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Memória e Registro dos Arquivos do Corpo:


questões para museus de dança
Henrique Rochelle
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil1
E-mail:rochelle.hrq@gmail.com

Resumo Abstract
Enquanto forma de acesso a determinado As a form of access to a certain cultural
objeto cultural, o arquivo se institui no espaço object, the archive is instituted in the space
entre a lembrança e o esquecimento, permi- between remembrance and forgetfulness, al-
tindo a preservação, a conservação, e a apre- lowing for the preservation, conservation, and
sentação de conteúdos para além de seus presentation of contents beyond the moments
momentos de criação. Sua dinâmica de cons- when they were originally created. The dynam-
trução e valorização determina como se cons- ics of establishing and valuing archives de-
tituem acervos e suas formas de contato com o termine how collections are formed, and the
público, desde o momento em que são criados ways they are kept in contact with audiences,
e enquanto continuarem sob a guarda dessas since the moment of their creation and for as
instituições. Nesse sistema, que mostra que a long as the institutions might maintain them.
criação de arquivos e sua disponibilização é In this system, where creating and presenting
elemento fundamental para a manutenção da archives is a fundamental element to the pres-
memória cultural, é preocupante que a dança ervation of cultural memory, it is troublesome
encontre, até o momento, pouco espaço den- that dance finds, at the moment, so little space
tro de instituições museais. A maior dificuldade inside museum institutions. The main difficul-
da guarda da dança é seu traço mais íntimo: a ty for keeping and storing dance is one of its
realização e transmissão corpo a corpo dessa most intimate traits: this art’s realisation and
arte identificam que o arquivo mais próximo da transmission that goes from one body to the
dança trata-se de um arquivo corporal, vivo e next shows that the closest form of archive
pulsante, que frequentemente escapa às for- for dance is the bodily archive, which is living
mas de catalogação às quais os museus estão and breathing, therefore frequently escaping
habituados. Dentro dessa problemática, este the usual cataloging of museums. Regarding
artigo aborda a conceituação dos arquivos da these questions, this article approaches how
dança, especialmente dos arquivos do corpo, dance archives, and especially bodily archives,
investigando alguns exemplos de sistemas de are conceptualised, investigating a few exam-
preservação dos mesmos, ao se indagar acer- ples of their preservation systems, to inquire
ca das particularidades desses arquivos, de about the particularities of this archives, their
sua determinação, e das propostas institucio- establishment, and the exemplified institution-
nais pontuadas, ilustrando, para além de sua al propositions, thus illustrating, beyond the
dificuldade, a importância e o interesse em se difficulties, the importance and the interest in
preservar a dança, sua memória e seus arqui- preserving dance, its memory and its archives.
vos.
Palavras-chave Keywords
Dança. Arquivo. Corpo. Museologia. Museus Dance. Archive. Body. Museology. Dance Mu-
de Dança. seums.

1 Este artigo apresenta conteúdos desenvolvidos durante pesquisas financiadas pelos Processos nº 2013/18704-4 e 2014/15881-
5 Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), junto à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
e à Université Paris 8.
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Guardar a Dança experiência estética e de preservação de seus


traços para além dos momentos de apresenta-
O assunto aqui desenvolvido parte de um ção. Nem esses materiais, nem outras formas
questionamento de Derrida (2001) — o que de dança, encontram-se facilmente dentro de
acontece com o arquivo quando ele se insere estruturas museológicas específicas, sendo
no próprio corpo? — que tem levado a ques- poucos os exemplos de museus dedicados à
tionamentos sobre a conservação, preserva- dança, o que sugere um interesse limitado des-
ção e apresentação de obras de dança dentro sa arte dentro do campo museológico (Roux,
de estruturas museais. Trata-se, em grande 2010). Em sua quase totalidade, as instituições
parte, de um desdobramento de uma pesqui- atualmente existentes para a preservação da
sa apresentada e publicada como parte de memória da dança são baseadas num modelo
um livro (Rochelle, 2017a), na qual o foco da mais tradicional de museu-galeria-de-arte que
discussão é a apresentação dos arquivos da preserva e apresenta registros considerados
dança e suas potências de escritura histórica e temporalmente relevantes da história de seu
historiográfica. Nessa primeira investigação, o tópico de interesse, prioritariamente em for-
assunto dos museus aparece apenas tangen- mas estáticas. Estas são peças que podem
cialmente, enquanto exemplos de instituições ser guardadas e embaladas, que viajam com
de guarda, preservação e divulgação desses relativa facilidade, e que demandam atenção à
arquivos. A partir dos exemplos então levan- temperatura, exposição luminosa e umidade:
tados desponta a outra questão, que é aqui todas essas condições já estáveis nos prédios
trabalhada, mais profundamente a partir da tradicionais de museus, que preservam pa-
perspectiva museológica frente à dança. Para pel, tinta, tecido, metal, estruturas, gravações,
discutir o assunto, são abordadas algumas fotos, fitas, dados digitais e — no limite da
propostas de museologia e museografia, bem mumificação — corpos mortos. Nas artes da
como aspectos da preservação da dança, com cena, com sua relação tempo-espacial que se
a consideração dos possíveis desafios e so- constrói e reconstrói a cada nova apresenta-
luções que têm sido testados, nas dinâmicas ção, sem a possibilidade da fixação completa
de lidar com a dança como arquivo e artefa- de registros, como estabelecer esses mate-
to museológico. Sem a proposta de uma res- riais que se possam preservar e apresentar?
posta direta à questão de onde se guarda ou Como arquivar a dança, se seus arquivos se
como se deva guardar a dança, o que segue registram em corpos vivos? Onde buscar essa
é uma discussão de abordagens possíveis e, forma de registro e arquivo, e, novamente, em
principalmente, do interesse e da importância que se transforma o arquivo quando ele se in-
de se preservar a dança, a memória da dança, sere no próprio corpo?
e suas formas de registro. A questão das possibilidades do registro
Continuamente referida como uma forma e arquivamento da dança estão no centro da
efêmera de arte, a dança tem produzido ao problemática do desenvolvimento de museus
longo de sua história uma grande quantidade para essa forma artística. Mesmo com a mo-
de materiais paralelos às obras com o intuito dernização da museologia, que substitui a tra-
de prolongamento (Rochelle, 2017b) de sua dicional articulação Homem / Objeto / Museu,

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por uma mais abrangente de Sociedade / Pa- associados à dança, em forma de referência e
trimônio / Território (Cury, 2009) — o território memorabilia de espetáculos. Mas não consti-
sendo esse espaço de contato da sociedade tuem, em si, formas museográficas desta arte,
com o seu patrimônio em preservação (não limitando-se apenas à ocupação de seus es-
apenas o tradicional prédio do museu), e o pa- paços, com os tipos de arquivos que já sabem
trimônio sendo entendido para além do objeto, lidar. Nessas estratégias, a função do museu
mas também como ideia, evento ou manifes- de preservação e valorização do patrimônio
tação (Scheiner, 2009) — ainda persistem os cultural (Brasil, Lei Nº 11.904, Artigo 2º), no
problemas da natureza do espetáculo de dan- desenvolvimento de sua predileção pelas artes
ça. Mesmo com o desprendimento da rigidez estáticas (Charmatz, 2009), se mostra bastan-
do objeto de arte, sua abertura de compreen- te parcial com relação às artes da cena, cujos
são no nível do patrimônio, e a expansão das registros estáticos são apenas frações ilustra-
possibilidades do espaço, que não demanda o tivas de sua natureza presencial, momentânea
edifício tradicional, aceitando seu papel como e espetacular, sendo, portanto, para-arquivos
território de apresentação e contato, sobressa- da dança: produtos a ela associados, dela de-
em-se os impedimentos, ou dificuldades, das rivados, mas cujas interfaces e operações, ain-
formas e possibilidades de guarda da dança. da que levem à dança, mantêm com relação a
Se a realização da dança enquanto forma ela uma inevitável separação.
de linguagem artística se completa no momen- O museu se apresenta como território de
to do contato entre palco e plateia, o vídeo de cuidado e preservação de arquivos patrimo-
dança resta como forma de registro, válida, niais, e, em sua formação e função, o arqui-
mas que não substitui, tampouco se iguala ao vo se coloca no lugar da falta de memória
espetáculo — distinção até batida, mas que é (Derrida, 2001), de forma que o propósito de
importante reafirmar. Da mesma forma, apre- preservação do museu é ambivalente, se re-
sentam-se as fotos, os programas, as trilhas ferindo tanto à preservação dos arquivos em
sonoras, os figurinos, as anotações sobre as si, sua conservação e restauração, quanto à
obras, as entrevistas, as reportagens, as críti- preservação da memória associada a esses
cas. Todos esses são itens que conseguiriam arquivos: a necessidade de se estabelecer e
se encaixar até facilmente nas perspectivas tornar público o arquivo é a necessidade de
mais tradicionais de museus, e já se encon- salvaguarda da memória, tornando perene a
tram em exibições e instituições do tipo, tanto possibilidade de relembrar, colocada em che-
nas mais abrangentes quanto em algumas es- que constantemente pela articulação da me-
pecíficas, como é o caso do Arquivo Histórico mória e do esquecimento, que nos impede de
do Centro de Documentação e Memória do manter arquivada, na mente, a totalidade dos
Theatro Municipal de São Paulo (antigo Museu registros. A preservação é, junto da pesquisa
do Theatro Municipal), da Bibliothèque-Mu- e da divulgação, característica fundamental de
sée de l’Opéra Garnier, e da New York Public um museu (Nascimento Junior; Chagas, 2009),
Library for the Performing Arts, por exemplo. tríade que revela diretamente a importância
Essas instituições preservam e divulgam, den- da valorização através da memória, ao defi-
tro de suas capacidades, parte dos conteúdos nir aquilo que é preciso lembrar, para garantir

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sua continuidade no tempo, e permitindo sua um espaço para ela reservado — mas recoloca
apresentação à sociedade para que continue em pauta a dúvida de onde resiste essa me-
sendo lembrado. mória — enquanto desconhecimento de suas
Assim, o caráter de validação do processo formas de arquivo: sem encontrar os arquivos
museológico escapa às discussões de estética da dança em sua materialidade, deixa de ser
e dos circuitos artísticos (como forma de acei- possível arquivá-los. Por esse motivo, discutir
tação e eleição da qualidade e valor dos traba- a possibilidade de museus de dança é discu-
lhos) para adentrar diretamente na questão da tir não apenas a criação de tais espaços, mas
validação como exercício de poder (nesta situ- quais os patrimônios que ali seriam abrigados,
ação) sobre a memória social, pois o arquivo, quais seus arquivos, e como eles se apresen-
ao mesmo tempo em que carrega a função de tam.
conservação, também exerce a função insti-
tuidora, passando a determinar aquilo que fica
guardado: toda a política de acervo do museu Os Arquivos do Corpo
passa a decidir não apenas o que será pre-
servado por essa instituição, mas aquilo que “O arquivo é uma instância material de aces-
precisa ou merece ser preservado — cultural- so a um fato — presente ou passado. O arquivo
mente, socialmente. O diretor, o museólogo, o é mídia que pode ser condicionada, que pode
curador, assumem a posição de arconte, que ser cuidada, que talvez possa ser reproduzida,
se desdobra tanto em responsável pela guar- mas que, fundamentalmente, pode ser aces-
da, como em intérprete do que é arquivado, sada” (Rochelle 2017a, p. 149). A dança se faz
ao decidirem aquilo que se torna arquivo, de- por corpos e em corpos. Realiza-se completa-
terminarem sua guarda, e, mais ainda, na tra- mente nesse momento de contato corpo a cor-
dição contemporânea das curadorias, a forma po, bailarinos-plateia. Após os aplausos, entre
como esses arquivos são apresentados ao pú- eles e a próxima apresentação, a dança fica
blico, bem como as explicações e justificativas guardada, também em corpos. Nos corpos do
que os acompanham. público, como memória; nos corpos dos baila-
O diretor / arconte delimita o acervo da ins- rinos, como potência. Também fica nos corpos
tituição sob seus cuidados, estabelecendo um dos ensaiadores, dos coreógrafos, e fica re-
grupo de elementos culturais tomados como gistrada parcialmente em imagens, gravações,
relevantes para a memória social, e determina formas de notação coreográfica e anotações
sua apresentação para o público, recortando sobre ela (Navas, 2009). Dentre essas várias
sua história, seus motivos, suas explicações formas de arquivo, aquelas que mais facilmen-
e propondo sua exibição segundo essa inter- te se encaixam nos moldes aos quais os mu-
pretação e valoração sócio-histórico-cultural. seus estão, de pronto, habituados são as mais
Nesse paradigma, a ausência das artes cêni- parciais, pois o arquivo primário da dança,
cas como a dança nos museus é preocupante. aquele que permite não só a lembrança, mas
Porém, a questão não se resolve facilmente, também a recuperação dos conteúdos — da
pois não se trata apenas de indagar onde fica obra, verdadeiramente — é o próprio corpo.
a memória da dança — enquanto demanda de A história da dança se escreve por corpos,

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e se inscreve nesses mesmos corpos. Registro de repertórios, além de projetos de contato


indelével, o bailarino ao aprender e treinar e fa- com o público e formação de plateia, ativida-
zer e repetir aquela obra, toma-a para si. Seu des educativas, e preservação de memória e
corpo não é uma tela em branco, seu corpo memorabilia associadas à dança; todas essas
não é massa a ser moldada, é um corpo terri- atividades e suas abordagens são desenvol-
tório, termo cunhado por Cássia Navas (2009) vidas de acordo com o plano gestor de cada
que consegue articular a completude e a inte- unidade, que compreende o período, variável,
gralidade do corpo, entendido neste caso tan- da gestão de cada diretor.
to como instrumento de trabalho do bailarino, No momento dessa proposição, a resposta
como enquanto sua interface de vivência e francesa para qual seja a melhor forma de pre-
contato com o mundo. A dança afeta o bailari- servar os arquivos da dança foi um incentivo
no, que afeta a dança que ele realiza, numa re- aos trabalhos com os corpos e sobre os cor-
lação de interdependência existencial que não pos que fazem e que perpetuam a dança, uma
se consegue romper. O arquivo (no sentido de proposta artístico-museológica, mas que não
espaço que arquiva os arquivos) da dança são se apresentou, então, com esse nome, ou es-
os corpos: em dança, o corpo é instituição mu- sas intenções, expressamente. A associação
seal (Roux, 2010). entre os CCNs e museus permanece metafó-
Essa noção não depende de distorções das rica ou analítica até 2009, quando o diretor do
concepções já aceitas para os museus: tudo CCN de Rennes et de Bretagne, Boris Char-
que é humano tem espaço nos museus (Nas- matz, apresenta como parte do seu plano de
cimento Junior; Chagas, 2009), e mesmo as gestão, o Manifeste Pour Un Musée de la Dan-
legislações sobre o assunto propõem de forma se (Manifesto para um museu da dança), em
bastante abrangente os bens culturais passí- que propõe que o CCN sob sua direção pas-
veis de musealização, como, no caso brasilei- se a ser chamado de Museu da Dança. Para
ro, o Parágrafo 1º do Artigo 5º da Lei que ins- tanto, oferece as propostas de trabalho desse
titui o Estatuto de Museus (Brasil, 2009). Mas, que seria um museu vivo, baseado em se fa-
mesmo uma vez compreendido que a Dança zer dança e desenvolver um espaço onde as
pode ter lugar em uma instituição museoló- pessoas possam ir para conhecer mais sobre
gica, permanece a dúvida e a dificuldade de essa arte, garantindo também as referências à
como fazê-lo: como arquivar corpos vivos? história, aos mortos (Charmatz, 2009), como
Na busca pela preservação da memória ele pontua, mas priorizando o caráter vivo, pre-
da dança, a França oferece exemplo e tenta- sencial, performativo das artes corporais e da
tiva ímpares, com a proposição, de 1984, da cena.
criação dos Centros Coreográficos Nacionais A proposta de Charmatz é, sobretudo, a da
(CCN). Os CCNs são dezenove entidades es- alteração do nome, com alguma expansão dos
palhadas pelo território francês, que se articu- trabalhos do CCN, que poderia, no entanto,
lam como companhias temporárias, geridas ser feita independentemente do nome dado a
por artistas da dança, trabalhando na produ- essa instituição. Mas o efeito principal da de-
ção de obras coreográficas, mas também na manda por tal nomenclatura é chamar a aten-
reprodução, e em remontagens, e manutenção ção para a questão museológica da dança e

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indicar que, mesmo dadas as particularidades de, recuperadas e colocadas para apresenta-
dessa forma de museografia, não é necessário ção ao público. Esse tipo de estrutura, em uma
se privar desse nome, desse título de museu: estratégia similar àquela referente à parte dos
o museu da dança será diferente, mas pura- acervos dos museus que não se encontra em
mente por exigência de seus arquivos. Ao pro- apresentação, lida frequentemente mais com
por essa nova forma de museu, ele recupera a o esquecimento do que com a lembrança,
função do arconte, ao determinar como é que criando-se então um sistema de esquecimento
se tratam esses tipos de arquivo. Essa permis- (Launay, 2008) que se mantém em funciona-
são divina do arconte estabelece a classifica- mento.
ção original instituindo o arquivo em sua forma Para entender esse sistema, um exemplo
adequada — o como ele deve ser — tornando- prático. Considere-se uma companhia de dan-
-se a referência fundadora desse entendimen- ça tradicional como o Ballet de L’Opéra de Pa-
to, de sua preservação e apresentação futuras. ris, que conta em seu catálogo com mais de
Esse museu de corpos, mesmo resolvendo, 500 obras (Auclair; Ghristi, 2013), das quais por
em termos, o problema do arquivamento, re- volta de 50 são consideradas pela companhia
cupera a questão da validação que o arquiva- como em repertório, sendo que apenas duas
mento realiza: quais os corpos que são e serão dezenas, entre novas criações e obras mais an-
preservados e divulgados por esse museu? tigas, estão presentes nos palcos a cada nova
Quando a instituição estabelece seu acervo, temporada anual. Essa categoria de obras em
ela tem diretrizes que orientam sua política de repertório trata daquelas que podem, dentro
aquisição, bem como as formas de conserva- de certas circunstâncias, voltar ao palco — tal
ção e restauração desses arquivos. Se, por um qual um quadro que um museu guarda após
lado, isso determina o que fazer com aquilo uma exposição e que poderá voltar a ser exibi-
que está no museu, por outro lado, e mesmo do em algum outro momento. Os outros 90%
anteriormente, há um estabelecimento valo- das obras que passaram pela companhia em
rativo: quais são os corpos que representam sua história, como poderiam ser mantidos?
culturalmente a dança nesse museu, quais os Mais do que a questão acentuada dos custos
corpos que merecem, que precisam ser pre- de uma tal empreitada, é importante refletir so-
servados. E, ai, entram em jogo questões de bre os desafios que são propostos: desafios
sua abrangência: trata-se de um museu (e de de arquivamento, que colocam em jogo rela-
corpos) locais, regionais, nacionais, mundiais? ções de poder sobre a memória cultural.
Como é possível determinar que corpos irão
participar desse acervo-vivo? E quem tem (e
pode ter) esse poder de decisão? O Controle Sobre o Arquivo
Essa decisão dialoga diretamente com as e a Memória
estruturas das companhias de dança chama-
das companhias de repertório, que costumam O arquivo, mesmo em uma interpretação do
estabelecer um grande catálogo e arquivo de corpo-arquivo, ou de arquivo-em-corpo, man-
produções numerosas de dança, que vez ou tém a problemática expressa já em seu nome:
outra podem ser chamadas de volta à ativida- arquivo vem do Arkhê grego, que indica tan-

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to o começo quanto o comando, reforçando e só integram o museu, em sentido estrito,


que existe um jogo de poder por trás do ar- dentro de seu horário de trabalho. Como seu
quivamento, o qual determina aquilo que deve material de trabalho é o corpo próprio, eles
ser lembrado, assim, por contraste, excluindo saem do museu e vivem suas vidas sem o cui-
aquilo que não precisa, não merece, não pode, dado dos seguranças, sem as condições ide-
ou não deve ser lembrado. Essa é a principal ais do espaço ou dos cordões de isolamento
tensão entre o arquivo e a arquivologia / arque- que poderiam ser garantidos numa galeria.
ologia: praticar a arqueologia sem esse exer- Se a versão mais moderna da primeira trí-
cício de juízo dos valores da memória cultural ade, Sociedade / Patrimônio / Território, já
seria um esforço de negação do arconte / ar- abarca as compreensões necessárias para se
quivador. Na mais bem realizada arqueologia, propor formas museológicas para a dança, a
o arqueólogo desaparece, e a função o arqui- segunda tríade, das funções dos museus, Pre-
vo-conteúdo toma o lugar do arquivo-supor- servação / Pesquisa / Divulgação, ainda per-
te (Derrida, 2001), e o arquivo passa a falar e manece sem resolução para sua aplicação às
representar por si mesmo, sem a necessidade artes do espetáculo. A forma de divulgação da
da mediação. dança é a sua apresentação — não é esse o
Porém, essa resolução dificulta ainda mais problema. A dificuldade está em relacionar a
as concepções de museus para a dança. Como forma de divulgação ao acervo estabelecido.
anular, em um museu de corpos, a influência Que pesquisas vão orientar, constituir e des-
da pessoalidade dos corpos? Na proposta vendar esse acervo, e por que meios e estraté-
de Charmatz — que foi aceita e oficializada, gias ele pode ser preservado?
e continua sendo desenvolvida, apresentada e Esse sintoma de arquivamento, desejo-feti-
exportada pelo mundo —, ele se torna simul- che pelas formas de registro e memória, esse
taneamente diretor do museu e o coreógrafo mal de arquivo de Derrida, está presente em
dos corpos por sua instituição acolhidos, as- toda a discussão aqui desenvolvida. Vivemos
sim sendo tanto responsável administrativo sob uma compreensão de que é preciso arqui-
quanto curador, mas também parte do próprio var. Arquivamos os textos, arquivamos as mú-
acervo da instituição. Aliás, peça das mais im- sicas, arquivamos os quadros, as esculturas,
portantes do acervo, já que será ele a dirigir e os filmes. É nessa sintomática que a dança de-
orientar os demais membros dessa companhia manda um museu, mesmo que suas questões
/ desse acervo / desse museu. E os efeitos da ainda não estejam bem resolvidas, para que,
pessoalidade não se encerram na influência do de alguma forma, não se percam a memória e
coreógrafo sobre os bailarinos, do diretor so- o registro dos arquivos do corpo.
bre os arquivos: ainda é preciso reconsiderar
os bailarinos e seus próprios corpos-território
— diferentemente das esculturas e de outras Referências
obras que ficam onde colocadas até que se-
jam movidas, e integram o acervo dos museus AUCLAIR, Mathias; GHRISTI, Christophe. (Dir.).
passando a pertencer a eles, os bailarinos são Le Ballet de l’Opéra: trois siècles de supréma-
apenas parcialmente pertencentes ao acervo, tie depuis Louis XIV. Paris: Albin Michel, 2013.

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