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O CAMPESINATO NA DINÂMICA CONTRADITÓRIA

DAS CLASSES SOCIAIS NO CAMPO

HORACIO MARTINS DE CARVALHO

CURITIBA
JANEIRO DE 2007
2

Para o companheiro Isaias Luiz Vedovatto,


líder revolucionário camponês,
referência para todos aqueles que crêem
na superação da sociedade de classes
e na construção de um mundo mais igualitário.

“(...) O modo mais eficaz de tornar os pobres inofensivos


é ensina-los a querer imitar os ricos.
Esse é o veneno com que o capitalismo cega ...”

(Zafón, 2004: 190)

APRENDI CONTIGO MAIACOVSKI

Aprendi contigo, Maiacovski,


que morrer não é difícil:
o difícil é a vida e seu ofício.
Aprendi, também, oficiando a vida
e rastejando a morte
ser impossível se abster dessa contradição
do ser buscando sempre um ideal caminho
sem trazer jamais arrependimento
de estar com todo o povo,
a qualquer momento,
mesmo sozinho.

(Horacio Martins de Carvalho)


3

SUMÁRIO

1. Introdução.....4

2. A estrutura de classes sociais no campo.....5

3. O campesinato e as suas contradições sociais de classe.....6


3.1. O campesinato como classe social.....6
3.2. A situação, os interesses e a consciência de classe.....10
3.3. Contradições e luta de classe.....15

4. As contradições sociais da fração campesinato-autônomo.....18


4.1. A composição da fração campesinato-autônomo.....19
4.2. Os interesses e as contradições de classe.....21
4.3. A consciência e as lutas sociais de classe.....24
4.4. As potenciais alianças de classe.....25

5. As contradições internas do campesinato.....27

Literatura citada.....29
4

1. INTRODUÇÃO

Este texto poderia ser considerado como um capítulo a ser acrescentado ao documento
“As classes sociais no campo no Brasil” (Carvalho, 2006), assim como outros capítulos a
serem elaborados poderiam se referir a cada uma das demais classes sociais no campo ali
identificadas. No entanto, devido a diversos tipos de premências político-sociais relacionadas
com a necessidade de retomada do estudo e debate sobre as classes sociais no país, no caso
em particular aquelas no campo, o texto básico anteriormente referido foi elaborado
abordando a questão das classes sociais no campo partindo do geral para o particular, sem um
tratamento diferenciado por classe social. E, na demanda sempre crescente de novas opiniões,
foi distribuído como uma contribuição ao debate sobre o tema.

A retomada ou não da expressão camponeses (ver Carvalho (org.) 2005), as hipóteses


desses produtores rurais serem classificados como um modo de produção simples de
mercadorias, ou um modo de produção camponês, ou uma fração de classe da burguesia
agrária, ou uma classe social particular, por exemplo, estão sempre esvoaçando em nossas
mentes e mordiscando, no cotidiano, as nossas inquietudes intelectuais e as nossas
responsabilidades como militantes políticos. Sugiro, neste texto, uma abordagem para esses
conceitos e classificações.

Sob quaisquer que sejam as nomeações externas a eles próprios, sejam pequenos
produtores rurais, agricultores familiares ou camponeses --- ou sob as dezenas de autoidentidades
que se possa registrar no campo a partir das falas camponesas, esses camponeses estão sempre
demandando dos intelectuais e de seus próprios dirigentes políticos, por vezes de uma maneira
velada, explicações e definições políticas sobre a sua posição no contexto da formação social
brasileira contemporânea, seja essa posição como classe social, seja como modo de produção, ou
outra além dessas, dependendo dos critérios classificatórios que se adote.

Esses produtores rurais cuja reprodução social da família dependem do seu território de
vida, da comunidade em que se inserem, da produção para o autosustento, da renda agrícolas que
conseguem obter pela venda de produtos extrativistas, agrícolas, pecuários, florestais, piscícolas e
artesanais, possuem autoidentidades sociais próprias as mais distintas, como expressão social das
mudanças históricas econômicas, sociais, políticas, étnicas e culturais que se verificaram nos
territórios em que hoje se encontram.

A multiplicidade de autoidentidades sociais dos camponeses no Brasil torna sempre mais


complexa a tarefa intelectual de se tentar enquadra-los numa classificação social. Mesmo assim, e
apesar desses embaraços, sugeri que os camponeses no Brasil contemporâneo se constituem como
uma classe social no âmbito da formação social brasileira, mesmo que por vezes em situações
contraditórias de classe. Não foram aqui considerados os povos indígenas, mesmo aqueles que
porventura já se encontrem “camponeizados”.

Neste documento pretendo comentar aquelas características ou dimensões que respaldam a


minha sugestão de identificar o campesinato como classe social, portanto, com os atributos
interesses gerais, consciência, contradições e lutas sociais de classe.

Para se considerar o camponês como classe social é necessário que haja possibilidades
efetivas de se identificar as contradições sociais interclasses e as lutas sociais de classe daí
decorrentes que lhe afirmam como classe social, mesmo que por vezes, e em conjunturas
5

particulares, os interesses imediatos, passageiros e ou corporativos dos camponeses se revelem


como em situação contraditória de classe. Neste documento se ensaia essa identificação, levando-
se em consideração as dimensões econômicas, políticas e ideológicas do campesinato como classe
social.

A intensificação crescente da expansão generalizada do capitalismo no campo no Brasil


desde a década de 60 do século passado, favorecida pelo processo de globalização econômica
mundial na ofensiva capitalista neoliberal desencadeada desde o início da década de 90,
determinou a formação de um pensamento hegemônico liberal-burguês de âmbito mundial que
teve e tem como proposição estratégica a eliminação de todo e qualquer tipo de pensamento
contestatório às idéias hegemônicas, entre elas aquelas que se referem às formas, maneiras ou
jeitos de produzir no campo que não se caracterizam como capitalistas, como é o caso do
campesinato (e, sem dúvida, os povos indígenas).

O processo avassalador da ideologia dominante na destruição de qualquer outro tipo de


pensamento que não se coadune e se submete àquele da concepção de mundo a partir do
neoliberalismo tem sido um dos fatores, senão o mais importante, para a desconstrução da idéias e
dos conceitos sobre o campesinato no Brasil. Esse processo, além do apoio irrestrito dos meios de
comunicação de massa, teve o comprometimento orgânico dos governos do país na afirmação
dessa tendência ao pensamento único, autoritário e excludente.

É nesse contexto ideológico adverso que se retoma o estudo e o debate sobre as classes
sociais no campo e, neste caso particular, sobre o campesinato.

2. A ESTRUTURA DE CLASSES SOCIAIS NO CAMPO1

Reproduzo a seção sobre a estrutura de classes sociais que identifiquei em estudo recente,
conforme consta de Carvalho (2006: 28-9). Nela, o campesinato é identificado como classe social.

A estrutura de classes sociais identificada, de fato constituída por três classes sociais e três
categorias sociais, não abarca as outras frações de classe da burguesia além da fração burguesia
agrária, como a fração burguesia industrial, a fração burguesia comercial e a fração burguesia
bancária, ainda que todas elas estejam presentes no campo, mas não são do campo. Essa
identificação da estrutura de classes no campo não contempla, outrossim, nem os pequenos
comerciantes locais nem os prestadores de serviços autônomos familiares. Sem dúvida alguma
que essa omissão intencional é uma limitação da compreensão da estrutura social no campo.

A estrutura de classes sociais, nela compreendidas as frações e camadas dessas classes


sociais, e das categorias sociais no campo no Brasil, é a seguinte (entre parênteses os critérios e
atributos adotados para a classificação):

 Classe social ‘burguesia agrária’ (propriedade privada terra + assalariamento):

 Frações da burguesia agrária (composição orgânica do capital):


 Burguesia agrária moderna
 Burguesia agrária tradicional

 Fração da burguesia agrária (presença trabalho familiar direto)


1
Esta seção corresponde à seção 3.4. A estrutura das classes e categorias sociais no campo, in Carvalho, Horacio M.
(2006: 28-9)
6

 Pequena burguesia agrária

 Frações da pequena burguesia agrária: (nível de desenvolvimento das


forças produtivas):
 Pequena burguesia agrária tradicional
 Pequena burguesia agrária moderna

 Camadas da pequena burguesia agrária moderna (controle


interno do processo de trabalho):
 Pequena burguesia agrária moderna autônoma
 Pequena burguesia agrária moderna associada

 Classe social ‘campesinato’ (proprietário da terra + trabalho familiar direto):

 Frações do campesinato (controle interno do processo de trabalho)


 Campesinato-associado
 Campesinato-autônomo

 Fração do campesinato (venda de parte da força de trabalho familiar)


 Campesinato-proletário

 Classe social ‘proletariado rural’ (não proprietários da terra que vendem a força de
trabalho):

 Frações do proletariado rural (estabilidade no trabalho)


 Assalariados permanentes

 Camadas dos assalariados permanentes (natureza do trabalho)


 Trabalhadores improdutivos
 Trabalhadores produtivos

 Assalariados temporários regulares


 Assalariados ocasionais (lumpem-proletariado)

 Categorias sociais de assalariados (pessoal governamental e dos aparelhos de ideologia):

 Pessoal do Estado (funcionários públicos)


 Religiosos profissionais
 Pessoal das organizações não governamentais da sociedade civil

3. O CAMPESINATO E AS SUAS CONTRADIÇÕES SOCIAIS DE CLASSE

3.1. O campesinato como classe social

Os critérios adotados para a identificação do campesinato como classe social foram:

 a propriedade privada da terra e dos recursos naturais que ela suporta (ou a posse mansa
da terra) por uma família singular ou por um grupo doméstico de produtores rurais,
7

 e a presença como única força de trabalho aquela dos membros da família singular ou do
grupo doméstico proprietários da terra como trabalhadores diretos nos processos de
trabalho ou nos de extrativismo que essa família desenvolve nessa terra.

Para fins de delimitação entre a classe social campesinato e a fração da burguesia agrária
denominada pequena burguesia agrária eu considerei que quando a família singular ou o grupo
doméstico proprietário privado da terra camponesa introduz no seu processo de trabalho a relação
social de assalariamento ela se posiciona como tendo pertencimento à fração pequena burguesia
agrária da classe social burguesia agrária, desde que mantenha a força de trabalho dos membros
da família como trabalhadores diretos. Nesse critério o que eu estava levando em conta era a
relação social de assalariamento com o assalariado permanente (fração assalariado permanente do
proletariado rural), em particular com a sua camada trabalhadores produtivos.

Alguns autores tenderam a introduzir como um dos critérios de delimitação de classe entre
a burguesia agrária e o campesinato a proporção entre a quantidade de trabalho incorporado pela
da força de trabalho da família singular ou do grupo doméstico proprietário privado da terra em
relação à quantidade de trabalho incorporado pela força de trabalho assalariada nos produtos dos
processos de trabalhos. Assim, sempre que a quantidade de trabalho da força de trabalho familiar
fosse maior ou igual ao trabalho incorporado pela força de trabalho assalariada no produto obtido
(valor de uso) se teria, na expressão dominante, um caso de agricultura familiar. Porém, sempre
que nessa proporção a quantidade de trabalho da força de trabalho assalariada fosse maior do que
aquele correspondente à força de trabalho da família, se estaria em presença de um caso de
pequena burguesia agrária.

Isso não significa dizer que desconsiderei a ampla diversidade de situações-concretas


camponesas onde se constata a presença de força de trabalho distinta daquela da família
proprietária privada da terra, seja em decorrência da precariedade sazonal da força de trabalho
familiar, seja em função de atividades pontuais que requeiram um esforço adicional, sem
considerar nesses contextos ou similares as práticas tradicionais e contemporâneas de ajuda
mútua, mutirão ou troca de dias de serviço. A presença da força de trabalho de assalariados
ocasionais ao lado da força de trabalho da família não foi considerada como critério para a
delimitação de classe social. Sem dúvida que a presença dessa força de trabalho de assalariados
ocasionais pode, em casos, substituir inteiramente a presença da força de trabalho familiar no
processo de trabalho. Nesses casos se seriam classificados como de pertencimento à burguesia
agrária.

A sugestão de identificar ou classificar o campesinato como classe social e não como


modo de produção, seja ele o de produtores simples de mercadorias ou o camponês, deveu-se a
diversos fatores. Para isso seriam necessários esclarecimentos sobre as frações de classe do
campesinato.

Foram identificadas, segundo os critérios estabelecidos, três frações de classe do


campesinato (ver capítulo 2. anterior): campesinato–associado, campesinato-autônomo e
campesinato-proletário. As frações campesinato-associado e campesinato-proletário se
apresentam em situação contraditória de classe. Já a fração campesinato-autônomo seria aquela
que apresentaria as condições econômicas, políticas e ideológicas, assim como as contradições
sociais de classe, mais pertinentes para a identificação dos interesses gerais de classe do
campesinato e, portanto, seria a fração que poderia tender para um possível, mas utópico, modo de
produção camponês.
8

A fração campesinato-associado, portanto, um campesinato associado à burguesia


industrial (agroindustrial) e à comercial pelos contratos de produção e ou de cessão de suas terras
para arrendamento, vivencia uma situação contraditória de classe porque seus interesses imediatos
e corporativos se identificam com os interesses imediatos da burguesia agrária ou com os da
burguesia comercial. No entanto, os interesses gerais dessas duas frações de classe da burguesia
são contraditórios com os interesses gerais de classe do campesinato.

Já a fração campesinato-proletário é constituída por uma ampla parcela de camponeses


cujos interesses imediatos de classe são mais próximos àqueles do proletariado rural, classe essa
que tem a contradição principal de classe com a burguesia. No entanto, o proletariado rural pela
via da sua fração assalariados ocasionais tem contradições secundárias com as parcelas do
campesinato que os assalariam ocasionalmente. Porém, como o campesinato-proletário é
proprietário privado de terra (ou com a posse mansa da terra) ele necessariamente não se
identifica com os interesses gerais do proletariado rural. Por outro lado, como a relação produtiva
com a terra não lhe proporciona renda agrícola suficiente para garantir a reprodução social da sua
família e do seu processo de trabalho, parcelas desse campesinato-proletário não se identificam
com os interesses gerais do campesinato.

Tanto a fração campesinato-associado como a fração campesinato-proletário tem situação


contraditória de classe, e se aproximam político-ideologicamente com outras classes sociais que
com elas se limitam: a fração campesinato-associado com a fração pequena burguesia agrária da
burguesia agrária e a fração campesinato-proletário com a fração assalariados ocasionais do
proletariado rural.

Essas duas frações do campesinato, com interesses imediatos de classe distintos daqueles
do campesinato devido às suas situações contraditórias de classe e, ainda, com pouca a nenhuma
identidade social de classe, não só tornam o campesinato débil enquanto classe social como não
proporcionam as condições político ideológicas necessárias para que o próprio campesinato
desenvolva a consciência de classe e se torne, quiçá utopicamente, e se isso for possível e
desejável, um modo de produção camponês numa outra ou nova formação social brasileira.

Ademais, a crise de identidade de parte considerável dos camponeses devido, em parte, ao


seu empobrecimento econômico, político e ideológico relativo, abranda a emergência de idéias e
valores sobre o próprio campesinato como classe social que exercita um modo de ser e de viver
diferenciado da empresa capitalista. Essa crise de identidade camponesa dificulta a produção
política e ideológica de uma concepção de mundo que corresponda aos interesses gerais do
campesinato e dê às suas lutas de classes unidade política de classe, talvez no sentido de classe
para si.

A hipótese de identificação do campesinato como pertencente a um modo de produção


simples de mercadorias é precária tendo em vista que ela só se aplicaria, no seu sentido clássico, à
fração campesinato-proletário. Tanto a frações campesinato-associado como a campesinato-
autônomo nada tem a ver com as idéias de produtores simples de mercadorias, tendo em vista que
suas matrizes de produção e tecnológica, seja aquela induzida pela burguesia, seja aquela
desenvolvida pelos próprios camponeses, tem como pressupostos a presença dos camponeses nos
distintos e variados mercados e lhes proporcionam possibilidades efetivas e acumulação
camponesa que tem como objetivo ou como racionalidade a melhoria crescente e constante da
qualidade de vida da família camponesa e ou do grupo doméstico, inclusive obtendo novas terras
para a reprodução social de seus descendentes.
9

A desenvolvimento capitalista no campo no Brasil não apenas generalizou a expansão e a


concepção e prática de produção capitalista como exigiu de todas as formas de produção não
capitalistas, como a artesã e a camponesa, que incrementassem as suas relações com os mercados.
Isso foi devido, sobretudo, à mudança no padrão de consumo familiar e no dos meios de trabalho,
tanto dos artesãos como dos camponeses, que lhes exigiu uma ampliação relevante da
mercantilização e, conseqüentemente, da monetarização para dar conta das trocas de mercadorias
necessárias para a reprodução social da vida familiar, como produtores e como consumidores.

Esse processo de mercantilização e monetarização de todos os setores da economia rural


vem ocorrendo, diria, há mais de 40 anos, pelo menos desde a ‘revolução verde burguesa’ a partir
dos anos 60 do século passado e da presença do crédito rural subsidiado promovido pelo governo
federal desde 1967.

A suposição de que os camponeses seriam produtores apenas de valor de uso, este


expresso nos produtos para a subsistência ou para ao autoconsumo, não é aplicável ao
campesinato contemporâneo ou como ele é aqui compreendido a não ser para parcela dos
camponeses da fração campesinato-proletário que possuindo terra insuficiente para a obtenção da
renda agrícola líquida necessária para garantir a reprodução social da família se tornam
constrangidos a venderem para terceiros a força de trabalho dos alguns membros da família, seja
como assalariados ocasionais ou como assalariados temporários regulares. Nessa fração do
campesinato a produção rural, o extrativismo e o artesanato tendem a se constituírem em
produtos para o autoconsumo, ainda que essa mesma produção seja, por vezes, mercantilizada em
decorrência das necessidades sazonais de reprodução social da família.

O camponês contemporâneo, pós década de 70 de século passado, tem se caracterizado,


em particular aqueles camponeses das frações campesinato-associado e campesinato-autônomo,
como um produtor de mercadorias, o que não lhe impede de utilizar parte dessa produção para o
consumo familiar e para o processo de trabalho, inclusive com a alocação da parte da renda
agrícola obtida como investimentos produtivos para ampliar a escala de produção, melhorar a
produtividade do trabalho e ou da terra, ou para reduzir a penosidade do trabalho.

Aliás, essa é a tendência do campesinato no Brasil. E se aliarmos essa característica da


acumulação camponesa aos critérios da sua classificação como camponês, ou sejam, a
propriedade privada da terra (ou a passe manda da terra) e dos recursos naturais que ela suporta e
a incorporação somente da força de trabalho da família proprietária da terra como trabalhadores
diretos no processo de trabalho da sua unidade de produção/extrativismo, poder-se-á perceber que
a racionalidade e a unidade produção camponesas são muito distintas da racionalidade e da
unidade de produção capitalista.

O conceito de camponês (Costa, 2000, in Carvalho (org.), 2005: 183 ss) não se limita à
idéia, por vezes aplicada de maneira mecanicista, de unidade de produção-unidade de consumo,
sem considerar que a racionalidade camponesa repousa na centralidade da razão reprodutiva e
não exclui, por si mesma, a relação da unidade camponesa com outros setores da sociedade
envolvente. Isso pressupõe, evidentemente, que do ponto de vista econômico as relações dos
camponeses com os demais setores da sociedade se dão pela mercadoria, não se considerando
nessa perspectiva aquelas relações sociais como as de parentesco, de compadrio, de vizinhança,
comunitárias e religiosas.

Se agregarmos a esse pressuposto que o camponês é um produtor inserido nos mercados,


mesmo que nessa inserção, como tendência geral, se possa identificar processos de trocas que
levem à sua exploração econômica, e que ademais, como o faz a fração campesinato-associado, se
10

vê constrangido a introduzir no seu processo de trabalho mercadorias (meios de trabalho) que lhe
subordinem ao capital industrial e ao comercial, sempre mediados pelo capital bancário, nada nos
permite inferir ou supor que os camponeses se constituiriam num modo de produção simples de
mercadorias.

Mesma a fração campesinato-autônomo, no sentido de que não é associada formalmente


com a burguesia agroindustrial ou a burguesia agrocomercial através de contratos de produção e
ou de cessão de terras para arrendamento, tem a sua afirmação camponesa e a possibilidade de
realizar uma acumulação camponesa através da combinação complexa e diversificada entre a
produção de produtos que usualmente são utilizados ora para o autoconsumo e ora para o
mercado, isso em função das necessidades ditadas pela razão reprodutiva da família.

3.2. A situação, os interesses e a consciência de classe

Os critérios econômicos, ainda que determinantes, não são os únicos em presença para a
identificação da classe social, assim como das suas frações e camadas de classe. Os atributos
políticos e ideológicos têm relevância para ponderarem os critérios econômicos numa formação
social dada. Na expansão e generalização do capitalismo contemporâneo sob a égide das
propostas neoliberais mundialmente globalizantes, as dimensões político-ideológicas dessa
ofensiva têm desempenhado um papel fundamental para a redução das oposições a esse tipo de
pensamento único. Sem dúvida alguma que a desagregação do bloco soviético e a mudança dos
regimes políticos dos paises do leste europeu representaram um alento para esse expansionismo
capitalista. No entanto, o culto idolátrico ao mercado, a desregulamentação da economia em nome
da livre iniciativa, as fusões e incorporação entre grandes empresas capitalistas, a expansão em
rede dos capitais multinacionais, a redução do Estado e dos espaços públicos e, sobretudo, os
avanços burgueses na inovação científica e tecnológica, foram os elementos decisivos para a
generalização capitalista no âmbito mundial. Essa dinâmica do capital, com seus rebatimentos
políticos sobre os organismos internacionais multilaterais e sobre a conduta dos governos
nacionais, afetou ora positiva ora negativamente as classes sociais no campo no Brasil, entre elas
o campesinato.

A ideologia que acompanhou a segunda fase da ‘revolução verde burguesa’, agora


emblematicamente respaldando o agronegócio burguês, ou seja, a grande empresa capitalista no
campo, e os organismos geneticamente modificados, tornou-se não apenas a ideologia dominante
no discurso sobre a produção rural como hegemônica na perspectiva das estratégias de
desenvolvimento rural. Como ideologia hegemônica deu a direção geral da dinâmica das
mudanças econômicas e sociais no campo, conseguindo empolgar não apenas a burguesia agrária,
parcelas do campesinato e frações do proletariado rural.

Sem dúvida alguma que o elevado desemprego crônico, o subemprego, o trabalho


precário, a grilagem de terras, o ajuste orgânico das políticas públicas aos interesses gerais do
capital, a corrupção empresarial generalizada, a impunidade dos crimes praticados pela burguesia
agrária contra dirigentes e trabalhadores rurais, camponeses e religiosos, e a ausência de um
projeto popular contra-hegemônico de desenvolvimento para o país e, em particular, para o rural,
propiciou um clima político-social favorável para que as contradições sociais de classe não
eclodissem em lutas sociais de classe. Com exceção das lutas sociais pela reforma agrária, são
pontuais aquelas lutas que se revestiram de caráter de lutas de classe. A difusa e inconsistente
consciência de classe camponesa sobre as suas próprias contradições de classe, assim como a do
proletariado rural, facilitou o afloramento dos interesses imediatos e corporativos das frações
dessas classes sociais, induzindo suas lutas sociais, na maior parte das vezes isoladas, para o
campo da reivindicação e do protesto perante os governos.
11

Essa precária consciência de classe do campesinato é ao mesmo tempo causa e efeito da


relação entre o papel que a ideologia neoliberal dominante exerce sobre os dominados na
formação social brasileira e a ausência de identidade social do campesinato como classe. No
imaginário camponês, manifestação então do senso comum, os desejos e aspirações de melhoria
das condições de vida e de trabalho das suas famílias são confrontados com as suas decepções
pelas tentativas frustradas de obtenção crescente e continuada de renda agrícola líquida como
produtor rural. Esse cotejo entre o desejado e o realizado são interpretadas pelos próprios
camponeses a partir dos referenciais de lucros dos interesses e valores burgueses das empresas
capitalistas no campo.

Ao não se aperceberam de como se dá a sua exploração econômica pela burguesia, e


alienados de seus próprios interesses gerais de classe, mas sem outra referência relevante, os
camponeses recorrem às políticas públicas compensatórias para tentarem superar seus
desencantos.

A ofensiva econômica da burguesia que amplia a exploração do campesinato repousa


contemporaneamente não somente na transferência de valor pelas trocas comerciais desiguais
entre as frações agroindustriais e agrocomerciais da burguesia e o campesinato, mas, também,
pela expansão territorial das grandes empresas capitalistas pela grilagem de terras públicas e
privadas e pela pressão e cercos físicos sobre os camponeses, processos esses que contribuem
para a concentração da renda e da riqueza no campo e para o êxodo rural.

Ao lado e complementarmente a essa expansão econômica horizontal, amplia-se a


investida ideológica e política da burguesia contra o campesinato no sentido da afirmação
histórica da subalternidade dessa classe social no campo aos seus interesses gerais de classe, tendo
como vetor principal de subalternização a ideologia da modernização burguesa sintetizada nas
idéias de agronegócio e de produção voltada para a exportação. As concepções e práticas dessa
modernização burguesa no campo são difundidas e implantadas indiferentemente tanto para os
produtores rurais pertencentes à burguesia agrária como para aqueles identificados como
campesinato.

Esses processos de mudanças político-ideológicas na concepção de mundo e nas práticas


de produção camponeses que têm sido induzidos pelos valores e comportamentos econômicos do
capital agropecuário e agrocomercial se deram e se dão através de três movimentos.

O primeiro refere-se à expansão acelerada da adoção pelos produtores rurais, no amplo


senso, da matriz de produção e tecnológica das grandes empresas capitalistas, adoção essa que
tem sido induzida pela ideologia dominante via a propaganda massiva pública e privada do
agronegócio e reforçada pelos requerimentos do crédito rural, da assistência técnica pública e de
outras políticas públicas setoriais que encaminham os produtores rurais, mesmo sob contradições
internas objetivas, para as práticas capitalistas de produção. Ademais, como a ideologia
dominante não reconhece na formação social brasileira nada diferente da prática capitalista de
produção rural, o campesinato é considerado, ou pelo menos uma parcela dele, como um potencial
de produtores rurais passíveis de assumirem posição de classe na fração pequena burguesia
agrária da classe burguesia agrária. O desprezo da burguesia pela maioria dos demais camponeses,
considerados como os pobres da terra e objeto da filantropia pública, possibilita a impunidade da
expansão territorial da burguesia agrária que se apropria das terras desses camponeses em nome
da modernização na agricultura.
12

O segundo movimento é a tendência crescente, mantidas as demais condições, de amplas


parcelas do campesinato de se associarem diretamente com as frações da burguesia, seja ela a
fração burguesia industrial (agroindústrias) seja a fração burguesia comercial (atacadistas ou
grandes varejistas do agrocomércio), através de contratos de produção ou de cessão de terras para
arrendamento com as grandes empresas capitalistas. Esses contratos de produção e ou de
arrendamento de terras tem como coadjuvante ativo a fração burguesia bancária, indiretamente
presente via os financiamentos às empresas capitalistas agroindustriais e ou às agrocomerciais.
Esses contratos têm um significado político-ideológico fundamental: os camponeses que os
aceitam perdem o controle interno sobre os processo de trabalho da linha de produção contratada
(padrão tecnológico e modo de produzir), transferindo esse controle para o exterior, ou seja, para a
direção da grande empresa capitalista. Esse processo de associação da fração campesinato-
associado com a burguesia nega uma das características básicas do campesinato que é o controle
interno (processo decisório) do que fazer e do como fazer na unidade de produção pela própria
família camponesa proprietária privada terra (ou com a posse mansa da terra).

O terceiro movimento é interligado ao anterior. Ao mesmo tempo em que a grande


empresa capitalista assegura o controle interno sobre o processo de trabalho de parcelas dos
camponeses, esses camponeses associados com a burguesia tendem a se posicionarem, político e
ideologicamente, em situação contraditória de classe: como seus interesses corporativos se
confundem com os interesses corporativos das empresas capitalistas a que estão associados
(burguesia agroindustrial e burguesia agrocomercial), as contradições de classe entre campesinato
e burguesia são mascaradas, afetando negativamente pela alienação a já precária consciência de
classe do campesinato.

A fração campesinato-associado, mesmo que não tenha incorporado no seu processo de


trabalho a relação social de assalariamento como o fez a fração pequena burguesia agrária da
burguesia agrária, do ponto de vista político-ideológico se encontra numa fronteira muito tênue
com a burguesia agrária, não porque extráia mais-valia dos assalariados, mas porque a efetivação
da associação desses camponeses com a burguesia lhe exige, além da sujeição econômica, a
lealdade política e ideológica à burguesia.

O campesinato-associado, mesmo aceitando a elevada e crescente auto-exploração da


força de trabalho familiar para dar conta das exigências da matriz de produção e tecnológica dos
processos de trabalho impostos desde o exterior pela burguesia agroindustrial ou a agrocomercial,
transforma no seu imaginário, pela incorporação da ideologia dominante, essa dependência
política e essa exploração econômica consentidas em ‘status social’ mais elevado em comparação
com os demais camponeses, diferenciando-se socialmente deles. Daí o imobilismo dessa fração
campesinato-associado nas lutas sociais contra a agroindústria e o agrocomércio, percebidos então
como parceiros na produção.

Os interesses imediatos de classe da fração campesinato-associado aparentemente se


confundem com os interesses gerais de classe da burguesia. Enquanto que para o campesinato-
associado os seus interesses imediatos são de natureza corporativa, ou seja, obter pela associação
com a burguesia uma renda agrícola positiva e estável, ainda que lhe exija continuado sobre-
trabalho da família, para a burguesia os seus interesses nesses contratos de produção são os gerais,
de classe: extrair o máximo conveniente 2 de valor-trabalho da família da fração campesinato-

2
Extrair o máximo conveniente (do valor-trabalho) na exploração dos camponeses de maneira que essa transferência
de renda agrícola não seja tão elevada que impeça o camponês explorado de obter uma renda agrícola líquida mínima
que lhe satisfaça, mesmo nos mais baixos patamares, a reprodução social da família. Nessas relações sociais desiguais,
a burguesia impõe periodicamente a seleção dos camponeses que poderão se manter como associados, através de
índices de resultados e de operações que sejam altamente favoráveis à rentabilidade da empresa capitalista contratante.
13

associado pelas trocas comerciais de venda de insumos e de compra de produtos, ambos sob seu
domínio direto.

Os interesses corporativos do campesinato-associado são tutelados pela própria burguesia.


Essa tutela é garantida pela direção política-ideológica exercida pela empresa capitalista do
agronegócio sobre tais camponeses, tutela essa que é transvertida subjetivamente pelo camponês-
associado como um consenso entre iguais. Essa fascinação do campesinato-associado pela
associação com a burguesia, ainda que plena de queixas de autopiedade em relação ao sobre-
trabalho que devem efetuar para dar conta dos contratos de produção, retira desses camponeses a
iniciativa para se organizem corporativamente, seja na ação sindical seja em movimentos sociais
populares, para a reivindicação de interesses. E quando o fazem, são cooptados pelos dirigentes e
quadro intermediários das empresas capitalistas através dos mais variados procedimentos
combinados de sedução/repressão que torna politicamente inócuo esse associativismo.
Predominam, então, as negociações dos interesses corporativos do campesinato-associado
diretamente com a empresa capitalista, sem mediação de organismos de representação.

A exploração econômica e a subalternidade política a que se submete o campesinato-


associado são sublimadas pela sua auto-identidade com um suposto novo ‘status social’,
idealização essa que é reforçada pela obtenção de uma renda agrícola oscilante, mas continuada,
sob controle da burguesia a que está associado, que hipoteticamente compensam os sofrimentos
vivenciados pela família. Nessa alienação das condições efetivas de exploração a que se submete
o campesinato-associado deixa de pesquisar e de entender como se dá essa exploração econômica.
Alienado do processo de transferência do valor incorporado aos produtos obtidos pela força de
trabalho familiar, não apenas nas trocas comerciais, mas, sobretudo, pela perda de controle sobre
o processo de trabalho, essa fração campesinato-associado desconsidera seus interesses gerais de
classe e, nesse sentido, não reconhece as contradições sociais de classe, o que lhe afasta das lutas
sociais de classe contra a burguesia.

Essa situação contraditória de classe é vivenciada de maneira relativamente diferenciada


pela fração campesinato-autônomo. Essa ‘autonomia’ refere-se ao fato objetivo de que os
camponeses dessa fração não estão associados com a burguesia por contratos de produção e ou de
cessão de terras para arrendamento. No entanto, isso não significa de forma generalizada que a
matriz de produção e a tecnológica desses camponeses seja diferenciada daquela adotada pelos
camponeses da fração campesinato-associado.

Considerando-se que a ideologia dominante do agronegócio impregna a concepção de


mundo do próprio campesinato, tudo leva a crer que essa autonomia seja bastante relativa tendo
em vista que a maioria dos camponeses dessa fração aceita e concretiza as matrizes de produção e
a tecnológica dominantes. Esses camponeses não perderam o controle interno sobre seu processo
de trabalho, mas indiretamente mantem-se submetidos à burguesia agroindustrial e à
agrocomercial pelas trocas comerciais e pela ideologia que está presente na matriz tecnológica
dominante que adotam.

Essa autonomia relativa apresenta maior amplitude nos casos em que os camponeses dessa
fração campesinato-autônomo adotam outra matriz de produção e tecnológica que lhes afasta da
dependência das trocas comerciais com a burguesia agroindustrial e a agrocomercial. A matriz de
produção e tecnológica da agroecologia, da agricultura orgânica, da biodinâmica, da agricultura
ecológica, da permacultura e outras similares proporciona a esses camponeses a possibilidade
efetiva de autogestão na produção, não dependendo assim dos insumos de origem industrial. E, se
aliada a essa dimensão se acrescentar as dimensões do autoconsumo familiar e da venda direta de
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seus produtos aos consumidores finais, essa autonomia se amplia e lhes permitem reduzir quase
ao limite a transferência do valor produzido pela família.

Ainda que essas perspectivas estejam restritas à unidade de produção, e sua inserção nas
relações com o mercado consumidor final, os camponeses da fração campesinato-autônomo têm a
possibilidade, mesmo mantida a matriz de produção e tecnológica não dependente dos insumos
diretos de origem industrial para a produção, com a realização da cooperação intercamponesa
(associações, cooperativas, agroindústrias camponesas, transportes solidários etc.) seja a para
agroindustrialização seja para a oferta de produtos e subprodutos no atacado, o campesinato-
autônomo, nesta última perspectiva, tem a possibilidade efetiva de realizar uma acumulação
camponesa, esta relacionada com a melhoria continuada do padrão de vida familiar e com o
desenvolvimento das forças produtivas nos processo de trabalho com o objetivo, de maneira geral,
de reduzir a penosidade do trabalho e compensar a redução relativa da força de trabalho familiar
que possam migrar para a cidade pelas mais distintas razões.

O desenvolvimento da consciência de classe da fração campesinato-autônomo, no caso


daquelas parcelas dessa fração do campesinato que adota integral ou mesmo parcialmente a matriz
de produção e tecnológica dominantes, na medida direta em que despertasse a sua percepção de
como se dá a sua exploração econômica e a sua subalternidade política-ideológica pela burguesia,
por um lado, e pelas iniciativas de superação dessa exploração e dessa subalternidade seja pelas
lutas sociais para reduzir as transferências de renda agrícola camponesa para a burguesia seja pela
adoção de uma matriz de produção e tecnológica agroecológica ou similares que rompa com a
dependência camponesa perante os insumos de origem industrial e os créditos rurais que lhe são
oferecidos para tal. Essa superação parcial ou integral da exploração econômica e da
subalternidade camponesa perante a burguesia pressuporia, Ademais, que essas parcelas do
campesinato-autônomo que superaram os modelo de produção e tecnológico dominante consigam
estabelecer novas relações nos mercados, relações essas não sujeitas aos mecanismos de controle
oligopolistas e oligopsônicos exercidos pela burguesia.

Mesmo que reconhecido pelo senso comum camponês que eles são explorados nas trocas
comerciais, esse saber se restringe à inferências sobre a relação de preços (preços pagos e
recebidos pelo camponês), mas sem articular esse processo de exploração à matriz de produção e
tecnológica adotadas, ao crédito rural subsidiado que utiliza e às macropolíticas públicas que
favorecem a afirmação da expansão e da reprodução da burguesia agroindustrial e da
agrocomercial, logo, da classe social burguesia que lhe é contrária.

A fração campesinato-proletário vivencia situação contraditória de classe por critérios


distintos dos anteriores. Como são camponeses que possuem área de terra insuficiente para
garantir uma renda agrícola familiar continuada e capaz de garantir a reprodução social da família
no nível da reprodução simples, esses camponeses tendem a vender a força de trabalho familiar
como assalariados, sejam como temporários regulares ou ocasionais (frações de classe do
proletariado rural: assalariados temporários regulares e assalariados ocasionais). Por vezes,
parcela da força de trabalho familiar é incorporada ao mercado de trabalho como assalariados
permanentes na área urbana, sendo o salário ou parte dele transferido para a unidade de produção
como rendimento familiar outro que não o proveniente da produção rural.

Essa prática de venda de parte da força de trabalho familiar no mercado de força de


trabalho rural e ou urbana afirma a crise identidade camponesa pela insuficiência ou precariedade
da produção rural para garantir a reprodução social da família. Seus interesses imediatos se
restringem à garantia da sobrevivência biológica da família através de várias iniciativas de
obtenção de renda agrícola e de venda da força de trabalho familiar. Nessa perspectiva a
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consciência de classe camponesa é pouco ou insuficientemente desenvolvida pela própria crise de


identidade que esses camponeses vivenciam.

No entanto, há parcelas dessa fração campesinato-proletário que mesmo reproduzindo as


práticas anteriormente comentadas, ensejam conseguir mais terra ou terra para outros membros
da família. Articulam-se com frações do proletariado rural na luta pela terra e pela reforma
agrária. Seus objetivos imediatos passam a ser uma combinação entre estratégias de obtenção de
rendimentos para a garantia da sobrevivência biológica da família e a luta pela terra. Na situação
político-ideológica dessa parcela da fração campesinato-proletário a contradição de classe se
manifesta contra a burguesia agrária, em particular àquela detentora de grandes extensões de
terras. Portanto, sua luta social pela terra adquire o caráter de luta de classes contra a burguesia
agrária.

Há, no entanto, parcelas dessa fração campesinato-proletário que poderia se posicionar na


fração campesinato-autônomo, dada a sua inserção socioeconômica em determinados territórios
do país e com terras de maior fertilizada relativa, considerando-se ainda que poderiam combinar
produção rural com extrativismo e artesanato, e se pudessem potencializar a produção e o
extrativismo ao desenvolverem a cooperação econômica interpares, além das práticas de ajuda
mútua que fazem parte da vida social comunitária.

Há uma parcela importante do campesinato, mais particularmente com presença nas


frações campesinato-autônomo e campesinato-proletário, que se encontra em contradição com os
grileiros de terras, sejam eles oriundos da burguesia agrária sejam eles da burguesia extrativista
(madeira e minérios). Essa contradição, ainda que secundária do ponto de vista da luta geral de
classes entre o campesinato e a burguesia, torna-se para essa parcela dos camponeses a
contradição principal, compreendendo-se que essas lutas camponesas são lutas de resistência
contra um opressor conjuntural, mas decisivas para a sobrevivência desses camponeses como
camponeses.

Mesmo que essas lutas de resistência camponesa na terra contra a grilagem se dêem de
maneira pontual ou localizada do ponto de vista territorial e dispersa pelo país elas têm uma causa
comum que é o expansionismo territorial e a exploração dos recursos naturais pela burguesia,
negando ou expropriando quem estiver no seu caminho. O caráter de resistência dessas lutas
sociais camponesas contra a exclusão social exercida pelas práticas econômicas da burguesia
pode contribuir para o aumento da consciência de classe camponesa.

3.3. Contradições e luta de classe

As contradições econômicas de classe entre o campesinato e a burguesia (agrária,


comercial, industrial e bancária) estão presentes na dinâmica da expansão capitalista na formação
social brasileira. Essas contradições têm base material objetiva: as diferentes formas como se dá a
exploração das frações do campesinato pela burguesia, não só a agroindustrial como a comercial e
a bancária. No entanto, ainda que os camponeses percebam que há contradições econômicas de
classe entre seus interesses gerais de classe com relação os interesses gerais de classe da
burguesia, essa consciência não alcança necessariamente o nível de consciência política de luta
social devido a alguns fatores que ocorrendo de maneira inter-relacionada impedem ou obstruem
o desenvolvimento da consciência política de classe do campesinato:

 as bases materiais determinantes das contradições econômicas entre as diversas frações do


campesinato com as diversas frações da burguesia ocorrendo predominantemente nas
16

trocas comerciais mascaram a exploração econômica exercida pela burguesia sobre o


campesinato;

 o reforço constante político-ideológico das idéias dominantes, entre elas a de que a


regulação econômica e social se dá através do mercado e da concorrência, desloca ou
inibe a compreensão por parte do campesinato dos mecanismos de transferência de renda
que ocorre nas trocas comerciais entre desiguais que se dão nas relações comerciais
campesinato-burguesia;

 a aceitação ingênua dos determinismos do mercado e da concorrência induz os


camponeses a um conformismo e a uma impotência crítica sobre as contradições sociais
de classe que têm com a burguesia devido a que ambos, camponeses e burgueses,
aparentemente se apresentam nos mercados em supostas condições de igualdade, ou
quando isso não ocorre os camponeses não encontram outros caminhos senão aceitar esses
mercados sob o controle burguês;

 esse determinismo dos mercados sob o controle burguês, enquanto classe dominante, faz
com que os camponeses se limitem a realizarem os seus interesses imediatos corporativo,
induzindo-os ora às negociações com a burguesia ora à reivindicação e ao protesto
perante as políticas públicas;

 a ausência de uma concepção de mundo de classe do campesinato que pudesse se antepor


aos valores e à concepção de mundo burguês no campo, portanto, capaz de estabelecer os
interesses gerais da classe do campesinato em face dos interesses gerais de classe da
burguesia, tolhe a possibilidade do despertar e do desenvolvimento da consciência política
do campesinato que pudesse evidenciar, pela consciência crítica de classe, a dinâmica da
exploração econômica e da subalternidade política em que se encontra o próprio
campesinato em face da burguesia;

 na ausência de um projeto político de classe, a ideologia dominante que impregna o senso


comum do campesinato o induz a uma compreensão político-ideológica alienada que
considera o modelo de produção e o tecnológico praticado pela fração burguesia agrária
moderna como um referencial de objetivo econômico estratégico a ser alcançado,
negando, pela crise de identidade camponesa, os seus possíveis objetivos estratégicos de
classe de afirmação do campesinato como classe social e superação dialética da burguesia
agrária;

 comprometido político-ideologicamente com os referenciais econômicos da burguesia


agrária, as frações de classe do campesinato, em situações concretas sob as mais distintas
formas de relação social e com a natureza, em função da diversidade de situações
históricas, socioeconômica e cultural, tendem a resolver as conseqüências da exploração
econômica a que estão submetidos pelas diversas frações de classe da burguesia, e
expressas sinteticamente na baixa renda agrícola que conseguem auferir, não na luta de
classes contra a burguesia para reduzir ou eliminar a exploração econômica a que estão
sujeitos, mas através de pressões políticas sobre os governos para que eles transferiram
recursos à fundo perdido para os camponeses através das políticas públicas
compensatórias ou de natureza filantrópica;

 as políticas públicas compensatórias governamentais para o campesinato sendo políticas


táticas orgânicas aos interesses gerais de classe da burguesia por garantirem e facilitarem a
reprodução social de parcelas do campesinato em situação de relação social de produção
17

de exploração econômica pela própria burguesia, são veiculadas e implantadas direta e


indiretamente através das práticas sociais e políticas das categorias sociais pessoal do
Estado, pessoal religioso profissional e pessoal das organizações não governamentais da
sociedade civil, categorias sociais essas que no limite das suas táticas de ação favoráveis
ao campesinato são mobilizadoras e conscientizadoras das frações de classe do
campesinato para aprimorarem as suas lutas sociais reivindicatórias perante os governos.

As limitações da consciência de classe do campesinato podem se dever ao fato de que os


camponeses não exercitam lutas de classe contra a burguesia, com exceção de parcelas da fração
campesinato-proletário, e, ademais, porque político e ideologicamente parcelas relevantes do
campesinato, como a fração campesinato-associado e parte da fração campesinato-autônomo,
aceita e exercita a matriz de produção e tecnológica dominante e ou realiza contratos de produção
com a burguesia (agroindústrias e agrocomércio) que transfere para ela o controle externo sobre
seu processo de trabalho, assumindo esses camponeses posição contraditória de classe.

A consciência de classe do campesinato é incipiente, quiçá diluída num senso comum que
a faz sentir-se subjetivamente diferente da burguesia, mas não alcançando um nível de consciência
que lhe permite ter a percepção objetiva da contradição de classe com a burguesia. Consciência
essa que manifestaria e se afirmaria na luta social concreta quando a luta pelos seus interesses
imediatos, portanto luta de caráter tático, contribuísse política e ideologicamente para o acúmulo
de forças do próprio campesinato no sentido de alterações na correlação de forças políticas entre a
realização dos interesses gerais de classe do campesinato em relação àqueles da burguesia. Mas,
essa dimensão da luta social não se verifica, a não ser parcial e limitadamente na luta pela terra.

A consciência social de classe capaz de afirmar a classe para si só se desenvolve na


prática das lutas de classe, sejam aquelas lutas pelos interesses imediatos ou passageiros, sejam
aquelas para a afirmação de interesses corporativos. No entanto, uma luta social para se constituir
em luta de classe requereria, minimamente, que as duas classes sociais (ou frações de classe)
estivessem em confronto, ao menos, no nível da consciência de classe. Para isso seria necessária a
compreensão de que as lutas sociais de classe, mesmo aquelas singulares, localizadas ou
episódicas, carregam em si a luta geral de classe. Todo singular traz em si mesmo o geral ao qual
pertence. Não há lutas gerais de classes sociais, a não ser na dinâmica das revoluções sociais. O
que predomina, em maior ou menor intensidade, numa sociedade de classes como a da formação
social brasileira, são as lutas sociais singulares e ou aquelas particulares (setores econômicos e ou
frações de classe inteiras envolvidas no confronto), ambas trazendo em si mesmas as contradições
gerais com as classes que lhe são contrárias.

Mas, o pressuposto é de que essas lutas sociais se dêem entre as classes sociais, no
confronto político-ideológico para que os interesses gerais de uma classe se sobreponham aos
interesses gerais da outra classe que lhe é contraditória. Isso quer dizer que as lutas sociais
reivindicatórias perante os governos desviam os objetivos estratégicos das lutas gerais de classe
para a conciliação entre classes, mediada pelo poder político da classe dominante.

A suposição por parte do pessoal e das instituições das organizações não governamentais
da sociedade civil, como os sindicatos de trabalhadores rurais e os movimentos e organizações
sociais populares no campo, de que as lutas sociais de reivindicação e de protestos que parcelas do
campesinato efetua tradicionalmente perante os governos poderiam, pela mobilização política e
pelo confronto com as autoridades instituídas, despertar nos camponeses envolvidos a consciência
crítica da exploração de classes, necessariamente não se verifica. Ao contrário, ao centrar as lutas
sociais naquelas sem caráter de classe e restritas aos interesses imediatos corporativos, como as
reivindicações perante os governos, o campesinato aí implicado tende a se desviar da
18

compreensão crítica dos mecanismos e da dinâmica que explicam a exploração econômica e a


subalternidade política-ideológica, ambas praticadas pela burguesia nas suas relações sociais de
classe com o campesinato. Ora, esse desvio político-ideológico na compreensão da exploração
econômica do campesinato é mais favorável à ampliação da sua alienação do que ao
desenvolvimento da sua consciência de classe social.

Os espaços políticos onde são implantados os processos de formação e desenvolvimento


da consciência crítica do campesinato, através de iniciativas de quaisquer uma das categorias
sociais consideradas, ou mesmo em convênios ou contratos de terceirização de atividades entre o
pessoal e entre as instituições dessas categorias sociais, não contemplam as lutas sociais de classe
do campesinato, a não ser aquelas que se referem à luta social pela terra e pela reforma agrária.
No entanto, essa dimensão da luta social pela terra de frações do campesinato, por vezes em
aliança tática com frações do proletariado rural, ainda que expressão da luta de classes do
campesinato contra a burguesia agrária, é insuficiente para dar conta do espectro de lutas de
classes sociais necessárias para a redução ou eliminação da exploração econômica e a
subalternidade política do campesinato em face da burguesia. E, nesse sentido, para a superação
dialética da classe social burguesia agrária.

A multiplicidade das formas de ser e de viver do campesinato, em decorrência das


diferenciações socioeconômicas e culturais historicamente constituídas nas mais distintas
situações territoriais contemporâneas do país, não elimina a possibilidade de desenvolvimento da
consciência crítica de classe. Sem dúvida que dificulta, ao menos para o campesinato mais
empobrecido cujo cotidiano é um que-fazer continuado de iniciativas para a viabilização de táticas
de sobrevivência biológica da família. No entanto, seja através da luta pela terra seja nos
confrontes de resistência à sua exclusão social pela grilagem, os camponeses mais pobres
enfrentam diretamente as diversas frações da burguesia no seu processo de concentração e
centralização fundiária.

4. AS CONTRADIÇÕES SOCIAIS DA FRAÇÃO CAMPESINATO-AUTÔNOMO

A expressão autônomo, como adjetivação dessa fração do campesinato, refere-se a uma


autonomia econômica e política relativa perante o capital do agronegócio. Sugere que o
campesinato classificado nessa fração de classe não estabeleceu contratos de produção nem cedeu
parte de suas terras em arrendamento para as empresas agroindustriais e ou agrocomerciais. E,
ademais, adota no seu processo de trabalho uma matriz de produção e tecnológica que prescinde
de insumos de origem industrial. É uma fração do campesinato que detém a “propriedade real, ou
seja, quando se juntam nas mesmas mãos a posse efetiva dos meios de produção (objeto mais os
meios de trabalho) e o poder de disposição destes e dos produtos que eles produzem.” (Harnecker,
1973: 48-9)

Essa autonomia é relativa devido ao fato de que essa fração do campesinato tende a
realizar investimentos em meios de trabalho (instalações, máquinas, motores e implementos)
necessários para reduzir a penosidade do trabalho e aumentar a produtividade da força de
trabalho, tendo em vista garantir uma oferta de produtos nos mercados cuja renda monetária
líquida familiar lhes proporcionem uma melhoria continuada da qualidade de vida familiar,
segundo os padrões de qualidade de vida estabelecidos pela própria família camponesa e pelos
valores presentes e socializados no seu contexto histórico sócio-cultural.

A autonomia aqui referida não significa que esse camponês esteja alheio aos mercados,
nem que negue a monetarização de suas transações comerciais. Implica, isso sim, que relações
19

sociais não-mercantis são pressupostas, que trocas de produtos entre os membros da família
ampliada e da comunidade sejam relevantes e necessários para a afirmação do seu território, que a
cooperação entre famílias seja considerada como prática social de vizinhança, de compadrio ou de
solidariedade sem que essas dimensões das relações sociais sejam consideradas como menores
que aquelas nos mercados, e que um outro modelo de produção e tecnológico que não aquele
instaurado de cima para baixo pela burguesia e seus governos seja adotado e onde a produção
interna de insumos (sementes, matrizes animais, fertilizantes, rações, produtos terapêuticos, etc)
seja uma prática contemporânea e pertinente à manutenção da autonomia camponesa.

A destinação de parcela da produção camponesa para o uso da família (consumo e


estoques alimentares, terapias, cosméticos, condimentos e outros) ou como insumos para os
processos de trabalho que se verifiquem na unidade camponesa de produção, não torna essa
unidade de produção familiar nem menos produtiva nem menos eficiente, seja do ponto de vista
econômico seja do ecológico.

Quanto maior a autonomia relativa dos camponeses da fração campesinato-autônomo


menor é a contradição direta com a burguesia, em particular com as frações burguesia industrial
(agroindustrial) e a comercial (agrocomércio). Nessa perspectiva, a exploração camponesa pela
burguesia se limitaria a alguns processos onde a mercantilização esteja presente como na venda
dos produtos camponeses seja na aquisição, pelos camponeses, de meios de trabalho. Essa
exploração econômica seria reduzida sempre a quando o campesinato-autônomo conseguisse
estabelecer processos de cooperação que lhes facilitasse as vendas e as compras em condições de
menor desigualdade relativa devido estarem os mercados sob o controle oligopolista e
oligopsônico da burguesia.

Do ponto de vista político-ideológico a fração campesinato-autônomo ao ampliar seus


graus de autonomia relativa perante o capital estaria menos sujeita aos controles externos político-
ideológicos sobre seus processos de trabalho, expressos na adoção de modelos de produção e
tecnológicos de natureza liberal-burguesa, como encontraria objetivamente condições efetivas de
elaboração de uma concepção de desenvolvimento rural que afirmasse essa autonomia
camponesa.

4.1. A composição da fração campesinato-autônomo

Do total de imóveis incluídos na classe social campesinato em 2003, ou sejam, os imóveis


com menos de 50 has e totalizando 3.125.947 imóveis ou 73,7 % do número total de imóveis do
país e 12% do total da área desses imóveis (cf. Carvalho, 2006), considerei que 31,6% desse total
de imóveis do campesinato, ou sejam 1.338.711 imóveis com área abaixo de 10 has, poderia ser
considerado como pertencente à fração do campesinato que denominei campesinato-proletário.
Esse número se aproxima do total de proprietários de terra, em 1995, com área insuficiente (Dal
Grossi: 2001, in Proposta PNRA, 2003), que então alcançavam um total 1.679.728 famílias
proprietárias. No entanto, se considerarmos além de proprietários com área de terra insuficiente os
arrendatários não capitalistas, os parceiros, cessionários, ocupantes e outra condição, esse total
alcançaria, no Brasil em 1995, o total de 2.927.883 famílias 3. Nessa cifra, e devido às outras
condições de ocupações além do proprietário, o total de famílias se estaria referindo, ainda que

3
O estudo de Del Grossi et al. (2001) considera como parte do público potencial (da reforma agrária – HMC) as
famílias rurais de trabalhadores agrícolas, pluriativos e desocupados, bem como as famílias agrícolas e pluriativas
residentes em área urbanas, o que atingiu, em 1997, o montante de 3,1 milhões de famílias. No caso do estudo,
consideraram-se como famílias agrícolas àquelas em que a totalidade de seus membros tinha como ocupação principal
as atividades agrícolas, sendo pluriativas aquelas onde ocorria a combinação entre atividades agrícolas e não agrícolas
entre os componentes do domicílio. (cf. Proposta PNRA: 13)
20

com imprecisão, a estabelecimentos rurais (IBGE) e não a imóveis (INCRA).

Os imóveis que poderia ser considerados como pertencentes às frações campesinato-


associado e campesinato-autônomo somariam um total de 1.787.236 imóveis 4, representando
42,1% do total do número de imóveis, mas apenas 10,2% do total da área dos imóveis do país.

Desse total de imóveis supostamente pertencentes a essas duas frações do campesinato é


impraticável, nesta oportunidade, se distinguir os totais de imóveis que constituiriam a fração
campesinato-associado e aqueles que poderiam ser considerados como da fração campesinato-
autônomo.

Tudo leva a crer, entretanto, que a fração campesinato-associado não ultrapassaria nesse
mesmo ano (2003) a um total estimado de 600 mil imóveis camponeses 5, mesmo se considerando
a forte expansão dos contratos de produção animal e vegetal, inclusive para a produção de matéria
prima para a bioenergia como mamona, cana de açúcar, girassol, etc, em várias regiões do país, e
da ampliação crescente da tendência de cessão de parte das terras de parcela dos camponeses-
associados para o plantio de árvores objetivando a produção de matéria prima para a produção de
celulose, que os camponeses-associados estão efetuando com as agroindústrias e o agrocomércio.

Poder-se-ia, então, por subtração6 se considerar que a fração campesinato-autônomo


contemplaria um total aproximado de 1.200.000 de imóveis. Haveria, entretanto, uma elevada
dispersão do conceito de autonomia camponesa nessa fração de classe do campesinato, desde
aquelas unidades de produção onde essa autonomia relativa é resultado da consciência crítica
camponesa com relação às suas relações com a burguesia (agroindustrial e agrocomercial), até
aquelas unidades de produção cuja autonomia se dá pela incipiência na produção resultante da
precariedade das forças produtivas disponíveis e ou do número de membros da força de trabalho
familiar efetivamente incorporados como trabalhadores diretos no processo de trabalho.

A fração campesinato-autônomo se delimita no extremo superior com a fração


campesinato-associado e com a fração da burguesia classificada como pequena burguesia agrária.
Isto se deve ao fato de que a tendência a incorporar a relação social de assalariamento no processo
de trabalho de parcela desse campesinato-autônomo tende a ser crescente sempre e quando
algumas situações, isoladas ou inter-relacionadas, se apresentem:

 a incorporação usual e constante de força de trabalho assalariada ocasional para substituir


parte ou para complementar a força de trabalho da família proprietária (ou posseira) da
terra, de maneira que o trabalho assalariado torne-se uma rotina nos processos de trabalho
da unidade camponesa;

 parte dos membros da família proprietária da terra (ou posseira) deixa de se incorporar
como trabalhadora direta no processo de trabalho da unidade de produção seja devido à
perda de identidade social camponesa que induz esses membros da família a migrarem,
seja devido às preferências pessoais de buscarem atividades de outra natureza;

 a família camponesa não encontra sustentação financeira própria (ou pelo crédito) para a
realização de inversões que aumentem a produção e a produtividade da unidade de
4
Obteve-se esse total pela subtração do número de imóveis abaixo de 10 has do total de imóveis abaixo de 50 has em
2003, ou seja, 3.125.947 (imóveis do estrato com menos de 50 has) menos 1.338.711 (imóveis do estrato com menos
de 10 has), sendo igual a 1.787.236 imóveis.
5
Somente com contratos para a produção de fumo se estima um total de 230.000 camponeses-associados no país.
6
O total de imóveis estimado para a fração campesinato-autônomo, pela subtração referida no corpo do texto
(1.787.236 – 600.000 = 1.187.236), foi arredondado para 1.200.000 de imóveis.
21

produção, ou não se sente motivada política e ideologicamente para a incorporação de um


modelo de produção e tecnológico de convivência com a natureza, com intensa
diversificação de cultivos e criações e processamentos agroindustriais familiares, que
altere a cultura dominante de especialização da produção, seja pela criação animal ou
pelo plantio de cereais, e que lhe permita diversificar as fontes de renda familiar, mas que
demande novo comportamento perante a natureza e os mercados;

 a consciência política de classe desses camponeses se apresenta debilitada, seja como


resultado das pressões políticas externas da propaganda da agroindústria para a adoção do
modelo de produção e tecnológico da burguesia, seja devido às suas fragilidades
financeiras que determinem a subalternidade desses camponeses ao crédito rural e, em
seguida, aos contratos de produção com as empresas do agronegócio burguês ou de
cessão de parte das suas terras para arrendamentos pela burguesia.

No outro extremo, no âmbito das relações intraclasse do campesinato, a fração


campesinato-autônomo é delimitada pela fração campesinato-proletário. Estes camponeses
vivenciam situações contraditórias de classe em decorrência da necessidade econômica da venda
de parte da força de trabalho familiar como trabalhadora assalariada em outras unidades de
produção e ou de serviços para auferirem rendimentos familiares outros que lhes garantam a
reprodução social da família. Essa situação conjuntural (ou estrutural) dessa fração do
campesinato não é referência econômica nem política para a fração campesinato-autônomo, a não
ser pelas estratégias de sobrevivência que esse campesinato-proletário encontra e pratica para
garantir a reprodução social da família.

4.2. Os interesses e as contradições de classe

Os camponeses da fração campesinato-autônomo são os que mais se aproximam do


referencial teórico que fundamenta a racionalidade camponesa. A autonomia perante o capital (a
não associação com o agronegócio burguês) e a incorporação da força de trabalho familiar como
trabalhadores diretos no processo de trabalho da unidade de produção (a não venda de parte da
força de trabalho familiar como trabalhador assalariado) são elementos fundamentais da vida
camponesa.

A racionalidade camponesa está centrada na reprodução social da família, na


indissolubilidade entre a gestão e exploração da unidade de produção e o usufruto dos resultados
dessa iniciativa pela própria família que tem acesso à terra e aos recursos naturais que ela suporta.
Nesse sentido, tanto a perda do controle sobre o todo ou parte do processo de trabalho (associação
com a burguesia pelos contratos de produção ou cessão de terras em arrendamento) na unidade
camponesa como a venda continuada ou ocasional de parte da força de trabalho familiar para
terceiros contraria essa racionalidade centrada na família camponesa. Sem dúvida alguma que
essas alternativas que se oferecem à família camponesa são produtos da correlação de forças
econômicas vivenciadas pelas famílias camponesas em determinados contextos econômicos e
sociais, e se relacionam com as suas estratégias de obtenção de rendimentos familiares no âmbito
das suas iniciativas econômicos para a reprodução social da família.

Qualquer uma das alternativas anteriores adotadas como prática econômica pelos
camponeses, ainda que determinadas pela necessidade econômica da reprodução social da família
e pelo padrão de qualidade de vida que estipulam para si próprios (hábitos de consumo e de
trabalho), afeta e é conseqüência dos seus desejos e aspirações como pessoas e famílias. Como de
maneira geral as idéias dominantes são aquelas das classes dominantes, esses desejos e aspirações
22

estão relacionados com a crescente e continuada melhoria da qualidade de vida familiar, esta
motivada pelos valores da classe média urbana. Nesse sentido, a busca de rendimentos familiares
crescentes é ao mesmo tempo uma necessidade de satisfazer esses hábitos de consumo e de
trabalho sugeridos pela ideologia dominante e um esforço de superação das condições objetivas
materiais, relativamente precárias, em que os camponeses se encontram.

Pode-se afirmar, então, que os interesses gerais da fração campesinato-autônomo, assim


como da classe social campesinato como é aqui compreendida, são determinados pelo esforço de
melhoria crescente e continuada das condições de vida familiar e de trabalho da família
camponesa, condições de vida essa estabelecida pelos hábitos, desejos e aspirações desses
camponeses no âmbito das interações sociais que estabelecem com os valores de outros
camponeses em suas comunidades e devido às influências de distintas naturezas da ideologia
dominante da sociedade capitalista na sua totalidade.

Esses interesses gerais devem, ao denotarem um padrão desejado e sempre em mudança


de qualidade de vida, dar conta das várias dimensões que as formas de viver e de produzir
camponesas se apresentam no país, e não apenas da dimensão econômica, esta expressa de
maneira geral pelos rendimentos familiares auferidos, tendo como fonte básica, mas não única, a
renda agrícola líquida.

Nessa perspectiva, a ampliação da renda agrícola líquida familiar é apenas, ainda que
relevante, um elemento do esforço para a garantia e a melhoria do padrão desejado de qualidade
de vida. Há, no entanto, outros elementos que necessitam ser considerados, sejam eles de ordem
objetiva sejam subjetiva. Dois desses elementos são: a cultura camponesa e o seu território.

A cultura camponesa, ainda que não isolada da cultura dominante, apresenta diferenciais
de valores e comportamentos que proporcionam aos camponeses os elementos da sua identidade
social, variável no tempo e no espaço em função das interações que estabelecem com as
concepções de mundo capitalistas. Como elementos da cultura camponesa deve-se levar em
consideração a família, a religiosidade, o sincretismo religioso, as festividades, a vizinhança, o
compadrio, as danças, as músicas, as artes plásticas, as formas distintas de teatro, a comunidade,
os saberes ancestrais, as crenças e tabus, as cosmogonias nas relações com a natureza e com o
mundo urbano. Enfim, mas não finalmente, uma totalidade de ser e de viver, mesmo que em
constante interação com a modernidade neoliberal burguesa.

A maneira de viver e de produzir, sua identidade social comunitária, as diferentes formas


de apropriação e de convívio com a natureza, os referenciais históricos sócio-políticos e étnico-
culturais tem no território a base de sua afirmação. Camponês e território forma uma unidade
política inseparável.

Devo sugerir que a identificação dos interesses gerais do campesinato, enquanto classe,
deveria dar conta dessa multiplicidade de elementos anteriormente citados. Não é suficiente a
referência à exploração econômica realizada pela burguesia nos processo de troca nos mercados.
A redução dos interesses gerais do campesinato, em particular do campesinato-autônomo, a esse
elemento simplifica equivocadamente a complexidade dos interesses gerais de classe do
campesinato.

Os interesses gerais de classe se manifestam na luta de classe. A contradição principal da


fração campesinato-autônomo7 com as frações agroindustrial e a agrocomercial da burguesia não
7
Essa contradição se dá de maneira diferenciada com relação às frações campesinato-associado e campesinato-
proletário. A primeira fração devido à natureza dos contratos de produção e ou de cessão de terras em arrendamento
23

ocorre apenas nas trocas comerciais que realiza. As dimensões política e a ideológica dessa
contradição desempenham papel relevante na dinâmica das contradições de classe entre
campesinato e burguesia. No entanto, dado o caráter hegemônico da ideologia dominante liberal-
burguesa, as dimensões política e ideológica são insuficientemente correlacionadas com a
dimensão econômica e os interesses gerais do campesinato-autônomo são reduzidos à dimensão
econômica, como a melhoria e aumento da renda agrícola líquida.

Ao se reduzir os interesses gerais de classe do campesinato exclusivamente à dimensão


econômica se está negando e excluindo as dimensões sócio-culturais que estão intimamente
integradas à racionalidade camponesa que tem na reprodução social da família a sua centralidade.
E essa reprodução social deve ser compreendida como uma resultante de inúmeras e complexas
iniciativas, entre as quais se insere como uma delas a relacionada com a monetarização pela venda
de produtos e subprodutos camponeses nos mercados.

A exploração econômica do campesinato que a burguesia realiza nas trocas comerciais


com os camponeses é consequência não somente da manipulação de preços que realiza ao
controlar os mercados, mas, sobretudo, pela fragilização política e ideológica dos camponeses ao
serem instigados de cima para baixo, ora pelo crédito rural governamental e a assistência técnica
ora pela propaganda dos insumos de origem industrial veiculada pelos meios de comunicação de
massa, a incorporarem um modelo de produção e tecnológico que os submetem político-
ideologicamente aos valores e interesses dominantes liberal-burgueses. A exploração econômica é
apenas uma parte do processo mais amplo de dominação e subalternidade a que os camponeses
são submetidos na sua relação de classe com a burguesia.

Ao incorporarem no seu processo de trabalho o modelo de produção e tecnológico


elaborado a partir dos interesses das grandes empresas capitalistas os camponeses estão
assimilando, também, os valores éticos e políticos que nele estão presentes como a artificialização
da agricultura, a absolutização da mercantilização, a ideologia do livre mercado, a concorrência
capitalista, a incorporação das relações sociais de produção de assalariamento, a transferência para
o controle externo da gestão do processo de trabalho na unidade de produção, a ciência e a
tecnologias burguesas e, entre tantos outros, a política pública como uma política que aparenta ser
de interesse comum.

O modelo de produção e tecnológico dominante ao ter sido concebido a partir dos valores
liberal-burgueses consagra e institui, na sua aplicação, esses mesmos valores e os comportamentos
que lhe são correlatos. Esse modelo dominante nega, portanto, o modo de viver e de produzir
camponês, pois, o processo de trabalho é sempre portador de uma concepção de mundo. Portanto,
ao se introduzir na unidade de produção camponesa o modelo de produção e tecnológico liberal-
burguês, seja pela associação dos camponeses com a burguesia através dos contratos de produção
e ou os de cessão de terras para arrendamento capitalista, se está corroendo, por dentro, a
racionalidade camponesa que tem na maneira como se relaciona com a natureza um dos seus
alicerces.

Por outro lado, os camponeses ao introduzirem no seu que-fazer cotidiano os valores e os


comportamentos liberal-burgueses trazem para dentro de si uma contradição política-ideológica
que os colocam numa situação contraditória de classe.

A presença da força de trabalho familiar no processo de trabalho camponês seja como


centro decisório da gestão da unidade de produção seja como trabalhadores diretos, mesmo que as

que mediam as relações de trocas comerciais; a segunda fração pela pequena escala de produção da maior parte dos
camponeses dessa fração de classe.
24

suas atividades sejam mediadas por tecnologias e equipamentos que ampliem a produtividade do
trabalho, é indispensável para garantir as subjetividades fundamentais que fazem parte dos
interesses gerais do campesinato como classe social. Essas subjetividades não se revelam na
dimensão econômica percebida sob o olhar capitalista, este predominantemente centrado na
mercantilização e na busca incessante de lucros.

Essas subjetividades do cotidiano das vidas camponesas tendem a ser relegadas a um


plano secundário ou, mesmo, negadas, porque o pressuposto da ideologia dominante é que os
camponeses deverão se tornar pequenos burgueses agrários, logo, portadores da racionalidade e
das subjetividades burguesas.

A fragilidade da perspectiva histórica camponesa aliada às suas lutas sociais cotidianas


pelos interesses imediatos faz com que os camponeses releguem para segundo plano ou, mesmo,
desconsiderem a importância das subjetividades inerentes ao seu modo de ser e de viver, como
por exemplo, quando aceitam o crédito governamental para a construção e ou melhoria da casa
própria cujas linhas de financiamento tem como referências a casa padrão das periferias urbanas,
inteiramente incompatíveis com a noção de ‘habitat’ camponês.

A desconsideração continuada das subjetividades camponesas ou a sua submissão aos


valores e comportamentos liberal-burgueses reduz as lutas sociais apenas aos interesses imediatos
e corporativos de natureza econômica, eliminando drasticamente as possibilidades dessas lutas
sociais desenvolverem a consciência de classe camponesa, consciência de classe essa que exigiria
a percepção e afirmação do modo de ser e de viver camponeses, portanto diferentes daqueles
modos de ser e de viver burgueses e os do proletariado urbano. Não havendo essa diferenciação, o
que ressalta é a tendência das lutas sociais camponeses se tornarem simplesmente lutas sociais de
caráter reivindicatório e não de classe, porque nesses casos os camponeses ideologicamente
introjetaram na sua concepção de mundo os valores e comportamentos liberal-burgueses, ainda
que sem negarem subjetivamente a racionalidade camponesa.

4.3. A consciência e as lutas sociais de classe

A presença de um sentimento da condição camponesa por parte dos próprios camponeses


não significa necessariamente a presença ou manifestação da consciência de classe camponesa.
Essa subjetividade é necessária para o desenvolvimento da consciência camponesa, mas
insuficiente para a construção de uma consciência de classe camponesa.

A consciência de classe se constrói na percepção que cada classe social tem das suas
contradições sociais de classe na formação social e na luta social que realizam para superarem
dialeticamente essas contradições de classe. Se o campesinato não percebe e não compreende a
exploração econômica e a subalternidade política e ideológica a que está sujeito nas suas relações
sociais de contradição com a burguesia, fica prejudicado o desenvolvimento da sua consciência de
classe pela incompreensão da contradição de classe em que se insere.

Compreender a exploração econômica a que estão sujeitos os camponeses nas suas


relações comerciais com a burguesia exigiria que fosse desvendada a natureza dos mercados numa
sociedade de classes como a capitalista contemporânea, assim como o papel das políticas públicas
na reprodução da desigualdade social numa sociedade de classes. Essa compreensão é dificultada
não apenas porque é um tema complexo, mas, sobretudo, porque a ideologia dominante mascara
as distorções dos mercados e faz deles, no nível da ideologia, um regulador das relações
econômicas, ainda que sabidamente os mercados dos principais produtos e insumos agropecuários
e florestais estão sob controle oligopolista e oligopsônico das grandes empresas capitalistas.
25

A ideologia dominante reforça a subalternidade política e ideológica camponesa perante a


burguesia ao reificar o modelo de produção e tecnológico das empresas capitalistas, portanto, os
produtos da ciência e da tecnologia burguesas, como a expressão do avanço tecnológico e da
modernidade nas relações homem-natureza, desconstruindo a racionalidade e os saberes
camponeses. Tanto o mercado como a grande empresa capitalista do agronegócio tornam-se os
referenciais econômicos da sociedade contemporânea, excluindo todas as possibilidades de
diversidade de outros modos de ser e de viver, como o do campesinato.

Nesse contexto histórico contemporâneo o campesinato não se considera em contradição


social de classe com a burguesia porque as suas relações sociais com as empresas agroindustriais
e agrocomerciais são de natureza comercial através dos mercados. A fração campesinato-
associado tende a considerar o agronegócio como um aliado, logo, suas contradições com a
burguesia são no limite de natureza contratual. Já a fração campesinato-autônomo, mesmo quando
tenha incorporado elementos do modelo de produção e tecnológico dominante, confronta-se com
a burguesia nos mercados. Quando parcelas do campesinato-autônomo adotam outros modelos de
produção e tecnológicos como a agroecologia, a ecoagricultura, a agricultura natural, a
biodinâmica e ou a permacultura, suas contradições com a burguesia são menos intensas tendo em
vista que esses camponeses tendem a se inserirem em mercados onde predominantemente o
comprador é o consumidor final.

A fração campesinato-autônomo, quando diversifica a sua produção e é menos dependente


da aquisição de insumos de origem industrial, se por um lado tem menor relação social de classe
com a burguesia ---portanto, menos contradições sociais efetivas, por outro lado tendo a possuir
um mais forte sentimento da condição camponesa. Neste sentido, do ponto de vista político-
ideológico seu potencial de desenvolvimento de consciência de classe é maior e tendente à
afirmação de seu modo de viver e de produzir.

A fração campesinato-proletário, mesmo em situação contraditória de classe, tem mais


possibilidades objetivas de desenvolvimento da consciência de classe camponesa quando se
articula nas lutas sociais pela terra e pela reforma agrária. Como o proletariado rural está com
dificuldades de mobilização e de ações contra a burguesia agrária e a industrial (agroindustrial)
objetivando realizar seus interesses imediatos de reduzir a exploração pela transferência de mais-
valia e avançar na formação da consciência de classe, dificilmente o campesinato-proletário terá
no proletariado uma referência objetiva para as suas lutas sociais, a não ser nas lutas pela terra e
pela reforma a agrária.

4.4. As potenciais alianças de classe

As alianças de classe ou entre as frações de classes distintas, contraditórias entre si mas


não antagônicas, podem ocorrer sempre e quando os interesses imediatos dessas frações de classe
com origem em classes distintas tenham contradições objetivas com as classes ou frações dessas
classes que lhe são contrárias. É a natureza da contradição entre as classes e, portanto, entre os
interesses gerais e os imediatos das frações de classes distintas que proporcionará condições
concretas para que essa contradição se manifeste objetivamente numa conjuntura dada.

A aliança política entre classes ou entre frações dessas classes sociais com contradições
sociais estruturais de classe ocorre quando os interesses imediatos de frações de classe de classes
sociais distintas sejam conjunturalmente similares. É exemplo emblemático dessas alianças
políticas conjunturais para a realização de interesses imediatos corporativos tanto de parte de
frações do campesinato com de frações da burguesia agrária as pressões conjuntas que realizam
26

sobre os governos para a obtenção e ampliação do volume de créditos rurais subsidiados a serem
liberados e para a aprovação dos processos de securitização de dívidas de financiamentos
anteriores não pagos. Essas alianças interclasses sociais com contradições de classe, no médio
prazo, apenas reafirmam as contradições sociais entre essas classes sociais e, portanto, o processo
de exploração e de subalternidade a que está submetido estruturalmente o campesinato em relação
com a burguesia.

É oportuno ressaltar que a contradição entre classes sociais se dá em decorrência das


contradições entre os interesses gerais das classes em contradição. Isso se manifesta quando a
realização dos interesses gerais de uma determinada classe social só se concretiza pela exploração
e subjugação de uma outra ou de outras classes sociais. Assim, os interesses de realização de lucro
por parte da burguesia só podem se concretizar se ocorrer a exploração econômica do
proletariado. Nesse caso, ainda que as lutas imediatas do proletariado possam reduzir a exploração
a que se submete, a eliminação real da exploração do proletariado pela burguesia só poderá
ocorrer se ele proletariado destruir a própria burguesia, ou seja, se superar as relações sociais de
produção capitalistas. Já o inverso não se coloca. A burguesia não pode acabar com o
proletariado, ele lhe é indispensável para gerar o lucro.

A fração campesinato-proletário poderá ter como aliado de classe em determinadas lutas


sociais algumas frações do proletariado rural, como a dos assalariados temporários regulares e a
dos assalariados ocasionais, tendo em vista que seus interesses imediatos são similares. Isso se dá
quando os camponeses da fração campesinato-proletário se sentem explorados pela burguesia
como assalariados quando vendem a força de trabalho de parte dos membros da família no
âmbito de suas estratégias de obtenção de rendimentos para garantir a reprodução social da
família.
Numa outra perspectiva, como já acentuado, o campesinato-proletário poderá ter o
proletariado rural como aliado nas lutas sociais pela terra e pela reforma agrária.

As alianças sociais assim como as lutas sociais são expressão da dimensão política das luta
de classes, a partir de contradições objetivas econômicas. Sendo uma luta política, ainda que os
resultados possam ser de natureza econômica, essa luta se evidencia como luta de classes quando
uma das classes em contradição, no caso o campesinato, têm ganhos efetivos que resultam, ao
menos conjunturalmente, em perdas relativas para a classe social que lhe explora, como a
burguesia. Esses ganhos de fato se expressam na redução da exploração econômica a que estão
sujeitos.

Quando esses ganhos decorrentes das lutas sociais camponesas são obtidos a partir de
recursos das políticas públicas, estes oriundos do fundo geral de mais-valia (recursos oriundos da
arrecadação governamental), não se pode afirmar que se configuraram lutas sociais com caráter de
lutas de classes. No limite se poderia afirmar que esse fundo geral de mais-valia é disputado não
somente pelo campesinato mas, também, pela burguesia e pelo proletariado. Mas, como esse
fundo deveria ser de utilização para atender a interesses públicos mais gerais, esses ganhos
particulares de benefícios pela pressão política de uma classe social ou de uma fração dela sobre
os governos não se constituem como resultados da luta de classes. É sim resultado de pressões
políticas de frações de classe do campesinato que poderiam, em determinadas circunstâncias, estar
em alianças com frações da burguesia agrária, como por exemplo, nas lutas pelo crédito rural
subsidiado.

Quando o proletariado pressiona o Estado para gerar leis e políticas públicas que lhe
beneficiem em detrimento dos interesses da burguesia, mesmo sem questionar estruturalmente as
27

relações sociais de produção capitalistas, mas refreando a capacidade burguesa de realizar os seus
interesses econômicos no curto prazo, está-se diante de um processo político de lutas de classes.

5. AS CONTRADIÇÕES INTERNAS DO CAMPESINATO

As frações de classe do campesinato apresentam entre si diversas contradições internas


devido, sobretudo, às diferentes formas de comportamento político e ideológico que se
estabelecem entre elas decorrentes das maneiras distintas de como se relacionam economicamente
com a burguesia (fração campesinato-associado), de como incorporam política e ideológica nos
seus processos de trabalho os elementos constitutivos do modelo de produção e tecnológico das
empresas agropecuárias e florestais burguesas, e ideologicamente pelo consentimento subjetivo
nas suas concepções de mundo camponês dos valores e comportamentos liberal-burgueses.

A fração da burguesia agrária classificada como pequena burguesia agrária, em particular


a camada pequena burguesia agrária moderna, e a fração do campesinato classificada como
campesinato-associado, ao aceitarem explicitamente o modelo de produção e tecnológico
dominante incorporam, pela indução político-ideológica que os processos de trabalho trazem
implícitas nas suas práticas de produção, as concepções dominantes de relação com a natureza
(artificialização da agricultura) e das relações sociais com os mercados (mercantilização integral).
Essas duas frações de classe, uma da burguesia e outra do campesinato, facilitam a expansão da
ideologia dominante como concepção hegemônica de mundo, introduzindo contradições internas
na formulação dos interesses imediatos de classe do campesinato e, portanto, no direcionamento
das suas lutas sociais quando estas se verificam.

A presença das idéias dominantes no senso comum camponês reduz ou não motiva os
camponeses a se indagarem e a pesquisarem os motivos do seu empobrecimento relativo em
relação ao crescente enriquecimento da burguesia, assim como as razões de por que ao aumento
do esforço da força de trabalho familiar camponesa não corresponde necessariamente a uma
melhoria na qualidade de vida dessa mesma família?

Motivados e mobilizados pelos seus interesses imediatos corporativos, as frações de classe


do campesinato têm dificuldades de constituírem entre si alianças intraclasse. Essas alianças
intraclasse, nem sempre conscientes, tendem a se concretizarem nas mobilizações políticas de
reivindicações perante os governos, afetando apenas parcialmente ou de maneira conjuntural,
portanto sem alterações estruturais, os interesses imediatos da burguesia (redução ocasional da
renda extorquida dos camponeses).

A aliança intraclasse mais significativa no sentido da luta de classes é aquela entre as


frações do campesinato que lutam pela terra e pela reforma agrária. Mesmo assim, devido ao
poder de classe da burguesia agrária, aliada às demais frações da burguesia, essa luta pela terra é
minimizada devido à natureza da legislação e dos procedimentos reparatórios (indenizatórios) que
favorecem as empresas agropecuárias e florestais e os latifúndios desapropriados ou adquiridos
para fins de assentamentos de reforma agrária.

Do ponto de vista econômico a classe social campesinato no Brasil apresenta, portanto,


algumas fragilidades para o desencadear de lutas sociais de classe, as quais são determinadas por
diferentes fatores, e assim por mim percebidas:

 a fração campesinato-associado mantém com a burguesia uma relação social de


associação ao estabelecer contratos de produção ou de cessão de parte de suas terras para
28

arrendamento capitalista. Nessa associação, os camponeses da fração campesinato-


associado perdem o controle interno sobre os processos de trabalho que foram objeto de
contrato com as empresas do agronegócio, abdicando, assim, de uma das bases de
referência da unidade camponesa que é a gestão familiar direta dos processos de trabalho
que implantam nas suas terras;

 Essa associação dos camponeses com as empresas do agronegócio burguês lhes retira a
autonomia política e ideológica, além da econômica, de base camponesa, pois esses
camponeses consideram, pelos contratos que realizam com a burguesia, que esse tipo de
associação direta é a melhor forma de aumentarem sua renda agrícola familiar, mesmo
que isso concorra para a perda da sua identidade social camponesa. Dessa maneira, suas
contradições de classe como campesinato com a burguesia ficam amortecidas ou
mascaradas pela simbiose entre os interesses imediatos dessa fração do campesinato com
os interesses imediatos da burguesia, mesmo quando nas situações-concretas esses
interesses imediatos do campesinato-associado sejam consequência das manipulações
político-financeiras da burguesia;

 Os camponeses da fração campesinato-associado se apresentam política e ideologicamente


em situação contraditória de classe. As possibilidades de desenvolvimento da sua
consciência de classe se tornam remotas porque seus valores e sua percepção de mundo se
desenvolvem numa contradição interna entre concepção de mundo camponesa e a sintonia
que passam a vivenciar com o discurso político-ideológico e as práticas econômicas da
burguesia (agroindustrial e agrocomercial);

 A fração campesinato-proletário, na sua multiplicidade de maneiras como se relacionam


com a natureza, com os mercados e com a burguesia, tem maior propensão à dispersão
política e ideológica do que à unidade de classe com as demais frações do campesinato;

 Os camponeses dessa fração do campesinato, por possuírem terra insuficiente ou em


condições desfavoráveis para a agricultura e terem que vender a força de trabalho de
alguns membros da família, têm dificuldades econômicas objetivas de se aliarem com os
camponeses das frações campesinato-associado e campesinato-autônomo nas suas lutas
sociais conjunturais porque seus interesses imediatos são distintos dos dessas frações do
campesinato e estão voltados para encontrar e implantar novas ou renovadas estratégias de
sobrevivência da família, tendo em vista que a dimensão camponesa responsável pela
geração de renda agrícola ou de produtos para o autoconsumo (exploração da terra) é
insuficiente para garantir a reprodução social da família;

 As possibilidades de alianças entre os camponeses dessa fração campesinato-proletário


com os camponeses das outras frações do campesinato, assim como com o proletariado
rural, se daria na luta pela terra e pela reforma agrária.

A prevalência das lutas sociais camponeses pelos seus interesses imediatos e ou


corporativos é usual no âmbito de correlações de forças políticas em cada conjuntura da formação
social brasileira. A questão crítica maior que se coloca, então, é que essas lutas sociais pelos
interesses imediatos das frações de classe do campesinato não contribuem necessariamente para o
desenvolvimento da consciência de classe do campesinato brasileiro. Isso se dá não apenas pela
diversidade das inserções sócio-econômicas e ético-políticas do campesinato e pelas dificuldades
das alianças intraclasse, mas, sobretudo, pela ausência de uma concepção de mundo camponesa,
sistematizada ou em construção, que proporcione aos movimentos sociais e sindicais camponeses
elementos motivacionais de formação da consciência política de classe do campesinato como
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concepção contra-hegemônica à ideologia dominante de desenvolvimento rural que tem nela


incluída a superação do campesinato pela empresa capitalista. Nessa ausência de uma concepção
de mundo rural contra-hegemônica torna-se difícil a identificação ou a percepção por parte do
campesinato de quais são os seus interesses gerais de classe. Dessa maneira, ainda que mediada
por diversas dimensões sócio-culturais, a ausência ou debilidade da consciência dos objetivos
gerais de classe do campesinato, portanto, de seus objetivos estratégicos de classe, torna difícil,
senão improvável, que as lutas pela realização dos interesses imediatos e ou corporativos
camponeses, enquanto objetivos táticos, possam ser articulados e dialeticamente confrontados
com os interesses gerais de classe do próprio campesinato.

LITERATURA CITADA

 Carvalho, Horacio M. (org.) (2005). O campesinato no século XXI: possibilidades e


condicionantes do desenvolvimento do campesinato no Brasil. Petrópolis, Vozes.

 _________________ (2006). As classes sociais no campo no Brasil. Curitiba, novembro,


mimeo 48 p.

 Costa, Francisco de Assis (2000). Formação agropecuária da Amazônia: os desafios do


desenvolvimento sustentável. Belém , NAEA, citado por Carvalho, Horacio M. (org.) 2005,
op. cit.

 Harnecker, Marta (1973). Conceito elementais do materialismo histórico.

 Proposta PNRA (2003). Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária. Brasília, outubro,
mimeo 51 p.

 Zafón, Carlos Luiz. A sombra do vento. Rio de Janeiro, Objetiva.

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