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HISTÓRIA DAS IDEIAS ÉTICAS

FRAGMENTOS

Mário S. F. Maia
APRESENTAÇÃO

Esses fragmentos foram recolhidos e sistematizados nas horas de estudo para


ministrar a parte geral das disciplinas de ética profissional nos cursos de Direito
e ciência e tecnologia da UFERSA. Esses são fragmentos de textos em geral
sem grande desenvolvimento interpretativo colhidos em pesquisa bibliográfica.

Os fragmentos foram sistematizados para orientar uma conversa simples e


interessante sobre temas existenciais profundos conduzida durante duas aulas
com futuros profissionais do Direito e da Engenharia.

Neste quadro de uma “Teoria Geral da Ética”, meu objetivo principal aqui foi
inferir alguns modelos éticos a partir da análise da filosofia (ideal) e da vida
vivida por alguns filósofos célebres (já que reconhecidos pelo público não
expert).

A sistematização realizada se orientou pela busca nos textos de elementos para


uma descrição ideal de um determinado “modelo” ético. Isso se deve ao objetivo
principal da sistematização, que é o de fornecer informações aos estudantes
sobre a “vida boa” e justa imaginada e vivida por alguns filósofos. Um modelo
que possa ser refletido e “interiorizado” como modo de vida (embora não seja
esse, definitivamente, o objetivo desse curso).

Sob a análise interior (de foro íntimo, como no jargão jurídico) pode-se dizer
que um “modelo” ético é uma espécie de utopia. Em geral ele não estabelece
regras minuciosas de conduta, mas sua principiologia sugere uma espécie de
lugar para o qual devemos olhar e orientar a nossa caminhada de vida. Uma
forma de controle da angústia existencial.

No entanto, sob a análise sociológica (que não está completamente excluída


nestes fragmentos), percebe-se que as diferentes retóricas éticas (de fundo
secular ou religioso) são indicativas da existência concreta dos diversos grupos
sociais que compõem o complexo mosaico cultural das sociedades
contemporâneas. O desafio do teórico da ética é, portanto, pensar numa maneira
realista sobre como fazer conviver com o mínimo de conflito pessoas com
pensamentos diferentes.

M. S. F. M em 17/01/22.
HISTÓRIA DAS IDEIAS ÉTICAS (I)

ÉTICA SOCRÁTICA

A pergunta que nos guia: há um “modelo ético” na filosofia de Sócrates?

Para responde-la temos que atentar para um fato inicial importante, Sócrates
nunca publicou um texto em sua vida, ele não foi um escritor. Ele nunca
escreveu sobe um modelo de felicidade e de vida boa. Então, se há um “modelo”
efetivamente socrático ele não pode ser obtido de fonte escrita direta1.

Outro ponto importante, Sócrates era conhecido pelo “jeito” perguntador


materializado na sua técnica argumentativa que objetivava fazer nascer as
ideias (maiêutica). Em uma palavra, a filosofia de Sócrates é crítica. Isso
significa que, se considerarmos o Sócrates descritos nos diálogos de Platão, a
busca por uma “fala” de Sócrates sobre como devemos viver nos trará pouca
informação.

Então, existe ou não uma ética socrática? Uma filosofia positiva?

Em verdade, uma das formas (que considero a mais interessante) de se


descrever uma espécie de “modelo” ético socrático é partir da observação e
análise da maneira como o próprio Sócrates viveu. A ética socrática, nesse
sentido, pode ser inferida a partir do seu exemplo de vida.

Se consideramos o Sócrates “personagem”, ou seja, o Sócrates descrito por


outros escritores, podemos dizer que há indício de que o próprio Sócrates
concordaria com esse método indutivo. Vejamos a cena descrita por Xenofonte.
Na cena, Sócrates, instado a preparar a sua defesa, diz que a defesa já está
pronta “foi a sua própria vida”. Vejam:

“[Cena: Sócrates antes do julgamento] Hermógenes, filho de Hipônico e amigo de


Sócrates, deu a seu respeito pormenores que mostram que a altura de sua linguagem

1 Obviamente, não se deve esquecer da existência de estudos “semânticos” sobre a ética


socrática (felicidade – Eudaimonia) a partir da análise do conteúdo da obra de Platão. A ideia
que se quer desenvolver aqui é que a partir do que foi escrito “sobre” Sócrates, podemos
vislumbrar a ética socrática de vida, ou seja, do personagem platônico se extrair o “ser” de
Sócrates. Como exemplo de estudos semânticos a partir de Platão: SANTOS, 2010.
se acordava plenamente com a de suas ideias. Contava que, vendo-o discorrer sobre
assuntos completamente alheios a seu processo, lhe dissera:
- Não deverias Sócrates, pensar em sua apologia?
Ao que lhe respondeu Sócrates:
- Não parece que lhe consagrei toda minha vida?

Perguntando-lhe Hermógenes de que maneira:


- Vivendo sem cometer a menor injustiça, o que é, a meu ver, o melhor meio de preparar
uma defesa.” (XENOFONTE In SÓCRATES, 1996, p. 201).

Então vejamos, como foi efetivamente a vida de Sócrates?

Sócrates foi fundamentalmente uma pessoa curiosa. O filósofo é um curioso. As


pessoas não entendiam a vida de Sócrates que era um perguntador. Ele causava
certo incomodo e foi morto por conta disso. Para a maioria das pessoas
Sócrates era um estranho que vivia perguntando aquilo que todos já sabiam;
para essas pessoas ele era visto como um verdadeiro chato. Um perguntador
neurótico, diríamos hoje. Essa atitude inquieta diante da vida é a própria filosofia
acontecendo.

Sócrates viveu de maneira simples, andando em todos os lugares e falando com


pessoas das mais diversas profissões e status na sociedade grega. Andava pelo
mercado público e ia a festas reservadas à elite. Sua vestimenta era sóbria e o
seu comportamento era de uma pessoa humilde, sem com isso ter uma postura
subserviente (vide a sua fina ironia2). Claro, era um perguntador.

Os verdadeiros filósofos têm uma vida autêntica. A vida autêntica é a vida de


alguém que vive sem medo, ou melhor, de alguém que consegue vencer a
angústia existencial. Essa angústia, que é decorrente do nosso desconforto,
consciente ou não, com a nossa mortalidade/finitude. Quando analisada, essa
nossa angústia permite que se tenha acesso à presença; a consciência do
presente mais radical; uma verdadeira presentificação.

2
Ver KIERKEGAARD, 2013.
A vida autentica, é, digamos, uma vida fora do comum, que aponta novos
caminhos. Há, portanto, uma contribuição positiva ou moral do afazer filosófico.
Com isso se quer dizer que a atitude crítica não é somente desconstrutiva.

Vejamos outra cena descrita por Xenofonte, atentemos para a ausência de


qualquer traço de medo e pela tranquilidade em momento que, para qualquer
outro, é de desespero (o caminho para a morte sabida):

“Reparando que os que o acompanhavam se desfaziam em lágrimas, disse-lhes:


- Que é isto! Agora é que achais de chorar! (...) Chego ao termo da carreira, quando
nada senão males posso esperar, minha morte deve ser motivo de alegria para todos
vós.
Acompanhava-o certo Apolodoro, alma simples e extremamente afeiçoada a Sócrates,
que lhe disse:
- Não posso suportar Sócrates, ver te morrer injustamente.
Então se diz que, passando-lhe de leve a mão pela cabeça, Sócrates respondeu:
- Como! Meu caro Apolodoro então preferias me ver morrer justamente?

E ao mesmo tempo sorria”. (XENOFONTE In SÓCRATES, 1996, p. 207).

Em síntese, a ética socrática prescreve uma vida simples, presentificada, vivida


sem medo, valorizadora da verdade e da coletividade.

ÉTICA ESTÓICA: AS CARTAS DE SÊNECA

A filosofia estoica nasce na Grécia cerca de um século depois do


desaparecimento de Sócrates. É a filosofia de Zenão, Cleanto e Crisipo. Tem
como objeto de reflexão principal a vida boa, ou, vida “feliz” que é alcançada pelo
sábio (VEYNE, 2015, p. 49). Há, neste sentido, uma mesma, digamos, comunhão
de propósitos com a filosofia de Epicuro.

O estoicismo floresce também na cultura romana com Sêneca, Epiteto e Marco


Aurélio, por exemplo. Sêneca viveu nos primeiros anos da era cristã (1DC – 63
DC). Escreveu a partir do âmbito de influência cultural romana.

Sobre o momento e conteúdo das cartas:


Em “Cartas a Lucílio”, obra a partir da qual sistematizamos algumas orientações
da ética senequiana, temos a filosofia de um autor maduro. Os textos foram
escritos por uma pessoa experiente naqueles que viriam a ser os seus últimos
anos de vida3. São cartas reflexivas que falam sobre a orientação para uma boa
vida. Tem, portanto, conteúdo fundamentalmente ético.

O que é uma vida boa? Uma análise sistemática de “Cartas a Lucílio”.

Uma vida simples, pacata, sem muitas viagens ou excitações de qualquer tipo:

“Se tomares nas mãos o dia de hoje conseguiras depender menos do dia de
amanhã; talvez te apeteça perguntar como procedo eu (...) dir-te-ei com
franqueza: como alguém que vive bem, mas sem esbanjamento. Tenho as
minhas contas em dia!” (p. 2).

“não viajas continuamente nem te deixas agitar por constantes deslocações. Um


semelhante deambular é o início duma alma doente: eu, de fato, entendo que o
primeiro sinal de um espírito bem formado consiste em ser capaz de parar e
coabitar consigo mesmo.” (p. 3). “Não é pobre quem tem pouco, mas sim quem
deseja mais” (p. 4).

Uma vida vivida sem grande apego as coisas, sem grandes ambições e com
discrição, sem chamar a atenção:

“Nenhum objeto dá bem estar ao seu possuidor senão quando esse está
preparado para ficar sem ele” (p. 8). “Evita tudo quanto se torna notado quer na
tua pessoa, quer no seu estilo de vida.” (p. 10).

“Para começar não devemos ter ambições (...) em segundo lugar não devemos
possuir nada capaz de ser aliciante para um eventual salteador (...) qualquer
ladrão deixa em paz quem nada tem (...)” (p. 46).

3
“[as cartas a Lucílio] são a forma mais amadurecida do seu pensamento [Sêneca]; [elas contem]
uma soma de reflexões sobre enorme variedade de problemas, na sua totalidade de caráter
ético” (CAMPOS In SÊNECA, 2014, p. V)
“Se quiseres estar livres para cuidares da alma deverás ser pobre, ou fazer vida
de pobre. O estudo da filosofia não dará fruto se não adotares uma vida frugal;
ora, a frugalidade não passa de pobreza voluntária.” (p. 58).

Uma vida sábia e boa é uma vida que envolve o conhecimento interior. Envolve,
portanto, uma dose de reflexão. Isso não significa necessariamente uma vida
completamente isolada dos outros, em puro ato de contemplação individual,
mas uma vida equilibrada onde a felicidade seja buscada dentro de si:

“Os teus autênticos bens são apenas de foro íntimo.” (p. 18).

“[o sábio] embora se baste a si próprio, precisa de ter amigos; deseja mesmo
tê-los no maior número possível, mas não para vier uma vida feliz, pois é capaz
de viver uma vida feliz mesmo sem amigos.” (p. 25).

“Não te interessa a opinião dos outros: é sempre incerta, há sempre divisão de


opiniões.” (p. 99).

Uma vida boa é uma vida sem medo e sem angústias. É uma vida
“presentificada”, ou seja, vivida no presente mais radical. Há nisso um caráter
terapêutico:

“O mais feliz dos homens, o dono seguro de si próprio é aquele que aguarda sem
ansiedade o dia seguinte. Quem cotidianamente diz ‘vivi!’” (p. 36).

“O pânico que nos toma apensa provém de suspeitas e ilusões. (...) Não há tipo
de terror tão funesto, tão incontrolável como o pânico; se o medo faz perder a
razão o pânico gera a completa loucura. É natural que no futuro nos suceda um
mal qualquer, o fato é que de momento ainda não existe. (...) Mesmo que seja no
futuro para quê começar a sofrer antecipadamente?” (p. 42).

O sábio tem firmeza de caráter; não é mal-humorado, mas também não é de


ficar fazendo graça. Hoje se diz, “enfrentar a adversidade estoicamente”; sem
grandes perturbações mesmo em momentos de sofrimento:

“O que nós estoicos, de fato afirmamos é que tudo o que nos suscita múrmuros
e suspiros não tem a mínima importância e só merece desprezo.” (p. 40).
“Dize-me que te preocupa qual será o resultado de um processo intentado
contra ti por um inimigo furibundo e julgas que eu te poderei persuadir-te a
teres melhores pensamentos e a te deixares embalar por esperanças
lisonjeiras. Mas para quê estares a sofrer antecipadamente com os teus males,
que aliás se farão sentir bem depressa e a estragares o presente com o medo
do futuro?” (p. 87).

Uma vida boa é uma vida equilibrada; sem excessos; ponderada.

“Admito que é inata em nós a estima pelo próprio corpo, admito que temos o
dever de cuidar dele. Não nego que devamos dar-lhe atenção, mas nego que
devamos ser seu escravo.” (p. 44).

“Estamos em dezembro: a cidade está coberta de suor! A ostentação desregrada


invadiu toda a vida coletiva. (...) Será de fato uma prova segura de firmeza de
animo não acompanhar, não se deixar guiar por um ambiente aliciador de
concessões à volúpia. Se é indício de maior constância mantermo-nos
inteiramente sóbrios em meio de uma multidão ébria a ponto de vomitar, será
mais moderada a nossa atitude se não situarmos à margem, não nos tornando
notados nem nos deixando absorver na turba (...)” (p. 62).

“o resultado duma cólera extrema é a insânia, e por isso não há que evitar a
cólera, não tanto por obediência à moderação, como para conservar a sanidade
mental!” (p. 65).

A filosofia como “ação” para a vida boa, ou seja, a filosofia como orientação ética
comportamental efetiva:

“O objetivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma, em


ensinar-nos um rumo na vida, em orientar os nossos atos, em apontar-nos o
que devemos fazer (...)”. (p. 55). “A filosofia nos ensina a agir, não a falar(...)” (p.
70).

A vida boa é sóbria

“Não pense que te escrevo para dizer como o inverno, que, aliás, foi curto e
pouco rigoroso, se portou bem conosco, ou como a primavera está
desagradável, ou como o frio chegou fora de tempo! Isso são frioleiras próprias
de quem fala por falar. Eu só escrevo aquilo que sinto ter utilidade (...) O que
tens a fazer antes de mais, caro Lucílio, é aprender a ser alegre. (...) O meu
desejo é que a alegria habite sempre em tua casa (...) acredita-me, a verdadeira
alegria é uma coisa muito séria. Julgas tu que se pode pensar em desprezar a
morte, em abrir as portas à pobreza, em refrear os prazeres, em exercitar a
capacidade de suportar a dor – e tudo isso sem franzir a testa, sempre com o
rosto, como diriam os nossos jovens pretensiosos, descontraído? Quem
interioriza estes pensamentos alcança uma grande alegria, mas de ar pouco
sorridente!” (p. 85).

A vida boa exige humildade

[respondendo pergunta de Lucílio: “Quem és tu para me dar conselhos?”] “É


como companheiro de sanatório que falo contigo da nossa enfermidade e te dou
parte dos medicamentos que uso. Escuta, portanto, as minhas palavras como
se estivesses me ouvindo a falar com meus botões (...)” (p. 101).

ÉTICA EM SCHOPENHAUER

Schopenhauer não fundamenta a sua filosofia numa visão dualista de mundo. A


visão materialista do filósofo se concentra em muitos momentos em nos fazer
“ver” que estamos sempre diante de uma ilusão: a ilusão da nossa separação
radical da matéria que nos cerca. Nós somos o todo, nascemos dele e
retornaremos a ele.

Trata-se de uma postura, digamos, existencialista que nos indica que a vida é
um pequeno acontecimento de subjetividade localizado temporalmente entre o
nascimento e a morte. É nesse particular, inclusive, que podemos perceber um
aspecto interessante da obra de Schopenhauer: a sua proximidade da visão de
mundo oriental. Não é infrequente as menções a literatura sânscrita ou ao
pensamento budista.

Para o autor, o fundamento da ação moral é a “piedade”. Para ele a piedade é


um fato da existência humana “admirável” e “misterioso”. É justamente a
piedade que torna possível aos seres humanos transpor a ideia de que somos
totalmente separados uns dos outros (2014, p. 109). Alguns apontamentos
específicos:

Nós somos parte da natureza – somos imortais – ressignificação da “vida após


a morte”.

“Ora o homem é a natureza, a natureza no mais alto grau de consciência de si


mesma; se, portanto, a natureza é apenas o aspecto objetivo da vontade de viver,
o homem uma vez convencido disso, pode com razão sentir-se consolado
completamente com a sua morte e a dos seus amigos: só tem que dar uma
olhada na natureza imortal: esta natureza, no fundo é ele. Eis, portanto, o que
quer dizer Xiva com o linga (...)” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 290).

“[sobre a justiça eterna] As expressões são variadas; aqui está uma em


particular: perante os olhos do neófito desfila a série de seres vivos e sem vida,
e sobre cada um deles é pronunciada a palavra invariável, que se chama, por
este motivo a Fórmula, a Mahavakya: Tatoumes, ou mais corretamente Tat tvam
asi, isto é, “Tu és isto” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 373).

O caráter “indescritível” da bondade; da virtude. A virtude somente pode ser


percebida no comportamento não nas palavras.

“Com efeito, a virtude resulta, na verdade, do conhecimento, só que não do


conhecimento abstrato, daquele que se comunica através de palavras. (...) a
bondade sincera, a virtude desinteressada, a verdadeira nobreza não têm sua
origem no conhecimento abstrato (...) não é nas palavras que obtém a sua
expressão adequada, mas apenas nos fatos, nos atos, na conduta de uma vida
de homem.” (SCHOPENHAUEER, 2001, p. 386; 388).

A vida boa – de alguém justo – somente é possível quando se tem consciência


que somos parte do todo/natureza; que o “indivíduo” é apenas uma ilusão – o
véu de Maya. A ética depende de se abandonar a ilusão da
subjetividade/individualidade.

“Digamos, portanto, em poucas palavras que se denomina justo quem quer que
reconheça espontaneamente os limites traçados só pela moral entre o certo e
o injusto e que o respeita, mesmo na ausência do Estado, ou de qualquer outro
poder capaz de os manter (...) [o indivíduo justo] para aumentar o seu bem-estar
nunca irá infligir sofrimentos ao outro (...) na mesma medida o seu olhar fura o
princípio da individuação, o véu de Maya: ele coloca o seu semelhante em pé de
igualdade consigo; não lhe faz mal” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 389).

A vida boa é a vida simples

“Querer o menos possível e conhecer o mais possível, eis a máxima que


conduziu minha trajetória de vida” (SCHOPENHAUER, 2009, p. 3).

“A felicidade do homem ordinário reside na alternância entre trabalho e prazer:


para mim, ao contrário, ambos são uma coisa só.” (SCHPNEHAUER, 2009, p. 7).

O sábio enfrenta a morte sem medo. Vence a angústia existencial pela


consciência do “todo”; da natureza e, portanto, da nossa continuidade.

“Sempre desejei uma boa morte, pois quem durante toda vida foi só, decerto
saberá enfrentar melhor que outro esse negócio solitário. Em vez de ser tomado
pelo berreiro próprio a limitada capacidade dos bípedes, expirarei na alegra
consciência de ter cumprido a minha missão, e de retornar para lá, de onde
emergi, altamente agraciado.”. (SCHOPENHAUER, 2009, p. 69).

“O que serás após a morte – embora seja nada – será para ti tão natural como
é agora o teu ser orgânico individual; portanto, deverias temer o instante da
travessia. (...) Uma vez que a existência é essencialmente pessoal, tampouco o
termino da personalidade pode ser considerado uma perda.” (SCHOPENHAUER,
2016, p. 31).

“A matéria pela sua persistência absoluta assegura-nos uma indestrutibilidade


em virtude da qual aquele que fosse incapaz de conceber uma outra poderia
consolar-se com uma ideia de certa imortalidade. ‘O quê?’ – dir-se-ia – a
persistência de um mero pó, de uma matéria bruta, seria a continuidade do
nosso ser? Conhecem então esse pó, sabem o que ele é e o que pode ser? Antes
de o desprezarem aprendam a conhece-lo. Essa matéria que não é mais que pó
e cinza, dentro em pouco dissolvida na água, vai se tornar num cristal (...)
moldar-se em plantas e animais e do seu seio misterioso desenvolver enfiem
essa vida (...)” (SCHOPENHAUER, 2014, p. 88).

A vida é movimento; é inconstância – infere-se – o desapego.

“Nossa existência não tem nenhuma base na qual apoiar-se mais que o presente
que se desvanece. Por isso, tem por forma o movimento constante, sem
possibilidade alguma de descanso pelo qual ansiamos.” (SCHOPENHAUER, 2016,
p. 77).

A vida boa é presentificada.

“As cenas de nossa vida assemelham-se às imagens de um mosaico bruto, que,


de perto, não fazem efeito, mas é preciso manter-se longe delas para encontra-
las belas. Portanto, conseguir algo que se deseja intensamente significa
descobrir que é inútil; nós sempre vivemos na expectativa de algo melhor,
também muitas vezes e, ao mesmo tempo, arrependidos, com ânsia do passado.
O presente, ao contrário, apenas o aceitamos e por nada o respeitamos, senão
como caminho para o objetivo.” (SCHOPENHAUER, 2016, p. 79).

“Que tolice é lamentar-se e reclamar de não haver aproveitado no passado a


ocasião desta ou daquela felicidade ou prazer! O que mais ganhamos agora com
isso? A múmia ressecada de uma lembrança.” (SCHOPENHAUER, 2016, p. 89).

A vida boa é aquela onde se controla os desejos; não se é escravo do querer –


infere-se – a vida de alguém que sabe lidar com a frustração.

“Querer é essencialmente sofrer, e como viver é querer, toda a existência é


essencialmente dor.” (SHOPENHAUER, 2014, p. 39).

“O homem seduzido pela ilusão da vida individual, escravo do egoísmo, só vê as


coisas que o tocam pessoalmente, e encontra aí motivos incessantemente
renovados para desejar e querer; pelo contrário, aquele que penetra a essência
das coisas, que domina o conjunto, chega ao repouso de todo o desejo e de todo
o querer. Daí em diante, a sua vontade desvia-se da vida, repele com susto os
gozos que a perpetuam. O homem chega então ao estado de renúncia voluntária,
de resignação, da tranquilidade verdadeira e da ausência absoluta de vontade.”
(SCHOPENHAUER, 2014, p. 114).

SPINOZA: ÉTICA

“Baruch Spiniza (1632 – 1677), filosofo holandês, foi excomungado da Sinagoga


por seu liberalismo em matéria de práticas religiosas. (...) [a ética] é uma
doutrinada salvação pelo conhecimento de Deus. Trata-se de um panteísmo (...)
[a ética] enquanto ‘tratado de beatitude’ apresenta-se como um racionalismo
absoluto (...)” (CHARDIN, 1995, p. 347).

A razão nos leva a uma vida ética que, por sua vez, consiste em nos adequarmos
a natureza. O comportamento justo é racional. A razão nos ajuda a controlar os
desejos; controla o querer; enfrenta a frustração. Uma visão panteísta.

“Chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos.”


(SPINOZA, 2019, p. 155).

“(...) na vida é útil, sobretudo, aperfeiçoar, tanto quanto pudermos, o intelecto ou


a razão, e nisso, exclusivamente, consiste a suprema felicidade ou beatitude do
homem.” (SPINOZA, 2019, p. 205).

“Quem compreende a si próprio e os seus afetos, clara e distintamente, ama a


Deus” (SPINOZA, 2019, p. 223).

A Natureza é Deus

“(...) a natureza não age em função de um fim, pois o ente eterno e infinito que
chamamos de Deus ou natureza age pela mesma necessidade pela qual existe.”
(SPINOZA, 2019, p.156).

A vida boa é a vida de acordo com a Natureza

“Quanto ao bem e ao mal, também não designam algo de positivo a respeito das
coisas, consideradas e si mesmas, e nada mais são do que modos de pensar ou
de noções, que formamos por compararmos coisas entre si. Com efeito, uma
única coisa pode ser má e boa ao mesmo tempo (...) Assim, por bem
compreenderei aquilo que sabemos, com certeza, ser um meio para nos
aproximarmos cada vez mais do modelo de natureza humana que
estabelecemos. Por mal, por sua vez, compreenderei aquilo que, com certeza,
sabemos que nos impede de atingir esse modelo.” (SPONOZA, 2019, p. 157).

Orientações concretas de vida

“É útil aquilo que conduz à sociedade comum dos homens, ou seja, aquilo que
faz com que os homens vivam em concórdia e, inversamente, é mau aquilo que
traz discórdia à sociedade civil.” (SPINOZA, 2019, p. 185).

“O ódio nunca pode ser bom”. (SPINOZA, 2019, p. 186).

“O soberbo ama a presença dos parasitas ou dos aduladores, enquanto odeia a


dos nobres.” (SPINOZA, 2019, p. 193).

“Não há nada que o homem livre pense menos que na morte e sua sabedoria
não consiste na meditação da morte, mas da vida”. (SPINOZA, 2019, p. 200).

“Não é pelas armas, entretanto, que se pacificam os ânimos, mas pelo amor e
pela generosidade” (SPINOZA, 2019, p. 206).

“É comum que a concórdia seja gerada também pelo medo, mas neste caso,
trata-se de uma concórdia à qual falta a confiança. Acrescente-se que o medo
provem da impotência de animo; e que não diz respeito, por isso, ao uso da razão
(...)” (SPINOZA, 2019, p. 207).

“O cuidado com os pobres é uma incumbência da sociedade como um todo e tem


em vista a utilidade comum.” (SPINOZA, 2019, p. 207).

“Quanto ao matrimônio, é certo que esta de acordo com a razão se o desejo de


unir os corpos não é produzido apenas pela aparência física (...)” (SPINOZA, 2019,
p. 207).

“(...) O fato é que todas as coisas acabaram por se resumir ao dinheiro. Daí que
sua imagem costuma ocupar inteiramente a mente do vulgo pois dificilmente
podem imaginar outra espécie de alegria que não seja a que vem acompanhada
da ideia de dinheiro como sua causa. Esse vício, entretanto, só pode ser
atribuído àqueles que buscam o dinheiro não porque este lhes falte ou para
suprir as suas necessidades, mas porque aprenderam a arte do lucro, da qual
muito se vangloriam.” (SPINOZA, 2019, p. 209).

Referências

CHARDIN, Pierre Teilhard. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1995.

SANTOS, Bento Silva. Virtude e Eudaimonia nos diálogos socráticos. Síntese.


Rev. de Filosofia. V. 37. N 117. (2010): 5- 26.

SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e paraliponema: pequenos escritos


filosóficos. Porto Alegre: Zouk, 2016.

______. Conhece a ti mesmo. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

______. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto,


2001.

______. As dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014.

SÊNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2014.

SPINOZA, Benedictus. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

XENOFONTE In Os pensadores: Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1996.


HISTÓRIA DAS IDEIAS ÉTICAS (II)

ÉTICA CRISTÃ

Sobre o método de análise

A análise cientifica dos valores religiosos – fenomenologia da religião – é uma


análise externa e difere da “analise interna” que pode resultar no fenômeno da
Fé Humana.

Muitas vezes a fé se mostra um elemento estruturante da vida humana. A fé


conforta e encoraja. A ciência nos leva a humildade: não se pode saber de tudo;
somos “pequenos”. A fé, sob a perspectiva essencialista é um mistério não
perscrutável pelo pensamento cientifico. É um mistério.

O que o cientista pode fazer com maior facilidade é estudar a religião


institucionalizada. Lembrando Weber (“A ética ...”): as nossas escolhas e ideias
religiosas tem repercussão na maneira como nos comportamos “neste mundo”,
ou seja, o cientista da ética analisa o que fazemos nesta vida que vivemos no
planeta terra. É o comportamento concreto das pessoas religiosas que pode ser
objeto de estudo sociológico.

Sob esse olhar sociológico, não se pode deixar de considerar a multiplicidade


institucional do discurso cristão que se dissemina socialmente pela voz dos
agentes das igrejas (presbiterianos, pentecostais, neopentecostais, católicos de
diversas vertentes, humanistas, etc.).

Ainda sob o olhar sociológico, pode se dizer que no Brasil atual o protestantismo
institucional (“evangélicos”) vive uma espécie de mudança de status: Deixa de
ser discurso culturalmente periférico e passa a ocupar o centro institucional da
República (bancada institucional no congresso4, associações de juristas e

4
Sobre o crescimento da banca evangélica, ver QUADROS; MADEIRA, 2018.
empresários, etc.). Há uma “capitalização cultural” dos valores do grupo na
economia de bens simbólicos5.

A existência dessa multiplicidade institucional do cristianismo nacional e o


contexto cultural atual justificaram, ao nosso ver, o interesse na produção do
esboço de análise sociológica contido na parte final desse texto.

A análise sociológica, no entanto, não é o centro de interesse neste estudo. De


certa maneira tentei responder à pergunta: existem valores compartilhados
pelos diversos grupos de cristãos? Existe um “centro” de valores cristãos? Quais
são esses valores?

Tentei formular uma resposta pela leitura do texto de base (o novo testamento)
sob uma chave dupla: uma pragmática – onde se tenta projetar o contexto de
vida do cristo histórico – e uma semântica – quando se tenta interpretar o
conteúdo de algumas passagens.

Em boa medida, o texto organizado abaixo representa uma tentativa de análise


sobre os valores cristãos interessada em um elemento de caráter existencial.
Uma análise a serviço do ser humano e não das igrejas. Nas sociedades de
consumo atuais, apesar de muito “falado” o cristianismo é pouco “vivido”. O
cristianismo se “dogmatiza”; perde vida e se transforma em palavras vazias
como o que diziam os “doutores da lei” nos tempos de Jesus ou os doutores da
igreja católica nos tempos de nascimento do protestantismo.

“[No ocidente atual] la idea Cristiana aún se utiliza, pero fundamentalmente de forma ideológica,
esto es, sin basarse de forma efectiva en el espíritu y la conduta de la mayoría que profesa
essas ideas.” (FROMM, 2016, p. 214).

Para um questionamento da cristianização efetiva do mundo ocidental:

“Mas a Europa terá sido de fato cristianizada? Não obstante a a resposta afirmativa dada a essa
questão, uma análise mais acuradas demostra que a conversão da Europa ao cristianismo
constitui-se num fracasso geral. O máximo que se pode falar é de uma limitada conversão ao

5
Veja, por exemplo, a estratégia de marketing “eu sou universal” onde os “casos de sucesso”
apresentam agentes do público “tradicional” - um morador de rua que se transformou em
empresário de sucesso – ao lado de um público não tradicional – um modelo e uma chefe de
cozinha, por exemplo. Em: https://www.universal.org/eu-sou-a-universal/cases/ Acessado em
03/10/2019.
cristianismo ocorrida no século XII ao XVI e que nos séculos anteriores e posteriores a esse
período a conversão foi, na maior parte, uma ideologia e uma submissão mais ou menos séria
à igreja; não significou uma mudança de sentimentos, isto é, de estrutura de caráter (...)”
(FROMM, 1987, p. 141)

Algumas das 95 teses de Lutero6 que indicam o descontentamento com a forma


dogmática da igreja:

45ª Tese. Deve-se ensinar aos cristãos que aquele que vê seu próximo padecer necessidade e
a despeito disto gasta dinheiro com indulgências, não adquire indulgência do papa, mas desafia
a ira de Deus.

54ª Tese. Comete-se injustiça contra a palavra de Deus quando, no mesmo sermão, se consagra
tanto ou mais tempo à indulgência do que à pregação da palavra do Senhor.

Outra crítica ao cristão “nominal” vem de outra vertente protestante – a de João


Calvino que nas institutas da vida cristã7 diz:

“Nesta altura devo dirigir a palavra àqueles que, não tendo nada de Cristo exceto o título,
entretanto querem ser reconhecidos como cristãos. Que atrevimento deles, quererem gloriar-
se em seu sacrossanto nome! (...)

Vê-se, pois, que é baseados em ensinamentos falsos que esses tais dizem que conhecem a
Cristo. E com isso lhe fazem grande injúria, por mais belas que sejam as suas palavras. Porque
o evangelho não é uma doutrina de língua, mas de vida. E, diferentemente das outras disciplinas,
não se apreende só pela mente e pela memória, mas deve envolver e dominar a alma e ter como
sede e receptáculo as profundezas do coração. (...)

...razão temos nós para detestar os palradores que se contentam em ter o evangelho na boca,
desprezando-o totalmente em sua maneira de viver!”

A ética cristã e suas duas chaves de análise: a “vida vivida” de Jesus e a


mensagem de sua fala

Há duas perspectivas – não excludentes quando se interpreta a vida vivida pelo


Cristo histórico – para se identificar a ética cristã. A primeira é o entendimento
da ética cristã como a ética “vivida” por Jesus Cristo. A vida como “modelo” de

6
http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_martinho_lutero_95teses.pdf
7
https://frutodagraca.files.wordpress.com/2010/03/institutas-da-religiao-crista-joao-calvino.pdf
moralidade cristã. Nesse sentido buscamos o modelo ético na vida do chamado
Jesus Histórico.

A segunda é o entendimento da ética cristã como o exemplo “falado” por Jesus


nas suas pregações. Essa é a ética contida na semântica do evangelho –
escritura sagrada do cristianismo.

Opiniões de quem busca o modelo ético na vida “vivida”:

“A afirmação de que deus se revela indiretamente, através de acontecimentos históricos,


pertence ao núcleo central da fé de Israel ... para nós, esse enunciado adquire pleno
cumprimento em Jesus Cristo. Ele constitui, para o cristão, a chave histórica da revelação de
Deus.” (ECHEGARAY, 1982, p. 34).

“Quando falamos em cristologia pretendemos nos limitar ao discurso sobre a própria pessoa de
jesus e a sua missão ... não tocamos, pois, a não ser indiretamente, na mensagem de Jesus.”
(SEGALLA, 1992, p. 9).

“Quero provar que Jesus, Ieshua, é o parâmetro daquilo que significa ser cristão”. (SWIDLER,
1993, p. 7).

“[Jesus] foi um herói do ser, do dar, do participar. Essas qualidades constituíam profundo
atrativo para os romanos pobres, bem como para alguns ricos, que tiveram abalado o seu
egoísmo.” (FROMM, 1987, p. 142).

“Acresce que, para nos despertar mais vivamente, a Escritura nos demonstra que, assim como
Deus em Cristo nos reconciliou consigo, assim também ele o constituiu em exemplo e padrão
ao qual devemos amoldar-nos.” (CALVINO, p. 48).

Jesus teve uma vida simples: foi um operário pobre entre os pobres

Jesus com os pescadores:

“E Jesus, andando junto ao mar da Galileia, viu a dois irmãos (..) que lançavam rede ao mar,
porque eram pescadores: E disse-lhes: vinde após mim e eu vos farei pescadores de homens”
(Mateus, 4, 18).

Vida simples. Sem apego a bens materiais. Vejamos a cena descrita em Marcos,
10.

[Homem se ajoelha e pergunta] O que faço para herdar a vida eterna?


[Jesus] Cumpra os mandamentos.

[Homem] Já faço isso desde jovem.

[Jesus] Então falta apenas uma coisa: “Vai, vende tudo quanto tens, e dá aos pobres (...)”

Jesus foi um operário; um trabalhador braçal e não um intelectual.

“[Jesus] trabalhador manual. Não é um homem que levante voo às nuvens, sobre teorias. Suas
intuições e ensinamentos são concretos ...” (LARRANAGA, 1989, p. 23).

“Quem é Jesus? Alguém pobre-livre-disponível-servidor, que percorreu o caminho da pobreza


ao amor.” (LARRANAGA, 1989, p. 118).

Jesus viveu o amor e falava sobre o amor

“O que parece ter impressionado muitos dos contemporâneos de Ieshua na pessoa dele,
tornando-os seus discípulos, deve ter sido sua sabedoria e seu amor interiores ... ele
apresentava o ideal de amor altruístico.” (SWIDLER, 1993, p. 66).

“Ao advogar a vida no amor altruístico [Jesus] instava outros a aprenderem com sua humildade.”
(SWIDLER, 1993, p. 67).

“Em sua própria carne, Jesus chegou a experimentar que Deus não é, antes de tudo, temor, mas
amor.” (LARRANAGA, 1989, p. 40).

“Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam” (Lucas, 6, 27).

“Embora os conceitos possam diferir, uma crença define qualquer ramo do cristianismo: a
crença em Jesus Cristo como salvador da humanidade, que deu sua vida pelo amor de seus
semelhantes. Ele foi um herói do amor, um herói sem poder, que não empregou a força, que não
queria governar, que não queria possuir nada.” (FROMM, 1987, p. 142).

Jesus foi um ser humano livre

“Existe, em primeiro lugar, um traço que se destaca com vigor extraordinário: a liberdade de
Jesus.” (ECHEGARAY, 1982, p. 135).

Jesus respeitava a lei dos judeus, mas fazia a sua interpretação (com liberdade).
Não dogmático. Atuava com independência dos “doutores da lei”. (Ver FOX, 1993,
p. 104 – 114).

A liberdade estava, inclusive, relacionada ao desapego.


“Ora, um pobre de Deus é um homem livre. Quem não tem nada nem quer ter nada não pode
temer nada, porque o temor é um feixe de energias desencadeadas para a defesa das
propriedades... (LARRANAGA, 1989, p. 118).

Jesus não foi hipócrita e combateu a hipocrisia

Jesus foi contrário à|z boa parte da vida religiosa institucionalizada na sua
época. Os judeus – como ele – que iam na Sinagoga “mostrar” para os outros a
sua fé eram comumente criticados.

Jesus viveu a vida dele sem se preocupar com o “falatório”. Criticava a hipocrisia
como no julgamento da adultera (“Atire a primeira pedra”).

“Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e então veras bem para tirar o argueiro que está no
olho do teu irmão”. (Lucas, 6, 42).

[Fala de Jesus] “Acautelai-vos primeiramente do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia... Mas
nada há encoberto que não haja de ser descoberto” (Lucas, 12, 1-2).

Jesus foi agressivo/violento?

Há trecho no novo testamento que descreve Jesus agressivo, batendo com uma
espécie de chicote nas pessoas e destruindo uma sinagoga que havia se
transformado em “ponto de venda” de “artigos” (na verdade, animais) para a
atividade sagrada.

“E acho no templo os que vendiam bois, e ovelhas, e pombos, e os cambistas assentados... e


tendo feito um açoite de cordões, lançou todos fora do templo ... e disse aos que vendiam
pombos: tirai daqui estes e não façais da casa de meu Pai casa de venda.” (João, 2, 15).

Então, era a agressividade uma característica central na vida de Jesus? Não,


era o amor.

“... a subversão violenta, a matança de outros não corresponde ao seu modo de ser”
(RATZINGER, 2011, p. 26).

Ética cristã e humanismo


Apesar dos fundamentos diferentes (Deus e Homem), é possível encontrar
semelhanças entre a ética cristã e a ética humanista.

Por sua vez a ética humanista se encontra, em boa medida, positivada nos
documentos constitucionais modernos definidores dos direitos fundamentais.

“Secularização pode designar a superação de uma falsa sacralidade e o aparecer de um


sentimento religioso mais genuíno.” (HARING, 1976, p. 13).

“Concluindo nosso trabalho, reassumimos, agora, as linhas fundamentais que tornam possível
o diálogo ético com o humanismo moderno, secular ou secularista.” (HARING, 1976, p. 193).

“Muitas vezes o cristão e o humanista secular unem-se na luta contra várias formas de
discriminação ...’ (HARING, 1976, P. 195).

“Já São Paulo, encontra uma ponte para o diálogo com os humanistas do seu tempo,
influenciados pela ética estóica, no conceito de consciência e relacionou a fé a convicção sincera
da consciência ... o homem de hoje apela para a consciência

quando protesta contra a intolerância dos indivíduos ... contra preconceitos ... contra a violação
cruel das leis promulgadas em favor do bem comum especialmente daquelas destinadas a
tutelar os direitos fundamentais de cada pessoa. Em nome da consciência, são contestadas,
sobretudo, as tentativas de lavagem cerebral.” (HARING, 1976, p. 196).

A ética “falada”: uma síntese moral do sermão da montanha

A doutrina ética da montanha (Mateus, 5). Nele Jesus faz uma interpretação dos
mandamentos antigos – será considerado “grande” no reino dos céus quem:

1. Não matar;
2. Quem não tiver ódio (“encolerizar”) sem motivo com um irmão – devemos
buscar fazer as pazes;
3. Não cometer adultério (nem em pensamento) “qualquer que atentar
numa mulher para cobiçar já em seu coração cometeu adultério com
ela”);
4. Não fizer juramentos;
5. Não buscar revanche acima de tudo (“se qualquer te bater na face direita,
oferece-lhe também a outra”);
6. For caridoso (“Dá a quem te pedir.”)
7. Amar a todos, inclusive os seus inimigos (“pois se amardes os que vos
amam, que galardão tendes?”)
8. Fizer o bem sem se preocupar com a publicidade do ato bondoso
(“Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti”);
9. Não for hipócrita. (“Não julgueis para que não sejais julgados”; “E, quando
orares, não sejas como os hipócritas, pois se comprazem em orar de pé
nas sinagogas e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens.”;
“Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e então veras claramente para
tirar o argueiro do olho do teu irmão”);
10. Perdoar a quem te faz mal “Se perdoardes aos homens as suas ofensas,
também vosso Pai celestial vos perdoará a vós.”);
11. Tiver uma vida sem apego aos bens materiais (“Não ajunteis tesouros da
terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem ... Mas ajuntai tesouros
no céu.”);
12. Viver uma vida “presentificada” sem grande ansiedade pelo futuro (“Não
vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará
de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.”);
13. Agir com os outros da mesma forma que gostariam que agissem consigo
próprio (“tudo o que vós quereis que os homens o façam, fazei-lho
também vós”).
14. For prudente – quem seguir às normas éticas do Pai será prudente.
(“Todo aquele, pois, que escuta estas minhas palavras e as pratica,
assemelhá-lo-ei ao homem prudente, que edificou a sua casa sobre
rocha.”)

KANT: A ÉTICA DO DEVER

A ética de Kant é a ética do dever. Isso significa que nós, seres racionais,
devemos respeitar a nós mesmos e aos outros seres racionais e agir de
maneira ética. Kant fundamenta a sua ética com base em elementos “terrenos”,
ou seja, não busca orientar as nossas ações a partir do medo de consequências
para a nossa vida depois da morte.
“Se nossas vontades e nossos desejos não podem servir de base para a moralidade, o que nos
resta então? Deus é uma possibilidade. Mas essa não é a resposta de Kant.” (SANDEL, 2012, p.
139).

Não podemos descartar completamente, nem tampouco ir além da conjectura,


acerca da influência da criação pietista de Kant na sua formulação. Da mesma
forma que os protestantes históricos valorizam o hard worker Kant valoriza o
ser humano que age por “dever”, o dever de “fazer a coisa certa”8. É sintomático
desse “jeito sóbrio” de se viver eticamente de Kant a valorização do dever e sua
espécie de fixação pela verdade9. Podemos dizer que a ética kantiana aponta
para uma vida individual marcada pela presença forte do superego.

Percebemos esse jeito, digamos, sisudo, quando comparamos a reflexão de


Kant a de outros filósofos. Epicuro, por exemplo, fundam sua ética no prazer
(ainda que não o prazer de excessos) e outros, o Cristo, por exemplo, no amor.

Para Kant uma ação tem valor moral quando, mesmo sem interesse, o agente
age considerando o seu dever. Por exemplo, uma pessoa de bem com a vida e
“bem de vida” deve fazer caridade e com isso se sente feliz, isso é esperado e
não torna a ação moralmente valiosa. Agora, se um sujeito infeliz, apesar de ter
dinheiro, faz caridade, apesar de esta não o trazer felicidade ele o faz
simplesmente por sentimento de dever racionalmente percebido. Essa última é
uma ação moralmente valiosa. Um ser humano de caráter é o que tem noção do
seu dever. (Inferência do exemplo de KANT, 2007, p. 28).

Kant não define o “conteúdo” ético que devemos seguir. Isso está de acordo com
o que ele acredita ser o papel de sua “Metafísica dos costumes” no esquema da
divisão do trabalho acadêmico.

“Metafísica dos Costumes, que deveria ser cuidadosamente depurada de todos os elementos
empíricos, para se chegar a saber de quanto é capaz em ambos os casos a razão pura e de que
fontes ela própria tira o seu ensino a priori.” (KANT, 2007, p. 15). Ainda: “... a Filosofia moral
assenta inteiramente na sua parte pura, e, aplicada ao homem, não recebe um mínimo que seja

8
“O que importa para Kant é que a boa ação seja feita por ser a coisa certa – quer isso nos dê
prazer quer não.” (SANDEL, 2012, p. 147).
9
“Kant é muito rigoroso com a mentira. Em ‘Fundamentação’ a mentira é o principal exemplo do
comportamento imoral”. (SANDEL, 2012, p. 165).
do conhecimento do homem (Antropologia), mas fornece-lhe como ser racional leis a priori.”
(KANT, 2017, p. 16).

Apesar de não definir conteudísticamente o nosso dever, podemos desenvolver


o seguinte esquema simplificado:

Na nossa vida devemos agir com “boa vontade”.

“Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como
bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade. Discernimento , argúcia de espírito,
capacidade de julgar e como quer que possam chamar-se os demais talentos do espírito, ou
ainda coragem, decisão, constância de propósito, como qualidades do temperamento, são sem
dúvida a muitos respeitos coisas boas e desejáveis; mas também podem tornar-se
extremamente más e prejudiciais se a vontade, que haja de fazer uso destes dons naturais e
cuja constituição particular por isso se chama carácter, não for boa.” (KANT, 2007, p 21).
“Moderação nas emoções e paixões, autodomínio e calma reflexão são não somente boas a
muitos respeitos, mas parecem constituir até parte do valor íntimo da pessoa; mas falta ainda
muito para as podermos declarar boas sem reserva (ainda que os antigos as louvassem
incondicionalmente). Com efeito, sem os princípios duma boa vontade, podem elas tornar-se
muitíssimo más, e o sangue--frio dum facínora não só o torna muito mais perigoso como o faz
também imediatamente mais abominável ainda a nossos olhos do que o julgaríamos sem isso.”
(KANT, 2007, p. 22).

Mas o que é agir com boa vontade? É respeitar a lei da razão. Um ser humano
de “caráter” é o que tem noção desse dever. Diz Kant “Dever é a necessidade de
uma ação por respeito à lei”. (KANT, 2007, p. 31).

Somo livres e racionais. Somos livres, mas não podemos fazer tudo. Devemos
obedecer a uma lei ditada pela razão. Uma lei que nós mesmos fazemos10, daí a
nossa liberdade. Isso é um imperativo; categórico. Que lei é essa?

“Uma vez que despojei a vontade de todos os estímulos que lhe poderiam advir da obediência a
qualquer lei, nada mais resta do que a conformidade a uma lei universal das acções em geral
que possa servir de único princípio à vontade, isto é: devo proceder sempre de maneira que eu
possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal .” (KANT, 2007, p. 33). “O
imperativo categórico é portanto só um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal
que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” (KANT, 2007, p. 59).

10
Trata-se de uma formulação no campo moral-individual que corresponde àquela formulada
no campo político-coletivo por Rousseau. Obedecemos as leis porque a lei corresponde a
vontade geral.
Então, para Kant, para guiar as nossas condutas na Terra, devemos “fazer o
teste” do imperativo categórico, ou seja, se a ação ou omissão puder ser
universalizada (ser adotada como modelo por todos), então, estamos agindo de
maneira coerente com o nosso dever e podemos julgar essa ação como
eticamente positiva.

“Temos que poder querer que uma máxima da nossa acção se transforme em lei universal: é
este o cânone pelo qual a julgamos moralmente em geral.” (KANT, 2007, p. 62).

“O teste da universalização conduz a um importante questionamento moral: é uma forma de


verificar se o que estamos a ponto de fazer coloca nossos interesses e nossas circunstâncias
especiais acima das de qualquer outra pessoa.” (SANDEL, 2012, p. 154).

Um exemplo de julgamento da conformidade de uma ação com o imperativo


categórico:

“Uma outra pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro emprestado. Sabe muito
bem que não poderá pagar, mas vê também que não lhe emprestarão nada se não prometer
firmemente pagar em prazo determinado. Sente a tentação de fazer a promessa; mas tem ainda
consciência bastante para perguntar a si mesma: Não é proibido e contrário ao dever livrar-se
de apuros desta maneira? Admitindo que se decidia a fazê-lo, a sua máxima de ação seria:
Quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, embora
saiba que tal nunca sucederá. Este princípio do amor de si mesmo ou da própria conveniência
pode talvez estar de acordo com todo o meu bem-estar futuro; mas agora a questão é de saber
se é justo. Converto assim esta exigência do amor de si mesmo em lei universal e ponho assim
a questão: Que aconteceria se a minha máxima se transformasse em lei universal? Vejo então
imediatamente que ela nunca poderia valer como lei universal da natureza e concordar consigo
mesma, mas que, pelo contrário, ela se contradiria necessariamente. Pois a universalidade de
uma lei que permitisse a cada homem que se julgasse em apuros prometer o que lhe viesse à
ideia com a intenção de o não cumprir, tornaria impossível a própria promessa e a finalidade
que com ela se pudesse ter em vista; ninguém acreditaria em qualquer coisa que lhe
prometessem e rir-se-ia apenas de tais declarações como de vãos enganos.” (KANT, 2007, P.
60).

Então, basta agir com os outros como achamos que eles deveriam agir conosco?
Essa é a regra de ouro. É isso que Kant quer dizer? Não.

“O imperativo categórico de Kant ... não seria isso a mesma coisas da regra de ouro? (Faça aos
outros o que deseja que os outros façam a você). Não. A regra de ouro depende de fatos
contingentes que variam de acordo com a forma como cada um gostaria de ser tratado. O
imperativo categórico obriga-nos a abstrair essas contingências e a respeitar as pessoas como
seres racionais, independente do que ela possa desejar em uma determinada situação.”
(SANDEL, 2012, p. 157).

Então, para Kant, não se trata de agir conforme o nosso querer, trata-se de
verificar se a minha ação pode ser uma ação universal. De certa forma podemos
dizer que a ética kantiana é aquela que aponta para uma ação humana que vá
para além do querer, trata-se do dever.

Por exemplo, ao saber de uma grave doença da sua mãe, que já demostra não
estar completamente consciente, você se questiona sobre se deve ou não a
contar. Se você mesmo, estando na situação da sua mãe, não gostaria que te
contasse, de acordo com a regra de ouro deveria fazer o mesmo com a sua mão.
Submetendo ao teste do imperativo categórico de Kant, vê se o “dever” de contar
na medida em que a mentira não pode se tornar universal.

WEBER: A ÉTICA PROTESTANTE E O NASCIMENTO DA CULTURA CAPITALISTA

O estudo de Weber foi feito a partir da realidade da Alemanha no final do século


XIX e início do século XX. Também foi fundamental no contexto de formulação
do trabalho sobre o “espírito” do capitalismo a visita que ele fez aos EUA no
início do século XX.

Quando fala dos “protestantes” fala do protestantismo histórico materializado


nos seguintes grupos: calvinismo; pietismo; metodismo; anabatistas (WEBER,
2004, p. 87). Trata, em especial, do Calvinismo que, de acordo com ele “parece
ter mais afinidade eletiva com o rígido senso jurídico e ativo do empresário
capitalista-burguês.” (WEBER, 2004, p. 126)

Devemos perceber que o estudo trata da cultura capitalista na sua fase de


formação – do iluminismo a revolução industrial, grosso modo – por isso
percebemos a ligação com o “jeito de ser “sóbrio” do hard worker, ou seja, do
trabalhador que tem o “dever” de trabalhar.

“... essa ideia singular, hoje tão comum e corrente ... da profissão como dever ... é essa ideia que
é característica da ‘ética social’ da cultura capitalista ...” (WEBER, 2004, p. 47).
“O ‘tipo ideal’ de empresário capitalista ... não tem nenhum parentesco com esses ricaços de
aparência mais óbvia ... ele se esquiva à ostentação e à despesa inútil, bem como ao gozo
consciente do seu poder ... sua conduta de vida, noutras palavras, comporta quase sempre certo
lance ascético.” (WEBER, 2004, p. 63).

Hoje o capitalismo do hiperconsumo e da especulação pura tem outras


características. O capitalismo “ostentação”.

Observação empírica que funciona como ponto de partida para a curiosidade


cientifica de Weber:

“O caráter predominantemente protestante dos proprietários do capital e empresários ...”


(WEBER, 2004, p. 29).

Além disso Weber atenta para o fato de existir, na formação escolar para os
postos técnicos e para as “profissões comerciais e industriais” uma
predominância dos protestantes (WEBER, 2004, p. 32).

O autor atribui a existência da orientação de vida fundada no “espírito de


trabalho” e de “progresso” ao protestantismo (WEBER, 2004, p. 38).

O autor utiliza o sermão de Benjamin Franklin como exemplo documental do


espírito do capitalismo, WEBER, 2004, p.42:

“Lembra-te que tempo é dinheiro; aquele que com seu trabalho pode ganhar dez xelins ao dia e
vagabundeia metade do dia ... não deve, mesmo que gaste apenas ses pence para se divertir,
contabilizar só essa despesa na verdade gastou, ou melhor, jogou fora, cinco xelins a mais.
Lembra-te que crédito é dinheiro. Se alguém me deixa ficar com seu dinheiro depois da data de
vencimento, esta me entregando os juros ... Lembra-te que dinheiro é procriador por natureza
e fértil ... Lembra-te que um bom pagador é senhor da bolsa alheia. Quem é conhecido por pagar
pontualmente na data combinada pode a qualquer momento pedir emprestado todo o dinheiro
que seus amigos não gastam... nada contribui mais para um jovem subir na vida do que
pontualidade e retidão em todos os seus negócios... As pancadas do teu martelo que teu credor
escuta às cinco da manhã ou às oito da noite os deixam seis meses sossegado; mas se te vê à
mesa de bilhar ou escuta tua voz numa taberna quando devias estar a trabalhar, no dia seguinte
vai te reclamar o reembolso ...”]

É importante lembra que Weber não afirmar que a formação da estrutura


capitalista é uma consequência de uma ação planejada pelos protestantes. Não
se trata de algo consciente e intencional do religioso – a formação do
capitalismo.

“A salvação da alma, e somente ela, foi eixo de sua vida e ação [dos reformadores]. Seus
objetivos éticos e os efeitos práticos de sua doutrina estavam ancorados aqui e eram, tão só,
consequências de motivos puramente religiosos. Por isso temos que admitir que os efeitos
culturais da reforma foram em boa parte ... consequências imprevistas e mesmo indesejadas
do trabalho dos reformadores...” (WEBER, 2004, p. 81).

No entanto, ressalta Weber, as nossas escolhas ideais de uma ética religiosa,


tem repercussões “neste mundo”,

“... o que nos cabe é tornar um pouco mais nítido o impacto que os motivos religiosos ... tiveram
na trama do desenvolvimento da nossa cultura moderna especificamente voltada para ‘este
mundo’” (WEBER, 2004, p. 82).

Dentro da ideologia protestante, a ideia de “amor ao próximo” gradativamente


se transforma na ética do “trabalho duro”, ou seja, o protestante trabalha duro
para materializar o seu amor pela humanidade, fazendo sempre o seu melhor e
seguindo rigorosamente e disciplinadamente, a sua vocação; o seu chamado.

“[no calvinismo] O ‘amor ao próximo’ expressa-se em primeiro lugar no cumprimento da missão


vocacional-profissional ...” (p. 99) “A exortação do apóstolo a ‘se segurar’ no chamado recebido
é interpretada aqui, portanto, como dever de conquistar na luta do dia a dia a certeza subjetiva
da própria eleição e justificação... disciplinam-se dessa forma aqueles ‘santos’ autoconfiantes
... distingue-se o trabalho profissional sem descanso como meio mais saliente para conseguir
essa autoconficança.” (WEBER, 2004, p. 102).

A ética protestante, diferente do cristianismo católico, não vê problema no


dinheiro – Deus gosta do hard worker – Vê problema, no entanto, no consumo
desenfreado. É permitido, porém, que se gaste com uma vida confortável.

“a luta contra a concupiscência da carne não era .... uma luta contra o ganho ... às pessoas de
posses ela queria impingir não a mortificação, mas o uso da propriedade para coisas necessária
e úteis em termos práticos ... a noção de comfort circunscreve de forma característica o âmbito
de seus empregos eticamente lícitos.” (WEBER, 2004, p. 156).

GRUPOS NEOPENTECOSTAIS NO BRASIL

Do protestantismo pentecostal ao neopentecostal no Brasil:


“O movimento religioso conhecido como pentecostalismo surge nos Estados Unidos no início do
século XX e é, em grande parte, herdeiro da Reforma Protestante do século XVI. É o último dos
três grandes impulsos da Reforma, depois do puritanismo e do metodismo.” (TORRES, 2007, p.
105).

“A chegada do pentecostalismo no Brasil foi quase concomitante com o seu surgimento nos
Estados Unidos. Lá ele surgiu em 1906 e aqui em 1910, quando missionários fundaram a
Congregação Cristã no Brasil. No ano seguinte foi fundada a Assembléia de Deus. (...) Esta
primeira onda expansionista, classificada como clássica, foi absoluta entre 1910 e 1950.”
(TORRES, 2007, p. 106).

“O pentecostalismo clássico abrange as igrejas pioneiras: Congregação Cristã no Brasil e


Assembléia de Deus.” (MARIANO, 2004, p. 123).

“A terceira onda expansionista, chamada de neopentecostalismo ... tem como núcleo central de
expansão no Brasil o Estado do Rio de Janeiro. Na década de 1970 surgiram as primeiras igrejas
desta vertente, oriunda da ação de missionários norte-americanos que “inovaram” o discurso
religioso brasileiro a partir da divulgação da Teologia da Prosperidade.” (TORRES, 2007, p. 107).

“O neopentecostalismo teve início na segunda metade dos anos de 1970. Cresceu, ganhou
visibilidade e se fortaleceu no decorrer das décadas seguintes. A Universal do Reino de Deus
(1977, RJ), a Internacional da Graça de Deus (1980, RJ), a Comunidade Evangélica Sara Nossa
Terra (1976, GO) e a Renascer em Cristo (1986, SP), fundadas por pastores brasileiros,
constituem as principais igrejas neopentecostais do país. (MARIANO, 2004, p. 123-124).

As características da igreja pentecostal:

“Suas características principais têm a ver com uma rejeição radical e sectária do mundo,
construída reativamente em relação ao modo de vida das classes médias secularizadas:
rechaçavam o uso do rádio e de atributos de vaidade que ressaltavam a beleza feminina, do
mesmo modo, condenavam a participação em festas e outras atividades que fossem tidas como
do “mundo””. (TORRES, 2007, p. 106).

As características das igrejas neopentecostais:

“O sucesso dessas igrejas é antes explicado pela sua técnica comunicativa e pela indigência
material, intelectual e espiritual do povo que a ela adere do que pela sua mensagem é que tida
como quase nula.” (MARIZ, 1995, p. 41).

“As igrejas pentecostais autônomas têm forte ênfase na trilogia: cura, prosperidade e libertação
(ou exorcismo).” (MARIZ, 1995, p. 41).

“No plano teológico, caracterizam-se por enfatizar a guerra espiritual contra o Diabo e seus
representantes na terra, por pregar a Teologia da Prosperidade, difusora da crença de que o
cristão deve ser próspero, saudável, feliz e vitorioso em seus empreendimentos terrenos, e por
rejeitar usos e costumes de santidade pentecostais, tradicionais símbolos de conversão e
pertencimento ao pentecostalismo.” (MARIANO, 2004, p. 123-124).

As “faces mais visíveis da influência religiosa sobre o empreendedorismo


econômico” foram sistematizadas por SOUZA (2011, p. 15): a. existência de
associações de empresários evangélicos; b. as organizações religiosas de mídia
e marketing; c. as redes de televisão e rádio ligadas a Igreja; d. a forma de gestão
definitivamente empreendedora de determinadas denominações pentecostais e
e. o grau de profissionalização dos novos pastores.

A teologia da prosperidade

“Esta Teologia reafirma uma concepção de divindade já presente no imaginário religioso de


nossa sociedade, cuja força se manifesta exatamente mediante benesses materiais concedidas
aos fiéis, como recompensa pela adoração bajuladora. Deus passa a ser percebido como
terapeuta das mazelas “deste mundo”, pois cura doenças, concede prosperidade econômica e
até mesmo conforto afetivo-sexual aos seus seguidores.”” (TORRES, 2007, p. 107).

“A Teologia da Prosperidade advoga que o cristão, além de liberto do pecado original pelo
sacrifício expiatório de Cristo, tem o direito, já nesta vida e neste mundo, à saúde física perfeita,
à prosperidade material e a uma vida abundante, livre do sofrimento e das artimanhas do diabo
(MARIANO, 2003b, p.242). Com isso, a figura do diabo também ganha uma outra interpretação,
assumindo um papel de maior destaque e importância. É implementada uma luta contra o diabo
e seus aliados, já que são eles que causam todos os males...” (TORRES, 2007, p. 108).

“Na IURD, a chamada “teologia da prosperidade” tem, acima de tudo, o sentido prático de recusar
o fracasso – “pare de sofrer!” – como forma de delimitar a identidade social por oposição reativa
a um exemplo negativo que, claro, só pode ser a imagem do fracassado, daquele que não pôde
fugir das artimanhas dos encostos e de sua ação indiscriminada e constante...” (TORRES, 2007,
p. 113).

“... a “máquina narrativa” neopentecostal torna-se uma prática discursiva que reforça a ideologia
do mérito, fazendo-a assumir a semântica mágica segundo a qual merece fracasso ou sucesso
quem for mais hábil na manipulação das forças sobrenaturais que regem a distribuição de
derrotas ou de vitórias.” (TORRES, 2007, p. 115).

“Chamada também de Health and Wealth Gospel, Faith Movement, Faith Prosperity Doctrines e
Positive Confession, a Teologia da Prosperidade surgiu nos Estados Unidos, na década de 1940,
no âmbito de grupos evangélicos que enfatizavam crenças sobre cura, prosperidade e poder da
fé.” (SOUZA, 2011, p. 14).
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