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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Procuradoria da República no Paraná


Procuradoria da República no Município de Londrina

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ FEDERAL DA ____ VARA FEDERAL DA


SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE LONDRINA/PR,

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por seus membros


signatários, com fundamento nos arts. 127, caput, e 129, II e III, da Constituição
Federal, no art. 5º, III, e, da Lei Complementar nº 75/1993, no art. 1º, IV, da Lei nº
7.347/1985, no art. 3º, caput, da Lei nº 7.853/1989, no art. 201, V e VIII, da Lei nº
8.069/1990 e no arts. 79, § 3º, da Lei nº 13.146/2015 propõe a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA


com pedido de liminar em antecipação de tutela

em face de

1) UNIÃO (Ministério das Cidades/Denatran), pessoa jurídica de direito público,


representada pela Advocacia-Geral da União, sediada na Avenida do Café, 543, Bairro
Aeroporto, em Londrina/PR; e

2) DEPARTAMENTO DE TRÂNSITO DO PARANÁ – DETRAN/PR, pessoa


jurídica de direito público sob a forma de autarquia estadual, inscrita no CNPJ sob nº
78.206.513/0001-40, com sede na Av. Victor Ferreira do Amaral, nº 2.940, CEP
82.800-900, em Curitiba/PR, representada por seu Diretor-Geral;

pelas razões de fato e de direito a seguir expostas:


Ministério Público Federal
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I – PRELIMINARES

1. À guisa de introdução, adiante-se que a presente ação tem


origem nos fatos apurados no bojo do Procedimento Preparatório nº
1.25.005.000088/2017-41, anexado a esta vestibular (Evento 1 – PROCADM2 a
PROCADM7), e tem por escopo afastar os óbices ilegais e abusivos que têm sido
impostos pelos réus à aquisição e à posterior revenda de veículos automotores
adquiridos com isenção de IPI e/ou ICMS em benefício de menores com deficiência
(PcD), como se verá adiante.

I.1 – Competência da Justiça Federal

2. In casu, a competência da Justiça Federal decorre da presença


do Ministério Público Federal – MPF e da União no polo ativo e passivo da ação,
fazendo incidir o disposto no art. 109, I, da Constituição Federal. Complementarmente,
acresça-se que a ação objetiva beneficiar apenas cidadãos domiciliados nesta Subseção
Judiciária de Londrina – e que se enquadrem na situação fática descrita no tópico
seguinte, tendo-se por “paradigma” o caso analisado no procedimento preparatório
acima mencionado1.
Competentes, portanto, as Varas Federais desta Subseção
Judiciária de Londrina/PR.

1 Nada impede, entretanto (aliás, seria de bom alvitre), que o DETRAN/PR estenda essa decisão (de
não mais exigir autorização judicial para a revenda de veículos que foram obrigatoriamente
registrados em nome de menor PcD) a todo o Estado do Paraná, tal como procedem, inclusive, vários
outros DETRAN's.

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I.2 – Legitimidade Ativa

3. A legitimidade ativa do MPF decorre do art. 127, caput, da


Constituição Federal, que lhe atribui a defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais,
bem como do art. 129, III, que arrola, dentre suas funções institucionais, a defesa dos
interesses difusos e coletivos.
Mais especificamente, a Lei nº 7.853/19892, que estabeleceu
normas gerais para assegurar o “pleno exercício dos direitos individuais e sociais das
pessoas portadoras de deficiências, e sua efetiva integração social” (art. 1º), estatuiu
expressamente, em seu art. 3º, in verbis:

Art. 3º As medidas judiciais destinadas à proteção de


interesses coletivos, difusos, individuais homogêneos e
individuais indisponíveis da pessoa com deficiência poderão
ser propostas pelo Ministério Público, pela Defensoria
Pública, pela União, pelos Estados, pelos Municípios, pelo
Distrito Federal, por associação constituída há mais de 1
(um) ano, nos termos da lei civil, por autarquia, por empresa
pública e por fundação ou sociedade de economia mista que
inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção dos
interesses e a promoção de direitos da pessoa com
deficiência. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)

Semelhante disposição acha-se inserta no art. 79, § 3º, da Lei nº


13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência.3
Inquestionável, portanto, a relevância social da demanda e a
legitimidade ativa deste Parquet Federal.

2 Em sua ementa tem-se que a lei “[d]ispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua
integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
– Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a
atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências”. Posteriormente, até para
adequar-se à nova terminologia, a Corde foi elevada ao status de Subsecretaria Nacional de Promoção
dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Lei nº 11.958/2009 c.c. Decreto nº 6.980/2009), sendo que,
atualmente, é uma Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência – SNPD
(Decreto nº 7.256/2010), integrante da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
3 Art. 79, § 3º: “A Defensoria Pública e o Ministério Público tomarão as medidas necessárias à garantia
dos direitos previstos nesta Lei.”

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I.3 – Legitimidade Passiva

4. A responsabilidade da União decorre do fato de ser o


Departamento Nacional de Trânsito – Detran, vinculado ao Ministério das Cidades,
o órgão máximo executivo do Sistema Nacional de Trânsito, competindo-lhe fiscalizar e
fazer cumprir a legislação de trânsito e a execução das normas e diretrizes estabelecidas
pelo Conselho Nacional de Trânsito – Contran, supervisionando e coordenando os
órgãos responsáveis pelo controle e fiscalização da execução da Política Nacional de
Trânsito. É, enfim, o órgão responsável por estabelecer procedimentos sobre a
aprendizagem e habilitação de condutores de veículos, bem como sobre a expedição de
documentos de condutores, de registro e licenciamento de veículos, dentre outros.
Destarte, o Código de Trânsito Brasileiro – CTB, Lei nº
9.503/1997, assim estrutura o chamado Sistema Nacional de Trânsito, in verbis:

CAPÍTULO II
DO SISTEMA NACIONAL DE TRÂNSITO
Seção I – Disposições Gerais
Art. 5º O Sistema Nacional de Trânsito é o conjunto de
órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios que tem por finalidade o exercício
das atividades de planejamento, administração,
normatização, pesquisa, registro e licenciamento de
veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores,
educação, engenharia, operação do sistema viário,
policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de
recursos e aplicação de penalidades.
(…)

Seção II – Da Composição e da Competência


do Sistema Nacional de Trânsito
Art. 7º Compõem o Sistema Nacional de Trânsito os
seguintes órgãos e entidades:
I – o Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN,
coordenador do Sistema e órgão máximo normativo e
consultivo;
II – os Conselhos Estaduais de Trânsito – CETRAN e o
Conselho de Trânsito do Distrito Federal –

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CONTRANDIFE, órgãos normativos, consultivos e


coordenadores;
III – os órgãos e entidades executivos de trânsito da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
IV – os órgãos e entidades executivos rodoviários da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
V – a Polícia Rodoviária Federal;
VI – as Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal; e
VII – as Juntas Administrativas de Recursos de Infrações - JARI.
(…)

E especificamente no art. 19, ainda na predita Seção, o CTB


elenca as competências do Denatran, destacando-se, in verbis:

Art. 19. Compete ao órgão máximo executivo de trânsito da


União [DENATRAN]:
I – cumprir e fazer cumprir a legislação de trânsito e a
execução das normas e diretrizes estabelecidas pelo
CONTRAN, no âmbito de suas atribuições;
II – proceder à supervisão, à coordenação, à correição dos
órgãos delegados, ao controle e à fiscalização da execução
da Política Nacional de Trânsito e do Programa Nacional de
Trânsito;
(…)
VI – estabelecer procedimentos sobre a aprendizagem e
habilitação de condutores de veículos, a expedição de
documentos de condutores, de registro e licenciamento de
veículos;
VII – expedir a Permissão para Dirigir, a Carteira Nacional
de Habilitação, os Certificados de Registro e o de
Licenciamento Anual mediante delegação aos órgãos
executivos dos Estados e do Distrito Federal;
(…)
XXVIII – estudar os casos omissos na legislação de trânsito
e submetê-los, com proposta de solução, ao Ministério ou
órgão coordenador máximo do Sistema Nacional de
Trânsito;
(…)

Vale lembrar, por derradeiro, que o dirigente do Denatran


preside também o Contran – Conselho Nacional de Trânsito (cf. CTB e Resolução

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Contran nº 446/2013), órgão máximo normativo e consultivo do Sistema Nacional de


Trânsito.

5. Já a responsabilidade do Detran/PR decorre das exigências


impugnadas na presente ação, qual seja, a obrigatoriedade de se registrar o veículo
adquirido com isenção de IPI e/ou ICMS em nome de menor com deficiência, exigindo,
em momento subsequente (quando da revenda), a malsinada autorização judicial,
mesmo quando a aquisição originária tenha sido feita com recursos exclusivos de seus
representantes legais, não permitindo, outrossim, que aquele registro seja feito em nome
destes últimos (o que dispensaria o referido alvará). Noutras palavras, os atos
normativos questionados foram elaborados pelo órgão estadual de trânsito, motivo pelo
qual é evidente a sua legitimidade passiva nesta demanda.

II – FATOS

6. Instaurou-se, nesta Procuradoria da República, em


02/02/2017, o Procedimento Preparatório nº 1.25.005.000088/2017-41 (docs. anexos –
PROCADM2 a PROCADM7)4, no bojo do qual se apura a frustração (ou óbices à
concretização) de interesses coletivos de menores com deficiência (PcD), nos termos da
Lei nº 13.146/2015, denominada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência –
Estatuto da Pessoa com Deficiência.

7. Na representação que deu início ao predito procedimento


(PROCADM2, p. 02-05), o denunciante Elvis Aparecido Secco narra que é pai de
Nathan Kalleo Secco, menor impúbere, nascido em 10/04/2008, deficiente. Em
outubro de 2014, o representante adquiriu um veículo Honda/Fit EXL, placas AYX-

4 Consigne-se que as declarações do IRPF, holerites e extratos bancários do representante Elvis


Aparecido Secco (fls. 57/70 do procedimento preparatório) não estão sendo anexados a esta ação por
serem, salvo melhor juízo, desnecessários ao desate da lide, resguardando-se, outrossim, os sigilos
fiscal e bancário do denunciante. Ressalta-se, contudo, que tais documentos foram apresentados no
processo administrativo-fiscal que deu ensejo às isenções referidas. De qualquer modo, caso esse juízo
entenda necessário, sua juntada poderá ser feita posteriormente.

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8739, usufruindo da isenção do IPI e do ICMS, tributos federal e estadual,


respectivamente. Referidas isenções são, como é sabido, cabíveis nas hipóteses de
aquisição de veículos para pessoas com deficiência (PcD).
Ocorre que o veículo teve de ser necessariamente registrado em
nome do menor PcD, Nathan Kalleo Secco, perante o Detran/PR, a fim de que fossem
deferidas as citadas isenções.
Outrossim, para adquirir o veículo nessas condições, o genitor
do menor foi obrigado a comprovar, perante a Receita Federal e a Receita Estadual do
Paraná, sua capacidade econômico-financeira – o que demonstra, de plano e por si só,
que a aquisição ocorreu com recursos próprios do pai.

8. Passados mais de dois anos dessa aquisição, o representante


legal do menor, Elvis Aparecido Secco, vendeu aludido veículo. Mas, ao se tentar
transferi-lo, o Detran/PR exigiu do vendedor (representante do menor PcD) a
apresentação de um “alvará judicial” autorizando a venda. É que, ao ver do Detran/PR,
o caso se enquadraria na parte final do caput do art. 1.691 do Código Civil5. Noutras
palavras, considerou-se – equivocadamente – que o pai estaria dispondo do
“patrimônio do filho” e que essa alienação ultrapassaria os limites da mera
administração de seus bens. Esse entendimento pode ser extraído das informações
prestadas mediante Ofício nº 112/2017-DG, de 15/03/2017, do Diretor Administrativo e
Financeiro do órgão estadual de trânsito (PROCADM6 – p. 17-18 e PROCADM7 – p.
01-03).

9. Sem outra alternativa, os representantes legais do menor


foram obrigados a ingressar com pedido de alvará judicial perante o Juízo Estadual (cf.
PROCADM7, p. 04), submetendo-se, assim, às consequências advindas dessa abusiva
exigência: contratação de advogado, pagamento de honorários e de custas processuais,
além da natural demora na solução judicial do problema – isso após superarem a
conhecida via crucis por que passam os pretendentes à isenção tributária aqui referida.

5 Art. 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus real os imóveis dos filhos, nem contrair, em
nome deles, obrigações que ultrapassem os limites da simples administração, salvo por necessidade ou
evidente interesse da prole, mediante prévia autorização do juiz.

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10. A fim de que a descabida exigência cesse, ajuiza-se a


presente demanda em prol de todos os menores com deficiência, bem como de seus
representantes legais, domiciliados nesta Subseção Judiciária, a fim de que, tal como
ocorre em outros DETRAN's, não mais se exija autorização judicial para a revenda dos
veículos adquiridos com isenção de IPI e/ou ICMS (desde que observado o biênio legal
para essa transferência), ou, alternativamente, que se permita o registro em nome do
representante legal do menor PcD, quando demonstrado que os recursos para a compra
são exclusivamente seus (do representante legal).

III – FUNDAMENTOS JURÍDICOS

III.1 – Ausência de doação e de ingresso patrimonial em


nome do menor PcD

11. O ponto crucial na presente demanda consiste no fato de que


o veículo, ao ser adquirido, é obrigatoriamente registrado em nome do menor PcD, pois
somente dessa forma estariam preenchidos os requisitos legais para a obtenção das
isenções de IPI e ICMS. Não se trata, portanto, daquela situação em que o pai, tendo a
opção de registrar o veículo em seu nome, deliberadamente opta por doá-lo ao filho,
ainda que com a intenção de apenas ocultar patrimônio. Neste último caso, de típica
doação (em que sempre estará presente o elemento subjetivo: animus donandi), seria
razoável exigir-se que o pai, posteriormente, apresentasse autorização judicial para se
desfazer de um bem que, afinal, efetiva e deliberadamente ingressara no patrimônio do
filho! Mas não é o que se deu no caso “paradigma” acima citado.

12. Nesse passo, vale rememorar o instituto da DOAÇÃO e seu


principal requisito, ou elemento subjetivo: o animus donandi. Segundo o Código Civil:

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Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma


pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou
vantagens para o de outra.

Como enfatizava CLÓVIS BEVILAQUA:


O que caracteriza a doação é o animus donandi: Há outros
contratos, como ela, gratuitos, mas em nenhum outro se
observa a intenção de praticar um ato de liberalidade, ou
gratificação espontânea. (…)
(Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro:
Universidade Gama Filho, 1958, p. 333).

Ou ainda, no dizer de ORLANDO GOMES:


Completa-se com o elemento subjetivo: o animus donandi.
Indispensável à caracterização da doação é, com efeito, a
intenção de praticar um ato de liberalidade. O doador deve
ter a vontade de enriquecer o donatário, a expensas
próprias. Se lhe falta esse propósito, o contrato não será de
doação. É o animus donandi que o caracteriza. Não basta a
gratuidade. Traço decisivo da doação é a liberalidade, a
vontade desinteressada de fazer benefício a alguém,
empobrecendo-se ao proporcionar à outra parte uma
aquisição lucrativa causa. A intenção liberal concretiza-se,
em suma, no intuito de enriquecer o beneficiário.
(Contratos. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 213)

No caso paradigma, como visto, não há falar-se em “vontade de


enriquecer o donatário”, já que o registro do veículo em nome do menor PcD fora uma
exigência, uma imposição da Administração Pública, como condição sine qua non para
a obtenção do benefício fiscal. Apenas isso.

13. Partindo-se dessa premissa, não se haveria que se falar, pelas


mesmas razões, em “desfalque” ou “diminuição” do patrimônio do menor, já que o
veículo fora comprado com recursos exclusivos de seu genitor – sem a vontade, repita-
se, de doá-lo (transferi-lo) ao filho.

14. Em suma, no caso do menor com deficiência, seu


representante legal adquire o veículo:

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(i) com recursos próprios, ou seja, sem qualquer desfalque ou diminuição do


patrimônio do filho;
(ii) sem a intenção de doá-lo posteriormente à criança (ausência do animus
donandi); e
(iii) sob a ideia ou premissa de que a futura alienação do bem (revenda) não
se daria em detrimento de hipotético “patrimônio” do menor.

III.2 – Ilegalidade e abusividade da exigência de alvará


judicial

15. Se, como visto acima, não houve acréscimo patrimonial do


menor PcD, já que o veículo fora comprado com recursos do genitor e, concomitante,
este jamais teve a intenção de doá-lo ao filho, revela-se ilegal, abusiva e inovadora a
pretensão de se “proteger” referido patrimônio – inexistente, repita-se –, exigindo-se o
malsinado alvará judicial.

16. De fato, ao tratar do usufruto e da administração dos bens de


filhos menores, o Código Civil dispõe, in verbis:

Art. 1.689. O pai e a mãe, enquanto no exercício do poder


familiar:
I – são usufrutuários dos bens dos filhos;
II – têm a administração dos bens dos filhos menores sob
sua autoridade.

Art. 1.691. Não podem os pais alienar, ou gravar de ônus


real os imóveis dos filhos, nem contrair, em nome deles,
obrigações que ultrapassem os limites da simples
administração, salvo por necessidade ou evidente interesse
da prole, mediante prévia autorização do juiz.

Note-se que, no caso paradigma, o veículo é comprado pelo pai,


com recursos próprios, não havendo que se falar em “usufruto” ou “administração” de

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bens do menor, e muito menos em “obrigações que ultrapassem os limites da simples


administração” desses bens.
Ilícita, portanto, a exigência formulada pelo Detran/PR,
exigindo autorização judicial para que os representantes legais do menor PcD
disponham de patrimônio próprio. A hipótese não se subsume à disposição do art.
1.691 do CCB, como alega o Detran/PR, pois não se trata de patrimônio de menor,
meramente gerido pelos pais.

17. Aliás, a exigência de autorização judicial para alienar-se


veículo registrado em nome de menor é tão “questionável” que diversos outros
DETRAN's não a adotam, como, por exemplo, os departamentos de trânsito dos Estados
de Pernambuco, Pará, Alagoas e Santa Catarina, consoante artigo de GERALDO
JUNIO DE SÁ FERREIRA, Procurador do Estado do Minas Gerais 6. E o artigo trata,
vale dizer, da transferência feita deliberadamente a menor de idade, o que difere da
situação sub judice, em que essa transferência fora imposta, uma espécie de “doação
forçada” – inexistente no ordenamento jurídico.

18. A par do que se disse acima, merece destaque a sucessão de


incoerências do Estado: (i) exigindo, num primeiro momento, que o pai demonstre a
origem dos recursos e sua capacidade financeira (o que caracteriza inequívoca ciência
de que se tratava, ab initio, de patrimônio do pai); (ii) passo seguinte, obrigando que o
veículo seja registrado em nome do menor PcD (impondo, como já dito, uma espécie de
“doação forçada”); e (iii) num terceiro momento, exigindo do pai uma autorização
judicial para alienar o bem, como se efetivamente estivesse dispondo de patrimônio do
filho – tudo isso, sem que ao pai fosse dada a opção de agir desta ou daquela maneira
durante todo o iter procedimental.

19. A segunda exigência – registro obrigatório do veículo em


nome do menor PcD –, revela verdadeiro abuso por parte do Estado. Não prevista

6 Da Necessidade de Autorização Judicial para a Transferência de Propriedade de Veículo em Nome


de Menor de Idade Incapaz. Disponível em <http://anape.org.br/site/wp-content/uploads/2014/01/TESE-8-
AUTOR-GERALDO-JUNIO-DE-S%C3%81-FERREIRA.pdf>.

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expressamente no Código Civil anterior (1916), a teoria do abuso de direito restou


positivada no Código Civil de 2002, in verbis:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito


que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes.

No escólio de SÍLVIO RODRIGUES:

O abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro


das prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede,
deixa de considerar a finalidade social do direito subjetivo e,
ao utilizá-lo desconsideradamente, causa dano a outrem.
Aquele que exorbita no exercício de seu direito, causando
prejuízo a outrem, pratica ato ilícito, ficando obrigado a
reparar. Ele não viola os limites objetivos da lei, mas,
embora os obedeça, desvia-se dos fins sociais a que esta se
destina, do espírito que a norteia.
(Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 49).

Curioso notar, nessa postura do Estado do Paraná (com a


chancela do Denatran), que a exigência de registro do veículo em nome do menor PcD
vai de encontro aos interesses do próprio Sistema Nacional de Trânsito, por um motivo
muito simples: os menores não possuem CNH e não sofrem, portanto, pontuação em
carteira7.

III.3 – Óbices à concretização de direitos das pessoas com


deficiência

20. De toda a exposição supra, salta aos olhos a verdadeira


intenção do Fisco Estadual e do Detran/PR: dificultar, a não mais poder, o gozo da

7 Nesse caso, como é cediço, o órgão de trânsito passa a depender exclusivamente da “boa vontade” do
cidadão, que eventualmente indicará o condutor infrator; ausente essa boa vontade, só lhe resta
majorar a multa – nada mais que isso.

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isenção tributária, criando toda sorte de exigências, inclusive no momento da revenda


do veículo, desestimulando, assim, a busca do benefício em tela.

21. De fato, qualquer pessoa que se pretenda valer dessa


prerrogativa – adquirir veículo com isenção de IPI e/ou ICMS – sabe a via crucis a que
será submetida, como demonstram, ainda que tenuamente, as peças do procedimento
administrativo jungidas a esta exordial. O que dizer, então, quando a pessoa com
deficiência (PcD) é uma criança e seus pais têm, posteriormente, que socorrer-se
do Judiciário para uma simples revenda do bem? Inegável, portanto, que
dificilmente esses pais tomarão a iniciativa de buscar nova aquisição nos mesmos
moldes, inobstante a faculdade que lhes é conferida pela legislação tributária.

22. As exigências draconianas aqui denunciadas caminham na


contramão de todo esforço – mundial – que se vem fazendo no sentido de não apenas se
resguardar, mas também promover o exercício pleno dos direitos e liberdades das
pessoas com deficiência, com medidas não apenas protetivas, mas proativas do Estado
e da própria sociedade civil organizada. É o caso da isenção tributária em comento,
voltada especificamente a esse grupo de cidadãos.
Este é o propósito da Convenção Internacional Sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova
Iorque em 30/03/2007 e promulgados pelo Decreto nº 6.949/2009, in verbis:

Artigo 1
Propósito
O propósito da presente Convenção é promover, proteger e
assegurar o exercício pleno e eqüitativo (sic) de todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as
pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua
dignidade inerente.

Ora, se a isenção em comento se dá em benefício de PcD,


mesmo quando o veículo é adquirido por seus genitores, tem-se como norte os
princípios consagrados mundialmente e, afinal, chancelados internamente pelo Brasil,

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não se podendo, por via transversa, anulá-los ou reduzi-los, sob pena de ofensa à norma
supralegal e à própria Constituição Federal.

23. Já a Lei nº 13.146/2015 – Lei Brasileira de Inclusão da


Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), tendo por base a
predita Convenção (conforme disposição expressa em seu art. 1º, parágrafo único),
assim define as barreiras que podem ser erguidas à plena fruição dos diversos direitos
dos portadores de necessidade especiais, in verbis:

Art. 3º Para fins de aplicação desta Lei, consideram-se:


(…)
IV – barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou
comportamento que limite ou impeça a participação social
da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus
direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de
expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à
compreensão, à circulação com segurança, entre outros,
classificadas em:
(…)
e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que
impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa
com deficiência em igualdade de condições e oportunidades
com as demais pessoas;

24. À vista de toda a exposição fática, fácil perceber-se as


barreiras que os réus vêm impondo aos menores com deficiência, ora obrigando seus
pais a comprovarem a origem e suficiência dos recursos a serem dispendidos, ora
impondo o registro em nome do menor (como se o bem a ele fosse doado) e ora
exigindo Alvará Judicial para a revenda do bem, tudo com vistas a desestimular a
fruição da mencionada isenção tributária (aliás, se a intenção fosse realmente
“proteger” o patrimônio do menor, dificilmente algum DETRAN abriria mão da
autorização judicial para a revenda do veículo, e, como já mencionado, vários
DETRAN's já dispensam essa formalidade abusiva).

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25. De toda sorte, e a fim de se manter coerência com o sistema


jurídico vigente (CF, Convenção Internacional e CCB), que se faculte, então, aos
representantes legais dos menores PNE: (i) registrar o veículo em nome próprio (do
representante legal), quando demonstrarem que a aquisição fora feita com recursos
exclusivamente seus, isto é, sem dispor do patrimônio do menor; ou (ii) registrar o
veículo em nome do menor, providenciando, na revenda, o pertinente alvará judicial –
caso em que se teria verificado (aí sim) a espontaneidade na transmissão do bem ao
menor, satisfazendo ao requisito subjetivo (animus donandi) das doações típicas,
segundo o Código Civil Brasileiro.

IV – PEDIDOS

IV.1 – Antecipação de Tutela

26. Nos termos do art. 300 do Código de Processo Civil, a tutela


de urgência, cautelar ou antecipada, será concedida “quando houver elementos que
evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil
do processo”.

27. In casu, o fumus boni juris ressuma dos elementos fáticos e,


notadamente, das disposições legais acima mencionadas, a demonstrarem,
concomitantemente, a ilegalidade e o abuso cometido pelos réus, inclusive distorcendo
o conceito e o alcance de institutos civis (doação e administração de bens de menor),
bem como as barreiras impostas à fruição de direito expressamente dirigido aos
portadores de necessidades especiais, tudo com vistas a desestimular o gozo do
benefício fiscal em comento.

28. Por outro lado, o periculum in mora consiste no risco ao


resultado útil do processo, considerando-se a demora das ações deste jaez, sabendo-se

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que, nesse interregno, inúmeros pais já terão sido forçados a abrir mão da isenção
referida ou a socorrer-se da Justiça Comum em busca do alvará judicial no momento da
revenda, não havendo como, ao final da lide, restitui-los ao status quo ante.

29. Pelo exposto, requer-se, liminarmente, seja facultado aos


representantes legais dos menores com deficiência (PcD) que registrem veículos
adquiridos com isenção de IPI e/ou ICMS em seu próprio nome (dos representantes
legais), fazendo apenas constar, nas observações do CRV – Certificado de Registro de
Veículo, o nome do representado PcD e a restrição temporal à revenda, na forma da
legislação tributária; ou, alternativamente, que os Réus abstenham-se de exigir
autorização judicial para a transferência/revenda de veículo adquirido com referida
isenção e registrado em nome do menor PcD, quando esta aquisição tiver sido feita com
recursos exclusivos de seus representantes legais, bastando, para essa transferência,
apenas a assinatura com firma reconhecida destes últimos no CRV, observando-se,
outrossim, o lapso temporal que deve mediar a compra e a revenda do bem, tudo sob
pena de multa diária para o caso de descumprimento da decisão.

IV.2 – Definitivos

30. Ante o exposto, o Ministério Público Federal requer:

a) a procedência da ação, confirmando-se eventual antecipação de tutela,


nos moldes acima requeridos, para o fim de condenar definitivamente os Réus: a.1) em
obrigação de fazer, permitindo aos representantes legais dos menores com deficiência
(PcD) que registrem veículos adquiridos com isenção de IPI e/ou ICMS em seu próprio
nome (dos representantes legais), fazendo apenas constar, nas observações do CRV –
Certificado de Registro de Veículo, o nome do representado PcD e a restrição temporal
à revenda, na forma da legislação tributária; ou, alternativamente, a.2) em obrigação de
não fazer, abstendo-se de exigir autorização judicial para a transferência/revenda de
veículo adquirido com referida isenção e registrado em nome do menor PcD, quando

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esta aquisição tiver sido feita com recursos exclusivos de seus representantes legais,
bastando, para essa transferência, apenas a assinatura com firma reconhecida destes
últimos no CRV, observando-se, outrossim, o lapso temporal que deve mediar a compra
e a revenda do bem, segundo a legislação tributária, tudo sob pena de multa diária para
o caso de descumprimento da decisão, a ser revertida ao Fundo de Defesa de Direitos
Difusos – FDD, criado pelo art. 13 da Lei nº 7.347/1985 e regulamentado pela Lei nº
9.008/1995;

b) a condenação dos réus a, solidariamente, ressarcir as despesas efetuadas


pelos representantes dos menores PcDs para providenciarem o alvará judicial para a
transferência dos veículos adquiridos com isenção de IPI e/ou ICMS a que foram
obrigados a registrar no nome do menor PcD;

c) a citação dos réus, a fim de que, querendo, respondam aos termos da


presente ação, sob pena de revelia e confissão;

d) a dispensa do autor do pagamento de custas, emolumentos e outros


encargos, desde logo, a teor do art. 18 da Lei nº 7.347/1985;

e) a produção de todas as provas em direito admitidas, incluindo cópias


extraídas do procedimento extrajudicial em trâmite nesta Procuradoria da República.

Dá-se à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Nesses termos,
Pede-se deferimento.

Londrina/PR, 03 de julho de 2017.


GUSTAVO DE Assinado de forma digital por GUSTAVO DE
CARVALHO GUADANHIN:1112
DN: c=BR, o=ICP-Brasil, ou=Autoridade Certificadora LUIZ ANTONIO Assinado de forma digital por LUIZ
CARVALHO da Justica - AC-JUS, ou=Cert-JUS Poder Publico - A3,
ou=MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - MPF,
ou=MEMBRO DO MINISTERIO PUBLICO FEDERAL, XIMENES CIBIN:1063
ANTONIO XIMENES CIBIN:1063
Dados: 2017.07.03 15:59:46 -03'00'
GUADANHIN:1112 cn=GUSTAVO DE CARVALHO GUADANHIN:1112
Dados: 2017.07.03 15:55:41 -03'00'

Gustavo de Carvalho Guadanhin Luiz Antonio Ximenes Cibin


Procurador da República Procurador da República
icm

Documentos anexados:
PROCADM2 a PROCADM7 – peças do Procedimento Preparatório nº 1.25.005.000088/2017-41

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