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HISTÓRIA DAS IDEIAS ÉTICAS

FRAGMENTOS

Mário S. F. Maia
APRESENTAÇÃO

Esses fragmentos foram recolhidos e sistematizados nas horas de estudo para ministrar a
parte geral das disciplinas de ética profissional nos cursos de Direito e ciência e
tecnologia da UFERSA. Esses são fragmentos de textos em geral sem grande
desenvolvimento interpretativo colhidos em pesquisa bibliográfica.

Os fragmentos foram sistematizados para orientar uma conversa simples e interessante


sobre temas existenciais profundos conduzida durante duas aulas com futuros
profissionais do Direito e da Engenharia.

Neste quadro de uma “Teoria Geral da Ética”, meu objetivo principal aqui foi inferir
alguns modelos éticos a partir da análise da filosofia (ideal) e da vida vivida por alguns
filósofos célebres (já que reconhecidos pelo público não expert).

A sistematização realizada se orientou pela busca nos textos de elementos para uma
descrição ideal de um determinado “modelo” ético. Isso se deve ao objetivo principal da
sistematização, que é o de fornecer informações aos estudantes sobre a “vida boa” e
justa imaginada e vivida por alguns filósofos. Um modelo que possa ser refletido e
“interiorizado” como modo de vida (embora não seja esse, definitivamente, o objetivo
desse curso).

Sob a análise interior (de foro íntimo, como no jargão jurídico) pode-se dizer que um
“modelo” ético é uma espécie de utopia. Em geral ele não estabelece regras minuciosas
de conduta, mas sua principiologia sugere uma espécie de lugar para o qual devemos
olhar e orientar a nossa caminhada de vida. Uma forma de controle da angústia
existencial.

No entanto, sob a análise sociológica (que não está completamente excluída nestes
fragmentos), percebe-se que as diferentes retóricas éticas (de fundo secular ou religioso)
são indicativas da existência concreta dos diversos grupos sociais que compõem o
complexo mosaico cultural das sociedades contemporâneas. O desafio do teórico da
ética é, portanto, pensar numa maneira realista sobre como fazer conviver com o
mínimo de conflito pessoas com pensamentos diferentes.
M. S. F. M em 17/01/22.

HISTÓRIA DAS IDEIAS ÉTICAS (I)

ÉTICA SOCRÁTICA
A pergunta que nos guia: há um “modelo ético” na filosofia de Sócrates?

Para responde-la temos que atentar para um fato inicial importante, Sócrates nunca
publicou um texto em sua vida, ele não foi um escritor. Ele nunca escreveu sobe um
modelo de felicidade e de vida boa. Então, se há um “modelo” efetivamente socrático
ele não pode ser obtido de fonte escrita direta1.

Outro ponto importante, Sócrates era conhecido pelo “jeito” perguntador materializado
na sua técnica argumentativa que objetivava fazer nascer as ideias (maiêutica). Em uma
palavra, a filosofia de Sócrates é crítica. Isso significa que, se considerarmos o Sócrates
descritos nos diálogos de Platão, a busca por uma “fala” de Sócrates sobre como
devemos viver nos trará pouca informação.

Então, existe ou não uma ética socrática? Uma filosofia positiva?

Em verdade, uma das formas (que considero a mais interessante) de se descrever uma
espécie de “modelo” ético socrático é partir da observação e análise da maneira como o
próprio Sócrates viveu. A ética socrática, nesse sentido, pode ser inferida a partir do seu
exemplo de vida.

Se consideramos o Sócrates “personagem”, ou seja, o Sócrates descrito por outros


escritores, podemos dizer que há indício de que o próprio Sócrates concordaria com esse
método indutivo. Vejamos a cena descrita por Xenofonte. Na cena, Sócrates, instado a
preparar a sua defesa, diz que a defesa já está pronta “foi a sua própria vida”. Vejam:

“[Cena: Sócrates antes do julgamento] Hermógenes, filho de Hipônico e amigo de Sócrates,


deu a seu respeito pormenores que mostram que a altura de sua linguagem se acordava
plenamente com a de suas ideias. Contava que, vendo-o discorrer sobre assuntos
completamente alheios a seu processo, lhe dissera:

- Não deverias Sócrates, pensar em sua apologia?

Ao que lhe respondeu Sócrates:

- Não parece que lhe consagrei toda minha vida?

Perguntando-lhe Hermógenes de que maneira:

- Vivendo sem cometer a menor injustiça, o que é, a meu ver, o melhor meio de preparar uma
defesa.” (XENOFONTE In SÓCRATES, 1996, p. 201).

1
Obviamente, não se deve esquecer da existência de estudos “semânticos” sobre a ética socrática
(felicidade – Eudaimonia) a partir da análise do conteúdo da obra de Platão. A ideia que se quer
desenvolver aqui é que a partir do que foi escrito “sobre” Sócrates, podemos vislumbrar a ética socrática
de vida, ou seja, do personagem platônico se extrair o “ser” de Sócrates. Como exemplo de estudos
semânticos a partir de Platão: SANTOS, 2010.
Então vejamos, como foi efetivamente a vida de Sócrates?

Sócrates foi fundamentalmente uma pessoa curiosa. O filósofo é um curioso. As pessoas


não entendiam a vida de Sócrates que era um perguntador. Ele causava certo incomodo
e foi morto por conta disso. Para a maioria das pessoas Sócrates era um estranho que
vivia perguntando aquilo que todos já sabiam; para essas pessoas ele era visto como um
verdadeiro chato. Um perguntador neurótico, diríamos hoje. Essa atitude inquieta diante
da vida é a própria filosofia acontecendo.

Sócrates excêntrico. Descrito numa peço por autor do seu tempo (Ameipsias) assim:
“Eu odeio Sócrates, aquele mendigo tagarela, que teoriza sobre tudo, mas se esquece de
pensar onde pode arranjar uma refeição” (KONSTAN, 2016, P. 114).

Sócrates viveu de maneira simples, andando em todos os lugares e falando com pessoas
das mais diversas profissões e status na sociedade grega. Andava pelo mercado público
e ia a festas reservadas à elite. Sua vestimenta era sóbria e o seu comportamento era de
uma pessoa humilde, sem com isso ter uma postura subserviente (vide a sua fina
ironia2). Claro, era um perguntador.

Sobre a simplicidade se Sócrates: “Sócrates era um desajustado nessa companhia


[sofistas]: ele não cobrava pela instrução ... vestia trajes simples e caminhava descalço,
mesmo no inverno. Essa dureza era também refletida nos seus alunos: eles dormem ao
ar livre...” (KONSTAN, 2016, p. 120).

Os verdadeiros filósofos têm uma vida autêntica. A vida autêntica é a vida de alguém
que vive sem medo, ou melhor, de alguém que consegue vencer a angústia existencial.
Essa angústia, que é decorrente do nosso desconforto, consciente ou não, com a nossa
mortalidade/finitude. Quando analisada, essa nossa angústia permite que se tenha acesso
à presença; a consciência do presente mais radical; uma verdadeira presentificação.

A vida autentica, é, digamos, uma vida fora do comum, que aponta novos caminhos. Há,
portanto, uma contribuição positiva ou moral do afazer filosófico. Com isso se quer
dizer que a atitude crítica não é somente desconstrutiva.

Vejamos outra cena descrita por Xenofonte, atentemos para a ausência de qualquer
traço de medo e pela tranquilidade em momento que, para qualquer outro, é de
desespero (o caminho para a morte sabida):

2
Ver KIERKEGAARD, 2013.
“Reparando que os que o acompanhavam se desfaziam em lágrimas, disse-lhes:

- Que é isto! Agora é que achais de chorar! (...) Chego ao termo da carreira, quando nada
senão males posso esperar, minha morte deve ser motivo de alegria para todos vós.

Acompanhava-o certo Apolodoro, alma simples e extremamente afeiçoada a Sócrates, que lhe
disse:

- Não posso suportar Sócrates, ver te morrer injustamente.

Então se diz que, passando-lhe de leve a mão pela cabeça, Sócrates respondeu:

- Como! Meu caro Apolodoro então preferias me ver morrer justamente?

E ao mesmo tempo sorria”. (XENOFONTE In SÓCRATES, 1996, p. 207).

Em síntese, a ética socrática prescreve uma vida simples, presentificada, vivida sem
medo, valorizadora da verdade e da coletividade.

ÉTICA EPICURISTA

“A ética do Jardim aponta para o prazer sereno como bem supremo e é sustentada no
conhecimento verdadeiro, na ciência da natureza. Crenças errôneas sobre a natureza do
divino tornam-se fonte de tormentos e perturbações. Não se deve procurar agradar com
oferendas nem temer a ira dos Deuses pois eles nada têm a ver com questões humanas.
Epicuro procura libertar a alma dos temores infundados, das crendices.” (PESSANHA,
1992).

Mensagem de Epicuro em carta enviada à sua mãe, encontrada por arqueólogos


franceses no pórtico de uma cidade na Capadócia (Turquia) (PESSANHA, 1992):

“Não há o que temer quanto aos deuses.

Não há nada a temer quanto à morte.

Pode-se alcançar a felicidade.

Pode-se suportar a dor.”

ÉTICA ESTÓICA: AS CARTAS DE SÊNECA

A filosofia estoica nasce na Grécia cerca de um século depois do desaparecimento de


Sócrates. É a filosofia de Zenão, Cleanto e Crisipo. Tem como objeto de reflexão
principal a vida boa, ou, vida “feliz” que é alcançada pelo sábio (VEYNE, 2015, p. 49).
Há, neste sentido, uma mesma, digamos, comunhão de propósitos com a filosofia de
Epicuro.

O estoicismo floresce também na cultura romana com Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio,
por exemplo. Sêneca viveu nos primeiros anos da era cristã (1DC – 63 DC). Escreveu a
partir do âmbito de influência cultural romana.

Sobre o momento e conteúdo das cartas:

Em “Cartas a Lucílio”, obra a partir da qual sistematizamos algumas orientações da


ética senequiana, temos a filosofia de um autor maduro. Os textos foram escritos por
uma pessoa experiente naqueles que viriam a ser os seus últimos anos de vida 3. São
cartas reflexivas que falam sobre a orientação para uma boa vida. Tem, portanto,
conteúdo fundamentalmente ético.

O que é uma vida boa? Uma análise sistemática de “Cartas a Lucílio”.

Uma vida simples, pacata, sem muitas viagens ou excitações de qualquer tipo:

“Se tomares nas mãos o dia de hoje conseguiras depender menos do dia de amanhã;
talvez te apeteça perguntar como procedo eu (...) dir-te-ei com franqueza: como alguém
que vive bem, mas sem esbanjamento. Tenho as minhas contas em dia!” (p. 2).

“não viajas continuamente nem te deixas agitar por constantes deslocações. Um


semelhante deambular é o início duma alma doente: eu, de fato, entendo que o primeiro
sinal de um espírito bem formado consiste em ser capaz de parar e coabitar consigo
mesmo.” (p. 3). “Não é pobre quem tem pouco, mas sim quem deseja mais” (p. 4).

Uma vida vivida sem grande apego as coisas, sem grandes ambições e com
discrição, sem chamar a atenção:

“Nenhum objeto dá bem estar ao seu possuidor senão quando esse está preparado para
ficar sem ele” (p. 8). “Evita tudo quanto se torna notado quer na tua pessoa, quer no seu
estilo de vida.” (p. 10).

3
“[as cartas a Lucílio] são a forma mais amadurecida do seu pensamento [Sêneca]; [elas contem] uma
soma de reflexões sobre enorme variedade de problemas, na sua totalidade de caráter ético” (CAMPOS In
SÊNECA, 2014, p. V)
“Para começar não devemos ter ambições (...) em segundo lugar não devemos possuir
nada capaz de ser aliciante para um eventual salteador (...) qualquer ladrão deixa em paz
quem nada tem (...)” (p. 46).

“Se quiseres estar livres para cuidares da alma deverás ser pobre, ou fazer vida de
pobre. O estudo da filosofia não dará fruto se não adotares uma vida frugal; ora, a
frugalidade não passa de pobreza voluntária.” (p. 58).

Uma vida sábia e boa é uma vida que envolve o conhecimento interior. Envolve,
portanto, uma dose de reflexão. Isso não significa necessariamente uma vida
completamente isolada dos outros, em puro ato de contemplação individual, mas
uma vida equilibrada onde a felicidade seja buscada dentro de si:

“Os teus autênticos bens são apenas de foro íntimo.” (p. 18).

“[o sábio] embora se baste a si próprio, precisa de ter amigos; deseja mesmo tê-los no
maior número possível, mas não para vier uma vida feliz, pois é capaz de viver uma
vida feliz mesmo sem amigos.” (p. 25).

“Não te interessa a opinião dos outros: é sempre incerta, há sempre divisão de


opiniões.” (p. 99).

Uma vida boa é uma vida sem medo e sem angústias. É uma vida “presentificada”,
ou seja, vivida no presente mais radical. Há nisso um caráter terapêutico:

“O mais feliz dos homens, o dono seguro de si próprio é aquele que aguarda sem
ansiedade o dia seguinte. Quem cotidianamente diz ‘vivi!’” (p. 36).

“O pânico que nos toma apensa provém de suspeitas e ilusões. (...) Não há tipo de terror
tão funesto, tão incontrolável como o pânico; se o medo faz perder a razão o pânico gera
a completa loucura. É natural que no futuro nos suceda um mal qualquer, o fato é que de
momento ainda não existe. (...) Mesmo que seja no futuro para quê começar a sofrer
antecipadamente?” (p. 42).

O sábio tem firmeza de caráter; não é mal-humorado, mas também não é de ficar
fazendo graça. Hoje se diz, “enfrentar a adversidade estoicamente”; sem grandes
perturbações mesmo em momentos de sofrimento:

“O que nós estoicos, de fato afirmamos é que tudo o que nos suscita múrmuros e
suspiros não tem a mínima importância e só merece desprezo.” (p. 40).
“Dize-me que te preocupa qual será o resultado de um processo intentado contra ti por
um inimigo furibundo e julgas que eu te poderei persuadir-te a teres melhores
pensamentos e a te deixares embalar por esperanças lisonjeiras. Mas para quê estares a
sofrer antecipadamente com os teus males, que aliás se farão sentir bem depressa e a
estragares o presente com o medo do futuro?” (p. 87).

Uma vida boa é uma vida equilibrada; sem excessos; ponderada.

“Admito que é inata em nós a estima pelo próprio corpo, admito que temos o dever de
cuidar dele. Não nego que devamos dar-lhe atenção, mas nego que devamos ser seu
escravo.” (p. 44).

“Estamos em dezembro: a cidade está coberta de suor! A ostentação desregrada invadiu


toda a vida coletiva. (...) Será de fato uma prova segura de firmeza de animo não
acompanhar, não se deixar guiar por um ambiente aliciador de concessões à volúpia. Se
é indício de maior constância mantermo-nos inteiramente sóbrios em meio de uma
multidão ébria a ponto de vomitar, será mais moderada a nossa atitude se não situarmos
à margem, não nos tornando notados nem nos deixando absorver na turba (...)” (p. 62).

“o resultado duma cólera extrema é a insânia, e por isso não há que evitar a cólera, não
tanto por obediência à moderação, como para conservar a sanidade mental!” (p. 65).

A filosofia como “ação” para a vida boa, ou seja, a filosofia como orientação ética
comportamental efetiva:

“O objetivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma, em ensinar-


nos um rumo na vida, em orientar os nossos atos, em apontar-nos o que devemos fazer
(...)”. (p. 55). “A filosofia nos ensina a agir, não a falar(...)” (p. 70).

A vida boa é sóbria

“Não pense que te escrevo para dizer como o inverno, que, aliás, foi curto e pouco
rigoroso, se portou bem conosco, ou como a primavera está desagradável, ou como o
frio chegou fora de tempo! Isso são frioleiras próprias de quem fala por falar. Eu só
escrevo aquilo que sinto ter utilidade (...) O que tens a fazer antes de mais, caro Lucílio,
é aprender a ser alegre. (...) O meu desejo é que a alegria habite sempre em tua casa (...)
acredita-me, a verdadeira alegria é uma coisa muito séria. Julgas tu que se pode pensar
em desprezar a morte, em abrir as portas à pobreza, em refrear os prazeres, em exercitar
a capacidade de suportar a dor – e tudo isso sem franzir a testa, sempre com o rosto,
como diriam os nossos jovens pretensiosos, descontraído? Quem interioriza estes
pensamentos alcança uma grande alegria, mas de ar pouco sorridente!” (p. 85).

A vida boa exige humildade

[respondendo pergunta de Lucílio: “Quem és tu para me dar conselhos?”] “É como


companheiro de sanatório que falo contigo da nossa enfermidade e te dou parte dos
medicamentos que uso. Escuta, portanto, as minhas palavras como se estivesses me
ouvindo a falar com meus botões (...)” (p. 101).

ÉTICA EM SCHOPENHAUER

Schopenhauer não fundamenta a sua filosofia numa visão dualista de mundo. A visão
materialista do filósofo se concentra em muitos momentos em nos fazer “ver” que
estamos sempre diante de uma ilusão: a ilusão da nossa separação radical da matéria que
nos cerca. Nós somos o todo, nascemos dele e retornaremos a ele.

Trata-se de uma postura, digamos, existencialista que nos indica que a vida é um
pequeno acontecimento de subjetividade localizado temporalmente entre o nascimento e
a morte. É nesse particular, inclusive, que podemos perceber um aspecto interessante da
obra de Schopenhauer: a sua proximidade da visão de mundo oriental. Não é
infrequente as menções a literatura sânscrita ou ao pensamento budista.

Para o autor, o fundamento da ação moral é a “piedade”. Para ele a piedade é um fato da
existência humana “admirável” e “misterioso”. É justamente a piedade que torna
possível aos seres humanos transpor a ideia de que somos totalmente separados uns dos
outros (2014, p. 109). Alguns apontamentos específicos:

Nós somos parte da natureza – somos imortais – ressignificação da “vida após a


morte”.

“Ora o homem é a natureza, a natureza no mais alto grau de consciência de si mesma;


se, portanto, a natureza é apenas o aspecto objetivo da vontade de viver, o homem uma
vez convencido disso, pode com razão sentir-se consolado completamente com a sua
morte e a dos seus amigos: só tem que dar uma olhada na natureza imortal: esta
natureza, no fundo é ele. Eis, portanto, o que quer dizer Xiva com o linga (...)”
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 290).
“[sobre a justiça eterna] As expressões são variadas; aqui está uma em particular:
perante os olhos do neófito desfila a série de seres vivos e sem vida, e sobre cada um
deles é pronunciada a palavra invariável, que se chama, por este motivo a Fórmula, a
Mahavakya: Tatoumes, ou mais corretamente Tat tvam asi, isto é, “Tu és isto”
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 373).

O caráter “indescritível” da bondade; da virtude. A virtude somente pode ser


percebida no comportamento não nas palavras.

“Com efeito, a virtude resulta, na verdade, do conhecimento, só que não do


conhecimento abstrato, daquele que se comunica através de palavras. (...) a bondade
sincera, a virtude desinteressada, a verdadeira nobreza não têm sua origem no
conhecimento abstrato (...) não é nas palavras que obtém a sua expressão adequada, mas
apenas nos fatos, nos atos, na conduta de uma vida de homem.” (SCHOPENHAUEER,
2001, p. 386; 388).

A vida boa – de alguém justo – somente é possível quando se tem consciência que
somos parte do todo/natureza; que o “indivíduo” é apenas uma ilusão – o véu de
Maya. A ética depende de se abandonar a ilusão da subjetividade/individualidade.

“Digamos, portanto, em poucas palavras que se denomina justo quem quer que
reconheça espontaneamente os limites traçados só pela moral entre o certo e o injusto e
que o respeita, mesmo na ausência do Estado, ou de qualquer outro poder capaz de os
manter (...) [o indivíduo justo] para aumentar o seu bem-estar nunca irá infligir
sofrimentos ao outro (...) na mesma medida o seu olhar fura o princípio da individuação,
o véu de Maya: ele coloca o seu semelhante em pé de igualdade consigo; não lhe faz
mal” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 389).

A vida boa é a vida simples

“Querer o menos possível e conhecer o mais possível, eis a máxima que conduziu
minha trajetória de vida” (SCHOPENHAUER, 2009, p. 3).

“A felicidade do homem ordinário reside na alternância entre trabalho e prazer: para


mim, ao contrário, ambos são uma coisa só.” (SCHPNEHAUER, 2009, p. 7).

O sábio enfrenta a morte sem medo. Vence a angústia existencial pela consciência
do “todo”; da natureza e, portanto, da nossa continuidade.
“Sempre desejei uma boa morte, pois quem durante toda vida foi só, decerto saberá
enfrentar melhor que outro esse negócio solitário. Em vez de ser tomado pelo berreiro
próprio a limitada capacidade dos bípedes, expirarei na alegra consciência de ter
cumprido a minha missão, e de retornar para lá, de onde emergi, altamente agraciado.”.
(SCHOPENHAUER, 2009, p. 69).

“O que serás após a morte – embora seja nada – será para ti tão natural como é agora o
teu ser orgânico individual; portanto, deverias temer o instante da travessia. (...) Uma
vez que a existência é essencialmente pessoal, tampouco o termino da personalidade
pode ser considerado uma perda.” (SCHOPENHAUER, 2016, p. 31).

“A matéria pela sua persistência absoluta assegura-nos uma indestrutibilidade em


virtude da qual aquele que fosse incapaz de conceber uma outra poderia consolar-se
com uma ideia de certa imortalidade. ‘O quê?’ – dir-se-ia – a persistência de um mero
pó, de uma matéria bruta, seria a continuidade do nosso ser? Conhecem então esse pó,
sabem o que ele é e o que pode ser? Antes de o desprezarem aprendam a conhece-lo.
Essa matéria que não é mais que pó e cinza, dentro em pouco dissolvida na água, vai se
tornar num cristal (...) moldar-se em plantas e animais e do seu seio misterioso
desenvolver enfiem essa vida (...)” (SCHOPENHAUER, 2014, p. 88).

A vida é movimento; é inconstância – infere-se – o desapego.

“Nossa existência não tem nenhuma base na qual apoiar-se mais que o presente que se
desvanece. Por isso, tem por forma o movimento constante, sem possibilidade alguma
de descanso pelo qual ansiamos.” (SCHOPENHAUER, 2016, p. 77).

A vida boa é presentificada.

“As cenas de nossa vida assemelham-se às imagens de um mosaico bruto, que, de perto,
não fazem efeito, mas é preciso manter-se longe delas para encontra-las belas. Portanto,
conseguir algo que se deseja intensamente significa descobrir que é inútil; nós sempre
vivemos na expectativa de algo melhor, também muitas vezes e, ao mesmo tempo,
arrependidos, com ânsia do passado. O presente, ao contrário, apenas o aceitamos e por
nada o respeitamos, senão como caminho para o objetivo.” (SCHOPENHAUER, 2016,
p. 79).
“Que tolice é lamentar-se e reclamar de não haver aproveitado no passado a ocasião
desta ou daquela felicidade ou prazer! O que mais ganhamos agora com isso? A múmia
ressecada de uma lembrança.” (SCHOPENHAUER, 2016, p. 89).

A vida boa é aquela onde se controla os desejos; não se é escravo do querer –


infere-se – a vida de alguém que sabe lidar com a frustração.

“Querer é essencialmente sofrer, e como viver é querer, toda a existência é


essencialmente dor.” (SHOPENHAUER, 2014, p. 39).

“O homem seduzido pela ilusão da vida individual, escravo do egoísmo, só vê as coisas


que o tocam pessoalmente, e encontra aí motivos incessantemente renovados para
desejar e querer; pelo contrário, aquele que penetra a essência das coisas, que domina o
conjunto, chega ao repouso de todo o desejo e de todo o querer. Daí em diante, a sua
vontade desvia-se da vida, repele com susto os gozos que a perpetuam. O homem chega
então ao estado de renúncia voluntária, de resignação, da tranquilidade verdadeira e da
ausência absoluta de vontade.” (SCHOPENHAUER, 2014, p. 114).

SPINOZA: ÉTICA

“Baruch Spiniza (1632 – 1677), filosofo holandês, foi excomungado da Sinagoga por
seu liberalismo em matéria de práticas religiosas. (...) [a ética] é uma doutrinada
salvação pelo conhecimento de Deus. Trata-se de um panteísmo (...) [a ética] enquanto
‘tratado de beatitude’ apresenta-se como um racionalismo absoluto (...)” (CHARDIN,
1995, p. 347).

A razão nos leva a uma vida ética que, por sua vez, consiste em nos adequarmos a
natureza. O comportamento justo é racional. A razão nos ajuda a controlar os
desejos; controla o querer; enfrenta a frustração. Uma visão panteísta.

“Chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos.” (SPINOZA,


2019, p. 155).

“(...) na vida é útil, sobretudo, aperfeiçoar, tanto quanto pudermos, o intelecto ou a


razão, e nisso, exclusivamente, consiste a suprema felicidade ou beatitude do homem.”
(SPINOZA, 2019, p. 205).
“Quem compreende a si próprio e os seus afetos, clara e distintamente, ama a Deus”
(SPINOZA, 2019, p. 223).

A Natureza é Deus

“(...) a natureza não age em função de um fim, pois o ente eterno e infinito que
chamamos de Deus ou natureza age pela mesma necessidade pela qual existe.”
(SPINOZA, 2019, p.156).

A vida boa é a vida de acordo com a Natureza

“Quanto ao bem e ao mal, também não designam algo de positivo a respeito das coisas,
consideradas e si mesmas, e nada mais são do que modos de pensar ou de noções, que
formamos por compararmos coisas entre si. Com efeito, uma única coisa pode ser má e
boa ao mesmo tempo (...) Assim, por bem compreenderei aquilo que sabemos, com
certeza, ser um meio para nos aproximarmos cada vez mais do modelo de natureza
humana que estabelecemos. Por mal, por sua vez, compreenderei aquilo que, com
certeza, sabemos que nos impede de atingir esse modelo.” (SPONOZA, 2019, p. 157).

Orientações concretas de vida

“É útil aquilo que conduz à sociedade comum dos homens, ou seja, aquilo que faz com
que os homens vivam em concórdia e, inversamente, é mau aquilo que traz discórdia à
sociedade civil.” (SPINOZA, 2019, p. 185).

“O ódio nunca pode ser bom”. (SPINOZA, 2019, p. 186).

“O soberbo ama a presença dos parasitas ou dos aduladores, enquanto odeia a dos
nobres.” (SPINOZA, 2019, p. 193).

“Não há nada que o homem livre pense menos que na morte e sua sabedoria não
consiste na meditação da morte, mas da vida”. (SPINOZA, 2019, p. 200).

“Não é pelas armas, entretanto, que se pacificam os ânimos, mas pelo amor e pela
generosidade” (SPINOZA, 2019, p. 206).

“É comum que a concórdia seja gerada também pelo medo, mas neste caso, trata-se de
uma concórdia à qual falta a confiança. Acrescente-se que o medo provem da
impotência de animo; e que não diz respeito, por isso, ao uso da razão (...)” (SPINOZA,
2019, p. 207).
“O cuidado com os pobres é uma incumbência da sociedade como um todo e tem em
vista a utilidade comum.” (SPINOZA, 2019, p. 207).

“Quanto ao matrimônio, é certo que esta de acordo com a razão se o desejo de unir os
corpos não é produzido apenas pela aparência física (...)” (SPINOZA, 2019, p. 207).

“(...) O fato é que todas as coisas acabaram por se resumir ao dinheiro. Daí que sua
imagem costuma ocupar inteiramente a mente do vulgo pois dificilmente podem
imaginar outra espécie de alegria que não seja a que vem acompanhada da ideia de
dinheiro como sua causa. Esse vício, entretanto, só pode ser atribuído àqueles que
buscam o dinheiro não porque este lhes falte ou para suprir as suas necessidades, mas
porque aprenderam a arte do lucro, da qual muito se vangloriam.” (SPINOZA, 2019, p.
209).

Referências

CHARDIN, Pierre Teilhard. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1995.

KONSTAN, David. Sócrates em ‘As nuvens’ de Aristófanes. In MORRISON,


DONALD R. Sócrates. São Paulo: Ideias e Letras, 2016.

PESSANHA, José Américo Motta. “As delícias do Jardim”. IMS. 1992. Em:
https://artepensamento.ims.com.br/item/as-delicias-do-jardim/

SANTOS, Bento Silva. Virtude e Eudaimonia nos diálogos socráticos. Síntese. Rev. de
Filosofia. V. 37. N 117. (2010): 5- 26.

SCHOPENHAUER, Arthur. Parerga e paraliponema: pequenos escritos filosóficos.


Porto Alegre: Zouk, 2016.

______. Conhece a ti mesmo. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

______. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

______. As dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014.

SÊNECA, Lúcio Aneu. Cartas a Lucílio. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2014.

SPINOZA, Benedictus. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

XENOFONTE In Os pensadores: Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1996.


HISTÓRIA DAS IDEIAS ÉTICAS (II)

ÉTICA CRISTÃ

Contextualização crítica (psicanálise) – crise ética contemporânea:

“Aunque nuestro sistema económico há enriquecido al hombre materialmente, lo há


emprobrecido humanamente. No obstante, toda la propaganda y los slogans acerca da fe
em Dios del mundo ocidental, de su idealismo, su preocupacion espiritual, nuestro
sistema há creado uma cultura materialista y um hombre materialista. (...) Hay poco
pensamento crítico, poco sentimiento real...” (FORMM, 2013, P. 100; 101).

Sobre o método de análise

A análise cientifica dos valores religiosos – fenomenologia da religião – é uma análise


externa e difere da “analise interna” que pode resultar no fenômeno da Fé Humana.

Muitas vezes a fé se mostra um elemento estruturante da vida humana. A fé conforta e


encoraja. A ciência nos leva a humildade: não se pode saber de tudo; somos
“pequenos”. A fé, sob a perspectiva essencialista é um mistério não perscrutável pelo
pensamento cientifico. É um mistério.

O que o cientista pode fazer com maior facilidade é estudar a religião institucionalizada.
Lembrando Weber (“A ética ...”): as nossas escolhas e ideias religiosas tem repercussão
na maneira como nos comportamos “neste mundo” ou seja“neste mundo”, ou seja, o
cientista da ética analisa o que fazemos nestafazemos nesta vida que vivemos no
planeta terra. É o comportamento concreto das pessoas religiosas que pode ser objeto de
estudo sociológico.

Sob esse olhar sociológico, não se pode deixar de considerar a multiplicidade


institucional do discurso cristão que se dissemina socialmente pela voz institucional dos
agentes dasas igrejas (presbiterianos, pentecostais, neopentecostais, católicos de
diversas vertentes, humanistas, etc.).

Ainda sob o olhar sociológico, pode se dizer que no Brasil atual o protestantismo
institucional (“evangélicos”) vive uma espécie de mudança de status: Deixa de ser
discurso culturalmente periférico e passa a ocupar o centro institucional da República
(bancada institucional no congresso4, associações de juristas e empresários, etc.). Há
uma “capitalização cultural” dos valores do grupo na economia de bens simbólicos5.

A existência dessa multiplicidade institucional do cristianismo nacional e o contexto


cultural atual justificaram, ao nosso ver, o interesse na produção do esboço de análise
sociológica contido na parte final desse texto.

A análise sociológica, no entanto, não é o centro de interesse neste estudo. De certa


maneira tentei responder à pergunta: existem valores compartilhados pelos diversos
grupos de cristãos? Existe um “centro” de valores cristãos? Quais são esses valores?

Tentei formular uma resposta pela leitura do texto de base (o novo testamento) sob uma
chave dupla: uma pragmática – onde se tenta projetar o contexto de vida do cristo
histórico – e uma semântica – quando se tenta interpretar o conteúdo de algumas
passagens.

Metodologicamente falando: buscou-se interpretar o evangelho (Mateus, Marcos, Lucas


e João). Não é uma leitura do processo de institucionalização histórica das primeiras
comunidades cristãs (“Atos” e “Cartas” dos primeiros cristãos de destaque). Nem
tampouco uma interpretação da fala, digamos, “onírica” apresentada por João no
apocalipse (“No dia do Senhor, o espírito tomou conta de mim. E atrás de mim ouvi
uma voz forte como trombeta que dizia...” (Apocalipse, 1, 10).

Em boa medida, o texto organizado abaixo representa uma tentativa de análise sobre os
valores cristãos interessada em um elemento de caráter existencial. Uma análise a
serviço do ser humano e não das igrejas.Apesar da sociologia nos mostrar com clareza a
existência dessas das diversas vertentes institucionais do cristianismo,

No entanto, considero atualmente importante (num momento onde cada vez mais se fala
nos valores cristãos) a análise dos valores crisfundada num outro esquema de
classificação. De acordo com esse olhar que proponho (com base principalmente nas
análises de Erich Fromm), ao invés de ressaltar diferenças nos discursos institucionais

4
Sobre o crescimento da banca evangélica, ver QUADROS; MADEIRA, 2018.
5
Veja, por exemplo, a estratégia de marketing “eu sou universal” onde os “casos de sucesso” apresentam
agentes do público “tradicional” - um morador de rua que se transformou em empresário de sucesso – ao
lado de um público não tradicional – um modelo e uma chefe de cozinha, por exemplo. Em:
https://www.universal.org/eu-sou-a-universal/cases/ Acessado em 03/10/2019.
das igrejas sobre o cristianismo deve-se buscar diferenciar o cristianismo “vivo” do
cristianismo “dogmático”.

Grosso modo: o cristianismo vivo é aquele que é “vivido” pelos cristãos, ou seja, o
cristianismo como elemento constitutivo do caráter já o cristianismo dogmático é aquele
apenas “falado”, ou seja, aquele que está “na boca” das pessoas, mas não nas suas
ações.

Nas sociedades de consumo atuais, apesar de muito “falado” o cristianismo é pouco


“vivido”. O cristianismo se “dogmatiza”; perde vida e se transforma em palavras vazias
como o que diziam os “doutores da lei” nos tempos de Jesus ou os doutores da igreja
católica (o pensamento institucionalizado, na verdade) nos tempos de nascimento do
protestantismo.

“[No ocidente atual] la idea Cristiana aún se utiliza, pero fundamentalmente de forma ideológica, esto es,
sin basarse de forma efectiva en el espíritu y la conduta de la mayoría que profesa essas ideas.”
(FROMM, 2016, p. 214).

Para um questionamento da cristianização efetiva do mundo ocidental:

“Mas a Europa terá sido de fato cristianizada? Não obstante a a resposta afirmativa dada a essa questão,
uma análise mais acuradas demostra que a conversão da Europa ao cristianismo constitui-se num fracasso
geral. O máximo que se pode falar é de uma limitada conversão ao cristianismo ocorrida no século XII ao
XVI e que nos séculos anteriores e posteriores a esse período a conversão foi, na maior parte, uma
ideologia e uma submissão mais ou menos séria à igreja; não significou uma mudança de sentimentos,
isto é, de estrutura de caráter (...)” (FROMM, 1987, p. 141).

Algumas das 95 teses de Lutero6 que indicam o descontentamento com a forma


dogmática da igreja:

45ª Tese. Deve-se ensinar aos cristãos que aquele que vê seu próximo padecer necessidade e a despeito
disto gasta dinheiro com indulgências, não adquire indulgência do papa, mas desafia a ira de Deus.

54ª Tese. Comete-se injustiça contra a palavra de Deus quando, no mesmo sermão, se consagra tanto ou

mais tempo à indulgência do que à pregação da palavra do Senhor.

Outra crítica ao cristão “nominal” vem de outra vertente protestante – a de João Calvino
que nas institutas da vida cristã7 diz:

6
http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_martinho_lutero_95teses.pdf
7
https://frutodagraca.files.wordpress.com/2010/03/institutas-da-religiao-crista-joao-calvino.pdf
“Nesta altura devo dirigir a palavra àqueles que, não tendo nada de Cristo exceto o título, entretanto
querem ser reconhecidos como cristãos. Que atrevimento deles, quererem gloriar-se em seu sacrossanto
nome! (...)

Vê-se, pois, que é baseados em ensinamentos falsos que esses tais dizem que conhecem a Cristo. E com
isso lhe fazem grande injúria, por mais belas que sejam as suas palavras. Porque o evangelho não é uma
doutrina de língua, mas de vida. E, diferentemente das outras disciplinas, não se apreende só pela mente e
pela memória, mas deve envolver e dominar a alma e ter como sede e receptáculo as profundezas do
coração. (...)

...razão temos nós para detestar os palradores que se contentam em ter o evangelho na boca, desprezando-
o totalmente em sua maneira de viver!”

A ética cristã e suas duas chaves de análise: a “vida vivida” de Jesus e a mensagem
de sua falaIntrodução do problema metodológico

Há duas perspectivas – não excludentes quando se interpreta a vida vivida pelo Cristo
histórico – para se identificar a ética cristã. A primeira é o entendimento da ética cristã
como a ética “vivida” por Jesus Cristo. A vida como “modelo” de moralidade cristã.
Nesse sentido buscamos o modelo ético na vida do chamado Jesus Histórico.

A segunda é o entendimento da ética cristã como o exemplo “falado” por Jesus nas suas
pregações. Essa é a ética contida na semântica do evangelho – escritura sagrada do
cristianismo.

Opiniões de quem busca o modelo ético na vida “vivida”:

“A afirmação de que deus se revela indiretamente, através de acontecimentos históricos, pertence ao


núcleo central da fé de Israel ... para nós, esse enunciado adquire pleno cumprimento em Jesus Cristo. Ele
constitui, para o cristão, a chave histórica da revelação de Deus.” (ECHEGARAY, 1982, p. 34).

“Quando falamos em cristologia pretendemos nos limitar ao discurso sobre a própria pessoa de jesus e a
sua missão ... não tocamos, pois, a não ser indiretamente, na mensagem de Jesus.” (SEGALLA, 1992, p.
9).

“Quero provar que Jesus, Ieshua, é o parâmetro daquilo que significa ser cristão”. (SWIDLER, 1993, p.
7).

“[Jesus] foi um herói do ser, do dar, do participar. Essas qualidades constituíam profundo atrativo para os
romanos pobres, bem como para alguns ricos, que tiveram abalado o seu egoísmo.” (FROMM, 1987, p.
142).
“Acresce que, para nos despertar mais vivamente, a Escritura nos demonstra que, assim como Deus em
Cristo nos reconciliou consigo, assim também ele o constituiu em exemplo e padrão ao qual devemos
amoldar-nos.” (CALVINO, p. 48).

Jesus. Imagem inicial. Alguém de fama no seu tempo. Figura “impressionante”.


Causou controvérsias. Sereno, porém, firme. Simples. Inteligente. Corajoso. Não
subserviente. Se movimentava bastante na palestina (beatnik). Falava com multidões. Se
isolava em reflexão. Era alto (fisicamente).

Jesus teve uma vida simples: foi um operário (pobre?) entre os pobres

Jesus com os pescadores:

“E Jesus, andando junto ao mar da Galileia, viu a dois irmãos (..) que lançavam rede ao mar, porque eram
pescadores: E disse-lhes: vinde após mim e eu vos farei pescadores de homens” (Mateus, 4, 18).

Vida simples. Sem apego a bens materiais. Vejamos a cena descrita em Marcos, 10.

[Homem se ajoelha e pergunta] O que faço para herdar a vida eterna?

[Jesus] Cumpra os mandamentos.

[Homem] Já faço isso desde jovem.

[Jesus] Então falta apenas uma coisa: “Vai, vende tudo quanto tens, e dá aos pobres (...)”

Jesus foi um operário (artesão/carpinteiro). Classe média (baixa?) na Galileia:

“[Jesus] trabalhador manual. Não é um homem que levante voo às nuvens, sobre teorias. Suas intuições e
ensinamentos são concretos ...” (LARRANAGA, 1989, p. 23).

“Quem é Jesus? Alguém pobre-livre-disponível-servidor, que percorreu o caminho da pobreza ao amor.”


(LARRANAGA, 1989, p. 118).

“Jesus vem de um pequeno burgo da baixa galileia, Nazaré, afastado dos grandes eixos de circulação. Ele
é filho do carpinteiro da aldeia, José, que desde muito cedo iniciou na sua profissão. Em lugar de um
‘aldeão’ judeu mediterrâneo, ou seja, como um trabalhador de construção como alguns gostam de
qualifica-lo, Jesus, é um artesão, um técnico em madeira, pertence a uma categoria um pouco mais
elevada que os simples operários.” (PETITFILS, 2015, p. 57).

Origem Real (Davi). Por isso Jesus nasceu em Belém – Terra de Davi - (foi ser
“registrado”). (Lucas, 2:4).

Jesus, no seu período de “ministério público”, teve efetivamente uma vida simples.
Vivendo em casas simples (casa de Simão-Pedro em Carfanaum), se vestindo de forma
“mediana” (diferente de João Batista que se vestia com maior “pobreza), com períodos
de isolamento (ascético?) (Geralmente na região montanhosa e desértica a leste do rio
Jordão).

Um missionário que se movimentou bastante (Galileia – Judeia).

Pessoa “inteligente”(olhar sociológico sobre a “inspiração divina”). Educada. Criança,


surpreendeu debatendo com adultos estudiosos no templo de Jerusalém. Depois de
adulto também e chamava a tenção dos estudiosos “Como é que esse homem tem tanta
instrução, se nunca estudou?” (João, 7, 15).

Em geral não passa uma imagem de ascetismo rigoroso. Tem uma imagem de
equilíbrio. (Perguntam para Jesus: “Por que os discípulos de João Batista e os fariseus
fazem jejum e os teus discípulos não fazem?” – Marcos, 2: 18).

Jesus foi para todos – Tende ao lado mais frágil – Acolhe a todos (não maniqueísta)
– todos são dignos de consideração

Ele defendeu a “mulher pecadora” que num jantar na casa de um fariseu lavou os seus
pés. O fariseu não tinha essa pessoa como digna de consideração. Ele “engrandece” a
mulher e perdoa os seus pecados pois ela demostrou “muito amor”. (Lucas, 7, 47).

Defende a mulher adultera que é levada ao templo pelos judeus religiosos. Dá uma
“lição de moral” nos presentes (“Quem de vocês não tiver pecado, atire a primeira
pedra” – João, 8, 7).

As crianças. Jesus atraia uma multidão de pessoas e os discípulos não queriam deixar as
crianças se aproximarem. (“Deixem as crianças vir a mim.” – Marcos, 10: 14).

Ele tinha seguidores de “classe média” é verdade. Entre os 12 primeiros apóstolos veja-
se Levi (Mateus), “servidor público” (coletor de impostos). Até alguns romanos
respeitavam e “aceitavam” Jesus. Ele encontrava com gente “importante” como o
fariseu Nicodemos (João, 3, 1). Ele curou o filho do “funcionário do Rei que tinha um
filho doente” (João, 4, 50).

Jesus ficou hospedado na casa de Zaqueu em Jericó. Zaqueu “era chefe dos cobradores
de impostos, e muito rico.” (Lucas, 19:1).
No entanto, o maior número de seguidores – da multidão que passou a acompanhar
Jesus – era de pessoas em “desvantagem” social (pobres, perseguidos, doentes,
estrangeiros, etc.).

Depois de recomendar um voto de pobreza (entregar tudo aos pobres e seguir Jesus) ele
diz: “É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar
no Reino de Deus!” ( Marcos, 10, 25).

Os gregos (estrangeiros – não judeus) também queriam falar com Jesus depois dele ter
ressuscitado Lázaro e voltado para Jerusalém. Falam com dois discípulos que
(provavelmente falavam grego) Felipe e André e eles falam com Jesus sobre os gregos.
O momento é tenso, Jesus está chegando a Jerusalém e já prevê a sua prisão – mas Jesus
diz “Se alguém que servir a mim que me siga” João, 12, 26).

Cena: Jesus almoçando na casa de Levi (coletor de impostos). Jesus se faz acompanhar
de gente não religiosa e é alvo dos hipócritas: “Por que Jesus come e bebe junto com
cobradores de impostos e pecadores? Jesus respondeu: “As pessoas que tem saúde não
precisam de médico, mas só as que estão doentes.” (Marcos, 2: 16).

Ele conversa “de igual para igual” com a samaritana (“De fato , os judeus não se dão
bem com os samaritanos” – João, 4, 9) quando estava em transito indo da Judéia à
Galileia – e atravessou a Samaria. Jesus pediu água e a mulher disse: “Como é que tu,
sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou samaritana?” (João, 4, 9).

“Felizes de vocês, os pobres, porque o Reino de Deus lhes pertence. Felizes de vocês
que agora tem fome, porque serão saciados. Felizes de vocês que agora choram, porque
hão de rir.” (Lucas, 6:20-21).

Jesus e as mulheres. Andava também com Jesus algumas mulheres que ele havia curado
“de espíritos maus e doenças”. (Lucas, 8: 1).

Jesus de todos. Perguntado sobre o que fazer para receber a “vida eterna” Jesus
responde: ame a Deus e aos seu próximo. E a pergunta seguinte é: “e quem é o meu
próximo”? Conta a história do bom samaritano. O companheiro amado pode estar “do
outro lado”. (Lucas, 10: 25-30).

“Mas os fariseus e os Doutores da Lei criticavam Jesus, dizendo: ‘esse homem acolhe
pecadores e come com eles!’ (...) [Jesus, depois de contar a parábola da ovelha perdida]
E eu lhes declaro: assim, haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte,
do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão.” (Lucas, 15:2-5).

Jesus viveu sem medo – Presentificação – fortaleza

Jesus também se angustiou: [momentos antes da sua prisão] “Tomado de angústia, Jesus
rezava com mais insistência.” (Lucas, 22:44).

Fortalece o espirito. Dá coragem. Promete melhora futura. (Meu reino não é deste
mundo.).

Jesus envia os discípulos para ensinarem nos povoados da região. Diz para eles viverem
um dia de cada vez; acreditando no presente. “Jesus recomendou que não levassem nada
pelo caminho, além de um bastão; nem pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura.”
(Marcos, 6:8).

Jesus diz para os discípulos que saem em pregação – em geral pessoas simples de pouca
instrução – que não tenham medo na hora de falar. Diz que haverá “presença de
espírito”.

Jesus viveu o amor e falava sobre o amor

“Porque a Lei foi dada por Moisés, mas o amor e a fidelidade vieram através de Jesus Cristo.” (JOÃO, 1,
17).

“Eu dou a vocês um mandamento novo, amem-se uns aos outros.” (João, 13, 34).

“O que parece ter impressionado muitos dos contemporâneos de Ieshua na pessoa dele, tornando-os seus
discípulos, deve ter sido sua sabedoria e seu amor interiores ... ele apresentava o ideal de amor
altruístico.” (SWIDLER, 1993, p. 66).

“Ao advogar a vida no amor altruístico [Jesus] instava outros a aprenderem com sua humildade.”
(SWIDLER, 1993, p. 67).

“Em sua própria carne, Jesus chegou a experimentar que Deus não é, antes de tudo, temor, mas amor.”
(LARRANAGA, 1989, p. 40).

“Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam” (Lucas, 6, 27).

“Embora os conceitos possam diferir, uma crença define qualquer ramo do cristianismo: a crença em
Jesus Cristo como salvador da humanidade, que deu sua vida pelo amor de seus semelhantes. Ele foi um
herói do amor, um herói sem poder, que não empregou a força, que não queria governar, que não queria
possuir nada.” (FROMM, 1987, p. 142).

Jesus foi um ser humano livre – falava com autoridade


“Existe, em primeiro lugar, um traço que se destaca com vigor extraordinário: a liberdade de Jesus.”
(ECHEGARAY, 1982, p. 135).

Jesus respeitava a lei dos judeus, mas fazia a sua interpretação (com liberdade). Não
dogmático. Atuava com independência dos “doutores da lei”. (Ver FOX, 1993, p. 104 –
114).

“Jesus ensinava como quem tem autoridade e não como os doutores da lei.” (Marcos,
1:22).

Jesus era livre e falava com autoridade – curou um homem que estava doente - há trinta
e oito anos – num dia de sábado. Ele disse para o homem (paralítico) levantar e carregar
a sua cama (trabalho proibido no sábado). Com isso, o trabalho dos dois em pleno
sábado, Jesus atraiu a raiva das autoridades. Ele interpretava com autoridade (“Meu Pai
continua trabalhando até agora e eu também trabalho.”. – João, 5, 17).

Outro “trabalho” de sábado: cura do “cego de nascença”. (João, 9).

Jesus interpretava a lei com “autoridade”. Isso deixava os “estabelecidos” furiosos.


Depois que Jesus disse que era maior que Abraão os judeus do templo eles chamaram
Jesus de louco e depois quiseram apedreja-lo (“Então, eles pegaram pedra para atirar em
Jesus. Mas Jesus se escondeu e saiu do templo.” João, 8, 59).

A liberdade estava, inclusive, relacionada ao desapego.

“Ora, um pobre de Deus é um homem livre. Quem não tem nada nem quer ter nada não pode temer nada,
porque o temor é um feixe de energias desencadeadas para a defesa das propriedades... (LARRANAGA,
1989, p. 118).

Jesus não foi hipócrita e combateu a hipocrisia

Jesus foi contrário à boa parte da vida religiosa institucionalizada na sua época. Os
judeus – como ele – que iam na Sinagoga “mostrar” para os outros a sua fé eram
comumente criticados. Jesus critica quem valoriza a forma em detrimento do conteúdo.
Jesus era constantemente questionado pelos religiosos estabelecidos sobre a
interpretação da lei judaica.

“Todos estavam escutando Jesus, e ele disse aos discípulos: ‘Tenham cuidado com os
doutores da lei. Eles fazem questão de andar com roupas compridas, e gostam de ser
cumprimentados nas praças públicas. Gostam dos primeiros lugares nas Sinagogas e dos
postos de honra nos banquetes. No entanto, exploram as viúvas e roubam suas casas, e,
para disfarçar, fazem longas orações.” (Lucas, 20:45-47).

“... com a mesma medida com que vocês medirem, também vocês serão medidos...”

Condena a hipocrisia, formalidade fazia. Falar e não fazer. “Os fariseus e os doutores da
lei foram de Jerusalém e se reuniram em volta de Jesus. Eles viram então que alguns
discípulos comiam pão com mão impuras, isto é, sem lavar as mãos. (...) – por que os
teus discípulos não seguem a tradição dos antigos? Jesus: - Isaias profetizou bem sobre
vocês, hipócritas, como está escrito: Este povo me honra com os lábios, mas o coração
deles está longe de mim.” (Marcos, 7:5-6).

Jesus viveu a vida dele sem se preocupar com o “falatório”. Criticava a hipocrisia como
no julgamento da adultera (“Atire a primeira pedra”).

“Não julguem, e vocês não serão julgados; não condenem e não serão condenados;
perdoem e serão perdoados.” (Lucas, 6:37).

“Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e então veras bem para tirar o argueiro que está no olho do
teu irmão”. (Lucas, 6, 42).

[Fala de Jesus] “Acautelai-vos primeiramente do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia... Mas nada há
encoberto que não haja de ser descoberto” (Lucas, 12, 1-2).

Jesus foi agressivo/violento? (sobre a diferença entre agressivo e altivo).

Às vezes, Jesus se exaltava. Ele foi violento?

Há trecho no novo testamento que descreve Jesus um tanto agressivo e irado. Jesus
provavelmente fez “cena”: chamou a atenção no templo. Ele usa um chicote
improvisado de cordas para tanger bichos (que eram vendidos para oferenda), vira
mesas dos comerciantes, e se dirige a elas de maneira firme: “Tirem isso daqui, não
transformem a casa do meu Pai num mercado.” (João, 3)

“E acho no templo os que vendiam bois, e ovelhas, e pombos, e os cambistas assentados... e tendo feito
um açoite de cordões, lançou todos fora do templo ... e disse aos que vendiam pombos: tirai daqui estes e
não façais da casa de meu Pai casa de venda.” (João, 2, 15).
Coragem. Na última ceia com os apóstolos. Jesus tenta afastar o medo. “Eu disse isso
tudo para que vocês não se acovardem” (João, 16, 1). “Neste mundo vocês terão
aflições, mas tenham coragem; eu venci o mundo.” (João, 16, 33).

Coragem. Jesus estava num barco com alguns discípulos. As águas estavam agitadas, O
pessoal tem medo. Jesus meio bravo (ele ameaçou o vento) acalma a água e diz: “Por
que vocês são tão medrosos? Vocês ainda não têm fé?” (Marcos, 4:40).

Jesus já prevendo que a prisão era iminente, prepara o seu grupo para o combate: “(...)
quem tiver bolsa deve pega-la, como também uma sacola; e quem não tiver espada,
venda o manto para comprar uma” [juntaram duas espadas]. Quando chega o momento
da sua prisão, há efetivamente confronto e um dos apóstolos cortou a orelha de um
“policial” (empregado do sumo sacerdote). Mas nesse momento Jesus disse: “Parem
com isso!” (Lucas 22:
47-53).

Então, era a agressividade uma característica central na vida de Jesus? Não, era o amor.

“... a subversão violenta, a matança de outros não corresponde ao seu modo de ser” (RATZINGER,
2011, p. 26).

Ética cristã e humanismo

Apesar dos fundamentos diferentes (Deus e Homem), é possível encontrar semelhanças


entre a ética cristã e a ética humanista.

Por sua vez a ética humanista se encontra, em boa medida, positivada nos documentos
constitucionais modernos definidores dos direitos fundamentais.

“Secularização pode designar a superação de uma falsa sacralidade e o aparecer de um sentimento


religioso mais genuíno.” (HARING, 1976, p. 13).

“Concluindo nosso trabalho, reassumimos, agora, as linhas fundamentais que tornam possível o diálogo
ético com o humanismo moderno, secular ou secularista.” (HARING, 1976, p. 193).

“Muitas vezes o cristão e o humanista secular unem-se na luta contra várias formas de discriminação ...’
(HARING, 1976, P. 195).

“Já São Paulo, encontra uma ponte para o diálogo com os humanistas do seu tempo, influenciados pela
ética estóica, no conceito de consciência e relacionou a fé a convicção sincera da consciência ... o homem
de hoje apela para a consciência quando protesta contra a intolerância dos indivíduos ... contra
preconceitos ... contra a violação cruel das leis promulgadas em favor do bem comum especialmente
daquelas destinadas a tutelar os direitos fundamentais de cada pessoa. Em nome da consciência, são
contestadas, sobretudo, as tentativas de lavagem cerebral.” (HARING, 1976, p. 196).

A ética “falada”: uma síntese moral do sermão da montanha

A doutrina ética da montanha (Mateus, 5). Nele Jesus faz uma interpretação dos
mandamentos antigos – será considerado “grande” no reino dos céus quem:

1. Não matar;
2. Quem não tiver ódio (“encolerizar”) sem motivo com um irmão – devemos
buscar fazer as pazes;
3. Não cometer adultério (nem em pensamento) “qualquer que atentar numa
mulher para cobiçar já em seu coração cometeu adultério com ela”);
4. Não fizer juramentos;
5. Não buscar revanche acima de tudo (“se qualquer te bater na face direita,
oferece-lhe também a outra”);
6. For caridoso (“Dá a quem te pedir.”)
7. Amar a todos, inclusive os seus inimigos (“pois se amardes os que vos amam,
que galardão tendes?”)
8. Fizer o bem sem se preocupar com a publicidade do ato bondoso (“Quando,
pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti”);
9. Não for hipócrita. (“Não julgueis para que não sejais julgados”; “E, quando
orares, não sejas como os hipócritas, pois se comprazem em orar de pé nas
sinagogas e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens.”; “Hipócrita,
tira primeiro a trave do teu olho e então veras claramente para tirar o argueiro do
olho do teu irmão”);
10. Perdoar a quem te faz mal “Se perdoardes aos homens as suas ofensas, também
vosso Pai celestial vos perdoará a vós.”);
11. Tiver uma vida sem apego aos bens materiais (“Não ajunteis tesouros da terra,
onde a traça e a ferrugem tudo consomem ... Mas ajuntai tesouros no céu.”);
12. Viver uma vida “presentificada” sem grande ansiedade pelo futuro (“Não vos
inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si
mesmo. Basta a cada dia o seu mal.”);
13. Agir com os outros da mesma forma que gostariam que agissem consigo próprio
(“tudo o que vós quereis que os homens o façam, fazei-lho também vós”).
14. For prudente – quem seguir às normas éticas do Pai será prudente. (“Todo
aquele, pois, que escuta estas minhas palavras e as pratica, assemelhá-lo-ei ao
homem prudente, que edificou a sua casa sobre rocha.”)

KANT: A ÉTICA DO DEVER

A ética de Kant é a ética do dever. Isso significa que nós, seres racionais, devemos
respeitar a nós mesmos e aos outros seres racionais e agir de maneira ética. Kant
fundamenta a sua ética com base em elementos “terrenos”, ou seja, não busca orientar
as nossas ações a partir do medo de consequências para a nossa vida depois da morte.

“Se nossas vontades e nossos desejos não podem servir de base para a moralidade, o que nos resta então?
Deus é uma possibilidade. Mas essa não é a resposta de Kant.” (SANDEL, 2012, p. 139).

Não podemos descartar completamente, nem tampouco ir além da conjectura, acerca da


influência da criação pietista de Kant na sua formulação. Da mesma forma que os
protestantes históricos valorizam o hard worker Kant valoriza o ser humano que age por
“dever”, o dever de “fazer a coisa certa” 8. É sintomático desse “jeito sóbrio” de se viver
eticamente de Kant a valorização do dever e sua espécie de fixação pela verdade 9.
Podemos dizer que a ética kantiana aponta para uma vida individual marcada pela
presença forte do superego.

Percebemos esse jeito, digamos, sisudo, quando comparamos a reflexão de Kant a de


outros filósofos. Epicuro, por exemplo, fundam sua ética no prazer (ainda que não o
prazer de excessos) e outros, o Cristo, por exemplo, no amor.

Para Kant uma ação tem valor moral quando, mesmo sem interesse, o agente age
considerando o seu dever. Por exemplo, uma pessoa de bem com a vida e “bem de vida”
deve fazer caridade e com isso se sente feliz, isso é esperado e não torna a ação
moralmente valiosa. Agora, se um sujeito infeliz, apesar de ter dinheiro, faz caridade,
apesar de esta não o trazer felicidade ele o faz simplesmente por sentimento de dever
racionalmente percebido. Essa última é uma ação moralmente valiosa. Um ser humano
8
“O que importa para Kant é que a boa ação seja feita por ser a coisa certa – quer isso nos dê prazer quer
não.” (SANDEL, 2012, p. 147).
9
“Kant é muito rigoroso com a mentira. Em ‘Fundamentação’ a mentira é o principal exemplo do
comportamento imoral”. (SANDEL, 2012, p. 165).
de caráter é o que tem noção do seu dever. (Inferência do exemplo de KANT, 2007, p.
28).

Kant não define o “conteúdo” ético que devemos seguir. Isso está de acordo com o que
ele acredita ser o papel de sua “Metafísica dos costumes” no esquema da divisão do
trabalho acadêmico.

“Metafísica dos Costumes, que deveria ser cuidadosamente depurada de todos os elementos empíricos,
para se chegar a saber de quanto é capaz em ambos os casos a razão pura e de que fontes ela própria tira o

seu ensino a priori.” (KANT, 2007, p. 15). Ainda: “... a Filosofia moral assenta inteiramente na sua
parte pura, e, aplicada ao homem, não recebe um mínimo que seja do conhecimento do homem
(Antropologia), mas fornece-lhe como ser racional leis a priori.” (KANT, 2017, p. 16).

Apesar de não definir conteudísticamente o nosso dever, podemos desenvolver o


seguinte esquema simplificado:

Na nossa vida devemos agir com “boa vontade”.

“Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem
limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade. Discernimento , argúcia de espírito, capacidade de
julgar e como quer que possam chamar-se os demais talentos do espírito, ou ainda coragem, decisão,
constância de propósito, como qualidades do temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos coisas
boas e desejáveis; mas também podem tornar-se extremamente más e prejudiciais se a vontade, que haja
de fazer uso destes dons naturais e cuja constituição particular por isso se chama carácter, não for boa.”
(KANT, 2007, p 21). “Moderação nas emoções e paixões, autodomínio e calma reflexão são não somente
boas a muitos respeitos, mas parecem constituir até parte do valor íntimo da pessoa; mas falta ainda muito
para as podermos declarar boas sem reserva (ainda que os antigos as louvassem incondicionalmente).
Com efeito, sem os princípios duma boa vontade, podem elas tornar-se muitíssimo más, e o sangue--frio
dum facínora não só o torna muito mais perigoso como o faz também imediatamente mais abominável
ainda a nossos olhos do que o julgaríamos sem isso.” (KANT, 2007, p. 22).

Mas o que é agir com boa vontade? É respeitar a lei da razão. Um ser humano de
“caráter” é o que tem noção desse dever. Diz Kant “Dever é a necessidade de uma ação
por respeito à lei”. (KANT, 2007, p. 31).

Somo livres e racionais. Somos livres, mas não podemos fazer tudo. Devemos obedecer
a uma lei ditada pela razão. Uma lei que nós mesmos fazemos 10, daí a nossa liberdade.
Isso é um imperativo; categórico. Que lei é essa?

10
Trata-se de uma formulação no campo moral-individual que corresponde àquela formulada no campo
político-coletivo por Rousseau. Obedecemos as leis porque a lei corresponde a vontade geral.
“Uma vez que despojei a vontade de todos os estímulos que lhe poderiam advir da obediência a qualquer
lei, nada mais resta do que a conformidade a uma lei universal das acções em geral que possa servir de
único princípio à vontade, isto é: devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a
minha máxima se torne uma lei universal.” (KANT, 2007, p. 33). “O imperativo categórico é portanto só
um único, que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal.” (KANT, 2007, p. 59).

Então, para Kant, para guiar as nossas condutas na Terra, devemos “fazer o teste” do
imperativo categórico, ou seja, se a ação ou omissão puder ser universalizada (ser
adotada como modelo por todos), então, estamos agindo de maneira coerente com o
nosso dever e podemos julgar essa ação como eticamente positiva.

“Temos que poder querer que uma máxima da nossa acção se transforme em lei universal: é este o cânone
pelo qual a julgamos moralmente em geral.” (KANT, 2007, p. 62).

“O teste da universalização conduz a um importante questionamento moral: é uma forma de verificar se o


que estamos a ponto de fazer coloca nossos interesses e nossas circunstâncias especiais acima das de
qualquer outra pessoa.” (SANDEL, 2012, p. 154).

Um exemplo de julgamento da conformidade de uma ação com o imperativo categórico:

“Uma outra pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro emprestado. Sabe muito bem que não
poderá pagar, mas vê também que não lhe emprestarão nada se não prometer firmemente pagar em prazo
determinado. Sente a tentação de fazer a promessa; mas tem ainda consciência bastante para perguntar a
si mesma: Não é proibido e contrário ao dever livrar-se de apuros desta maneira? Admitindo que se
decidia a fazê-lo, a sua máxima de ação seria: Quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo
emprestado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá. Este princípio do amor de si mesmo
ou da própria conveniência pode talvez estar de acordo com todo o meu bem-estar futuro; mas agora a
questão é de saber se é justo. Converto assim esta exigência do amor de si mesmo em lei universal e
ponho assim a questão: Que aconteceria se a minha máxima se transformasse em lei universal? Vejo
então imediatamente que ela nunca poderia valer como lei universal da natureza e concordar consigo
mesma, mas que, pelo contrário, ela se contradiria necessariamente. Pois a universalidade de uma lei que
permitisse a cada homem que se julgasse em apuros prometer o que lhe viesse à ideia com a intenção de o
não cumprir, tornaria impossível a própria promessa e a finalidade que com ela se pudesse ter em vista;
ninguém acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas de tais declarações como
de vãos enganos.” (KANT, 2007, P. 60).

Então, basta agir com os outros como achamos que eles deveriam agir conosco? Essa é
a regra de ouro. É isso que Kant quer dizer? Não.

“O imperativo categórico de Kant ... não seria isso a mesma coisas da regra de ouro? (Faça aos outros o
que deseja que os outros façam a você). Não. A regra de ouro depende de fatos contingentes que variam
de acordo com a forma como cada um gostaria de ser tratado. O imperativo categórico obriga-nos a
abstrair essas contingências e a respeitar as pessoas como seres racionais, independente do que ela possa
desejar em uma determinada situação.” (SANDEL, 2012, p. 157).

Então, para Kant, não se trata de agir conforme o nosso querer, trata-se de verificar se a
minha ação pode ser uma ação universal. De certa forma podemos dizer que a ética
kantiana é aquela que aponta para uma ação humana que vá para além do querer, trata-
se do dever.

Por exemplo, ao saber de uma grave doença da sua mãe, que já demostra não estar
completamente consciente, você se questiona sobre se deve ou não a contar. Se você
mesmo, estando na situação da sua mãe, não gostaria que te contasse, de acordo com a
regra de ouro deveria fazer o mesmo com a sua mão. Submetendo ao teste do
imperativo categórico de Kant, vê se o “dever” de contar na medida em que a mentira
não pode se tornar universal.

WEBER: A ÉTICA PROTESTANTE E O NASCIMENTO DA CULTURA


CAPITALISTA

O estudo de Weber foi feito a partir da realidade da Alemanha no final do século XIX e
início do século XX. Também foi fundamental no contexto de formulação do trabalho
sobre o “espírito” do capitalismo a visita que ele fez aos EUA no início do século XX.

Quando fala dos “protestantes” fala do protestantismo histórico materializado nos


seguintes grupos: calvinismo; pietismo; metodismo; anabatistas (WEBER, 2004, p. 87).
Trata, em especial, do Calvinismo que, de acordo com ele “parece ter mais afinidade
eletiva com o rígido senso jurídico e ativo do empresário capitalista-burguês.”
(WEBER, 2004, p. 126)

Devemos perceber que o estudo trata da cultura capitalista na sua fase de formação – do
iluminismo a revolução industrial, grosso modo – por isso percebemos a ligação com o
“jeito de ser “sóbrio” do hard worker, ou seja, do trabalhador que tem o “dever” de
trabalhar.

“... essa ideia singular, hoje tão comum e corrente ... da profissão como dever ... é essa ideia que é
característica da ‘ética social’ da cultura capitalista ...” (WEBER, 2004, p. 47).

“O ‘tipo ideal’ de empresário capitalista ... não tem nenhum parentesco com esses ricaços de aparência
mais óbvia ... ele se esquiva à ostentação e à despesa inútil, bem como ao gozo consciente do seu poder ...
sua conduta de vida, noutras palavras, comporta quase sempre certo lance ascético.” (WEBER, 2004, p.
63).

Hoje o capitalismo do hiperconsumo e da especulação pura tem outras características. O


capitalismo “ostentação”.

Observação empírica que funciona como ponto de partida para a curiosidade cientifica
de Weber:

“O caráter predominantemente protestante dos proprietários do capital e empresários ...” (WEBER, 2004,
p. 29).

Além disso Weber atenta para o fato de existir, na formação escolar para os postos
técnicos e para as “profissões comerciais e industriais” uma predominância dos
protestantes (WEBER, 2004, p. 32).

O autor atribui a existência da orientação de vida fundada no “espírito de trabalho” e de


“progresso” ao protestantismo (WEBER, 2004, p. 38).

O autor utiliza o sermão de Benjamin Franklin como exemplo documental do espírito


do capitalismo, WEBER, 2004, p.42:

“Lembra-te que tempo é dinheiro; aquele que com seu trabalho pode ganhar dez xelins ao dia e
vagabundeia metade do dia ... não deve, mesmo que gaste apenas ses pence para se divertir, contabilizar
só essa despesa na verdade gastou, ou melhor, jogou fora, cinco xelins a mais. Lembra-te que crédito é
dinheiro. Se alguém me deixa ficar com seu dinheiro depois da data de vencimento, esta me entregando
os juros ... Lembra-te que dinheiro é procriador por natureza e fértil ... Lembra-te que um bom pagador é
senhor da bolsa alheia. Quem é conhecido por pagar pontualmente na data combinada pode a qualquer
momento pedir emprestado todo o dinheiro que seus amigos não gastam... nada contribui mais para um
jovem subir na vida do que pontualidade e retidão em todos os seus negócios... As pancadas do teu
martelo que teu credor escuta às cinco da manhã ou às oito da noite os deixam seis meses sossegado; mas
se te vê à mesa de bilhar ou escuta tua voz numa taberna quando devias estar a trabalhar, no dia seguinte
vai te reclamar o reembolso ...”]

É importante lembra que Weber não afirmar que a formação da estrutura capitalista é
uma consequência de uma ação planejada pelos protestantes. Não se trata de algo
consciente e intencional do religioso – a formação do capitalismo.

“A salvação da alma, e somente ela, foi eixo de sua vida e ação [dos reformadores]. Seus objetivos éticos
e os efeitos práticos de sua doutrina estavam ancorados aqui e eram, tão só, consequências de motivos
puramente religiosos. Por isso temos que admitir que os efeitos culturais da reforma foram em boa
parte ... consequências imprevistas e mesmo indesejadas do trabalho dos reformadores...” (WEBER,
2004, p. 81).

No entanto, ressalta Weber, as nossas escolhas ideais de uma ética religiosa, tem
repercussões “neste mundo”,

“... o que nos cabe é tornar um pouco mais nítido o impacto que os motivos religiosos ... tiveram na
trama do desenvolvimento da nossa cultura moderna especificamente voltada para ‘este mundo’”
(WEBER, 2004, p. 82).

Dentro da ideologia protestante, a ideia de “amor ao próximo” gradativamente se


transforma na ética do “trabalho duro”, ou seja, o protestante trabalha duro para
materializar o seu amor pela humanidade, fazendo sempre o seu melhor e seguindo
rigorosamente e disciplinadamente, a sua vocação; o seu chamado.

“[no calvinismo] O ‘amor ao próximo’ expressa-se em primeiro lugar no cumprimento da missão


vocacional-profissional ...” (p. 99) “A exortação do apóstolo a ‘se segurar’ no chamado recebido é
interpretada aqui, portanto, como dever de conquistar na luta do dia a dia a certeza subjetiva da própria
eleição e justificação... disciplinam-se dessa forma aqueles ‘santos’ autoconfiantes ... distingue-se o
trabalho profissional sem descanso como meio mais saliente para conseguir essa autoconficança.”
(WEBER, 2004, p. 102).

A ética protestante, diferente do cristianismo católico, não vê problema no dinheiro –


Deus gosta do hard worker – Vê problema, no entanto, no consumo desenfreado. É
permitido, porém, que se gaste com uma vida confortável.

“a luta contra a concupiscência da carne não era .... uma luta contra o ganho ... às pessoas de posses ela
queria impingir não a mortificação, mas o uso da propriedade para coisas necessária e úteis em termos
práticos ... a noção de comfort circunscreve de forma característica o âmbito de seus empregos eticamente
lícitos.” (WEBER, 2004, p. 156).

GRUPOS NEOPENTECOSTAIS NO BRASIL

Do protestantismo pentecostal ao neopentecostal no Brasil:

“O movimento religioso conhecido como pentecostalismo surge nos Estados Unidos no início do século
XX e é, em grande parte, herdeiro da Reforma Protestante do século XVI. É o último dos três grandes
impulsos da Reforma, depois do puritanismo e do metodismo.” (TORRES, 2007, p. 105).

“A chegada do pentecostalismo no Brasil foi quase concomitante com o seu surgimento nos Estados
Unidos. Lá ele surgiu em 1906 e aqui em 1910, quando missionários fundaram a Congregação Cristã no
Brasil. No ano seguinte foi fundada a Assembléia de Deus. (...) Esta primeira onda expansionista,
classificada como clássica, foi absoluta entre 1910 e 1950.” (TORRES, 2007, p. 106).

“O pentecostalismo clássico abrange as igrejas pioneiras: Congregação Cristã no Brasil e Assembléia de


Deus.” (MARIANO, 2004, p. 123).

“A terceira onda expansionista, chamada de neopentecostalismo ... tem como núcleo central de expansão
no Brasil o Estado do Rio de Janeiro. Na década de 1970 surgiram as primeiras igrejas desta vertente,
oriunda da ação de missionários norte-americanos que “inovaram” o discurso religioso brasileiro a partir
da divulgação da Teologia da Prosperidade.” (TORRES, 2007, p. 107).

“O neopentecostalismo teve início na segunda metade dos anos de 1970. Cresceu, ganhou visibilidade e
se fortaleceu no decorrer das décadas seguintes. A Universal do Reino de Deus (1977, RJ), a
Internacional da Graça de Deus (1980, RJ), a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1976, GO) e a
Renascer em Cristo (1986, SP), fundadas por pastores brasileiros, constituem as principais igrejas
neopentecostais do país. (MARIANO, 2004, p. 123-124).

As características da igreja pentecostal:

“Suas características principais têm a ver com uma rejeição radical e sectária do mundo, construída
reativamente em relação ao modo de vida das classes médias secularizadas: rechaçavam o uso do rádio e
de atributos de vaidade que ressaltavam a beleza feminina, do mesmo modo, condenavam a participação
em festas e outras atividades que fossem tidas como do “mundo””. (TORRES, 2007, p. 106).

As características das igrejas neopentecostais:

“O sucesso dessas igrejas é antes explicado pela sua técnica comunicativa e pela indigência material,
intelectual e espiritual do povo que a ela adere do que pela sua mensagem é que tida como quase nula.”
(MARIZ, 1995, p. 41).

“As igrejas pentecostais autônomas têm forte ênfase na trilogia: cura, prosperidade e libertação (ou
exorcismo).” (MARIZ, 1995, p. 41).

“No plano teológico, caracterizam-se por enfatizar a guerra espiritual contra o Diabo e seus representantes
na terra, por pregar a Teologia da Prosperidade, difusora da crença de que o cristão deve ser próspero,
saudável, feliz e vitorioso em seus empreendimentos terrenos, e por rejeitar usos e costumes de santidade
pentecostais, tradicionais símbolos de conversão e pertencimento ao pentecostalismo.” (MARIANO,
2004, p. 123-124).

As “faces mais visíveis da influência religiosa sobre o empreendedorismo econômico”


foram sistematizadas por SOUZA (2011, p. 15): a. existência de associações de
empresários evangélicos; b. as organizações religiosas de mídia e marketing; c. as redes
de televisão e rádio ligadas a Igreja; d. a forma de gestão definitivamente
empreendedora de determinadas denominações pentecostais e e. o grau de
profissionalização dos novos pastores.

A teologia da prosperidade

“Esta Teologia reafirma uma concepção de divindade já presente no imaginário religioso de nossa
sociedade, cuja força se manifesta exatamente mediante benesses materiais concedidas aos fiéis, como
recompensa pela adoração bajuladora. Deus passa a ser percebido como terapeuta das mazelas “deste
mundo”, pois cura doenças, concede prosperidade econômica e até mesmo conforto afetivo-sexual aos
seus seguidores.”” (TORRES, 2007, p. 107).

“A Teologia da Prosperidade advoga que o cristão, além de liberto do pecado original pelo sacrifício
expiatório de Cristo, tem o direito, já nesta vida e neste mundo, à saúde física perfeita, à prosperidade
material e a uma vida abundante, livre do sofrimento e das artimanhas do diabo (MARIANO, 2003b,
p.242). Com isso, a figura do diabo também ganha uma outra interpretação, assumindo um papel de maior
destaque e importância. É implementada uma luta contra o diabo e seus aliados, já que são eles que
causam todos os males...” (TORRES, 2007, p. 108).

“Na IURD, a chamada “teologia da prosperidade” tem, acima de tudo, o sentido prático de recusar o
fracasso – “pare de sofrer!” – como forma de delimitar a identidade social por oposição reativa a um
exemplo negativo que, claro, só pode ser a imagem do fracassado, daquele que não pôde fugir das
artimanhas dos encostos e de sua ação indiscriminada e constante...” (TORRES, 2007, p. 113).

“... a “máquina narrativa” neopentecostal torna-se uma prática discursiva que reforça a ideologia do
mérito, fazendo-a assumir a semântica mágica segundo a qual merece fracasso ou sucesso quem for mais
hábil na manipulação das forças sobrenaturais que regem a distribuição de derrotas ou de vitórias.”
(TORRES, 2007, p. 115).

“Chamada também de Health and Wealth Gospel, Faith Movement, Faith Prosperity Doctrines e Positive
Confession, a Teologia da Prosperidade surgiu nos Estados Unidos, na década de 1940, no âmbito de
grupos evangélicos que enfatizavam crenças sobre cura, prosperidade e poder da fé.” (SOUZA, 2011, p.
14).

Comentário atual. No Brasil atual, os agentes que representam socialmente as ideias


do protestantismo pentecostal e neopestecostal vivem uma espécie de mudança de
status: deixam de ser discurso periférico e passam a ocupar o centro institucional da
República (bancada institucional no congresso11, associações de juristas e empresários,
etc.). Decorre daí, certamente, certo “refinamento” cultural recente. Esse refinamento
pode ser sociologicamente entendido como uma aquisição de “capital cultural” na
economia de bens simbólicos12.
11
Sobre o crescimento da banca evangélica, ver QUADROS; MADEIRA, 2018.
12
Veja, por exemplo, a estratégia de marketing “eu sou universal” onde os “casos de sucesso” apresentam
agentes do público “tradicional” - um morador de rua que se transformou em empresário de sucesso – ao
Referências

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FOX, Robin Lane. Bíblia: verdade e ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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MARIZ, Cecília Loreto. Perspectivas Sociológicas sobre o Pentecostalismo e o


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PETITFILS, Jean-Christian. Jesus: a biografia. São Paulo: Benvirá, 2015.

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SOUZA, André Ricardo. O empreendedorismo neopentecostal no Brasil. Ciências


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lado de um público não tradicional – um modelo e uma chefe de cozinha, por exemplo. Em:
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SWIDLER, Leonard. Ishua: Jesus Histórico, cristologia, ecumenismo. São Paulo:
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TORRES, Roberto. Neopentecostalismo e o novo espírito do capitalismo na


modernidade periférica. Perspectivas, São Paulo, v.32, p. 85-125, jul./dez. 2007.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia


das Letras, 2004.

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