agulha. Mas não se pode esquecer
que a Personalidade, apesar de sua completa estrutura e

116
suas múltiplas atitudes, não é mais do que um instrumento,
cujo funcionamento continua sendo mecânico. Por esta
razão, em matéria esotérica, ela não sabe e jamais saberá
nada com certeza. Agnóstica e fenomenalista por natureza,
está limitada por uma formação e um funcionamento nas
três dimensões, cujos limites é incapaz de franquear. E ela
toma sinceramente o mundo das influências “K”, por úni­
co real.
O conhecimento da Lei de Três permite dar-se conta
da complexidade da estrutura do Raio da Criação (Figura
29).
No infcio, o Absoluto reveste seu primeiro aspecto de
manifestação. Ele é Uno, e as três forças residem unidas
nEle. é a doutrina tradicional da Santíssima Trindade con­
substancia! e indivisível. Vista de baixo para cima, a Trin­
dade é chamada, alegoricamente, ocume-limite que coroa o
Universo concebido, então, como uma pirâmide.
As três forças do Absoluto — as três hipóstases da
Trindade, dotadas de uma vontade autónoma, porém inter­
dependentes — criam o Universo fenomenal e tudo o que
ele contém. No primeiro escalão, criam os mundos. Estes
mundos, cuja existência já não é mais consubstanciai,
porque está separada, dependem direta e inteiramente da
vontade do Absoluto, de quem conservam as três forças em
estado de desunião.
Criados assim por três forças desunidas, esses mundos
estão sempre penetrados pelas três forças em estado con­
substanciai, próprias do Absoluto no seu estado manifesto.
Tendendo ao desenvolvimento do Raio de Criação de
cima para baixo, a Criação segue sempre o mesmo proces­
so. Cada mundo é criado pelas três forças que lhe são pró­
prias, e se encontra igualmente sob o império das forças
que regem os escalões precedentes, dos quais provêm.
Estas forças criadoras representam, cada uma, um
grupo de leis da mesma ordem, que condicionam e fazem
funcionar o mundo pertencente ao escalão dado. Isto per­
mite completar o esquema 28 por uma escala que represen­
ta o número de grupos de leis-rectoras ao todo longo do
Raio de Criação: Figura 30.

117
Esta hierarquia de leis não é outra coisa senão hierar­
quia de jurisdição e de poder.
De escalão em escalão, e até a casca da Criação, a
Vontade do Absoluto penetra todas as coisas e todos os
seres do Universo, até os organismos mais primitivos e,
mais além, até a matéria mais inerte, designada na Tradição
com o termo pedra.
Qual é a significação das cifras no esquema preceden­
te? Representam as condições ou forças da Criação; dito de
outro modo, as leis, ou mais exatamente, as categorias de
leis sob as quais se encontra colocado cada um dos escalões
do Raio da Criação. A unidade não pertence mais que ao
Absoluto e esse número I, indivisível, ainda que levando em
si uma Tríade consubstanciai; significa a Liberdade de
Deus. Tudo o que Dele procede, progressivamente perde
sua liberdade, quer dizer, encontra-se submetido a um nú­
mero de' leis ou de categorias de leis mais e mais considerá­
veis. O que se dirige através do Raio da Criação, desde o
Absoluto â Lua, está cada vez mais sujeito, nós, que esta­
mos sobre a Terra, encontramo-nos sujeitos a 48 grupos
de leis, cifra, de per si, enorme. A esses 48 grupos de leis,
sob a égide das quais a Terra prossegue sua existência,
devem somar-se, para o homem Exterior, as leis relativas à
vida orgânica sobre a Terra; outras leis, consequência da
existência da sociedade humana e de órgãos e células desta
sociedade: raças, castas, famílias etc. Vivemos numa "sel­
va" de leis e esta é a razão pela qual, apesar de certos arran­
cos, nossa vida tropeça com todo o tipo de obstáculos. A
Salvação consiste, precisamente, na libertação progressiva
de nossa sujeição a esse considerável número de leis. Em
cada caso é necessário, se não derrubar os obstáculos, ao
menos dar-lhes uma volta. Também diz a ciência esotérica
que não podemos lutar com as leis que nos sujeitam, ata­
cando, sucessivamente, a cada uma delas; com esse procedi­
mento, jamais chegaremos a nada. Seria necessário ter mil
vidas consecutivas para desta maneira alcançar o resultado
desejado. É preciso, então, iludir o estado de coisas no seu
conjunto, ali existe uma possibilidade. Qual é? Veremos
nos capítulos seguintes.

118
Absoluto 1
Todos os Mundos 3
Via-Láctea 3+3=6
Sol 3 + 3 + 6 = 12
Mundo Planetário 3 + 3 + 6+12 = 24
Terra 3 + 3 + 6+12 +24 = 48

Lua 3 + 3 + 6+ 12 + 24 + 48 = 96

Figura 30.

Dado que a hierarquia das leis não é outra coisa senão


a hierarquia de poder, quanto mais sujeitos estamos, menos
poder temos. Não obstante, devemos mudar, também,
nossa noção de poder. Na ciência esotérica, Poder significa
Liberdade.
Cada vez que na vida se assume um compromisso,
submete-se, voluntariamente, a um novo grupo de leis que
rege a área em que esse compromisso é tomado. Não se
pensa nele, sobretudo quando se é jovem. Pode-se dizer
que o homem passa a primeira metade da sua vida "acei­
tando prestações" e a segunda metade perguntando-se
como enfrentá-las.

A força criadora inicial, força neutralizante que liga o


Tu universal ao Eu absoluto é o Amor. Esta força de Amor
que, em cada escalão da Criação adota um novo aspecto,
porém permanece idêntica em essência, penetra todo o
Universo de cima para baixo e reciprocamente.
São João diz, claramente: "Deus é Amor".3 Inversa­
mente, podemos dizer O Amor é Deus. O Apóstolo conclui:
"Aquele que não ama não conheceu a Deus."4 Hipóstase
divina, o Amor se manifesta ao Universo como a força do
renascimento e a renovação perpétua.

3. João, IV, 8.
4. João, IV, 8.

119
A vida do Universo está organizada conforme, uma
ordem rigorosa e perfeita. Tudo o que nos parece desor­
dem ou anarquia, assim nos parece como consequência da
nossa deficiência de percepção e juízo, é que a maior parte
das influências "B" nos escapam. Porém, na economia do
Grande Universo, todo ser ou fenômeno tem seu lugar e
serve consciente ou inconscientemente para alcançar um
objetivo preciso.
Tais são os aspectos essenciais desta primeira lei divi­
na que é a Lei de Três.

120
CAPÍTULO X

Temos estabelecido que a Lei de Três reflete ao Mun­


do criado pelo jogo das três forças as três condições da
Criação: estática, dinâmica e de equilíbrio. Nunca será
demais ressaltar a importância desta lei, já que tudo o que
existe no Universo, de fato ou em potência, existe graças à
ação combinada destas três forças.
Agora vamos estudar a segunda lei fundamental: a Lei
de Sete. Esta lei não se aplica à criação nem à existência
das coisas e fenômenos do espaço, mas à sua evolução no
Tempo. Concerne à ação de todas as categorias de movi­
mentos sobre todos os planos e em todos os escalões da
Criação.
Para melhor compreender a Lei de Sete e apreender a
sua importância, é-nos necessário examinar outro aspecto
do problema. Vimos que a única possibilidade do homem
que vive em uma selva de leis é se colocar sob a autori­
dade da Lei de Exceção, lei esotérica, que permite esca­
par ao conjunto das influências "A", cuja ação no mundo
exterior afeta nosso mundo interior. Agora, enquanto
ação, esta evasão também cai sob o domínio da Lei de
Sete.
Conforme esta lei, como veremos imediatamente,
toda ação está submetida a um ou vários desvios e, em con­
sequência, está, em princípio, destinada ao fracasso. Entre­
tanto, analisando a ação da Lei de Sete, captaremos o cará­
ter destes desvios, sua necessidade sob o ponto de vista
objetivo, e aprenderemos como é possível combatê-los er ir,
numa direção constante, em busca do objetivo procurado.

121
A natureza da Lei de Sete e sua necessidade objetiva
derivam do caráter destruidor do Tempo, segunda condi­
ção da Criação. Em virtude deste princípio, tudo o que
nasce ou é criado — compreendido o homem — está desti­
nado à aniquilação. Também o Universo, desde sua criação,
estava então sob a ameaça de ser aniquilado pela ação do
Tempo. Foi, então, necessário fazer frente a esse perigo. A
Lei de Sete representa o meio pelo qual a ação destruidora
do Tempo está neutralizada em uma certa medida. Um mo­
vimento não pode ser dissociado de sua duração. Agora,
toda ação é movimento exterior ou interior; encontra-se,
então, empreendida no Tempo. A Lei de Sete consiste, pre­
cisamente, em que todo movimento assim desencadeado
sofre, em certo momento, um desvio, logo, depois de um
percurso na nova direção, um novo desvio e assim, suces­
sivamente. Se o impulso inicial for o bastante forte, depois
de haver descrito um hexágono, o movimento, pelo último
desvio, voltará a seu ponto de partida. Assim, sob a influên­
cia da Lei de Sete, toda ação empreendida no Universo
se desenvolve conforme ciclos (Figua 31).
Enquanto que a Lei de Três é uma lei natural, a Lei
de Sete é artificial. Se não neutraliza totalmente a ação
destruidora do Tempo, ao menos o modera ao impor a
toda ação ou movimentos curvaturas sucessivas para fechá-
los em ciclos. Em primeiro lugar, o próprio Tempo está
encurvado, desviado da linha reta e fechado num grande
Ciclo, que engloba todos os ciclos subordinados.
META META
2
A

1
i 1. Primeiro impulso
X
4 I
2.
3.
Primeiro desvio (tendência)
Choque complementar
4. Continuidade na direção do primeiro im­
ANTÍPODA pulso como resultado de 2 mais 3
Figura 31 Figura 32

122
Pela Lei de Sete, o aniquilamento não sobrevém no
curso do primeiro ciclo, ainda mais quando a força do im­
pulso inicial se encontra esgotada. Entretanto, a lei admite
a possibilidade de reavivar o movimento que perdeu ener­
gia e velocidade — mediante impulsos complementares nos
momentos e pontos oportunos (Figura 32).
O Grande Ciclo que circunscreve o Tempo a partir do
primeiro impulso da manifestação divina até a Consuma­
ção, isto é, o fim do Mundo, é concebido na Tradição
como a Eternidade. A Eternidade, já o indicamos, não é,
então, infinita. Como tudo o criado, é limitada. Abarca
toda a manifestação e compreende nela o cumprimento de
todas as possibilidades e de todas as promessas.
A curvatura do Tempo, que se origina da Lei de Sete,
faz voltar, também a ele, a seu ponto de partida, depois
que circunscreveu o polígono da Eternidade. Assim consi­
derada, a Eternidade tem uma certa duração, da ordem de
2.1015 anos terrestres, como veremos mais adiante. Estas
considerações sobre a curvatura do Tempo e de todo movi­
mento, incluída toda ação física, psíquica e moral, de qual­
quer que seja a natureza, permite dar a definição da Lei de
Sete.
Definição: Todo movimento empreendido numa de­
terminada direção sofre, em certo momento, um desvio.
In versa mente: Para que um movimento dirigido a uma
meta determinada possa prosseguir sem se desviar dessa
mesma direção, é necessário imprimir-lhe impulsos comple­
mentares adequados, em momentos e pontos determina­
dos.
Corolário: Um movimento que segue uma direção de­
terminada, abandonado a si mesmo, empenha-se, com o
terceiro desvio, na direção diametralmente oposta.
Tais são as características essenciais da Lei de Sete.
Na atividade humana sobre o plano moral, o corolário
anterior encontra sua aplicação a cada momento. Quanto
sangue foi derramado em nome do Filho de Deus, que
pregou o Amor? Quantas crueldades, violências e compul­
sões foram exercidas por revoluções feitas em nome da

123
liberdade e da fraternidade? Estes exemplos poderiam mul­
tiplicar-se sem fim.
No momento, tais desvios nos escapam, quase sempre.
Continuamos imaginando que mantemos a mesma direção,
enquanto, insensivelmente, fomos conduzidos, sem nos
darmos conta, em tomar a direção oposta. Neste momento,
nossa ação empreendida no plano moral, recebe, automati­
camente, um novo impulso proveniente da reação do meio
ao impulso primitivo. Quanto mais vigorosa, "vanguardis-
ta", ou "revolucionária" tiver sido a reação, seguindo o
princípio de Equilíbrio, mais forte é. De maneira que o
movimento em sentido inverso, aquele que na linguagem
comum se chama reação, toma uma amplitude inesperada
e faz, às vezes, voltar aos promotores da ação inicial, muito
mais atrás de seu ponto de partida. Assim é, quase sempre,
o caso das doutrinas políticas.
O segundo impulso deve, consolidando o primeiro
êxito, permitir sua exploração. A história dá muitos exem­
plos da necessidade deste segundo impulso: quando este
faltou, depois de vitórias, perdeu-se, com muita frequência,
a guerra.
Deve ser assinalado outro efeito desta lei. Viu-se que
é necessário passar por dois desvios consecutivos para al­
cançar a direção oposta ao movimento inicial. Quer dizer
que é necessário prever dois impulsos complementares con­
secutivos para manter a direção primitiva do movimento e
assegurar, assim, o êxito da empresa.
Para dar um passo adiante ao estudo da Lei de Sete, e
para compreender por que assim é chamada, é necessário
dar uma olhada nas relações matéria e energia e sobre a na­
tureza dos movimentos cíclicos que as caracterizam.
A ciência positiva moderna estabeleceu as relações
íntimas entre matéria e energia, um fato conhecido pela
ciência esotérica desde tempos imemoráveis. Hoje em dia,
não é mais temerário dizer que a matéria não é mais do que
uma forma de algum tipo de energia estática, cuja natureza
é dinâmica, por excelência. Certos fenômenos conhecidos
desde sempre já permitiam perceber essa noção: o relâmpa­
go esférico ou raio em bola, por exemplo, possui caracte-

124
rísticas da matéria, tais como o volume e a cor. Mas o está­
gio de conhecimentos no século passado não permitia abor­
dar o estudo de tal fenômeno que, por outro lado, passava
relativamente despercebido pela sua raridade. Os recentes
progressos da ciência positiva levaram a redescobrir, se
não integralmente pelo menos em parte, o antigo saber tra­
dicional, em particular sobre o domínio das relações maté­
ria-energia. A ciência esotérica tradicional encara a mani­
festação de toda energia sob a forma de um movimento
cíclico vibratório. E ensina que a matéria, como tal, está
composta de um número relativamente restrito de núcleos
de diversas qualidades, de natureza análoga ao do relâmpa­
go esférico. Estes núcleos estão animados de movimentos
cíclicos vibratórios de diferentes frequência e amplitude. A
Tradição introduz, aqui, a noção de densidade, aplicável
igualmente à energia e à matéria. Finalmente, estabelece a
lei em relação à qual a densidade da matéria e das vibrações
são inversamente proporcionais.
Sempre em relação ao ensino tradicional, a quantida­
de de núcleos na matéria, núcleos que são a matéria pro­
priamente dita, é mínima. 0 volume ocupado por um obje­
to qualquer está cheio do que se chama de vestígios dos
movimentos extra-rápidos de um número restrito de nú­
cleos. Tudo depende da densidade desses movimentos, de
sua rapidez. Quanto mais lentas e pesadas são as vibrações,
mais núcleos são necessários para constituir um corpo; e
inversamente. Sabe-se que a rapidez de um movimento é
suscetível de modificar as propriedades físicas da matéria.
Por exemplo, quando se comunica a uma leve folha de papel
apertada entre os limites de um eixo, um movimento de
rotação de cinco a seis mil voltas por minuto, ela se
torna capaz de serrar um pedaço de madeira. Na frequência'
indicada, nosso pedaço de papel aparece como um disco,
ainda que, de fato, seja retangular. Ao se intensificar a velo­
cidade da rotação muito além do antes indicado, este dis­
co, enquanto dê voltas, toma, para nossos sentidos, as
características de um objeto sólido em repouso. Poder-se-
ia, então, tocar a folha de papel sem correr o risco de
cortar a mão.

125
A estrutura da matéria apresenta-se, então, à luz desta
teoria como análoga â do Universo observado desde o
"interior" com a rotação dos sistemas dos astros. Já fala­
mos disso (Capítulo VIII) e dissemos que se pudéssemos —
reduzindo-nos à proporção de um ser infinitesimal — obser­
var nosso corpo desde o interior, como observamos o
corpo do Universo, não o perceberíamos diferente, porque
a estrutura do Universo é estritamente uniforme em todos
os escalões, sob a reserva da aplicação do princípio da
Relatividade.
A Tradição considera todo movimento como um cres­
cimento ou uma redução de vibrações da mesma ordem.
Ela rechaça a idéia de estabilidade, porque tudo existe
graças ao movimento e se encontra em estado de perpétuo
movimento. O próprio corpo pode cumprir — e geralmente
cumpre — numerosos movimentos de uma só vez. Assim,
nosso planeta, a Terra, está animado de um grande número
de movimentos, dos quais doze são considerados os princi­
pais. Para nosso satélite, a Lua, conta-se uma centena.
No plano psíquico e da mesma forma no plano psicológico,
assiduamente observam-se componentes opostos para um
mesmo conjunto de movimentos, dos quais uma parte se
encontra, assim, em progressão, enquanto outra está em
regressão; entretanto, não há nada que seja, propriamente
falando, estável. A estabilidade sob o ponto de vista
esotérico é impensável: é uma ficção. A única estabilidade
que ali se admite é a estabilidade no movimento: é um
fenômeno de primeira importância que permitiu a cria­
ção da matéria assim como nós a conhecemos, sob suas três
formas.
Vejamos agora a ação da Lei de Sete no caso de um
movimento no qual haja crescimento de vibrações. Os des­
vios consecutivos das quais falamos no começo do presente
capítulo, criam, nesse caso, uma descontinuidade. Esta des-
continuidade intervém na propagação de todo movimento,
ainda que ele nos possa — e parece — parecer progressivo e
ininterrupto. Examinemos do ponto de vista da oitava
musical, cuja estrutura reflete perfeitamente a Lei de Sete.

126
Entende-se por oitava a duplicação das vibrações. A
gama musical colocada entre os limites de uma oitava com­
preende sete tons e cinco semitons. Os semitons que faltam
estão colocados como o indicam as setas do esquema:
DÔ1 RÉ Ml FA SOL LA SI D0j
—I-----------1---------- 1---------- 1---------- 1----------- 1---------- 1----------- I—
1 t
Figura 33
O primeiro encontra-se entre as notas Ml e FA, o
outro entre SI e DÔ2. Vejamos agora o caráter da progres­
são das vibrações que, dizemos nós, são realizadas de ma­
neira descontínua. Os esquemas seguintes mostram, por
um lado, esta descontinuidade expressa em frações e em
números inteiros e, por outro lado, a curva de descontinui­
dade de uma oitava musical. Dissemos que todo fenôme­
no existente, existe no Tempo e, como consequência, é
movimento. E todo movimento, função do Tempo, encon-
tra-se colocado como este, sob o império da Lei de Sete;
dito de outra maneira, da Lei de Oitava. A ação do Absolu­
to que cria o Universo, cuja existência em todos os escalões
está assegurada pela Lei de Três, também se desenvolve no
Tempo, continuando em consequência a Lei de Sete.
DÔ 1-24 25
3

RÉ 9/8-27
3 20 -
Ml 5/4 - 30
2
15 ■
FÂ 4/3 - 32

SOL 3/2 36 10 ■
4

LA 5/3 40
s 5 ■
SI 15/8 45
3
o *—>—•—.—.—»—•--- -
DÔ 2-48 dó ré mi fá sol lá si dó

Figura 34 Figura 35

127
O Raio da Criação, progredindo desde o Absoluto até
os satélites dos planetas — até a Lua, em nosso caso —
segue, necessariamente, a cadência da oitava. Na Tradição
chama-se a Grande Oitava ou a Oitava Cósmica. É uma
oitava descendente.
1 DÓ — Deu*. Absoluto manifesto. Sol central. DOminus

SI - Céu estrelado. Conjunto de todo* o* mundo*. Sldereu* orbi


3

LA Nosso Grande Mundo; a Via Láctea LActeus orbii


6

12 SOL- Sol SOL

24 FÁ — Mundo planetário, ao qual a antiguidade atri­ FAtum


buía a influência direta sobre o destino.
48 Ml — Terra, nosso mundo Imperfeito, colocado sob Mlxtus orbi*
o império da mistura do Bem e do Mal
Figura 36 M RÉ — Lua, a regente do destino humano, segundo REgina estria
o* antigos
— o»
O ensinamento esotérico, antes somente reservado aos
iniciados, foi conhecido não somente no Oriente, mas tam­
bém no Ocidente, é visto com evidência, analisando os
nomes das notas da gama musical estabelecida, como se
sabe, por Guido d'Arezzo, beneditino italiano (até 995 —
1050). Para fazê-lo, utiliza o hino a São João Batista, com­
posto dois séculos antes por Paul Diacre Warnefrid, histo­
riador lombardo (740 — 801). Este, por sua vez, secretário
do rei lombardo Didier, viveu, depois, na corte de Carlos
Magno, após, na de Benevent, para, finalmente, retirar-se ao
convento de Montecasino, onde terminou seus dias.
O hino a São João Batista assim está concebido:

UT queant iaxis
REsonare fibris
Mira gestorum
FAmuii tuorum
SOLve poliu ti
LAbii reatum
Sane te Johannes.1

1. Eis aqui a tradução do hino: "Para que teus fiéis possam com todas as fibras
(de sua alma) cantar as maravilhas de tua vida — Purifica seus lábios man­
chados (do pecado), óh São João!

128
Verifica-se que este hino foi composto por Paul Dia-
cre numa forma hermética. Este procedimento sempre ocu­
pou um lugar de honra no ensinamento esotérico. O exame
comparativo do esquema da Grande Oitava e do hino de
Paul Diacre não deixa dúvidas sobre o fato de que este
conhecia bem o esquema. O mesmo que Guido d'Arezzo
que, dois séculos depois de Paul, escolheu entre seus hinos
justamente este para introduzi-lo na gama musical.
Da mesma forma, pode-se explicar por que Paul Dia­
cre utiliza a sílaba UT e não DÔ para designar a primeira
nota. Observe-se que concebeu seu hino sobre a gama
ascendente, enquanto a Grande Oitava representa natural­
mente uma gama descendente. Pelo sentido de seu conteú­
do, este canto tende de baixo para o alto, do grave ao agudo;
em outros termos: do plano humano ao plano divino, ain­
da que se detenha, sem a esta alcançar, na nota SI, consa­
grada a São João Batista. Dizemos, de passagem, que o Pre­
cursor é objeto na Tradição de uma particular veneração, e
que é colocado abaixo dos Apóstolos. Em certos ícones
bizantinos é representado alado, com duas cabeças, uma
normal, colocada sobre seus ombros, outra semelhante,
mas cortada e ensanguentada, a qual carrega nas mãos
sobre uma bandeja.
Se Paul Diacre quisesse prolongar o seu hino com uma
linha a mais, teria sido obrigado a consagrá-lo a Jesus e, por
consequência, iniciá-lo pela sílaba DÔ. Mas não o fez. Sua
gama eminentemente humana, tendendo como ponto de
partida ao homem tal como "é nascido de mulher"2 em
toda sua imperfeição, não poderia, evidentemente, come­
çar por DÔ, cujo verdadeiro sentido é Dominus. Escolheu a
sílaba UT da palavra Uterus, órgão da gestação, precisa­
mente para destacar a condição imperfeita, comum a todos
os fiéis, como a todos os homens, e para orientá-los sobre
os passos de São João, sobre quem Jesus diz: "Em verdade
vos digo; Entre os nascidos de mulher, ninguém apareceu
maior do que João Batista."3

2. Mateus, XI, 11.


3. Mateus, XI, 11.

129
Assim, UT — Uterus — simboliza a porta do nascimen­
to segundo a carne, e SI a porta do Segundo Nascimento,
aquele segundo o Espírito, sem o qual "não pode ver o
reino de Deus".4 A gama ascendente de Paul Diacre com­
preende, então, uma oitava de regeneração, indo do nasci­
mento na terra ao nascimento nos céus.
Tal é a explicação deste hino, conforme o sentido
íntimo das tradições místicas de outras épocas.

Uma explicação exaustiva dos nomes das notas que


formam a oitava musical mostra uma correspondência dire­
ta com as da Grande Oitava cósmica, como o testemunha o
seguinte esquema:

1 DÓ Absoluto
3 SI Todos os Mundos
6 LA Via Láctea
12 SOL Sol

24 FÁ Mundo planetário
48 Ml Terra
Figura 37 96 RÉ Lua

Voltemos ao problema matéria-energia para esclarecer


a questão da estrutura atómica tal como é encarada pela
ciência esotérica. Vimos que a manifestação primeira da
energia se apresenta sob a forma de um movimento intra-
-atômico vibratório cíclico. Animando este movimen­
to, um certo número de núcleos forma a matéria. Se, com
efeito, pode-se dizer que tais módulos em movimento
formam a matéria, não se esquecerá que eles próprios estão
constituídos por energia em sua forma estática. Inversa­
mente, a energia outra coisa não é senão matéria adotando
forma dinâmica. A desintegração do átomo proporciona
um exemplo de tal transformação. Por outro lado, citamos

4. João, 111,3.

130
o relâmpago esférico como exemplo da concentração em
nódulos de energia dinâmica. Este processo é o inverso
do primeiro e pode ser comparado ao fenômeno da fusão
atómica.
Igualmente indicamos que a estrutura da matéria,
subordinada ao princípio de Equilíbrio, acusa uma densi­
dade inversamente proporcional à das vibrações internas
que a anima. No momento, trata-se de introduzir em
nossos estudos a noção de átomo tal como é admitida
na Tradição. Com relação à definição clássica, o átomo
é aquela partícula do elemento chamado simples, que não
poderia ser mais fragmentado, se é que se deve conservar
tal integridade das propriedades químicas, graças às quais é
suscetível de entrar em combinação com outros corpos. A
ciência esotérica adota uma noção diferente. Ei-la:
Definição: O átomo é a menor partícula, a última
divisão da substância dada, que conserva integralmente
todas suas propriedades físicas, químicas, psíquicas e cós­
micas.
Verifica-se que esta definição se aproxima mais da de
molécula, se bem que a supere.
Distinguem-se, então, ao lado dos átomos de elemen­
tos considerados pela química como simples, os átomos de
corpos compostos. Por exemplo, um átomo de água, um
átomo de ar etc. Em correlação com as propriedades cós­
micas do átomo assim definido, a ciência esotérica reco­
nhece diversas Ordens da Matéria em relação à densidade
dos átomos tipo correspondentes a cada escala da Gran­
de Oitava. Esta concepção não admite uma oposição entre
Matéria e Espírito. Se se opõem um ao outro é por conven­
ção, por comodidade, assim como a astronomia continua
servindo-se, para os objetivos práticos, do sistema de Pto-
lomeu, sabendo adequadamente que é o sistema de Coper-
nico o que reflete mais exatamente a realidade. Sob o
ponto de vista da concepção, em princípio monista, da
ciência esotérica, tudo ã matéria no mundo manifesto,
atendendo que a matéria manifesta a energia, que é uma
certa forma do Espírito. Os atributos dados ao Espírito

131
Santo num hino que se conserva na Ortodoxia, manifestam
bem esta forma de pensamento:

Rei dos Céus, Consolador,


Espírito da Verdade, Onipresente,
Tudo Abarcante,
Tesouro dos Santos,
Dispensador da Vida,
Vem, estabelece-te em nós.
Purifica-nos de toda mancha,
E salve nossas almas, ó Benfeitor! 5

Dito isto, compreender-se-á que somente o átomo do


Absoluto realmente é simples e, por este fato, indivisível:
um módulo único de Energia-Espírito vibrando na máxima
intensidade, é o átomo mais leve; sua densidade-matéria
tem o valor da unidade na ciência esotérica. Depois, des­
cendendo escalão por escalão, o Raio da Criação, as vibra­
ções perdem, progressivamente, sua rapidez. Deduz-se que
a constituição dos átomos em cada nota da Oitava Cósmi­
ca exige mais matéria: os átomos se tornam mais e mais
pesados e mais e mais inertes. Como se verá, à continuação,
os átomos-tipo de cada escalão correspondem à ordem da
Criação em relação à Lei de Três, como foi exposto antes
(Capítulo IX, Figura 30; Capítulo X, Figura 36). De manei­
ra que a densidade destes átomos-tipo segue as notas da
Grande Oitava e pode ser representado pelo esquema da
Figura 38.
A ciência positiva não considera mais do que a quatro
destes sete escalões da matéria cósmica: integralmente, a
escala da Terra; em grande proporção à da Lua, e em pro­
porção mais e mais reduzida, os escalões do Mundo Plane­
tário e do Sol. Não dispõe, ainda, de meio nenhum para
perceber e conhecer os três escalões superiores. Já os áto­
mos do Mundo Planetário tal como foram definidos antes
5. Tradução do eslavo antigo. Foi grifado por nós. Pode-se notar que esta
concepção do Espírito Santo que, por outro lado, é representado sob a
forma do Fogo (Atos, II, 3) é análoga à de Agni no hinduísmo. Lembrar,
também, que em grego os termos espíritos e ar são homónimos (pneuma),
como no antigo eslavo os termos espírito e alento (doukh).

132
aparecem hipotéticos de alguma maneira. Quanto ao Sol,
sabemos muito pouco do que concerne a este astro. Porém,
o progresso da Ciência positiva coloca-nos, hoje em dia, às
vésperas de descobertas importantes neste domínio, como
o do conhecimento do nosso satélite. Será surpreendente
comprovar que objetivamente o Sol tem um aspecto total­
mente distinto do que percebemos, que a Terra vista da
Lua, aparece diferente de como nós a representamos.

átomo do absoluto, único átomo indivisível

átomo da escala de Todos os Mundos

átomo da Via Láctea

átomo do Sol

133
átomo do Mundo Planetário

átomo do planeta Terra

átomo da Lua

Figura 38

134
CAPITULO XI

A Lei de Sete é, então, uma lei geral que rege todas as


categorias de movimentos conscientes ou mecânicos que se
produzem no Universo criado. Quer dizer que todo movi­
mento ou criação se desenvolve conforme uma gama. Pois
bem, em toda escala, a progressão sofre um desvio, uma lenti­
dão, âs vezes até detida entre os intervalos entre Dô e SI,
entre FÃ e Ml. Eis aqui o sentido profundo da ação de des­
tino, tal como foi concebido pelos antigos. De acordo com
eles, nem o próprio Zeus escapava de seu império. Com
efeito, a ação do Absoluto, seguindo na sua obra criadora o
fíaio da Criação, submete-se igualmente a esta lei. Como
toda obra criadora, esta ação segue, bem entendido, uma
gama descendente. Pois bem; para que a vontade do Absolu­
to possa passar ao estágio da manifestação e, continuando,
chegar através de todos os escalões da gama do fíaio da
Criação até o ponto final que é a nota RÉ, a Lua, era e
continua sendo necessário superar, em primeiro lugar, o
intervalo entre DÔ e SI e então neutralizar a tendência ao
desvio causado pela lentidão que sofre sua progressão entre
FÁ e Ml.
0 primeiro intervalo é superado por vontade do Abso­
luto, por meio de Sua vontade criadora que aparece, neste
ponto, como um esforço consciente, proporcionador do
primeiro impulso à criação premeditada e pré-resolvida.
Esta força criadora, como já dissemos, é o Amor. Quanto
ao intervalo entre FÁ e Mi da Grande Oitava, está, igual­
mente, cumulado pela vontade do Absoluto, mas já não
diretamente, como no primeiro caso. Esta vontade atua
aqui em segundo grau, porém sempre como força criadora

135
de Amor. Aparece agora sobre o plano inferior correspon­
dente ao intervalo em questão. Esta porção complementar
de forças no lugar e no momento cósmico desejado permi­
te à primeira ação criadora prosseguir sem freios seu desen­
volvimento.
Os dois esquemas seguintes refletem, por um lado, o
Plano da Criação (Figura 39) e, por outro lado, sua aplica­
ção (Figura 40).
Tecnicamente, a transmissão de energia criadora atra­
vés do segundo intervalo realiza-se pela introdução, na exe­
cução do plano cósmico de uma Oitava Auxiliar Lateral.
Com a criação do Mundo Planetário, o Sol da Grande Oita­
va começa a ressoar como DÔ da Oitava Lateral.
Antes de seguir adiante.convém comentar o sentido e
a missão da Oitava Lateral no seu conjunto e estabelecer a
significação própria a cada uma das notas que a compõem.
Se dermos uma olhada no esquema que representa a
Oitava Cósmica poderemos constatar que, entre o Absolu­
to e o Sol, não existe nenhum corpo intermediário de natu­
reza substancialmente diferente. Com efeito, as notas SI —
Todos os Mundo — e LA — Via-Láctea — Nosso Mundo —
estão compostos de corpos em diferentes estágios de sua
existência (formação, maturidade, envelhecimento ou
morte), porém todos semelhantes ou ao menos análogos ao
nosso Sol.
TUDO DÔ — Absoluto
Primeiro intervalo
SI
LA
SOL
FA
Segundo intervalo
Ml

Figura 39 NADA Dõ — Absoluto

136

Pnrveiro intervalo (Vontade do Absoluto)

SI

LA

SOL Dô da oitava lateral

FÁ Sl

LA-SCL-FÁ Segundo intervalo (vida orgâni­


ca tobre a Terra)

Ml Ml

RÉ RÉ
Figura 40

Como se verá adiante, o Sol,assim como todas as estrelas


do Universo astronómico — onde cada uma é o sol do seu
próprio sistema — representa um conjunto. E entre o Absolu­
to e este conjunto, que na Tradição é considerado como o
corpo de Cristo cósmico, não existe, repitamos, nenhum
corpo intermediário que seja, por natureza, diferente. Com
efeito, ali não se concentram mais que diversos agrupamen­
tos de corpos da mesma natureza solar. É oor isto que o
Espírito desse corpo solar integral foi considerado como o
Ser consubstanciai ao Absoluto, gerado e não criado, o
Filho de Deus,1 o Cristo cósmico, dizemos nós. Sua marri-
. festação no nosso Raio da Criação aparece precisamente
pelo fato de que o Sol da Grande Oitava ressoa como o Dô
da Oitava Lateral ligada indiscutivelmente a esse mesmo
Raio da Criação. A Oitava Lateral é, no Universo, o condu­
tor da Vida em suas diferentes formas. Espírito do Sol, o
Cristo Vive,2 compreende Nele a plenitude da vida solar
planetária e dos satélites sob todas as suas formas presen­
tes, desaparecidas ou por vir.

1. o CREDO.
2. João, XIV, 19.

137
de Amor. Aparece agora sobre o plano inferior correspon­
dente ao intervalo em questão. Esta porção complementar
de forças no lugar e no momento cósmico desejado permi­
te à primeira ação criadora prosseguir sem freios seu desen­
volvimento.
Os dois esquemas seguintes refletem, por um lado, o
Plano da Criação (Figura 39) e, por outro lado, sua aplica­
ção (Figura 40).
Tecnicamente, a transmissão de energia criadora atra­
vés do segundo intervalo realiza-se pela introdução, na exe­
cução do plano cósmico de uma Oitava Auxiliar Lateral.
Com a criação do Mundo Planetário, o Sol da Grande Oita­
va começa a ressoar como Dó da Oitava Lateral.
Antes de seguir adiante.convém comentar o sentido e
a missão da Oitava Lateral no seu conjunto e estabelecer a
significação própria a cada uma das notas que a compõem.
Se dermos uma olhada no esquema que representa a
Oitava Cósmica poderemos constatar que, entre o Absolu­
to e o Sol, não existe nenhum corpo intermediário de natu­
reza substancialmente diferente. Com efeito, as notas SI —
Todos os Mundo — e LA — Via-Láctea — Nosso Mundo —
estão compostos de corpos em diferentes estágios de sua
existência (formação, maturidade, envelhecimento ou
morte), porém todos semelhantes ou ao menos análogos ao
nosso Sol.
TUDO DÕ — Absoluto
Primeiro intervalo
SI
LA
SOL

Segundo intervalo
Ml

Figura 39 NADA DÓ — Absoluto

136

Porreiro intervalo (Vontade do Absoluto)

SI

LA

SOL DÔ da oitava lateral

FÁ Sl

LA-SCL-FÁ Segundo intervalo (vida orgâni­


ca sobre a Terra)

Ml Ml

RÉ RÉ
Figura 40

Como se verá adiante, o Sol,assim como todas as estrelas


do Universo astronómico — onde cada uma é o sol do seu
próprio sistema — representa um conjunto. E entre o Absolu­
to e este conjunto, que na Tradição é considerado como o
corpo de Cristo cósmico, *não existe, repitamos, nenhum
corpo intermediário que seja, por natureza, diferente. Com
efeito, ali não se concentram mais que diversos agrupamen­
tos de corpos da mesma natureza solar. É oor isto que o
Espírito desse corpo solar integral foi considerado como o
Ser consubstanciai ao Absoluto, gerado e não criado, o
Filho de Deus,1 o Cristo cósmico, dizemos nós. Sua mani-
. festação no nosso Raio da Criação aparece precisamente
pelo fato de que o Sol da Grande Oitava ressoa como o DÔ
da Oitava Lateral ligada indiscutivelmente a esse mesmo
Raio da Criação. A Oitava Lateral é, no Universo, o condu­
tor da Vida em suas diferentes formas. Espírito do Sol, o
Cristo Vive,2 compreende Nele a plenitude da vida solar
planetária e dos satélites sob todas as suas formas presen­
tes, desaparecidas ou por vir.

1. O CREDO.
2. João, XIV, 19.

137
Tal é o sentido geral da Oitava Lateral. Vejamos agora
como esta fonte de vida, surgida doSo/, manifesta-se atra­
vés das notas FA, Ml e RÉ da Grande Oitava, assim como
através da nota SI, LA, SOL, FA, Ml e Ré de sua própria
oitava.
Furtemo-nos, aqui, de representações demasiado
astronómicas, ou astrofísicas, do Universo. Percebemos os
fenômenos cósmicos parcialmente, na medida de nossa
capacidade de percepção, que é limitada. Tal como somos,
homens exteriores, o elemento psíquico na vida do Univer­
so nos foge; mais precisamente, não temos noção objetiva
dele. Falhos no saber, estamos neste campo reduzidos a
crenças: positivas, isto é, emotivas; religiosas ou negativas,
racionalistas, atéias.
Com efeito, sabemos muito pouco em relação ao nos­
so Sol e à multiplicidade de suas funções e das influências,
mediante as quais rege as três notas restantes da Grande Oi­
tava, especialmente o Ml, que é a nota do nosso planeta.
Para compreender melhor a ação da gama em geral,
tomemos um exemplo da vida corrente. Veremos que o
homem sempre busca instintiva mente superar os intervalos,
tanto no momento da criação como no curso da realização
de seus empreendimentos.
Sabe-se que para atuar com possibilidades de êxito, é
preciso trabalhar de acordo com um plano previamente ela­
borado. Qual é o sentido esotérico deste princípio? é
duplo. O primeiro é conhecido por todos; responde às exi­
gências da Lei de Três que preside a toda a criação. O se­
gundo aponta a materialização do assunto projetado, ao
se iniciar. Esta se faz, necessariamente, de acordo com a
Lei de Sete. Tomemos um exemplo em um domínio que
não é distante a ninguém, o da Administração. Sabe-se que
uma lei normalmente é acompanhada de um ou de vários
decretos de aplicação, que lhe estão intimamente ligados.
Eles desempenham o papel da força neutralizante entre o
DÔ da lei, força ativa, e o SI, força passiva, na qual começa
a execução das medidas que dessa lei se desprende.
Por regra geral, a execução não depende mais da auto­
ridade que sanciona a lei, mas de uma autoridade subordi-

138
nada, como o Filho da Grande Oitava. É precisamente esta
autoridade, em segunda instância, a que está encarregada
de realizar o assunto até sua culminação, a partir da nota
SOL, que tem, por trás dela, as notas SI e LA, representan­
do a acumulação dos meios psíquicos e biológicos e, dian­
te dela, a nota FA, isto é: os meios materiais de todo o tipo
à sua disposição.
No caso de um desenvolvimento normal da ação
administrativa, a nota Ml representa os primeiros resulta­
dos. Na nota Ré, o êxito se estabiliza e permite recolher os
frutos finais. Estes frutos aparecem como o DÔ na oitava
seguinte, então gerada, a qual terá, daí em diante, uma vida
e um desenvolvimento independentes.
Teoricamente, tal é a evolução seguindo a Oitava Prin­
cipal. Porém, apesar de tudo; da lei bem concebida, da
escolha feliz de uma autoridade de execução, da acumula­
ção oportuna dos elementos psíquicos e materiais neces­
sários — tudo isto —, não se pode fazer avançar a criação
mais além da nota FA. Somente por meio da Oitava Late­
ral a ação pode ser conduzida praticamente ao resultado
objetivo que, como foi visto, somente é alcançado na nota
DÓ da oitava que termina a Oitava Secundária. A Oitava
Lateral começa pela nota DÔ surgida da nota SOL da Oita­
va Principal. Isto significa que a autoridade de segunda ins­
tância, o SOL da Oitava Principal, toma a iniciativa da exe­
cução da lei-plano no marco do decreto. Esta autoridade
não tem uma total liberdade de ação; está limitada pelo
plano e orientada pelo decreto. Mas no marco das normas
estabelecidas por tais textos espera-se dela uma iniciativa.
Se não comete o erro de imiscuir-se em seus atos, a autori­
dade subalterna aparece no quadro fixado como senhor ab­
soluto; o DÔ da Oitava Lateral em seu domínio é análogo
ao DO da Oitava Principal.
Depois de estabelecido o plano sobre uma base apro­
priada e ter acumulado os meios necessários para colocar-se
a caminho, o talento do chefe supremo reside na judiciosa
escolha de seus colaboradores. Pelo contrário, o colabora­
dor deve, em todos os domínios, e em particular no esote­
rismo, fazer frutificar todos os talentos.

139
Compreender-se-á que Jesus assinalou a este aspecto
da Lei de Sete, quando pronunciava essas palavras, estra­
nhas à primeira vista: "Pois ao que tem se lhe dará... mas,
ao que não tem, até o que tem lhe será tirado"3 ou me­
lhor, "até aquilo que julgar ter".4
O homem atua na vida sob a autoridade da Lei de
Sete sem sabê-lo, por suposto. Ao tropeçar com as dificul­
dades que surgem em seu caminho, sem causas visíveis, e
ao acumular experiências de sucessivos fracassos, busca,
empiricamente, os meios de contornar as dificuldades.
Inteirado do precedente, aquele que estudou a ciência
esotérica pode e, inclusive, deve compreender melhor a co­
média da vida onde os cegos pretensiosos conduzem os
cegos mais modestos em direção a um abismo que devora a
uns e outros.5 Sabendo disto, terá a possibilidade, na medi­
da da independência que lhe resta depois dos compromis­
sos tomados e que seguem atando-o, de impedir os efeitos
nefastos das influências "A". É nas influências "B" que
ele encontrará os impulsos necessários para preencher os
dois intervalos de cada escala que empreende — ou da qual
é vítima — na rede das influências "A" com que está tecida
nossa vida. Objeto de seu jogo, ele deve tornar-se sub­
misso para, continuando, converter-se em amo.
O que a muitos escapa é que, uma vez empreendidos
os estudos esotéricos, continuamos como antes, entretan­
to, vivendo e atuando em meio desta comédia da vida, nas­
cida das influências "A". Com frequência, parece-nos que,
pelo próprio fato de tais estudos, já somos livres. Erro. Ou
caímos no extremo exposto. Nesse caso, devemos cuidar-
nos de não seguir o exemplo de Dom Quixote, que se en­
carniçava em combater frente a frente essas influências
"A", sob todas as formas, e, particularmente, aquela dos
moinhos de vento. O pesquisador deve aprender a governar
tais influências, especialmente as que entram como compo­
nentes no filme de sua vida pessoal, extraindo, para este
fim, um complemento de energia da fonte de influências
3. Mateus, XIII, 12, Marcos, IV, 25.
4. Lucas, VIII, 18.
5. Mateus, XV, 14, Lucas, VI, 39.

140
"B" e utilizando-as na sua vida em estrita conformidade
com as exigências da Lei de Sete. Para isto, deve esforçar-
se em reconhecer todas as escalas, ao menos todas as esca­
las principais das quais é agente ou vítima e no cruzamento
das quais se encontra a cada momento. Tal é a primeira parte
de seu trabalho, que corresponde ao princípio ào saber. A
segunda parte, não menos importante, responde ao prin­
cípio do saber-fazer. Depois de reconhecer objetivamente
sua posição no cruzamento das escalas do dado momento.
Procederá, logo, à comparação dos meios práticos de que
dispõe. Em relação ao objetivo escolhido ou encarado
sobre o plano esotérico. Então entrará em vigor o saber-
fazer que deve permitir ao pesquisador atuar de duas ma­
neiras. Deve, em primeiro lugar, extrair as energias neces­
sárias da fonte de influências "B" para, então, aplicá-las às
escalas compostas de influências "A" das quais toma paYte.
Tudo isto com um espírito estritamente realista, isento de
toda tendência hipócrita, de todo mecanismo de autojusti-
ficativa e, sobretudo, desprovido de toda mentira a si pró­
prio. Esta última condição é indispensável para o êxito. O
período colocará em jogo esforços conscientes pela intro­
dução das Oitavas Laterais, submetidas em todos os casos
à Lei de Sete e de forma análoga àquela onde a Oitava La­
teral se introduz na Oitava Cósmica.
é necessário dizer imediatamente que ainda que tais
condições sejam estritamente observadas, rara vez se alcan­
çam os resultados desejados sem cometer numerosas faltas,
tanto do lado da apreciação, como do lado da aplicação, é
necessário ser um Justo por natureza para não se equivocar
e não perseverar em seus erros. Os injustos, os orgulhosos
— e é o caso geral — recaem em seus erros. Porque eles
crêem ser os únicos justos e, em consequência, têm razão,
enquanto os outros e as circunstâncias estão enganados.
Em suas cegas pretensões chegarão a deformar os fatos
deliberadamente. A frase "Tanto pior pelos fatos" se fez
célebre.
Aquele que estuda a ciência esotérica vigiará e tomará
cuidado de não regressar, assim, à massa, e não seguir
"como os outros" essa via espaçosa que conduz ao abismo.

141
Voltemos ao estudo da Primeira Oitava Lateral, a que
se liga à Grande Oitava Cósmica.

Repitamos, então, que seu DÕ, surgido do SOL da


Grande Oitava, aparece ali como o Absoluto, é, já o dis­
semos, o Cristo, o ungido pelo Absoluto l,o Segundo Lo-
gos, o Espírito do Soi, irradiando sua própria luz6 gerado e
não criado, consubstanciai com o Pai.

“Q t \
Primeiro intervalo (vontade do absoluto)
SI

LA
SOL DO da oitava lateral
. SI
FA
. LA-SOL-FA Segundo intervalo
' (Vida orgânica sobre a Terra)
Ml Ml
RÉ RÉ

Figura 41

O DÕ da Oitava Lateral representa, então, o Absoluto


da vida orgânica sobre a Terra, o princípio vivificante do
Sol. Em outros termos, todos os elementos da vida orgâni­
ca sobre a Terra em seu estado manifesto ou latente até o
último limite de seu desenvolvimento possível, e sem ne­
nhuma exceção, dependem do Sol.
6. Mateus. XVII, 2.

142
0 intervalo entre DÔ e SI da Oitava Lateral é preen­
chido pela vontade criadora do Absoluto II, análoga à do
Absoluto I da Grande Oitava, que é o Amor.
Esta força criadora e consciente, surgida do Absoluto
II, intervém como força neutralizante entre a força ativa
do DÔ e a força passiva do SI pertencente ao conjunto do
Mundo Planetário. Como resultado da ação convergente
destas três forças, aparece a condição necessária para a
existência e desenvolvimento da vida orgânica na superfí­
cie dos olanetas; a atmosfera, em relação à Terra.
As três notas: LÁ, SOL e FA representam as três for­
mas da vida orgânica: o homem, a fauna e a flora.
As notas Ml e RÉ da Oitava Lateral representam a
influência vivificante do Absoluto II penetrando, respecti-
vamente, no planeta Terra e seu satélite, através da Estação
de Transmissão LA-SOL-FA.
Já foi dito que as notas da Grande Oitava: SI, LA e
FA representam, respectivamente, os elementos psíquicos,
biológicos e materiais, colocados à disposição do Filho
para o cumprimento da Criação empreendida pelo Pai. é
por isso que Jesus disse que "Tudo quanto o Pai tem é
meu"7, porque, ele diz em outra parte, "Eu e o Pai somos
um".8
A nota SI da Oitava Lateral corresponde, então, à
criação, à organização e à manutenção da atmosfera dos
planetas, incluída a Terra. Com o tempo, a atmosfera
muda sua estrutura e sua composição em conformidade
com a evolução do planeta. A atmosfera é a condição sine
qua non da vida orgânica, caracterizada pela respiração.
Além disso, é condutora de todo tipo de influências terres­
tres e extraterrestres, compreendidas as influências plane­
tárias, solares e cósmicas, cujos raios penetram na atmosfe­
ra e são absorvidos pela respiração. O homem ignora mui­
tas das influências assim absorvidas pela respiração e que
penetram imediatamente no sangue, passando por todos os
seus órgãos e, em consequência, por todos os seus centros
psíquicos.

7. João, XVI, 15.


8. João. X, 30.

143
As três notas seguintes da OITAVA LATERAL cós­
mica, LA, SOL e FÁ formam, no seu conjunto, a VIDA
ORGANICA SOBRE A TERRA. FÁ corresponde à vida
vegetal, SOL à vida animal e LA à vida humana. Estas três
notas acopladas constituem um ÕRGÃO do planeta, uma
espécie de membrana muito sensível, ESTADÃO DE
TRANSMISSÃO para a energia criadora surgida do Absolu­
to I, que a leva por meio do Absoluto 11. é pelo amor carnal
— nota SOL da OITAVA LATERAL —e por um renascimen­
to perpétuo que este órgão se mantém, evolui e assegura a
transmissão da energia criadora surgida do Absoluto I, atra­
vés do intervalo entre FÁ e Ml da GRANDE OITAVA.
As notas Ml e RÉ da OITAVA LATERAL fundem-se
com as da GRANDE OITAVA, representadas, respectiva-
mente, pelo corpo da Terra e pelo da Lua. A ação das
notas Ml e Ré da OITAVA LATERAL manifesta-se pelo
desenvolvimento de tais corpos.
Tais são em suas grandes linhas o sentido e o papel da
OITAVA LATERAL cósmica.
Pode-se observar que, superando por sua ação o inter­
valo entre FÁ e Ml da GRANDE OITAVA, a própria OI­
TAVA LATERAL deve sofrer igualmente um ralentí ou
um desvio no intervalo que se situa entre suas próprias
notas FÁ e ML De que maneira é superado? Voltar-se-á a
esta importante questão, quando se adquirirem certas
noções intermediárias que permitirão abordar utilmente
esse problema.
A breve análise do funcionamento da OITAVA LA­
TERAL permite encarar, sob um novo aspecto, certos
grandes problemas que preocupam aos espíritos, tais como
a superpopulação do globo, o problema da alimentação,
considerado a escala mundial, a organização geral da socie­
dade humana, o sentido cósmico das guerras no passado e
seu papel no futuro, e também problemas tais como a
navegação interplanetária e interestelar.

144
CAPÍTULO XII

Estudamos a estrutura do Universo sob a forma


do RAIO DA CRIAÇÃO, sua constituição em relação à
LEI DE TRÊS e seu funcionamento segundo a LEI DE
SETE. Este primeiro estudo do COSMO permite apurar
toda a profundidade deste termo ao qual os antigos atri­
buíam com justo título a significação de Ordem e Beleza.
Nos capítulos anteriores deixamos uma imagem do Univer­
so fundamentada sobre a ordem, que constitui a base de
sua criação e seu funcionamento. Já vimos que essa ordem
se aplica de maneira estritamente uniforme. Veículo da-
vontade do Absoluto, rege o Universo tanto no seu con­
junto como nas suas partes mais ínfimas. Assim se encon­
tra justificada a antiga fórmula esotérica: o que está embai­
xo é como o que está em cima. Vamos abordar agora o
estudo do Universo sob o ponto de vista da vida que o ani­
ma, sendo dado que sua estrutura, tal como a estudamos,
constitui, de alguma maneira, armação móvel. Isto nos per­
mite captar melhor, ainda que não seja mais do que parcial­
mente, a beleza inefável do Cosmo.
Não esqueçamos que nossa capacidade de representa­
ção é pobre. Desde as imagens que nos esforçamos por
criar, onde, inclusive, as mais ricas são achatadas e incolores.
Sem darmo-nos conta disto, e ao menos de um treinamen­
to especial, somente captamos de forma incompleta, no
meio em que vivemos, os volumes em perpétua mudança;
porque nossas percepções tendem a adotar clichés dos
objetos que nos rodeiam. Transferi mo-nos, assim, habitual­
mente a um mundo estático de duas dimensões, enquanto
pertencemos a um mundo de três dimensões evoluindo no
Tempo, o que ainda compreende duas dimensões superio-

145
res das quais não possuímos nenhuma percepção espontâ­
nea. A representação que podemos fazer do Universo e de
sua vida — penetrada do infinitamente grande ao infinita­
mente pequeno pela vibração perpétua do Amor — sempre
nos surge achatada e não reflete mais do que de longe e de
maneira puramente convencional, a inefável beleza. Não é
mais do que por uma evolução progressiva, depois de ter
alcançado o nível de SER do homem 4, franqueando o
portal que se oferece para advir o homem 5, que se nos
tornará acessível a contemplação direta do Cosmos, sob
seu duplo aspecto de Ordem e Beleza.
Os esforços desenvolvidos pelo homem Exterior para
abarcar esta ordem não são, porém, vãos. São, mesmo,
indispensáveis. Assim como nos estudos baseados sobre a
ciência positiva, é necessário, em consequência, aprender
para compreender, na continuação.
é dentro deste espírito que nos é necessário abordar
este capítulo.
Como poderíamos nós, sob as reservas que acabamos
de fazer, representarmo-nos o Universo? A árvore é uma de
suas imagens, Jesus a utilizou, falando dela mesmo como
uma videira e de seus discípulos como os ramos.1 Pode-se
representar o conjunto dos Raios da Criação sob a forma
das ramificações de uma árvore partindo de uma tríplice
raiz, de onde surgem o tronco e os ramos. Este esqueleto se
cobre de brotos que dão folhas, flores e, finalmente, frutos.
A árvore vive e carrega em todas as suas ramificações as
diversas manifestações desta vida. Manifestações interde­
pendentes, úteis e ao mesmo tempo indispensáveis umas às
outras para assegurar a existência, o crescimento e o desen­
volvimento do conjunto. Ainda que esta imagem esteja
longe de ser perfeita, é cômoda e nos referiremos a ela mais
de uma vez. Sua imperfeição consiste em que as diferentes
partes da árvore — em seus diferentes níveis — não se
assemelham. Se os ramos são similares ao tronco e os
galhos aos ramos; as flores, as folhas e talos têm um aspec­
to totalmente distinto do da "armação". Também a vida

1. João, XV, 5.

146
do Cosmo compreende numerosos escalões dos quais há
sete principais, porém estes sete degraus de sua manifesta­
ção estão concebidos à imagem do primeiro,2 no seio do
qual vivem os outros seis. No todo, são sete cosmos ou,
mais exatamente, sete ordens de cosmos, dos quais a tríplice
raiz é una e que existem e vivem uns dentro dos outros,
seguindo a ramificação dos Raios da Criação.
Com o tempo; este antigo ensinamento que ligava
cada Raio da Criação a uma escala de sete cosmos foi parci-
almente esquecido, ou intencionalmente deformado. A
hermetização da ciência esotérica tem sido praticada em
todos os tempos. Testemunho disto são o Pentateuco e o
Evangelho. Mas, ao mesmo tempo que ocultavam o sentido
exato da Doutrina, os Antigos tinham o cuidado de libertar
aos profanos — sob uma ou outra forma — uma parte da
verdade que podia aparecer como um esquema completo.
É assim que, através dos séculos ou mesmo milénios, atra­
vés das civilizações extintas, eles davam, aos pesquisadores
do futuro, indicações suficientes para incitá-los a investiga­
ções mais profundas.
Um compêndio deste antigo ensinamento relativo aos
Sete Cosmos nos foi dado particularmente na Cabala por
Rabbi-ben-Akiba, que fala de dois cosmos: o pequeno cos­
mo, simbolizando o homem, e o grande cosmo, simbolizan­
do o Universo. A completa analogia admitida entre o Mi­
crocosmo e o Macrocosmo, segundo a terminologia grega,
refletia, em suma, o postulado do Génesis, citado antes de
"Deus fez o homem segundo a sua imagem".3 Esta tese
admitia, evidentemente, o princípio de unidade do Mundo.
Todavia, este ensinamento se limitava à consideração
desses dois cosmos, enquanto a doutrina completa, assim
como acabamos de mencionar, considera não somente
dois, mais sete cosmos, que formam no seu conjunto um
ciclo completo de vida em perpétuo renascimento.
É preciso notar que o sistema dos Sete Cosmos com­
preende nele tudo o que existe, quer dizer, o Ser integral,
que concebemos astronomicamente em demasia, como o

2. Génesis, I, 26-27.
3. Génesis, I, 26-27, V, 1-2; IX, 6.

147
Grande Universo. Por outro lado, esse sistema compreende
tudo o que se refere à vida desse Ser, toda a sua organização
e todas as suas manifestações. Isto é importante reter, por­
que nasce deste fato o conhecimento no sentido completo,
esotérico, do termo; começa, necessariamente, pelo estudo
desse sistema, com a indispensável condição, porém, de
que o estudo das partes se faça, sempre, em relação ao con­
junto.
O esquema dos Sete Cosmos está assim concebido, o
Macrocosmo formando o conjunto:

PROTOCOSMO
O AGIOCOSMO
cn MEGALOCOSMO
O
O
o DEUTEROCOSMO
cc
Q
< MESOCOSMO
2
TRITOCOSMO
Figura 42
TESSARACOSMO

Aqui estão os primeiros dados desta doutrina.


Cada cosmo é um ser vivente. Cada um deles é tridi­
mensional, como o Microcosmo, quer dizer, o homem, e,
como ele, vive no Tempo. Cada cosmo é determinado pelos
dois cosmos vizinhos. Assim, a tríade de cosmos sucessivos
forma uma unidade completa. Não obstante, isto não cria
compartimentos estanques entre as tríades, porque — e é
importante reter isto — o cosmo central de uma tríade
dada, toma parte como elemento inferior da tríade supe­
rior e como elemento superior da tríade inferior.
Já dissemos a propósito do Raio da Criação e isto se
aplica integralmente ao conjunto do Macrocosmo: os dife­
rentes cosmos estão ali regidos por leis idênticas. Porém,
sua aplicação em cada um deles, ainda que análoga, não
apresenta uma semelhança absoluta. Destacamos superfi­
cialmente que uma ação num cosmo determinado pode ser
empreendida em relação às leis de outro cosmo. O exemplo

148
clássico de tal ação é oferecido, em parte, pelas enfermida­
des de origem bacteriana ou virótica, e por outra, pela luta
empreendida contra tais enfermidades pela vacinação, a
soroterapia etc. Eis aqui como o cosmo imiscui-se um no
outro, o do homem e o dos microorganismos. O imiscuir-se
das leis dos cosmos superiores da vida humana é mais raro
ou assim nos parece ser. Estes são os fatos que, na lingua­
gem corrente, chamamos de milagres.

Procedamos agora a um exame da noção de Cosmos e


de Raio de Criação,
Se os Raios de Criação são, segundo uma definição
Imaginada, os ramos da Grande Árvore que é o Universo, árvo­
re do qual a tripla raiz é o Absoluto manifestado, o Sistema
dos Cosmos aparece como a vida sobre esses mesmos ra­
mos.
Esta vida surgiu da mesma tríplice raiz que é o Ab­
soluto I, de quem depende inteiramente.
É ali, no começo, que os Raios de Criação e o Sistema
dos Cosmos fazem sua confluência. Isto nos permite identifi­
car o Absoluto I com o Protocosmo, dito de outra forma,
o Primeiro Cosmos.
Vê-se que nosso Raio de Criação representa só um ramo
ao longo do qual se expressa a vida dos diferentes elementos
do Sistema dos Cosmos.

Aqui nos devemos deter alguns instantes, a fim de


prevenir sobre um erro de concepção que a imagem da
árvore poderia inspirar. Essa imagem, alguns de cujos aspec­
tos nos ajudam por analogia a apreender melhor nosso obje­
to, não cobre, todavia, o conjunto das relações, entre o Raio
da Criação e o Sistema dos Cosmos erc\ todos os níveis. Nos­
sa preguiça mental e a permanente tendência à sonolência,
essa Inércia da Matéria — o grande obstáculo às novas con­
cepções — empurram-nos a conclusões apressadas e a injus­
tificadas generalizações. Não esqueçamos que analogia não
é semelhança e ainda menos identidade. É necessário servir-
se com circunspecção de todo símbolo e cuidar para não ir
ultrapassar os limites de concordância com o objeto estu­
dado.

149
Julgamos oportuno dar tal advertência, porque com o
estudo do Sistema dos Cosmos entramos mais e mais no
domínio das novas noções, ainda que este caráter de novi­
dade das noções aprendidas ou concebidas exija do homem
um esforço consciente que é, sob certo aspecto, um esfor­
ço criador, é a matéria relativamente pesada do nosso cére­
bro que sempre opõe uma resistência a este esforço. Pode-
se dizer, simbolicamente, que cada nova concepção deixa
um desenho na superfície do cérebro. E mais o pensamen­
to que formula essa concepção é novo e chocante; mas o
sulco que ela imprime no cérebro é profundo. A fixação
deste sulco exige uma concentração da atenção e do pensa­
mento. O pensamento deve se tornar agudo como a ponta
de uma agulha. Então ela traça sulcos suficientemente pro­
fundos para que não se amontoem imediatamente e para
que a matéria cerebral tenha, assim, a possibilidade de
fazer um trabalho de fixação.
Entretanto, este processo se expõe a um duplo obstá­
culo. O primeiro é a fadiga mental, resultado do esgota­
mento das reservas das forças necessárias à concentração
desejada. Veremos, adiante, que esta reserva é mínima no
homem Exterior. Ele vive, geral mente, no limite de suas
forças nervosas, a absorção de energia é quase imediata­
mente compensada por um gasto da mesma ordem de gran­
deza. Este esgotamento quase permanente das energias
necessárias leva o homem a abandonar o caminho que o
conduz ao novo, em consequência, ao desconhecido, para
fazer deslizar seu pensamento ao largo de vias já traçadas,
segundo um processo que não exige esforços conscientes
nem concentração. O segundo obstáculo provém de que a
mesma matéria cerebral opõe uma resistência a este pensa­
mento agudo que o fere como a ponta de uma agulha.
As conclusões apressadas, as generalizações gratuitas,
os stogans, são os meios técnicos correntes pelos quais a
parte sombria e inerte da natureza humana busca, em toda
circunstância, abandonar as investigações no domínio do
novo, do desconhecido, que exigem de nós esforços Cons­
cientes e Criadores.
Para lutar contra este duplo obstáculo, que oferece
dificuldades variáveis conforme as pessoas, mas ao qual.

150
porém, todos devemos enfrentar, é recomendada uma
técnica cujo efeito é duplo: por um lado, os exercícios
tendem a acumular forças, com vistas a constituir reservas
de energia e, por outro, têm por objetivo o refinamento e o
trabalho-das células cerebrais. Estas células, dotadas da
maior permanência nos limites da vida do corpo, são susce­
tíveis de ser educadas. Sua sensibilidade pode alcançar uma
agudeza quase maravilhosa. Uma natureza nobre se diferen­
cia pelo grau de refinamento de tais células. Ainda que a
evolução seja um princípio possível para todos, a porta
está muito aberta. Porém, franqueá-la exige esforços per­
manentes, conscientes e criadores, faltando aqueles que o
refinamento das células detém. Em seguida começa a vida,
quer dizer, a exploração da formação recebida que, com
frequência, conduz a uma espécie de esclerose mental, a
um "endurecimento" do cérebro, fazendo o homem perder
mais e mais sua capacidade de adaptação, com mais forte
razão a penetração no domínio do desconhecido.
Sem falar de outras causas às quais se fez alusão e
sobre as quais voltaremos mais adiante, as idéias e os fatos
expostos nesta passagem explicam que os estudos esotéri­
cos sejam o património de uma minoria preocupada pelas
coisas do Espírito, capazes, tal como cavaleiros de Graal *
de Conquistar o Saber.
Constatamos que na base o Raio da Criação e o Siste­
ma dos Cosmos são um. Mas logo depois começa a diferen­
ciação. Assim é que as relações entre os escalões de um e
de outro são diferentes. No Raio da Criação essas relações
são, seguindo as variações da gama, não semelhantes; no
Sistema dos Cosmos são constantes.
As relações entre os cosmos vizinhos são as mesmas
que existem entre uma quantidade infinitesimal e uma
quantidade infinitamente grande. Entretanto, graças à ação
4. Mais exatamente. Santo Graal. Deste termo provém a etimologia de sangue
real -sangre regia (Sang real -sang royal). Na lenda se chama Santo Graal
ao copo místico que continha o vinho que Jesus, na Última Ceia, quando,
levando-o aos seus lábios, pronuncia estas palavras: "Por que isto é o meu
sangue, o sangue da aliança, derramado em favor de muitos, para remissão
dos pecados." (Mateus, XXVI, 28, Marcos, XIV, 24). A lenda diz que esta
taça foi conservada por José de Arimatéia que mais tarde a transportou á
Bretanha.

151
da Lei de Sete, essa relação jamais alcança o limite, quer
dizer, a relação de zero ao infinito, o que produziria, neces­
sariamente, a ruptura da cadeia e o desmoronamento do
sistema.5
Traterhos, agora, de compreender o sentido dos no­
mes atribuídos aos diferentes escalões do Sistema dos Cos­
mos.
Já temos falado do Protocosmo e do Absoluto. Os
graus seguintes, o Agiocosmo e Megaiocosmo, aderem,
respectivamente, às notas SI e LÁ da Grande Oitava;
dito de outra maneira, a todos os mundos e à Via-Láctea
do Raio da Criação. Estes dois escalões representam a vida
psíquica e fisiológica do Macrocosmo, do Grande Universo,
enquanto Ser vivente. Certo, nós não podemos, tal como
somos, fazer uma representação precisa do que acabamos
de dizer. Esta espécie de reconhecimento e compreensão
não pode vir senão depois de uma evolução esotérica e, no
momento, ela não possui mais do que um valor teórico
para nós. Ao nosso nível do Ser, a significação prática do
sistema começa com o Deuterocosmo.
Se é assim, por que Deuterocosmo? Quer dizer, segun­
do cosmo, enquanto, de fato, já é o quarto grau do Siste­
ma. A resposta para esta questão poderá ser dada pelo pró­
prio leitor. É pela razão já dada (Capítulo XI) de que entre
o Absoluto I e o Absoluto II, o Sol, não há intermediário
de natureza substancialmente diferente. No nível da nota
SI da Grande Oitava, correspondente ao Agiocosmo, en­
contram-se as nebulosas. Estas desprendem imensas energias
de onde, pelo processo de gravidade dos átomos, nascem as
galáxias compostas de estrelas-sóis. Assim, enquanto o
Absoluto I, o DO da Grande Oitava corresponde ao Proto­
cosmo, questão à qual voltaremos adiante. Mencionaremos
somente de passagem, que a vida desse grau do Sistema é,
às vezes, representado na Tradição pela imagem do Céu
Inferior regido pelos Princípios do Ar ou Arcontes Pneu­
máticos. Mencionamos isto para situar o Mesocosmo em re-

5. Ouspensky P. D. Fragmentos de una ensénauza desconocida. 6. ed., Buenos


Aires, Hachette. 1981. Capítulo 10, p. 273, onde se encontra esse erro.

152
lação à nota FA da Grande Oitava e à nota SI da Oitava
Lateral.
Abordemos, agora, o problema do Tritocosmo e do
Tessaracosmo. Comecemos pelo último. A Tradição quase
não dá indicações sobre o Tessaracosmo, a Doutrina ainda
menos. Somente se encontra nestes textos algumas alusões
ao problema que o progresso da ciência positiva e a tecno­
logia colocaram na ordem do dia.
Se o Tritocosmo é a vida sobre a Terra e a vida da
Terra enquanto ser vivente, a noção de Tessaracosmo rela­
ciona-se de maneira análoga com nosso satélite. Ainda que
a Lua, sob o ponto de vista do Sistema dos Cosmos, rege,
ainda, um feto que se aproxima, atualmente, do fim do
período de gravidez, o Tessaracosmo ainda não nasceu. Ele
deve, então, absorver as energias e os elementos necessários
para o seu inacabado crescimento, ainda que uma porção
maciça desses elementos torna-se-lhe acessível com o pro­
gresso da técnica, a multiplicação acelerada e a nova orga­
nização da sociedade humana com a extensão do rebanho
de gado e a racionalização da agricultura. Estes elementos
prometem uma progressão rápida desse processo de cresci­
mento no século por vir. Como o feto no ventre da mãe, o
Tessaracosmo exerce enorme influência sobre o Tritocos­
mo e, desde ali, sobre o crescimento da Lua, feto cósmico.
Isto é tudo o que pode ser dito, no momento, no que
concerne ao Tessaracosmo.
Voltemos ao Tritocosmo. Leva o nome de terceiro,
seguramente que entre ele e o Deuterocosmo, o segundo
cosmo, coloca-se o Mesocosmo; mas as mesmas razões que
fazem considerar o Deuterocosmo como o segundo, en­
quanto entre ele e o Protocosmo existem, ainda, outros
dois cosmos; também são válidas aqui.
O Tritocosmo é a Terra tomada como ser vivente. Na
medida limitada de nossas possibilidades de percepção, o
Tritocosmo é a vida orgânica sobre a Terra. Tratemos de
determinar a sua posição em relação aos dois cosmos vizi­
nhos. Ao se considerar o Deuterocosmo, isto é, o Sol com
o conjunto de seu sistema como uma unidade, se constata­
rá, facilmente, ainda que mais não seja sob um aspecto
astrofísico, que a relação entre esses dois cosmos é, com

153
efeito, comparável àquela que existe entre uma quantidade
infinitamente grande e uma quantidade infinitesimal. Dito
de outra maneira, o Deuterocosmo é o cosmo vizinho supe­
rior em relação ao Trítocosmo.
Qual é, por outro lado, o cosmo inferior vizinho ao
Trítocosmo? Não pode ser outro senão o organismo que,
tendo dimensão infinitesimal em relação ao conjunto, é o
mais representativo da vida orgânica sobre a Terra, e como
está assimilado ao Trítocosmo, o homem é, sem dúvida, o
organismo mais representativo.
O homem é, então, o Microcosmo, concebido por
outro lado como cada cosmo à imagem e semelhança de
Deus.
Algo curioso: é-nos fácil representar o Deuterocosmo
como o Cristo, no seu aspecto cósmico ou bem individual,
solar, segundo a imagem tradicional, antropomórfica, que
provavelmente corresponde à realidade objetiva. Mas torna-
se difícil representar o Trítocosmo — como, por outro
lado, o Mesocosmo, sob a mesma forma antropomórfica.
Entretanto, a propósito deste último, falando da Hierar­
quia Celeste, como os Princípios do Ar, a Tradição sempre
recorreu a imagens desse gênero, juntando, às vezes, figuras
zoomórficas.
Qual é o lugar do Microcosmo, assim concebido, na
escala do Sistema dos Cosmos? Dá-se no esquema seguinte:

DO

SI
o
E LA
o
o
SOL
bcu
FA

Ml Microcosmo
Figura 43
RE

Seja como for, não é necessário crer que o Micro­


cosmo seja o último escalão da vida orgânica sobre a Terra.

154
Sabemos que, fisiologicamente, ao menos, a vida do ho­
mem se apóia sobre o mundo ou os mundos microorgâni-
cos, começando pelos transmissores da vida, portadores do
princípio da espécie, os espermatozóides e os óvulos.
Depois de toda uma escala de células grandes e pequenas,
protozoários, bactérias, vírus, formam esse mundo invisível
para nós, sem a ajuda de instrumentos. De maneira que,
voltando ao princípio de agrupamento dos mundos por
tríades podemos extrair, do que precede, a conclusão de
que a vida do homem enquanto Microcosmo está determi­
nada, de um lado, pela vida orgânica sobre a Terra - o 77/-
tocosmo — da qual ela representa uma parte infinitesimal
e, por outro lado, pela vida do mundo de microorganismos
que evoluem nele e onde cada unidade é igualmente infini­
tesimal em relação a^ele. O esquema seguinte expõe estas
relações: Deuterocosmo Absoluto II
DO

SI Mesocosmo Princípios do Ar

Vida orgânica
LASOL FÁ Tritocosmo
sobre a Terra

Ml Microcosmo Homem

Micromicrocosmo Mundo dos


RÉ Microorganismos
Figura 44
Este esquema nos permitirá compreender melhor o da
Oitava Lateral cósmica que, encarada no seu aspecto dinâ­
mico, é a do Deuterocosmo.

Tritocosmo Vida orgânica sobre a Terra

Microcosmo Homem

Micromicrocosmo Microorganismos

Figura 45

155
Além disso, somos levados a esta constatação: se por
um lado o desenvolvimento do Universo não está termina­
do ao longo do nosso Raio da Criação — o Tessaracosmo
ainda não nasceu —, por outro lado, na outra extremidade
da gama, a evolução do homem enquanto indivíduo agita-
se a nível dos três centros inferiores, essas três forças dis­
sociadas no homem Exterior. A este compete realizar
sua unidade, sendo este o objetivo prático dos estudos e
trabalhos esotéricos. As tarefas a cumprir em vista do
desenvolvimento do Macrocosmo e do Microcosmo estão
representadas no esquema a seguir:

Macrocosmo Microcosmo
Uniyerso Homem

SI Oitava ascenden­
Oitava descen­
dente de criação LA te de evolução
por graus de ação por graus de re­
da Vontade do SOL. sultados adqui­
Absoluto que é ridos pela vonta
FA de do homerr
o Amor
Ml que é Amor

Figura 46

As idéias e os fatos expostos neste capítulo permiti­


rão ao leitor perceber o papel atribuído ao homem no
conjunto do Sistema dos Cosmos e a responsabilidade que
lhe é incumbida.
Com o progresso da ciência e da técnica, o homem
toma, mais e mais, nas mãos, a direção material e já, em
certa medida, a direção da vida orgânica sobre a Terra no
plano biológico. Esta vida orgânica, se viu, serve de Estação
de Transmissão para a energia vivificante à Terra e à Lua,
através do intervalo FA-MI da Grande Oitava. Esta tarefa é

156
esmagadora. A insuficiente quantidade de energia transmi­
tida à Lua nas condições de paz pelo trabalho da socieda­
de humana, rodeada da fauna e da flora, necessita da parte
do Deuterocosmo, interações que provocam convulsões do
Tritocosmo. Estas têm por objetivo assegurar, pelo cresci­
mento dos gastos de energia a esse nível, a alimentação e o
crescimento do fato cósmico que é o Tessaracosmo. Tal é,
por exemplo, a origem cósmica das guerras, revoluções, epi­
demias e outros flagelos da humanidade. Assinalou-se,
desde longo tempo, que a aparição maciça das manchas
solares produz sobre a terra tempestades magnéticas e um
estado psicológico que conduz a conflitos no plano social,
internacional e racial.
Quanto mais o gênero humano se multiplica, mais o
homem consegue melhorar e aumentar os rebanhos, a
extensão de terra arada etc.; além disso, em estrita confor­
midade com as leis cósmicas, quanto mais as notas LÁ,
SOL e FA da Oitava Lateral ressoam puras e fortes, mais a
parte de quota de energia a produzir por cabeça de habi­
tante encontra-se reduzida e mais a vida sobre a Terra
torna-se fácil e feliz.
À medida que se abrevia esta servidão do homem sur­
gem, entretanto, outros problemas e continuarão a surgir
diante dele. Isso acontece num plano diferente, mais eleva­
do. Antes, porém, é necessário que a humanidade tenha
passado, com êxito, nas suas provas de maturidade. O pro­
gresso da técnica segue numa marcha acelerada e, desde
este ponto de vista, nosso século está cheio de promessas.
É totalmente diferente em relação ao progresso moral.
Grandes esforços conscientes devem ser desdobrados sobre
o plano esotérico pelo homem Exterior, a fim de estabele­
cer o equilíbrio entre Ciência e Consciência, e para que,
por sua própria evolução, o homem contribua eficazmente
à evolução harmoniosa do Sistema dos Cosmos.

157
CAPITULO XIII

Recordar-se-á que o Tempo constitui o segundo gran­


de Princípio da Manifestação e da Criação do Universo. O
Universo, com tudo o que encerra, existe no Tempo e no
Espaço. Está regido por duas leis fundamentais: a Lei de
Três e a Lei de Sete, tendo esta por objetivo fechar em
grande círculos e pequenos círculos a ação destruidora do
Tempo, a fim de permitir durar a toda a criação.
Nossa noção de Tempo é inseparável da do movimen­
to. Dito de outra maneira, concebemos o Tempo pelo mo­
vimento que, a seu turno, está submetido à Lei de Sete.
Tratemos, no momento, de penetrar na natureza própria
do Tempo, à medida que nos seja possível: o fato de que
estejamos imersos no Tempo com todas as nossas concep­
ções torna esta investigação difícil e, evidentemente, a limi­
ta em seu alcance.
O estudo do Tempo coloca-nos diante do Princípio de
Relatividade. Este princípio abarca toda a multiplicidade
das manifestações do fenômeno Tempo, fazendo-as apare­
cer tal como a Lanterna Mágica sob formas fugazes em per­
pétua flutuação. Tudo o que existe, existe no Tempo, justo
até o dia em que soará a Sétima Trombeta para anunciar
que a obra empreendida pelo Absoluto está consumada.
Então, o Reino do Mundo se transformará no de Deus e do
seu Cristo, o Alfa e o Omega da manifestação. Na visão de
São João na ilha de Patmos, o Anjo jurou que então "ali
não existiria mais o tempo".1
Empreendendo o estudo do Tempo, não devemos
perder de vista a subjetividade de nossos sentidos, porque

1. Apocalipse, X,6, XI, 15.

159
nós somente podemos contatar o objetivo pelo subjetivo.
Ai reside o sentido profundo dos estudos esotéricos: eles
permitem ao homem exterior converter o seu psiquismo
subjetivo em objetivamente válido. Isto se consegue através
de uma técnica análoga àquela que se aplica aos instrumen­
tos de precisão: antes de colocá-los em obra, determina-se
para cada um deles o erro de index. Levando em considera­
ção, assim, a "subjetividade" do instrumento, obtém-se,
apesar de seus defeitos, testemunhos corretos. Para obser­
var com precisão os fenômenos de nosso mundo interior e
do mundo exterior, é-nos necessário previamente reconhe­
cer e determinar o erro de index de nosso instrumento psí­
quico de observação, que é um dos principais agentes da
Personalidade. Todo o ensinamento esotérico está orienta­
do em direção a esta meta. Alcançada esta — com o segun­
do Nascimento — o homem entra em uma forma nova de
consciência e existência, totalmente diferente, objetiva, da
qual o homem exterior não pode fazer mais do que uma
representação vaga e obscura.
Enquanto nossa natureza permanecer subjetiva, em
consequência relativa, não é mais que indiretamente, com a
ajuda do Princípio da Relatividade, que podemos nos em­
penhar validamente no estudo do Tempo.
Nossa percepção do tempo é variável. É de duas ma­
neiras: varia de uma pessoa à outra e para cada pessoa
segundo as condições físicas e psíquicas nas quais se encon­
tra colocada: a influência da idade, da saúde, do estado
emocional. São suficientemente conhecidos. Mas ao lado
destes casos gerais existem casos particulares em que o
desaparecimento do tempo é completo; por exemplo, no
dormir sem sonhos, em relação à perda momentânea da
consciência ou em casos de anestesia geral. A perda da
noção de tempo é, então, devida a causas fisiológicas, ainda
que o tempo possa, igualmente, desaparecer depois de um
esforço consciente, voluntário e, especialmente, por parte
da concentração. Aplicando-se à medida que o estado de
concentração se acentua, percebe-se o tempo menos e
menos. Se por um esforço metódico e continuado ou mo­
ral sobre o qual alguém se concentra, e além disso chega a

160
manter a atenção fixa sobre um só ponto — o que dá nasci­
mento à contemplação —, o tempo desaparece integralmen-
te. Inversamente, mais a atenção do homem se dispersa,
mais aumenta o tempo.
Este fenômeno é objetivo em si mesmo, é uma lei.
Sua razão de ser, assim como o mecanismo de seu funcio­
namento, serão explicados mais adiante na doutrina do
presente.
é interessante assinalar outro fenômeno: nossa capaci­
dade de modificar a rapidez de percepção do tempo. Isto
se faz todos os dias e em numerosas ocasiões. Somente que
não lhe prestamos atenção, porque o fenômeno se produz
automaticamente em pequena escala. Ainda que possa ser
produzido voluntariamente e sobre uma escala muito m^is
extensa.
Um campeão de ténis contou que, quando, no curso
de um match, recebe uma bola particularmente difícil,
assiduamente a enxerga como se estivesse se aproximando
em câmera lenta. Tão lentamente que tem todo o tempo
para julgar a situação, tomar a decisão adequada e, final­
mente, dar um "golpe de mestre", que provoca a admira­
ção dos entendidos.
Os casos em que o tempo se encontra dilatado resul­
tam de uma aceleração considerável das vibrações dos cen­
tros, especialmente do centro motor, que preside a percep­
ção dos fenômenos do mundo exterior e do mundo inte­
rior. Em geral, quanto mais aumenta a rapidez de percep­
ção do indivíduo, tanto mais lento lhe parece o movimento.
Inversamente, quanto mais lenta é a rapidez de percepção,
mais o mesmo movimento — ou o fluxo do tempo — lhe
parece rápido.
Subjetiva mente, em relação à velocidade de percep­
ção, distinguem-se quatro categorias de movimentos:
— movimentos nos quais a velocidade é tão pequena que o
objeto que se move parece imóvel. Exemplos: generalidade dos
fenômenos de crescimento, deslocamento das agulhas de um relógio
indicando as horas e os minutos;
— movimentos nos quais a velocidade ó perceptível, porém
isto não modifica a percepção da forma do objeto que se move. Tal é
a grande maioria dos movimentos da vida corrente. Exemplos:

161
marcha, dança, carruagens, automóveis, aviões, navios, agulhas de
relógio que marcam os segundos etc.;
— movimentos muito mais rápidos pelos quais se deforma a
percepçào do objeto em movimento, de maneira que não se nota
mais do que o traçado de seu movimento. Exemplos: gestos rápidos,
sobretudo se são repetidos; movimentos vibratórios como o dos
braços de um diapasão etc.;
— movimentos tão rápidos que o objeto em movimento "se
desvanece". Exemplos: trajetória de uma bala etc.
Estas categorias são subjetivas no sentido de que a
própria velocidade de movimentos — sobretudo quando
estão próximos dos limites entre as categorias — pode ser
percebidas de forma diretente por diversas pessoas. Mas,
para um dado indivíduo, elas são objetivas em relação à sua
própria velocidade de percepçào. Isto é importante desta­
car. Porque, pela modificação da percepção dos movimen­
tos, podemos julgar os resultados obtidos no domínio do
controle do centro motor e dos setores motores dos outros
dois centros.
A aquisição da faculdade de modificar nos dois senti­
dos a velocidade de nossas percepções desempenha um papel
importante na evolução esotérica, porque se aplica a todos
os movimentos, e como toda ação psíquica é essencialmen­
te um movimento, é possível, através de um treinamento
adequado aplicado ao pensamento, por um lado, abarcar
mais facilmente um conjunto de idéias que, de outra for­
ma, nos escapariam e, oor outro lado, penetrar com gran­
de agudeza aos seus menores detalhes. Ao mesmo tempo,
esta faculdade aumenta, em proporções consideráveis,
nossa faculdade de trabalho. Aplicado aos sentimentos, este
treinamento permite perceber diretamente as aspirações
latentes das grandes coletividades — nações ou mesmo gru­
pos de nações — e encarná-las. No plano individual abrem-
se à vida emotiva insuspeitáveis profundidades. Os grandes
chefes da humanidade, cujas obras deram uma nova orien­
tação à história dos povos, tais como Alexandre, Augusto,
Pedro o Grande, possuíam esta faculdade muito desenvol­
vida. Isto explica o segredo de sua extraordinária capacida­
de de utilizar o tempo, que de outra forma seria inexpli­
cável.

162
Em correlação com essas considerações, é necessário
mencionar um dos aforismos da Tradição assim concebido:
a pontualidade é a reserva do tempo.

Agora, tratemos de determinar certas unidades de


tempos, tendo em conta, sempre, o Princípio da Relativi­
dade. Ver-se-á que elas são naturais; entretanto, seus valo­
res, em princípio absolutos, são medidos de forma diferen­
te, conforme eles se apliquem nos diversos escalões do
Cosmo.
A respiração caracteriza a vida orgânica. Não se disse
que ao homem, formado do pó da terra, Deus "soprou nas
narinas o fôlego de vida e o homem passou a ser alma vi­
vente?"2 E o rei David não eleva a voz para exclamar que
"todo ser que respira louve ao Senhor".3
Se a respiração, como acabamos de dizer, é a caracte-
rística essencial da vida orgânica, o Primum Mobile que co­
munica o movimento ao conjunto dos órgãos e regulariza
seu funcionamento, é lógico tomar a duração da respira­
ção da espécie como unidade de base do tempo.
A vida orgânica sobre a Terra está subordinada à da
espécie humana4 e segue sua evolução. Com a acelerada
marcha do progresso, o homem pega mais e mais, sob seu
controle, a evolução do mundo animal e do mundo vegetal.
Da mesma forma transforma o solo, modifica os cursos de
água, explora e explode o subsolo, desintegra os átomos.
Pode-se prever que, num futuro muito próximo, a intensifi­
cação e a racionalização da vida orgânica alcançarão seus
limites. Sem que disso seja consciente, o homem contribui,
assim, eficazmente, para o desenvolvimento do nosso Raio
da Criação e, a partir daí, à evolução do nosso planeta e do
nosso satélite. Por outro lado, o homem compreende em si
todos os elementos da Natureza, é normal, então, tomar a
respiração do homem como unidade de base do tempo
para o Tritocosmo, que é a vida orgânica sobre a Terra.

2. Génesis, II, 7; VII, 22; Atos, XVII,25.


3. Salmos, CL, 6.
4. Génesis, I.

163
Sabe-se que a duração da respiração do homem adulto
é de aproximadamente três segundos. Esta é a primeira uni­
dade de base do Tempo^
Uma segunda unidade para toda a vida orgânica é o
dia inteiro. Para o homem e para a fauna é o ciclo sono-vi­
gília, alternância da atividade e do repouso. Finalmente, a
unidade natural do tempo: a maior é, para o homem, o
curso da sua vida. Geralmente é considerada como igual a
oitenta anos.
Comparando estas três unidades percebe-se que elas se
relacionam aproximadamente na proporção de 1 a 30.000.
Com efeito, em cada 24 horas se produzem 28.800 respira­
ções de três segundos, enquanto 80 anos compreendem, no
total, 29.200 dias. Se, agora, se dividem os três segundos,
duração da respiração, pelo mesmo coeficiente de 30.000,
obtém-se um décimo de milionésimo de segundo. Esta éa
duração de um relâmpago, dito de outra forma; da mais
breve impressão visual. Por outro lado, se a respiração do
homem é de três segundos, a da Natureza, isto é, do mun­
do vegetal, é muito mais lenta. O ciclo inspiração-expiração
é, para as plantas, de 24 horas, tendo lugar a inspiração
durante o dia e a expiração durante a noite. O homem,
enquanto membro da vida orgânica sobre a Terra, participa
igualmente em ritmo respiratório da Natureza, cujo ciclo,
dissemos, é igual a 24 horas. Com efeito, a respiração do
homem sofre uma modificação durante o sono no que con­
cerne ao seu ritmo e ao seu conteúdo químico.
Por estas observações, podemos deduzir que o coefi­
ciente 30.000 permanece constante tanto na escala de uni­
dades de tempo do Microcosmo, como na relação entre sua
respiração e a do cosmo vizinho superior: a vida orgânica
sobre a Terra. Estas considerações nos permitem estabele­
cer a seguinte tabela:

HOMEM VIDA ORGÂNICA


SOBRE ATERRA

IMPRESSÃO .0,0001 segundo


RESPIRAÇÃO 3 segundos 24 horas
VIGÍLIA E SONO 24 horas ?
DURAÇÃO NORMAL DA VIDA . 80 anos ?

164
Seria sedutor aplicar, por analogia, o mesmo coefici­
ente 30.000 ao conjunto da vida orgânica, ainda que isto
seja um erro. Em seguida se verá por que. A vida orgânica
sobre o nosso planeta estaria, então, limitada a 80 x 30.000
= 2.400.000 anos, o que seria, manifestamente, insuficien­
te.
Utilizando os meios modernos para determinar a ida­
de dos esqueletos dos homens, a antropologia estabeleceu
uma tabela de periodicidade em relação à evolução da espé­
cie humana, depois de sua separação da espécie dos ani­
mais. Os dados são, certamente, aproximados, mas provêem
ordens de magnitude.

é instrutivo — para compreender melhor o papel pri­


mordial do homem e o da sua evolução no conjunto da
evolução geral da vida orgânica e por isto a importância de
sua missão na evolução de nosso Raio da Criação, compreen­
dendo nele o Tessaracosmo — tomar rapidamente conheci­
mento dos resultados obtidos pela antropologia, que não
utilizou mais que os métodos da ciência positiva:5

5. "As etapas mais atrasadas do desenvolvimento do homem primitivo". Tabe­


la cronológica segundo P. I. Boriskovsky. O passado mais longínquo da
humanidade. Moscou. Edições da Academia de Ciências. 1957, p. 212 (tra­
dução do russo).

165
Período Quaternário Período Terciário Pleirtoceno
(Antropogeno)

PERÍODOS DATAS ETAPAS DO ÉPOCAS ETAPAS DA


GEOLÓGI­ PROVÁVEIS DESENVOL­ ARQUEO­ EVOLUÇÃO
COS (até nossos VIMENTO LÓGICAS DA SOCIEDA­
dias) DO TIPO DE HUMANA
FfSICO DO PRIMITIVA
HOMEM E
SEUS ANCES­
TRAIS

io Holoseno ou
época con­
14.000 anos Tipo físico
contemporâ­
Idade de Fer­
ro ■Idade de
Organização da
Família
Q. temporânea neo do ho­ Bronze
S o mem -Home Neolítico
5 8 Sapiens recens
O o
xõ tí
K Is Período do 40.000 anos Tipo físico do Paleolítico Comunidade an­
0
TO Glacial pos­ homem con­ Posterior tiga, família ma­
O terior temporâneo ou alto triarcal
_o Homo Sapiens
_o fóssil is
0

Período do 100.000 Homem de


Glacial médio anos Neanderthal

Paleolítico Hordas Primiti-


Período do 800.000 Homem de anterior vas
Glacial ante- anos Heidelberg-
terior Atlanthrope-
Sinanthrope-
o Pithecanthrope
*S
Q
Pliosceno 60.000.000 Australopi-
_O Miosceno anos theque
Oligosceno Ramapitheque
0 Eosceno Briopitheque
CL

A julgar por esta tabela, não deve surpreender a anti­


guidade do homem. Com efeito, alguns dados permitem
fazer uma ideia geral da lentidão de evolução da espécie
humana.

166
cm3

1. O volume máximo do cérebro nos macacos an-


tropóides não supera 600-800
2. O do Pithecantropo (altura 165-170) 850-950
Este tipo humano já possu ía a palavra, era verda­
deiramente rudimentar e caminhava ereto.
3. No sinanthropo, o primeiro tipo realmente huma­
nizado, o cérebro tem, na mulher, uma capacida­
de de ......................................... ......................... 1050
e no homem de 1100-1200
A utilização do braço direito de preferência ao
esquerdo — índice que distingue o homem —,
se observa nitidamente no Sinanthropo, enquan­
to que no Pithecantropo é apenas perceptível.
Esta preponderância do braço direito é acompa­
nhada de uma ligeira assimetria do cérebro.
O Sinanthropo tinha o uso da palavra. É visto no
relevo diferenciado no desenho sobre o crânio, na
parte posterior-inferior da circunvolução frontal
inferior.
4. O volume do cérebro atual do homem varia
entre 1400-1500

É em função de sua atitude para o trabalho e da pos­


sibilidade de emitir uma extensa gama de sons, permitindo-
lhe abordar a linguagem, que o homem primitivo compro­
meteu-se com o longo caminho do progresso material.
Pode-se ver bem, do que antecede, que, no estado
atual da ciência, não se saberia, como certos autores suge­
riram,6 aplicar o coeficiente 30.000 às unidades de tempo
comparáveis dos cosmos vizinhos. Pelo contrário, dados
que figuram nas tabelas precedentes conduzem-nos à se­
guinte observação: esse mesmo coeficiente de 30.000 expres­
sa a relação entre a respiração do homem e a da vida orgâ­
nica: é, então, lógico, aplicá-lo não só à escala do cosmo,
mas também à evolução do próprio homem. Se a tabela de
unidades do tempo antes estabelecida se aplica ao homem

6. Ouspensky P. D., Fragmentos de una ensénange desconocida. 6a. ed.,


Buenos Aires, Hachette, 1981. Capítulo 16, p. 427 e seguintes.

167
exterior e mesmo ao homem 4, também é o mesmo no que
concerne aos homens que tenham alcançado os níveis supe­
riores da consciência, homens interiores, 5, 6 e 7. Partindo
deste princípio, disporemos as unidades de tempo como se
indica na tabela, seguindo para as diversas etapas da evolu­
ção esotérica do homem. Notar-se-á que a primeira coluna
está afeta aos homens 1, 2, 3 e 4, representando este últi­
mo o homem ainda exterior, porém equilibrado.
Recordemos que os tipos 1, 2, 3 e 4 do homem terres­
tre são aqueles nos quais somente o corpo físico está total­
mente desenvolvido. Com o desenvolvimento integral da
Personalidade e do segundo Nascimento que o segue, o
homem adquire o corpo astral. De maneira que, transfor­
mado em homem 5, pertence não somente ao Tritocosmo,
mas igualmente ao Mesocosmo, que corresponde à nota FA
da Grande Oitava. Diz-se dele que, dali em diante, está
dotado da vida planetária. Passando a homem 6 com o
corpo mental desenvolvido e nascido, participará, também,
da vida do Deuterocosmo. Ali, com a consolidação dos
resultados obtidos, passará a homem 7. Com isto, finaliza a
sua evolução possível enquanto homem vivente sobre a
Terra. Dotado de corpo de graça (ou causal), será, então,
admitido nessa confraternidade superior, da qual o Apósto­
lo São Paulo diz que o Filho ali será "o primogénito entre
muitos irmãos".7

7. Romanos, VIII, 29.

168
Eis a tabela de recapitulação:

ETAPAS DE HOMEM 1 2, 3 e 4 HOMEM 5 HOMEM 6e 7


EVOLUÇÃO

UNIDADES DE CORPO FÍSICO CORPO CORPO MENTAL


TEMPO ASTRAL CONSOLIDADO

I
Impressão 0,0001 segundo 3 segundos
PELO CORPO DE
GRAÇA

24 horas

Respiração 3 segundos 24 horas 80 anos

Dia inteiro 24 horas 80 ano* 2.400.000 anos

Vida 80 anos 2.400 000 anos 72 milhares de


milhões

O Princípio da Relatividade era conhecido desde a


mais alta antiguidade. O Apóstolo São Pedro diz que
"diante do Senhor, um dia é como mil anos".8
Na prece de Moisés se lê: "Diante de teus olhos, mil
anos são como o dia de ontem... como a vigília na noite."9
Nos Gnósticos se encontra uma indicação semelhante,
parecendo extraída da mesma fonte: "Um dia de luz é um
milhar de anos do mundo."10
Não se sabe, exatamente, o que é necessário entender
nestes textos, por "dia", "vigília na noite", "dia de luz".
De toda forma, como se vê, o princípio está bem estabele-

8. II Pedro, III, 8.
9. Salmos, LXXXIX, 4.
10. Pistis Sophia.

169
eido. Não é por novas investigações mas antigas fontes que
será possível fazer concordar todas as interpretações.11
Eis aqui as indicações forçosamente sumárias que se
podem extrair do exame rápido da tabela equivalente do
Tempo.
Alcançado o segundo Nascimento, dotado de corpo
astral, o homem 5, permanecendo sobre a terra, de fato no
sucessivo, toma parte do Mesocosmo.
Isto o torna apto para contemplar o cosmo superior
vizinho que é o Deuterocosmo, o cosmo do Filho. É assim
que se encontra no hino do ciclo pascal esta exclamação
que, de outra forma, poderia parecer estranha: "Eu vejo
teu palácio, Senhor".
Certamente, a vida planetária de mais de dois milhões
de anos é uma rica recompensa para o trabalho exigido dos
estudantes pela ciência esotérica. Sem falar da vida solar,
coisa inerente aos homens 6 e 7, a do homem 5 aparece, já,
à consciência relativa e limitada de nossa Personalidade,
como a Salvação e a Vida Eterna, objeto das preces da Li­
turgia cristã. Ainda que cada cosmo, sendo em si mesmo
tridimensional e análogo aos outros, a percepção do tempo
nos diversos cosmos é também análoga. Assim é, porque
nos diferentes cosmos o tempo, em si mesmo, é diferente.
Resulta disto que, se a vida do corpo físico está normal­
mente limitada a 80 anos terrestres, a do corpo astral se
encontra, por seu turno, limitada a 80 anos astrais, ou do
Mesocosmo. E assim por diante. É subindo a escala dos
cosmos numa vida limitada, salvo exceção, aos 80 anos
de cada escalão da Relatividade, que a individualidade hu­
mana alcançará o umbral do Protocosmo para ali ser rece­
bido como o filho pródigo no seio do Absoluto I.

11. As tentativas feitas para estabelecer tal equivalência com as fontes hindus,
ainda que dando resultados muito mais aproximados, não chegam a esta­
belecer coincidências. Essas fontes empregam unidades da mesma ordem
como "respiração de Brahma", "dia e noite de Brahma". E elas alcançam
para ele maha manvatara — a grande manifestação — a 3.10w anos, en­
quanto que se somar à tabela anterior ainda uma coluna.se obterá para a
duração da manifestação de outra maneira chamada: da Eternidade
2.1015 anos terrestres (referência Capítulo X). É necessário considerar
estas cifras com grande reserva, porque o menor erro, de início, multipll-
cando-se nessas proporções, pode resultar no final em diferenças enormes.

170
Estabelecemos a característica do tempo para o
Microcosmo, domínio do corpo físico; para o Mesocosmo,
domínio do corpo astral e para o Deuterocosmo, domínio
do corpo mental consolidado pelo corpo de graça. Mais
além do Deuterocosmo, está fechado para o homem, en­
quanto conserve o seu corpo físico. Quer dizer que na últi­
ma tabela a coluna do Deuterocosmo forma o limite supe­
rior da relatividade do tempo para o homem terrestre. Ain­
da que, para que a tabela seja completa, seja necessário
juntar ainda uma coluna, porém colocando-a à esquerda do
Microcosmo, isto é, no mundo dos organismos microscópi­
cos que, no corpo humano, constituem a base, o funda­
mento. Aplicando-lhe o mesmo coeficiente de 30.000, mas
no sentido inverso, obtém-se para a vida de uma célula
comum do corpo humano 24 horas, e para seu dia inteiro,
três segundos. A análise completa das equivalências entre o
homem Microcosmo e o Micromicrocosmo exigiria, para
ser correta, que se considere ao próprio homem composto
de um conjunto de sete cosmos. No momento, será sufici­
ente recordar que, seguindo o Princípio da Relatividade, a
vida do Microcosmo, ainda que correspondendo às 24
horas do homem, é sentida e experimentada por aquele
como uma duração de 80 anos; e sua jornada, de 3 horas.
Assim se explica o fenômeno, inexplicável de outra forma,
da rapidez das reações fisiológicas que no nosso organismo
exigem toda uma série e operações complexas. O Princí­
pio da Relatividade leva-nos a compreender que, de fato, as
células têm sido o tempo requerido para completar suas
operações. Se o homem, depois de ter bebido um copo de
álcool, sente os efeitos quase imediatamente, é porque um
ou dois segundos representam para o Micromicrocosmo
oito ou dez e seis horas, tempo largamente suficiente para
completar todas as operações que produzirão seu efeito
nos pontos mais diversos do organismo.
Para terminar o breve estudo do Tempo, ainda é
necessário tocarmos no assunto das Dimensões.
Fala-se do mundo de três dimensões ou também do
mundo tridimensional. Sabe-se que essas expressões são
convencionais. Com efeito, não se lembra de um objeto

171
possuindo suas três dimensões; um só instante de existên­
cia no tempo, ele desaparece imediatamente. Assim, tudo
o que existe no Espaço, existe simultaneamente no Tempo,
este constituindo, por assim dizer, a quarta perpendicular,
coordenada que se soma às coordenadas de Descartes.
Nossa percepção do tempo o faz aparecer como uma
Linha. As noções características do tempo: Futuro e Pas­
sado, com o ponto do Presente, de onde os eventos futuros
se transformam misteriosamente em eventos passados, são
análogos àqueles que caracterizam a linha geométrica de
onde, por relação ao ponto dado, tudo se situa na frente
ou atrás.
Voltar-se-á, mais tarde, à exposição da Doutrina do
Presente, a examinar este importante problema. No mo­
mento, será suficiente dizer que o Tempo possui não uma,
mas três dimensões e que estas dimensões são estritamente
análogas às do Espaço. Já temos feito algumas alusões a
tais dimensões superiores. Limitemo-nos a dizer, no mo­
mento, que a consciência de vigília ou do Eu de nossa Per­
sonalidade, muito relativa, como se sabe, não é capaz de
captar nem de observar diretamente essas duas dimensões
superiores do Tempo, não mais que a seus efeitos. Ela os
confunde com a quarta dimensão, numa percepção de con­
junto que é a Linha do Tempo.
Ainda que a quinta dimensão representa o lugar geo­
métrico de todas as possibilidades em um dado momento,
das quais uma só se realiza no Tempo, que a Linha do
Temoo perfura no lugar onde se encontra a possibilidade
que, por este fato, se realiza. Quanto à sexta dimensão, é
o Tempo do Universo, compreendendo por seu volume não
mais o possível, mas a consumação de todas as possibilida­
des de cada momento pelo ciclo completo de todas as Li­
nhas do Tempo.
Finalmente, existe também uma sétima dimensão que
é um ponto. Ponto situado ao mesmo tempo no Espaço e
no Tempo.
Linha do Tempo, Eternidade e Tudo são os termos de
uma linguagem corrente que corresponde à quarta, quinta
e sexta dimensões. O termo zero corresponde â sétima e

172
última dimensão que deveria ser considerada como ante-
primeira dimensão.
A noção de Zero desempenha um grande papel na
filosofia esotérica. Não é o nada. É o gérmen e o fim, o
Alfa e o Omega de tudo o que existe.

173

CAPÍTULO XIV

O terceiro grande princípio da manifestação, ao lado


do Espaço e do Tempo, é o Equilíbrio.
O Universo está equilibrado no seu conjunto e até nas
suas partes mais ínfimas. Porém, não ó preciso crer que se
trata de um equilíbrio uniforme e estável por toda a esca­
la da Criação. E estável somente no começo. Assim é que o
DÔ da Oitava Cósmica e o Protocosmo não formam mais
que um. Mas a coincidência entre o Raio da Criação e o
Sistema dos Cosmos ali se detém. Esta coincidência — ou
para dizê-lo melhor, esta unidade — está assegurada pela
natureza própria da Trindade que é una e indivisível. Já na
nota SI, que corresponde ao Agiocosmo as três forças
consubstanciais que até então formavam um bloco, mani­
festam-se como desunidas daí em diante, formando a pri­
meira tríade e dando nascimento ao primeiro mundo gera­
do, falando com propriedade. Este fenômeno é particular­
mente evidente por sua simplicidade, como também por
sua profundidade de concepção. Apenas desunidas, as três
primeiras forças convergem em direção a um mesmo ponto
de aplicação. Entretanto, pelo fato de que esta ação con­
vergente criadora foi precedida por uma desunião, a esta­
bilidade do Primeiro Equilíbrio, assegurada pela natureza
consubstanciai da Trindade, encontra-se quebrada. Aí está
a causa da divergência entre a nota SI e a Grande Oitava e
o Agiocosmo. Esta divergência vai se acentuando ao longo
do Raio da Criação e do Sistema dos Cosmos, justamente
até seus limites.
Estas noções e os conhecimentos já adquiridos no que
concerne à estrutura do Universo permitem captar a razão
de ser e a significação dos grupos de leis governantes, que

175
se multiplicam de 1 a 96, atuando ao longo do Raio da
Criação (Figura 30). Seu objetivo é compensar de maneira
adequada a perda progressiva pelo equilíbrio de sua estabi­
lidade. Quanto mais longe se está no Dó-Protocosmo, mais
se encontra comprometida essa estabilidade; mais o esforço
necessário para estabelecé-lo adota um caráter complexo,
perdendo, ao mesmo tempo, sua intensidade em sentido
inverso. Em outras palavras, a estabilidade inquebrantável
do Equilíbrio não é própria mais do que ao Universo no
seu conjunto. Quanto aos seis cosmos que sucedem ao Pro-
tocosmo e que vivem no seio desse conjunto estão em esta­
do de permanente equilíbrio instável. E a instabilidade
deste equilíbrio se acentua na medida do distanciamento
do Protocosmo.
Por sua natureza, o equilíbrio instável em que o mun­
do vive encontra-se quebrado, a todo momento, para ser
restabelecido imediatamente pela ação dos grupos corres­
pondentes de leis-governantes.
Tal é o aspecto mecânico do fenômeno. Mas o essen­
cial não está aí; reside na sua significação biológica. Com
efeito, a utilização da instabilidade do Equil íbrio, e a entrada
em ação do efeito nocivo do Tempo resultante da Lei de
Sete são as duas condições primordiais do surgimento da
Vida. A natureza dessas condições permanece a mesma ao
longo da escala universal, ainda que a vida no nível de cada
cosmo tome um aspecto particular.
Ao se imaginar um Mundo perfeito, que repouse
sobre um princípio de equilíbrio estável, isto seria uma
imagem fixa — a da Morte. Porque a Vida é, por excelên­
cia, movimento, adotando, este movimento, a forma de
uma corrente. Ainda que uma corrente seja sempre efeito de
umà diferença de potencial. Por seu turno, os potenciais
diferentes aparecem em todos os domínios como o efeito
de um equilíbrio quebrado.
A linha reta do Tempo, o mesmo que o equilíbrio
perfeito estável, excluiria o fenômeno Vida, assim como
toda idéia ou possibilidade de evolução. É necessário
romper com o equilíbrio para criar um movimento, é pela
introdução do Princípio de imperfeição na concepção da

176
Criação que a Vida brota em todos os escalões do Macro-
cosmo.
O homem — o Microcosmo — foi criado à sua imagem
e semelhança.1 Seus centros superiores, perfeitos, perfeita­
mente equilibrados e estáveis, formam nele, seu próprio
Protocosmo. Ainda que este equilíbrio se encontre que­
brado no escalão seguinte que compreende os três centros
psíquicos, escalão análogo ao do Agiocosmo e, assim
por diante.
Em resumo, pode-se dizer que a Vida é o efeito de um
jogo vibratório em todos os escalões do Universo, jogo que
consiste, em cada caso, numa perturbação do equilíbrio,
seguido de seu restabelecimento.
Essas perturbações são possíveis pelo fato de que
tudo o que existe no Universo ali se encontra, ainda que
equilibrado, em equilíbrio instável.
O Princípio do Equilíbrio encontra sua aplicação prá­
tica na compensação das perturbações. São raros, entretan­
to, os casos onde esta ação compensadora consegue resta­
belecer exatamente a situação Ante Actum. O que, em
geral, não seria desejável. Sendo dado que, graças ao Princí­
pio de imperfeição, tudo o que existe se encontra em mo­
vimento, o jogo vibratório — perturbação-compensação —
toma, com frequência, em especial na vida orgânica, a
forma de um ciclo aberto, isto é, de uma espiral. De novo
aqui se constata uma perfeita lógica do sistema. Com efei­
to, sabe-se que um movimento de translação — como o da
evolução — é sempre difícil, ainda que a espiral torne mais
lenta a progressão. Certo, porém mais fácil. Em caso de
dúvida, ela freia a retrogradação.
O Tempo, o Espaço e o Equilíbrio, as três condições
prévias da Manifestação e da Criação do Universo, deram
nascimento no Universo criado a três forças: ativa, passiva
e neutralizante, tal como já foi dito. O Princípio de Equi­
líbrio toma a forma dinâmica na terceira categoria como
força reativa, tendo por missão compensar as perturbações
para restabelecer o equilíbrio. Assim,sua manifestação tem.

1. Génesis, I, 26.

177
sempre, um caráter unilateral de reação. Aplicado no Uni­
verso inteiro, o Princípio de Equilíbrio atua mecanicamen­
te e se desencadeia automaticamente. Em consequência,
toda ação empreendida, não importa em que lugar e em
que cosmo, encontra-se, obrigatoriamente, contrabalancea-
da.
As considerações anteriores permitem compreender
certos fenômenos que permanecem inexplicáveis para a
ciência positiva e captar o seu sentido. Em primeiro lugar,
o grande problema da morte: da mesma forma que a vida
nasce da perturbação, também a morte procede, necessaria­
mente, do Princípio de Equilíbrio. Em todos os casos, sem
nenhuma exceção, a perturbação deve ser compensada e o
equilíbrio restabelecido. É através da morte que se faz a
compensação.
0 nascimento, em todos os planos, é a ação de um ato
revolucionário que é o Amor. 0 mesmo Amor nasceu antes
da Criação, com o surgimento, na consciência, do Absolu­
to, da ideia do TU, que provinha necessariamente daquela
do EU. Foi a primeira perturbação do equilíbrio estável
pré-eterno, é por isto que se opõe com justa razão, ainda
que não não seja mais do que instintivamente, a Morte ao
Amor e não à Vida, é igualmente com razão que o coração
humano sente, contra toda evidência da razão, que o Amor
é a força superior capaz de lutar contra a Morte.
Vencer a Morte, tal é a palavra de ordem da ciência
esotérica. Porém, entendamo-nos bem sobre o verdadeiro
sentido desta expressão.
As três forças, propagando-se, atuam no conjunto do
Universo. Manifestam-se da seguinte maneira no Sistema
dos Cosmos e dos Fiaios da Criação: o Amor aparece como
a força ativa perturbadora, a Morte como a força passiva
estabilizadora e a Vida como a força neutralizante que pro­
porciona a existência entre os limites marcados pelas duas
primeiras. Por este fato, a Morte é uma condição indispen­
sável da existência — em consequência da vida — cujo
fruto, na tríade seguinte, é a descendência. A questão é
saber se a luta contra a Morte para ganhar a Vida eterna,
essa grande esperança humana pregada por todas as reli-

178
giões, pode, verdadeiramente, ser razoavelmente empreen­
dida com possibilidades de êxito. A questão é complexa e
para resolvê-la é necessário examiná-la sob múltiplos aspec­
tos. As religiões a colocam no plano da crença e fazem
disso uma profissão de fé. No momento atual, no umbral
da Nova Era, do Ciclo do Espírito Santo, esta posição não
mais satisfaz, ao menos totalmente, aos espíritos esclareci­
dos. Eles querem captar e compreender o que até ontem
ainda não podia ser considerado mais do que um artigo do
Credo,

É mais fácil, certamente, pedir aos fiéis um crédito do


que tentar explicar o que é dificilmente explicável, ainda
que a ciência esotérica proponha uma resposta a esta ques­
tão. A face do mundo muda. O Ciclo do Filho, como anti­
gamente o do Pai, chega ao seu fim. Com Cristo, a Lei rece­
bida por Moisés chega a seu final2 e é substituída pelo regi­
me da Fé, da Esperança e do Amor.3 No presente, com as
guerras e as revoluções do século, com o extraordinário
progresso da ciência positiva, entramos no período transi­
tório cuja significação é abrir caminho ao Ciclo do Espirito
Santo. No curso deste período, a Fé será substituída pro­
gressivamente pelo Conhecimento, e a Esperança será abo­
lida na Consumação. Isso será o triunfo final do Amor: "O
amor jamais acaba; mas, havendo profecias, desaparecerão,
havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará."4

Por vitória sobre a Morte, entende-se, na Tradição, a


vitória sobre a Morte de nossa Personalidade aperfeiçoada:
eis aqui o sentido da Salvação, objeto das preces e meta das
práticas religiosas no cristianismo. Já citamos a palavra de
São Paulo: "Eis que vos digo um mistério: Nem todos dor­
miremos, mas transformados seremos todos."5 O sentido
profundo do termo transformados, nesta frase, consiste em

2. Romanos, X, 4.
3. I Coríntios, XIII, 13.
4. I Coríntios, XIII, 8. Citado do texto eslavo.
5. I Coríntios, XV, 51.

179
que todos os homens exteriores, assim como aqueles que
alcançaram os níveis 5, 6 e 1, serão, cedo ou tarde, chama­
dos a deixar seu corpo físico. Porém com esta diferença:
que estes últimos o farão como aqueles que abandonam
uma velha vestimenta para usar outra, enquanto para o
homem 1, 2 ou 3, a morte do corpo físico significa a
decomposição de sua Personalidade-Feto. A Morte é um
aborto astral. A Salvação vem com o segundo Nascimento,
quando a Personalidade totalmente desenvolvida e nascida
une-se indissoluvelmente ao EU real para formar uma Indi­
vidualidade. Uma vez nascida, a Individualidade não ma is
depende do corpo físico, não mais que a criança posta no
mundo não morre, mesmo se seu nascimento tenha custa­
do a vida da mãe. É a isto que o Apóstolo faz alusão ao
dizer que "não dormiremos todos".
Temos visto que, nos diferentes cosmos, o Tempo é
diferente e que ao se calcular a duração de uma vida nos
cosmos superiores, através de unidades terrestres, obtêm-
se cifras muito elevadas, ainda que tudo seja relativo. Já
dissemos que ao se admitir como duração normal da vida
do homem terrestre, uns 80 anos terrestres, a vida do corpo
astral, pertencendo aoMesocosmo, corresponde a 2.400.000
de nossos anos. Isto não constitui, conforme se poderia
crer, uma verdadeira eternidade, esta cifra não representa
mais que os 80 anos em anos astrais. De maneira que, ven­
cida a morte física, ter-se-ia, diante de si, o problema de
vencer a Morte astral, depois da Morte mental, dispondo,
ainda, esta vez, de uns 80 anos astrais. Não será senão com
a cristalização do corpo de graça, no seio do Absoluto, que
a Morte será definitivamente vencida. Porque o ser ali se
encontra no estado de Ser primordial, no seio do Equilí­
brio estável. Isto será não mais a Salvação provisória, mas a
Salvação Definitiva.
Este estado de beatitude, entretanto, não pode ser
caracterizado como uma vida segundo a definição que
antes se deu. A vida, enquanto efeito de uma imperfeição
desejada, cessa naturalmente no momento do retorno ao
Absoluto no Protocosmo, onde o Princípio de Imperfeição
não é admitido.

180
Alguns pensam que este estado é um Não-Ser total,
isto é, o Nada, o Zero absoluto. É certo que não é uma
vida no Tempo como a conhecemos, colocada entre o nasci­
mento e a morte. Esta existência — se ainda se pode utili­
zar tal termo — coloca-se mais além do Espaço e do Tem­
po. Certamente, tal como somos, não podemos fazer uma
representação válida de tal estado. Mas em oposição às ima­
gens glaciais — ou que como tais aparecem — que, com fre­
quência, se atribuem ao Nirvana, a Tradição Ortodoxa
apela à única noção que conhece a língua humana e que
reflete a condição divina: ao Amor; "Deus é Amor", diz o
Apóstolo São João.6 Aquele que alcançar a tríplice vitória
sobre a morte física, astral e mental será recebido no seio
do Amor absoluto que é sem começo e, em consequência,
sem fim. Pieroma da Tradição Ortodoxa.
Esse amor absoluto é acessível à alma humana, mes­
mo aqui embaixo. De toda forma, nem o homem nem a
mulher podem alcançá-lo separadamente. Não é acessível
mais que a um casal e à condição de uma reintegração
consciente e total de um e do outro num só Ser, por uma
síntese do EU e do TU reais, possuindo a força de romper
a casca de suas respectivas Personalidades.7 Praticamente,
isto não pode ocorrer mais do que quando as duas Persona­
lidades já se encontram avançadas, ricas da experiência que
já adquiriram separadamente na vida exterior.
Qual é o sentido desse longo caminho de regeneração
que, partindo da queda de Adão tem por meta final uma
perfeição que toca a divinização? A Tradição Ortodoxa não
dá uma indicação precisa sobre o tema. Indica, simples­
mente, que os caminhos de Deus são insondáveis8 e"dEle
e por meiodElee para Ele".9 Quanto à descrição do estado
de Beatitude que circulava entre as Igrejas primitivas, foi
retirada pelos Padres do Primeiro Concílio, por medo que
ela se constituísse num escândalo, sendo dado seu caráter,
pareceria erótico. Mas na Doutrina se encontra a indicação

6. I João, IV, 8.
7. Mateus, XI, 33; Lucas, XVI, 16.
8. Romanos, XI, 33.
9. Romanos, XI, 36.

181
de que o amor humano, terrestre, não é mais do que um
resíduo do Amor celeste. Por outro lado, nós já falamos
nele.
Se é certo que o estado de Beatitude não pode ser
descrito validamente na linguagem humana, a Tradição
insiste sobre o fato de que, apesar das imensas dificuldades,
é possível alcançá-lo. Dentro deste objetivo, a ciência eso­
térica elaborou toda uma técnica de exercícios.
Precisamos que a Morte é uma das manifestações do
Princípio de Equilíbrio reagindo automaticamente à ação
perturbadora do amor carnal criado no mundo. Este, ainda
que imperfeito, dá, entretanto, nascimento à vida. O amor
humano é imperfeito porque é instintivo e impulsivo. En­
quanto o homem se deixar levar mecanicamente por
seus impulsos, seu amor não servirá mais que aos objetivos
cósmicos do conjunto. Ele retirará dali, como elemento de
equilíbrio e recompensa, o prazer que o amor lhe dá; mas
tal qual é, de nada servirá à sua evolução esotérica. E,
entretanto, o Amor é o meio mais seguro e mais potente
para completar essa evolução. Isto assim é, porque o Amor
é o único elemento objetivo de nossa vida. Isso permanece
verdadeiro em toda a multiplicidade de seus aspectos e em
toda a variedade de suas manifestações.
Com efeito, o Amor pode servir ao homem na sua
evolução esotérica. Para tal, este deve, porém, aplicar a
esse amor, esforços conscientes e não se deixar conduzir
por impulsos. Assim neutralizará nele mesmo a ação per­
turbadora do Amor, o que previrá — e fará inútil — a inter­
venção do Princípio de Equilíbrio com sua ação mortifi­
cante. Neste caso, a porção da potência que o Amor pro­
porciona não será gasta de imediato para servir aos objeti­
vos gerais, mas permanecerá como possessão do homem.
Poderá, então, ser utilizado para acelerar o crescimento da
sua Personalidade e fazê-la progredir ao segundo Nascimen­
to, primeiro resultado tangível das práticas esotéricas.
Tal é a teoria do trabalho monástico, que se aplica,
essencialmente, ao centro sexual, do qual se busca dominar
os impulsos por meio de exercícios. Sem entrar no exame
das vantagens e inconvenientes deste método, é necessário

182
dizer que na Nova Era o trabalho esotérico sai das criptas e
dos mosteiros. No que se sucede, mais deve prosseguir na
vida, no mesmo campo da sociedade humana. Certamente,
a tarefa é mais difícil, porque ali não há, como em um
mosteiro protegido, lugar para amparar-se da maior parte
das influências "A". Em desforra, a vida oferece meios
mais eficazes e conduz a resultados menos frágeis; a prática
esotérica na vida permite algo mais que um simples domí­
nio do centro sexual, para melhor cultivar as manifestações
do amor pelos centros emocional e intelectual, e fazer sur­
gir, assim, o espírito criador, nas suas diferentes formas.
Esta cultura de uma ordem superior terá por meta centrar
os esforços criadores em direção a um mesmo ponto de
aplicação, que é o desenvolvimento integral da Personalida­
de, o segundo Nascimento, a cristalização do corpo astral,
sua conjunção com o EU real para alcançara formação de
uma Individualidade.
Se tal trabalho se faz a dois, homem e mulher, pode
desenvolver-se com uma potência extraordinária e dar rápi­
dos resultados. Com a condição, seja como for, que do
ponto de vista esotérico esses dois seres se convenham inte­
gralmente. Que sejam um casal perfeito, isto é, que seu
conjunto reflita, presume-se, com a reserva das particulari­
dades de seus tipos humanos, a relação entre o EU e o TU
absolutos anteriores à Criação do Universo. Este é o caso
dos seres que se chamam, na ciência esotérica. Seres Pola­
res.
Mais adiante se voltará a esta importante questão que,
com a aproximação da Nova Era, torna-se atual. Porque no
Ciclo do Espírito Santo, o romance livre — inerente ao
Ciclo cumprido — cederá lugar, nos meios cultos, ao ro­
mance único dos seres polares, que serão chamados a
formar os quadros da sociedade de amanhã.
O Princípio de Equilíbrio, em virtude do qual toda
v perturbação e todo movimento livre, especialmente na vida
orgânica e, particularmente, no seu setor humano, exige e
recebe uma compensação, aparece como um guardião seve­
ro mas imparcial que, a par da Lei de Sete, garante a dura­
ção de toda existência segundo as leis. A sabedoria humana

183
é consciente disso desde os mais antigos tempos, é o prin­
cípio do Carma, é o Nêmesis dos gregos, isto é, o Archi-
estrateqa Uriel da hierarquia celeste cristã, um dos sete Es­
píritos de Deus que, conforme a Tradição, são os únicos
que no Universo jamais mudam. Ele vigia o restabelecimen­
to do equilíbrio quebrado em todos os graus da escala cós­
mica, compreendido o Micromicrocosmo.
A ação cármica se desencadeia automaticamente. De­
veríamos levar em conta este automatismo e tomá-lo em
consideração, ao menos em nossos atos refletidos, medita­
dos. Isto não é fácil, porque raramente nos damos conta
das perturbações e os efeitos que nossos atos produzem.
Porque a ação cármica supera, muito assiduamente, o hori­
zonte do previsível. Entretanto, uma vez mais devemos
dizer que, para os Justos, o Carma perde o seu temível
aspecto, ele não lhes dá mais que felicidade. É que seus
atos não criam nenhuma perturbação transgredindo leis
cósmicas e locais. Os Justos não se enganam, enquanto o
comum dos homens, mesmo atuando de boa-fé e crendo
atuar corretamente, comete erros, começando por erros de
concepção, que são a própria fonte do pecado. O pecado
em si mesmo não comporta nenhum elemento da natureza,
por assim dizer, mística. Enquanto erro, o pecado pode ser
liquidado por uma compensação adequada. A Tradição o
indica, dizendo que "não há pecado imperdoável, salvo o
pecado sem arrependimento".10 Facilmente se compreen­
derá o verdadeiro sentido desta máxima. O arrependimen­
to é, antes de tudo, um ato de consciência que produz a
compensação benévola e eficaz do erro cometido. Tal é a
teoria. A prática não é tão simples, exige um estudo mi­
nucioso de cada caso. É evidentemente mais fácil não co­
meter pecados do que lhes encontrar e lhes dar, em segui­
da, uma compensação. Ainda que o arrependimento, no
sentido aqui lhe atribuído, não venha a tempo, a ação cár­
mica equilibradora entra em vigor automaticamente.
Então, estar-se-á obrigado a sofrê-la passivamente.
Porque a ação cármica se desencadeia automatica­
mente e atua mecanicamente, ela compensa cada pertur-

10. Filocalia, São Tiago, o Sírio, 2do./309 sermão.

184
bação no seu próprio plano. A compensação é feita como
no grande livro de contabilidade, para cada conta indivi­
dualmente, e não entre as somas de consequências boas e
más.
Agora examinemos a influência que exerce o Princí­
pio sobre a Lei de Sete. O caráter cíclico que toma todo
movimento prolongado, em virtude desta última lei, dá
nascimento a uma rotação lenta ou rápida que, porém, em
cada caso, se produz num só sentido. Isto produz, neces­
sariamente, um efeito perturbador e, por tal fato, exige
uma compensação. Esta compensação toma, igualmente,
uma forma cíclica com um movimento giratório adequado
mas orientado em sentido inverso. Assim, uma gama de tra­
balho — que é uma escala descendente — faz nascer imedia­
tamente outra escala estritamente compensadora, porém
ascendente, que é a dos resultados obtidos por esse mesmo
trabalho. Se o trabalho se desenvolve bem, a gama dos
resultados fornece ao trabalhador os resultados positivos
correspondentes e vice-versa.
É necessário saber, então, que cada escala descenden­
te, escala de ação, começando pela Grande Oitava Cósmi­
ca, faz nascer automática e paralelamente sobre a mesma
escala, outra escala ascendente, gama dos resultados obtidos
em virtude da ação empreendida na primeira. Esta éuma lei
geral, um dos efeitos do Princípio de Equilíbrio. Na natu­
reza, essas duas classes de escala estão concebidas de ma­
neira tal que elas se ajudam mutuamente. O estudo da apli­
cação de tal lei nos fenômenos físicos, químicos ou bioló­
gicos oferece um espetáculo surpreendente e grandioso por
trás do qual se percebe a inteligência que os rege. Este estu­
do permite igualmente em certos casos encontrar a respos­
ta a problemas que, de outra forma, oferecem o aspecto de
problemas insolúveis, dada nossa maneira linear de pensar.
Tal é, por exemplo, o problema da nutrição do Universo
em seu conjunto.
A nutrição das criaturas vegetais, animais e humanas
está concebida conforme diversos esquemas cíclicos. O
homem e os animais absorvem o oxigénio e rechaçam o áci­
do carbónico; as plantas absorvem o ácido carbónico e

185
rechaçam o oxigénio. O homem e os animais comem as
plantas; ao contrário, seus excrementos servem de alimen­
to às últimas. Nesses casos e em outros menos facilmente
observáveis, nos encontramos na presença de uma ação
conforme escalas acopladas ascendentes-descendentes, ação
cujo conjunto está perfeitamente equilibrado. Sabe-se que
a nutrição se resume na absorção da energia solar por um
complexo processo de metabolismo, que a ciência ainda
não conhece inteiramente; paralelamente, a substância dos
alimentos, depois de ter provido o organismo, ao passar
pelo tubo digestivo, os materiais e as energias que neces­
sita, deixa um saldo que servirá de alimento ao mundo
vegetal, cujos produtos voltarão, mais tarde, à mesa, na
forma de comida. Aqui, a escala ascendente dos produtos
do metabolismo é compensada pela gama descendente de
transformação das comidas em excrementos. Pode-se
encontrar uma infinidade de outros exemplos do jogo com­
pensado das escalas nos diferentes domínios e em diferen­
tes planos: físico, psíquico e moral. Os movimentos que se
produzem conforme tais esquemas, naturalmente, não pro­
duzem reação cármica.
Ao se passar, agora, dos casos particulares ao caso
geral e ao se examinar o problema da nutrição do Univer­
so inteiro enquanto ser vivente, dever-se-á admitir que ele
não pode encontrar alimentos fora dele, porque fora dele
nada existe. Entretanto, a Tradição insiste em que o
grande Universo, o Macrocosmo, é também um ser viven­
te.11 Com efeito, composto de elementos viventes, o con­
junto não pode ser outra coisa senão um ser vivente. En­
quanto ser vivente, tem necessidade de alimento. Como
por outro lado dizemos nós, o Macrocosmo não pode
encontrar alimento fora dele mesmo, isto nos leva à con­
clusão de que ele o encontra em si próprio. Tal é nossa pri­
meira constatação. Em seguida, podemos dizer que, se o
Universo no seu conjunto permanece em perfeito estado de
equilíbrio, sua nutrição não pode, igualmente, ser concebi­
da mais do que segundo um esquema de escalas acopladas.

11. Por exemplo, Orígenes, Os Princípios.

186
Figura 47

Já percebemos o funcionamento desse mecanismo na


forma de fluxo e refluxo das energias ao longo do fíaio da
Criação. Voltaremos a isto de maneira mais detalhada no
curso Mesotérico.
Agora é necessário examinar, rapidamente, uma ma­
nifestação do Princípio de Equilíbrio. Trata-se das relações
orgânicas entre a forma e o conteúdo. O problema é tão
vasto quanto complexo; o quadro deste capítulo não per­
mite uma análise detalhada. Mas nos parece útil dar um
exemplo que, desde o começo'doi século tem sido citado
numerosas vezes. Trata-se de uma lei que rege as relações
entre a forma e o conteúdo dos regimes políticos. A refle­
xão permite sem dificuldades descobrir esta lei. Desgraça­
damente, os dirigentes políticos só raramente se preocu­
pam com ela e, sobretudo, por instinto, e como resultado
de um raciocínio rigoroso.
A lei é formal: com o tempo os elementos em cresci­
mento se desenvolvem e, depois de terem alcançado o tér­
mino desse desenvolvimento, empreendem uma curva des­
cendente, degenerando, para tender à decadência total.
Todo regime político “clássico" ou novo encontra-se sob o
império desta lei. As circunstâncias, especialmente as cir­
cunstâncias políticas, mudam. Mudam, seguindo as modifi­
cações sofridas pela vida da sociedade humana, em progres­
so sob certos aspectos, em regressão sob outros. O Prin­
cípio de Equilíbrio se manifesta, no plano da política

187
interior dos Estados, pela manutenção de certa equivalência
entre a forma de governo e o conteúdo político do sistema
existente. Estes dois fatores devem estar equilibrados. Na
realidade, não o estão quase nunca. Geralmente por diver­
sas razões, os governos estão atrasados em relação aos
acontecimentos. Ainda que diante da evolução histórica
não se saberia, para além de certos limites, conservar, por
sua vez, a forma de governo e o conteúdo do regime. Fran­
queados estes limites, se produz uma revolução. Ela busca
um novo ponto de partida e compromete a política em
uma nova direção que, em princípio, está no sentido do
progresso. Porém, o tempo não se detém. Depois de um
certo período, o governo revolucionário, por seu turno,
ver-se-á superado. Quanto mais agudo é o caráter da revo­
lução, mais curto será esse período. Tal é o caso da revolu­
ção francesa de 1789, tal é, igualmente, o da revolução
russa de 1917.
A Inglaterra oferece o exemplo de uma estabilidade
tradicional surpreendente. Porém, assiduamente, perde-se
de vista que é uma estabilidade no movimento, a única pos­
sível ao Universo, onde a existência e a vida estão baseadas
sobre um equilíbrio instável, perpetuamente quebrado. O
Governo inglês conserva a sua forma tradicional, através
dos séculos, porque os homens de Estado deste país sabem
modificar seu conteúdo com flexibilidade extraordinária e
a tempo.
O Governo do imperador Nicolau II obstinou-se,
contra toda evidência, no desejo de manter intactas as
formas imperial e o conteúdo autocrático do poder. O
resultado é conhecido.
O desequilíbrio entre a forma e o conteúdo pode, às
vezes, alcançar proporções que sobrepujam larqamente a
escala dos Estados. É inegável que a crise em que se debate
a humanidade desde o início do século comporta os piores
riscos. Além disso, do cataclisma direto que poie provocar
a reação em cadeia de uma explosão atómica, existe um
perigo totalmente diferente, o de uma acumulação do que
podemos chamar a Tara Cármica. Quando se produz este
caso, o equilíbrio é restabelecido, seja por uma catástrofe

188
como o Dilúvio, seja — se o peso do Carma é considerável
— por uma intervenção dos cosmos superiores. Tal foi a
razão profunda da encarnação de Cristo e de Sua missão
sobre a terra, de Seu suplício e de Seu sacrifício. Visivel­
mente, o risco cármico acumulado desde a época do Seu
advento era grande e real. O Apóstolo São João diz que
Deus enviou Seu Filho "para que o mundo fosse salvo por
ele".12 Devemos crer que a pregação de Cristo seguida de
Seu sacrifício, contrabalançaram o excesso da tara cármica
neste momento existente, restabelecendo o equilíbrio do
planeta e, assim, salvando o mundo e, com ele, toda a
humanidade.

12. João, III, 17.

189
CAPÍTULO XV

O Caminho é o conjunto das práticas que, postas em


prática, em relação aos princípios da ciência esotérica,
permite ao homem evoluir. O prévio estudo dos elementos
fundamentais relativos ao homem e ao Universo, objeto
das duas primeiras partes do curso Esotérico (Gnósis I e
II), permitiu adquirir o mínimo de conhecimentos neces­
sários para abordar o estudo do Caminho.
A ciência esotérica começa para além da zona de
exploração da ciência positiva; entre esses dois ramos do
saber existe um vazio, uma zona de ilusão criada intencio­
nalmente e que constitui um obstáculo. Esse vazio não
pode ser ultrapassado, a não ser ao preço de esforços consi­
deráveis, e mesmo superesforços, e opera uma seleção. O
caráter e a quantidade de esforços necessários diferem e
dependem da natureza e do grau de deformação do espíri­
to do homem exterior, fatores que são individuais. 0 fran­
quear o vazio exige estudos teóricos acompanhados de tra­
balhos práticos incluídos num programa determinado.
Agora podemos empreender o estudo do problema do
Caminho. Pode ser feito sob numerosos ângulos, mas é
ma is cômodo expor o sentido filosófico e esotérico do Cami­
nho, partindo das considerações expostas no Capítulo VIII.
Ali, o homem foi comparado com uma célula da vida orgâ­
nica sobre a Terra. Pelo fato de pertencer a esse organismo,
o homem está submetido â Lei Gerai e é somente quando
dela escapa que ele a substitui pela Lei de Exceção.
Não nos damos conta de quanto estamos atados pela
Lei Geral.1 Atuando sobre nós como atua sobre as células.

1. Cf. Capítulo VIII.

191
esta lei nos imobiliza ou tende, constantemente, a condu­
zir-nos ao nosso lugar. Sua força somente nos deixa uma
limitada liberdade de ação, na sua orientação e na sua
extensão. Ela atua através de diversos procedimentos.
Pode-se dizer que se o homem "vive como todo o mundo",
se ele não se aventura fora dos terrenos conhecidos, ele não
se dá conta da existência desta força ou, sobretudo, esta
força o ignora. Porém, se suas empresas saem do comum, em
não importa que domínio e, em especial, no do esoterismo,
a força entra em ação e lhe suscita toda classe de obstácu­
los, a fim de fazé-lo voltar ao ponto onde, segundo a Lei
Geral, ele deve permanecer. Na realidade, sem conhecer
esta força, temos a intuição de sua existência e das múlti­
plas formas de que se reveste. As Santas Escrituras falam
dela mais de uma vez, especialmente a propósito do traba­
lho esotérico. Sobre este tema, Jesus diz que "os inimigos
do homem serão os da sua própria casa"2 e com mais
razão, que, "não há profeta sem honra senão na sua terra,
entre os seus parentes e na sua casa".3
Assim, se esta força conservadora, servil à Lei Gerai,
nãb chega a "acalmar" o homem, atuando diretamente
sobre ele, trata de alcançá-lo indiretamente pelas pessoas
de sua casa, seja pelos sentimentos que eles invocam, seja
pela frieza e o desprezo que testemunham.
0 exemplo clássico desta ação indireta é a sedução de
Adão por Eva, seu ai ter ego, depois de ela própria ter sido
seduzida pela Serpente através do fruto da Arvore do co­
nhecimento do bem e do mal. Este mito está cheio de sig­
nificado. Por que é "a serpente, mais sagaz que todos os
animais terrestres?"4 A serpente personifica a Ilusão, mais
exatamente a forca de uma ilusão implantada no organis­
mo humano e a potência de que dispõe. É notável como esta
força, ao lado dos riscos que comporta, tem efeitos nitida­
mente positivos, especialmente a imaginação criadora.

2. Mateus, X, 36.
3. Mateus XIII, 57; Marcos, VI. 4; Lucas, IV, 24; João IV, 44.
4. Génesis, III, 1-7.

192
A força de ilusão pode mesmo sor amestrada e orien­
tada integralmente em sentido construtivo; mas esta in­
versão de seus efeitos não se pode obter, a não ser ao preço
de um trabalho perseguido com tenacidade em direção e
sobre o Caminho esotérico. No homem exterior, pelas
sequências de ilusões que ela gera, essa força provoca con­
sequências negativas.
Na Tradição é chamada de "serpentinha" a pequena
serpente. A razão desta designação é que, quando é desper­
tada e orientada no sentido construtivo, sua ação no orga­
nismo dá a sensação de um movimento ondulatório. Esta é a
razão da escolha da serpente como personagem no mito da
queda de Adão. O fruto da Árvore do conhecimento do
bem e do mal é conhecimento acessível a essa faculdade
intelectual; a razão {ratio} pura ou prática, que não pode
franquear os limites das influências "A", que em último
caso revela-se ilusória. Com efeito, ela não é outra coisa
senão o conhecimento dos elementos do mundo fenomê-
nico, quer dizer, dos elementos "A", cuja soma algébrica no
seu conjunto é igual a Zero. Lanterna mágica girando.
A serpente astuta se aproximou de Eva, hipnotizan­
do-a pelo jogo cintilante da lanterna. Tomando o irreal
pelo real, Eva arrasta a Adão em sua queda. Desde então,
esta manobra de sedução, enriquecida por numerosas
variantes, tornou-se habitual nas relações humanas.
É comprometendo-se no Caminho esotérico que o
homem pode remontar a corrente e redimir o pecado origi­
nal, esse erro de nosso ancestral comum, erro que repeti­
mos a cada instante. Enquanto não for amestrada, a
força de ilusão retém a cada um em seu lugar, obrigando-o
a tomar, com muita assiduidade, o falso pelo verdadeiro.
Caído no irreal, em lugar de avançar, o homem cambaleia,
um passo para frente, dois passos para trás e assim por
diante. O esgotamento que resulta disto o conduz â morte.
Nessa vida artificial, regida pela Ilusão, vida semeada,
entretanto, por influência "3", nos é necessário quase que
a cada dia, proceder a uma reestruturação dos valores, a
fim de não cairmos em nova armadilha. Geralmente se está
de acordo em reconhecer a existência do perigo da ilusão,
mas sobretudo em teoria, o mais frequente é a vermos passar

193
sobre nosso próximo, mas não sobre nós mesmos. Assim,
continuamos vivendo hoje como ontem, e a força que em
geral se chama o Diabo, triunfa. Porém, seja qual for o
nome que se dê a ela, ela está sempre presente. Vivemos
num mundo artificial, ilusório. Sob este ponto de vista, é
interessante citar a frase de um monge budista. Responden­
do à pergunta: "Como representaria você mesmo a criação
do mundo?", ele diz: "O mundo é criado novamente por
cada recém-nascido." é exato. Porque a força da ilusão que
nos encadeia a todos, exerce, entretanto, uma ação indivi­
dual sobre cada um de nós, porque nosso espírito está
deturpado de uma forma que lhe é própria. Qual pode ser
a saída desta situação? Se permanecemos tranqúilamente
em nosso lugar, as estradas humanas nos estão abertas à
medida que elas permaneçam mais aquém do Vazio. Pode­
mos ter uma vida feliz ou desgraçada, uma vida familiar,
viver amores, fazer descobertas, viajar, escrever. Depois
chega o fim.
Nosso raciocínio começa a ser mais realista se nossa
atenção se concentra sobre o fim. Tudo pode nos ocorrer
na vida, ou nada, nossas aspirações podem ser realizadas ou
náo, porém há um fim certo, que é a morte. Nos nossos
estudos devemos partir deste fato.
A questão seguinte é proposta desde que a humanida­
de existe, é a Morte absolutamente inevitável? Não existe
saída? Pode-se admitir que nascemos, somos educados, ins­
truídos etc., para um aniquilamento puro e simples? Nossa
cabeça e nosso coração pode se adaptar a tal fatalidade
sem se rebelarem?
Na realidade, nós não pensamos nisto ou pensamos
muito pouco, para grande satisfação dessa força de ilusão,
o Diabo, segundo a Tradição. Contudo, hoje em dia o
homem pensa mais na vaidade das coisas deste mundo,
sobretudo depois dos eventos do século: guerras mundiais,
revoluções, guerras civis, tensões políticas e sociais, desin­
tegração dos impérios, progressos aterrorizantes da demo­
grafia. Mais tarde voltaremos a estes acontecimentos, cuja
razão de ser é de natureza cósmica.

194
Diante deste espetáculo, nasce em nós o sentimento
do absurdo. O progresso acelerado da técnica, ao invés de
dar segurança, inspira um terror e uma incerteza que solapa
a força, até agora inquebrantável, da ilusão. E começamos
a sentir um interesse crescente pelo problema da morte,
ontem ainda dissimulado nas reviravoltas da nossa cons­
ciência de vigília.
Já citamos o texto do Apóstolo São Paulo: “Digo-vos
um mistério: nem todos dormiremos, mas transformados
seremos todos."5
Voltemos a comentá-lo sob um diferente ângulo.
O que quer dizer: todos nós seremos transformados?
Cedo ou tarde, cada qual abandonará seu corpo físico
e, com efeito, todos nós seremos transformados.
O que quer dizer, então: não morreremos todos?
Para o homem exterior, a destruição do corpo físico
que serve de matriz a este feto astral que é a Personalidade,
conduz, obrigatoriamente, à decomposição deste último.
Na linguagem da Tradição, chama-se a decomposição da
Personalidade e com ela a do EU pessoal, a Morte segunda.6
Para o segundo Nascimento, quando nasce o corpo astral -
do qual se realiza a soldagem — e se integra ao EU real para
formar a Individualidade, consentimos com a vida planetá­
ria e escapamos, assim, à Morte segunda. Entretanto, ela se
produzirá, não mais aos quarenta dias da morte do corpo
físico, mas somente depois de 80 anos astrais, isto é,
2.400.000 anos terrestres. Para o homem 4 quando tiver
desbloqueado o umbral do círculo interior do esoterismo,
a morte do corpo físico equivalerá ao abandono de um ves­
tido usado ou fora de moda. Pegará outro, se tem neces­
sidade. Então isso não será mais uma catástrofe. Tal é o
sentido da frase de São Paulo.
Este texto esclarece os primeiros dados do problema.
Trata-se das condições a cumprir para alcançar, segundo o
Apóstolo, o objetivo indicado que leva, na ciência esotéri-

5. I Cor ín tios, XV, 51.


6. Apocalipse, II, 11.

195
ca, o nome de Caminho. São elas: o prosseguimento de
certos estudos, a observância de preceitos; o respeito a
certas regras, a execução dé trabalhos práticos; tudo isto
deve realizar-se com o espírito de rigor que prevalece na
ciência positiva. Porém, ainda muito mais que nesta, é
necessário exercer, desenvolver, aguçar nosso espírito críti­
co. Isto é necessário porque não existem limites precisos
no nosso mundo interno. Se sobre o plano intelectual a
lógica tende a formular definições claras, não é menos
certo que o funcionamento da inteligência está sob o impé­
rio da ilusão, a qual chega a falsear nossos juízos em nume­
rosas circunstâncias. No plano emotivo, a situação é ainda
mais intrincada, porque é muito difícil orientar-se e definir
de forma nítida o que nasce de nós mesmos e o que resulta
de impressões exteriores. Dito de outra maneira: o que é
ou não é EU. A distinção tão fácil do objeto e do sujeito
no mundo físico, é já menos fácil no mundo intelectual e
é, em especial, muito difícil no mundo emotivo, ainda que
seja a vida emotiva o objeto principal do trabalho esotéri­
co. é por isso que se concede tão grande importância, no
ensinamento esotérico, ao desenvolvimento do espírito crí­
tico dirigido a nós mesmos, quer dizer, aos fenômenos da
nossa vida interior.
O homem, enquanto célula da vida orgânica sobre a
terra, participa do desenvolvimento do fíaio da Criação.
A vivificação da Lua, o feto cósmico, é um dos atuais
aspectos desse desenvolvimento. Exige "quantidades consi­
deráveis de energia, que são produzidas, em especial, pelo
setor humano da vida orgânica. A Ilusão, que joga um
papel tão importante na consciência de vigília do homem,
foi introduzida para que este aceite participar, sem rebelar-
se, deste aspecto da obra cósmica.
Sendo-se consciente desta situação e desejando-se dela
fugir deve-se conceber e criar uma tela que proteja contra
esta influência devoradora da Lua. Entretanto, em tal caso é
necessário ter cuidado de não cair de uma ilusão a outra, eri­
gindo uma falsa tela; porque em lugar de uma economia de
forças, se produz, a seguir, uma perda agravada destas. Ainda
que a quantidade de forças necessárias para opor-se valida-
mente â influência da Lua seja considerável. O primeiro im-

196
perativo é, então, deter sua dissipação e fechar as torneiras
que deixam a energia liberar inutilmente emoções estéreis,
especialmente as emoções negativas; fantasias surgidas de
uma imaginação descontrolada, descoordenada ginástica
mental, charlatanismo etc. É necessário atuar, então, como
um sábio ministro de finanças, economizar severamente
nossas forças, sem esterilizar, de toda forma, nem nossa ati­
vidade nem nossa inteligência. Muito pelo contrário, é
necessário armazenar, acrescentar o mais possível estas
torças para constituir reservas. Tal é o duplo aspecto do
primeiro objetivo a alcançar.

C vazio do qual falamos no começo deste Capí­


tulo leva, na linguagem imaginada da Tradição, seja o nome
de cova, seja o de umbral. Mais adiante, empregaremos
sobretudo este último termo, mas aqui utilizaremos o pri­
meiro, a propósito de um fragmento simbólico. Desde sem­
pre, o ensinamento esotérico propôs a seus discípulos, ao
invés de esquemas, fragmentos literários apresentados de
forma simbólica. Estes devem ser aprendidos de memória,
depois representados por um esquema. Também se pratica
o exercício inverso: partindo de um esquema, deve-se,
então, escrever-se um fragmento literário.
Eis qui um desses fragmentos:
Perdido numa selva cheia de bestas ferozes, emudeci­
dos por um confuso sentimento, porém profundo, o ho­
mem busca desvaira da mente uma saída. Extenuado, depois
de haver corrido mil riscos, ei-lo aqui, diante da saída.
Diante de si, apresenta-se um espetáculo que o faz
cair numa admiração misturada de espanto: um castelo de
grande beleza selvagem se levanta para além de um grande
fosso cheio de viva água clara. Atrás do castelo abre-se um
venturoso vale iluminado pelos últimos raios do sol. À
esquerda, o horizonte se escurece, avermelhando, anuncia
uma tormenta.
Maravilhado, preso de um desejo apaixonado de
alcançar o castelo, o homem esquece os riscos e as fadigas
às quais esteve exposto.

197
— Como alcançá-lo? — pergunta-se.
De repente, escuta uma voz que lhe fala do fundo do
seu coração.
— O fosso, diz-lhe, somente pode ser ultrapassado,
nadando... Porém, a corrente é forte, a água, glacial.
Entretanto, o homem sente como se nele surgisse um
fluxo de novas forças.
Decidido, atira-se no fosso. O frio paralisa seu fôlego.
Mas, por uma extrema tensão de vontade, com algumas
braçadas alcança a beirada, salta sobre o primeiro degrau
da escada, onde dá pé. Dominam-no outros três imensos
degraus de granito. Conduzem a uma grande escalinata em
semicírculo defendida por duas torres. Duas portas fecha­
das dão acesso a elas.
Um uivo chega aos seus ouvidos. O homem se volta.
No lugar onde estava, fazia alguns instantes, encontra-se
uma manada de lobos.
Cai o dia. Na penumbra, pode distinguir, todavia, o
fulgor dos olhos das bestas esfomeadas.
De novo escuta a voz que lhe diz:
— Depois de tudo, o risco não era tão grande, porque,
se te houvesses negado a corrê-lo, haverias sido destroçado
pelos lobos.
De repente, aterrorizado pelo perigo do qual havia
escapado, o homem mede as dificuldades que representa a
escalada.
Apenas lenta subir sobre um segundo degrau, desata
uma chuva diluviana, fazendo resvaladiças as pedras, e tra­
vando seus movimentos. Seja como for, consegue tomar
pé. Passa a tormenta, a chuva diminui. Do seu rosto e rou­
pas pinga água sobre a lage.
— Pouco importa, diz a Voz, já tinhas te molhado,
atravessando o fosso.
O homem recobra o fôlego e recomeça a subida. Cai a
noite, aparece dourado e pálido o crescente da lua nova:
sobre a direita, do lado do ocaso.
— Bom sinal, escuta do fundo de si mesmo.
O homem sorri. No momento, gruda-se às mínimas
saliências para ganhar o terceiro degrau. Alcança-o com as

198
mãos e pernas manchadas de sangue. Tão logo toma pé,
uma rajada de vento glacial quase o faz cair. Aplastando-se
no solo, sobe até o pé do muro que forma o quarto degrau
e ali encontra abrigo.
— Isso ainda não é tudo, diz, nesse momento, a Voz.
Não te demores em teu refúgio, porque o degrau pode se
quebrar, então te tragará a terra.
A resistência à tormenta, em lugar de extenuá-lo,
duplica as forças do homem. Sobe, agora, sem demasiada
dificuldade sobre o quarto degrau que, não obstante, tem a
mesma altura que os anteriores.
Ereto, escuta, então, como se fosse um trovão, a
trombeta de alarme. Bruscamente, um bafo ardente alcan­
ça seu rosto. Levanta os olhos. Na obscuridade da noite,
diante de si, ergue-se uma figura luminosa: é o Guardião.
Vestido com armadura e capacete deslumbrantes, o braço
estendido, tem na mão uma espada flamejante dirigida ao
homem.
— Quem és tu, peregrino? — pergunta-lhe. Com que
objetivo e em nome de quem superaste esses obstáculos e
subiste a escada do paraíso?
Transportado por um impulso de alegria inefável, o
homem repete em voz alta as palavras que acaba de escu­
tar no fundo do seu coração. Neste instante, as sente como
suas e responde com coragem ao Guardião:
— Eu sou a Alma que busca a felicidade divina, uma
partícula que aspira unir-se ao Princípio Criador!
— Tua resposta é válida, replica o Guardião.
A porta da torre da direita se abre. A espada volta à
sua bainha. O Guardião pega o homem pela mão e o faz
atravessar o umbral da porta aberta.
A aurora vai dourando o Nascente. Precursora do Sol,
a Estrela da manhã brilha, para além do Vale venturoso.

Eis aqui outro destes fragmentos tirado da literatura


clássica. Trata-se de uma passagem de Tourgueneff.7

7. J. S. Tourgueneff. Poemas em prosa. Edições Le Seuil, 1931. Este poema


foi censurado e proibido na época.

199
Vejo um edifício, enorme. No muro frontal, uma
estreita porta, as folhas abertas, atrás, vapores sombrios.
Defronte ao elevado umbral, uma jovenzinha... Uma linda
jovem russa.
Um sopro surge desses vapores opacos e glaciais, tra­
zendo das profundezas do edifício, dentro de uma corrente
de ar glacial, o som de uma voz pouco audível e pausada.
— Oh, tu, que aspiras ultrapassar este umbral, sabes o
que te espera?
— Sei, responde a jovenzinha.
-• O frio, a fome, o ódio, as zombarias, o desprezo, a
injustiça, a prisão, a doença, mesmo a morte?
-Sei.
— Estás disposta a ser rechaçada por todos? Estás dis­
posta à completa solidão?
— Estou preparada para isso. Eu o sei. Suportarei
todos os sofrimentos e todos os infortúnios.
— Mesmo se não vêm dos inimigos, mas sim dos pa­
rentes e amigos?
— Sim... mesmo deles.
— Bem. Aceitas o sacrifício?
— Sim.
— O sacrifício anónimo? Morrerás e ninguém... nin­
guém saberá nem mesmo a que memória honrar.
— Não tenho por que ter reconhecimento nem pieda­
de. Nem por que ter um nome.
— Estás preparada para o crime?
A jovenzinha baixa a cabeça.
— Mesmo para o crime.
A voz que a interroga não continua imediatamente.
Finalmente recomeça:
— Sabes que um dia poderias não crer mais do que
agora crês e chegar a pensar que te enganaste e que foi por
nada que perdeste tua jovem vida?
— Isso também sei. Mesmo sabendo-o, quero entrar.
A jovenzinha atravessa o umbral, cai uma pesada cor­
tina.
Rangendo os dentes, alguém profere, atrás dela:
— Uma boba!

200
Ao que responde uma voz, vindo de alguma parte:

— Uma santa!

Estes dois fragmentos, ambos de origem esotérica,


dão uma idéia do acesso ao Caminho. À medida que nossos
estudos avancem em profundidade, decifraremos o sentido
de um e do outro, porque ali tudo é significativo. No mo­
mento, chamaremos a atenção do leitor sobre a primeira
indicação, a mais importante para ele: O Caminho tem um
sentido único. Quer dizer que, para aquele que com ele se
compromete, o caminho de volta está proibido. Não em
virtude de qualquer imperativo externo, mas pelo fato de
que cada passo no Caminho modifica irrevogavelmente o
conteúdo interior de quem nele se comprometeu. Em conse­
quência disto, torna-se, mais e mais, estranho ao seu meio;
perde mais e mais seu interesse pela vida exterior, da qual
ontem ainda participava plenamente. O aspecto das coisas
e, sobretudo dos seres, sofre, a seus olhos, uma profunda
mudança. Um dia se surpreenderá ao constatar que certos
rostos, nos quais ainda ontem encontrava uma grande bele­
za, deixam, agora, transparecer marcas de bestialidade. Não
todos, porém muitos.
— O que vês? Exclama para si mesmo Nicolas Gogol,
num acesso de clarividência.
— Neve... e os grunhidos dos porcos...
Quanto mais progride o homem no Caminho, mais se
acentua nele um sentimento de ser estrangeiro. Logo, se
tornará tedioso; um pouco mais tarde, insuportável; final­
mente, odioso, é por isso que "não há profeta sem honra
senão na sua terra, entre os seus parentes, e na sua casa".8
A indicação é precisa, não deixa dúvidas. Aquele que quer
comprometer-se nos estudos esotéricos é convidado a refle­
tir duas vezes e a suspeitar de tudo antes de lançar-se a
ultrapassar o fosso-umbral. Porque, repitamo-lo, não lhe
será mais possível voltar à vida exterior e aili encontrar,

8. Mateus, XIII, 57, Marcoc VI. 4.

201
como no passado, satisfação e prazeres. De toda forma, ao
lado das dificuldades, que são os primeiros resultados de
sua evolução, o homem receberá impressões reconfortan­
tes, sobretudo nas suas relações humanas. Surpreender-se-á
ao perceber, um dia, que certos rostos que ainda ontem lhe
pareciam comuns, resplandecem, hoje, a seus olhos, com
uma beleza deslumbrante. É porque seu olhar, aguçado
pelo trabalho esotérico, adquire a faculdade de penetrar
além da aparência. É entre esses seres mais límpidos que
encontrará seus novos amigos. Sua sociedade o receberá
como um dos seus. Ali será compreendido, e a comunidade
de interesses e objetivos será para todos uma ajuda e um
estímulo.
Em seguida, damos o esquema do Abade Doroteu,
esquema que é apresentado na Tradição Ortodoxa quando
se aborda o problema do Caminho. Significa que aqueles
que caminham em direção à Verdade aproximam-se, pro­
gressivamente, uns dos outros.

Figura 48

Temos falado no Caminho como se ele já nos estives­


se aberto e se encontrasse á nossa porta, de sorte que nos
seria suficiente dar um passo para nele entrar. Na verdade,
não é nada disso.
É necessário, em consequência, fazer-se a idéia de que
a vida exterior é uma verdadeira seiva, onde reinam as
influências "A"; mas que existe, com efeito, um Caminho
traçado pelas influências "B". É necessário compreender,

202
também, que o Caminho é único e que não há caminho
fora do Caminho. Em seguida, é preciso se dar conta de que,
tal como somos, não nos encontramos e não podemos en­
contrarmo-nos no Caminho. Para alcançá-lo, é necessário,
então, encontrar e seguir, depois, um Caminho de Acesso.
Uma reflexão séria e objetiva nos conduzirá a tal conclusão
lógica de que não somente nos encontramos fora do Cami­
nho, mas igualmente fora dos Caminhos de Acesso. Encon­
tramo-nos, de fato, em plena selva, com um só trunfo nas
mãos: o desejo de palmilhar o Caminho.
Se esse desejo é sincero e suficientemente forte, en­
contraremos sem grande dificuldade um atalho conduzindo
a um Caminho de Acesso, pelo qual, finalmente, alcançare­
mos o Caminho. O esquema da figura 49 representa o
homem que se encontra nesta situação.
Vê-se que a direção a tomar para alcançar o Caminho
de Acesso depende do lugar onde se encontre aquele que
quer alcançá-lo. Nenhuma indicação geral pode ser dada.
Simbolicamente, pode-se dizer que, se uma pessoa deve ir,
para alcançar o Caminho de Acesso, na direção norte,
outra, que se encontre do outro lado do caminho procura­
do, andará, necessariamente, para o sul. O mesmo é para o
Caminho.
A prudência e a circunspecção são necessárias tanto
frente às decisões a tomar, como na apreciação dos pró­
prios movimentos e dos demais.

Figura 9

203
capítulo xvi
Quando o homem parte em busca do Caminho, isso
significa, geralmente, que algo ruiu nele. Salvo em casos
excepcionais, esse desmoronamento vem precedido por
uma reestruturação dos valores morais que perdem a seus
olhos o preço que antes lhes havia atribuído. Esta mesma
reestruturação é provocada pelo acúmulo dos choques,
mais ou menos violentos, que fazem nascer as emoções
negativas.
E necessário ser um justo, puro por natureza, e não
ter sido manchado pela vida, para que as emoções positivas
e o êxito conduzam ao trabalho esotérico. Para o comum
dos homens, o êxito e a felicidade em lugar de servir para
despertar, fazem cair no sono mental. O êxito, diz-se, vira
a cabeça. Do ponto de vista esotérico, os choques desa­
gradáveis são uma base de trabalho melhor do que aconte­
cimentos felizes. A humildade exigida pela Tradição é
requerida justamente para servir de barreira contra as in­
fluências nocivas, às quais o menor êxito exterior expõe ao
homem. Contudo, aqui como em todos os lugares, é neces­
sário evitar os extremos. Toda coisa, diz São Tiago, o Sírio,
é adornada peia modéstia. Sem modéstia, mesmo o be/o
toma um aspecto disforme.1
A derrocada anterior traz certas consequências. O ho­
mem começa a ver as coisas sob um diferente aspecto. Efei­
tos diametralmente opostos podem resultar dela. Se o
homem for suficientemente forte e imparcial, não baixará
os olhos diante da implacável realidade. Terá coragem de
ver as coisas de frente e admitir as constatações que se
impõem, por mais desagradáveis que elas sejam. Se tal é o
1. Filocalia, Tiago, o Sírio, 1° sermão.

205
caso, significa que está firmemente comprometido com o
Caminho de Acesso ao Caminho. Pelo contrário, se o ho­
mem é fraco, esta experiência o debilitará ainda mais. A lei
é formal: "Pois ao que tem se lhe dará, e terá em abundân­
cia; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado."2
Se o homem não aceita a sua situação e, em particular, seu
estado interior tal como aparece a favor dos esclarecimen­
tos que a consciência brinda do EU real, ao se obstinar
contra toda evidência em justificar à sua Personalidade,
entrincheirando-se atrás da lógica, da legitimidade, da jus­
tiça, então ele voltará as costas para o Caminho de Acesso
e se afundará ainda mais na selva.
Repitamo-lo: não se pode alcançar o Caminho de
Acesso do Caminho, sem previamente ter passado por uma
falha interior, por uma derrocada moral. A menos que seja
um justo. Mas isso é demasiado raro.
Tal é ou deveria ser a atitude do homem consigo mes­
mo, quando se põe em busca do Caminho. Examinemos,
agora, qual seria, então, sua atitude frente ao meio em que
vive, assim como a atitude desse meio frente ao seu ponto
de vista. A atitude é importante, porque uma atitude incor­
reta no começo, criará dificuldades e obstáculos suplemen­
tares que podem ser evitados. Ainda que a economia de
forças seja rigorosa, porque a caminhada em direção e no
Caminho exige sua mobilização total. Todo gasto injustifi­
cado pode, no final das contas, traduzir-se por fracasso.
é necessário ter isto presente no espírito, porque, em
princípio, a reação do meio para com aquele que parte em
busca do Caminho é negativa. Esta atitude é o resultado da
ação da Lei Geral que, como se sabe, tende a reter o ho­
mem no seu lugar. Não tendo podido fazê-lo pela ação
direta da Ilusão, a Lei Geral, quando perde seu domínio
sobre o homem que se "move", atua indiretamente através
do voltar. É um procedimento clássico. Por sua parte,
depois de ter passado pela quebra moral, aquele que busca
o Caminho torna-se diferente dos homens que continuam
vivendo nos limites admitidos pela Lei Gerai, tomando por

2. Mateus, XIII 12; XXV, 29; Marcos IV, 25; Lucas VIII, 18; XIX, 26.

206
realidade os espelhismos. Por este fato, sentir-se-á mais e
mais isolado. O centro da gravidade de seu interesse se des­
locará, progressivamente, para o trabalho esotérico, que
terminará por absorvê-lo inteiramente. Mas terá todo o inte­
resse em não mostrar a nova atitude que tomou frente à
vida exterior. O "Mundo" será hostil de ofício: não terá
nenhum interesse em provocar essa tendência e ainda me­
nos avivá-la. Chegará o dia — se fica no mesmo meio —
onde, com raras exceções, será odiado abertamente ou em
segredo. Jesus diz:
"Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a
vós, me odiou. Se vós fosseis do mundo, o mundo amaria
o que era seu, como, porém, não sois do mundo... o mun­
do vos odeia."3
E depois:
"No mundo passais por aflições; mas tende bom âni­
mo, eu venci o mundo."4
Ao se refletir seriamente, compreender-se-á que esta
atitude hostil do "Mundo" por aquele que prossegue no
trabalho esotérico é um fenômeno não somente normal,
mas, por assim dizer, obrigatório. Porque, para aquele que
está instalado na selva e está satisfeito por ali se encontrar
aprovar a atitude de quem anda sobre o ataiho, equivaleria
a reconhecer sua própria falha. Por isto é que o "Mundo"
considera a este um "enganado". Quando mais progride no
seu trabalho, mais vem a ser objeto de ódio. É assim que se
disse: "Nenhum profeta é bem recebido na sua própria ter­
ra".5 E além disso: "Não há profeta sem honra senão na
sua terra, entre os seus parentes, e na sua casa."6
Bem antes de ter alcançado o Caminho, aquele que se
comprometeu num atalho deve saber que se trata de uma
viagem sem volta. Isto se traduz, geralmente, como o
temos feito, dizendo que o Caminho tem um sentido úni-

3. João, XV, 18-19.


4. João. XVI, 33.
5. Lucas, IV, 24.
6. Marcos, VI, 4; Mateus, XIII, 57; João, IV, 44.

207
co. Isto é exato, porque aquele que se lança na aventura
que é a busca do Caminho não mais poderá voltar ao esta­
do em que se encontrava antes da partida. A Palavra da
Verdade é uma palavra vivente e trabalha naquele que a
provou, mesmo quando não se preocupe com isso. Saben­
do isto, é necessário refletir bem, antes de tomar o atalho
que conduz ao Caminho. Mas para aquele que já se com­
prometeu com ele, deve ter banida toda dúvida A fir­
meza é, então, indispensável. A alguém que queira segui-lo
Cristo lhe disse: "Ninguém que, tendo posto a mão no ara­
do, olha para trás, é apto para o reino de Deus."7
Repitamo-lo: o Caminho tem um sentido único. Para
aquele que anda nele, a salvação se encontra diante dele,
jamais atrás.

Não é necessário pensar, entretanto, que, se o homem


se comprometeu resolutamente com o atalho, por este
próprio fato, tudo mudou para ele e que, maravilhosamen­
te, sua vida começa de novo. Certo, suas buscas esotéricas
são um elemento novo em sua vida, mas isto não quer dizer
que os elementos antigos, que ontem ainda preenchiam
inteiramente sua existência, desapareceram. Estão sempre
ali. Comumente, constituem um freio para o trabalho eso­
térico. Porque, tomando o atalho, o homem se coloca
sob a égide da Lei de Exceção, para isso, evidentemente,
é-lhe necessário fugir ao império da Lei Geral. Esta evasão
sempre leva o caráter de uma luta, às vezes de uma luta de
morte. Luta, já o dissemos, contra o "Mundo", isto é, con­
tra o conjunto das influências do meio que serão, em prin­
cípio, negativas e hostis. Vencer o "Mundo", tal é a pala­
vra de ordem daquele que aspira a Vida real.
Colocado este problema, trata-se de definir os meios
que permitem resolvê-lo. Atacar de frente as influências
"A" seria repetir a experiência de Dom Quixote atacando
os moinhos de vento. Milhares e milhares de pessoas de boa-
fé pereceram sem proveito, por terem cometido tal erro de

7. Lucas. IX, 62.

208
concepção, insufladas pelo Diabo: crer possível o impos­
sível. Porque o "Mundo" é incomparavelmente mais forte
que o indivíduo isolado, enquanto permanecer homem
exterior.
Aquele que quer beneficiar-se da Lei de Exceção,
deve, em consequência, apostar numa vitória sobre si mes­
mo, sobre seu mundo interno, antes de poder vencer o
"Mundo" e por aí escapar à Lei Geral.
O princípio deste método é simples, é necessário
recordar o postulado de Platão, segundo o qual o seme­
lhante não pode ser percebido e compreendido mais do
que pelo semelhante. Por extensão, as influências exterio­
res não podem atuar sobre o indivíduo, mais do que por
meio dos elementos semelhantes que formam parte de seu
mundo interno. Porque o mundo interno do indivíduo,
também ele, está submetido às influências "A" e às in­
fluências "B '. A acumulação destas últimas forma o
centro magnético que constitui, de alguma maneira, um
novo centro de consciência. À medida que o centro de gra­
vidade do interesse prestado à vida se desloca para o centro
magnético para instalar-se ali finalmente de forma perma­
nente, a pressão da Lei Geral vai se acentuando. E o espíri­
to do conjunto das influências "A", que vigia desde o exte­
rior a aplicação desta Lei, procura atuar sobre o homem
por meio de seus agentes, isto é, pelas influências "A" do
seu mundo interno. Compreender-se-á, facilmente, que
domesticá-las fecha a porta de entrada às influências "A"
exteriores e assim suprime o seu poder.

Na linguagem imaginada da Tradição, diz-se que é


necessário domesticar a besta, transformando o lobo num
fiel cão de guarda. Então, a Lei Gera! não terá nenhum
poder sobre o indivíduo, que se verá inteiramente colocado
sob a égide da Lei de Exceção.

209
Agora se compreenderá melhor a palavra de Jesus:
"Aí vem o príncipe do mundo; e ele nada tem em mim."8
Repitamo-lo: pelo domesticar das influências "A" no seu
mundo interior, ele escapará à ação dessas mesmas influên­
cias que vêm do mundo exterior; dito de outra maneira, ao
império da Lei Geral.
Tal é a teoria. Sua aplicação suscita numerosos pro­
blemas. A variedade, por assim dizer, de casos individuais,
ocasiona a seguinte dificuldade: esses problemas não
entram numa categoria geral, tampouco é possível classifi­
cá-los em grupos que permitam indicar os métodos-tipo,
próprios para resolvê-los. É por isso que o método a seguir
somente pode ser individual. Entretanto, podem ser dadas
algumas indicações que permitirão, se ele não resolver os
problemas que um determinado caso coloque, ao menos
encará-los corretamente. Isto é importante: os problemas
mal expostos comportam ipso facto, soluções erróneas,
manchadas pela Ilusão; e estas, em lugar de simplificarem a
situação, ainda mais a complicam.
Esta observação comporta uma primeira indicação de
ordem geral: uma posição correta, quer dizer objetiva, do
problema, tem como consequência uma simplificação e um
adaramento, ainda que não seja mais que parcial da situa­
ção. Inversamente, se em seguida as medidas tomadas
para resolvê-lo ou aos problemas a situação ainda se com­
plica, isso constitui uma indicação objetiva de um erro de
concepção no começo.
Uma segunda indicação geral é que a soma das influ­
ências "A" é muito mais potente que a força de resistência
do indivíduo, enquanto não tiver sofrido um treinamento
esotérico. Os ataques de frente — já o dissemos— não fazem
mais do que repetir a experiência de Dom Quixote jogan­
do-se contra os moinhos de vento. Estes são efetivamente
os gigantes que lhe haviam aparecido e, neste ponto, o

8. João, XIV, 30-31. A edição chamada de São Jerônimo oferece uma versão
atenuada: ”... não tem nenhum poder sobre mim”. Ela não muda o sentido
narrativo, porém perde o sentido esotérico, que ressalta a justaposição deste
texto com o citado anteriormente. "Eu venci o mundo”.

210
engenhoso fidalgo tinha visto com exatidão. Porém, sua
potência é imaginária; ela é efetiva somente à medida que o
homem a toma por real, em especial quando se trata da
vida interior. Para mostrar as influências "k” no seu mun­
do interior, o homem deve modificar sua atitude em rela­
ção a elas. Tal como é o homem, 1. 2 ou 3, não tem PO­
DER direto sobre os fatos... ainda que o creia, com fre­
quência, apesar da evidência. Porém, se os mesmos fatos
escapam do seu domínio, a atitude que toma diante deles
depende totalmente de si mesmo. A atitude que toma
depende totalmente dele. Esta atitude pode nascer — e é o
caso geral — de um estado sonolento de vigília, segundo o
princípio: Deus vale. Ou o homem pode, com o exame dos
fatos, realizar esforços conscientes. Aqui, reaparece a
absoluta necessidade para aquele que busca o Caminho, de
proceder a uma reavaliação dos valores morais de sua vida,
isto é, a uma avaliação de sua situação em seu meio e a um
exame profundo de todas as suas relações, de todos os
compromissos que o rodeiam. Essa reavaliação de valores
demanda tempo, porque o juízo do homém não tem, e não
pode adquirir rapidamente, a necessária objetividade. O
desenvolvimento do juízo, para a aquisição da objetivida­
de, corresponde a um progresso cumprido pelo homem no
trabalho esotérico.

Deduz-se que esse processo de reavaliação dos valo­


res prossegue nele de maneira permanente.
Nos casos sérios e complicados, como nos casos mais
simples, voltará, muitas vezes, a seus problemas que, a cada
vez, verá sob um novo esclarecimento, mais objetivamente
e, em consequência, de maneira mais desinteressada. E
chegará o dia em que o homem, tendo cessado de enfeitar
os fatos e de justificar-se, cada problema lhe surgirá tal
como é, despojado e sem carga alguma. Neste momento, é
que lhe aparecerá a solução objetiva e justa. Aparecerá
como possível e desejável, mesmo que ela comporte um
penoso processo. Porque nessa solução terá encontrado o
caminho da Verdade que liberta.

211
Desta breve análise se deduz que o preceito de não
mentir para si próprio — aplicado aos casos examinados —
exige uma repetida revisão, incessante, dos valores morais
de nossa vida, nascidos, com frequência, de nosso arbítrio,
estando eivados, conseqúentemente, de numerosos erros.
Temos dito que o conjunto das influências "A", sob o
domínio das quais o homem se encontra, no momento em
que decide lançar-se na busca do Caminho, é muito mais
potente que sua força de resistência. Esta constatação,
conduz á elaboração, frente a si mesmo e ao mundo exte­
rior, de uma política psicológica que permite compensar,
por manobras, a falta de forças e de reservas de que disoo-
mos. É necessário não esquecer que mais forte que possa
parecer na vida exterior, o homem 1, 2 ou 3 do ponto de
vista esotérico, quer dizer, objetivo, é fraco. Tudo nele é limi­
tado, começando pela resistência nervosa. A regra que disto
se duz consiste em que ele deve tanto quanto for possível
trabalhar silenciosamente sem atrair sobre si uma atenção e
pressão crescentes. Senão estará perdido, porque a reação
do "Mundo", a partir deste ponto de vista, será extrema. O
que deve fazer é equilibrar conscientemente, dividindo-as, as
influências "A" de seu mundo interno, de forma a acumu­
lar forças e colocá-las de reserva. Quando o príncipe deste
mundo nada mais tiver a ver com ele, então poderá, sim­
plesmente, dizer-lhe adeus.

Isto, porém, não é possível, repitamo-lo, a não ser


que o homem trabalhe silenciosamente, sem atrair sobre
si a atenção e o espírito conservador da Lei Geral e das
forças da vida sistematicamente hostis a qualquer que pros­
siga na busca da Verdade.

Para isso, são oferecidos dois meios. O primeiro é


colocar-se fisicamente ao abrigo da influência nociva do
"Mundo". Tal é a razão de ser da vida anacoreta e da vida
monástica. Para aqueles que empreendem o trabalho esoté­
rico no mundo, o refúgio deve ser construído pelo próprio
pesquisador, não fora dele, mas dentro de si. A linguagem
imaginada da Tradição diz que o homem deve construir

212
uma morada.9 Esta deve estar provida de todos os meios
de conexão e direção referente aos centros. Também deve
ser sólida o bastante para resistir eficazmente a toda rebe­
lião dos pequenos eus, isolados ou agrupados. Esta constru­
ção leva tempo. Deve ser aumentada sem cessar e aperfei­
çoada para permitir atuar no seu papel de órgão de direção.
O leitor reconhecerá, sem esforço, nesta imagem, o
centro magnético, esse novo centro de consciência que, na
medida de seu crescimento, toma sob seu controle os três
centros inferiores; estabelece uma autoridade absoluta
sobre seu conjunto, sobre cada um deles tomados isolada­
mente e sobre todas as combinações funcionais possíveis
que entre eles podem formar, e entre seus diversos setores.
Isto demanda, evidentemente, trabalho e tempo, muita
paciência e perseverança. Aquele que prossegue no trabalho
esotérico facilitará grandemente sua tarefa se se mostrar
capaz de pensar nele sem parar, como um apaixonado, diz
a Tradição, que pensa na sua bem amada. Ao mesmo
tempo deve esforçar-se por estabelecer permanentemente
seu futuro na morada. Isto é, não somente deve esfor­
çar-se continuamente na presença, como também na pre­
sença de si, o que não é a mesma coisa. O detalhe é impor­
tante. A presença corresponde à consciência do Eu Sou.
Quando o homem conflui e em consequência se
esquece, é simplesmente conduzido por uma das correntes
psíquicas que por ele passam, porém disso não está consci­
ente; acredita atuar, enquanto na realidade é conduzido,
tendo caído no sono mental. Quando pratica o tresvénie,™
isto é, quando está presente, e enquanto durar este estado,
ele se dá conta de que é conduzido. Porém, isso é tudo.

9. KHat, em russo, termo algo arcaico que significa câmara, peça, e também
morada. Escolhemos este último porque é igualmente empregado pela
Tradição para designar o grande espaço que contém e abarca o Universo
inteiro.
10. Trezviet' ou protrezviet' quer dizer, em russo, na linguagem corrente,
voltar ao estado normal depois da embriaguez. Deste modo, a Tradição
indica que a conxiência de vigília é uma espécie de estado de embriaguez,
de alienação mental, a partir do qual é necessário mltar ao estado realmen­
te normal, isto é, àquele que corresponde ao nível superior da consciência,
à consciência do Eu real.

213
Continua, não obstante, sendo conduzido. Isto não deixa
de ser um grande progresso, porque permite-lhe concen­
trar-se na idéia de: Eu Sou. Por aí fará o primeiro esforço
para aderir ao permanente, ao mesmo tempo que se desli­
ga do temporal. Com a fórmula Eu Sou, o homem fará pela
primeira vez um esforço de resistência a ou às correntes
psíquicas que o conduzem edas quais não é outra coisa senão
um brinquedo, E por esta classe de esforços conscientes
que começará a construir sua morada — seu futuro posto
de comando.

Alcançado este ponto, o homem deve vigiar cuidado­


samente para não deixar penetrar no interior de sua mora­
da as influências "A". A morada deve ser, nele, um recanto
sagrado onde somente devem ser admitidas as influências
"B" - "C ' - "D" - "E". Se esta condição não for rigorosa­
mente cumprida, todos seus esforços esotéricos estarão, de
antemão, destinados ao fracasso. Seja como for, fora de
sua morada, as influências "A" seguirão, ainda, longo tem­
po, no seu mundo interno, obedecendo às influências exte­
riores. Continuará vivendo e atuando entre essas influên­
cias "A", entretanto, daí por diante, o homem terá um
refúgio em si mesmo e fará o impossível para consolidá-lo,
para fazê-lo, como se disse, um verdadeiro posto de coman­
do. Porém, isto não será possível a não ser com a expressa
condição de não admitir na morada nenhuma influência
"k" e isto desde o começo do trabalho esotérico.
É evidente que, para alcançá-lo, o homem deve saber
discernir tais influências. Isso é fácil em certos casos, é
totalmente diferente quando a ação da Lei Geral se mani­
festa sob a forma de tentações, de pretextos.11 Sob esta

11. Dito de outra forma: prelstchénié. o que quer dizer encanto, atrativo. Na
doutrina das tentações está desenvolvido em detalhe. Está dividida em
duas partes: "Tentações dos amigos de Deus", que são boas e "Tentações
dos inimigos de Deus", que são más. Ali se encontram indicações práticas
especialmente sugestivas.

214
forma, as influências "A" oferecem toda uma gama de ma­
tizes. Começando pela sedução nas suas clássicas manifes­
tações: dinheiro — mulher — ambição. Ao se opor uma
resistência vitoriosa, o pretexto toma formas mais e mais
refinadas, por assim dizer, paralelas às influências "B".
Estas formas variam ad infinitum segundo os casos pessoais.
Entre os matizes mais sutis, se encontrarão, no plano emo­
tivo, considerações impregnadas de nobreza, de caridade,
de compaixão;12 no plano intelectual, considerações relati­
vas ao "suposto interesse" em benefício do trabalho esoté­
rico. Estas influências paralelas às influências "B", mas de
natureza "À", devem ser descobertas por uma sutil aten­
ção; uma atitude firme e sem ambiguidade deve ser assumi­
da neste aspecto.

Acabamos, então, de constatar que, mesmo pros­


seguindo a busca do Caminho, continuamos vivendo entre
as influências "A", que sempre constituem as circunstân­
cias de nossa vida. Daí por diante, contudo, nossa atitu­
de frente a elas começa a mudar. Antes, nós buscávamos,
em cada caso, dominar um grupo dessas influências, iden­
tificando-nos com outro grupo entre elas. Agora, colocados
na morada, exclusivamente cheias de influências "B", for­
talecidos com nossa arma, a fórmula Eu Sou, nossa atitude
frente às influências "A" toma um novo aspecto. Certo,
elas permanecem como nosso campo de ação; mas não
entramos mais na briga para atirarmo-nos num torneio de
cabeça baixa; daí em diante, atuamos na qualidade de
agentes das influências "B", trabalhando por sua conta,
seguindo seus objetivos, segundo a palavra do rei David:
"Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu nome dá gló­
ria/'13
Esta passagem de um estado ao outro não é feita sem
esforços conscientes, sem trabalho e sem luta. Porque o ho­
mem que hoje decide comprometer-se no atalho em busca

12. Dostoievsky, Os Irmãos Karamazoff: entrevista com o diabo.


13. Salmo, CXV, 1 (Luis Segundo).

215
do Caminho, em princípio tornou-se outro homem; mas de
fato permanece tal como era ontem: fraco, sonolento, dig­
no de piedade. Como neste estado poderia vencer a resis­
tência da Lei Gerai, para definitivamente alcançar o Cami­
nho? Isso é impossível. Para alcançar a meta, previamente
lhe é necessário acumular forças, é por esta razão que se
insiste sobre a necessidade de uma progressão silenciosa no
trabalho esotérico, de maneira a não provocar uma pressão
crescente da Lei Geral, que rapidamente esgotará a reserva
de novas forças, acumuladas ao preço de esforços persisten­
tes na luta contra esta lei. É necessário, então, ganhar tem­
po, retardar tanto quanto for possível a reação da Lei Ge­
rai.
Isto é mais fácil num mosteiro. A ação das influências
"A" ali estão reduzidas quase a zero. Aí não existe a luta
pela existência; está-se beneficiado pela ajuda permanente
de um superior que presumivelmente alcançou um alto
grau de evolução. O trabalho esotérico no século não apre­
senta estas vantagens, naturalmente. A presença de um
guia, sem o qual esse trabalho não é possível, não exclui as
influências da vida às quais se permanece inteiramente
exposto. Nem a construção da morada nem o achado do
guia são, todavia, suficientes. Porque, infalivelmente, o
pesquisador "no mundo terá aflições".14 Será necessário
encontrar forças para fazer frente, depois de ter realizado
os esforços necessários para acumulá-las.
Conseguirá isto adotando uma política esotérica ade­
quada. Esta política, ou, se se preferir, esta tática, consiste
nisto: o homem deve continuar vivendo nas circunstâncias,
como ainda vivia ontem; mas em lugar de confluir para a vida
fictícia, tomando-a como realidade, deve viver, se possível,
em estado de não-confluência e de não-consideração inte­
rior totais, multiplicando em tudo a consideração exterior.
Consideração interior e confluência são as consequên­
cias diretas da sonolência constante do homem, sonolência
que produz esse estranho fenômeno de esquecimento de si
mesmo, quase permanente. Esta sonolência, efeito do peca-

14. João, XVI, 33.

216
do original, fez do homem adâmico, anteriormente suieito
do direito divino, um objeto. E assim ele caiu, com o mun­
do animal e vegetal, sob o domínio da Lei Geral. É a razão
pela qual as influências "A" do mundo exterior penetra­
ram tão profundamente no seu mundo interno, para esta­
belecer sobre ele o domínio do qual agora quer se libertar.
Quanto à consideração exterior, insistimos neste ponto,
exige esforços conscientes de discernimento, de juízo e
uma atenção persistente; isso ultrapassa as forças do
homem, cujas reações têm um caráter mecânico. Essa con­
sideração, de toda forma, não é possível senão por um
esforço de presença de si. Praticando-a de maneira as­
sídua, desenvolvendo-a, aquele que busca o Caminho rece­
be uma dupla vantagem. Por um lado, o esforço de presen­
ça de si acelera a marcha em direção ao Caminho através
do ciclo: presença em si — consideração exterior — presen­
ça de si, que assim tende a fechar-se. Por outro lado, este
exercício tende a construir a tela de que se falou antes,
contra a influência da Lei Geral, cujo papel poderia ser
comparado ao da teimosia.
Eis aqui como este exercício deve ser orientado para se
alcançar o resultado desejado. A consideração exterior
deve adotar a forma de um jogo. O homem que anda em
direção ao Caminho deve compreender que não pode, daí
em diante, participar com entusiasmo na vida, permanen­
te e que lhe é necessário acrescentar a prudência e a cir-
cunspecção, se não quiser ser triturado pelas forças cegas
das influências "A", forças que podem desencadear alguns
movimentos ainda demasiado fracos para moldá-los, mas
demasiado fora da mecanicidade habitual, para passarem
despercebidos. 0 homem não deve mais viver sua vida
como antes, mas manejá-la por esforços conscientes de
consideração exterior.
Deve desempenhar seu papel na vida. Cada homem nasceu
para desempenhar um papel determinado. Mas raros são
aqueles que o representam corretamente, ainda que o foro
interno sempre esteja pronto para dar-lhe a palavra. 0
homem dá mais importância a seus raciocínios e juízos,
sempre deformados por uma vida de mentira, do que a esta

217
voz interior. Assim, falseia seu papel, que não mais coinci­
de com os que o rodeiam, nem com as circunstâncias e o
meio onde está chamado a viver e a atuar. Não somente
esquece seu papel, deformando-o, mas também esquece
que a cena onde ele representa não é a vida real.
Este tema complexo é tratado mais adiante no curso
do Capítulo consagrado ao filme da vida, no qual se exami­
nará o conteúdo autêntico de tal filme, suas deformações,
como eie cruza os filmes das pessoas que sob tal ou qual
título entram em nossas vidas etc. Por enquanto, sem ir tão
longe, devemos dizer que, desde os primeiros passos sobre
o atalho, o homem deve aplicar o princípio: alimentar o
crocodilo para não ser devorado. A mesma idéia pode
expressar-se na forma igualmente imaginada, dizendo que o
comportamento deve ser o de um jogador comprometido
numa partida onde as regras habituais do jogo estão inver­
tidas, isto é, que o que ali ganha, perde, que é um jogo de
“o que perde, ganha". Com efeito, a analogia é muito redu­
zida.

Agora se compreenderá a atitude da Tradição no que


concerne à mentira. Se o homem quer alcançar o Caminho,
desde os primeiros passos pelo atalho, deve, obrigatoria­
mente, cessar de mentir a si mesmo. Do contrário, não
poderá construir sua morada ou, se chega a iniciar sua edi­
ficação, os muros cairão desde o momento em que buscar
enganar-se intencionalmente. No caso de queda, não mais
deve tentar justificar-se, pois em seu foro interno sabe
que as razões que se dá não são válidas. O erro sincero é
perdoável, o erro "arranjado" arruina tudo. Porque ali se
encontra um dos aspectos da blasfêmia contra o Espírito
Santo, essa hipocrisia sobre si próprio, que não será per­
doada nem neste século nem no próximo.15 Trata-se do
célebre fermento dos fariseus que, apesar de todos os ris­
cos, sempre encontra corações humanos onde se depositar.
Junto à proibição de mentir a si mesmo, encon-tra-se
outra regra, menos rígida, mas cuja observância é muito
conveniente para aquele que a pratica. É a de não mentir
15. Mateus, XII, 32; Marcos, III, 29.

218
mais inutilmente. Se a mentira a si mesmo exclui direta­
mente a possibilidade do trabalho esotérico, a mentira inú­
til é um contra-senso», e um contra-senso danoso, porque
toda mentira produz uma perda de energias sutis, as mais
preciosas.
Quando o homem mente, é porque não pode fazer
outra coisa, ou, também, porque está presa de emoções ou
considerações positivas. Esta atitude se justifica numa certa
medida: pode-se dizer, com efeito, neste caso, que "o fim
justifica os meios", mas mentir por mentir é uma prova de
que se caiu no último grau de degeneração.
Vivemos numa época pouco comum. Na linguagem
tradicional estamos numa era colocada sob o signo do mis­
tério da Consumação. Este mistério da Consumação reali­
za-se em graus variáveis por todos os planos da Oitava La­
teral do nosso Raio da Criação. Aplica-se integralmente à
vida orgânica sobre a Terra, por conseguinte, à humanida­
de, cujo centro de gravidade se encontra no mundo cristão.
A humanidade inteira será, então, salva de novo, e a amea­
ça do Fogo, anunciada pelo Apóstolo São Pedro, será des­
cartada16 se a nova elite dirigente, composta de homens
que ao menos tenham alcançado os níveis 4 e 5, formar-se
num futuro próximo. Se tal não é o caso, existem índices
suficientemente numerosos que hoje testemunham a clari­
vidência que inspirou as palavras do Apóstolo: "Virá,
entretanto, como ladrão, o dia do Senhor, no qual os céus
passarão com estrepitoso estrondo e os elementos se desfa­
rão abrasados, também a terra e as obras que nela existem
serão atingidas".17 Isto quer dizer que a experiência se terá
revelado infrutuosa; e, que, depois de ter feito tábula rasa
do passado, a Vontade divina recomeçará uma nova expe­
riência a partir de zero.
Mesmo na pior eventualidade — e nada demonstra que
se produzirá fatalmente —, nenhum dos esforços despendi­
dos na busca do Caminho que conduz à Verdade, ter-se-á
perdido. Porque a vontade do Absoluto de criar uma Uni-

16. II Pedro, III, 10.


17. II Pedro, III, 10.

219
dade a partir de Zero fica como uma constante em todos
os planos, compreendido o individual. Os homens interio­
res são necessários para a consumação desse desígnio,
porque são eles os que trabalham no campo do Senhor.
Assim, "o que debulha, faça-o na esperança de receber a
parte que lhe é devida".18

18. I Coríntios, IX, 10.

220
CAPITULO XVII

Vivemos num mundo regido pela mentira. Mentir e


roubar são os elementos dominantes do caráter humano,
seja qual for a raça, casta ou credo. Qualquer um que afir­
me o contrário, simplesmente profere mais uma mentira. O
homem mente porque num mundo regido pela mentira não
lhe é possível fazer outra coisa, é preciso somar a isto uma
particularidade à primeira vista paradoxal, que é o progres­
so da civilização, fruto da cultura intelectual, que aumenta,
em proporções consideráveis, a necessidade de mentir.
Jesus disse aos judeus: "Vós sois do diabo, que é vosso
pai, e quereis satisfazer-lhe aos desejos... jamais se firmou
na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profe­
re a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso
e pai da mentira."1
É evidente que esta frase não se aplica somente aos
judeus dos tempos bíblicos, mas ao homem de qualquer
época, de qualquer raça a que pertença, desde que ele se
identifique com sua Personalidade, que se encontra obe­
decendo à Lei Geral. Talleyrand dizia que a língua tinha
sido dada ao homem para dissimular seus pensamentos.
De toda forma, seja como for, o homem sente que
não deveria mentir. Em seu foro interno sobrevive uma
vaga reminiscência da pureza da consciência, não perverti­
da, anterior à queda de Adão. Todo ser normal e são sente
mais de uma vez esta nostalgia de uma vida não corrompi­
da e a amarga tristeza de estar preso a essa engrenagem de
estafa moral e material.

1. João, VIII. 44.

221
Entretanto, o homem se permite ligar-se cada vez
mais à mentira na vida, porque a faculdade de mentir lhe
dá a maravilhosa impressão de poder melhor se arrumar nas
difíceis situações. Mas ele esquece que uma vez proferida, a
mentira obriga. Porque o fato imaginário assim criado exi­
ge um contexto adequado que, por seu turno, deve, se não
coincidir, pelo menos concordar com as circunstâncias nas
quais vivemos e atuamos. Se se trata de fatos insignifican­
tes, o é a mentira não produzir consequências sérias. Pelo
contrário, na falta de um contexto adequado, uma mentira
grave conduz, infalivelmente, a uma catástrofe, na medida
da importância do problema. Esta ligação a um contexto
cujos termos nos escapam é a razão profunda pela qual
se aplica, com uma precisão temível, essa lei sobre a qual
Jesus atraiu a atenção, dizendo que "nada há encoberto,
que não venha a ser revelado; nem oculto que não venha
a ser conhecido"2. Assim falando aos seus discípulos-,
Jesus juntou: "Acautelai-vos do fermento dos fariseus,
que é hipocrisia"3, forma de mentira que como já vimos
no capítulo precedente, é mais perniciosa.
Ao retomar diferentes aspectos deste tema, a análise
da mentira permite distinguir as seguintes modalidades:
— mentira aos outros;
— mentira a si mesmo;
— mentira inútil.
A estes casos de mentira é necessário somar casos par­
ticulares:
— A hipocrisia que afeta uma virtude, um sentimento
louvável, com a intenção de enganar a pessoas de
boa fé.
— A mentira integrai caracteriza a pessoa que, à força
de mentir e de enganar em toda ocasião, termina
por acreditar em suas próprias mentiras, e assim
perde todo o sentido da verdade.
Estes dois últimos casos são os mais difíceis de curar:
com efeito, a hipocrisia deve estar profundamente enraiza­
da na personalidade do ser humano, para converter-se num
2. Mateus, X, 26; Marcos, IV, 22; Lucas, VIII, 17; XII, 2.
3. Lucas, XII, 1.

222
elemento de seu comportamento. Vencer esta tendência
em si mesmo requer esforços consideráveis e dolorosos.
Nenhum trabalho esotérico frutífero pode ser realizado
por aquele que não se desembaraçou previamente de tal
vício, é, assim mesmo, arriscado para um hipócrita pôr-se
na busca do Caminho. Porque, de antemão, está condena­
do ao fracasso. O mesmo vale para aquele que se converteu
em vítima da mentira integral. Contudo, se suas mentiras
não estão maculadas de hipocrisia, quer dizer, se o elemen­
to intencionalmente mitômano falta totalmente, este caso
é mais facilmente curável do que o anterior.
Entretanto, é muito raro que as pessoas que sofrem
destes defeitos se interessem pelo ensinamento esotérico.
Orientado para a Verdade, este ensinamento exerce sobre
aqueles que sofrem de tais anomalias psíquicas uma forte
repulsa. Assim, podemos concentrar nossa atenção nos
casos mais difundidos que revelem as quatro modalidades
antes enumeradas.
Geralmente, pode-se dizer que todo homem mente
dessas quatro maneiras, e aquele que se aproxima do traba­
lho esotérico não escapa desta regra. Somente que a ên­
fase varia de pessoa para pessoa. Abstração feita dos
casos em que se mente por mentir, pode-se distinguir na
fonte da mentira toda uma série de motivos que podem
reconstruir a baixeza de nossa natureza, em que se inspi­
ram os sentimentos mais nobres. Por exemplo, não se diz a
verdade às pessoas que sofrem de um mal sem esperança.
Mente-se, também, às vezes, para debilitar o efeito brutal
de uma má notícia. Ainda existem casos onde se busca me­
lhorar a apresentação dos fatos, através da mentira, não
por hipocrisia, mas poder-se-ia dizer, por gosto do maravi­
lhoso, do milagroso. Estes casos merecem a atenção, por­
que saem do comum. Recordar-se-á o texto da prece sacer­
dotal, através da qual Jesus, dirigindo-se ao Pai, diz: "A tua
palavra é a verdade."4 Esta força criadora do Verbo, do
Logos, que é a natureza própria do Filho, atua em nós, no
nosso foro interno.

4. João, XVII, 17.

223
É necessário salientar que, correntemente, atribuem-
se ao domínio do que vêm, na realidade, dos níveis supe­
riores da Consciência. Emudecido por vagas reminiscên­
cias, o homem sente, às vezes, a necessidade de dar um
conselho, uma nota de otimismo, e deforma os fatos, apre­
sentando-os sob um aspecto mais favorável. Tentativa lou­
vável, sem dúvida, porém ineficaz, pelos meios insuficien­
tes que possui. Porque nossa palavra ainda não é palavra da
Verdade. Se ela tivesse a força da palavra de Jesus, a menti­
ra, assumindo força de milagre, teria, realmente, melhorado
os fatos, ainda que estes permaneçam no mesmo contexto,
tais como estavam quando o homem de boa-fé tentava me­
lhorá-los. Esta espécie de mentira poderia ser definida
como uma tentativa de milagre feito com meios insuficien­
tes.

A mentira atenta gravemente contra nosso psiquismo;


deforma os órgãos inacabados da Personalidade, sobre
quem pesa o esforço que deve conduzir ao segundo Nasci­
mento. No homem exterior que começa o trabalho esoté­
rico, tais órgãos, em estado embrionário, são mais ternos e
mais delicados que aqueles do feto físico no ventre da mãe.
Cada mentira é um atentado contra eles e os deforma.
Tempo e esforço são necessários para corrigir o efeito
desses verdadeiros traumatismos e retornar ao estado ante­
rior. Ainda mais; a mentira faz retroceder o homem que
aspira à evolução, e lhe obstrui o caminho do crescimento
esotérico, acentuando o desequilíbrio de seus três centros
inferiores, ainda que ali estejam os órgãos que, apesar de
seu caráter inacabado, permitem ao homem captar as
influências "B" e sentir-se atraído por elas. O crescimento
de tais órgãos, ao se produzir normalmente e em condições
favoráveis, assegura ao homem a formação e o desenvolvi­
mento do centro magnético.
Certamente é difícil, se não impossível, abolir total­
mente a mentira, quando se vive num mundo que é regi­
do por ela. E a razão pela qual a lei religiosa não comporta
a proibição categórica de mentir. Entre os mandamentos
do Decálogo, apresentados sob a forma negativa: Não ma-

224
tarás, não roubarás, não cometerás adultério etc. não se
encontra o imperativo, não mentirás. Não é que a mentira
seja admitida, mas se reconhece que suprimi-la totalmente
é impossível para o homem que vive num ambiente de ilu­
são, essa anestesia pela qual a Lei Geral mantém o homem
em seu lugar, nas malhas de uma rede onde não subsiste
mais que uma estreita margem para os movimentos livres.
O Decálogo somente encara, então, um setor muito peque­
no das relações humanas, onde a mentira está proibida:
trata-se do falso testemunho executado contra seus amigos.
E se a franqueza, "a sede de justiça"5, o "coração puro"6
são louvados no Novo Testamento, ali não se encontra a
interdição formal de mentir.
Vê-se, por isto, que o Ciclo do Filho, como o do Pai,
pertence ao Mixtus Orbis, ainda não transfigurado, mundo
misturado, onde a luz luta contra as Trevas e onde as Tre-
vas ainda não abandonaram seus esforços para capturá-la.
Viver na verdade, excluída toda mentira, é o património
do Ciclo do Espírito Santo, Luz sem Sombra.
Esperando o advento desta Era, a proibição de mentir
se aplica, mesmo assim, a certas individualidades: homens
que alcançaram ou que estão a ponto de alcançar o segundo
Nascimento, isto é, os homens interiores. Sobre este tema,
encontra-se somente uma indicação no Novo Testamento,
porém o texto do Apóstolo São Paulo não deixa lugar a
nenhuma ambiguidade:
"Não mintais uns aos outros, uma vez que vos despo­
jastes do velho homem com os seus feitos, e vos revestistes
do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento,
segundo a imagem daquele que o criou; onde não pode
haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão,
bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo e em
todos."-

5. Mateus, V, 6.
6. Mateus, V, 8.
7. Colossenses, III, 9-11.

225
Se não se dirige mais que a uma pequena minoria de
homens interiores em sua relação entre eles, a proibição
intervém plenamente, desde que se haja alcançado certo grau
de evolução que condicione a atitude na verdade. Também
dirigindo-se a seus discípulos da cidade de Corinto, São
Paulo escreve:
"Entretanto, procurai, com zelo, os melhores dons. E
eu passo a mostrar-vos ainda um caminho sobremodo exce­
lente/'?
Esse caminho, caminho do Amor, é assim definido
pelo Apóstolo:
"O amor é paciente, é benigno, o amor não arde em
ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz
inconscientemente, não procura os seus interesses, não se
exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injus­
tiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acabará; mas,
havendo profecias, desaparecerão; havendo línguas, ces­
sarão; havendo ciência, passará."9
Aquele que alcança o Amor não mais saberá mentir.
Porém, triunfar contra a mentira demanda uma cultura
esotérica inacessível ao comum dos homens.
A análise a qual acabamos de proceder permitirá
àquele que se compromete com o atalho, com a esperança
de alcançar o Caminho, ver mais claramente os dados do
importante problema da mentira. A luta contra a mentira é
uma empresa de longo fôlego. E, antes de tudo, uma luta
contra nós mesmos, isto é, coníra nossas tendências espon­
tâneas e contra esse antomatismo que nos faz voltar cons­
tantemente à mentira.
No Capítulo anterior examinamos sucintamente o
caso da mentira a si mesmo. A mentira inútil feita aos
outros se classifica em uma categoria à parte. Está longe de
ser tão nociva como a mentira a si mesmo e representa o
caso mais fácil de dominar e de curar, bem mais fácil que a
mentira a si mesmo que, às vezes, adota formas extrema­
mente sutis e matizadas, exigindo uma inteira e persistente

8. I Coríntios, XII, 31.


9. I Coríntios, XIII, 4-8.

226
atenção e esforços metódicos e continuados de presença de
si, A mentira inútil feita aos outros não exige nenhum
esforço permanente para ser eliminada: simplesmente é
necessário vigiar e não deixá-la surgir durante uma conversa­
ção. Um simples esforço de atenção, no momento em que já
está em nossos lábios, é suficiente para detê-la. é por isso
que se recomenda começar com esta modalidade de men­
tira, a luta para ceder à veracidade.
É preciso assinalar uma particularidade que distingue
o trabalho relativo a essas duas categorias de mentira. Com­
preende-se que a mentira a si mesmo ou o combate contra
tal mentira não são perceptíveis no exterior. Certamente,
desde que se tenha empreendido a luta, a atitude interior
do homem frente ao que o rodeia, ou mais em geral, fren­
te às pessoas com as quais entra em contato, pode sofrer
certas mudanças.
Entretanto, essas mudanças não devem tomar um
caráter demasiado manifesto, é necessário deixar o tempo
operar os ajustes necessários entre a evolução interior e a
resposta que dá ao meio.
Quando se cessa de mentir inutilmente, isto não é nota­
do ao redor. Pode-se dizer que praticamente a luta contra
essas duas categorias de mentira, muito eficaz para aquele
que a entabula, não atenta contra as relações do homem
com seus semelhantes. É possível, então, lançar-se a ela
sem freios, com a condição, porém, de fazé-lo discre­
tamente, a fim de não atrair sobre si uma pressão crescen­
te da Lei Geral.
A única dificuldade real na luta contra a mentira inú­
til provém de que — como no caso de toda luta interior fácil
— não se lhe dê atenção, enquanto a I íngua continua mecani­
camente, hoje como ontem, sua verborréia mentirosa. É,
habitualmente, depois de uma conversa, que se perceberá
que a decisão de não mais mentir inutilmente perdeu-se de
vista. Entretanto, ganha-se muito fechando essas aspas:
economiza-se assim, muito falatório.

227
Quanto aos esforços tendentes a suprimir a mentira a
si mesmo, eles produzem outras importantes consequên­
cias. Porque tal mentira traz raízes profundas. Situações
paradoxais se apresentam, às vezes, neste domínio. Algu­
mas são de uma sutileza psicológica tal, que é difícil fazê-
las sair da obscuridade. Será suficiente evocar o caso de
matrimónios onde um dos cônjuges, tendo compreendido
que essa união é um erro, persiste, de toda forma, em
tentar convencer-se do contrário, e se é de natureza afetuo­
sa, redobra a amabilidade frente ao seu par, como se tratas­
se, verdadeiramente, de seu ser polar. O absurdo da situação
alcança o cume se o casal reage, adotando uma atitude cor­
respondente, sem sentir por nada um laço sincero e espon­
tâneo de ternura. Este verdadeiro "jogo do amor" faz-se,
evidentemente, para grande proveito da Lei Geral. O risco,
sob o ponto de vista esotérico, é que, por força do costu­
me, tal situação não tome, para um dos esposos - ou mes­
mo para os dois — o valor de um amor verdadeiro. A men­
tira a si mesmo desta natureza nas pessoas amáveis e de boa-
fé às vezes dura dezenas de anos e produz, no final das
contas, trágicas desilusões.
O homem que começa a lutar contra a mentira a si
mesmo deve estar prevenido de tais dificuldades e da pos­
sível derrocada de certos, ou até mesmo de todos os valo­
res, aos quais dava valor. Mas acontece, também, que tais
derrocadas internas se produzem em seres que não estão
próximos do trabalho esotérico e que, em seguida, vão
buscar ali algo mais sólido e mais permanente. Todos
devem saber que o verdadeiro trabalho esotérico começa
somente depois que o neófito tiver passado por um fra­
casso total, seus deuses caídos por terra.

Temos indicado a absoluta necessidade, para aquele


que aspira ao desenvolvimento esotérico, curar tão rápido
como seja possível tal atitude inveterada de mentir a si
mesmo. Agora vejamos este problema sob outro ângulo: o
dos resultados objetivos que o homem obtém, conseguin­
do parar de mentir a si próprio. À medida que aprofunda
e avança nesse trabalho, o que requer tempo, exige-se a

228
coragem de enfrentar as desilusões, implica a confiança em
si e a contínua fé no ensinamento. Então, o que procura
prova um novo sentimento. Certo, às vezes, sentirá amar­
gas penas diante do desaparecimento de seus belos sonhos.
Mas, ao mesmo tempo, se sentirá mais e mais libertado.
Porque sua crescente sinceridade frente a si próprio estabe­
lecerá na sua vida interior uma atmosfera de verdade. A lei
proclamada por Jesus: "E conhecereis a verdade e a verda­
de vos libertará"10 Entrará em vigor para ele. Não é inútil
concentrar-se um instante em tais palavras. Jesus vivia e
pregava num mundo regido pelo regime escravagista. O
termo libertar foi então escolhido para opô-lo ao estado de
escravidão. Depois de cada operação de saneamento inter­
no, por mais doloso que seja, o que procura provará o sen­
timento, cada vez mais amplo e profundo, de ser libertado
da absurda escravidão, arbitrária, que dele fazia, sujeito de
direito divino, um objeto do pretenso direito humano.
Alcançado certo estado desta libertação interior, o
homem compreenderá o pleno valor e a potência mágica
que a palavra Uberdade expressa.

Deve-se insistir no fato de que a conquista desta


liberdade interior é a condição sine qua non do êxito do
trabalho esotérico, porque somente ela abre a possibilida­
de de observar objetivamente o trabalho dos centros infe­
riores. Esta observação é feita a partir do centro magnéti­
co, este posto de comando, domínio, sem participação, das
influências "B", cuja existência permite observações e juí­
zos imparciais.
Quando nosso mundo interior é saneado pela penetra­
ção das influências "B", esses raios do Sol cósmico, quan­
do é construída a morada interior e organizado seu posto
de direção, quando tivermos cessado de mentir a nós mes­
mos, que atitude devemos tomar frente ao mundo e às
pessoas? Já vimos que este problema está longe de ser
fácil de resolver. Procuremos situá-lo mais claramente. Isto

10. João, VIII, 32.

229
deve aproximar-nos da solução. Para que seja correta,
antes de tudo é importante não precipitar as coisas. Se está
escrito, "o reino dos céus é tomado por esforço, e os que
se esforçam se apoderam dele",11 é necessário não esque­
cer de comparar este texto com o princípio segundo o qual
o reino de Deus está em nós e não fora de nós.12 Então
convém recorrer à força e à violência, antes de tudo, para
consigo mesmo. Método sempre útil, às vezes necessário,
para extirpar de nós as raízes da Ilusão, mãe da mentira a si
próprio. Tratando-se do meio em que vivemos, é preciso
cuidarmo-nos de crer que as pessoas ao nosso redor se­
guem automaticamente nossa evolução, etapa por etapa, e
se encontram a cada momento no mesmo nível que pode­
mos ter alcançado em seguida a esforços conscientes
e persistentes, que elas mesmas não fizeram. Tal idéia toca­
ria, certamente, o absurdo: mas o homem não vive no
absurdo?
O sentimento de libertação e o gozo sentido depois de
cada vitória sobre si mesmo superam o entendimento redu­
zido e ainda débil do homem exterior, e ele sente a neces­
sidade de expressá-lo. Esta necessidade é, de certa forma,
legítima. No entanto, é preciso ser prudente. A regra dada
sobre isto pela Tradição é formal: prescreve o calar-se. Mas
seria um erro crer que ela exige, por isso, um verdadeiro
voto de silêncio. Calar-se, no sentido esotérico, quer dizer
falar, porém falar dentro de limites bem definidos: o ho­
mem deve dizer o que é necessário, quando é necessário e
àquele a quem é necessário. Isto exclui, obviamente, todo
charlatanismo e toda loquacidade.
À regra que prescreve o calar-se junta-se outra prescri­
ção, que devemos nos esforçarem respeitar, desde os primei­
ros passos no trabalho esotérico. Ao se observarem as pes­
soas que participam de uma conversação ou de uma discus­
são geral, constata-se, que, em lugar de escutar para si, quer
dizer, para aprender e falar para os outros, cada um — e

11. Mateus, XI, 12. O texto eslavo diz: o reino dos céus é forçado e aqueles
que se tornam violentos se apoderam dele.
12. Lucas, XVII, 21.

230
nós não fugimos a esta regra—fala para si e escuta os outros
por eles, por educação. Cada um quer colocar suas ideias
e procura a ocasião propícia para fazê-lo. Esperando que
isto se apresente, escutamos com mais ou menos paciência
e atenção o que se diz. Claro está que, uma conversação con­
duzida desta forma é uma conversação entre surdos, onde
pouco pode-se aprender e onde, em geral, nada se aprende.
Cada um dos participantes, no momento da separação, leva
consigo a bagagem com a qual veio, com a diferença, entre­
tanto, de que esta classe de conversação provoca uma
perda considerável de energias finas.
Finalmente, recomenda-se encarecidamente permane­
cer sério nos contatos com nossos semelhantes. Este pre­
ceito requer um comentário. Ser sério, neste caso, não sig­
nifica estar triste, ainda menos taciturno. O trabalho eso­
térico exige vigor de espírito. O que se pede é manter uma
atitude ativa positiva e adquirir a serenidade interior. O
homem deve conservar com todos uma atitude benevolen­
te, deve alegrar-se com os felizes, ser caritativo pelos que
sofrem e indiferente com os ruins. Porém, não deve fazer
um papel de palhaço. Ainda que isto possa ser surpreen­
dente, tal atitude é muito mais danosa para aquele que a
adota do que se pensa. Porque ela tende, na realidade, a
rebaixar tudo ao nível da trivialidade e da vulgaridade.
O ser bufão, derivado do ceticismo, se opõe ao entu­
siasmo indispensável para passar os momentos difíceis que
não faltam no trabalho esotérico.

Estas regras estão, então, para ser observadas. A de


calar-se é um imperativo. Jesus dava-lhe grande importân­
cia. Se bem que, ao propò-la a seus discípulos, escolheu
uma forma de insólita brutalidade. Foi para sedimentar
melhor nos seus espíritos a necessidade de preservar o
germe terno e delicado da vida nova, da Vida real, quando
acaba de aparecer o homem, na continuação de seus pri­
meiros esforços conscientes. Jesus diz: "Não deis aos cães o
que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas",13

13. Mateus, VII, 6.

231
e indica a sanção: "Para que não as pisem com os pés e,
voltando-se, vos dilacerem."14
Entretanto, as pessoas, nas quais o centro magnético
aparece e se desenvolve, sentem a necessidade de falar.
Porque "a boca fala do que está cheio o coração".15 Que
elas não compartilhem suas experiências e sua felicidade
senão com aquela que, como elas, empreenderam o traba­
lho esotérico. Por outro lado, a regra de calar-se não é
obrigatória, a não ser no começo do treinamento esoté­
rico. Porque, rapidamente, em virtude de seus esforços
conscientes, o homem começa a evoluir e se dá conta da
futilidade da maior parte das relações mundanas. Misturar
com esta vida os frutos da evolução é sempre um erro.

Voltemos agora às condições gerais exigidas pela pró­


pria natureza do Caminho. O Bispo Teofano insiste sobre
esta questão. Ele diz que a graça divina não atuará em nós
se não fizermos esforços para obtê-la, e também que,
somente os esforços humanos, não podem produzir em nós
nada de estável e permanente. O resultado, diz, obtém-se
pela conjugação dos esforços e da graça.16 Por outro lado,
isto não é mais que um comentário autorizado do texto do
Apocalipse:
"Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a mi­
nha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa, e cearei com
ele e ele comigo."17
A graça divina sob seu aspecto substancial exerce
sobre nós uma constante pressão; porém, cabe a nós "escu-

14. Ibid.
15. Mateus, XII, 34.
16. Não se trata da graça, altitude que absolve, mas da graça divina; blagodat,
em russo, que não é uma atitude, mas uma força real que se concretiza,
ainda que de maneira muito sutil, sob a forma de uma energia substancial
que, em certas condições, atua em nós. Indicações precisas são dadas na
Tradição sobre as diferentes maneiras de recebé-la ou de provocar em nós
a sua ação.
17. Apocalipse, III, 20.

232
tar sua voz'' e "abrir a porta", senão ela não atuará em
nós.18
Todo homem pode escurar a voz; se escuta, as influên­
cias "B" começou a penetrar e a estabelecerem-se nele.
Mas ainda não sabe como se faz para abrir a porta. Para
isso deve encontrar um guia, um homem de influência "C".
0 Bispo Teofano insiste no caráter indispensável desta
ajuda, sem a qual, afirma com firmeza, ninguém pode
alcançar o Caminho. Neste aspecto-, a regra da Tradição é
formal.
O discípulo escolhe livremente o mestre, mas, para
alcançar a meta a que se propõe, deve seguir rigorosamente
as indicações dadas por esse mestre. Verdade evidente,
porém com frequência descuidada...
São João Clímaco diz, sobre este tema: se vês em teu
mestre, enquanto homem, certos defeitos ou certas fraque­
zas, não te detenhas neias, segue suas indicações, senão a
nada chegarás.19
É que o ensinamento esotérico une-se àquele que ensi­
na: suas iniciativas devem permanecer estritamente no qua­
dro fixado pela doutrina e devem contribuir para se alcan­
çar o objetivo proposto.
As condições exigidas para partir em busca do Cami­
nho são quatro:
— Desejo apaixonado de alcançá-lo.
— Discernimento.
— Disciplina férrea.
— Iniciativa.
A primeira condição é formal; se ela não é cumprida,
é inútil prosseguir. Se existe esse desejo apaixonado, então

18. Na tradição hindu fsta se faz uso para isto da seguinte imagem:diz-se que
a graçq — em sânscrito dava, a água da renovação misteriosa, noção aná­
loga á da glag&dat — é comparável à água destinada à rega dos campos
que já se encontra nos canais, mas que está detida pelas represas. Quando
o agricultor abre a represa, a água corre por si mesma e em virtude da lai
de gravidade (Sutras de Patanjali, IV, 3, comentado por Swami Viveke-
nanda).
19. Filocalia.São João Clírrraco, sermão IV, 6.

233
é preciso aplicar se em desenvolver a faculdade de discer-
nimanto por todos os meios. Porque, repítamo-io, vivemos
no Mixtus orbis, onde se encontram entrelaçados os fatos e
os fenómenos reais e imaginários, A dificuldade para sepa­
rá-los provém de que o Imaginário se parece ao Real, como
o espaço mais além do espelho reflete o que se encontra
ma is aquém. Ao se estar rodeado de espelhos, perde-se
facilmente a noção do real. Na linguagem matemática se
escreveria a equação:

1 = R

onde 1, o Imaginário, é igual ao Real, R, multiplicado pelo


imaginário, a raiz quadrada de menos um. Reconhecer por
todos os lados onde ela exista: —Tsignifica adquirir o
discernimento. Ainda que o Imaginário se pareça estreita­
mente ao Real, sempre há entre eles uma diferença que
tende a que, como no caso do espelho, a imagem está
invertida em relação ao objeto. Isto se aplica a toda classe
de produtos do irreal e põe no caminho que leva a revelá-
los.
As influências “f\", entre as quais vivemos, são, por
natureza, imaginárias; mas podem ter consequências ou
produzir efeitos reais. Isto é o que constantemente aconte­
ce na vida. Assim, o medo de um risco imaginário nos leva
a tomar medidas concretas de precaução. A política inter­
nacional de todos os tempos é um exemplo evidente.
Dois métodos práticos são recomendados pela Tradi­
ção para desenvolver a faculdade de discernimento: cada
um deles está adaptado a um dos dois tipos de homem
exterior mais expandidos na nossa civilização:

— O método negativo ou de exclusão é recomenda­


do ao homem 3 ou tipo intelectual,
— O método positivo ou de integração se aplica ao
homem 2 ou do tipo emotivo.

234
O valor destes dois métodos é o mesmo. A diferença
consiste em que, seguindo o primeiro, o pesquisador so­
mente verá a luz no limite de seus esforços. Seguindo o
segundo, será alentado pelas chispas da consciência do EU
real, que poderão acompanhá-lo ao longo do caminho.
Em princípio, o homem 3 tem tendências a não acre­
ditar;20 é, sobretudo, de natureza cética. Voluntariamen­
te, procede a uma análise crítica profunda dos fatos e dos
problemas que se lhes apresentam. O centro de gravidade
da sua vida psíquica é a atividade intelectual. O método
negativo leva em conta tais atitudes: ele aplica a análise
crítica mais moderada e mais imparcial possível na obser­
vação dos movimentos da vida interior. Segue as idas e
vindas dos pequenos eus ou dos grupos de pequenos eus e,
reconhecendo-os como Não-Eu, faz esforços para não se
identificar com eles. Pouco a pouco, o homem separa,
assim, o que, nas correntes de sua vida psíquica, não traduz
uma tendência real, permanente.
Quando suas constatações forem muitas vezes retoma­
das e controladas, o observador se aperceberá de que certos
elementos são permanentes e, em consequência, não
podem, objetivamente, ser submetidos ao princípio de
exclusão: encontrar-se-á, então, não muito distante do
umbral do EU real. Vê-se que tal método não requer um
ideal nem uma fé. Entretanto, apresenta um risco, porque
exige uma imparcialidade total nas observações e nas con­
clusões extraídas. Se essa imparcialidade não for observada
desde o início, o homem corre o risco de cair, ainda, na
Ilusão, de uma maneira mais profunda. Sua situação será,
então, pior que antes. Porque na sequência desses exer­
cícios certa modificação se produz na estrutura da Perso­
nalidade e os laços entre os centros, dos quais falamos no

20. É necessário fazer uma distinção entre as noções: crer e ter fi. Crer é
pouca coisa: os espíritos crêem e tremem (Tiago, II, 19). Assim, todo
mundo crê em Deus ou, ao menos, em alguma coisa: no dinheiro, por
exemplo. Mas essa espécie de crença não tem a força capaz de mover mon­
tanhas.

235
Capítulo VII, se enfraquecem e finalmente caem. Se, neste
momento, o centro magnético não é bastante potente para
estabelecer diretamente sua autoridade sobre os centros,
esse homem se tornará amoral, perigoso para si mesmo e
para os demais.
é a esse caso, entre outros, que se aplica a terrível
parábola de Jesus sobre os "sete espíritos", fazendo "o
último estado daquele homem tornar-se pior do que o pri­
meiro".21
O segundo método é positivo e não pode ser aplicado,
a não ser para o homem 2, em quem o centro de gravidade
da vida psíquica se encontra no coração. Este homem pode
ter um ideal e tratar de alcançá-lo. Para isto tentará reagru­
par os elementos de sua Personalidade, onde se encontram
espalhados os germes do seu ideal. Este método é inverso
do anteriór, porque não tem mais a exclusão dos elementos
instáveis, mas uma síntese, uma afirmação. Se é chamado
de quente, é porque, na sua aplicação, o homem dá livre
curso a suas emoções positivas; opõe-se, assim, ao método
frio de análise crítica e de exclusão. Isto não é mais um
perigo, mas o risco é de outra natureza, provém de um erro
inicial na escolha de um ideal. O fato de que esse ideal
tenha sido aprovado pelo mestre não muda em nada o
problema. Aqui se trata de uma falta de sinceridade consi­
go mesmo. A divergência profunda entre o objetivo procla­
mado e o objetivo não-confesso pode causar desagregamen-
to interno que, se se desenvolve, pode chegar a provocar
um desdobramento da Personalidade.
A análise rápida destes dois métodos de trabalho põe
em evidência o papel da imparcialidade — essa forma de
objetividade da qual o homem é capaz - e, novamente, da
sinceridade. Não fazer uso consciente dessas duas qualida­
des, sobretudo diante de nós mesmos é, na nossa vida,
fonte de numerosos erros, que logo não sabemos como
reparar.

21. Mateus, XII, 43-45; Lucas, XI, 24-26.

236
Existe em nós uma atitude dominante, seja com refe­
rência â imparcialidade dos juízos, seja à sinceridade. Esta
atitude corresponde ao nosso tipoe ela não determina, em
princípio, a escolha do método que devemos seguir. Entre­
tanto, não devemos esquecer que nossa natureza está mis­
turada, tanto pelo fato do nosso nascimento como pelo da
nossa educação e formação. Portanto, praticando dos mé­
todos, aquele que melhor corresponda à nossa dominante,
não devemos perder de vista o outro método, porque um e
outro devem exercer seu papel em nossos esforços em dire­
ção a evolução, mas numa proporção diferente para cada
um de nós.
Além disso, existe outra fonte de confusão que na
prática desempenha importante papel.Com frequência, pen­
samos que nos é suficiente recolher ©conhecimento esotéri­
co e que ele vai, em seguida, produzirem nósefeitoscomo o
de uma droga benfeitora, sem que seja necessário nenhum
esforço de nossa parte. Háaliumerro de concepção bastante
geral. Na realidade, o trabalho esotérico exige esforços
contínuos de análise e síntese, destinados a criar e a con­
solidar cada grão de êxito que possamos colher na cami­
nhada em direção e sobre o Caminho. Porque as influên­
cias que a vida — esse grande caminho — exerce constan­
temente sobre nós estão entrecruzadas e a corrupção tem
ali sua parte. Para escolher, dispomos de certa bagagem, de
certa liberdade de ação e de uma força que nos permite
cumprir esse trabalho de seleção. Esta força é a atenção. A
atenção é o único capital que possuímos. Mas podemos uti­
lizá-lo de maneira boa ou de maneira má. Freqúentemente,
não podemos dizer nem que a utilizamos: deixamos que ela
se disperse. Mas, a atenção não é indispensável, especial­
mente para o controle das emoções negativas que nos
empobrecem, provocando em nós perdas, às vezes consi­
deráveis, de forças acumuladas ao preço de esforços persis­
tentes: isso pode chegar, em certos casos, a provocar em
nós verdadeiras derrocadas. Uma atenção desperta permite,
sempre, detê-las no momento de nascer. Então, sobre este
terreno purificado, podemos dar livre curso às emoções
positivas que nos enriquecem e permitem acumular as
forças necessárias para prosseguir o trabalho esotérico.

237
*
CAPITULO XVIII

0 estudo do Caminho a seguir e descobrir em meio à


vida coloca o problema das relações entre o homem e a
mulher, considerado sob o ângulo esotérico. Já falamos
disso e voltaremos a fazê-lo mais de uma vez, porque se
encontra aí uma das questões mais importantes; muito
mais do que comumente se acredita, ainda que as questões
mais importantes passem despercebidas com demasiada fre­
quência, sobretudo no que concerne aos problemas de
não nos permite conter o saber proposto. Assim, o Evan­
gelho e, em geral, o Novo Testamento têm sido e permane­
cem até nossos dias muito pouco compreendidos. Não seria
arriscado dizer que as Escrituras não são utilizadas, mesmo
pelos especialistas, mais do que numa proporção que não
supera 5 ou 10% de seu verdadeiro conteúdo, é porque
elas são estudadas sem levar em conta as chaves que con­
têm. Sem ir mais longe, é surpreendente a falta de atenção
prestada a certas indicações, explícitas, entretanto.
No que concerne às relações entre o homem e a mu­
lher vistas sob o ângulo esotérico. São Paulo é formal. Diz
que os Apóstolos que, depois de Pentecostes, deviam ser
homens de nível 7, ou pelo menos 6, tinham ao lado de
cada um deles uma Mulher-irmã.1 E, generalizando, diz
que "no Senhor, todavia, nem a mulher é independente do
homem, nem o homem, independente da mulher".2 Aqui
reencontramos a ideia expressada por Platão no mito do
Andrógino.

1. I Coríntios, IX. 15.


2. Ibid., XI. 11. Notar-se-á quando este texto parece contradizer certas práti­
cas e especialmente a prática monástica. A explicação desta aparente con-

239
É necessário dizê-lo claramente: a evolução esotérica,
por sua natureza, é uma evolução que compromete ao mes­
mo tempo ao homem e à mulher. A queda não foi, como
habitualmente se diz, a queda de Adão, mas ao mesmo tem­
po, a de Adão e Eva, tendo ca ído cada um à sua maneira. Des­
sa forma, a redenção não é a obra do homem somente ou da
mulher sozinha, mas dos dois em conjunto, constituindo
cada casal de seres polares uma das infinitas variantes do
primeiro casal.
Sendo assim, vejamos qual é o papel de cada sexo no
trabalho esotérico orientado na direção da grande Reden­
ção. Ele é comparável, sobretudo, àquele que foi feito em
relação à queda. Observemos de mais perto como se deve
compreender tal postulado.
Em princípio, o homem é apto para caminhar direta­
mente para uma meta. A mulher carece desta capacidade.
Se ela quer alcançar um objetivo determinado, deve encon­
trar um homem que persiga esse objetivo e segui-lo.
Pode ser seu marido, seu irmão, um conhecido, um guia
espiritual, pastor ou padre, ou um mestre do trabalho esoté­
rico.

META

MULHER

HOMEM
Figura 50

tradição está em outra parte. O Apóstolo São Paulo, como São João Ba­
tista, não tinha Mulher-irmã a seu lado. E é porque eles pertenciam, com
outras personalidades do Evangelho, a esse grupo de seres de um alto grau
de evolução que, enviados para este fim, participavam conscientemente do
Mistério da Realização sob a condução de Jesus-Messias.

240
Acabamos de dizer que o papel da mulher na curva
de Redenção deve ser comparável àquele usado para
comprometer o casal na curva da Queda. Esse papel foi o
de inspiradora. Tendo concebido em sua imaginação
fértil e artística a noção de Ilusão, a mulher, depois de
haver degustado seus frutos, os ofereceu a seu esposo e,
ambos, caídos aqui embaixo, empreenderam um longo
caminho de estudos, frutos da Arvore do Conhecimento do
Bem e do Mal.
Aqui se retorna ao conceito de discernimento, sem o
qual nada tangível pode ser adquirido no caminho esotéri­
co. A dificuldade reside em que não é dado ao homem ter
uma concepção absoluta do Bem e do Mal. Toda luz que
fulgura em seus olhos suscita, com ela, sombra. Isto deso­
rienta até os seres de boa fé, dotados de uma inteligência
sutil. Quando sinceramente se quer resolver um problema
com equidade, em última análise, encontra-se, sempre, uma
porcentagem mais ou menos igual de argumentos em favor
ou contra a solução proposta. Pode suceder que nada se
decida; ficar imobilizado na expectativa admajorem diabo-
H gloriam... O homem fica imóvel até o momento em que
toma, o mais frequente, por uma impressão fortuita, deci­
sões que orientam sua vida por dezenas de anos.
Para aquele que se compromete na busca do Cami­
nho, tudo muda. Porque esta busca constitui um objetivo
permanente. O homem pode, então, sem sair no momento
do relativo, precisar utilmente suas noções do positivo e do
negativo: tudo o que o guia em direção ao objetivo propos­
to ajuda-o a alcançá-lo ou contribui a que o alcance; é para
ele um Bem. Tudo o que o desvia, o retarda, o detém, o
arrasta para trás e, em geral, cria obstáculos materiais ou
psicológicos sobre o caminho que o conduz à meta procu­
rada é, para ele, um Mal.
Esta definição é geral, porém se aplica especialmente
às buscas do Caminho.
À medida que se aprofunda na progressão pelo
caminho do Esoterismo, intensificam-se as impressões inte­
riores, tomando, às vezes, proporções desmesuradas. En­
quanto que, antes, os choques internos eram superados

241
sem grande pena, agora podem fazer o que procura cair em
verdadeiras crises de consciência.
As vezes, não tendo a força de caráter necessária para
enfrentar esta luta interior entre a afirmação e a negação,
luta que açambarca todo seu ser e o afunda em terríveis
dúvidas, abandona o trabalho. Na realidade, esta luta é
para ele de primeira necessidade. É ela que provoca uma
tensão interior que cresce até parecer, na maior parte dos
casos, fisicamente insuportável. Mas é nesse momento que
as fricções entre as diversas partes da Personalidade advêm
bastante intensas para fazer brotar a chama que ilumina o
coração. Este fogo, tomando as proporções de um braseiro
interno, termina por provocar no homem a soldagem da
qual falamos e que, quando se faz corretamente, constitui
o primeiro resultado importante e tangível do trabalho eso­
térico.
O papel da mulher, se o trabalho é perseguido por
um casal — e se o casal é polar — será tão importante como
o do homem. Inspiradora, ela sustentará o homem durante
as crises de desânimo, inevitáveis nesta classe de trabalho
que, feito corretamente, sempre segue a Lei de Sete. E a
mulher terá, também, os choques complementares neces­
sários, nos momentos em que o trabalho sofrer tempos de
parada na sua progressão, apesar dos esforços do homem.
Pode-se dizer que tal colaboração, se tem êxito desde o iní­
cio, constitui um sério índice positivo da polaridade de
dois seres.
É preciso acrescentar que, atualmente, no umbral da
era do Espírito Santo onde tudo o que é errado — mesmo
de boa-fé — deve cair e quebrar-se, o problema da polaridade
real dos casais ganha uma importância crucial. Os dois seres,
homem e mulher, supostamente polares, não poderiam,
entretanto, ter a certeza absoluta de sua polaridade a não
ser a posteriori, quando tiverem alcançado o nível do
homem 4, no umbral do nível 5. É porque, ainda que
sendo polares em sua essência, cada um arrasta seu passado,
que recobre seu EU real com uma casca diferente. Os seres
a priori polares devem ter em conta este fato, é somente
na medida em que eles se despojem dessa casca que res-

242
plandecerão progressivamente os traços, aportando-lhes em
cada descoberta o fluxo de uma felicidade inefável. Seu
amor conhecerá, assim, uma amplitude sempre crescente. E
eles se amarão cada dia mais, hoje mais que ontem e bem
menos que amanhã. Este é o caminho do Triunfo.
Nesse verdadeiro Romance, a atitude da Dama contri­
bui em muito, senão inteiramente, para a vitória do Cavalhei­
ro. Sua refinada intuição artística compreenderá o que quer
dizer amar: amar com todas as fibras de seu ser até a iden­
tificação integral num impulso glorioso em direção à mes­
ma meta.
Não é suficiente, então, para ela, alcançar e ver e,
durante esse tempo, deixar-se amar. Esta observação é
importante.
Agora vejamos as indicações gerais que nos dá a Tradi­
ção da Ortodoxia oriental, no que concerne ao Caminho.
Ela professa, como já se disse, que o Caminho é uno.
Mas os caminhos de Acesso que conduzem a ele são em
número de três, correspondentes aos três tipos fundamen­
tais do homem exterior. O Caminho está representa do como
um rio jorrando suas águas no Oceano através de três
braços. O rio toma suas águas de um lago aprazível situado
no alto das montanhas que reflete a beleza dos céus.
Para alcançar o estuário e seus braços, é necessário
franquear a barra e navegar entre um grande número de
ilhotas e de recifes.

•'* '' *’: 'tf

Figura 51

243
O Oceano no qual escoa o rio é o Oceano da ignorân­
cia. Os três braços são os três primeiros Evangelhos; o rio é
o quarto, o Evangelho segundo São João; o lago do silêncio
figura como o Apocalipse.

Os três Evangelhos sinópticos estão concebidos de


maneira que cada um deles se adapte ao tipo corresponden­
te de homem exterior: 1, 2 ou 3. O Evangelho segundo São
João se dirige ao homem 4; o Apocalipse ao homem 5.
é revelado por imagens e símbolos, conforme os modos
de percepção do centro emotivo superior. As percepçòes
do centro intelectual superior são de ordem transcenden­
tal e as mensagens desse plano não podem ser expressadas
em palavras.

é inútil procurar compreender o Apocalipse por meio


dos centros da Personalidade. O pesquisador o lerá util­
mente, quando em sua evolução passar pelo estado do
homem 4 para alcançar o do homem 5.
Cada um dos três caminhos de Acesso — os três bra­
ços do rio — que conduzem ao Caminho, está previsto para
cada um dos tipos fundamentais; o primeiro para os ho­
mens 1, e o segundo para os homens 2, finalmente o tercei­
ro para os homens 3.
Conforme a Tradição esotérica, os três Evangelhos
sinópticos têm sido concebidos como guia para alcançar e
seguir os caminhos de Acesso. Foram dotados de símbolos
distintivos, que servem de primeiras chaves:

— Lucas é representado como um Touro relacionado


com ele: dirige-se ao homem 1.
— Marcos é representado por um Leâo Aiado; dirige-
se ao homem 2.
— Mateus é representado com umHomem, dirige-se ao
homem 3.
— João é representado como uma Águia; é reservado
ao homem 4.

244
Em relação à Tradição, o Evangelho é um Livro sob
sete sinetes. Quer di^er que deve ser estudado em sete
etapas consecutivas, tomando, cada vez, o texto do come­
ço ao fim com uma nova chave. As primeiras chaves foram
dadas sob a forma dos símbolos citados antes. Trabalhando
corretamente o Evangelho que corresponda a seu tipo, o
que procura encontrará, neste Evangelho, em cada leitura,
uma nova chave, que abre a porta para a etapa seguinte.
Vê-se que a evolução para a Consciência é uma progres­
são da zona dos efeitos até a das causas. Dito de outra forma,
é uma progressão sobre a escala que vai dos produtos à pro­
dução. Ou ainda, uma caminhada a partir da existência
mecanizada que é a Morte, em direção a uma existência
regida pelo espírito criador que é a Vida.3

À questão das metas somam-se os temas que acabam


de ser tratados. Qual é o objetivo da vida? Qual poderia ser
esse objetivo, essa meta? A vida sem objetivo, do ponto de
vista esotérico, não tem sentido. Este ponto de vista distin­
gue o objetivo direto e o indireto da existência humana. 0
objetivo indireto responde ao caso geral, aquele de todo o
gênero humano. O homem segue a corrente 'da vida e atra­
vés do jogo do nascimento, do amor e da morte, ele serve,
sem sabê-lo, aos interesses da Natureza e contribui para o
crescimento do Raio da Criação.

A meta direta está constituída pelos casos especiais.


Aqui, o homem vai contra a corrente geral da vida para
remontar individualmente a escala dos Cosmos, depois de
ter neutralizado nele a influência que a Lua exerce sobre a
vida orgânica para os fins gerais. A meta direta não pode
ser apressada pelo homem. Somente ao preço de esforços
conscientes.

Estas duas possibilidades abertas ao homem estão


representadas no esquema que se segue:

3. João, V, 24.

245
MESOCOSMO
FATUM Caso Particular
Mundo Planetário Fá

TRITOCOSMO
MIXTUSORBIS Mi MICROCOSMO
Homem
Terra

TESSARACOSMO

REGINA ASTRIS Caso Geral
Lua

Figura 52

A meta direta é una, porém é um objetivo a longo


prazo que não pode ser alcançado a não ser por etapas.
Sobre esta rota devem ser formuladas, pela pessoa, metas a
curto e médio termo, para as que procuram alcançar o
Caminho. Elas devem ser aprovadas pelo mestre. Um só
objetivo deve ser perseguido por vez e não deve estar além
das forças do pesquisador. A analogia que pode ser estabe­
lecida entre este método e aquele em uso para a preparação
das teses universitárias é muito estreita.
Eis alguns exemplos de metas diretas possíveis:

— Tornar-se mestre de si mesmo.


— Adquirir espírito criador, fonte de inspiração.
— Elevar ao nível da consciência de vigília os proces­
sos fisiológicos.
— Adquirir faculdades novas (dons do Espírito Santo
de São Paulo).
— Entrar como membro ativo num trabalho esotéri­
co.
— Regenerar integralmente seu ser etc.

Na medida do desenvolvimento esotérico, o objetivo


formulado no início deverá ser adaptado nas suas modali-

246
des e modificado na sua amplitude. O mestre deve ser con­
sultado quando os movimentos de consciência do discípulo
requeiram tais modificações.

Tratando-se de metas individuais, é necessário dar


algumas indicações no que concerne às condições gerais de
acesso ao trabalho esotérico. Mesmo que ele tenha encon­
trado um mestre que aceite guiá-lo, o pesquisador não
saberia progredir muito se seus esforços tendem somente a
apropriar-se dos conhecimentos e do saber-fazer. Seu caso
é totalmente comparável ao de uma pessoa que prossegue
seus estudos universitários: quando tais estudos tiverem
terminado, o estudante dono de um título busca, geral­
mente, aplicar na vida os conhecimentos e atitudes adquiri­
das. É o mesmo no domínio esotérico. O discípulo, reco­
nhecido apto pelo mestre, deve tratar de pôr em ação os
conhecimentos que acumulou. Se bem que consulte a seu
mestre, jamais deve perder de vista a quarta regra, aquela
da iniciativa pessoal: não deve esperar, mas atuar de forma
que entre num trabalho esotérico, entre aqueles que se
realizam no mundo. Para a época atual pode-se citar dois:
um é análogo à construção e preparação da Arca de Noé, o
que se situa a uns 4.000 anos de nossa era. Nesta época dis­
tante, o trabalho consiste na coleção, em forma compacta,
esquematizada, da soma de conhecimentos e experiências
adquiridas para conservá-las e transmiti-las depois à nova
humanidade.
Outro trabalho esotérico que continua de maneira
mais imediata e mais intensa desde o início do século,
sobretudo depois da Primeira Guerra Mundial, tem por
objetivo contribuir para a formação de um novo tipo huma­
no. O problema do novo homem é colocado diante de nós
pela lógica da História. Tratemos de elucidar os elementos de
tal problema, cuja feliz solução condiciona a sorte da hu­
manidade de amanhã.
Esta análise é tanto mais importante já que, ainda que
geralmente não se perceba muito bem, deveriam ser
criadas rapidamente fórmulas para a preparação do futuro.
A geração montante, com efeito, aquela que a vida com­
promete depois da Segunda Guerra Mundial, poderia e

247
deveria prover os elementos da elite, suscetíveis de assumir
as responsabilidades desde o começo do Ciclo do Espírito
Santo, que deve suceder ao Ciclo atual. A análise à qual
vamos proceder deve permitir, especialmente depois de
considerar a posição do conjunto do problema, situá-lo
em seu contexto histórico, depois, passando do geral
ao particular, apreciar melhor o sentido do trabalho esoté­
rico, que prossegue no mundo para a formação dessa nova
elite e descobrir como se poderia participar utilmente nesse
trabalho e entregar ali seu óbulo àqueles que se compro­
meterem com a busca do Caminho.

A imagem do mundo passa; tudo muda. Sob nossos


olhos, essas mudanças solapavam as bases da antiga ordem.
O desenvolvimento da técnica prossegue sua caminhada
numa cadência acelerada e ninguém saberia detê-la nem
freá-la. As fontes de energia quase ilimitadas e a automati­
zação da produção industrial modificam ou estão a ponto
de modificar tudo e o total do aspecto da vida e da socie­
dade humana. Não é temerário dizer, levando em conta
este fato, que num futuro próximo a luta pela existência,
esse grande regulador da vida humana, passará ao domínio
das recordações históricas. Pelo simples fato de nascer,
o homem será dotado de tudo de que necessita. O que hoje
em dia é um luxo, sera gratuito.
Tal perspectiva pode ser estimulante; também pode
aterrorizar. A necessidade de ganhar seu pão que, até
agora, ocupou ao homem e automaticamente colocou
freios a seus ferozes instintos, será abolida. Que fará,
então, liberado da fadiga do trabalho cotidiano? Já se cons­
tata que um aumento de criminalidade coincide com a
redução geral das horas de trabalho. O período de férias
está marcado por um aumento crescente do número de aci­
dentes e um relaxamento geral dos costumes. Tais índices
devem convidar à reflexão. O homem "livre" pode ser ocu­
pado com uma organização nova do ócio? Porém logo se
terão quatro e mesmo cinco domingos por semana, porque,
com a automatização, prevê-se que será suficiente trabalhar
quatro a seis horas por dia, dois dias por semana..

248
Por qual meio se poderá equilibrar a vida social, quan­
do esta válvula de segurança — a necessidade imperiosa de
ganhar sua vida — terá sido suprimida? Não se sabe. Nenhu­
ma concepção de base parece existir neste aspecto e nenhu­
ma proposição teria já sido formulada pelos responsáveis
pela vida industrial social e política para resolver o proble­
ma. Contudo, está claro que a restrição exercida sobre o
homem pela natureza, dito de outra forma, pela Vontade
divina, não poderia ser substituída por uma restrição hu­
mana, isto é, policial. É preciso, então, buscar a solução do
problema num plano superior.

Definamos a questão. Uma das primeiras consequên­


cias da aplicação generalizada da automatização é a produ­
ção do enfraquecimento do poder político e social do
dinheiro. Com efeito, por que se busca, ainda hoje, ganhar
dinheiro? O dinheiro representa um trabalho equivalente
ao trabalho humano, o dinheiro perderá progressivamente
seu poder de compra. O progresso da técnica garantirá a
todo recém-nascido, tão-só pelo fato de seu nascimento,
uma vida fácil, a satisfação quase ilimitada de suas neces­
sidades naturais.

Nestas condições, pode-se dizer que a humanidade


alcança, sem dúvida, o giro mais importante de sua histó­
ria. Porque, se o dinheiro deve perder seu poder de com­
pra, fatalmente perderá seu poder político e social. O
poder real é hoje detido no mundo por uma minoria que
possui dinheiro — capitalismo — ou que gera o dinheiro —
comunismo. Com a automatização, a rivalidade capitalis­
mo-comunismo perderá seu sentido dia a dia, e, privada de
seu objeto, a grande controvérsia atual ver-se-á superada no
futuro, sem estar, entretanto, resolvida. A questão é saber,
quem formará a elite dirigente da nova era? Dito de outra
maneira, através de que forças novas será substituída a
força agonizante do dinheiro?
A última grande articulação da história da civilização
cristã que pode ser comparada, guardada toda proporção, à

249
presente evolução, é a passagem da Idade Média aos Tem­
pos Modernos. Esta passagem, que se fez do século XIV ao
século XVII, abriu com o século XVIII a página da histó­
ria contemporânea. Para nosso estudo é instrutivo exami­
nar brevemente o processo de substituição da antiga elite
medieval pela elite moderna.
O homem de elite da Idade Média era o cavaleiro. A
cavalaria forma a nobreza, a classe dirigente dessa época na
qual o dinheiro ainda não detinha o comércio da vida pú­
blica e privada: ser nobre significava ser desinteressado. O
nobre se caracterizava, então, por sua força muscular.
Devia ser capaz de levar a armadura, manejar pesadas
lanças e espadas. Desvios e abusos à parte, o cavaleiro, a
quem o vigor e a potência de suas armas faziam mestre
de todos, obedecia, por sua vez, â ordens da Igreja. Devia
ser o defensor dos fracos e dos oprimidos e o regulador da
vida pública baseada no trabalho dos camponeses e dos
artesões.
Sob o ponto de vista intelectual, o cavaleiro típico da
alta Idade Média não brilhava. Normalmente, os grandes
senhores não sabiam ler nem escrever. Seu nível mental
quase não superava o dos campeões de boxe de nossos dias,
e os torneios de então, que recordam os matches, serviam
de exame de capacidade para a gente de elite. Aconteciam
nas cortes dos soberanos e sob os olhos das damas. O povo
não se interessava muito por eles. Com o Renascimento,
que seculariza os espíritos, a idéia medieval do cavaleiro
enfraquece, depois torna-se objeto de piadas da elite em
formação. Miguel de Cervantes, com seu Dom Quixote, dá
o golpe de graça nas antigas concepções. A crescente força
do intelecto toma o lugar da força física, para o restabele­
cimento da hierarquia social. Seguro de si mesmo, de sua
superioridade em relação ao tipo psíquico anterior, o ho­
mem da nova época abriu outros setores das atividades
humanas.
A exploração da Natureza, os cálculos de todos os
tipos, a apreciação do proveito e da ganância, antes despre­
zados, enfim, a nova noção de conforto e um luxo superan­
do ao do Oriente, fizeram parte das categorias sobre as

250
quais se baseia, dai em diante, a escala de valores. O dinhei­
ro, cuja manipulação tinha sido proibida ao cavaleiro pelos
preceitos de Santo Tomás de Aquino, em nome dos princí­
pios religiosos, se tornou insensivelmente o objetivo princi­
pal da atividade da elite. O novo homem aplica-se a defender
seu próprio interesse antes de defender a causa comum, o
que era o dever sagrado da cavalaria.
O regime existente cai. A força física do cavaleiro e a
autoridade reconhecida da Igreja nos assuntos temporais,
cedem lugar à força intelectual. Nasce o racionalismo. E
como, por natureza, a inteligência é agnóstica, a religião
anteriormente força suprema, cede lugar à Ciência.
A vitória desta não foi das mais fáceis. Numa compe­
tição que dura séculos, a Religião busca defender a prima­
zia de suas posições. Só que, e isto lhe foi fatal, ela o faz
por meios superados, quer dizer, recorrendo à força mate­
rial; à espada do cavaleiro, cuja eficácia se debilita pelo
fato da aparição das armas de fogo, ela associa o fogo da
Inquisição. Solapava, assim, a própria base de sua razão de
ser. Esta contradição interna provoca a rebelião da razão
que se traduz pela Reforma. O racionalismo prevalece em
todos os domínios. Na nova sociedade, Voltaire, em lugar
de ser queimado como Giordano Bruno, dois séculos antes
(1600), foi levado ao cúmulo das honras. As Universidades
e os Colégios, criados antigamente sob a égide da Igreja,
se tornaram cidadelas da ciência leiga e do pensamento
liberal.
é antes de tudo por sua capacidade de calcular e apre­
ciar os valores materiais que a nova elite assegura a vitória
do intelectualismo sobre as forças antigas. Suas concep­
ções, que inscreveu na Enciclopédia, fatalmente empur
raram o novo mundo em direção à Revolução. A grande
burguesia e os intelectuais tomaram, assim, o lugar da
nobreza. Era a consagração do longo processo de forma­
ção de uma nova elite.
Conseguido o poder, o homem explorador e calcula­
dor dirige, então, o essencial das atividades do Ocidente até
a Revolução Industrial, ainda uma vez mais chamada a
modificar a face do mundo. Porém, a ciência, que desde
então produziu maravilhas no domínio dos meios, não

251
indicou de nenhuma maneira os procedimentos práticos
que permitissem controlar esses meios. Ela prometeu o
luxo gratuito, mas não instaurou, nem mesmo esboçada, a
nova organização de uma sociedade onde os homens seriam
libertados da escravidão de ganhar o pão com o suor de
seus rostos.

O homem de ciência intelectual criou a máquina. Mas


a máquina é hoje em dia uma força da qual ele não é mais
o mestre. E a classe dirigente de ontem se vê superada,
incapaz de assumir a responsabilidade do poder num mun­
do por vir. Assim, a lógica da História impõe a formação de
uma nova elite dirigente. Resta precisar quais devem ser as
características essenciais do novo homem, e como pode­
mos imaginar a ordem das coisas, própria da nova era, cuja
chegada é anunciada pelo raio, como a descida da Lei no
monte Sinai. Mas desta vez o raio das guerras mundiais, o
fogo e as chamas de Hiroshima e Nagasaki estão nas mãos
dos homens.

Raciocinemos por analogia. Dissemos que a trans­


formação da classe dirigente desde a alta Idade Média até a
época da Enciclopédia dependeu da aparição de um homem
de tipo novo: o Intelectual, o homem de Ciência. E da mes­
ma forma que a Filosofia tinha abandonado sua situação
predominante na Antiguidade em favor da Religião, o mes­
mo acontece depois da Idade Média: esta se eclipsa diante
da Ciência.

Não existem, no total, mais do que quatro modos


de percepção e de estudos do mundo exterior e do mundo
interior do homem: a Filosofia a Religião, a Ciência e a
Arte. E vemos que as civilizações se sucedem em função
do deslocamento do centro de gravidade da atividade
da elite de um ao outro de tais domínios. Assim se esta­
belece u ma periodicidade na história das civilizações.

252
Filosofia Religião

Arte Ciência

Figura 53

Pode-se notar na sucessão destas uma predominância


alternada dos homens tipo 2 e 3. É assim que o período
platónico leva claramente a marca intelectual e isto se pode
constatar em obras como o Banquete, onde se oode cheqar
a encontrar em estado puro a marca da emotividade. Em
seguida vem o período em que arde o sentimento cristão,
que conhece sua culminação na Idade Média e se expres­
sa essencial mente pelos homens do tipo 2, quer se trate do
cavaleiro, do trovador ou do construtor de catedrais. Esta
intensidade emotiva é evidente desde a fundação do cristi­
anismo e se manifesta na personalidade dos Apóstolos.

Reencontramos o tipo 3 no Renascimento; ele se


expande no racionalísmo e no intelectualismo do século
XIX, do qual Augusto Comte é, sem dúvida, um dos repre­
sentantes mais destacados. Finalmente, a proximidade do
Ciclo do Espírito Santo volta a trazer-nos o homem 2, quer
dizer, o domínio emotivo. Porém, isto é verdade somente
parcial mente; na realidade a nova era tem um caráter de
síntese: tende a evadir-se da alternância dos períodos pre­
cedentes e a colocar à frente homens 4, nos quais o equilí­
brio entre as tendências motoras, sensitivas e intelectuais já
se realizou. Esta indicação esclarece certos aspectos do
Apocalipse, em particular aqueles que se referem ao perío-

253
do de mil anos sem guerras, durante os quais Satanás será
preso.4
É necessário observar igualmente que cada um desses
períodos expressa uma dominante e não um absoluto: é
assim que o sábio, fora do seu laboratório, pode expressar
tendências filosóficas, artísticas ou mesmo religiosas, é
difícil apreciar em que medida tais tendências se refletem
na sua obra científica, seja qual for o desejo de objetivida­
de que ele lhe dê. Ao se considerar o conjunto dos trabalhos
científicos de um período determinado, é praticamente
impossível decidir qual é o impacto sobre as teorias cientí­
ficas das concepções filosóficas prevalecentes ou das rea­
ções individuais do ponto de vista dessas concepções. 0
mesmo raciocínio poderia ser aplicado aos períodos em
que a dominante era religiosa ou filosófica, para mostrar
que nenhuma delas pode ser considerada como uma mani­
festação em estado puro, e sim como uma mescla em pro­
porções variadas de certas tendências, traduzindo o caráter
de Mixtus Orbis do nosso Cosmos.
No mundo antigo, colocado sob o signo geral da Filo­
sofia, a Religião e a Ciência foram, por assim dizer, "filoso­
fadas", sendo o homem antigo, por excelência, um espírito
contemplativo. Ele não considerava que tinha por obriga­
ção o "ganhar tempo" e dinheiro. A Idade Média, colocada
sob o signo da Religião, "religioniza" a Filosofia e a Ciên­
cia. Finalmente, na época moderna, chega a vez de a Filo­
sofia e a Religião serem "cientificadas". A arte se distingue
dos três domínios precedentes, na compreensão de todos,
sem deformá-los. é na época colocada sob a égide da Arte,
que as três atividades serão chamadas a expandir-se, toman­
do sua forma natural, sem contração nem hipertrofia, com­
pletando-se, uma e outra, num conjunto harmonioso. A
Arte, atualmente degenerada, intelectualizada, desempe­
nharia na era por vir o papel preponderante que a Ciência
atualmente atua. Penetrará todas as categorias da consciên­
cia humana: a Estética absorverá mesmo a Ética. É o papel da
mulher no advento definitivo da nova era será essencial.

4. Apocalipse, XX, 2.

254
Porém, esta consumação exige que a elite de amanhã esteja
composta de super-homens. Não é preciso espantar-se com
esta palavra. Aos olhos de um cavaleiro de Pedro de
Amiens, os sábios e os técnicos de hoje em dia, com os
meios de edificação e construção, de transporte e de trans­
missão do pensamento que eles criam e dos quais dispõem,
sem dúvida, pareceriam-lhes super-homens. É que neles se
desenvolveram novas faculdades, as faculdades intelectuais
que, no cavaleiro, não existiam mais do que num estado
latente. Igualmente, nos elementos dirigentes da época atual
que constituem quadros levados a desaparecer, dormem,
em estado embrionário, novas faculdades. A expansão
destas fará surgir o Novo Homem. A distância que o separa
dos tecnocratas, do financista, do diplomata, do general
ou do professor de nosso tempo, não será menor do que
aquela que separa o intelectual contemporâneo do cavalei­
ro da Idade Média.

Ao lado da curiosidade, a faculdade principal, cujo


desenvolvimento cria o intelectual, é a capacidade de calcu­
lar e combinar. A característica nova do homem de elite do
Ciclo por vir será sua atitude para distinguir, espontanea­
mente, sem testemunho nem provas para apoiá-lo, o verda­
deiro do falso. Esse homem ooderá também estar dotado
dos dons espirituais dos quais fala São Paulo.5 Naturalmen­
te, aqueles que somarão à cultura existente faculdades
desta natureza se elevarão automaticamente à cabeça da
sociedade humana. Seu poder será aceito como foi aceita a
autoridade do intelectual, quando substituiu o cavaleiro e,
pela mesma razão: a evidência de uma superioridade.

O progresso da técnica coloca o mundo, maise mais,


frente a uma alternativa. Se o já precário equilíbrio entre
as diversas tendências do último século se acentua, a vida
do futuro, ou se colocará inteiramente sob a influência
diabólica e será aniquilada no cataclisma previsto pelo

5. I Coríntios, XIV, 1.

*>55
Apóstolo Sao Pedro,6 ou será santificada para que sejam
estabelecidos, como ele diz, "novos céus e nova terra, nos
quais habitará a justiça"7. Já estão reunidas as condições
para que se realize o primeiro ramo desta alternativa e para
que o mundo seja conduzido a uma catástrofe geral. Está
longe de ser o mesmo, para que advenha a santificação.
Para que uma nova terra possa ser estabelecida, é preciso
que os instintos ferozes do homem sejam dominados no
momento em que as massas liberadas de seu trabalho
disponham de distrações consideráveis. As novas condições
já previsíveis da economia devem, logicamente, trazer um
período de caos, quando o poder do dinheiro, e ao mesmo
tempo o da classe dirigente, caírem. O estado de anarquia
será, então, o prelúdio da catástrofe.
A nova elite, chamada para descartar o perigo mortal
que pesa sobre a humanidade, não poderá formar-se, a não
ser por esforços conscientes, necessários para adquirir as
novas qualidades das quais antes se falou. Será preciso que
os esforços sejam suficientes para que seja satisfeito o prin­
cípio de Equilíbrio, segundo o qual tudo deve ser pago a
preço justo. Quanto ao homem de rua da nova era, ele con­
tinuará vivendo fora da Verdade, como o faz hoje, à medi­
da que lhe seja possível dissimular seus pensamentos. En­
tretanto, estes serão legíveis para toda pessoa que tenha
alcançado um grau de cultura que poderia ser comparada,
guardando todas as proporções, àquela que é dada hoje
pelo ensino universitário.
Esta nova cultura suporá, com efeito, a assimilação
da experiência milenar da humanidade e, mais, o desen­
volvimento metódico das novas faculdades. Estas faltas de
cultivo somente se manifestaram até o presente de forma
esporádica e parcial e não encontram sua aplicação na prá­
tica dentro da organização humana, enquanto o homem de
elite de amanhã seria "nascido de novo", segundo a célebre
frase de Jesus a Nicodemo.8

6. II Pedro. III, 13.


7. Ibid.
8. João. III. 3.

256
A Tradição esotérica ensina que toda civilização não é
mais que a projeção sobre o mundo exterior da consciência
do Eu do homem de elite. O Eu do intelectual difere já do
cavaleiro. Também na civilização por vir, colocada sob o
signo de uma Arte inspirada no sagrado, o homem de elite
será portador de uma consciência do Eu, completamente
diferente das três épocas precedentes. Ele terá, como se
disse, a consciência do Eu real, de um Eu permanente,
inquebrantável, e não mais do Eu pessoal, instável, com­
posto, o que aceita e glorifica nosso tempo. Assim, o edifí­
cio da civilização futura será construído por essa elite, iá
não mais sobre a areia, mas sobre a rocha9, da consciência
do Eu real, essa chispa divina.

Se notará a vantagem da qual o homem 2 dispõe


na época transitória em que vivemos. A formação e as con­
dições do meio que dão importância, ao menos no Ociden­
te, sobre o esforço intelectual, e acessoriamente sobre o
esporte, lhe permitirá mais facilmente equilibrar o seu
organismo psíquico. Certamente, no mundo atual, intelec­
tualizado até a morte, o homem 2 é constantemente ferido
e raramente é daqueles que alcançam os ápices. Em desforra,
se sabe enfraquecer em si as influências "A", particularmen­
te potente na hora atual, enganchando-se mais e mais nas
influências "B", sua natureza emotiva lhe permitirá alcan­
çar mais facilmente e mais rapidamente o equilíbrio de
seus centros inferiores. Para o homem 3 em um "mundo
3" isto é bem mais difícil. Porque sua constituição psíqui­
ca, reforçada pela educação, a instrução e o ambiente inte­
lectual termina por fazer dele um ser perfeitamente unila­
teral. Esta é a causa profunda da debilidade da atual classe
dirigente, que não chega a estabilizar e equilibrar a vida da
sociedade humana, ainda que o progresso da técnica ofere­
ça todos os meios materiais necessários para tal fim. Assim
mesmo, a mulher, dotada de uma emotividade refinada, se

9. Mateus. VII, 24-29; Lucas, VI, 48.

257
encontra colocada em condições que lhe permitem realizar,
no mundo moderno, rápidos progressos no plano eso­
térico. Com efeito, a tendência a desenvolver qualidades
intelectuais na nossa civilização favorece nela o equilíbrio
dos centros, de todas maneiras, com a condição de que,
deslumbrada pelo fulgor da ciência, não perca sua emotivi­
dade feminina e não venha a ser calculista em demasia.
Para ela, esse preservar sua feminilidade é uma pedra de
escândalo, uma prova de concurso em relação à qual se faz
automaticamente a seleção. Deve-se cuidar no adquirir a
mentalidade masculina e identificar-se com esta, porque o
espírito masculino num corpo feminino exclui a possibili­
dade de desenvolvimento esotérico. Tal tipo de mulher, .
desgraçadamente bastante expandido em nossos dias, assim
como o do homem efeminado, representa o que a Tradição
chama de sexo neutro. A união entre pessoas que assim se
desviaram do normal representa o oposto do estado do An­
drógino, essa cúspide da potência humana divinizada. 0
reino de Deus a eles está fechado.10

A evolução do Tritocosmo, quer dizer, da vida orgâni­


ca, é, em princípio, paralela à do Microcosmo, dito de
outra forma: do homem terrestre. As etapas da evolução
possível do homem já foram analisadas. Convirá examinar
agora a maneira como a humanidade evolui considerada
em seu conjunto, porque ela constitui o elemento essencial
da vida orgânica e porque a própria sorte do planeta depen­
de, hoje, da atitude da humanidade frente aos problemas
que a confrontam. Vimos que a sorte da humanidade
depende da formação de uma nova elite capaz de resolver
os problemas da época. De qualquer forma que encaremos
as coisas, somos conduzidos, em última análise, a conside­
rar o problema do novo homem. Temos visto que a forma­
ção esotérica do homem começa pela formação, nele, de
um centro magnético, que é um novo centro de consciên­
cia. As vezes é chamado de quarto centro. A referência
simbólica ao magnetismo provém de que quando se alcan-

10. I Coríntios, VI, 9.

258
çou certo grau de desenvolvimento, esse centro ''magneti­
za" os 987 pequenos eus, geralmente dispersos, e os
conduz, assim, a gravitar na sua órbita, a seguir a orienta­
ção que ele mesmo tem de sua ressonância às influências
"B". O centro magnético pode desenvolver-se normalmen­
te; as etapas desse desenvolvimento foram descritas em
Gnosis I, Capítulo VI. Porém, também pode, em casos
excepcionais, reabsorver-se; mesmo em tais casos, tende
geralmente, a reconstituir-se, como se verá em seguida. A
reabsorção sempre tem a mesma causa. Provém de uma
dualidade das tendências do indivíduo, relacionada com a
constituição do centro. As influências "A", egoístas, vêm,
então, a manchar a pureza do nascente centro magnético.
Disto resultam, para o homem, conflitos internos e sofri­
mentos que não podem ser aplacados a não ser pela reab­
sorção do centro: reconstituindo-se este, tendo em conta a
experiência adquirida. Mas, em tais casos, o renascimento
do centro é precedido de uma nova falha moral que se
reproduz, se necessário, até o momento em que as influên­
cias "B" aparecerem, como o único refúgio possível,
assumindo elas sozinhas a paternidade do centro. Depois
de estar inclinado no abismo, o homem tira água da única
fonte de salvação.
Um processo análogo à formação do centro magnéti­
co atualmente se manifesta na humanidade, ao se conside­
rar a esta em seu conjunto como uma entidade. Esta for­
mação é acompanhada de lutas, de sofrimentos, de angús­
tias, de todos os sintomas de um fracasso geral. A idéia de
uma organização internacional que regerá a humanidade de
acordo com princípios elevados já nasceu há longo tempo.
Entretanto, a primeira tentativa concreta neste sentido foi
a Santa Aliança, cujas tendências estavam longe de ser
puramente idealistas e ela desapareceu rapidamente. Cerca
de um século nrfais tarde, em 1898, a Rússia convida as
principais potências a participarem da Conferência de Haia
e coloca, pela primeira vez, no plano internacional, o
problema da limitação de armamentos; esta idéia pareceu,
então, tão revolucionária que as potências convidadas final­
mente a rejeitaram. O resultado da Conferência de Haia
foi reduzido a um convénio concernente ao trabalho das

259
mulheres. Entretanto, fixa-se a data da segunda conferência,
que não houve, em razão da Primeira Guerra Mundial. Os
horrores desta guerra impuseram aos homens de Estado
responsáveis a idéia de que um organismo internacional
permanente, dotado de certos poderes, era necessário. Este
foi a Sociedade das Nações. Aquele embrião de centro
magnético internacional se reabsorve na sequência de
numerosas crises que solapavam sua autoridade, fraca
desde seu nascimento. E entra na obscuridade em 1939. E
depois da Segunda Guerra Mundial, que custa à humanida­
de uns 50 milhões de vidas, que, em 1945, reúne-se em
São Francisco uma nova conferência que adota a Carta das
Nações Unidas. As Nações Unidas ainda não constituem,
falando propriamente, uma organização mundial. O centro
magnético do homem não toma imediatamente sob sua
autoridade os três centros e todos os seus setores. Todo cres­
cimento exige tempo. Mas o certo é que, em que pese as
críticas exacerbadas de que a Organização das Nações Uni­
das é objeto, ninguém deseja, hoje em dia, sua liquidação.
Não porque se esteja satisfeito dos resultados obtidos; não
porque se acredite — salvo alguns entusiastas — que um bri­
lhante porvir está reservado à organização política interna­
cional, mas porque todo o mundo se dá conta, perfeita­
mente, de que se as Nações Unidas desaparecerem, a situa­
ção internacional se agravaria ainda mais e se acentuariam
as possibilidades de uma terceira guerra mundial, ainda
que uma nova guerra mundial terminaria verdadeiramente
com um incêndio geral do planeta, abrasado pelo fogo e as
chamas das explosões atómicas.
As Nações Unidas representam atualmente um centro
análogo ao embrião do centro magnético do homem que
segue o trabalho esotérico. Esse centro, a menos que os
dirigentes de um ou outro campo tenham se tornado
loucos, não poderá ser descuidado nem liquidado. Normal­
mente, a Organização deve sair reforçada das crises e dos
riscos que lhe é necessário atravessar. Já se percebem os
sinais que fazem pressentir que, com o tempo, ela pode con­
verter-se numa verdadeira organização mundial suscetível
de transformar-se, mais tarde, em autoridade acima dos Es-

260
tados, garantindo no planeta uma ordem justa e durável. Ela
então tomará em suas mãos a coordenação dos esforços
construtivos de toda a humanidade.
Esta tarefa da Organização Internacional não poderá
ser plenamente realizada a não ser pelas gerações seguintes,
quando o novo homem tomará as rédeas do poder.
Seria inútil, no quadro do presente estudo, prosseguir
com proveito o atual exame; ser-nos-á suficiente chamar a
atenção do leitor sobre a surpreendente analogia que se
desprende entre a formação do centro magnético no
homem sob sua forma de organização internacional no
corpo da humanidade inteira.

Estas considerações mostram onde se coloca hoje em


dia o centro de gravidade do trabalho esotérico, é na acu­
mulação dos esforços tendentes a formar o homem de tipo
novo. Ainda que essa formação seja inseparável do trabalho
sobre si; está condicionada por ele, começa por ele. é seu
fio de Ariadne.
Os esforços pessoais conscientes, especialmente os
esforços feitos a dois, entre seres polares e os esforços
comuns das pessoas que já progrediram na busca do Cami­
nho, balizam a rota daqueles que querem servir e participar
utilmente da obra redentora que o trabalho esotérico quer
cumprir hoje no mundo inteiro.

261
CAPITULO XIX

Existe uma diferença essencial entre conhecimento


esotérico e conhecimento puramente intelectual. Este é
independente das qualidades morais do estudante e do
sábio. Assim, ser ruim ou hipócrita não impede, de nenhu­
ma maneira, de se fazer uma descoberta científica. E por
isso que o conhecimento intelectual não supera o plano da
informação; ele não pretende mais que isso, por outro
lado. E unicamente pede, para ser assimilado, os esforços
intelectuais. O conhecimento esotérico é de natureza
diferente. Aqui, a teoria, para ser compreendida e assimi­
lada corretamente, exige não somente um esforço intelec­
tual, mas também uma participação do ser. Isto é muito
mais verdadeiro, ainda, tratando-se da prática, o que
constitui a parte essencial deste trabalho. Não esqueçamos,
tampouco, que o conhecimento esotérico tradicional, fruto
da Revelação, é uma palavra Vivente. Uma vez recebida,
trabalha em nós, mesmo quando não nos preocupamos
com isto, ainda que velemos, ou durmamos, e nos impreg­
na pouco a pouco.
O conhecimento intelectual é de natureza objetiva, no
sentido de que não depende da Personalidade do estudante
ou do sábio: situa-se fora dela. O conhecimento esotérico,
tendo por objeto o próprio estudante, é forçosamente sub­
jetivo. Somente se tornará objetivo, quando a próoria Per­
sonalidade do estudante tiver alcançado o nível objetivo
do ser por sua conjunção com o Eu real. A Tradição chama
a esta classe de conhecimento de água viva,1 em oposição
ao conhecimento puramente intelectual, a água morta. En-

1. Joio, IV, 10.

263
tretanto, no trabalho esotérico, são indispensáveis as duas
ordens de conhecimento. Assim, a formação académica
facilita grandemente esse trabalho pela disciplina de pensa­
mento que impõe e pelo método que inculca. Isto é parti­
cularmente certo quando o ensinamento esotérico faz uso
do método psicológico, como é o caso da presente obra.
Não é necessário, entretanto, chegar à conclusão de que
um estudo puramente racional, teórico, em conseqúência,
intelectual, da doutrina esotérica, jamais pode, ele sozinho,
conduzir sobre o caminho da evolução. Porque a ciência
esotérica ultrapassa o saber e o compreender, objeti­
vos comuns a todas as ciências. Do seu ponto de vista, o
alcance desses objetivos não tem valor a não ser na medida
em que dá acesso ao saber fazer. Vista sob esse ângulo, a ciên­
cia esotérica tem uma natureza semelhante â da ciência
aplicada, com a diferença, porém, de que o sábio e, de
forma geral, o técnico, buscam dominar os elementos
do mundo exterior por meios exteriores, enquanto o ho­
mem interior alcança resultados análogos, podendo ser
ainda maior, apoiando-se no domínio dos elementos
de seu mundo interior. Mas, nos dois casos, o princípio
posto em aplicação é o mesmo: a teoria pura deve ceder
lugar à prática e, nos dois casos, é somente o resultado
que conta.

Observando-se e observando aos outros, o homem


exterior confunde com frequência as noçoes de ser e pare­
cer. Porque, observando através do prisma da Personalida­
de, esse organismo subdesenvolvido, em conseqúência, im­
perfeito, o Real aparece como relativo. Discernir um do
outro é, então, particularmente difícil para o homem 1,2
ou 3 que, não encontrando critério que lhe permita fazer
esta distinção, diz: tudo é relativo, conceito que em si
mesmo é relativo.
Para poder penetrar no sentido profundo das diferen­
ças entre as noções de ser e parecer, é necessário voltar às
fontes, à própria origem da Criação. Quando aparece a Ma­
nifestação na forma do Universo criado, a relação do Infi­
nito a Zero dá lugar à relação de uma quantidade infini-

264
tamente grande a uma quantidade infinitesimal: esta apro­
ximação representa uma variação ínfima do ponto de
vista quantitativo, mas considerável do ponto de vista
qualitativo. Quando essas duas relações, em lugar de serem
diferenciadas, se confundem esta confusão se transmite de
escalão em escalão até o ponto onde ela provoca a não-dis­
tinção entre ser e parecer, os quais representam um longín­
quo reflexo das duas primeiras fórmulas; as relações entre
cosmos vizinhos não são as de zero ao infinito, como se diz
às vezes, mas as de uma infinitesimal a uma infinitamente
grande. Nessas relações, o infinitesimal não é uma quanti­
dade desprezível. Para o Microcosmo, que é o homem, o
espermatozóide, que é o Micromicrocosmo, não é um
zero. O próprio homem dele provém. Assim mesmo, o
homem não poderia ser considerado mais como um zero
frente ao Tritocosmo, que é a vida orgânica sobre a Terra.
O homem a transforma profundamente e até pretende
dominá-la totalmente, é que os três cosmos consecutivos
formam um conjunto e são, neste aspecto, um ciclo fecha­
do. Assim, uma Galáxia como nossa Via-Láctea, que é um
Megalocosmo, forma com o conjunto das estrelas, isto é,
dois Deuterocosmos que a compõem, e com os sistemas
planetários deste, o Mesocosmo, um ciclo fechado. Dito de
outra maneira, uma galáxia é um dos órgãos doMacrocos-
mo, o Grande Universo. As leis que regem este sistema de
três Cosmos sucessivos, abarcados pelas galáxias — Megalo­
cosmo são como o temos visto já, duas vezes mais nu­
merosas que as leis que regem as relações entre as galáxias
no conjunto do Agiocosmo, abarcado pelo Protocosmo.
Enquanto cada galáxia está regida por seis grupos de leis, o
cosmo superior, o Agiocosmo não está regido mais do que
por três grupos de leis. Certas leis da Natureza, às quais
estão submetidos os cosmos inferiores, não funcionam nos
cosmos superiores.2 é necessário fazer notar que no inte-

2. Este fato poderia explicar a recente teoria segundo a qual a lei Je New
ton não seria uma lei universal, mas sim que se aplicaria somente em seto­
res 'imitados do Universo.

265
rior dos grupos de três cosmos a influência de um no outro
não se exerce mais do que de um escalão a outro vizinho, é
assim que o Micromicrocosmo não tem nenhuma influên­
cia sobre o Tritocosmo.

A relação entre o Infinitesimal e o Infinitamente


Grande considerada em seu aspecto dinâmico, quer dizer,
sob a forma de um movimento cíclico perpétuo, conduz,
em última abstração, ao esquema fundamental da Criação e
faz inteligível sua razão de ser. A primeira condição da
Criação é o colocar em ação o princípio de imperfeição e o
princípio de Assimetria, que se deduz daquele: estes, por
seu turno, são a condição do surgimento e da duração da
Existência no Espaço e no Tempo.
A relação entre o Infinito e o Zero perfeito, fórmula
do estatismo universal, expressa o Absoluto no seu estado
não-manifesto:
oo
oo
õ" (I)

O sentido da Criação consiste na realização a partir do


Zero, de uma Unidade semelhante ao infinito. 0 conceito
primeiro da Manifestação se expressa, então, na seguinte
equação, designando por a a Unidade:
a
00
Õ" (II)

de onde, comparando (I) e (II) se extrai:

oo a (III)
õ" "Õ
Ou ainda:

oo = a
(IV)

Esta série de quatro equações designa na linguagem


matemática:
I. O Absoluto não-manifesto.

266
II. A ideia da Criação.
III.A fórmula da pré-Criação (em termos dogmáti­
cos: o Ser gerado e não-criado}.
IV. Tendo alcançado a Criação seu cumprimento;
em outras palavras, neste estado, o Universo
consumado terá superado a distância que o sepa­
ra do Deus Criador. Eis o sentido e a meta da
Manifestação.

A técnica da Criação consiste em que o Zero inicial,


geral, feito voluntariamente imperfeito, está dividido numa
infinidade de zeros diferentes. Isso é a queda das Almas.
Esta queda não foi uniforme, tendo variado, para as dife­
rentes almas, como o indica a Tradição. Este fato condicio­
na a variedade infinita do Universo, ordenado pelo Sistema
dos Cosmos.
Compreende-se que cada um de nós tem sua fonte em
um dos diferenciais do Zero geral feito imperfeito: esse
diferencial é nossa Personalidade. O sentido e a missão de
nossa vida é criar, partindo deste diferencial do Zero, um
diferencial de Unidade. A quarta equação tomará, então,
para o conjunto, a seguinte forma:
06
a <1. a (V)
0
ou, para cada caso particular:

<1 a 7=. (1 0. CO
(VI)

Ressaltamos que o que acabamos de expor é o ponto


de partida para o estudo de um ramo importante da ciên­
cia esotérica: a Doutrina dos Números.

A Personalidade não é, então, mais do que um dife­


rencial do Zero, feito imperfeito e, pelo fato desta imper­
feição fundamental, ela somente tem uma existência em­
prestada. É por isso que o parecer toma para ela o lugar do
ser.
O ponto de evolução onde se encontra atualmente o
Universo inteiro, com tudo o que ele encerra, compreendi-

267
do nele cada um de nós, situa-se entre a terceira e a quarta
etapa; entre apré-Criação e a Criação final. A equação (VI)
permite compreender que a criação a partir de nossa Per­
sonalidade (d. O), pelo trabalho esotérico (*) de uma Indi­
vidualidade nova (d. a ), participa da evolução geral do
Universo. Esta criação contribui, com efeito, pela inserção
de inifinitesimais pertencentes ao Real (d. a) para aperfei­
çoar o conteúdo da fórmula: /• oo
J ?
a -- a (VII)
J o
As ideias expostas abrem os olhos sobre a audácia e a
profundidade da Criação. Pode ser que agora sintamos,
exultantes, o valor inestimável deste empréstimo divino a
nós concedido, deste corpo que, depositário de uma Per­
sonalidade, permite-nos tornarmo-nos Unidade Real. Sem
dúvida, sentiremos um sentimento de terror, pensando com
que ligeireza fazemos uso deste empréstimo. Deixamos desli­
zar nossa vida sem preocuparmo-nos com o problema que
se nos apresenta, sem pensar na condição em que o emprésti­
mo da vida chega ao seu vencimento. Se nos detivermos
um instante para meditar sobre estas idéias, expressaremos
de uma nova maneira o sentido verdadeiroda parábola dos
Talentos.3
Tratemos de entender melhor qual é, no quadro da
procura do Caminho, o meio concreto que permite efetuar
essa transformação maravilhosa do fictício real, de ganhar
cinco talentos por cinco, ou ao menos dois por dois, como
o indica a parábola.
Ser quer dizer ser no Presente. No futuro ainda não
somos e no Passado já não somos mais. Porém, o que é o
Presente?
O Eu da Personalidade, não sendo mais do que um
empréstimo, é um eu provisório, do qual o homem se serve
carente da consciência do Eu real. Com esse Eu da Persona­
lidade o homem vive, seja no Futuro, seja no Passado. A

3. Mateus, XXV, 13-30.

268
Personalidade não tem Presente: este aparece-lhe como
uma linha de demarcação evanescente que, alcançada,
transforma o futuro misteriosamente em Passado, é por
esta razão que a existência da Personalidade aparece como
fictícia, irreal. O que na linguagem corrente nós chamamos
Presente é, na realidade, mais ou menos próximo ao Pas­
sado, onde nós inserimos nossas previsões de certos ele­
mentos prováveis do próximo Futuro, mas um Presente
como uma linha imaginária de demarcação na qual o Futu­
ro se transforma em Passado é falso. Como é falsa nossa
concepção clássica do Futuro e do Passado. Com efeito,
tudo o que existe, existe no Tempo. Um objeto que possua
três dimensões de espaço, construído de matéria sólida,
tem, todavia, necessidade, para afirmar sua existência, do
elemento Tempo: a quarta perpendicular. Ao não se lem­
brar um instante do tempo, não pode existir. O Presente
tem, então, necessariamente, uma extensão. Para o homem
exterior, essa extensão é muito curta e, além disso, indivi­
dual. Porém, se se reduz esse minúsculo Presente ao zero
que se acredita ser, isto é, de fato, a cessação pura e sim­
ples da existência, é dessa forma que advém a morte.
Conforme a forma matemática, nossa existência,
como a do mundo inteiro no qual vivemos, pode ser
expressada na seguinte fórmula: m j p
V Jn
onde v represente a vida, onde nem, nascimento e morte
são os limites do diferencial do Presente.
Esta fórmula permite compreender que o homem tal
como o conhecemos não é — como todo ser — mais do que
uma série sucessiva de golpes consecutivos de um ser inte­
gral, cuja existência se prolonga no Tempo, desde o mo­
mento do nascimento até o da morte. Veremos mais tarde
que o homem tem outro modo de existência, o da Eterni­
dade, e ainda uma terceira, sobre o plano dos princípios,
no seio do Absoluto.
A Tradição ensina que ali se encontra a garantia da
Ressurreição geral prometida, em relação à Consumação,
quando o Universo inteiro e tudo isso e todos aqueles que
o habitam, alcançarão essa meta que é a ascensão da Imper-

269
feição e da Assimetria para o estado de Perfeição. Essa
mesma Perfeição é, do ponto de vista que nos ocupa, exis­
tência no Presente Real, que cobre, para cada Individuali­
dade, todo o seu Passado e todo o seu Futuro.
A Consumação é o fim da Evolução Geral, evolui
lenta e dramática, sucessão interminável de nascimentos,
de sofrimentos e de mortes através de cones de amor e de
trabalho. Esta evolução de conjunto é regida por uma lei
da qual já estudamos outros aspectos, a Lei Geral. Zelosa
em reter cada um no seu lugar, conduz o conjunto da Cria­
ção ao ápice, apesar das variações dos ritmos individuais.
A evolução esotérica segue outra lei e outro caminho.
Este é, por assim dizer, perpendicular à primeira. Segue a
Lei de Exceção, que abre a possibilidade de uma regenera­
ção individual mais rápida, é um caminho íngreme, perigo­
so, sendo necessária coragem para empreendê-lo e onde a
rapidez de resultado somente se obtém a preço de grandes
esforços. E mais, o privilégio de forçar a Lei Geral, de
seguir o estreito caminho* e de beneficiar-se de um guia,
sem o qual a ascensão não seria possível, èstá de acordo com
a condição expressa de que aquele cujos esforços individuais
tenham dado seus frutos, deve estar pronto para retomar o
trabalho para contribuir na evolução geral. Esta regra tem
um corolário que tende a assegurar a continuidade do tra­
balho esotérico, estabelecendo, assim, uma cadeia. Não se
passa ao grau seguinte da evolução, sem ter formado e
colocado alguém no lugar que se deixou.

A duração do Presente dos seres viventes é individual.


Para o homem exterior essa duração é da mesma ordem de
uma respiração. Num estado normal e calmo, ela dura em
torno de três segundos. A ciência positiva alcança empirica­
mente uma concepção comparável, introduzindo na Psico­
logia a noção de Presente mental. Entende-se por este
termo um espaço de Tempo suscetível de ficar abarcado no
seu conjunto numa unidade perceptiva de apreensão dos

4. Mateus, VII, 14.

270
estímulos sucessivos, tendo-se avaliado sua duração média,
em torno de cinco a seis segundos?
A ciência esotérica, que na pessoa considera menos os
caracteres fixos do que as possibilidades de desenvolvimen­
to, indica que o Presente individual pode ser reduzido ou
aumentado. O ritmo respiratório do homem exterior num
estado de calma, com seus três ou quatro segundos, dá o
limite máximo desse presente para esse tipo humano.
É suficiente, então, que o sujeito sinta uma emoção
para que sua respiração fique em ritmo acelerado. Uma
novidade inesperada "corta a respiração"; finalmente, a
respiração pode ser consideravelmente acelerada depois de
esforços físicos. Em todos esses casos, o Presente sofre
uma redução proporcional à aceleração do ritmo e, para
que a pessoa reencontre no plano psíquico e moral seu
estado habitual, é preciso que os ritmos do seu corpo e, em
particular, o ritmo respiratório, tenham voltado ao normal.
Ao contrário, aquele que pudesse manter seus ritmos
dentro de circunstâncias excepcionais, conservaria, com a
integralidade do seu Presente, uma calma e um desapego
que lhe permitiria tomar decisões racionais. E à medida
que existe tal dignidade, é que se situa a superioridade de
um ser. Um aforismo descreve, de forma imaginada, tal
situação: é vitorioso no combate, aquele que escuta o galo­
pe do seu cavalo.
Para aquele que conflui, quer dizer, que abandona as
circunstâncias, o Presente tende a desaparecer, e se nesse
momento toma decisões, é provável que tenha que as
lamentar em seguida. Se o fato de confluir com o trabalho
acelerado de um dos centros inferiores produz a aceleração
da respiração e provoca, em consequência, uma contração
do Presente, a concentração sob todas as formas contribui,
pelo contrário, para a sua extensão. Mais se acentua a con-

5. Vocabulário da Psicologia, publicado com a colaboração da Associação de


trabalhadores científicos, por Henri Piéreon, professor no Colégio de Fran­
ça diretor do Instituto de Psicologia da Universidade de Pari», Press Univer-
sitaires de France. 1951, p. 222.

271
centração, mais advém a respiração lenta. No estado de
contemplação, torna-se imperceptível.
A Doutrina do Presente permite compreender melhor
a imagem do homem investido do "instante". Aquele,
segundo o qual ele vê a si mesmo, e como aparece diante
de seus semelhantes.
Atrás desses choques sucessivos em que cada um
representa um instante, no curso do qual se acende, com
cada respiração, o Diferencial do Presente, encontra-se
todo um Filme. Este FUme representa os limites compre­
endidos entre o nascimento e a morte, a vida de cada um
de nós com todos os seres que nela temos encontrado e o
conjunto das circunstâncias materiais e morais que nos
rodearam. Isto é comparável ao que sucede, quando se
observa o filme de um caleidoscópio através de uma janela
estreita, o que dá a ilusão de um movimento no Tempo; e
a extensão dessa janela de observação é análoga ao Diferen­
cial do Presente.
O exemplo do caleidoscópio vai permitir precisar a
noção de duração do Presente. Na realidade, o Presente
não saberia durar e de fato não dura, porque tudo o que
dura existe no Tempo e, por consequência, cai automatica­
mente no domínio do Futuro-Passado. A expressão: duração
do Presente é convencional. Facilita o acesso de nossa inte­
ligência, que toma o Tempo como uma categoria absoluta, à
noção do Presente, categoria que na realidade se situa fora
do Tempo. Não deveríamos perder de vista esta considera­
ção, quando utilizemos de agora em diante este termo con­
vencional de duração do Presente.
Dissemos que o exemplo do caleidoscópio nos permi­
te dar um sentido real a esta expressão convencional. É
justo, com efeito, medir o Presente individual por Unida­
des de Tempo; só que assim se mede não o Presente, que
em si mesmo não é mensurável, mas a extensão da janela
pela qual se observa o filme do caleidoscópio, ou o filme
da vida. Eis aqui outro exemplo escolhido para compreen­
der melhor esse mecanismo que nos domina.
Imaginemos um ser sem dimensões, isto é, um ponto
vivente dotado de inteligência da primeira dimensão.

272
Admitamos que esse ser vive sobre uma linha geométrica,
digamos, uma curva. Para ele, toda a noção de espaço está
reduzida a três representações: o que está na frente, o que
está atrás e o que está aqui. Além disso, crê que a curva
sobre a qual vive é uma reta, porque seu espírito está des­
provido da noção de segunda dimensão, necessária para
conceber uma curva.
O ser humano, tridimensional no espaço, é monodi-
mensional no Tempo. Vive, então, no Tempo, sobre uma
linha, e não percebe nada fora de tal linha-Toda sua noção
de Tempo se deduz por analogia, como o exemplo ante­
rior, às três representações: na frente — o Futuro; atrás —
o Passado, finalmente aqui — o Presente, que concebe
como não tendo extensão.
Porém, se através de exercícios apropriados nosso
ponto vivente pudesse adquirir o sentido da segunda di­
mensão, e se fosse arrancado da linha geométrica sobre a
qual vive, crendo nada haver em outro lugar, constata­
ria nesse momento, com surpresa, que lhe é possível obser­
var não só o ponto aqui, mas, simultaneamente, dois
troncos da linha, um na frente e outro atrás de si.

Primeiro caso:

Atrás *■ - Aqui Na frente

Figura 54
Segundo caso:

Atrás Aqui Na *rente

novo ponto de observação


Figura 55

273
A analogia com o homem exterior que vive sobre uma
linha do Tempo é completa.
Recordar-se-á que esta linha está curva segundo a Lei
de Sete. Ainda que monodimensional no Tempo, o espírito
humano não pode ver no futuro o desvio desta linha. O
futuro se lhe apresenta não como uma progressão curva, mas
como uma reta do Tempo, tangente ao momento presente.
Esta é uma das principais causas pelas quais o homem se
engana nas suas previsões do futuro.
Ainda que, passando pelo estado do homem 4 e alcan­
çando o do homem 5, aquele que progride em direção ao
Caminho, começa a adquirir a faculdade de percepção da
segunda dimensão do Tempo. Então, da mesma maneira
que no exemplo do ponto arrancado de sua linha, observa
simultaneamente o momento presente, o Futuro e o Pas­
sado. Quer dizer que nossa concepção de Futuro e de Pas­
sado é uma concepção relativa, própria à inteligência limi­
tada do homem exterior e que, na realidade, objetivamen­
te, não existe ma is que o Presente, um filme que compre­
ende para cada ciclo dado, todo o Futuro e todo o Passado.
Agora se compreenderá melhor esta enigmática e gra­
maticalmente absurda frase de Jesus. ''Antes que Abraão
existisse, eu sou."6
Dito isto, é possível dar-se conta de que o trabalho
esotérico sobre si tem por objeto essencial aumentar a jane­
la individual que dá sobre o Presente.
A sucessão interrompida de dP permite ao homem
viver sobre uma linha do Tempo. Mas a janela própria ao
homem exterior não é suficiente para que perceba de uma
só vez o Futuro e o Passado e um grande Presente, e se
beneficie desta existência permanente. Para ele, a janela
deve ser aumentada convenientemente.
A percepção do Eu num Presente, cobrindo, assim, o
Futuro e o Passado, não é outra coisa senão a consciência
do Eu real. O Presente assim concebido é a Vida; a janela
de três segundos é a célebre porta estreita.

6. João, VIII, 58.

274
"Entrai pela porta estreita", diz Jesus. Porque larga é
a porta e amplo o caminho que conduz à perdição. Nume­
rosos são os que vão por aí. Porque "estreita é a porta e
apertado ocaminho que conduz para a vida, e são poucos
os que acertam com ela".7
É também o célebre "buraco de uma agulha".8

Em correlação com o exame dos elementos que faci­


litam ou impedem o acesso ao Caminho, é útil comentar o
último texto citado que, ele mesmo, completa e explica o
anterior. É na ocasião de uma conversação com um homem
jovem e rico que Jesus exclama:
"Filhos, quão difícil é para os que confiam nas rique­
zas entrar no reino de Deusl" 9
E continua:
"É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma
agulha, do que entrar um rico no reino de Deus." 10
A questão está colocada: quem é um rico? é rico, no
sentido esotérico, aquele que atribui valor real à Personali­
dade, que nela coloca sua confiança e suas esperanças. E
isto independentemente de ter muitos bens ou de nada
possuir.
Para comprometer-se com o Caminho, o homem
deve, em consequência, passar por uma derrocada interior
da Personalidade, o que nós chamamos fracasso moral.
Então, conhecerá a vã ilusão do orgulho e o valor real da
humildade. Rico ou através do "fundo da agulha". Porque
se disse:
"Bem-aventurados os humildes de espírito, porque
deles é o reino dos céus."1*

7. Mateus, VII, 14.


8. Marcos, X, 25; Lucas, XVIII, 25.
9. . Marcos. X. 24-25, Lucas, XVIII, 24-25.
10. Mateus, XIX, 23-24; Marcos, X, 25; Lucas, XVIII, 25.
11. Mateus, V, 3.

275
CAPITULO XX

O sistema de exercícios esotéricos está concebido


para que as pessoas que já tenham adquirido certa bagagem
de conhecimentos teóricos possam passar ao trabalho práti­
co. Estão baseados na Doutrina do Presente. Estes exercí­
cios estão divididos em três grupos em correlação com a
estrutura da Personalidade. Estes três grupos de exercícios
apontam para um só objetivo geral: a aquisição do Presente
real. São de ordem física e psíquica. Para que os exercícios
psíquicos possam ser fecundos, é necessário, através de
uma série de exercícios físicos, tomar o corpo capaz de
suportar o trabalho demandado. Não esqueçamos que vive­
mos no corpo e que este, convenientemente treinado e dis­
ciplinado, representa um instrumento maravilhoso; por
outro lado, é o único à nossa disposição para alcançarmos o
objetivo proposto. Não esqueçamos, além disso, que o
desenvolvimento esotérico exige esforços consideráveis,
superando largamente aqueles que, geralmente, se desen­
volvem na vida. Para sustentar estes esforços, o corpo deve
estar são, forte e treinado.
Os três grupos de exerc ícios pratica dos a o longo do Ca­
minho têm por objetivo:

— a dignidade do corpo;
— a dignidade da Personalidade;
— a tomada de contato com os níveis superiores da
consciência.

Verifica-se que estes exercícios tocam os três Eus do


homem: através de um treinamento baseado numa discipli-

277
na rígida do Eu do corpo e do Eu da Personalidade, abre-se
o acesso à consciência do Eu real. Tal é a teoria. A prática
foi elaborada desde tempos imemoráveis: abarca oito gru­
pos escalonados de exercícios.

O primeiro grupo refere-se à limpeza externa: o corpo


deve ser lavado cuidadosamente todos os dias; especial
atenção à limpeza do umbigo, dos pés e dos órgãos geni­
tais. A cabeça deve ser lavada regularmente. As narinas
devem estar limpas para deixar o ar passar livremente.

O segundo grupo de exercícios refere-se à limpeza


interior: a evacuação completa e regular do tubo digestivo
deve ser rigorosamente observada. A prisão de ventre into­
xica profundamente o organismo. Detendo num certo
ponto a função digestiva que se exerce normalmente,
seguindo a Lei de Sete, ela impede a transmutação do Hi­
drogénio e assim priva o organismo da parte mais preciosa
para o trabalho esotérico, a energia solar. A possibilidade
de elevar-se para além dos níveis inferiores da consciência,
escapa, então, ao homem.
Estes dois grupos de exercícios têm grande importân­
cia, ainda que seu valor seja, por assim dizer, negativo,
porque, por si próprios, não conduzem à evolução esotéri­
ca. Porém, são a condição indispensável dessa evolução.
Devem ser cuidadosa mente praticados.
A manutenção da limpeza interna é facilitada por
exercícios físicos cotidianos: caminhada, ginástica e através
de um regime alimentar apropriado. A experiência permi­
tirá, nesse domínio, medir qual é a justa medida, porque
também aqui devemos cuidarmo-nos para não cair no exa­
gero. Esta justa medida será reconhecida pela sensação de
satisfação que provoca. A atividade e o regime a que nos
submetemos devem ser sãos e fortificantes, agradáveis. O
objetivo é voltar a dar ao organismo seu equilíbrio natural,
geralmente rompido pelas condições artificiais em que
vivemos e trabalhamos. A manutenção do nosso peso nos
limites normais testemunha também uma escolha correta
do nosso modo de vida.

278
Na prática monástica, as condições de vida equilibra­
da são fixadas pela Regra, estabelecida há séculos e pratica­
da sob a direção do Ygoumeno (superior). No trabalho eso­
térico realizado neste século, tais condições devem ser estu­
dadas e aplicadas pelo próprio praticante.

O terceiro grupo de exercícios vira a aquisição de


uma postura correta. Os exercícios psíquicos exigem que,
durante sua duração, o corpo se encontre num estado de
equilíbrio tão perfeito quanto seja possível, de forma que
a atenção possa concentrar-se inteiramente sobre o objeto
do exercício. Para isto, a melhor postura, chamada na Tra­
dição, posição do Sábio, deve ser estudada e praticada até
que possa ser mantida numa imobilidade total durante o
tempo desejado. Pratica-se na posição sentado sobre um
banco duro, que não supere 30 centímetros de altura, as
pernas cruzadas, os joelhos separados, as mãos pousadas
livremente sobre os joelhos. A posição dos braços e das
mãos pode mudar em relação ao objeto do exercício. A
condição essencial é que a cabeça, o pescoço e a coluna
vertebral, estejam sobre uma linha reta, vertical. Os ombros
devem estar jogados para trás, a cabeça alta; para os dolico-
céfalos, vigiar-se-á que a parte inferior-posterior da cabeça
seja mantida na horizontal.
Todos os músculos devem estar relaxados. Serão con­
trolados, contraindo-os, em consequência, grupo por gru­
po, no máximo, para bruscamente relaxá-los. O talhe deve
estar arqueado e, as costas e a cabeça, se se observam as
indicações que se acabou de dar, naturalmente se colocam
na posição correta: em linha reta, é preciso, a qualquer
preço, evitar curvar as costas durante os exercícios, por­
que, ao se adotar este mau hábito, corre-se o risco de dani­
ficar o sistema cérebro-espinal. Além disso, deve-se estar
atento a que a coluna vertebral não sobressaia. Finalmente,
vigiar-se-á os músculos das extremidades: mãos, compreen­
didos os dedos, e pés, compreendidos seus dedos, que este­
jam completamente distendidos.
Os olhos devem permanecer imóveis. Sua posição
depende do objeto do exercício dado. Porém, em geral,

279
deve-se olhar reto para frente, seguindo o olhar uma linha
paralela ao chão. Para assegurar-se disto, mede-se a distân­
cia dos olhos ao chão na posição sentado e se fixa à parede
quatro ou cinco metros diante de si, o que a Tradição chama
o Sol. Este é um círculo negro, de três centímetros de diâ­
metro, desenhado sobre um cartão branco. O domínio dos
olhos não é adquirido logo. Geralmente é o último órgão
que se submete à disciplina. Além disso, começa-se o estu­
do da posição do Sábio com os olhos fechados. Mais tarde,
quando se os abre, tolera-se seu movimento com a condição
de que o olhar não saia dos limites do Sol. Finalmente se
alcançará a imobilidade do olhar.
Tal é a descrição sumária da posição do Sábio. Na prá­
tica, ficará exposto a uma multidão de pequenas dificulda­
des. É necessário não se inquietar nem desanimar. Obser­
vando as prescrições dadas, cada um deve buscar e encon­
trar sua própria posição de equilíbrio. Isto, já dissemos,
não acontece de imediato. Quando na continuidade de
repetidos ensaios a posição for perdida parcialmente, pode
ser reencontrada facilmente; será reconhecida pelo seguinte
índice: uma sensação de equil íbrio e de repouso que o pró­
prio sono não dá.
A prática da posição do Sábio constitui a condição
indispensável de êxito dos exercícios tendentes ao domí­
nio dos processos fisiológicos e â disciplina da vida psíqui­
ca. é por isso que se deve dedicar e ser assíduo na busca
desta posição e no seu aperfeiçoamento.
A Tradição ensina outras posturas e outros movimer,
tos, diferentes espécies de genuflexões, prosternações, stol-
postoyanié. Esta consiste em permanecer em pé como se
fosse um poste. Estava em uso, sobretudo na Igreja primi­
tiva do Egito. Escolhiam-se locais muito altos, a cúspide de
colunas, por exemplo, para praticar esta espécie de perfor­
mance, que exigia um domínio considerável do corpo e dos
nervos, maior ainda que o que deve demonstrar um mari­
nheiro no mastreamento de um veleiro.
Para a prática do método psicológico chamado Cami­
nho Real na Tradição, a posição do Sábio, corretamente
sustentada, é suficiente e necessária para quase a totalida-

280
de das exigências do treinamento; quase todos os exercí­
cios psíquicos e uma grande parte dos exercícios físicos
podem ser feitos a partir desta posição.

O quarto grupo de exercícios concerne à respiração.


A respiração representa um volante se se considerar o orga­
nismo como uma máquina. Ela regula o funcionamento e
mantém o ritmo fixado pelo trabalho do coração. A respi­
ração exerce uma influência direta sobre o metabolismo e
contribui para a produção, através do organismo, das ener­
gias mais finas, necessárias para estabelecer um contato com
os centros superiores. Tal influência pode ser aumentada
consideravelmente pelo controle da respiração e, em particu­
lar, pela prática da respiração ritmada. É-nos oferecida esta
possibilidade, pelo fato de que os movimentos da caixa
torácica, que mantém a respiração, têm uma dupla regula-
gem: instintiva-automática e voluntária. A possibilidade de
passar de uma a outra tende, no nosso organismo, a uma
passarela entre as funções fisiológicas e psíquicas. Esta pas­
sarela não é única, mas é muito importante.
Entretanto, se isto abre perspectivas sedutoras em
vista da evolução esotérica, os exercícios respiratórios têm
o inconveniente de que, mal conduzidos, podem produzir
consequências indesejáveis, ou mesmo perigosas. Por exem­
plo, provocar um enfisema pulmonar ou desarranjar o fun
cionamento do coração.
O primeiro preceito relativo ao controle da respiração
é simples. Ensina que, uma vez tendo os pulmões cheios, é
necessário reter o ar. Esta indicação encontra-se nos textos
da Tradição Ortodoxa, que remonta a épocas muito lon
gínquas. Entretanto, a duração durante a qual essa suspen
são do ritmo respiratório deve ser mantida não está defini­
da. Continuando, toda uma série de variantes relativas ao
colocar em prática esse preceito foram elaboradas. Porém,
por causa dos riscos que comportam se são aplicados scci
discernimento, não se deve fazer uso delas sem o controle
pessoal e contínuo de um mestre.
Desde o começo do século encontra-se no comércio
uma quantidade de livros de fonte hinduísta, budista ou

281
outras, o mais frequente, comentados por autores ociden­
tais, tratando da questão da respiração controlada e
ritmada. Sem entrar numa análise crítica dos sistemas e das
indicações que dão estas obras, devemos insistir sobre o
perigo de praticar exercfeios respiratórios extraídos de sim­
ples indicações livrescas, sem a presença assídua de um guia
competente.
Na prática monástica ortodoxa, e sobretudo no ramo
russo da tradição, o canto litúrgico enquanto exercício res­
piratório desempenha um papel importante. Em certos mos­
teiros, por exemplo, em Laura Petchera de Kiev, esse canto
se executa à plena vnr. Ao mesmo tempo o coral deve con­
centrar-se sobre o tema do canto. Esse exercício misto,
ao mesmo tempo físico, psíquico e espiritual, emprega
meios potentes e dá notáveis resultados.

0 quinto grupo de exercícios tem por objeto a cons­


tatação. Com o exercício de constatação, entra-se inteira­
mente no domínio do psiquismo. Com efeito, através deste
exercício aborda-se de forma prática o problema do estudo
de si mesmo.
Constatar quer dizer reconhecer o estado de uma
coisa ou de um fenômeno, estabelecer um fato, sem aplicar
nenhum juízo pessoal, qualquer que seja.
O ato de constatar implica, então, ao mesmo tempo
que uma simples observação do fato, uma tomada de cons­
ciência de si. Desta forma — e eis aqui seu sentido esotérico
— a constatação exige uma aplicação da dupla atenção ao
objeto e a si mesmo. Este exercício demanda toda a impar­
cialidade de que se é capaz. Senão degenera numa repres­
são, numa ação unilateral que não conduz a nada do ponto
de vista esotérico.
A constatação compreende dois grupos de exercícios:
— A constatação chamada exterior, quando se obser­
va um ou outros objetos exteriores, compreendido
neles compreendidos a própria pessoa, quando se
olha, por assim dizer, "de fora para dentro".
— A constatação chamada interior, quando se observa
um ou traços dos fatos ou dos fenômenos da pró­
pria vida interior.

282
A constatação compreende todas as modalidades da
nova atitude do homem que aborda o trabalho esotérico,
isto é, a luta permanente contra o império da sonolência
mental. Sabe-se que é possível olhar sem ver; é a caracterís-
tica da maioria de nossas impressões visuais. Pode-se olhar
e ver. Dito de outra maneira: observar. Aqui já existe um
progresso, porque se colocou em jogo a atenção, o objeto
pode ainda seduzir-nos, ao ponto de perdermos a consciên­
cia de nós mesmos. É quando se observa, aplicando um
esforço consciente dirigido simultaneamente para o exte­
rior e para o interior, que se alcança a verdadeira consta ta-
ção, a que produz um efeito esotérico. A observação desta
regra geral da dupla atenção é exigida ao longo do Cami­
nho até a cúspide da evolução esotérica. Este é o tresvenié
da Tradição, ao qual já se fez alusão, é o esforço constante
em veiar, por ter presente no espírito a idéia do Eu, ao
mesmo tempo que continuando como no passado — ou
ainda mais — a atividade exterior. A constatação tem por
base e por ponto de partida o preceito fjeral de Jesus aos
discípulos: "O que, porém, voz digo, digo a todos: Vi-
giail"1
Ainda que tenhamos visto que o homem exterior vive
ausente de si mesmo, vive em seus sonhos, sonhos da noite,
sohhos do dia. Dormimos na vida e dormimos profunda­
mente. Na prática, como sair de tal situação? Isso é difícil
e eis por que. O homem adormecido conserva a experiência
de sua vida em estado de vigília e a memória de seu nome,
esse símbolo de sua Personalidade. Isto lhe permite, quando
acorda, reencontrar sem dificuldade sua experiência de
vigília. Porém, para passar desta ao nível superior de cons­
ciência, à consciência do Eu real, esses dois elementos
essenciais: a experiência da vida é o conhecimento de seu
nome, a esse nível, lhe faltam, é trabalhando sem descan­
so, "brocando", através da prática da constatação, que
compreende e implica o esforço consciente de presença,
empurrando até a presença de si, que o homem pode alcan­
çar o segundo Nascimento, que é o nascimento da Indivi­
dualidade, quer dizer, união indissolúvel de sua Personali-
1. Marcos. XIII, 37.

283
dade, desenvolvida e nascida, com seu Eu real. Neste mo­
mento, obterá seu novo nome e se iniciará progressivamen­
te na nova experiência antes insuspeitada a que se refere o
Apocalipse:
"Ao vencedor... darei uma pedrinha branca e sobre
essa pedrinha escrito um nome novo, o qual ninguém
conhece, exceto aquele que o recebe"2

A constatação exterior pode ser passiva. Ela conduz,


então, aos objetos que nos são apresentados no filme
exterior dos eventos, sem que exerçamos uma escolha
entre eles.
Ela pode, pelo contrário, ser ativa. Então escolhe o
objeto sobre o qual se exerce. Sob esta forma ativa, a cons­
tatação exterior pode usar de um método particular que,
praticado regularmente, ajuda muito a conhecer a impres­
são que produzimos em outra pessoa. Ainda que não seja
um objetivo em si mesmo, este exercício é ao menos um
meio preciso para rejeitar grande parte das falsas impressões
que temos de nós mesmos. Esta espécie de consideração
pode ser chamada constatação por reflexão, ou ainda, re­
gistro de instantâneos de si mesmo. Estes instantâneos dão
os melhores resultados quando são tomados em reuniões,
no momento em que se fala. Um brusco esforço de consta­
tação permite, então, ver-se a si mesmo tal como somos
vistos pelos outros, neste momento. Um álbum de tais ins­
tantâneos permite reconstituir diante de nosso olhar men­
tal a imagem que oferecemos. Para reconhecer esta imagem
num espelho está invertida: ali o direito torna-se esquerdo
e vice-versa. Se nos olharmos em dois espelhos, nossa ima­
gem fica restabelecida. Geralmente nos causa uma estranha
impressão. Os defeitos de nosso rosto ali aparecem acen­
tuados, com efeito, porque o olho não mais pode fazer
essa correção automática de nossos traços, à qual se
habituou devido à imagem invertida. O exercício com a
ajuda de espelhos também permite-nos ver a nós mesmos
de perfil. Conhecemos apenas nossos perfis. Estas novas
visões de nós mesmos sempre oferecem alguma coisa.

2. Apocalipse, II, 17.

284
A prática ortodoxa conhece uma forma de tresveniè,
de constatação exterior ativa que usa muito. Trata-se da
prece de Jesus, assim concebida:
"Senhor Jesus Cristo. Filho de Deus, tem oiedade de
mim, pecador."3 Será reconhecido neste versículo o duplo
objetivo proposto à atenção: pedido de graça e consciência
de si como pecador. Em consequência, os dois elementos
requeridos para a constatação estão reunidos, supõe-se,
com a condição de que não seja feita mecanicamente — a
prece —, mas por esforço consciente de presença. Em seus
comentários, o Bispo Teofano diz que a força desta prece
não reside nas palavras. As palavras podem ser modificadas.
A potência de invocação reside na constatação de nosso
estado caído diante de Deus em Seu estado de perfeição.
Este esforço de constatação simultâneo, acrescentamos, cria
isso que chamamos: diferença de potencial gerador da cor­
rente de graça. A prece de Jesus é repetida pelos pratican­
tes religiosos ou leigos um grande número de vezes, até 10
ou 20 mil vezes por dia.
O segundo grupo de constatações compreende as
constatações interiores. Este é um vasto campo de exercí­
cios indispensáveis que, com os anteriores, estabelecem
firmemente no Atalho que conduz ao caminho de Acesso,
depois ao Caminho.
Voltamos a encontrar, a propósito das constatações
interiores, a mesma diferença entre exercício passivo e
ativo, que para as constatações exteriores.
Sob sua forma passiva, a constatação interior, pratica­
da diariamente, de preferência de manhã e, tanto quanto
for possível, na mesma hora, consiste no seguinte: depois
de ter permanecido na posição do Sábio o tempo neces­
sário para sentir os músculos distendidos e para que o
ritmo do corpo tenha voltado ao normal e regular, deve-se
constatar passivamente tudo o que se desenvolve diante do
olhar mental. Este exercício exige treinamento. Pode ser
que no início nada se veja ou se veja pouca coisa. Perseve­
rando, descobre-se, pouco a pouco, todo um mundo rico
em vida e cores. Mais tarde, esse mundo será objeto de um
3. Traduzido do russo.

285
trabalho destinado a pô-lo em ordem para, finalmente,
dominá-lo. Na linguagem esotérica, vencê-lo. Mas antes é
necessário fazê-lo sair totalmente das reviravoltas da nossa
consciência de vigília. Isto se obtém por esta constatação
passiva, calma e imparcial. Sobretudo, é exigida tal impar­
cialidade, porque, geralmente, o homem se surpreende ao
descobrir nele certos movimentos emotivos e instintivos,
certas idéias que, normalmente, isto é, no estado de vigília-
sonho, parecem-lhe totalmente estranhas. Progressivamen­
te, o pesquisador aprende a explorar seu conteúdo moral.
Constatará que somente uma débil parte deste conteúdo
figura na cena de sua consciência de vigília, sendo, o
principal, relegado a alguma parte dos recantos de sua
alma, é com estupefação, às vezes com terror, que nele
descobrirá a coexistência — que lhe parecerá impossível,
absurda — de um poeta e de um cínico, de um herói e de
um covarde. Aperceber-se-á que é essencialmente um egoís­
ta, pronto para justificar diante de si mesmo a necessidade
de percorrer, através dos mais falsos procedimentos de
racionalização, não importa que estados de alma que ele
julgará desprezíveis ou criminosos em outro.
Traços semelhantes — e há um bom número deles, uns
mais detestáveis do que os outros — são rechaçados no últi­
mo plano de nossa consciência, instintivamente dissimula­
dos nas "reviravoltas", e isto por duas razões. Por um lado
— e é o caso geral —, o homem faz de si mesmo uma repre­
sentação muito distante da realidade e exclui pura e sim­
plesmente o que nele não corresponde a esta imagem.
Ainda que tais características rechaçadas não deixem de ser
suas. Por outro lado, o homem tem medo do que na reali­
dade é. Enquanto permanecer na vida exterior, não tem
necessidade de proceder a uma introspecção que leve a
olhar de frente sua vida interior. Nos raros casos ou nas cir­
cunstâncias fortuitas que o colocam momentaneamente
cara a cara consigo mesmo, ele gira seu olhar mental, para
regressar, rapidamente, â imagem que de si mesmo criou.
Claro está que, este procedimento de mentira sistemáti­
ca a si mesmo é de surpreender, dado que o homem
exterior nasceu na mentira, vive na mentira e morre na

286
mentira. Somente o trabalho esotérico é suscetível de
conduzi-lo para fora dessa Selva, bosque cheio de bestas
ferozes no qual vive. Porém, então, ele cessará de ser um
homem exterior.
Este mesmo exercício de constatação, além disso, dá
outro resultado importante. É o reconhecimento do traço
principal da Personalidade.
Cada Personalidade tem por eixo um traço principal,
ao redor do qual gravitam todas as suas qualidades e todos
seus defeitos. Não é necessário que esse traço seja marcan­
te; pode ser insignificante, mesmo ridículo. É notável que
o homem dificilmente aceite identificar-se com esse traço
principal. Sem dúvida é importante reconhecê-lo e acei­
tá-lo. Na forma imaginada, pode-se dizer que apressá-lo
é apressar a ponta de um fio que permitirá desfazer o nó.
é através do reconhecimento e estudo de seu traço princi­
pal que o homem poderá precisar e reconhecer seu próprio
tipo e situar sem erro possível o centro de gravidade de sua
Personalidade em um dos dez e oito setores dos centros
inferiores. Aqui se sai da teoria para abordar o trabalho
prático através do reconhecimento do funcionamento dos
três centros e colocar em ação seu funcionamento. Este
trabalho se faz ao longo do que chamamos o caminho de
Acesso.
A prática assídua da constatação, sobretudo na forma
passiva que se acaba de descrever, é um instrumento de
seleção. Os fracos dão volta e abandonam a busca do Cami­
nho, para cair em mais uma Ilusão. Os fortes se dão conta
da terrível realidade que representa seu conteúdo moral e
compreendem — não mais filosoficamente, como tratas­
se de outro, mas com a comoção de sua alma - que chegou
o momento de fazer o balanço e colocá-lo diante do juiz.
Porém, para isto faz falta a coragem.
Já temos indicado numerosas vezes que o Caminho
não pode ser alcançado sem que quem procura tenha acoito
o fracasso moral e o haja superado. Agora estamos em me­
lhores condições de compreender a razão e o significado de
tal necessidade. O homem tem todo o interesse em proce­
der, desde o começo do trabalho esotérico, ao estabeleci­
mento de seu balanço moral, com efeito, ser-lhe-á menos

287
penoso buscar progressivamente os elementos do que
reuni-los de uma só vez. Seja qual for o método emprega­
do, o balanço deve ser feito de maneira leal e, em seguida,
exposto. Porque alcançado o nível do homem 4, ao térmi­
no do caminho de Acesso para comprometer-se com o Ca­
minho, o homem não pode mais ser portador da imagem
mentirosa de si mesmo. Deve tomar-se uma criança, isto é,
despojado da mentira e de ilusão frente a si mesmo, desem­
baraçado de tudo o que é artificial que sua instrução, sua
educação e a experiência da vida nele depositaram. Eis o
sentido das palavras de Jesus: "Em verdade vos digo que,
se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças,
de modo algum entrareis no reino dos céus/'4
Este exercício de constatação interior é o instrumen­
to que permite ao pesquisador, valoroso e perseverante,
voltar a ser uma criança e entrar com pé firme no Caminho
da Salvação.
Na sua forma ativa, a constatação interior é a escolha
do objeto de nossa vida interior sobre o qual enfocamos
nossa atenção. Na sua forma-tipo, é o exame de consciên­
cia, tal como deve ser praticado.
Aqui o objetivo é o mesmo que na constatação exte­
rior ativa.
Um ou outro destes exercícios conduz à concentra­
ção, seja o objetivo interior ou exterior, porque o Reino de
Deus está ao mesmo tempo fora e dentro de nós (ver Figu­
ra 27).

A constatação pode, então, adotar formas variadas em


relação ao objeto e atitudes escolhidas. Porém, a dupla
atenção é sempre obrigatória. O exercício de presença é
um esforço para vigiar; como já temos visto, esse é seu aspec­
to principal. Feito cada dia na forma de constatação pas­
siva, conduz até o conhecimento de si. Porém, pelo fato de
que a presença deve, tanto quanto seja possível, advirper-
manente, e insistimos sobre este ponto por causa de sua

4. Mateus, XVIII, 3.

288
importância, o pesquisador deve praticar a dupla atenção
tanto quanto possa no curso de suas ocupações. Notará,
com o tempo, que esse esforço de memória, de presença,
não somente não o impede de realizar suas atividades, mas,
pelo contrário, dá uma ajuda substancial ao seu exercício.
Entre outras, a presença adota duas normas que devem
ser muito especialmente observadas: são elas, por um lado,
a não-confluência e, por outro lado, a não-consideração.
Em diversas ocasiões temos comentado essas duas ati­
tudes. Entretanto, é necessário voltar sobre um aspecto
particular da consideração. A não-consideração interior
deve ser cultivada, de sorte que venha a ser total. Mas é
necessário não confundi-la com a não-consideração exte­
rior. Geralmente, o homem exterior, sobretudo quando
conflui, está cheio de consideração interior. Como desfor­
ra, falta-lhe consideração exterior. É preciso resauardar-se
disto. A consideração exterior deve ser ampliada o mais
possível. Porque a vida exterior está caracterizada pela me-
canicidade, tanto no plano psíquico como no plano
físico. Sabemos que não devemos pôr o dedo entre as
engrenagens de uma máquina. Seria triturado e correría­
mos o risco, até mesmo, de perder nossa vida. E o mesmo
no plano psíquico. Nossa atenção deve tornar-se vigilante
e. máquinas, devemos evitar investir contra as máquinas
psíquicas que nos rodeiam.
Tais são, nas suas grandes linhas, o sentido e a razão
de ser do exercício de constatação e os objetivos que per­
mitem alcançá-lo. Agora pode-se compreender porque
deve ser prosseguido ao todo longo do Caminho. Serve, por
outro lado, de meio para alcançá-lo e, em seguida, de meio
de controle dos resultados adquiridos em cada uma de suas
etapas.

O sexto grupo de exercícios concerne à concentração,


que é um exercício psíquico ativo. Consiste em eliminara
atenção de tudo aquilo que não é objeto da concentração
moral ou física.

289
O sétimo grupo refere-se à contemplação. Esta é
alcançada ao se chegar a manter a concentração sobre o
mesmo objeto durante uma duração determinada.

O último se dirige ao êxtase. P. concentração, seguida


de uma contemplação prolongada, conduz o homem ao
êxtase, que é um estado da Consciência. Enquanto dura
este estado, o homem se encontra fora de seus cinco senti­
dos.5

Os últimos três grupos de exercícios, começando pela


concentração, não podem ser utilmente abordados, a não
ser quando os resultados tangíveis tiverem sido obtidos
pela prática prolongada da constatação.
No momento, é necessário que nos apliquemos ao que
nos é acessível, e que é indispensável para alcançar o nível
do homem 4. é somente então, como temos nos esforçado
em demonstrar, que o Caminho da evolução esotérica abre-
se diante do pesquisador.
Retomemos, agora, alguns elementos que vão nos
conduzir ao exame do esquema geral do Caminho.
O homem vive no corpo físico. Neste corpo, encon­
tra-se sua Personalidade, um organismo sutil provido de um
Eu provisório. Atrás deste organismo, os órgãos superiores
da consciência do Eu real e da Consciência estão plenamen­
te formados. ..
Aqui devemos chamar a atenção sobre a necessidade
de uma terminologia precisa. Orígenes (185-253), nos Prin­
cípios, põe em guarda aos discípulos, contra a imprecisão
intencional de certas expressões empregadas nos textos: é
assim, dizia, que, às vezes, os Apóstolos falam do corpo e
por ele entendem a alma e reciprocamente. Porém, juntava,
os sábios sabem fazer a distinção.
Ainda que, para o homem exterior, uma confusão real
provenha do estado inacabado de sua Personalidade, salvo
raras exceções, ele não cnnhece em si mesmo nada mais

5. João, XI, 33; XIII, 21.

290
que a Personalidade; esta, em oposição ao corpo, apresen­
ta-se como sua alma. Entretanto, pelo fato de sua atitude
hostil ao Eu real, a Personalidade está mais estreitamente
ligada ao corpo do que ao verdadeiro Eu. Disto resulta,
especialmente, que essa alma-Personalidade é perecível.
Isto explica a aparente contradição que se atribui à
alma a imortalidade, falando ao mesmo tempo do perigo
que corre de perecer, e a obrigação que nos incumbe de
preocuparmo-nos por sua salvação. De fato há um só meio
de salvação para a alma-Personalidade: é sua fusão íntima
com a Alma verdadeira, eterna e imperecível, que se mani­
festa no homem, em certas condições, através dos centros
superiores da consciência.
Por esta fusão, a alma-Personalidade, que em si mes­
ma não tem luz, brilhará assim como a luz da Alma imortal
com a qual, daí em diante, será una. A força do Eu real
tornará imortal ao Eu pessoal, que, assim, identifica-se com
ele. E tal é o sentido do termo Salvação. E tal é, também, o
sentido da Criação, assim como foi analisado no Capítulo
anterior.

Sabe-se que a fusão da Personalidade com o centro


emotivo superior não se realiza, a não ser com o segundo
Nascimento; este somente advém com a continuação de
um longo trabalho sobre a Personalidade, com vistas à
completá-la.
De onde vem a definição do caminho de Acesso: O
caminho de Acesso consiste na aquisição do saber e do
saber fazer, permite terminar o desenvolvimento da Perso­
nalidade, que efetua, então, com o segundo Nascimento, sua
fusão íntima com o Eu real. A individualidade assim nasci­
da, empenha-se, em seguida, no Caminho propriamente
dito.
Verifica-se que esta definição não cobre mais que uma
parte do Caminho, no sentido amplo do termo, a saber, o
caminho de Acesso. Esta parte é nada menos que a mais
importante para o pesquisador, porque a luta travada por
ele contra a Morte termina, aqui, com a Vitória.

291
Pode-se dizer, assim, que essa Vitória consiste na ab­
sorção pelo centro emotivo superior do centro magnético
que, depois de ter ordenado e equilibrado os três centros
da Personalidade, absorve o centro emotivo inferior.
Depois da Vitória, a parte seguinte do Caminho, isto
é, o Caminho propriamente dito, comporta um trabalho
em condições completamente diferentes, fora de todo im­
pério ou influência da Morte e dos fenômenos que a acom­
panham.

0 Caminho no seu conjunto comporta Sete Troncos,


colocados entre Três Umbrais. Ele conduz, segundo os
termos do Evangelho, da morte à vida.
O Caminho está concebido em relação à Lei de Sete e
vai desde a vida exterior até o terceiro umbral — limite da
evolução do homem terrestre, em dez etapas. O homem
ultrapassa cada uma dessas etapas através de esforços con­
centrados sobre um trabalho criador concebido em relação
à Lei de Três.
Retomando a terminologia da cristandade primitiva,
distinguem-se três estados em dez etapas:

Catecúmenos aqueles que pelo discernimen­


(atalhos) to das influências "B" já cria­
ram neles o embrião do Cen­
tro Magnético;

Fiéis — os pesquisadores que, tendo


(caminhos de acesso) uitrapassado o Primeiro Um­
bral, progridem para o Segun­
do Umbral;

Cristãos — aqueles que tendo ultrapas­


(caminho) sado o Segundo Umbral, evo­
luem para o Terceiro Umbral.

Seguir o Caminho é colocar mãos à obra no que se


refere ao Esoterismo. Recordemos que esta noção se aplica

292
aos catecúmenos;6 aos fiéis e aos cristãos - no sentido em
que a primitiva Igreja entendia tais palavras — os que pros­
seguem sua evolução individual. Distinguem-se os graus,
representados por três círculos concêntricos rodeados por
uma zona que simboliza a Selva, isto é, a vida exterior, no
esquema seguinte:7

Figura 56

0 — o exterior, a selva, zona do homem exterior.


I — o exoterismo, zona dos catecúmenos.
II — o mesoterismo, zona dos fiéis.
III — o esoterismo propriamente dito, zona dos cristãos,
homens interiores.

Esta última zona, por seu turno, está dividida em três


círculos concêntricos, pertencentes, respectivamente, aos
homens 5 e 6, em meio aos homens 7.

6. Capítulo VI, figura 18.


7. Não confundir as zonas assim definidas com a hierarquia no seio da Igreja
que compreende — ou deveria compreender — sete graus:
1. Apóstolos.
2. Profetas.
3. Mestres da Igreja (também chamados Doutores da Igreja).
4. Bispos.
5. Presbíteros (padres).
6. Diáconos.
7. Fiéis.

293
Eis aqui o esquema do Caminho em toda a sua exten­
são:

dó V si la sol fá mi ré dó 'P

VI VII VIII IX X

Figura 57
Neste esquema, o Caminho está concebido em relação
a uma escala que vai de Dó a Dó e forma uma oitava. Os
intervalos entre Dó e Si, de Fá e Mi, assim como de Dó e Si
da oitava seguinte, constituem os três umbrais.
Passemos aos comentários sobre as dez etapas que
figuram neste esquema.

PRIMEIRA ETAPA

O espaço à esquerda do Primeiro Umbral representa a


vida exterior, caracterizada pela anarquia dos três centros
da Personalidade. Um discernimento exato e preciso das
influências "A" e "B" cria o embrião do Centro Magné­
tico. Sob a influência deste, o pesquisador é atraído para o
Primeiro Umbral.

294
SEGUNDA ETAPA

Alcançado este ponto, o homem se compromete num


atalho. É colocado cara a cara com a "Vida"; sua própria
vida com seus problemas solucionáveis e "insolúveis".
Esta é sua primeira prova esotérica. Esta prova consis­
te numa reestruturação geral dos valores. Da objetividade e
da coragem colocadas neste trabalho, depende o resultado
obtido. É necessário fazer um esforço consciente sobre si
mesmo para não se mentir, no curso desta reestruturação
dos valores, nem "contornar os problemas", é necessário
considerar e analisar o que o rodeia, enfrentar os fatos e
atribuir-lhes seu valor intrínseco, sem compromisso e sem
piedade para consigo e para com os outros, é necessário,
naturalmente, guardar para si os resultados desta reestrutu­
ração.
Feito isto, é preciso extrair as conclusões. O interesse
pela vida exterior que se desenvolve sob a influência exclu­
siva dos fatores "A" se perdeu? e em que medida? O centro
de gravidade da Personalidade deslocou-se para o Centro
Magnético? K importância, a intensidade, está, realmente,
colocada ali? (Figura 20).
Neste momento é necessário escolher.
É melhor retroceder antes de ter ultrapassado o Pri­
meiro Umbral do que querer ganhar de uma só vez, e logo,
a zona da felicidade burguesa. O Caminho tem um sentido
único. Depois do Umbral, não terá mais do que uma alter­
nativa: seja o progresso no Caminho, seja a Queda. Porém,
o retorno ao estado primitivo, está vedado, daí em diante.
Se o Centro Magnético é puro e de uma Consistência
suficiente, o homem de influência "C" (Figura 20) apa­
rece. O Primeiro Umbral será ultrapassado sob sua direção.
TERCEIRA ETAPA
Passado o Primeiro Umbral, ultrapassou-se uma malha
na cadeia de influência esotérica. Tornando-se Fiel, o Cate-
cúmeno é salvo na esperança.8 De toda forma, ele permanece
não muito diferente do que era antes. A soma de esforços

8 Romanos, VIII, 24.

295
conscientes que acumulou permitiu-lhe ultrapassar o Um­
bral, e isto já é um enorme passo adiante. Porém, o sincero
desejo de sair da vida exterior, que provocou este salto,
não é suficiente, por si só, para liberá-lo das influências
"A".
O trabalho mesotérico se oferece, então, àquele que
alcançou a nota Si do outro lado do Umbral. É necessário
que.ele esteja solidamente estabelecido e orientado, com sua
face para frente. Pois, "ninguém que, tendo posto a mão
no arado, olha para trás, é apto para o reino de Deus."9
Para todo discípulo, a tarefa da nota S7 é revisar cuidadosa­
mente o Filme de sua vida para alcançar um duplo resulta­
do:
— Distinguir objetivamente, tanto quanto seja capaz,
neste estágio de sua evolução, os elementos permanentes
eternos, e os elementos temporais, cármicos.
— Estimular nele — com a ajuda dessa análise — o
desejo ardente de alcançar a ultrapassagem dc Segundo
Umbral.
A potência deste desejo e a firmeza de sua decisão são
as únicas garantias de êxito. É por isso que o discípulo
deverá atribuir uma particular importância ao trabalho da
nota Si do Caminho. E isto mais, porque esta nota é curta:
de fato, não é mais do que um semitom.
Antes do Primeiro Umbral, o homem deve dar-se
conta de sua atitude diante da vida exterior em geral.
Ultrapassado esse umbral, ele deve tomar como objetivo,
não mais esta vida com suas ilusões, mas o Filme de sua
própria vida.

QUARTA, QUINTA E SEXTA ETAPAS

Elas correspondem às três notas: Lá, Sol e Fá do Ca


minho, que, com a nota Si, formam o Caminho de Acesso
ao Caminho propriamente dito.

9. Lucas, IX, 62.

296
Este estado, nele compreendida a nota Si, representa-
se como uma escada que o homem deve subir (Capítulo
XV).
Esta escada esotérica tem uma particularidade que se
deve ter presente no espírito. Não é possível ficar indefini­
damente sobre tal ou qual degrau, porque depois de um
prazo determinado, por outro lado amplamente suficiente
para cumprir a tarefa exigida pela nota em vigor, o degrau
se destrói.
No curso da evolução nas notas Lá, Sol, Fá, o Fiel,
subindo a escada de degrau em degrau, terá, por tarefa:
— Nota Lá — fazer crescer a Personalidade até o limi­
te possível;
— Nota Sol — desenvolvê-la;
— Nota Fá — equilibrar os trêscentrosinferiores, subs­
tituindo os laços mecânicos que têm entre eles, por
laços conscientes de cada centro com o Centro
Magnético, ao qual, dãí em diante, estão subordina­
dos os centros inferiores.
Deste modo, subindo a escada, o Fiel, partindo da
nota S/ e passando pelas notas Lá e Sol, alcançará a nota
Fá. Cumprindo a tarefa que acaba de ser definida para esta
nota, ele se converte em homem 4. A moral abolida será
nele substituída pela ação de seu foro interno, expressão
embrionária da consciência do Eu real. A irradiação deste
último penetrará mais e mais, através do Centro Magnético,
em toda a Personalidade do pesquisador.
É digno de assinalar que o homem 4 permanece, sob
diferentes aspectos, homem exterior, e ele ainda é mortal.
Porém, ele está preparado para atravessar o Segundo Um­
bral, para além do qual começa o Caminho propriamente
dito, colocando-o ao abrigo das influências "A" e da Lei de
Acidente.
Alcançado este grau, o discípulo se toma homem de
influência "C" (Figura 20).
é necessário não perder de vista que tudo o que o
homem faz, o faz imperfeitamente. Teoricamente, o homem
4, enquanto ressoe plenamente a nota Fá, já deveria ser

297
mestre absoluto de si mesmo, tendo sido levado ao limite o
crescimento e o desenvolvimento de sua Personalidade. Se
houvesse acontecido isto, a absorção do centro emotivo
inferior pelo Centro Magnético produzir-se-ia dentro de
uma profunda felicidade, ainda que isso só ocorra rara­
mente. Assim é, porque o homem que está em tudo e sem­
pre atrasado, em geral não chega a cumprir integralmente
sua tarefa em cada grau da escada. E como o prazo que
se lhe proporciona para seu trabalho sobre cada degrau é
limitado, ele é obrigado, por medo de um desmorona­
mento, a passar ao grau seguinte, levando com ele uma
parte, às vezes grande, de sua tara cármica.
Isto é admitido. Mas na condição de uma purificação
absoluta na nota Fá.

SÉTIMA ETAPA

Alcançado o Primeiro Umbral, o Catecúmeno é colo­


cado cara a cara com a "Vida". Alcançado o Segundo Um­
bral, é colocado cara a cara consigo mesmo.
Noutras palavras, ele verá sua Personalidade no seu
conjunto e em todos os seus detalhes. Assim mesmo, per­
ceberá todos os resultados de seu Karma, assim como as
deformações que vém da hipocrisia frente a si mesmo e das
mentiras que se faz. Estão aí os elementos mais difíceis de
constatar e, por consequência, de neutralizar.
Essa é a segunda grande prova.
Pela primeira vez na vida ele se verá objetivamente, tal
como é, sem disfarce, sem a menor tolerância ou compro­
misso, e sem a possibilidade de evasão.
Para o justo, esta prova está plena de inefável gozo.
Ela aparece como a luz da aurora.
Para o injusto — e é o caso geral — a visão de si mes­
mo lhe aparece de forma aterrorizante.
Porque o equilíbrio perfeito da Personalidade não
pode ser alcançado a não ser com a completa neutralização
das consequências kármicas e, das quais, aquele que aspira
a libertação — mesmo sendo de boa-fé — não pode apreciar a
natureza e a importância. Nascido no pecado, ele pode

298
considerar — e efetivamente considera — certos aspectos
deste carma como algo humano e normal.
Diante do Segundo Umbral, tudo o que foi apreendi­
do mecanicamente perde sua força; todos os tampões,
todos os aparatos autotranquilizantes, devem ser rasgados e
desfeitos. Todas as dívidas devem ser pagas. E em boa
moeda.
Ao mesmo tempo, o Fiel deve desembaraçar-se dos
deveres ilusórios, imaginários, que, às vezes, tomam uma
força hipnótica e aos quais o ser humano atribui um valor
real.
Esta confrontação consigo mesmo toma, geralmente,
um caráter dramático pelo fato da tara cármica que cada
um carrega consigo. Porém ela é inevitável.
O homem deve, então, fazer o inventário de toda sua
bagagem psíquica, considerando que a maior parte desta
bagagem se encontrava, até este momento, fora de seu
campo de observação, em alguma parte dos arquivos de seu
subconsciente. Ele poderá descobrir ali o traçado de atos
heroicos, mas também pode ser o dos crimes mais ignóbeis.
Se ele foge deste monstro no qual deverá se reconhe­
cer, isso será a queda, cheia dos piores riscos.
Sua atitude deve ser ofensiva. Então o monstro-Perso-
nalidade cederá. Neste momento, o homem se transforma­
rá no Mestre de si mesmo. Será a consagração da posição
representada pelo esquema 56.
O momento é decisivo. Daí em diante, fortalecido
pela Vitória alcançada, o homem terá por tarefa transfigu­
rar sua personalidade. Deverá comunicar-lhe a imagem da
beleza irradiante. Na linguagem da Tradição, diz-se que
neste momento se vestirá a noiva com seu vestido de casa­
mento.
Feito isto, a Noiva de Cristo estará preparada para
receber o Noivo.
Com a passagem do Segundo Umbral, a Personalidade
desenvolvida, harmoniosa, terá nascido. Esse é o segundo
Nascimento, análogo sob todos os pontos de vista ao nasci­
mento do corpo físico. Passa peias mesmas fases. A Doutri­
na estabelece entre os dois processos um paralelo detalha-

299
do que permite, ao discípulo e a seu mestre, controlar a
regularidade da evolução. O tratado O combate Invisível de
Nicodemo Aghiorita contém uma das melhores descrições
deste ponto de vista.
Passado este Segundo Umbral, a Personalidade une-se
com o Eu real; Seu Eu provisório não é destruído, mas
desenvolvido até o limite, será uno, para sempre, como o
Eu real; o homem 4 se transforma, então, em homem 5.
Esta união indissolúvel forma a individualidade, é a
partir deste momento que o homem poderá dizer, com cer­
teza, que é feliz por ter nascido.
Porque a experiência, tantas vezes recomeçada, termi­
nou com êxito.

A Personalidade humana apresenta três estados análo­


gos aos três estados da matéria.
Antes do Primeiro Umbral, o Eu da Personalidade
está em estado sólido. Quer dizer que as forças "molecula­
res" de atração prevalecem sobre as forças centrífugas. Psi­
cologicamente, este estado se caracteriza pelo egoísmo:
tudo para mim. Neste estado sóiido, o homem não pode
compreender nada nem a ninguém. Em certos casos, onde
ele é duro como o aço — casos, é verdade, relativamente
raros — se cré, sempre, na verdade; e atribui seus desgostos
aos outros ou aos "acidentes". Está seguro de si mesmo.
Entretanto, alcançado o Primeiro Umbral, o que pro­
cura não se encontra mais neste estado sólido, porque ele
não crê mais no valor absoluto das influências "A". Ela já
deverá ter tido dúvidas, ao perceber a existência das in­
fluências "B", e terá começado a distingui-las das outras.
Alcançado o Primeiro Umbral, já não é mais duro; já é ma­
leável.
Através do trabalho entre os dois Umbrais, o Eu psí­
quico torna-se flexível mais e mais, para se tornar líquido
na nota Fá. Assim como um líquido físico está caracterizado
pela faculdade de adotar a forma de um recipiente, assim a
mentalidade líquida é suscetível de compreender os outros
homens como a si mesma, adotando suas formas. Na lin­

300
guagem corrente, designa-se este estado do homem pela
expressão "espírito aberto".
Passado o Segundo Umbral, o homem 4 transformado
em homem 5 adquire o estado psíquico gasoso, penetran­
do-o todo e permitindo-lhe compreender todos os seres e
todas as coisas.

OITAVA, NONA E DÉCIMA ETAPAS

Depois do Segundo Umbral, começa o Caminho pro­


priamente dito. Ele compreende três troncos colocados
respectivamente nas notas Mi, Ré e Dó.
Sob a égide da nota Mi, o homem interior entra na
zona superior do ensinamento esotérico, com a oitava eta­
pa. Aqui começa para ele a obrigação de ensinar aos outros.
É ensinando aos outros que adquire nesta etapa novas fa­
culdades correspondentes às particularidades de sua indivi­
dualidade. Elas são os dons do Espírito Santo na termino­
logia de São Paulo.10
Neste estado, visto de baixo, o homem torna-se um
mestre; visto de cima, tem o título de assistente.
A primeira faculdade nova, de base — comum a todas
as individualidades e que se desenvolve ao longo das etapas
Mi efíé-éa atitude de distinguir espontaneamente o ver­
dadeiro do falso. Esta atitude será igualmente o símbolo de
distinção do Novo Homem no Ciclo do Espírito Santo.
Na etapa seguinte, a nona, colocada sob a égide da
nota Ré, o homem 5, depois de ter adquirido as novas
faculdades correspondentes à sua individualidade, desen­
volve-as até dar-lhes sua expressão integral. Adquire, assim
a Consciência, que se manifesta nele através do centro inte­
lectual superior, por meio de centro emotivo superior.
Por este fato torna-se homem 6.
A décima etapa, a última do Caminho, é aquela na
qual o homem torna-se homem 7. Caracteriza-se pela con­
cretização dos resultados obtidos.

10. I Coríntios, XIV, 1.

301
É o "batismo com o Espírito Santo e com fogo".11
Jesus diz: "Eu vim para lançar fogo sobre a terra e bem
quisera que já estivesse a arder."12
Essa consagração se produz pela sublimação do sexo.
Desta forma, o ciclo se fecha. Toda manifestação de vida
começa por um ato sexual; no final do ciclo, a atividade do
centro sexual volta a manifestar-se, mas a um nível mais
elevado, o dos centros superiores, nível ao qual pertence
por natureza.

O trabalho esotérico no curso das primeiras etapas


tem, sobretudo, um aspecto negativo, no sentido de que o
homem busca desfazer-se do que entrava sua evolução. Ao
contrário, a evolução no Caminho a partir do Segundo Um­
bral, na oitava e nona etapas, comporta unicamente um
enriquecimento, a aquisição de novas qualidades que se
obtém até por trabalhos paralelos ao trabalho esotérico
propriamente dito. Estas etapas estão colocadas fora do
alcance da Lei de Acidente. Porém, aii, a queda sempre é
possível.
Não será senão na décima etapa, na continuação
da consagração pelo Fogo e o Espírito que o homem 7,
homem consumado, ou perfeito, sequndo a terminologia
do Apóstolo São Paulo, estará garantido contra toda pos­
sibilidade de erro, em consequência, de queda.
Daí em diante, possuirá em si o Eu, a Consciência e a
Vontade.
Neste momento, terá alcançado o Terceiro Umbral, é
o limite da evolução possível para um homem terrestre, do
Tritocosmo. Sua evolução posterior é, certamente, pos­
sível. Pode tornar-se homem 8 e 9. Só que, para além do
Terceiro Umbral, começa o domínio do Deuterocosmo.

11. Mateus, III, 11; Marcos, 1-8; Lucas, 111,16; Atos, 1,5; II. 2-4.
12. Lucas, XII, 49. Citado do texto eslavo. Na tradição hinduísta, esse mesmo
fenômeno é descrito pela descida sobre o iogue, que alcançou o grau
requerido de aperfeiçoamento, do Dharma Megha ou nuvem de virtude.

302
Dado o grande atrazo com que se realiza a evolução
moral da humanidade, os homens 5, 6 e 7, são, geralmente,
retidos para trabalhar em meio à sociedade humana.

Fraco, digno de piedade, mas ávido e cruel, o homem


exterior atribui sempre aos outros ou às circunstâncias a
responsabilidade por seus fracassos. Tudo e todo mundo são
os culpados, salvo ele mesmo. Nesse frenesi de reprovações,
chega, mesmo, a reprovar a Jesus de Nazaré de não ter, efé-
tivamente, salvo a humanidade.

Pode-se comprar víveres para outro; pode-se preparar


uma comida; pode-se cortá-la; finalmente, é possível imagi­
nar que o alimento seja posto na boca de outro como se
faz com uma criança ou um doente. Porém, neste ponto,
cada qual deve fazer o esforço de absorver o alimento, isso
não pode ser feito por ninguém mais.
É exato que a Lei Gerai retém o homem no seu lugar
e, se ele se agita, impede-o de avançar ou levantar-se. é
também ela que o faz morrer. Não se pode esquecer,
porém, que é a mesma lei que o faz nascer e que o faz
viver. Ela lhe concede, também, três vezes, ao menos, o
tempo necessário para desenvolver completamente sua Per­
sonalidade, reencontrar, com o segundo Nascimento, seu
Eu real e, depois de ter ultrapassado o Segundo Umbral,
comprometer-se com o tronco superior do Caminho.
O Apóstolo São Paulo diz: "Quando eu era menino,
falava como menino, sentia como menino, pensava como
menino; quando cheguei a ser homem, desisti das coisas
próprias de menino."13
O homem exterior, do ponto de vista esotérico, é um
menino. E, na maior parte dos casos, um menino ruim.
Não se tornará adulto, depois de ter subido a escada e
ultrapassado o Segundo Umbral. Neste momento, ele aban­
donará o que possuía de menino.

13. I Coríntioi, XIII, 11.

303
Até então, a resposta da Pitia de Sócrates: conhece-te
a ti mesmo, permanece a palavra de ordem para aquele
que, depois de ter ultrapassado o Primeiro Umbral se com­
promete no caminho de Acesso.
Ele não esquecerá, enquanto se prepara para nele
entrar, que este caminho tem um sentido único e que será
colocado diante da alternativa de um êxito brilhante ou
de uma terrível queda.

304
CAPITULO XXI

Dissemos, na introdução, que os estudos esotéricos


ajudam a penetrar o sentido da evolução atual do homem e
da sociedade humana, e que este fato explica o interesse
crescente que suscita nos meios cultos, especialmente
naqueles que procuram por uma explicação e um remédio
para as contradições da vida atual, contradições cujas mani­
festações e efeitos vão acentuando-se e pressionam pesada­
mente mais e mais o destino do homem.
Estas preocupações e incertezas são normais num
período de transição. O nascer do sol é sempre precedi­
do por uma acentuação do frescor da noite. O advento de
Cristo foi seguido por um século de guerras civis que dila­
ceraram o mundo antigo.
Hoje em dia, o homem sente de forma aguda a oposi­
ção entre o imenso progresso da técnica e a evidente defi­
ciência moral da humanidade. Com efeito, enquanto a vida
no plano material caminha numa cadência acelerada devido
à Revolução política, social e industrial que se realizou
desde 1789, o homem não fez nenhum progresso marcante
no plano moral. Encontra-se, assim, colocado diante
da imperiosa necessidade de proceder o mais rápido pos­
sível a uma Revolução interior, a uma transformação de
seu ser que lhe permita restabelecer o equilíbrio tão arris­
cadamente comprometido entre o nível técnico e o moral.
Hoje em dia todo ser que pensa sente-se desgraçado,
porque sua atitude para poder é deficiente, sua sensibilida­
de acrescenta seu querer mais e mais exigente e refinado,
se bem que veja distanciarem-se suas aspirações sem que
elas tenham a força de desenvolverem-se.

305
Não há nenhuma razão para esperar que a presente
situação se corrija por si mesma. Ao contrário, mais se
vai acelerando o progresso da técnica, mais o fosso entre
querer e poder se amplia no homem moderno. Esta con­
tradição se observa em todos os planos. O fato de que, por
exemplo, 15 anos depois do-fim da Segunda Guerra Mun­
dial (1960), o mundo não chega a sair de uma situação que
não é nem a guerra nem a paz, constitui, por si só, uma
demonstração eloquente da impotência dos elementos res­
ponsáveis. Isto é verdade em todos os campos.
Para corrigir a situação e responder,assim, às exi­
gências que lhe impõe a marcha dos Tempos, o homem
deve descobrir, agora, novas fontes de energia moral, assim
como encontrou, graças à revolução industrial - com
o vapor, a eletricidade, o átomo — novas fontes de energia
física.
A solução do problema reside, como indicamos, na
formação de uma nova elite dirigente, na qual as faculda­
des morais latentes até o presente tenham sido desenvolvi­
das e cultivadas. Estas faculdades que caracterizarão o
Novo Homem, permitirão superar o intelectual e o tecno-
crata, como estes superaram ao eclesiástico e ao cavaleiro
da alta Idade Média.
Temos dado noções gerais sobre a estrutura psíquica
do homem exterior, sobre sua posição no Universo e em
relação à vida orgânica sobre a Terra. E temos estudado as
possibilidades que lhe são abertas, em certas condições, de
um desenvolvimento psíquico progressivo, abrindo-lhe o
acesso aos planos superiores da consciência.
O saber, o compreender e o saber fazer necessários
para alcançar esse objetivo foram conservados através dos sé­
culos, especialmente na Ortodoxia Oriental. No seu conjun­
to, constituem o Caminho do qual temos analisado o conteú­
do em todas as suas partes. No que concerne aos exercí­
cios, foram dadas as indicações necessárias para aqueles
que, querendo enriquecer e tornar viventes seus conheci­
mentos teóricos, possam abordar o trabalho prático. No
curso dos séculos, quando a chama do cristianismo primiti­
vo se enfraqueceu, o trabalho esotérico — salvo raras exce-

306
ções — prosseguiu de maneira velada, quer dizer, no plano
individual: na vida comum ou nos conventos. Deste modo,
mesmo quando numerosos monges trabalhavam sob a auto­
ridade de um mestre, cada um deles fixava seu objetivo
particular e nele prosseguia. Todavia, o sentido esotéri­
co do trabalho dos monges ou dos ascetas era o dos esfor­
ços preparatórios: tinha por finalidade acumular as energias
necessárias no plano astral para tornar mais fácil, à humani­
dade, a passagem das grandes articulações da história.
Vale ressaltar que tais mudanças de orientação e
advento de uma nova era que implicam tém estado marca­
dos pelo papel animador, ativo, que a mulher neles tomou,
de diversas formas. Os Evangelhos apontam o testemu­
nho desta presença, é a uma mulher, a Samaritana, a
quem Jesus, perto do poço de Jacó, declara pela primeira
vez, que ele era o Messias: "Eu o sou, eu que falo contigo."1
É à mulher, Maria Madalena, que o Cristo se manifesta na
ressurreição, quando ele a chama e ela o reconhece.2
O princípio de intervenção da mulher se reencontra
no curso de todos os períodos cruciais da história. Situa-se,
geralmente, o nascimento da Idade Média na época do
reinado de Justiniano, o Grande, ainda que sua obra tenha
sido impulsionada fortemente pela potente personalidade
de sua esposa, a imperatriz Teodora. Ela atua num papel
comparável ao de Aspásia, em relação a Péricles. Dá seu
apoio nos momentos de fraqueza, aos quais não escapa o
caráter mais moderador; ela permite a Justiniano oferecer
ao mundo cristão esse impulso extraordinário que se pro­
duz no curso dos séculos seguintes. Não esqueçamos o
papel fecundo desempenhado pelas Damas nas cortes medi­
evais nem o papel das inspiradoras Damas do Pensamento,
diante dos cavaleiros.
Os períodos em que na vida da sociedade humana o
papel enobrecedor da mulher se torna obscuro estão marca­
dos por uma trivialidade de costumes que se expressa, em
especial, pelo gosto por um realismo resoluto. O desapareci-

1. João, IV, 7-26.


2. João, XX, 11-16.

307
mento das cortes e dos salões pol íticos e literários onde, até o
século XX, a mulher possuía tão grande papel, priva as
relações internacionais de um fator positivo de compreen­
são e a diplomacia da sutileza indispensável ao arranjo dos
problemas pol íticos.
As relações humanas sofrem, hoje em dia, de uma ver­
dadeira distorção do papel primordial de que a mulher está
destinada a participar em relação ao homem: em lugar de
ser, nessas relações, a força ativa, o elemento inspirador,
fecundo, e de completar, assim, o homem, a mulher tende
a seguir um caminho paralelo; isto não lhe permite mais
exercer sua vocação criadora. O Ciclo do Espírito Santo
não poderia perpetuar tal desequilíbrio. A imagem da eclo­
são da Era do Espírito Santo dada pelo Apóstolo São
Pedro comporta uma indicação precisa. Ele a descreve
como "novos céus e nova terra, nos quais habita justiça".3
Este texto já citado demanda ser comentado sob
outro aspecto. No Ciclo do Pai e no do Filho, o homem se
identifica com o Eu de uma Personalidade não desenvolvi­
da e assim se isola de seu Eu real e vive fora do seio do Se­
nhor. Dito de outra forma, permanece no estado de queda,
consequência do pecado original. Ali ele toma a Ilusão pelo
Real. Esta identificação com o Eu da Personalidade sepa­
rou, durante milénios, a unidade da consciência, outras
vezes indissolúvel, dos seres polares, homem e mulher, que
eles dois formavam um só Ser, provida da consciência
única de Si-mesmo ela, Ser descrito no mito do Andrógino.
O Eu da Personalidade, incompleto, inacabado, impo­
tente, erra na vida sem afeição nem fé verdadeiras, vai de
erro em erro, de debilidade em debilidade, de mentira em
mentira. Prisioneiro — pode ser que voluntário, mas entre­
tanto, prisioneiro —, o homem não faz, na vida, o que
quer, mas sim o que odeia,4 obedecendo cegamente à me­
cânica diabólica que, sob seus três aspectos: medo, fome e
sexualidade3 regem sua vida. Esta existência puramente
fictícia nada tem de real a não ser a possibilidade de evolu-
3. II Pedro. III, 13.
4. Romanos, VII, 15.
5. Capítulo VIII.

308
ção que permanece oculta e que é objeto dos estudos e tra­
balhos esotéricos. Fora desta semente, na vida exterior,
tudo se baseia na mentira, ainda qué nada da mentira
poderá resistir à atmosfera vivificante dos novos céus e da
nova terra anunciados para a era que vem. Diante de tudo
isto, desaparecerá a mentira que preside as relações entre o
homem e a mulher e cuja forma menos condenável é a
Ilusão.
Se a solidão dos seres polares, desunidos pela queda,
consequência direta da identificação com o Eu da Persona­
lidade, é a fonte de debilidade dos humanos tornados mor­
tais, o retorno à unidade aparece como uma fonte inesgotá­
vel de novas energias. Energias necessárias ao homem e que
deve buscar para tentar restabelecer o equilíbrio perigosa­
mente rasgado da vida pública e privada de hoje em dia.
Este retorno à unidade perfeita dos seres polares não
acontece gratuitamente, entretanto. E a tarefa daqueles
que ultrapassaram ou estão dispostos a ultrapassar o Segun­
do Umbral do Caminho. E na realização de uma unidade
total, indissolúvel, de seu Eu real por duas Individualidades
polares, que alcançaram o segundo Nascimento, que pode e
deve ser redimido o pecado original. E a solução do proble­
ma da vida privada e, ao mesmo tempo, o da vida pública.
E é a paz do Senhor.6
O que é o Eu real, alma de nossa Alma, nódulo da
Individualidade, senão uma chispa divina, parcela do corpo
de Cristo? E assim que é necessário compreender o sentido
do texto de São Paulo, citado na Introdução da presente
obra: "No Senhor, todavia, nem a mulher é independente
do homem, nem o homem, independente da mulher."7 E
ainda: "Porque, como provém a mulher do homem, assim
também o homem é nascido da mulher; e tudo vem de
Deus."8
E a solução do problema exposto no começo deste
Capítulo, o da busca de uma nova fonte de energia moral.

6. João, XIV, 27.


7. I Coríntios, XI, 11.
8. Ibid., 12.

309
Nós o alcançamos através do método ao qual se faz refe­
rência no Capítulo XVII.
O homem exterior, enquanto Personalidade subdesen­
volvida, tem um campo de busca e de ação limitada pelas
faculdades dos três centros inferiores.
O centro motor que já atua no espermatozóide, está
perfeitamente desenvolvido no homem. Esse desenvolvi­
mento pode crescer ainda mais, muito além do nível consi­
derado normal. Pode-se, por exemplo, sublimar a vida
instintiva desde o seu nível até o da consciência de vigília,
e estabelecer, assim, um controle sobre certos processos
fisiológicos. Bem conduzida, esta intervenção na vida
instintiva pode melhorar sua saúde e prolongar a vida.
Porém, aí param seus efeitos. O desenvolvimento do centro
motor dá ao homem um corpo são e vigoroso, mas isso não
lhe brinda uma fonte nova de energia moral. Por outro
lado, nossa civilização não se preocupa para nada com esse
desenvolvimento perfeito do centro motor. Vivemos num
corpo imperfeito, doente, que começa a envelhecer, tão
logo tenha terminado seu crescimento. E o homem não
procura combater tais inconvenientes com procedimentos
naturais. Aceita-os passivamente como se fossem inevitá­
veis.
O homem contemporâneo concentra seus esforços no
desenvolvimento e educação do centro intelectual. Tudo
está organizado em vista de um aperfeiçoamento metódico,
setor por setor, deste centro. O ensino primário, que tem
por objeto prover o homem de um instrumento de traba­
lho, exerce um efeito muito especial sobre o setor motor
do centro intelectual. O ensino secundário, que quer dar ao
aluno uma cultura geral, faz trabalhar, sobretudo, o setor
emocional do centro intelectual, cuja ação então se une à
do setor motor do mesmo centro. O ensino superior está
previsto para iniciar o estudante numa cultura especializa­
da, o que se obtém muito especialmente pelo desenvolvi­
mento do setor intelectual do centro intelectual. É pela
continuidade deste desenvolvimento que o homem vem a
ser o que se chama um intelectual.
Entretanto, os recursos do centro intelectual que per­
mitem ao homem fazer milaqres no domínio da ciência

310
positiva pura ou aplicada estão a isto limitados. Os traba­
lhos de Kant e de Virshow demonstraram que o campo de.
ação do intelecto humano está, por assim dizer, rodeado
por um mundo impenetrável.
Não nos resta mais que examinar rapidamente a posi­
ção do centro emocional, é curioso constatar como na
nossa civilização o crescimento e o desenvolvimento deste
centro estão abandonados à própria sorte. A vida emotiva,
privada de uma formação metódica, é, para o homem, a
fonte de imprevistos raramente agradáveis, ainda mais rara­
mente felizes e cujas consequências são, em geral, pesadas
de carregar. Sendo dada a ausência de uma formação emo­
cional obrigatória na nossa civilização, como é obrigatória
a formação intelectual, o centro emocional, subdesenvol­
vido e abandonado, cai no homem exterior sob a influên­
cia dos outros centros: motor, intelectual e, finalmente, o
sexual. Não é exagerado dizer que o centro emocional
ocupa na vida psíquica do homem a posição do parente
pobre. E, no entanto, é sorrente através de um desenvolvi­
mento apropriado deste centro que, no homem, pode-se
abrir uma nova fonte de energia moral, cuja necessidade
para ele é tão premente.
Para alcançar esta fonte, o domínio do centro sexual
e o treinamento do centro emocional são objetos principais
do trabalho.
Antes de passar a um exame mais profundo do pro­
blema da evolução e de suas condições, examinemos uma
recomendação importante que deve ser seguida desde o
começo do trabalho e até o segundo Nascimento. É uma
das regras de Ouro da Tradição, o homem deve conjugar o
trabalho dos centros intelectual e emotivo. Eis aqui como
se consegue.
Se a questão a estudar e resolver é de ordem intelec­
tual, depois que o centro intelectual a tenha elucidado,
antes de adotar a conclusão ou a decisão definitiva e de
passar aos atos, o homem deve consultar seu centro emo­
cional. Inversamente, ele não deve atuar sob o impulso ou
a influência exclusiva do centro emocional: somente pas-

311
sará aos atos depois de haver consultado seu centro intelec­
tual.
Em geral, o homem deve cultivar a capacidade de cap­
tar todo fenômeno, todo problema do mundo exterior ou
interior, simultaneamente pelos dois centros, emocional e
intelectual, de uma só vez.

O crescimento natural da Personalidade se detém


muito antes de estar completo. Tem um limite individual
que depende de todo um conjunto de fatores, entre os
quais pode-se citar; a civilização, a raça, a casta, o ambiente
familiar e social, finalmente a educação e a instrução.
O desenvolvimento da Personalidade para além deste
limite nunca se produz sem esforços conscientes e conti­
nuados. Tudo o que o homem possui em seu nascimento
são predisposições, dito de outra maneira, talentos. Com o
crescimento da Personalidade, tais disposições se revelam.
Mas isso não é tudo. Para promover seu desenvolvimento, é
necessário fazer esforços conscientes. A lei é formal: "Pois
ao que tem se lhe dará; e, ao que não tem, até o que tem
lhe será tirado."9
Em geral, procura-se desenvolvê-los, instruindo-se.
Efetivamente, enquanto prossigam os estudos ou as buscas,
a Personalidade continua crescendo, ainda que, com fre­
quência, de forma pouco harmoniosa. Porém, desde que se
tenha posto fim ao estudo ou à busca, quando se começa a
explorar os conhecimentos adquiridos de forma rotineira,
então o desenvolvimento da Personalidade se detém.
A etapa do Caminho mais importante e mais difícil de
recorrer é a Escada, chamada caminho de Acesso, que con­
duz ao nível do homem 4.10 Aquele que busca subi-la deve
fazer desse esforço a meta principal de sua vida. O trabalho
esotérico deve advir do eixo de sua existência, em torno do
qual as circunstâncias interiores e exteriores da vida deve­
rão gravitar daí em diante. Este imperativo categórico não
deve assustar. Entretanto, é necessário saber que as provas
começam desde o primeiro degrau da Escada.

9. Mateus, XXV, 14-30, Marcos, IV, 25, Lucas, XIX, 26.


10. Capítulo XV; Capítulo XX, Figura 57.

312
Para ultrapassar o Primeiro Umbral, o homem deve,
"sem olhar para trás",11 sofrer com êxito a primeira prova:
inflamar-se do desejo ardente de terminar com o que é a
vida na Seiva, para lançar-se no desconhecido, em busca de
uma nova vida, sensata e real.
Este desejo de transformação, se tem um vigor e uma
intensidade suficientes, supera o intervalo entre as notas
Dó e Si, que é o Primeiro Umbral, e o que procura fica em
pé, firme, no primeiro degrau da Escada.
As quatro notas que formam esta escada estão ligadas
entre si por uma interdependência profunda, porque sua
ressonância extrai sua força do impulso inicial do Desejo.
Se então esse Desejo inicial não submete à sua obediência
toda a existência do homem, se não se torna senhor de
todo seu ser, é melhor para ele deter-se a tempo e não
ultrapassar o Umbral. Porque, repitamo-lo, o Caminho é
um caminho sem retorno. Verifica-se toda a importância
desta prova, a do Desejo. O Desejo, diz a Tradição, deve
possuir a força da sede.
Alcançado o primeiro degrau, o homem sofre a prova
da Fé. Crer não é suficiente; é preciso ter fé. A prova con­
siste em que o homem deve superar o medo de se "abando­
nar" à Fé. Sobre este tema, Jesus reafirma a seus discípu­
los: "Portanto, não vos inquieeis, dizendo: Que comere­
mos? Que beberemos? ou: Com que nos vestiremos? Por­
que os gentios é que procuram todas estas coisas; pois Vos­
so Pai celeste sabe que necessitais de todas elab. Buscai,
pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas
essas coisas vos serão acrescentadas."12
Sobre o segundo degrau, a prova é a Força, que aguar­
da por aquele que tenha se comprometido com a Escada.
"O Reino dos Céus", diz Jesus, "é tomado por esforço, e
os que se esforçam se apoderam dele".13
No terceiro degrau, está a prova da Descoberta e da
Habilidade. Para captar em que consiste esta prova, é
11. Lucas, IX, 62.
12. Mateus, VI, 31-34.
13. Mateus, XI, 12; Lucas, XVI, 16. O texto eslavo diz: e aqueles que fazem
esforços são os que o alcançam.

313
necessário meditar o sentido da parábola do "Administra­
dor infiel"14, parábola que parece difícil de compreender.
é um teste. Aquele que consegue colocar em harmonia o
seu conteúdo com o preceito não podeis servir a Deus e
a Mamon estará mais bem preparado para resistir a esta
prova.15
No quarto degrau é preciso defrontar-se com a
prova do Amor, do amor verdadeiro, vivificante, fogo
devorador; bem diferente daquele que arde embaixo das
cinzas. 0 que é o verdadeiro amor já o indicamos, citando
ao Apóstolo São Paulo.16 Deve-se aprender este texto de
memória. É uma espada chamejante cujas chamas conso­
mem toda transação, tudo o que o homem nele adota ou
frente a ele por amor, e que não o é, de nenhuma maneira.
Ao se ter presente no espírito estas palavras, poder-se-á
julgar imediatamente todo movimento do coração e saber
se contém ou não traços de Amor verdadeiro.
Passada esta prova, o homem somente tem em si
Amor puro, que contém os elementos do Desejo transfigu­
rado, da Fé, da Força e do Discernimento.17
Vê-se que a prova do quarto degrau é decisiva. Até ali,
o homem pode arrastar, e habitualmente arrasta, as taras
do seu passado: mentira, fraqueza, piedade de si próprio,
compromissos interiores. Geralmente tem o tempo, as oca­
siões e a possibilidade de desembaraçar-se deles antes de
comprometer-se no quarto degrau. Porém, por causa do peso
desse passado, perde tempo e deixa escapar, ao menos
parcialmente, as ocasiões que a ele se apresentam. No
quarto degrau, o homem, pobre e nu, é aceito, mas com a
condição de que seja consciente, quer dizer, que contenha
o verdadeiro Amor, porque tudo o que é falso será nele
queimado pelas chamas da espada chamejante.
Vale assinalar que tais provas chegam juntas e em
todos os degraus da Escada. Porém, estão repartidas de
forma desigual em relação às particularidades da Personali­
dade de cada um, estando todas colocadas sob a égide do
14. Lucas, XVI, 1-13.
15. Mateus, VI, 24, Lucas, XVI, 13.
16. I Coríntios, XIII, 4-8, Capítulo XVII.
17. Romanos, XIII, 10.

314
Desejo. E em cada degrau uma tonalidade põe todo esse
conjunto em ressonância com a nota que lhe corresponde:
em consequência, Si, em seguida Lá, Soi e Fá.
Para assegurar mais profundamente os elementos da
progressão sobre a Escada que, considerados sob o aspecto
pessoal, constituem o Filme da vida, não é supérfluo rever
a doutrina do Carma.
k lei cármica derivada do princípio do Equilíbrio é
definida na Tradição pelo Apóstolo São Paulo: "Não vos
enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem
semear, isso também ceifará."18 Recordemos, por outro
lado, as palavras com que Jesus nos coloca em guarda
contra o Carma e indica a atitude a seguir para neutralizá-
lo. "Entra em acordo sem demora com o teu adversário,
enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário
não te entregue ao juiz, o juiz ao oficial de justiça, e sejas
recolhido à prisão. Em verdade te digo que não sairás dali,
enquanto não pagares o último centavo."20
Na vida exterior, o homem vive de crédito em mais de
um ponto de vista, quando não força a mão contra os
outros. Sem dar-se conta, arrasta atrás de si, essa tara moral
de dívidas não-pagas e de suas transgressões do principio
do Equilíbrio. Todas essas dívidas e todas as consequências
cármicas devem ser pagas integral mente antes do Secundo
Umbral.
K ação do Carma é mecânica. Err cada caso ele tende,
com efeito, a restabelecer automaticamente o equilíbrio
quebrado pelos movimentos livres do homem. Em conse­
quência, o Carma atua por compensação, não globalmente,
mas independente, sobre cada setor das atividades do
homem.
Comprometendo-se na Escada para alcançar e ultra­
passar o Segundo Umbral, o homem adota, por isto, uma
nova atitude frente a si mesmo; daí em diante, toma seu
destino nas próprias mãos.
Esta tarefa é pesada e delicada. Com efeito, o homem
não vive no vazio, mas nas circunstâncias, rodeado de seus
18. Gaiatas, VI, 7.
19. Violento, no texto eslavo.
20. Mateus, V, 25-26; Lucas, XII, 58-59.

315
semelhantes. Tomar seu destino entre as mãos pressupõe e
exige do homem uma atitude sensata e consciente, que
exclui as decisões impulsivas e simplistas à sua volta.
Os problemas colocados parecem, geralmente, insolú­
veis. Entretanto, devem ser resolvidos. De toda forma, sua
solução não será positiva, no sentido esotérico, se toda
pessoa pertencente ao seu meio não saldar sua conta,21
segundo a importância do papel representado. Sob tal
ponto de vista, é necessário atuar conforme as indicações
dadas por Jesus e citadas anteriormente. Respeitar estes
princípios não é fácil, mas é possível, tendo como condi­
ção que o homem não minta mais a si mesmo, e não
admita, daí em diante, no seu coração, nenhum traço de
hipocrisia e fraude.
A vida do homem é um Filme. Certamente é difícil
para nosso espírito cartesiano admitir tal conceito. Nosso
espírito tridimensional adapta-se mal às ideias e aos fatos
que tocam o domínio do eterno.
Tão incompreensível como pareça, nossa vida é um
verdadeiro Filme, concebido em relação a um roteiro. Este
Filme roda "permanentemente", sem se deter. De maneira
que, no momento de sua morte, o homem nasce de novo e,
o que parece absurdo, nasce no mesmo lugar, na mesma
data em que havia nascido e dos mesmos pais. E o FUme
recomeça.
Cada ser humano nasce com o seu FUme particular.
Este representa o campo de ação no qual o homem é cha­
mado a aplicar seus esforços conscientes. A repetição do
Filme não é a reencarnação, ainda que estas duas noções
com frequência se confundam. Pelas razões já expostas, o
homem exterior que vive sob o regime de Futuro-Passado
não pode abarcar o conjunto do seu Filme, nem mesmo a
parte deste que compreende o futuro imediato. Para que
possa fazê-lo, ser-lhe-ia necessário aumentar a janela de seu
Presente. Contudo, acontece de sentir, diante de certos
acontecimentos, já tê-los visto ou vivido. Alguns vêem

21. Capítulo XI.

316
nisto uma prova da dita reencarnação. Na realidade, os
fenômenos desta classe são a consequência de um afluir
fortuito e temporário de energias finas no organismo. A
vigia do Presente individual aumenta, então, por alguns
instantes, e alguns fatos marcantes do futuro imediato
caem na consciência de vigília; assim, nasce a impressão do
retorno de um outro tempo.
De certa forma, é o que sucede, porém a impressão de
tê-lo já vivido não é causada mais do que pelo rodar mecâ­
nico do Filme. Por reencarnação é preciso entender um
fenômeno totalmente diferente. Enquanto o Filme teórico
se desenrola integralmente no plano das possibilidades,
isto é, na eternidade, o Filme do homem exterior ade­
re ao plano de realização, em consequência, ao Tempo,
porém somente na medida estritamente necessária para
satisfazer os fins do Raio da Criação, ainda que a verdadei­
ra reencarnação situe-se inteiramente no tempo e pertença
integralmente ao domínio do Real, isto, no entanto, no
quadro geral da Manifestação. Temos insistido no fato de
que a Personalidade humana não é uma realidade, no senti­
do próprio do termo, mas uma possibilidade. Figura como
tal no Filme que lhe corresponde e não desaparece, a não
ser com o Segundo Nascimento. Porém, neste momento,
terá cessado de ser Personalidade, porque sua conjunção
indissolúvel com o Eu real sofrerá uma transfiguração e
tornar-se-á Individualidade.
Enquanto o homem viver na selva, caído nas ilusões e
nas mentiras, satisfeito consigo mesmo, o Filme roda com
o rigor da automaticidade. E a Personalidade permanece
igual a si própria. As circunstâncias começam a mudar no
momento em que o homem ultrapassa o Primeiro Umbral.
Esta passagem pode ser comparada à concepção da futura
Individualidade. A Escada simboliza o período de gravidez
e a passagem do Segundo Umbral representa o segundo
Nascimento, o da Individualidade. No curso do seu desen­
volvimento posterior correspondente às notas Mi e Ré do
Caminho, a Individualidade tende mais e mais a integrar-se
aos cosmos superiores. Adquirindo, então, os dons do
Espírito Santo, que respondem à sua natureza, ela partici-

317
pa progressivamente da existência real, objetiva, que final­
mente caracteriza seu ser. E a Salvação, isto é, a libertação
do império do Filme.
É somente neste ponto de evolução oue a verdadeira
reencarnação individual se torna possível. Ela não é mecâni­
ca, é feita conscientemente, em geral para cumprir uma
missão.
Um exemplo de reencarnação é dado pelo Evangelho.
Na conversa de Jesus com Pedro, Tiago e João, enquan­
to descem da montanha, depois da Transfiguração, os
discípulos lhe fizeram esta pergunta: por que, então, os
escribas dizem que Elias deve vir primeiro?22 Ele respon­
deu: "De fato Elias virá e restaurará todas as coisas. Eu,
porém vos declaro que Elias já veio, e não o reconhece­
ram, antes fizeram com ele tudo quanto quiseram. Assim
também o Filho do homem há de padecer nas mãos deles.
Então os discípulos entenderam que lhes falara a respeito
de João Batista."23
Além disso, falando de João Batista, Jesus foi categó­
rico: "E, se o quereis reconhecer, ele mesmo é Elias, que
estava para vir. Quem tem ouvidos (para ouvir), ouça."24
E importante, com efeito, captar claramente a dife­
rença que existe entre o Filme, jogo de possibilidades, e a
reencarnação no tempo que pertence ao domínio do Real,
e compreender o seu sentido. No momento do segundo
Nascimento, isto é, ultrapassado o Segundo Umbral, o
homem escapa do império do Filme e entra no domínio da
redenção. E admitido, então, na Confraternidade Sagrada
de Seres Viventes, chamadas na Tradição: Grande Confra­
ternidade Esotérica. 0 Apóstolo São Paulo diz: "Sabemos
que todas as coisas operam para o bem daqueles que amam
a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósi­
to. Porquanto aos que de antemão conheceu, também os
predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho,
a fim de que ele seja o primogénito entre muitos irmãos."25

22. Malaquias, IV, 5.


23. Mateus, XVII, 10-13; Marcos, IX, 13.
24. Mateus, XI, 14.
25. Romanos, VIII, 28-29.

318
A Grande Confratemidade Esotérica é uma força
inquebrantável; aqueles que a compõem não estão mais
sujeitos às enfermidades nem à tristeza e a Morte perde seu
domínio sobre eles. Porque em sua escala, seguindo o
exemplo do Senhor, eles também venceram ao mundo.26
O Filme no qual o homem nasce e vive pode rodar,
em princípio, até o fim do mundo, com a condição de que
o homem se encontre feliz, satisfeito consigo mesmo, atri­
buindo-se todas as qualidades e responsabilizando os
outros pelas causas de seus erros e de suas desgraças. Tal
existência não pode ser considerada como humana; falando
com propriedade, nós a qualificamos como antropóide.
Este termo se justifica no sentido que o homem exterior,
caído na suficiência, representa o coroamento de uma evo­
lução milenar da espécie, a partir de seus ancestrais ani­
mais, enquanto que do ponto de vista da evolução esotéri­
ca não é mais do que uma possibilidade ainda não realiza­
da.
Ao se encarar o problema da evolução esotérica do
ponto de vista do Filme e das diferentes posições que o
homem pode ali ocupar, é evidente esta evolução, enquan­
to o FUme pode ser praticamente considerado como rodan­
do no mesmo círculo. Ali, os personagens são aqueles que
se acreditam viventes.27 A evolução esotérica começa
quando o homem, por seus esforços conscientes, se mostra
capaz de romper o círculo para transformá-lo numa espiral
ascendente.
Esta representa um estágio intermediário entre a
posição que se encontra a Personalidade humana compro­
metida como o Filme que roda mecanicamente, apenas
separada do plano do Eterno, e a da Individualidade per­
feita, livre, capaz, se tivesse necessidade de personificar-se
conscientemente no Tempo.
Este estágio é intermediário no sentido em que o F/7-
me, daí em diante, separa-se do plano do eterno, isto é, do
plano das possibilidades. A curva da vida, que praticamente
não difere do círculo para o homem exterior, transforma-

26. João, XVI, 33.


27. Mateus, VIII, 22; Apocalipse, III, 1.

319
se numa espiral e não termina maís, como outras vezes, /.
quase no seu ponto de partida; a separação destes dois
pontos marca daí em diante uma nítida progressão no
Tempo. O Filme em espiral é próprio dos homens que
sobem a Escada. Já vimos que a separação completa do Fil­
me se produz em relação à ultrapassagem do Segundo Um­
bral. Se o homem o alcança, no curso de uma só vida e
rompe o círculo desde a primeira vez, não torna mais a
entrar nele. Tal caso é muito raro, é a tarefa dos/</$&>& Ge­
ralmente, esse processo exige numerosas vidas, isto é, nu­
merosas circunvoluções da espiral.
Como regra geral, cada revolução situa-se no Tempo e,
por consequência, pode aparecer como uma reencarnaçao.
Na realidade, trata-se de um retorno à vida exterior. Esta
pseudo-encarnação não é consciente nem pessoal, é a equi­
pe dos participantes do FHme que regressa, mas sem
recordar as experiências precedentes.
Entretanto, a mudança é possível a partir de que os
esforços conscientes do homem tendem, por uma percep-
ção aumentada do Presente, a acrescentar a importância do
fator Tempo.
é um FHme que se desenvolve ao longo das circunvo­
luções de uma espiral, o conteúdo da obra muda e muda
duplamente: de repente, no curso de uma vida, isto é,
durante uma circunvolução, depois de espiral em espiral. A
composição da equipe, as circunstâncias, o cenário, trans­
formam-se. Contudo, dois elementos continuam perma­
nentes. Em princípio, a meta geral, que é a de alcançar o
segundo Umbral. Em seguida, a condição absoluta para
ultrapassar este Umbral, segundo a qual as taras cármicas
que se acumularam, tanto na vida presente como no curso
das espirais precedentes, devem ser neutralizadas e liquida­
das. Todo drama, diz a Tradição, deve ser julgado justa­
mente até sua solução (culminação), antes do Segundo
Umbral.
O trabalho é difícil e premente, porque o homem se
engana constantemente. O leitor atento compreendeu que
seguir a espiral ou subir a Escada está reservado aos homens
que já tenham absorvido certa quantidade de influências

320
Figura 58

321
"B" e possuam um centro magnético mais ou menos desen­
volvido. Porém, devemos insistir sobre este ponto, este
estado de nenhuma maneira imuniza contra o erro, é
verdade que, a partir do momento em que o homem tenha-
se comprometido na Escada, é observado, sobretudo, se faz
esforços sinceros e consideráveis. E a Grande Confraterni-
dade Esotérica estende-lhe uma mão de socorro. Certos
encontros, uma intervenção de circunstâncias favoráveis,
são os meios pelos quais se expressa essa ajuda. Entretanto,
essa assistência não o dispensa de trabalhar por si próprio,
de prosseguir seus esforços conscientes. Além disso, é
necessário dizer que a ajuda oferecida muitas vezes não é
utilizada, seja porque o homem não escuta os conselhos
que lhe são dados, seja porque não capta o significado das
circunstâncias favoráveis e as possibilidades de progresso
que diante de si se abrem. Pertencendo, ainda, muito mais
do que a metade ao domínio da Ilusão, com frequência
continua tomando decisões impulsivas e caminha ao con­
trário do objetivo procurado. Na maior parte dos casos, se
ele soluciona certas situações a nível de cada espiral, tam­
bém introduz no Filme novas complicações, especialmente
nas relações com o que o rodeia. Desta forma, é necessário
compreender bem que, enquanto o homem não alcançar a
ultrapassagem do Segundo Umbral, deverá recomeçar tudo.
Ele recomeçará cada espiral na Selva, deverá discernir as
influências "B", ultrapassar o Primeiro Umbral, subir a Es­
cada, degrau por degrau. É verdade que nenhum esforço
consciente se perde; porém, a experiência adquirida numa
espiral, não aparecg na espiral seguinte, a não ser sob a
forma de atitudes pessoais, inatas ou de vagas reminiscên­
cias no que concerne aos personagens da equipe.
Um dos grandes obstáculos à evolução consiste em
que o homem não se preocupa, em geral, com sua evolução
esotérica, a não ser na sua idade madura, enquanto já acu­
mulou uma soma considerável de erros e novas complica­
ções. Introduz assiduamente em participação novos perso­
nagens, estranhos ao sentido profundo de sua vida ou da
razão de ser de sua equipe. Às vezes, assume compromissos
que o aprisionam, enquanto teria necessidade de toda a sua

322
liberdade de ação para voltar a apanhar o tempo esbanjado
em empresas ou causas que nada têm a ver com a evolução
esotérica.
Chegará o dia em que se dará conta de sua situação.
Pior para ele se, espantado, tratar de romper brutalmente
os laços que uniu. Porque, ao invés de, assim, alcançar a
liberdade à qual aspira, cairá em uma nova escravidão, mais
dura e mais insensata ainda, que se juntará à antiga. Demos
no Capítulo XVI um aviso da atitude que o homem deve
adotar com relação ao que o rodeia. Vamos agora tratar de
indicar as medidas que podem ser tomadas para buscar
uma solução.
É necessário saber que ao final de uma espiral deve ser
feita uma comparação entre o Filme, tal como foi concebi­
do no momento do nascimento, e o que adveio no momen­
to da morte. O balanço comparativo desses dois estados se
faz como numa contabilidade, por saldos ativos e passivos,
seguido de uma conta de ganhos e perdas. Isto mostra
objetivamente o resultado da vida passada. Este balanço
provêm dos elementos de base, para a composição no co­
meço do Filme na espiral seguinte. Se se puder evitar nessa
nova experiência os erros e as complicações que se produ­
zem na sequência dos movimentos livres, a evolução
esotérica poderia prosseguir sobre uma curva ascendente,
harmoniosa. Geralmente não é o caso. Como acabamos de
dizer, o homem parece chegar e, na realidade, volta à idéia
de evolução, depois de ter já complicado o Filme ao qual
atualmente pertence. Entretanto, uma verdadeira evolução
somente pode produzir-se na base do Filme original,
isto é, depois da eliminação de todos os elementos que
foram somados artificialmente. Isto está condicionado por
um retorno à pureza dos centros e especialmente do centro
emotivo, único depositário, ao menos no começo, das
influências "B", e sede do centro magnético. O coração
deve, então, ser puro e, se tal não é o caso, deve ser purifi­
cado. Esta é a condição sine qua non do êxito. Todas as
indicações que contém no Capítulo XVII, consagrado à
mentira sob todos os seus aspectos, foram dadas essencial­
mente para colocar em evidência a necessidade imperiosa

323
de purificar o coração e proceder a uma reeducação do
centro emotivo no sentido positivo.
Isto explica o sentido da frase de Jesus: "se não vos
converterdes e não vos tornardes crianças pequenas, não
entrareis no reino dos céus."28
Este versículo visa, sobretudo, à vida emotiva. En­
tretanto, desde os tempos da Igreja primitiva, existiu uma
tendência a interpretar esta indicação no sentido de uma
restrição ao desenvolvimento da vida intelectual. Isto é um
erro. A inteligência deve ser desenvolvida e aguçada, e a
admoestação: "sede como as crianças", refere-se à pureza
dos centros e não a seu estado rudimentar. O Apóstolo São
Paulo faz sobre este tema um comentário preciso e inequí­
voco: Irmãos, diz ele, não sejais crianças em relação ao juí­
zo,29 "na malícia, sim, sede crianças; quanto ao juízo, sede
homens amadurecidos".30 Em correlação com esta admoes­
tação, o Apóstolo também atrai a atenção de seus contempo­
râneos sobre o fato de que Ele diz, com efeito: "quanto ao
tempo, vós é que deveríeis ser os mestres; no entanto,
tendes necessidade que vos ensinem os rudimentos dos
oráculos de Deus; precisais de leite, e não de alimento sóli­
do. Assim como quem está sendo amamentado, não tem
experiência da palavra da verdade."31
é duvidoso que, desde o tempo de São Paulo, o ho­
mem haja recuperado este atraso. Ao se querer, então, hoje
em dia, obter um resultado tangível do ponto de vista
da evolução esotérica, deve-se tratar de abandonar o regime
do leite e assumir o risco de adotar o do alimento sólido.
É o que nós nos esforçamos em fazer, apresentando
aos leitores a Doutrina de forma sistemática e não mais em
parábolas. Eis aqui o alimento sólido. E resta agora dar,,
sob tal forma, indicações sobre a possibilidade de seguir no
trabalho esotérico um recurso que rapidamente conduz ao
Segundo Umbral. Já indicamos que tal possibilidade se ofe­
rece aos seres polares, a esses casais aos quais a Tradição
28. Mateus. XVII,13.
29. Em relaçio à inteligência, no texto eslavo.
30. I Coríntios, XIV. 20.
31. Hebreus. V, 12-13.

324
antiga fazia alusão no mito do Andrógino. Vamos agora
retomar o problema de forma mais precisa, tanto do ponto
de vista teórico como do ponto de vista prático.
Os dados essenciais do Filme de uma pessoa qualquer
podem ser descritos, com base na análise que precede,
da seguinte maneira. Esta pessoa, enquanto herói do roman­
ce da sua vida, necessariamente, figura nesse Filme como
ator principal. Porém ela pode também entrar como persona­
gem de segundo plano no Filme de pessoas que atuam no
seu próprio Filme um papel secundário. Assim, cada Filme
mistura-se com os outros Filmes onde se reencontram os
mesmos personagens, porém em situações totalmente dife­
rentes. é necessário distinguir, além disso, entre duas cate­
gorias de atores. Uns tomam parte realmente na distribui­
ção, no qual lhes é destinado um papel definido e estão
organicamente ligados ao Filme. Outros não figuram mais
do que acidental mente no Filme, conduzidos pelos movi­
mentos livres do herói. Esta complexidade é ampliada,
além disso, pelo fato de que entre os atores que autentica-
mente pertencem ao Filme, alguns fazem mal o seu papel,
outros fazem um papel que não é o seu. Tais situações têm
um caráter de grande generalidade. Examinemos melhor
este fenômeno.
A Personalidade humana é um organismo de múltiplas
parcelas ou facetas: 987, exatamente. No caso ideal, so­
mente realizado nos seres polares, e o único eficaz do
ponto de vista esotérico, as 987 facetas do homem e da
mulher são estritamente polares: são eles os esposos e as
esposas predestinados por sua união a criar um verdadeiro
casal. Entretanto, a distribuição compreende outros perso­
nagens que entram no Filme para ali participarem com
papéis organicamente ligados ao do herói, e conduzir a seu
término o conjunto do Filme. São estas as almas-amigas, as
almas-irmãs, as almas-colaboradoras, as almas-servis etc. As
personalidades de cada uma delas têm certo número de
facetas idênticas às do herói para os atores do mesmo sexo
e bipolares para os atores do sexo oposto. No caso de
irmãos e irmãs, o número de facetas idênticas pode chegar
à metade e mesmo além. A falta de discernimento, de sin-

325
ceridade com relação a nós mesmos, o desejo inato de
encontrar uma ressonância perfeita com as vibrações de
nossa alma e a impaciência que disso se deduz, duplicadas
pela ação da Lei Geral, nos induzem, com frequência, a con­
trair uniões que somente podem culminar em situações ab­
surdas. Ao invés de resistirmos ao espelhismo, de esperar, e
de procurar, caímos em uniões imperfeitas, fonte de sofri­
mento para o casal e para as crianças. Além disso, estas
uniões adulteram o sentido do Filme no seu conjunto e
corrompem a vida pessoal de todos os atores do drama.
Finalmente, os resultados esotéricos previstos na composi­
ção inicial do Filme encontram-se, assim, comprometidos
gravemente.
O mais frequente, nossa vida é semelhante a uma obra
de teatro bem concebida, na qual os papéis foram trocados
a seguir, por um personagem absurdo, e cada um de nós, é
esse ser malfeito ou burlesco.
É no plano do matrimónio, por considerações, que é
cometida a maior parte dos erros; os mais duros de ser
pagos. Mesmo os seres de boa-fé estão resguardados dos
erros. Tomar um irmão ou irmã por esposo ou por esposa
cria, sobretudo no ponto de vista esotérico, uma situação
muito complicada e que se complica ainda mais, quando
nascem filhos de tais uniões.
A vida toma, então, o caráter de um perpétuo com­
promisso consigo mesmo. Esta situação conduz, infalivel­
mente, a um atentado contra a saúde moral e física dos
"esposos do acaso": alteração do centro intelectual através
do engano e da mentira; ataque cardíaco, se o centro emo­
tivo é sensível e ainda aspira à verdade; finalmente, doen­
ças de proveniência obscura, como o câncer, que ataca o
corpo no lugar mais frágil. De toda forma, tal condição
provoca, necessariamente, uma perda considerável de ener­
gias finas, o que, por sua vez, leva a um envelhecimento
acelerado e conduz a uma morte prematura.
Mas por mais difíceis que elas sejam, as situações nasci­
das de nossos erros não devem impedir àquele que se lança no
trabalho esotérico de nele encontrar a coragem de ver as
coisas de frente e buscar uma saída conveniente. Porque se

326
o Diabo — a Lei Gera! — procura conduzir-nos novamente
ao erro, para varrer-nos do caminho da evolução esotérica,
a mão auxiliadora do Senhor, ao mesmo tempo doce e
firme, sempre nos é estendida. Porém, nosso espírito racio­
nal e realista com frequência nos impede de sentir sua
ajuda.
Já indicamos a característica objetiva de uma solução
equitativa aos problemas que nos coloca uma situação
enredada por nossos erros: os nós górgios, que devem
ser desatados e não cortados, de maneira que os participan­
tes ligados pelo mesmo nó sintam um alívio quando desa­
parecer uma situação que somente pode ser fonte de sofri­
mento para todos.
Se assim acontecesse, quando a reestru tu ração torna-
se efetiva para proveito de todos os interessados, o sentido
original do Filme e seu desenvolvimento normal são reen­
contrados.
O conjunto das pessoas organicamente ligadas num
Filme forma uma equipe. Na concepção inicial do Filme,
esta equipe deve, mediante a execução dos papéis da comé­
dia da vida dos participantes, alcançar uma meta determi­
nada. Esta meta é diferente dos objetivos perseguidos na
vida sob o império das influências "A", instrumentos da
Lei Geral, para o desenvolvimento do Raio da Criação.
Aqui, o objetivo fixado à equipe tem, sempre, um sentido
esotérico: com efeito, ainda que as Personalidades que o
compõem sejam muito diferentes, têm em comum uma
tendência profunda: o desejo de terminar com as mentiras
e as ilusões, de sair do domínio das influências "A" e de
alcançar, de uma forma ou de outra, a existência objetiva,
onde o homem encontra seu Eu real e com ele se identifi­
ca.
Aqui é preciso indicar a lei principal que se encontra
na base da formação de tais equipes. No plano huma­
no a mais alta retribuição corresponde ao que manda. No
esoterismo, pelo contrário, corresponde a quem sabe servir
melhor. A confusão entre as ideias subjacentes a mandar
e servir assume, às vezes, um aspecto dramático. Cbserva-se,
inclusive, entre os discípulos de Jesus. A questão de saber

327
quem, entre eles, era o maior, os atormentava. O Evange­
lho menciona este fato mais de uma vez.32
Para compreender melhor o sentido da composição de
uma equipe e o caráter da missão que lhe pode ser confia­
da, é preciso recordar que a espiral do Filme se desenvolve
numa posição intermediária entre a rotação sem saída no
plano da eternidade e a progressão no tempo da reencar-
nação consciente.
Quanto mais evoluída é a equipe, mais importante é a
tarefa a ela confiada. A história brinda exemplos de traba­
lho em equipe em todos os domínios: legislativo, político,
militar e religioso. O papel da mulher nas equipes está par­
ticularmente marcado por ocasião dos períodos cruciais
da história dos povos.
Consideremos, em primeiro lugar, dois notáveis exem­
plos de equipes profanas.
Ainda que a lenda tenha deformado a vida de Alexan­
dre Magno, os dados históricos de que dispomos permitem,
entretanto, discernir o sentido de sua missão. Sua equipe,
que tinha sido reunida em grande parte por seu pai, iria
criar um mundo novo, o mundo helenístico, imenso audi­
tório destinado a receber, três séculos mais tarde, a Palavra
do Evangelho e a converter-se no berço da civilização
cristã. Aderindo a este aspecto essencial da sua obra,
certas Igrejas primitivas e, mais tarde, o próprio Corão,
consideraram a Alexandre como um Enviado e um Santo.
A história da equipe de Pedro, o Grande, é-nos mais
bem conhecida. Aparentemente, o czar, desde muito
jovem, tinha tomado consciência do papel que devia desen­
volver. Kliotchevsky, um dos melhores historiadores do
imperador, chegou a uma conclusão que, sob a pena de um
homem dotado de espírito crítico e de probidade científi­
ca, parece absurda: diz que, para explicar a obra de Pedro,
é necessário admitir que havia vindo ao mundo com um
plano de reforma já estabelecido. É manifesto que, para
compreender a importância histórica de seu reinado, as

32. Mateus. XX, 20-28, XXIII, 11; Marcos IX, 34, X, 43-45, Lucas, IX, 4b
XXII, 24.

328
considerações racionais que valem para outros casos — es­
pecialmente o de Alexandre —, mostram-se insuficientes.
Voltaire dizia que, depois de Maomé, Pedro era o maior
legislador. Porém, nisso há uma apreciação e não uma
explicação. Pedro quis liquidar as consequências de dois
séculos de jugo mongol. Fazendo renascera Rússia, último
herdeiro e sobrevivente do antigo Oriente, o imperador
devia estimular o despertar de todo o Oriente e mostrar-lhe
o caminho de um novo Renascimento. Assim, pode ser
compreendida a sua missão.
A participação da mulher na sua obra é considerável:
apoiou-se nela para a reforma da vida social; fê-la sair do
gineceu, onde passava seus dias, separada da sociedade mas­
culina; fê-la participar de suas célebres assembleias e na
vida da Corte. O papel de Catarina em relação a Pedro foi
capital, como o colocou em evidência S. M. Solovieff. A
amiga do coração, como a chamava o imperador, formando
— para assim dizê-lo — parte dele mesmo, participando de
suas alegrias e dos piores riscos. Ao final de uma vida rela­
tivamente curta — morreu aos 52 anos — Pedro foi, pouco
a pouco, abandonado por todos. Eis aí a sorte reservada
aos heróis e aos profetas. De toda forma, sua coragem, a
força de sua alma e sua lucidez não o abandonaram: dita
seu último ucasse algumas horas antes de sua morte.
Encontra-se aqui um exemplo de trabalho em equipe,
apontando a um objetivo bem determinado. É verdade que
não se conhece e não se conhecerão, jamais, os detalhes
íntimos das relações entre os personagens do Filme de
Pedro. Sabemos que o trabalho em comum, às vezes,
encontrava dificuldades e fracassos. Porém, estes estimula­
vam a energia de Pedro. Ele próprio estimulado por sua fé
inquebrantável, a fé de sua equipe e a coragem de todo o
povo. Se a equipe de Pedro, o Grande, no final de sua exis­
tência, dá sinais de enfraquecimento, não se esquecerá que
o princípio de imperfeição reina no mundo. Este enfraque­
cimento não aparece, por outro lado, a não ser quando a
obra estivesse terminada em suas grandes linhas.
A Bíblia contém certas descrições do trabalho em
equipe, cuja meta podia ser profana e religiosa. Sabemos
muito pouco sobre a composição da equipe de Noé. As Es-

329
crituras somente dizem que a Arca recebeu um casal de
todas as espécies. Para a obra de Moisés, de uma só vez
militar e legislativa, os dados sobre a equipe são mais preci­
sos ainda sobre o Rei Davi. Porém, enquanto no caso de
Moisés parece-nos estar anulado, no de Davi volta a desta­
car-se mais.
Em todos os planos e especialmente sobre o plano
religioso, nos é dado um exemplo de incomparável grande­
za: a equipe dos Apóstolos dirigidos por Nosso Senhor
Jesus Cristo. Sua obra consistiu em fazer renascer o mundo
inteiro no Ciclo do Filho e em depositar a semente de
outro ciclo, o último, o do Espírito Santo. Sabemos, e isso
sem dúvida foi assim querido, que inclusive nesta equipe
nem tudo andava sem dificuldades, sem erros, sem falta
de fé. É que atuando no mundo, também seus membros
sofriam as influências do princípio de imperfeição. Somen­
te Jesus com sua mãe eram perfeitos, sem a menor mancha,
sem retrocesso, enquanto os Apóstolos deram, mais de
uma vez, sinais de enfraquecimento. Entretanto, sua obra
foi completada e, hoje em dia, depois de 20 séculos, somos
testemunhas porque a palavra de Jesus, segundo a qual a
Boa Nova devia ser pregada a toda a criação,33 obedecida
pelos Apóstolos, encontra-se consumada: de fato, o Evan­
gelho está propagado no mundo inteiro. Com ele, os prin­
cípios da Civilização Cristã são reconhecidos em todos os
lugares e mais e mais admitidos, inclusive pelo mundo não-
cristão. Assim se encontra realizada a condição necessária
para a passagem para o último ciclo: a era do Espírito
Santo.
As imperfeições constatadas no trabalho das equipes,
tais como o de Alexandre e o de Pedro e, com mais razão,
na equipe dos Apóstolos, são, para nós, um grande conso­
lo. Isto mostra que não devemos desanimar frente a nossas
próprias fraquezas, sempre e quando o essencial seja feito.
Nossos fracassos e nossas quedas devem ser analisadas e
servir de lição. Valorosamente retomenos o jogo, não
tendo no espírito mais do que somente uma ídéia regente:

33. Marco», XVI, 15.

330
compreender melhor nosso papel e atuá-lo até o fim no seu
sentido original restabelecido.
Sendo o Filme desembaraçado dos elementos cármi-
cos de nossos movimentos livres ali introduzidos no curso
de nossa presente vida, ainda compreende o carma das
experiências anteriores. Em outros termos, nascemos com
um roteiro já oprimido pelas consequências dos movimen­
tos livres anteriores, porque nada se perde no Universo.
Elementos cármicos e traços dos esforços conscientes reali­
zados reencontram-se no nascimento sob forma latente na
nossa consciência. Desde ali exercem, na forma de predis­
posições, tendências ou aversões, certa influência em nossa
vida.
Conforme já indicamos, recém no ápice da Escada, na
nota Fá do Caminho, é que o homem verá o conteúdo inte­
gral de seu ser na sua verdade e em todos seus detalhes. En­
tretanto, desde-a passagem do Primeiro Umbral o trabalho
esotérico deve tender a revelar o verdadeiro sentido do Fil­
me. O homem deve preceder a uma análise imparcial de seu
conteúdo: o papel que ali atua cada um dos atores e o valor
desse papel devem ser passados pelo crivo. À medida que
avança esse trabalho de despojamento, o caráter negativo
ou positivo dos diferentes papéis aparece com mais e mais
clareza, depois do que os elementos heterogéneos tendem
a desaparecer de cena. No final da análise assim efetuada, o
Filme somente contará com um número reduzido de ato­
res. Porém, todos estarão ligados organicamente entre eles
e com o herói, através do conteúdo da obra, tal como foi
concebida na origem das experiências vividas pelo Eu real
através dos séculos e até dos milénios. Esta peça deve ser
encenada, então, até sua solução.
A tarefa principal do homem depois da passagem do
Primeiro Umbral é colocar-se ao abrigo das influências cár-
micas, efeito dos erros cometidos por ocasião dos movi­
mentos livres na vida atual ou nas anteriores. Antes, para
facilitar esta tarefa, ia-se a um mosteiro ou se criava uma
ermida, um ''deserto'*, na linguagem da Tradição Ortodo­
xa. O praticante se encontrava, assim, ao abrigo de uma
grande parte das influências "A", o que lhe permitia me-

331
lhor concentrar seus esforços no trabalho introspectivo. Na
nossa época, esta fórmula está reprimida. Por outro lado,
os mosteiros e as ermidas não são mais encontrados, como
antes, ao alcance de todos. Hoje é necessário trabalhar no
plano esotérico ao mesmo tempo em que se permanece no
estado secular. Além disto, o ritmo da vida atual é diferen­
te. Nossa época exige meios rápidos e enérgicos.
A última questão a elucidar é saber se existe uma
espécie de recurso esotérico que permita ultrapassar a Esca­
da entre os dois Umbrais por um procedimento acelerado,
ao mesmo tempo em que se permaneça neste espaço e ali
se trabalhe.
Esse meio existe: referimo-nos a ele mais de uma vez.
Ê o trabalho a dois, é preciso crer que na era que se apro­
xima esse meio será mais e mais favorecido, para ser, final­
mente, exigido. Entretanto, para que o trabalho esotérico
possa ser empreendido a dois e perseguido com êxito, é
indispensável que os dois seres que dele participam, ho­
mem e mulher, sejam integralmente polares.
Aqui, o método de trabalho é inverso do anteriormen-
te exposto, segundo o qual, por sucessivas eliminações
resultantes de uma longa e minuciosa análise de seu Filme,
depois de novos erros e de novos fracassos, o homem devia
terminar por encontrar o ser integralmente polar, sua esposa
legítima à qual se uniria.
Aqui, o homem deve começar a busca consciente do
ser polar. Se o encontra, pode empreender o trabalho a
dois sobre o Filme que, por sua definição, lhes é comum na
origem.
O homem sozinho é incompleto. Porém, ali onde é
fraco, o ser polar é forte. Em conjunto, formam um ser
integral; sua união provoca a soldagem de suas Personalida­
des e uma cristalização mais rápida de seu corpo astral
completo e unido num segundo Nascimento comum. É a
redenção do pecado original.
O sistema dos Filmes está concebido de maneira que
os seres polares obrigatoriamente se reencontram, em
certos casos, na vida, mais de uma vez. Somente os laços
heterogéneos realizados nesta vida por cada um deles,

332
como consequência dos movimentos livres, assim como as
consequências cármicas de uma ou várias experiências
anteriores, fazem com que o homem e a mulher dêem as
costas ao único ser com o qual podem formar um Micro­
cosmo.
Se não houvesse a tara cármica, tudo aconteceria às
mil maravilhas: dois jovens seres se encontrariam num
ambiente familiar e social dos mais favoráveis e sua união
representaria um verdadeiro conto de fadas. Porém, a reali­
dade não é assim. Obedecendo ao princípio de Imperfeição
e emudecidos pela ação da Lei Geral, os dois seres predesti­
nados cometem erros. Afundados na mentira, em geral não
sabem apreciar o dom que lhes é dado e nem sequer se
reconhecem.
Se isto é correto, propõe-se uma questão angustiante:
existem meios pelos quais detectar nosso ser polar? Encon­
trá-lo, não reconhecê-lo ou deixá-lo passar, é o pior erro
que podemos cometer, porque, então, permanecemos na
nossa vida fictícia e sem luz. Por acaso não podemos e,
inclusive, não devemos sacrificar tudo em favor de uma
união que é a única oportunidade de nossa vida: a promes­
sa de um retorno ao paraíso perdido?
Tomemos cuidado, todavia, com a última armadi­
lha exposta no momento em que a felicidade inefável nos
parece sorrir. Acabamos de dizer: tudo deve ser sacrificado
e não dissemos, tudo deve ser quebrado. Se, depois de
ter-se reconhecido, os dois seres polares triunfam nesta
última prova, frequentemente a mais penosa, a nova vida
se abrirá diante deles, porque eles são chamados a não ser
mais que Unos sobre a terra e nos céus.
Porém, voltemos à questão de saber como não passar
de largo, depois de ter encontrado nosso verdadeiro alter
ego, prémio de felicidade e salvação.
Existe toda uma série de indícios subjetivos e objeti­
vos que facilitam o reconhecimento do ser polar. Porque
a polarização se manifesta em todos os planos de uma
vez: sexual, físico, psíquico e espiritual.
Dois elementos devem ser levados em consideração.
0 primeiro é objetivo, é consequência do princípio
de Imperfeição que se manifesta aqui e em qualquer lugar.

333
como um dos grandes princípios que condicionam e regem
a vida. Se é exato que o homem e a mulher predestinados
são seres absolutamente polares, esta polaridade não existe
simplesmente pelo fato de oue física, psíquica e espiritual­
mente um e outro são, em certa medida, seres hermafrodi­
tas. Esta medida, esta proporção é necessária e suficiente.
Ela é necessária para permitir a todo ser que venha ao
mundo que leve em si a imagem de seu ser polar. Esta ima­
gem expressa-se em cada caso oor meio dos órgãos do sexo
oposto, que existem em todo ser em estado não desenvol­
vido. Isto é, por assim dizer, uma parte da carne e do
sangue de seu ser polar que cada um leva em si. Esta pro­
porção é também suficiente, isto é, que é o mínimo estri­
tamente necessário para não comprometer uma polaridade
completa, porque a proporção de hermafroditismo dos
seres polares é rigorosamente equivalente.
O segundo elemento subjetivo é a deformação de
nossa Personalidade, devido a desvios conscientes ou
inconscientes que sofreu na nossa vida, ou mais exatamen­
te, no curso de nossa existência, em relação ao Filme ini­
cial. Tais deformações tornam tudo mais difícil. Seja o
reconhecimento do ser polar, seja a vontade de pôr tudo
em movimento para unir-se a ele.
Examinaremos agora o fenômeno inicia! da Criação, a
polarização dos sexos, na sua aplicação ao homem. Conhe­
cemos o esquema completo do ser humano.

4-

Figura 59

334
Este esquema somente indica a orientação dos centros
indivisíveis. Com os centros superior e sexual orientados,
o esquema do homem assim se apresenta:

4-
+

4*

Figura 60

O esquema da mulher é naturalmente polar em rela­


ção ao do homem. Colocados um ao lado do outro, estes
esquemas dão a seguinte figura:

O® 4-
4-

o® 4-
+ 4-

4 ®o 4-
4-

Figura 61

Este último esquema representa, em seu conjunto, o


ser completo. Como tal, reflete integralmente — em todos
os seus aspectos - o Absoluto manifesto no Universo criaco.

335
Agora se vê claramente que é o Andrógino que consti­
tui o verdjdeiro Microcosmo e não o homem ou a mulher
isolados. bste compreende em si, na escala infinitesimal, a
integralidade dos elementos que o Macrocosmo contêm em
proporções infinitamente grandes. Sublinhando que, em
relação à B íblia, a criação do homem à imagem e semelhança
de Deus foi feita na forma do Andrógino, tal indicação,
com efeito, coloca-se no tempo anterior à queda de Adão.
Quer dizer, antes da desintegração do corpo dos seres pola­
res.34
Inversamente, tanto para o homem como para a mu­
lher, a salvação definitiva no seio do Absoluto está condi­
cionada por sua reintegração no Microcosmo, como o indi­
ca, explicitamente, o Apóstolo São Paulo no texto já cita­
do: "No Senhor, todavia, nem a mulher é independente do
homem, nem o homem, independente da mulher."35 Em
separado, com efeito, o homem e a mulher, seres incomple­
tos, não podem refletir a imagem de Deus na sua plenitude,
que é "tudo em todos".36
é um axioma que todo homem e toda mulher tem um
ser polar: isto explica, por outro lado, o maravilhoso equi­
líbrio entre os sexos. Entretanto, nem todos os humanos
sentem a necessidade de unirem-se a seu ser polar. Os seres
que vivem ancorados na sua Personalidade, sem refletir
intensamente — e constituem a grande maioria da humani­
dade —, participam no conjunto, na vida, entusiasticamen­
te, colocada sob o regime das influências "A" e não sen­
tem, na verdade, a necessidade dessa união. Para eles, o ser
polar situa-se no mesmo plano que os outros. A Personali­
dade não percebe nele nada de excepcional, e se, por azar,
é percebido algo extraordinário, é rapidamente interpreta­
do como anormal e digno de rejeição. Situações especial­
mente difíceis nascem desse desconhecimento. Deste pon­
to de vista podem-se citar os casais formados sob o império
da Lei de Acidente, nos quais os parceiros têm aspirações

34. Génesis, I, 27; Queda, Ibid., III, 7.


35. I Coríntios, XI, 11.
36. I Coríntios, XV, 28.

336
opostas: um aspira às influências "A", e o outro à busca do
Caminho. Na base de tais uniões encontra-se, com frequên­
cia, ao lado de um duplo erro de juízo, a influência de
taras cármicas distantes ou recentes, por exemplo, no caso
de um matrimónio por conveniência, ou de uma paixão
sem o amor. Se isto ocorre, a atitude mais inteligente é
unir os esforços dos dois em conjunto para desenredar a
situação em benefício mútuo. Porque, abandonada, a situa­
ção pode agravar-se. Uma especial atenção deve ser dada às
crianças vindas de tal união, porque sofrem. Tudo deve ser
feito para remediar. Como regra geral, não se deve perder
de vista que, se está permitido ao ser humano oferecer-se
em sacrifício, ele não tem o direito de aceitá-lo por outra
pessoa.
De toda forma, pode-se dizer que uma evolução acele­
rada do herói do Fiime o aproxima de seu ser polar e, ao
mesmo tempo, distancia automaticamente do Filme as Per­
sonalidades que nele entraram fortuita mente.
O homem começa a sentir o desejo e logo a necessida­
de de unir-se a seu ser polar, como conseqiiência da forma­
ção do centro magnético, e logo em função de seu cresci­
mento. É por isto que a concepção de Andrógino não tem
para o comum dos homens mais do que um valor puramen­
te teórico, o do mito. Agora é possível dar-se conta de que
uma viva aspiração à reintegração no Microcosmo, caminho
conforme foi indicado em numerosas ocasiões, a evolução
esotérica está condicionada, no começo, por uma falha,
por uma derrocada moral. Para progredir, será necessário
alcançar o ponto justo, quer dizer, ver a si mesmo. Santo
Isaac, o Sírio, diz que quem chegou a se ver tal como é, é
melhor do que quem chegou a ver os anjos.37
O que chamamos derrocada é chamado '"morte" pela
Tradição. É a morte num corpo vivente. É necessário mor­
rer primeiro, para depois ressuscitar. Jesus diz: "Se o grão
de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se
morrer, produz muitos frutos."38 E junta este comentário.

37. Filocalia, São Tiago, o Sírio, Sermões.


38. João, XII, 24; Mateus. X, 39; Marcos. VIII, 35. Lucas. IX, 24.

337
"Quem ama sua vida (Personalidade), perde-a; mas aquele
que odeia a sua vida (sempre a Personalidade) neste mun­
do, preserva-la-á para a vida eterna."39
Tomando, progressivamente, seu destino nas próprias
mãos, o homem toma, ao mesmo tempo, a responsabilida­
de por todos os partners de seu Filme.
Já se disse que deve, em primeiro lugar, restituir ao
Filme seu sentido primitivo para logo apurar seu desenvol­
vimento, de modo que a "obra" seja convenientemente
representada até o desenlace previsto. O herói, enquanto
trabalha sobre si mesmo, deve ocupar-se de criar à sua
volta novas circunstâncias, que favoreçam o desenvolvi­
mento da ação até a conclusão originalmente prevista. Seus
esforços exteriores devem, sobretudo, estar orientados para
a criação de tais circunstâncias, e não para a busca de uma
influência direta sobre as pessoas: isto, com frequência,
parece oportuno, mas, na grande maioria dos casos, consti­
tui um erro, porque tal influência cria novas taras cármicas
o que, ao invés de desenredar a situação, complica ainda
mais. É necessário ser prudente e circunspecto. As circuns­
tâncias novas devem criar-se tão-somente com o fito de
ajudar eficazmente os interessados a atuarem no sentido
desejado. Ainda uma vez mais, o homem .deve antes servir
do que impor. A paciência, a perseverança e a fé são, neste
trabalho, qualidades de grande valor prático.
Para poder reconhecer a seu ser polar, o homem deve
pôr em jogo toda a força de atenção de que é capaz, sobre
todos os planos acessíveis â sua consciência. Com efeito,
como consequência da deformação do Filme, o encontro
sempre se produz em circunstâncias inesperadas e sob uma
forma que não se assemelha em nada a tudo o que se pu­
desse imaginar.
A regra imposta é clara: para reconhecer a seu ser
polar, o homem deve conhecer a si próprio. Isto é manifes­
tamente lógico: para reconhecer seu alter ego, o homem
deve reconhecer, em consequência, seu próprio ego.
Assim, somos conduzidos uma vez mais ao problema
da busca do Caminho.
39. Ibid.

338
É verdade que o Eu do corpo e o Eu da Personalida­
de aspiram encontrar em outro ser uma resposta perfeita.
Entretanto, é somente identificando-se com seu Eu real é
que o homem imanta a união com seu ser polar.
É com o coração cheio de fé, nele aguçando todas
suas faculdades mais finas de atenção intuitiva, seu sentido
de análise crítica levado até seu ponto mais alto de desper­
tar, que o homem partirá na busca do ser sem o qual ele
não é, verdadeiramente. Como o trovador de outros tem­
pos, renovando a prática do amor cortesão é que ele poderá
esperar reencontrar a Dama dos seus Pensamentos.
A dificuldade que sentimos para descobrir nosso ser
polar está ligada ao fato de que estamos deformados e
deformamos constantemente nosso Filme com movimen­
tos Hvres. Encontram-se aIi, então, os primeiros pontos a cor­
rigir. É-nos necessário retificar nossa própria deformação e
renunciar a nossos movimentos impulsivos. Assim se expli­
ca a prescrição de não agir sob a influência de somente
um centro: é a necessidade de compensar nossas deforma­
ções que, logicamente, nos imoõe tanto na recepção como
na emissão, fazer trabalhar de uma só vez, por esforços
conscientes nosso centro emotivo e nosso centro intelec­
tual, diante de todos os problemas que se nos apresentam.
A complexidade do ser humano pode ser comparada
à de uma orquestra, sua vida, a uma sinfonia, onde cada
instrumento entra com sua partitura num conjunto, em
princípio, harmonioso. Ao trabalhar sobre si mesmo é
necessário atuar como um diretor de orquestra — um maes­
tro — no transcurso dos ensaios de uma nova obra musical.
Tudo isto representa o trabalho preparatório. Porém,
quando os seres polares se encontram, depois de alguns
sinais perceptíveis imediatamente, esses humanos, ainda
imperfeitos, deformados pelas taras cármicas, podem adqui­
rir a convicção com toda objetividade que eles não se estão
compreendendo?
Eis aqui alguns critérios indispensáveis para que um
reconhecimento mútuo possa ser considerado como tendo
um valor objetivo. Desde o primeiro encontro em presença
do ser polar, o Eu da Personalidade e o Eu do corpo

339
vibram de maneira que não se assemelha em nada ao senti­
do anteriormente. A razão disto é que esses Eus se encon­
tram na presença de seu primeiro amor, que continua atra­
vés dos séculos. Sem ter consciência clara disto, os seres
polares se conhecem e este conhecimento tão antigo como
eles mesmos expressa-se pela voz de seus subconscientes.
Isto cria, a partir do instante do reencontro, uma atmosfe­
ra de confiança e de sinceridade absolutas.
Aí se encontra uma pedra de toque: os seres polares
não se mentem. Eles não têm necessidade de mentirem-se,
porque interiormente ambos não são mais do que um só
ser, do âmago do qual o Eu real lança seu chamado e dá
seu consentimento. Esta sinceridade absoluta, espontânea,
constituirá, daí por diante, a base de suas relações. E isso
dará a esses dois seres o sentimento, de outra forma incon­
cebível, de uma liberdade na unidade, que põe fim à im­
pressão de servidão na que habitualmente vivemos.
Vagas lembranças de experiências anteriores rapida­
mente começam a aflorar à superfície de suas consciências
de vigília.
Agora o leitor compreenderá o sentido mais profundo
da proibição de mentira si próprio: quem se mente, menti­
rá da mesma forma ao seu alter ego. Isto será o fim do
milagre. O lado maravilhoso do encontro desaparecerá
atrás de uma teia de mentiras que, rapidamente, tomará o
aspecto de um muro intransponível. Para lá deste muro,
as relações do ser polar não se distinguirão em mais nada
daquelas que um homem pode ter com outras mulhe­
res, esposas, amantes e aventuras. Uma vez mais a expe­
riência terá fracassado.
Eis aqui como e porque o homem exterior passa
diante do seu ser polar sem reconhecê-lo. Eis aqui por que
o trabalho prático sobre o Caminho esotérico começa e
continua obrigatoriamente com a luta contra a mentira. O
êxito neste campo é indispensável. Nenhum preço a pagar é
demasiado elevado para alcançá-lo.
Se estão abertos à verdade, se seu encontro faz neles
vibrar em harmonia cordas até agora silenciosas, o cami­
nho está, então, traçado aos seres polares para recriarem

340
por seus esforços conscientes o Microcosmo antes dissocia­
do e quebrado. A Escada será franqueada como de um só
lance e, rapidamente, ver-se-ão colocados diante do Segun­
do Umbral.
O catecúmeno ultrapassa o Primeiro Umbrai emudeci­
do por um sentimento negativo: o horror da vida na selva e
o desejo ardente de dali fugir. Para ultrapassar o Segundo
Umbral, os dois seres polares que diante dele se apresentam
devem ser portadores de uma palavra de ordem positiva,
que lhes será requerida no momento.
O Caminho abre-se àqueles que sabem o que querem,
a que aspiram no Caminho e fora do Caminho, na vida
exterior que, daí em diante, não mais poderá separar-se do
trabalho esotérico. Felizes daqueles que podem ali ser
úteis. A porta que conduz à Vida abrir-se-á diante deles e
lerão na fachada do muro que ultrapassarão, a inscrição
sacramental:

"Digno é o trabalhador do seu salário. *M0

40. Lucas. X, 7.

341
Desde a mais alta antiguidade o homem tem procura­
do resolver o problema do Conhecimento absoluto. Uma
fórmula inicial clássica diz: busca captar isto, apreenden­
do-o, saberá tudo. Ensinava-se aos neófitos que, para com­
preender tudo é necessário saber muito pouco, porém, para
captar esse pouco, é preciso aprender muito. Nesta ordem
de ideias, a noção de Gnosis representava,.no espírito dos
Antigos, não um simples conhecimento, mas o conheci­
mento vivificante, superior à Razão e à Fé.
A Gnosis aparece, então, como a Sabedoria misteriosa
e oculta, segundo a palavra de São Paulo, epígrafe da nossa
obra, da qual é o desenho, expondo diferentes aspectos
dessa sabedoria, fazendo perceber o sentido hermético do
seu título. O subtítulo refere-se não mais à idéia abstrata
de Gnosis, mas à sua manifestação no mundo, especialmen­
te o período crítico que precede o Advento de Cristo e a
ele se segue.
No curso do Ciclo do Pai, a Gnosis divina tinha sido
revelada sob a forma de mistérios —mistérios de Promessa
— que encontraram sua justificativa no mistério da realiza­
ção de Jesus.
Com o Advento de Cristo, a ordem de silêncio ante-
riormente imposta aos iniciados, desaparece. Libera-se,
então, um fluxo de idéias gnósticas. Em numerosos lugares
do mundo antigo, aparecem, espontaneamente, ensinamen­
tos, teorias, sistemas, baseados tanto sobre a Tradição dos
mistérios de Promessa quanto sobre o mistério de Jesus,
que perturba a antiga ordem inicial.
Na mescla de idéias que disto resulta, pode-se distin­
guir rapidamente duas correntes divergentes, ainda que par-

343
tindo do mesmo postulado de base, a saber, a constatação
do mundo dos fenômenos.
Certos gnósticos procuram explicar esta imperfeição
pela queda da Luz na matéria, catástrofe que se teria pro­
duzido fora da intervenção de Deus Perfeito não manifes­
to, ou ainda por um erro, ou mesmo por uma intervenção
mal intencionada do Criador.
Na base de tais erros sempre se encontra uma confu­
são dos planos. O raciocínio atribui ao divino uma atitude,
uma fraqueza, e mais ainda, motivos puramente humanos.
Entre outras coisas, ali se reconhece a marca do pensamen­
to helénico que tende a humanizar as divindades. A Boa
Nova anunciada por Jesus reinverte essa antiga concepção,
apelando â divinização do humano no homem, através do
segundo Nascimento, porta do Reino de Deus.
Tais lutas de idéias terminarão com a vitória da Orto­
doxia. As tendências heréticas que se manifestaram foram
combatidas uma depois da outra e reduzidas pela obra dos
Apóstolos, depois pelos doutores da Igreja ecuménica, que
se dedicaram a fazer resplandecer na sua Verdade a doutri­
na de Cristo, doutrina do Amor.
A Tradição esotérica, misteriosa e oculta, pôde, assim,
ser conservada na sua pureza original, especialmente na Or­
todoxia Oriental, tal como havia sido transmitida pelos
Apóstolos e seus discípulos.

Boris Mouravieff

344
APÊNDICE

1. SENTIDO DAGNOSIS

A Gnosis revelada por Jesus a João, Tiago e Pedro,


depois de sua ressurreição, alcança, por ordem de sucessão,
a Clemente de Alexandria (em torno de 160-215) e a seus
discípulos imediatos.
Diante das perseguições do século III, assim como os
problemas e outras perseguições fomentadas no seio do
Cristianismo logo que se converteu em religião de Estado,
foi necessário, para salvá-la, "hermetizá-la". Escondida
como se esconde a um tesouro na terra, a Gnosis abre silen­
ciosamente um caminho e, como um rio subterrâneo, flui,
sob a forma de tradição oral de mestre a discípulo e de
geração a geração até nossos dias, quando ela volta a subir
à superfície. Desembaraçada de seu caráter oculto, retoma
seu primitivo significado e projeção esotérica no futuro,
sob a forma da Nova Aliança. Dito de outra forma: do Ter­
ceiro Testamento.
Ao Ocidente corresponde o mérito de ter conservado
em seu seio a Gnosis revelada por Nosso Senhor. Agora
divulgada de forma sistemática, ela permite, diante da nova
aproximação do Reino dos Céus na Era do Espírito Santo,
fazer o balanço dos esforços que, durante séculos e, mes­
mo, milénios, têm perseguido os pesquisadores sinceros na
sua perseguição à Verdade.
2. PERÍODO DE TRANSIÇÃO

Está "a cavalo" entre o Ciclo do Filho e o do Espíri­


to Santo. É relativamente curto. Pode ser um século. Co-

345
meçou com a primeira Conferência de Haia (1890), a
guerra russo-japonesa, seguida pela primeira revolução
russa e da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que pro­
duziu a derrocada do antigo equilíbrio político e social do
planeta e, paralelamente, um vertiginoso progresso da téc­
nica.
Entretanto, é impossível precisar o término desse
período. Porque se disse: "Mas a respeito daquele dia e
hora, ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho,
senão somente o Pai." (Mateus, XXIV, 36; Marcos, XIII,
32).
Com algumas reservas pode-se afirmar, contudo,
que o período de transição, verdadeiramente, não superará
o fim do século. Porque todos os sinais indicados como as
condições necessárias do Fim, reúnem-se sob nossos olhos
(Mateus, XXIV, 4-9).
A tarefa preparatória para a passagem ao terceiro Ci­
clo realizou-se, em parte, no que concerne às condições
exteriores da vida orgânica sobre a terra em seu conjunto
e, especialmente, àquelas condições externas que afetam a
vida material dos humanos.
Falta reunir as condições apropriadas no plano
moral, ainda que não seja fácil conceber quais poderiam ser
estas condições. Porque aqui, como em tudo, o novo per­
manece sempre desconhecido, em consequência, e de certa
forma inconcebível. Neste plano, hoje como sempre, o
homem caminha cegamente, a menos que não seja esclare­
cido — igualmente como sempre — pela Revelação transmi­
tida pela boca dos verdadeiros Profetas.
O conforto, palavra de ordem do Progresso, sob seus
diversos aspectos, e em diferentes graus, é suficiente como
meta, para a maior parte dos homens civilizados de nossa
época. Nestas condições — que são as nossas — o homem
não admite os valores divinos, a não ser cuidadosamente
dosados, à medida que não perturbem, dentro de sua cons­
ciência burguesa ou socialista-comunista, o bem-estar mate­
rial que adquiriu.
O risco de tal atitude consiste em que ela é natural e,
em consequência, está apoiada numa força elementar. A lei
é formal: "Ninguém, tendo bebido o vinho velho, prefere o

346
novo; porque diz: o velho é excelente" (Lucas, V, 39).^
Como se indicou antes, a tarefa preparatória no
plano moral no curso do Período de transição, pode e deve
ser cumprida sob a égide do Absoluto \\, pelos humanos e
para os humanos. Trata-se, então, do problema do Novo
Homem, do qual se fala longamente no Ciclo Exotérico.
Com efeito, o êxito depende do surgimento em futuro pró­
ximo de um número suficiente de homens pertencentes a
esse novo tipo humano (escrito por Mouravieff em 1960).
A juventude atual exige uma atenção crescente, pois
dela sairão os portadores de predisposições esotéricas ina­
tas (e das gerações seguintes). Com a condição de que,
além disso, tenham uma formação profissional muito alta,
essas predisposições sejam convenientemente desenvolvidas
por uma formação esotérica. Esses homens serão chamados
a constituir os elementos ativos da nova elite.
E necessário uma especial atenção às adolescentes e às
jovens.
Porque se a Queda foi provocada por Eva, não se
pode esquecer que é através da Virgem Maria que Nosso
Senhor veio ao mundo para indicar ao homem a Via da Sal­
vação. E é ainda a Mulher, fica de Eva, a quem pertence,
hoje, participar plenamente, com sua refinada sensibilida­
de, seu papel positivo de inspiradora neste difícil período
de transição em direção à Era da Redenção prometida.
é aos seres de boa-fé que nosso esforço se dirige para
fazer escutar a revelação do mistério da Cosmogonia. Para
fazê-los perceber, com a ajuda deste Conhecimento supe­
rior, o papel que representa — ou que poderia representar —
o homem, em três graus diferentes, neste eterno processo
da Criação.
Entretanto, para poder fazê-lo, é preciso antes se
fazer uma idéia da Obra Criadora de Deus em seu conjunto
e sob seu aspecto dinâmico. Para, em seguida, proceder do
geral ao particular;
Isto demanda coragem e humildade. Porque, com a
proximidade da era do Espírito Santo, tudo deve ser
exposto progressivamente à luz, quer se trate dos segredos
dos laboratórios ou das profundidades esotéricas. E o
mesmo para as ilusões, os erros e as mentiras, que também

347
deverão ser revelados para serem retificados, em seguida.
Este processo já está em curso. Isto explica, em grande
medida, as dificuldades políticas e sociais que caracterizam
nossa época de transição. Porém são muito poucos aqueles
que se dão conta e sabem interpretar os sinais do tempo
presente, ainda que atualmente seja dado aos espíritos aber­
tos, cultivados e valentes, inspirando-se no do Precursor
(São João Batista) de Nosso Senhor, aproximar-se da luz
da Inteligência de Cristo (I Coríntios, II, 16), para entrar
nesta luz, no que se segue.

3. O PAI

Quem é o Pai de Jesus Cristo? Esse pai do qual Jesus


diz a Maria Madalena depois de Sua ressurreição: "... vai
ter com os meus irmãos e dizei-lhes: Subo para meu Pai e
vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus" (João, XX, 17).
Se nos referimos ao texto do Evangelho, a resposta à
pergunta exposta não deixa lugar a dúvidas: "Jesus nasceu
da Virgem Maria e do Espírito Santo que é vosso verdadei­
ro Pai" (Mateus, I, 18; Lucas, I, 27-35).
Por outro lado. São Lucas, falando do batismo de Je­
sus, relata:
"E aconteceu que, ao ser todo o povo batizado, tam­
bém o foi Jesus; e estando ele a orar, o céu se abriu, e o
Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea como
pomba; e ouviu-se uma voz do céu: Tu és o meu Filho ama­
do, em ti me comprazo" (Lucas, III, 21; Mateus, III, 16-
17; Marcos, I, 11).
A cena da Transfiguração sobre o Monte Tabor tam­
bém nos dá uma indicação que deve reter nossa atenção.
Pedro, que se encontrava ali com Tiago e João, tomando a
palavra, diz a Jesus:
"Senhor, bom é estarmos aqui. Se querer, farei aqui
três tendas, uma será tua, outra para Moisés, outra para
Elias". Falava ele ainda, quando uma nuvem luminosa os
envolveu; e eis, vindo da nuvem, uma voz que dizia: "Este
é meu Filho amado, em quem me comprazo: ouvi-o"
(Mateus XVII, 4-5).

348
Este fenômeno da nuvem é mencionado mais de uma
vez no Antigo e no Novo Testamento.
Do que antecede, deduz-se de uma maneira suficiente­
mente clara, que Deus é o Pai, Pai de Jesus Cristo, Deus
Vivente, Onipresente. Tudo abarcante e tudo vivificante,
nosso Pai celeste comum, o Primeiro surgido do Absoluto
não-manifesto, de antes da Criação, é o Espírito Santo.
Assim, para fixar as ideias sobre a Santíssima Trinda­
de, base da crença cristã, podemos propor a seguinte inter­
pretação.
A — O verdadeiro Pai do Macrocosmo criado é Deus
não-manifesto que contém, não-manifesta, toda a Santís­
sima Trindade.
B — Seu Amor criador absoluto aparece como o Espí­
rito Santo Onipresente e Tudo abarcante. Tudo vivificante
e perfeito, é o Pai do Cristo, o qual se encarna Dele e da
Virgem Maria (Credo). É também nosso próprio Pai, como
Jesus o disse mais de uma vez — exortando aos humanos:
"Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai
celeste" (Mateus, V, 48). Dito de outra forma, é o Absolu­
to I, Chefe da Primeira Oitava Cósmica.
C — O Filho, o Cristo cósmico. Jesus Cristo encarna­
do entre os humanos, sendo Uno com seu Pai, que é o
Espírito Santo, de quem é inseparável. Entretanto, nin­
guém pode alcançar ao Pai se não for pelo Filho (Mateus,
XI, 27).
Os órgãos de recepção da Graça Divina são os nossos
centros superiores: o Centro Emotivo Superior, através do
qual alcançamos a identificação com nosso Eu real, nature­
za de Cristo. Por ali - e não de outra forma — o homem
entra em contato com seu Centro Intelectual Superior, o
que lhe permite captar as mensagens de nosso Pai Celeste.
Para entrar, ultrapassando o Terceiro Umbral, no Pieroma
do seu Amor absoluto, que é a Beatitude Suprema.
O Filho é, já o dissemos, o Absoluto H, Chefe de sua
Segunda Oitava cósmica.

349
4. O PAI NOSSO

Mateus, VI, 9 — "Vós, pois, orai assim..."


DÕ — "Pai nosso que estás nos céus,
• — Santificado seja teu nome.
$! — Venha” a nós o teu reino.
LÁ — Faça-se a tua vontade, assim na terra como no
céu.

SOL — O pão nosso de cada dia dá-nos hoje.


2 FÂ — E perdoa-nos as nossas dívidas.

3 — Assim como nós temos perdoado aos nossos


devedores.

Ml — E não nos deixes cair em tentação.


4 RÉ — Mas livra-nos do mal,
Amém."
"Esta prece é, de uma só vez, um impulso em direção
à Luz e ao Amor, porque Deus é Luz e Amor (João, I,
6-9). Formulando-a, Jesus quis ensinar ao homem adâmico,
caído na cega obscuridade que resulta de sua identificação
com a Personalidade, a implorar o socorro da Luz cálida do
Amor de que se privou a partir da queda. Sob tal ponto de
vista didático, o Evangelho resume todas as Epístolas que o
comentam."
"Seus nove elementos autónomos correspondem às
notas da Grande Oitava Cósmica."
Os quatro grupos correspondem, respectivamente, a
quatro, dois, um e dois versos.
O primeiro grupo tem um caráter geral e um papel
preparatório, que é o de desbloquear o coração do fiel obs-
truído, a fim de que possa nele penetrar livremente a sutil

350
corrente do Amor que emana do Absoluto I: o Pai. Esta
operação constitui uma operação sine qua non da eficácia
da prece, é difícil, fazê-lo assim, em meio ao tumulto do
mundo de influências "A," e é para facilitá-lo que Jesus faz
esta recomendação; "Tu, porém, quando orares, entra no
teu quarto, e, fechada a porta, orarás a teu Pai que está em
secreto, e teu Pai que vé em secreto, te recompensará"
(Mateus, VI, 6).
O trabalho preparatório mencionado antes é neces­
sário para que o coração, isolado do sobressalto contínuo
da vida, seja posto no estado de recolhimento requerido.
Se este isolamento é efetivo, o fiel estará em condições de
abordar os elementos do segundo grupo — o quinto e o
sexto — dentro de um espírito mântrico, capaz de ousadia
(valentia).
Solicitará, então, a intervenção do Absoluto I: o Cris­
to, pão supersubstancial, a fim de obter através do socorro
da sua Graça o esgotamento de sua tara cármica e, desde
então, sua purificação.
A atitude de Cristo frente ao suplicante que dá provas
de valentia é invariavelmente positiva. Melhor ainda, ele
mesmo exerce no coração humano uma pressão constante,
como o indicam estas palavras: "Eis que estou à porta e
bato" (Apocalipse, III, 20).
Assim, uma possibilidade de purificação se oferece
gratuitamente àquele que, repitamo-lo, sabe, seguindo a
caminhada transversal da prece, criar como consequência,
nele mesmo, por uma concentração passiva, a atmosfera
necessária, depois, numa concentração ativa, implorar sua
purificação pela Graça, pão supersubstancial do Cristo, e
isto "hoje" nesta mesma vida.
Todas as condições requeridas, assim, para a prece, se
encontram deste modo reunidas. De toda forma, tais con­
dições necessárias não são suficientes. Ainda falta preen­
cher a segunda condição sine qua non, que exige da vonta­
de humana o esforço de ir mais além da vontade divina,
sempre disposta a ajudar ao homem que aspira à Redenção.
Esta condição é definida no sétimo elemento da prece:
"... Assim como nós temos perdoado aos nossos devedo­
res."

351
Por este ato humano, mas de inspiração divina, o fiel
supera o intervalo que separa as notas Fá e Mi e abre a
"comporta" para a corrente do Amor redentor de Cristo,
que vem a unir-se ao do Pai. A ultrapassagem do intervalo
depende deste ato que aqui se vê como essencial. Se esta
condição sine qua non é preenchida, efetivamente, o fiel
poderá passar ao quarto grupo de elementos e é, então,
que rogará utilmente, na nota Mi, para ser preservado de uma
nova queda, ainda mais profunda que a primeira e na nota
fíé para ser para sempre liberado da autoridade do Absoluto
III (Satanás, o Adversário, o Príncipe deste Mundo: a Lei
Geral).

5. SOBRE O ESTUDO DA GNOSIS

No ensinamento tradicional sistemático, cada um dos


Ciclos (exotérico, mesotérico e esotérico) tem uma função
análoga dos três graus do ensino público. Desta forma:
1. O Ciclo exotérico corresponde ao ensinamento
esotérico primário. Como tal, tem como meta prover o
estudante de um instrumento de trabalho; constitui, de
certa forma, o ABC da Doutrina.
2. O Ciclo mesotérico, como o ensino secundário,
busca comunicar ao estudante os elementos de uma cultura
geral e fazê-lo aprender um método.
3. O Ciclo esotérico corresponde ao ensino superior.
Convém fazer notar que em todo o ensinamento eso­
térico sério, assim como no ensino público, o ensino pri­
mário é, sempre, por sua natureza, mais ou menos unifor­
me. O ensino tradicional secundário dá lugar, como seu
homólogo leigo, a uma primeira especialização: clássica ou
moderna no mundo, monástica ou leiga no domínio esoté­
rico.
Quanto ao ensino superior, é especializado nos dois
casos.
Admite-se, em geral, que não se pode consentir com
êxito no ensino secundário sem passar pelo ensino primário
nem enfrentar o ensino superior, sem ter assimilado previa-
mente o conteúdo do ensino secundário.

352
Esses graus operam uma seleção automática das pes­
soas aptas a tornarem-se elementos ativos da elite cultural
na sociedade humana, ao menos teoricamente. Na prática,
surge, com frequência, um curioso fenômeno. Enquanto
não se procurariam, por exemplo, discutir as propriedades
de binómio de Newton sem se ter estudado álgebra, na
falta da qual toda opinião sobre este tema tornar-se-ia,
forçosamente, sem valor, no domínio esotérico acredita-se
freqúentemente se estar apto para julgar sem mesmo haver
aprendido, previamente, os rudimentos desta espécie de
conhecimento.
Além disso, exige-se, freqúentemente, do ensinamen­
to esotérico, uma simplicidade baseada no princípio geral­
mente admitido que a Verdade, em si, deve ser simples.
Deduz-se disto que o acesso à Verdade também deve ser
simples, e o método que a ela conduz, facilmente assimilá­
vel. Esta tese é perfeitamente exata com a condição de que
nós mesmos sejamos simples, quer dizer, justos, no sentido
evangélico. Desgraçadamente, pela anarquia de nossos
pequenos 987 eus, não o somos. E para passar do estado
pervertido da nossa desordem interior à simplicidade origi­
nal, existe um longo caminho a percorrer. É a Via (o Cami­
nho) que conduz o pesquisador, da Selva, da ignorância, à
Luz do Tabor.
A experiência mostra que, praticamente, esta doutri­
na da "simplicidade", admitida como uma espécie de axio­
ma, desvia o estudante da estreita porta e do caminho aper­
tado que conduz â Vida (Mateus, VII, 13-14; Lucas, XII,
24). Empurrado por esta contraverdade, ele acredita se
encontrar diante desta porta, enquanto, na realidade,
encontra-se comprometido, ao mesmo tempo que atua de
completa boa-fé no caminho espaçoso que conduz à perdi­
ção (Mateus, VII, 13), Ad majorem diaboli gloriam, bem
entendido.
Esta doutrina da simplicidade, justa em si mesma,
porém falsamente interpretada, constitui uma armadilha
para nosso coração, demasiado corrupto, um risco a reco­
nhecer e evitar.

353
6. META E TRABALHO

Estes dois pontos estão in ti mamente ligados e for­


mam, por assim dizer, as duas faces de uma mesma ques­
tão.
Uma muito antiga máxima, citada no Evangelho
segundo São Lucas, situa o problema. Ele escreve: “Digno
é o trabalhador do seu salário" (Lucas, X, 7; Mateus, X,
10). Esta máxima está citada no contexto do envio de 72
discípulos "como cordeiros no meio de lobos", para anun­
ciar às pessoas que "O Reino de Deus se aproxima".
Quer dizer que no domínio esotérico, como nos negó­
cios do mundo do comércio, o homem ganha seu salário
trabalhando para a empresa ao serviço da qual se compro­
meteu.
Entretanto, a vida exterior, a das influências "A",
deixa a possibilidade de adquirir bens sem trabalhar, pela
especulação, por exemplo, ou por todas as classes de
abusos não passíveis de penas; por outros meios, ainda, por
procedimentos mais ou menos fraudulentos, mas que de
toda forma não superam os limites fixados pela lei huma­
na. Uma margem de tolerância bastante grande é deixada
pela Lei Geral aos humanos que, assim, trabalham no do­
mínio das influências "A". É deles que se disse que: Os
filhos deste mundo são mais hábeis que os filhos da luz. E
não esqueçamos que Jesus colocou esta conclusão no final
da célebre parábola relativa ao administrador infiel (Lucas
XVI, 8). Ao contrário, no domínio esotérico, nada se pode
ganhar de puro e verdadeiro, em consequência, belo, sem
haver provindo de um trabalho cuja importância é equiva­
lente ao resultado a que o mesmo trabalhador aspira. Inver-
samente, a importância dos resultados que se obtêm para si
mesmo é sempre equivalente, quantitativae oualitativamen-
to, à medida dos serviços produzidos — no plano esotérico,
bem entendido.
Nós sublinhamos: puros e verdadeiros, em consequên­
cia, permanentes. Isto porque é possível obter resultados,
por assim dizer, esotéricos, porém impuros e, consequen­
te monte, falsos e passageiros.

354
Aqui fazemos alusão ao vasto domínio do ocultismo
onde os filhos deste século, mais hábeis que os filhos da
luz, buscam aplicar sua habilidade além do mundo visível.
Trata-se do que chamamos a "mística fenomenalista".
Se o pesquisador parte de uma posição negativa de
insuficiência e de insatisfação e se aproxima do domínio
esotérico empurrado pelo desejo de ali encontrar direta­
mente uma satisfação pessoal, então impura, não poderá
avançar muito longe nesse caminho. Se insiste, será um
fracasso.
Porque o erro de concepção feito no começo o con­
duzirá, insensivelmente, em direção a essa "mística feno-
menalista". Na sua forma ativa já foi mencionada no Ciclo
exotérico até o final do Capítulo VI.
Quanto à satisfação verdadeira, a recompensa da qual
se fala no Evangelho, o estudante não a encontrará, a não
ser servindo a uma causa esotérica.
A vida orgânica sobre a Terra, com o homem adâmico
à sua cabeça, evolui sob a égide do Absoluto II, o Cristo,
Filho de Deus, que atua entre os homens, através de huma­
nos capazes de ser úteis, aptos a tomarem uma parte ativa
nesta ação.

7. LOBOS LADRÕES

"Acautelai-vos dos falsos profetas que se vos apresen­


tam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos rou-
badores. Pelos seus frutos os conhecereis".
(Mateus, VII, 15-16).
Ciclo Exotérico — Capítulo VI — Figura 21.
é muito difícil, senão impossível, ao homem que
ainda está insuficientemente evoluído esotericamente, dis­
cernir espontaneamente os falsos profetas. Reconhecerá
com mais facilidade pelos seus "frutos", quer dizer, segun­
do os resultados observáveis de suas obras, que constituem
os índices. A tradição conhece e ensina toda uma Ciência
dos índices.
Jesus diz:
"É inevitável que venham escândalos, mas ai do ho­
mem pelo qual eles vêml Melhor fora que se lhe pendurasse

355
ao pescoço uma pedra de rhoinho e fosse atirado no mar"
(Lucas, XVII, 1).
No momento, tratemos de compreender as razoes
pelas quais é impossível, como disse Jesus, que não venham
escândalos no mundo. Tomemos este texto como advertên­
cia e não esqueçamos que seu sentido é duplo, porque o
Senhor junta, para concluir: ''Acautelai-vos de vós mes­
mos" (Lucas, XVII, 3). Esta advertência é perturbadora,
porém seu valor é real. Um ladrão pode nos roubar a fortu­
na: um "lobo ladrão" pode privar-nos da salvação.
Que esses "lobos ladrões" apresentam-se, precisamen­
te, em vestimentas de ovelhas, o aprendemos do seguinte
texto, feito para nos amedrontar:
"Nem tudo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no
reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que
está nos ceus. Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Se­
nhor, Senhorl porventura não temos nós profetizado em
teu nome, e em teu nome não expelimos demónios, e em
teu nome não fizemos muitos milagres? Então lhes direi
explicitamente: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os
que praticais a iniquidade" (Mateus, VII, 21-23).
Disto resulta que nem as profecias que se realizam,
nem os milagres cumpridos, constituem garantias contra os
"lobos ladrões".. É importante sabê-lo, porque a indicação
dada é precisa.
Jesus diz que o fim virá quando o Evangelho tenha
sido pregado no "mundo inteiro" (Mateus, XXIV, 14); o
que hoje em dia é um fato cumprido. E nesta época —
nossa época:
"Porque surgirão falsos cristos e falsos profetas, ope­
rando grandes sinais e prodígios para enganar, se possível,
os próprios eleitos" (Mateus, XXIV, 24).
8. RECAPITULAÇÃO

1. A meta final que o homem pode esperar alcançar


por meio do trabalho esotérico é conseguir o segundo Nas­
cimento e assim vencer a Morte. Essa meta está definida
explicitamente no Evangelho, comentada abundantemente
na Tradição e na Doutrina. É a Salvação.

356
2: Esta meta não pode ser alcançada, salvo raras exce­
ções, a não ser através de um trabalho metódico e assíduo
do estudante. A soma de esforços conscientes requeridos
é proporcionalmente igual ao grau de degeneração da Per­
sonalidade. Esse grau é habitualmente grande, muito
maior, por exemplo, do que aquele que o estudante
. conduz desde o ensino primário até a defesa de uma tese
de doutorado.

3. A particularidade de tais esforços — já foi visto no


Ciclo Exoterico — reside no fato de que todo o trabalho do
estudante sobre ele mesmo está colocado no sentido do
despertar da afetividade, em geral profundamente adorme­
cida, sobretudo nas pessoas cultivadas de nosso tempo.
Este despertar, essa chama, é a condição expressa e o
ponto de partida para o êxito: para avançar, é necessário
arder. O fogo que arde sob as cinzas não é suficiente.
Uma técnica especial foi proposta aos estudantes, que
lhes permitirá reavivar o fogo insuficiente e atiçá-lo, quan­
to tenha tendência a morrer.

4. Entretanto, esse trabalho sobre si, tendo por obje­


tivo a evolução individual, não pode ser cumprido no
vazio, quer dizer, isoladamente. A Lei é nítida: o resultado
esperado não pode ser alcançado praticamente, a não ser
sob a forma da recompensa, conforme o princípio enuncia­
do: Digno é o trabalhador do seu salário.
Dito de outra forma, a acumulação dos valores esoté­
ricos não pode ser realizada, como no século, através de
meios e fins egoístas. Porque todo o verdadeiro trabalho
esotérico está orientado no sentido diametralmente oposto
ao do egoísmo.

5. Assim, o estudante não se deve deixar iludir pelos


espelhismos que o aguardam no atalho, mas deve armar-
se de uma coragem firme e de uma fé ardente que lhe per­
mitirão encontrar um meio prático para entrar no Trabalho
Esotérico que se efetua no mundo.

357
6. Para isto, o desejo nas ilhargas e o fogo no coração
ainda não são suficientes. Se eles permanecem sem aplica­
ção esotericamente prática, essa força de tensão acesa se
dissipará em fumaça. Porque toda força exige um ponto de
aplicação definida, sem a qual ela se decompõe e se disper­
sa. Para que essa força possa ser aplicada, o estudante que
busca o trabalho esotérico deve, além disso, ser útil. Eis aí
o começo de sua tarefa, quer dizer, que passará das pala­
vras e das aspirações aos atos. E em profundidade e à medi­
da do trabalho previsto, seu "salário" aumentará automati­
camente.

7. 0 pesquisador é livre na sua escolha. A disciplina é


aceita voluntariamente, porém ela é de ferro. O estudante
pode, a qualquer momento, abandonar seu trabalho para
voltar aos interesses do século. Entretanto, ficará "intoxi­
cado", porque a participação no trabalho esotérico abre-
lhe, progressivamente, os olhos, turva a visão para as cores
da vida exterior e rompe sua antiga escala de valores.
A liberdade de ação e a iniciativa do pesquisador com­
portam um risco: o de tomar o falso pelo verdadeiro; o
impuro pelo puro, de se prestar ao escândalo dos "pode­
res" etc. De toda forma, o erro cometido por um coração
puro e ardente, por consequência, o erro sincero, não com­
porta nele mesmo um risco mortal. Porque será advertido
a tempo, mesmo se persiste no seu erro. O caso de São
Paulo convertido no caminho de Damasco provê um
exemplo comprobatório.
O verdadeiro risco que pode trazer um pecado mortal,
isto é, um fracasso definitivo, torna-se concreto quando o
coração impuro procura fazer-se servir por forças psíquicas
superiores, com fins egoístas, é uma catástrofe.
Para concluir, desejamos atrair a atenção sobre o
valor único de vossa Personalidade, valor inestimável, ape­
sar de todos seus defeitos e de suas debilidades, apesar de
que pareça pobre, miserável, às vezes grotesca, é necessário
compreender bem que a Personalidade humana, no seu es­
tado de inacabada em que se encontra, constitui nosso
único instrumento de trabalho esotérico. Melhor ainda,

358
ela é um dom; é, precisamente, o talento que o Mestre nos
deu, a fim de que o façamos frutificar. Desgraçado daquele
que a afunda na terra de seu corpol Porque se "o servo inú­
til o lançar para fora, nas trevas, ali haverá choro e ranger
de dentes" (Mateus, XXV, 30). E isto não é uma metáfora.
Não ó necessário, então, trabalhar com amor e com todas
nossas forças, porque não sabemos a que hora o Mestre virá
a cobrar-nos os débitos.

Boris Mouravieff

REINO DOS CÉUS

8 y
1 2 3 4 5 e 7 8 9 10
7

5
x,
4

1
I 1 2 9 10 11 *12 13 14 15 16
| SI LA SOL FÁ | RÉ |do| SI
DÓ Ml

Ap2 iJ/3 V4 'I'5 Í1

I II III —• «|V kéV

OX = Escala dos Tempos, por períodos de milhares de


anos, desde a queda de Adão até o Juízo Final.
OY = Escala do Homem na sua evolução sobre a Terra de
1 a 7, e 7 mais além do Terceiro Umbral.
= A queda de Adão.

359
DÔ, DÔ1, Sl’1 =Gama descendente: a ação da vontade de
Deus de regenerar a humanidade adâmica.
M'2 = Dilúvio das Aguas.
Ap3 = Destruição do Templo.
ip-4 = Hiroshima.
'P5 = O Cumprimento (a Consumação): seja o Dilúvio de
Fogo, seja de Novos Céus e uma nova Terra (II Pe­
dro, III, 13).
D = O Juízo Final.
I = Ciclo pré-histórico.
II = Ciclo do Pai.
III = Ciclo do Filho.
IV = Ciclo do Espírito Santo.

No alto, horizontalmente:

1. Adão e Eva.
2. Noé e Norea.
3. Torre de Babel:confusão de línguas.
4. Moisés.
5. Davi.
6. Jesus.
7. Separação das Igrejas.
8. Começo da era atómica: a ONU e a descolonização.
9. Retorno ao regime do EU real: abolição da mentira, da
ilusão e da hipocrisia. O Reino do Andrógino.
10. Separação definitiva da cinza e da boa semente (Ma­
teus, 24-30, XIII).

360
Há muito que faltava um bom texto em portu­
guês sobre esoterismo do ponto de vista da Gnose.
Trata-se de um esoterismo cristão da mais pura linha­
gem que remonta aos primeiros tempos do cristianis­
mo, no Egito e Oriente Médio. Lembra-nos antigos tex­
tos em línguas mortas usadas naquelas regiões, co­
mo aramaico e o copta, em que os chamados “pais
da Igreja” registraram tudo o que intuíam pelo conhe­
cimento direto e inspirado de suas visões e êxtases
religiosos.
Agora, a ícone Editora vem apresentar uma cole­
tânea de autoria de Boris Mouravieff, estudioso argen­
tino da Gnose, que traz à nossa época sedenta de es­
pírito e transcendência, uma água pura da fonte.
Temos aqui a religião cristã em todo o seu bri­
lho, sem a interpretação ingénua que criou tantos ini­
migos dela, em todas as latitudes. A religião, interpre­
tada superficialmente, constitui o que os antigos
chamavam de “pequenos mistérios”; aqui a temos
mais aprofundada, em preparação para a Iniciação
propriamente dita.

ISBN - 85-274»-0082-0

Tcone
editora

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