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MESTRADO EM HISTÓRIA, RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COOPERAÇÃO

A UNESCO e a proteção do património cultural


O caso da Síria no século XXI

Carolina Pinto

M
2023
Carolina Pinto

A UNESCO e a proteção do património cultural


O caso da Síria no século XXI

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em História, Relações Internacionais e


Cooperação, orientada pela Professora Doutora Alice Duarte e pelo Professor Doutor
Luís Grosso Correia

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

2023

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Sumário

Declaração de honra......................................................................................................... 5
Agradecimentos................................................................................................................ 6
Resumo ............................................................................................................................. 7
Abstract ............................................................................................................................ 8
Introdução ........................................................................................................................ 9
1. Os processos do património cultural ......................................................................... 14
1.1.O Património cultural ............................................................................................. 14
1.2.A proteção do património cultural ......................................................................... 22
1.3.A destruição de património cultural....................................................................... 27
1. 4. A reconstrução do património cultural................................................................. 32
2. A UNESCO e o sonho de solideriedade internacional para o património cultural .... 40
2.1.A UNESCO ............................................................................................................... 40
2.2.A UNESCO e a sua linha de pensamento sobre o património cultural: da pretensão
de universalismo à diversidade cultural ....................................................................... 44
2.3.Reconstruir o património cultural na viragem do novo século: uma exceção ou a
nova tendência? ........................................................................................................... 50
3. O património cultural na Síria .................................................................................... 55
3.1.A proteção do património cultural na Síria ............................................................ 55
3.1.2. O início da guerra civil e as ameaças à segurança do património cultural ........ 58
3.2.A destruição de património cultural na Síria: limpeza cultural, financiamento
bélico e o desmoronar dos oásis do Crescente Fértil ................................................... 66
3.2.1. Os ataques ao Património Cultural Mundial e restante património na Síria ... 67
3.2.2. O Estado Islâmico e a destruição de património cultural: entre a campanha de
terror e a eliminação cultural .................................................................................... 70
3.2.3. As destruições de património cultural na ótica da UNESCO e da Comunidade
Internacional .............................................................................................................. 73
3.3.A reconstrução do património cultural na Síria: uma nova esperança? ................ 79

3
3.3.1. A ação das organizações internacionais para a recuperação do património
cultural na Síria .......................................................................................................... 85
3.3.2. Sendo a reconstrução um cenário possível na Síria, em que contornos
acontecerá? ............................................................................................................... 87
4. A “Estrada de Damasco” do Património Cultural Mundial e o sonho de reconstrução:
estudos de caso .............................................................................................................. 92
4.1.O caso da cidade histórica de Alepo....................................................................... 92
4.2.O caso da cidade histórica de Damasco ............................................................... 105
4.3.O caso da cidade arqueológica de Palmira........................................................... 116
Conclusão...................................................................................................................... 129
Fontes ........................................................................................................................... 142
Referências Bibliográficas ............................................................................................. 145

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Declaração de honra
Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizado previamente
noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros
autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da
atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências
bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a
prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

Porto, 31 de maio de 2023

Carolina Pinto

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Agradecimentos
Desejo exprimir os meus agradecimentos a todos aqueles que permitiram que a
presente dissertação se concretizasse.

Aos meus orientadores, que durante vários meses acreditaram em mim e no meu
trabalho, acompanhando-me atentamente e prestando todo o auxílio necessário para a
elaboração da dissertação.

Agradeço aos meus pais e irmã que ao longo de todo o meu percurso académico, mas
em especial durante o processo de investigação e redação da dissertação me deram
apoio incondicional, incentivo e não permitiram que eu desistisse dos meus objetivos.

Aos meus amigos, a quem agradeço a compreensão pelas largas ausências e os convites
adiados.

A todos os que durante meses participaram nesta etapa, ora aconselhando, ouvindo ou
simplesmente acreditando em mim.

A todos os meus sinceros agradecimentos

6
Resumo
A presente dissertação pretende elucidar sobre o posicionamento e os contributos da
UNESCO para a salvaguarda do património cultural no mundo, focando a questão a
partir da guerra civil desencadeada na Síria em 2011 e que perdura até à atualidade.
Importa perceber a utilização do património cultural para atingir objetivos políticos e
como tem sido manipulado durante conflitos armados por organizações internacionais,
governos, grupos armados e as comunidades locais. Analisa os projetos de reconstrução
do Património cultural Mundial na Síria, através dos argumentos contra e a favor, bem
como se é um cenário desejável a nível local, nacional e internacional. Para o efeito foi
analisado os conjuntos de relatórios produzidos pela UNESCO e pelas forças
governamentais sírias sobre o estado de conservação do patirmónio. Conclui-se que o
património cultural é uma arma política usada por diversas instituições, entre as quais
não é exceção a UNESCO, para alcançar o fim político desejado, não sendo utilizado
consensualmente. A exiquibilidade do processo de reconstrução carece ainda de
financiamento adequado, estabilização socioeconómica da popuação síria e o término
da guerra civil.

Palavras-chave: UNESCO; Património cultural; Reconstrução; Síria

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Abstract
This dissertation aims to enlighten on the positioning and the contributions of UNESCO
to safeguard cultural heritage in the world, focusing on the issue from the civil war
unleashed in Syria in 2011 and which continues to the present day. It is important to
understand the use of cultural heritage to achieve political objectives and how it has
been manipulated during armed conflicts by international organisations, governments,
armed groups and local communities. It analyses the World Cultural Heritage
reconstruction projects in Syria, through the arguments for and against, as well as
whether it is a desirable scenario at local, national and international level. To this end,
the sets of reports produced by UNESCO and Syrian government forces on the state of
conservation of heritage was analysed. It is concluded that cultural heritage is a political
weapon used by various institutions, among which UNESCO is no exception, to achieve
the desired political end, not being used consensually. The viability of the reconstruction
process still lacks adequate funding, socio-economic stabilisation of the Syrian
population and the end of the civil war.

Key-words: UNESCO; Cultural Heritage; Reconstruction; Syria

8
Introdução
O conceito de património cultural, a forma como o vivemos e percecionamos,
sofreu alterações desde que tomamos consciência da sua existência até aos nossos dias.
As manifestações culturais e o património cultural nas suas mais diversas expressões e
manifestações encontram-se enraizadas em qualquer sociedade, convivendo-se
diariamente com elas sem que tenhamos sempre plena consciência. A tomada de
consciência da importância e da própria existência de bens patrimoniais acontece de
forma abrupta, quando a ameaça do seu desaparecimento se torna uma realidade, seja
em cenário de conflitos armados ou pelo aparecimento de um grupo de indivíduos que
almeja impor a sua visão sobre o património cultural ou utilizá-lo para fins menos
culturais.

A temática da presente dissertação surge da minha licenciatura em História e


consequente interesse pelo património cultural e seu papel enquanto portador da
memória coletiva e da identidade cultural de uma comunidade, mas também do meu
interesse pelo Médio Oriente, nem sempre compreendido pela ótica ocidental;
causando o medo do desconhecido, do diferente e a construção de estereótipos e
desinformação fruto da nova ameaça a nível internacional – o terrorismo. Além disso, a
minha candidatura a um estágio curricular na sede da UNESCO levou-me a incluir a
perspetiva da organização e o seu envolvimento nos processos de proteção e
salvaguarda patrimonial. Acredito ser importante referir que a Síria se localiza na área
designada como Crescente Fértil, considerado um dos berços das civilizações. Investigar
e pensar sobre a questão da memória, da cultura e do património cultural nesta área, é
de importância crucial para a comunidade que dela usufrui, mas também a nível
mundial. O Crescente Fértil, é uma zona de cruzamento de várias culturas, fruto de
várias ocupações e passagem de civilizações, tornando a Síria e o seu património uma
questão de continuidade e mudança no tempo e no espaço, que necessita ser pensado
cuidadosamente e respeitando a sua memória e diversidade cultural e religiosa.

Identifico como objetivos para a dissertação, mapear a linha de pensamento da


UNESCO sobre o património cultural desde a sua fundação até à atualidade; analisar os

9
esforços que foram desenvolvidos a nível internacional e pelas instituições sírias para
proteger o património cultural; traçar o panorama geral das destruições, a sua tipologia
e o seu impacto na sociedade síria e na comunidade internacional; analisar a situação
atual do património cultural sírio, o que está a salvo, o que foi destruído e o que pode
ser reconstruído.

Em termos de enquadramento teórico, analisei bibliografia (artigos científicos,


capítulos e livros na íntegra) sobre a UNESCO, proteção, destruição e reconstrução de
património cultural a fim de determinar a linha de abordagem a ser adotada na
dissertação. Adoto como problemática a questão da politização do património cultural.
Sendo o património uma construção sociocultural, não tendo um valor inerente, está
sujeito à sua utilização enquanto meio de afirmação de poder ou para fins políticos. A
par disto selecionei fontes produzidas pela UNESCO, ICOMOS, ONU, Banco Mundial,
entre outras organizações internacionais, e instituições governamentais sírias de forma
a poder analisar o estado do património cultural na Síria, as medidas tomadas e os
projetos em curso. Entre as fontes selecionadas foram analisados relatórios sobre os
sítios classificados como Património Mundial; relatórios com pareceres técnicos de
profissionais da UNESCO sobre o ponto de situação do património em cidades na Síria;
notícias de jornais internacionais e sírios, discursos e intervenções da Diretora-geral da
UNESCO; imagens de satélites recolhidas pela ONU nos sítios destruídos. Num estado
mais embrionário da dissertação, pensei ser possível analisar os seis sítios na Síria
classificados como património cultural Mundial, mas tendo em conta o prazo, a
extensão da própria dissertação e o acesso a fontes, optei por reduzir o meu universo
de análise a apenas três dos sítios – Alepo, Damasco e Palmira. Selecionei estas três
cidades a fim de alcançar os objetivos definidos, tendo em atenção a quantidade de
fontes disponíveis, bem como serem os três casos que mais ilustram a politização do
património cultural, se bem que abordada de diferentes perspetivas e objetivos.
Infelizmente, o estágio curricular na UNESCO não foi avante, pelo que não pude
enriquecer a minha investigação com testemunhos e entrevistas a funcionários e
especialistas da organização.

10
A dimensão política é inerente a qualquer realidade humana, incluindo o
património cultural. A própria UNESCO tem objetivos políticos na sua criação, visando a
manutenção da paz pelo fomento da educação, ciência e cultura. A manipulação do
património pela sua proteção, destruição ou reconstrução elucida-nos sobre a
importância que instituições governamentais e não-governamentais dão ao património
cultural como meios para atingir diversos fins. De facto, um novo interveniente irá
juntar-se aos agentes do fenómeno de politização patrimonial, marcando a forma como
o património cultural é abordado – o Estado Islâmico1.

No século XXI, o património cultural passará a ser um alvo durante conflitos


armados, sendo destruído na Síria em contexto de guerra civil sob a forma de ataques
terroristas. Para a presente dissertação, importa perceber a importância de atacar o
património cultural em contexto de conflito armado. Além disso, procura também
identificar a posição da UNESCO, a principal organização internacional sobre cultura e
património cultural, durante os processos de proteção, destruição e reconstrução. É do
interesse e objetivo da tese compreender se, num cenário de pós-guerra civil na Síria,
poderá ser aplicado o cenário de reconstrução patrimonial e o ponto de vista da
UNESCO, a fim de compreender se será uma realidade ou apenas mais uma promessa
de propaganda política.

No capítulo 1 parto para a definição dos conceitos que são utilizados e orientam
a redação da dissertação, baseando-me na história e sua aplicação ao longo dos tempos,
bem como nas definições sugeridas por autores e especialistas internacionais sobre
património. Assim, neste capítulo, o foco prendeu-se com a definição de património
cultural: o que é, como surge, em que formas se manifesta e como é que organizações
internacionais, como a UNESCO, lidam com ele e a importância que lhe atribuem.
Abordei de seguida o conceito de proteção patrimonial, tentando fazer a distinção entre
proteção e preservação e debati os principais e mais importantes instrumentos legais
existentes para a proteção do património cultural e a sua aplicabilidade. Considerei

1
Para efeitos da redação da dissertação, o grupo terrorista será sempre mencionado como Estado
Islâmico, excluindo outras designações possíveis como Autoproclamado Estado Islâmico, ISIS ou DAESH.

11
também o conceito de destruição patrimonial, porque é que acontece, que tipos de
destruição existem e com que fins, tentando incluir aqui o Estado Islâmico e o seu
histórico de destruições. Por último, defino o conceito de reconstrução patrimonial, o
conceito mais recente e ainda em elaboração, apontando as suas vantagens e
desvantagens, bem como as tentativas já postas em prática e os seus objetivos.

No capítulo 2, procurei fornecer ao leitor um enquadramento sobre as bases de


fundação da UNESCO e a forma como ela perceciona o património desde os anos de
1950 até à atualidade. Menciono o seu ponto de vista sobre os quatro conceitos
abordados no capítulo anterior, bem como a sua contribuição para a proteção do
património cultural e os cenários de possível reconstrução.

O capítulo 3 analisa os três processos de proteção, destruição e reconstrução do


património cultural na Síria, durante a guerra civil2. Aborda as medidas de proteção
antes e depois do início do conflito; as destruições de património, o seu impacto e as
suas causas, passando pelo seu principal perpetrador – o Estado Islâmico. Finalizo o
capítulo com o tópico da reconstrução, vantagens e desvantagens da sua aplicação no
contexto sírio.

Por último, no capítulo 4, analiso com maior pormenor os três processos


patrimoniais nos três estudos de caso – Alepo, Damasco e Palmira. Estes foram
selecionados por partilharem o estatuto de Património Mundial da UNESCO, mas
apresentarem características distintas entre si, nas estratégias de proteção adotadas, na
destruição sofrida e nos objetivos dos projetos de reconstrução. Neste capítulo, a anáise
realizada permite compreender como os múltiplos agentes envolvidos na guerra civil, e
a UNESCO enquanto mediadora do património cultural, procuram apoiar-se no

2
A guerra civil na Síria iniciou-se a 15 de março de 2011, fruto de manifestações pacíficas inspiradas pelo
movimento da Primavera Árabe, mas que escalaram em violência a partir do envolvimento de grupos
armados e da utilização da força pelo exército sírio na tentativa de acalmar os ânimos. O violento conflito
armado perdura até aos nossos dias, envolvendo o exército sírio e as forças leais ao regime de Bashar al-
Assad, apoiados pela Rússia e pelo Irão; forças curdas e grupos armados organizados (Exército Livre da
Síria e o Exército Nacional Sírio), apoiados por países ocidentais; e o grupo terrorista Estado Islâmico.

12
património como um meio para alcançar diversos fins, sendo evidenciada a questão da
politização do património cultural ao longo da dissertação.

13
1. Os processos do património cultural
“The past in the Internet age has become more intimate yet more remote, readily found but rapidly
forgotten.” (Lilas, 2017)

Antes de partir para a análise da linha de pensamento da UNESCO, a sua atuação


junto da comunidade internacional e compreender o que defende, é importante
atender aos conceitos de património cultural, sua Proteção, Destruição e Reconstrução
com base em autores que os tentaram abordar, sendo também importante perceber o
estatuto e importância que a UNESCO lhes atribui. Nesta investigação, analisarei as
medidas tomadas no seio da comunidade internacional, tendo por base as linhas de
ação da UNESCO e os conceitos já previamente teorizados por alguns autores.

1.1. O Património cultural

“(...) a herança que recebemos do passado, aquilo com que vivemos no presente, que é fonte
de inspiração de encanto e de prazer, e que transmitimos às gerações futuras.” (UNESCO, 2012)

O património cultural pode ser definido como a herança cultural selecionada de


uma comunidade, de uma cidade, de uma nação ou da humanidade. Uma construção
social e política que está viva e que se torna património cultural por algum
acontecimento relevante num certo local e em virtude dos contínuos processos de
memória que aí ocorreram (Smith, 2006, p. 82). O património cultural é o produto de
um processo de relembrar que comemora, passa conhecimento e cria memórias,
participando na construção das identidades culturais de uma comunidade.

A cultura é em si um conjunto de características que une um certo grupo de


indivíduos e que os distingue dos restantes grupos. Podem unir-se através de uma língua
comum, uma origem civilizacional comum, um passado histórico ou um conjunto de
tradições e crenças partilhados. Do lastro cultural inerente a qualquer grupo, algumas
das suas manifestações tornam-se no património cultural do respetivo grupo. Podem
tornar-se lugares de memória de acontecimentos históricos e resultarem num elemento
da identidade cultural de uma comunidade. O património é assim uma produção
sociocultural e histórica. Estas produções podem começar a nível local, através de
interações mais diretas, e, eventualmente, expandem-se para o nível nacional ou até

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global. O património cultural, ou se quisermos a patrimonialização alcançada, é o
resultado de construções, desconstruções e reconstruções permanentes das memórias
e tradições de uma comunidade. Em virtude disso, o património cultural deve ser
entendido como abrangendo necessariamente dimensões materiais e imateriais, já que
não se confina a qualquer bem físico em si, mas engloba também os significados que
justificam a respetiva valorização particular. A patrimonialização é, portanto, um
processo sociocultural e político, manifestando-se de forma diferente de comunidade
para comunidade. É a reprodução de memórias e da identidade de uma comunidade,
resultado de trocas e interações sociais. O património cultural é em última instância uma
forma de expressão cultural, mantida e valorizada através da conservação física ou da
memória (Smith, 2006).

Mas quando é que surge a noção de Património? Património no sentido moderno


do termo, entendido como elementos do passado que queremos conservar no presente
para transmitir para o futuro? As primeiras noções de património cultural surgem em
Itália durante o Renascimento do século XV, perante a ameaça de desaparecimento da
arquitetura romana. Virá a consolidar-se apenas no final do século XVIII, com a
Revolução Francesa e associado à noção de monumento histórico nacional. A Revolução
Francesa materializa uma nova abordagem que procura ligar bens e símbolos, antes
propriedade da realeza, da nobreza e do clero, à nova ideia de Estado-nação moderno.
Trata-se de transformar aqueles bens em símbolos nacionais, capazes de simbolizarem
um povo e um território nacional, conferindo características únicas que diferenciam a
França e os franceses das restantes nações. Esta noção de património foi desenvolvida
ao longo do século XIX com a emergência dos Estados-nação europeus e americanos.
Serviu de apoio à criação das identidades nacionais, criadas a partir da ligação do povo
e da nação a momentos históricos (Palma, 2016; Ferreira, 2021).

A emergência da era industrial e o seu rápido desenvolvimento contribuíram


para a noção do património ser concebida como algo construído há muitos séculos, que
faz parte do passado e cujo valor é intrínseco aos bens em resultado dessa sua
ancestralidade. Desse modo, o processo contemporâneo de construção social do
património e as inerentes lutas políticas que o envolvem surgem desatendidos. O

15
crescimento urbano ameaçava os edifícios antigos que eram destruídos para dar lugar a
fábricas e a novas áreas residenciais. Surge, assim, a intenção de preservar
determinadas áreas com monumentos históricos, onde a nova construção deveria ser
ponderada (Agudo Torrico, 2006).

Em oposição a este modelo típico da era industrial e da emergência dos estados-


nação, surge um segundo modelo apresentado por Juan Agudo Torrico (2016) como
originário do século XX, mais propriamente das décadas de 1960 e 1970. Um modelo de
“cidadania e das identidades étnicas” e que questiona os critérios do processo de
patrimonialização vigente. Este novo modelo enfatiza a diversidade cultural como o
verdadeiro património de interesse para a humanidade, denunciando a hierarquização
de culturas e a tentativa de extermínio de minorias étnicas e das suas culturas. Esta nova
visão questiona a ideia de hierarquia cultural entre os povos.

Outro momento-chave para a consolidação da noção de património cultural são


os períodos de descolonização. Os novos Estados querem distanciar-se dos símbolos dos
colonizadores e desenvolver ou recuperar a sua própria identidade cultural que fora
destruída durante o período de ocupação. A par disto, coloca-se o problema de muitos
dos bens culturais tangíveis dos países colonizados terem sido destruídos ou
encontrarem-se expostos em museus da Europa e da América do Norte. Dentro de uma
visão universalista do património cultural, geralmente subscrita pelos países do
hemisfério norte, estes objetos não teriam sido roubados, mas sim deslocados para
efeitos científicos, culturais, educacionais e, até, turísticos. Por outro lado, na ótica das
comunidades de origem, trata-se de uma apropriação cultural indevida e da exposição
de troféus coloniais que devem ser devolvidos aos países de origem (Duarte, 2022).

Na Lista do património cultural Mundial, criada em 1972, pela UNESCO, na


sequência da Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, os
critérios para a valorização e classificação como Património Mundial ainda continuavam
a assentar na ideia de autenticidade e do “valor universal excecional”3. Permanecia,

3
“O valor universal excecional significa uma importância cultural e/ou natural tão excecional que
transcende as fronteiras nacionais e se reveste do mesmo carácter inestimável para as gerações atuais e

16
portanto, um conceito de património sobretudo ocidental, que está ligado à
conservação e monumentalidade física do Património. Embora, até depois de meados
do século XX, a noção de património se tenha prendido com a monumentalidade e a
tangibilidade, a verdade é que a “viragem cultural” que ocorre por influência da
antropologia facilita que albergue também na sua definição manifestações mais
intangíveis, como as tradições orais, rituais, danças, lendas e línguas (Fabrino e Duarte,
2022). Passam, então, a poder ser consideradas património, quer a monumentalidade e
o edifício histórico, quer outras manifestações mais prosaicas, mas definidoras de um
estilo de vida e tradições que conferem identidades culturais.
Relativamente às dimensões intangíveis do património, estas começam a ganhar
mais reconhecimento durante as décadas de 1960 e 70 com os movimentos de
independência das antigas colónias europeias e as políticas pós-coloniais. A defesa das
suas identidades culturais passa pela proteção das tradições, costumes e memórias orais
passadas de geração em geração, e não apenas pela valorização das grandiosas
edificações deixadas pelos colonizadores. Torna-se necessário defender as identidades
culturais do Oriente, América do Sul, África e Ásia, conferindo-lhes igual importância à
dada às identidades culturais do Ocidente (Meskell, 2018). Por outro lado, mesmo nos
países ocidentais, gradualmente, as comunidades locais vão-se apercebendo da
necessidade de afirmarem a sua especificidade e o seu papel enquanto mediadores e
reguladores do próprio património, por vezes discordando das definições impostas pelas
pelos poderes centrais e organizações internacionais. Reconhecer o uso desigual das
fontes disponíveis nos processos de patrimonialização é importante para que possa ser
assegurada a defesa das comunidades indígenas em contextos pós-coloniais.

No final do século XX e início do XXI, o património cultural ganha uma relação


estreita com o turismo, levando a que a proteção e a promoção do património sejam
promovidas, visando mais fins turísticos e económicos do que culturais. Além disso, a
preocupação das instituições e autoridades internacionais parece continuar a prender-

futuras de toda a humanidade. Assim sendo, a proteção permanente deste património é da maior
importância para toda a comunidade internacional” (UNESCO, 2021).

17
se apenas com os bens em si, ignorando as comunidades que nele se enquadram e para
as quais terão valor específico. Convém ter presente que o património cultural apenas
tem sentido e simbolismo quando enquadrado na sua área e comunidades envolventes,
perdendo o seu significado quando removido ou desenquadrado (Smith, 2006).

O reconhecimento da importância do património cultural é aumentado quando


este se torna alvo da atenção de organizações internacionais e intergovernamentais
como a UNESCO. Por essa via, é também aprofundada a discussão sobre o que é ou pode
ser património cultural. Segundo Laurajane Smith (2006), existe a nível internacional um
Discurso Autorizado do Património (DAP) que constrói e procura difundir o que é e o
que não é património cultural. Tenta naturalizar certas ideias sobre a natureza imutável
e inerente do valor e do significado do Património e das suas práticas de conservação. É
um discurso utilizado pelas organizações internacionais e também por muitos governos
nacionais, mas que reflete uma perspetiva de forte influência ocidental, apresentando
o Património como algo físico, monumental, conservado durante séculos e com um
significado de herança civilizacional. Exemplo disto é a classificação como património
cultural Mundial da herança romana e grega, cujas construções, cultura e instituições
influenciam as sociedades europeias até à atualidade. Este discurso traduz-se depois na
construção de identidades culturais que emergem como um reflexo das grandes
narrativas ocidentais sobre a cultura, reforçando as suas conceções sobre o passado
histórico e enfatizando as diferenças entre contextos culturais (Smith, 2006). Neste
processo, esta autora considera a UNESCO uma das organizações condutoras deste
Discurso Autorizado do Património. A mutabilidade da cultura é alvo de preocupação e
de várias discussões entre países ocidentais, originando algumas das Convenções mais
conhecidas sobre o património cultural, como é o caso da Convenção para a Salvaguarda
do património cultural Imaterial da UNESCO, de 2003. Esta Convenção pretende chamar
a atenção também para os elementos intangíveis do património cultural, definindo-o
como:

“as práticas e as representações, expressões, conhecimentos, competências, assim como os


instrumentos, objetos, artefactos e espaços culturais associados, que as comunidades, grupos,
e em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte do seu património cultural. Este

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património, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado por comunidades
e grupos, em resposta ao seu ambiente, à sua interação com a natureza e a sua história, e
proporciona-lhes um sentido de identidade e continuidade, promovendo assim o respeito pela
diversidade cultural e pela criatividade humana” (UNESCO, 2003).

A valorização da dimensão intangível do património ajuda à alteração ou


moderação do DAP. Permite que outros aspetos ganhem relevância, na medida em que
tem subjacente o deixar de privilegiar apenas o fator físico do Património. Mas tendo
em mente a viragem cultural que atingiu o conceito de património, é evidente que para
se classificar algo como património cultural não é necessário que tenha acontecido ou
exista há vários séculos antes de ser patrimonializado. Veja-se o exemplo do ataque
terrorista às Torres Gémeas a 11 de setembro de 2001. O que eram meros edifícios de
negócios e residências, tornar-se-iam, após o atentado, um símbolo do início da guerra
ao terror pelo ocidente e da mudança do conceito de terrorismo. As Torres Gémeas
tornam-se, assim, um património cultural dos Estados Unidos e até do mundo aquando
da sua destruição. Um património cultural assente no seu simbolismo e significado e não
na monumentalidade ou antiguidade das construções.

Procurando sistematizar o conceito de património cultural, Youssef Kanjou


(2014) considera-o como o processo cumulativo dos produtos de uma comunidade
cultural ao longo do tempo e o elemento-chave para a sua identificação e da sua zona
geográfica. “Definir património cultural não é simples, por se tratar de um termo
multifacetado e que está em constante mudança. É um conceito subjetivo que pode ser
visto de vários pontos de vista” (Kanjou, 2014, p. 121). Laurajane Smith (2006) considera
património cultural todos os processos culturais que nos indicam de onde viemos em
termos do passado, mas também para onde caminhamos no sentido do futuro. Um
processo em constante mudança social, cultural e política. O bem cultural tem de ter
significado e simbolizar algum valor importante para uma comunidade para ser
patrimonializado. A valorização do bem, a sua preservação pela comunidade e o
significado que lhe é atribuído é que lhe conferem o estatuto de património cultural
(Smith, 2006, p. 113). Segundo esta visão, o património cultural e o processo que lhe dá
origem, um processo em constante evolução e mudança, são o resultado das interações
culturais entre os indivíduos e a forma como vivem e sentem lugares e acontecimentos

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que lhes dão um sentimento de pertença a uma comunidade, localidade, etnia, nação
ou civilização. Estas interações e o próprio processo de patrimonialização contribuem
para a criação da identidade cultural (Smith, 2006, p. 272).

Sendo um processo cultural e social, é também essencialmente um processo


político. O património cultural é utilizado para responder às necessidades das
comunidades no presente. Através dele, o passado é reescrito pelo presente e as
memórias são construídas de acordo com as crenças e as mentalidades da atualidade.
Desejamos esquecer passados mais dolorosos ou com conotações negativas e
celebramos e revivemos as conquistas, os acontecimentos, as construções e as tradições
que nos distinguem e são tidos como tendo feito a comunidade evoluir. Assim, tão
depressa podemos criar novas memórias de um lugar, como esquecer as velhas, como
teorizava Paul Connerton (1989) a propósito da existência de sete tipos de
esquecimento4.

Por sua vez, a UNESCO define património cultural no artigo 1º da Convenção para
a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, de 1972 como:

“Os monumentos. – Obras arquitetónicas, de escultura ou de pintura


monumentais, elementos de estruturas de carácter arqueológico,
inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal excecional do
ponto de vista da história, da arte ou da ciência;

4 Os sete tipos de esquecimento de que falava P. Connerton (1989) eram os seguintes: o esquecimento
repressivo, ocorrido quando há repressão de memórias dolorosas ou traumáticas; a amnésia estrutural,
verificada, por exemplo, quando uma cidade é reconstruída após um conflito armado e as memórias do
que existia antes são esquecidas; o esquecimento circunstancial, resultante das circunstâncias em que a
memória é criada; o esquecimento intertextual que ocorre quando se perdem os registos escritos de
memórias; o esquecimento retrospetivo que se dá quando a memória é relembrada de formas diferentes,
perdendo-se a memória original; o esquecimento testemunhal, que acontece quando as testemunhas
oculares de um evento morrem ou não estão em condições de contar o acontecimento; o esquecimento
da tradição, que ocorre quando as tradições culturais e sociais são perdidas ao longo do tempo, muitas
vezes devido à globalização.

20
Os conjuntos. – Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude
da sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem têm valor universal
excecional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;

Os locais de interesse. – Obras do homem, ou obras conjugadas do homem


e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com
um valor universal excecional do ponto de vista histórico, estético,
etnológico ou antropológico.” (UNESCO, 1972)

Numa versão mais recente da definição de património cultural, a UNESCO


reformula a definição, incluindo os elementos intangíveis das manifestações culturais
para um conceito mais abrangente:

“um conjunto de valores tangíveis e intangíveis e expressões que as pessoas


selecionam e identificam, independentemente da propriedade, como
reflexo e expressão das suas identidades, crenças, conhecimentos e
tradições e ambientes vivos, merecedores de proteção e valorização pelas
gerações contemporâneas e transmissões às gerações futuras. O termo
património refere-se igualmente às definições de património cultural e
natural, material e imaterial, tal como incluídos nas convenções culturais da
UNESCO” (UNESCO, 2015)

Assim, o património cultural e o processo de patrimonialização devem ser


entendidos como em constante evolução e mudança. Cada comunidade e/ou país usa o
seu património cultural como espaço de construção de memória e testemunhos da sua
identidade e herança cultural. Um património cultural só existe enquanto as pessoas lhe
atribuírem esse significado. O que torna um edifício património é o simbolismo e a
história que ele pode representar para a comunidade que serve, assim como as
tradições mais intangíveis persistem enquanto houver memória delas e forem
celebradas como parte da identidade cultural. O património cultural deve servir a
comunidade a nível cultural, social, económico, turístico e político.

A primeira impressão que temos de um artefacto ou de umas ruínas em sítios


arqueológicos são o seu aspeto físico, mas é pela sua interpretação que conseguimos

21
alcançar o significado que tinham no passado e o que representam para o presente. Com
efeito, o património cultural é importante em todas as suas dimensões e
representações, não havendo lugar para hierarquizações, já que os seus graus de
simbolismo e de importância mudam conforme a sociedade em que estão inseridos e
são ligados, no presente, aos passados históricos. Se até meados do século XX o
património cultural era apreciado e tido como devendo ser preservado em virtude da
sua monumentalidade e antiguidade, o século XXI vem insistir na importância de a
preservação patrimonial dever estar ao serviço das comunidades em que se insere.

1.2. A proteção do património cultural

Os primórdios da proteção patrimonial remontam ao período renascentista


europeu, através do estabelecimento de documentos de proteção. Por essa altura,
surge a preocupação em preservar o património, especialmente os vestígios
civilizacionais deixados pelos romanos e que, até ali, tinham sido gradualmente
destruídos pelas invasões bárbaras e pelo crescimento urbano e o reaproveitamento das
suas pedras para a construção de novos edifícios. A documentação de proteção ao
património surge no seio da igreja católica, pela voz do Papa Pio II (1405-1464) que
proclama, em 1462, uma Bula para a proteção dos monumentos em Roma. O
documento incentivava à proteção da cidade-mãe, aquela que tornara a Europa cristã e
espalhara a sua cultura às gerações futuras, determinando a aplicação de castigos a
quem desobedecesse (Palma, 2016; Ferreira, 2021).

Mais tarde, a Revolução Francesa é simultaneamente um período de grandes


destruições a nível patrimonial, mas também da afirmação da necessidade de proteger
a herança cultural, os lugares de memória e tudo aquilo que representava a história de
França. Os revoltosos começaram por tentar destruir tudo o que pudesse simbolizar o
regime absolutista que queriam eliminar do país. De facto, estes são os primeiros sinais
da utilização do património como arma política, neste caso eliminando os símbolos da
existência do absolutismo, que ficam sob controlo das populações, para impedir o
regresso daquele regime. No entanto, face ao grande volume de destruições, a
Assembleia Constituinte Francesa mostra-se sensível à importância do património agora
atacado para a construção de uma nova França. O povo francês destruía o que

22
representava o feudalismo, o poder dos nobres, o absolutismo e a opressão do povo,
mas esses mesmos bens podiam tornar-se bens nacionais, símbolos da nação francesa
e, enquanto tal, serem poupados.

Perante os relatórios da destruição ocorrida, um membro da Comissão de


Instrução Pública, encarregue de evitar a continuação das destruições, classifica-as
como vandalismo e ignorância. Considera-as atos bárbaros de pessoas que detestam o
conhecimento e as obras de arte, e que apenas homens cultos e livres podem
reconhecer o seu valor e conservá-las. De facto, defende a ideia de que os monumentos,
obras de arte e artefactos não têm de ter a conotação negativa da época e das condições
em que foram construídos, podendo ser olhados como um lugar de memória, da história
da nação e do seu povo (Palma, 2016, pp. 6-12). Por esta via, o intenso fluxo de
destruições pôde ser interrompido, mas em 1830 o governo francês ainda se depara
com destruições deliberadas, decidindo por isso criar uma lista dos monumentos de
grande importância histórica, social, política e religiosa que necessitavam de proteção e
restauro. A Revolução Francesa teve, portanto, um papel central no despertar de
atitudes de proteção patrimonial e na produção das primeiras tentativas legislativas
para proteção e conservação do património cultural. Os atos de vandalismo e destruição
obrigaram a tomar consciência do facto de que só se dá valor a algo, quando o
perdemos, levando a uma nova perspetiva sobre a história e os valores artísticos e
culturais do património que deve ser preservado. Surgem, assim, os inventários e os
projetos de conservação e classificação do património a preservar para as gerações
futuras.
Durante a I e a II Guerra Mundial, muitas nações viram o seu património edificado
ser atacado e destruído. Para tentar evitar a continuidade destes atos em futuros
conflitos, vão surgir organizações, convenções e leis a nível internacional. É assim o caso
da ONU, UNESCO e da Escudo Azul (Hayek, 2018). Em relação a medidas legislativas, é
inicialmente na Carta de Atenas, de 1931, que se aborda a importância de respeitar e
preservar os monumentos, para que se evite a sua destruição. Sugere-se a aposta na
educação e sensibilização das populações para a importância do património. Por sua
vez, na Carta de Veneza, de 1964, reforça-se a ideia da necessidade de salvaguarda do

23
património para as próximas gerações como um dever de todas as pessoas e países.
Inclui-se, aqui, pela primeira vez a perspetiva e a noção de um património comum ou
mundial, além da preocupação constante com a conservação e restauro do património
(ICOMOS, 1964).

Já no rescaldo da II Guerra Mundial, em 1954, é produzida a Convenção para a


Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, também conhecida como
Convenção de Haia. Os Estados signatários entendiam ser necessário apostar na
proteção legal do património durante os conflitos armados, para evitar a sua destruição
e, no caso de haver, os seus autores serem julgados e punidos. As medidas de proteção
devem ser tomadas em épocas de paz para que se consiga evitar a perda de património
durante os conflitos armados (UNESCO, 1954).
Retomando a ideia de um “património cultural comum” mencionada na Carta de
Veneza, surge a Convenção da UNESCO, de 1972, que dá origem à classificação e à Lista
do património cultural Mundial. Esta Convenção surge da necessidade de proteger os
bens de “valor excecional universal” que, segundo a UNESCO, se encontram cada vez
mais ameaçados por fatores externos como as mudanças climáticas e o urbanismo,
devendo ser protegidos pois são únicos e insubstituíveis. É importante referir que neste
período a noção de património continuava assente na ideia da monumentalidade e
antiguidade, alterando-se apenas com a viragem cultural provocada pelos países não-
europeus. Outro ponto importante para a proteção patrimonial é a posição defendida
pela arqueologia de que os objetos fora do seu contexto e enquadramento natural
perdem o seu significado. Recupera-se, então, aqui a questão dos artefactos comprados
ou deslocados. A arqueologia defende que os artefactos só podem ser devidamente
estudados e compreendidos no ambiente a que pertencem. Assim, os arqueólogos
devem proteger o património, denunciando as suas apropriações indevidas, seja por
colecionadores, museus ou organizações terroristas. A comunidade internacional deve
ainda seguir as recomendações do artigo 5º da Convenção de 1972:

“a) Adotar uma política geral que vise determinar uma função ao
património cultural e natural na vida coletiva e integrar a proteção do
referido património nos programas de planificação geral;

24
b) Instituir no seu território, caso não existam, um ou mais serviços de
proteção, conservação e valorização do património cultural e natural, com
pessoal apropriado, e dispondo dos meios que lhe permitam cumprir as
tarefas que lhe sejam atribuídas;

c)Desenvolver os estudos e as pesquisas científicas e técnica e aperfeiçoar


os métodos de intervenção que permitem a um Estado enfrentar os perigos
que ameaçam o seu património cultural e natural;

d)Tomar as medidas jurídicas, científicas, técnicas, administrativas e


financeiras adequadas para a identificação, proteção, conservação,
valorização e restauro do referido património;

e) Favorecer a criação ou o desenvolvimento de centros nacionais ou


regionais de formação nos domínios da proteção, conservação e valorização
do património cultural e natural e encorajar a pesquisa científica neste
domínio” (UNESCO, 1972).

Em 2001 é celebrada pela UNESCO a Declaração Universal sobre a Diversidade


Cultural, no seguimento de episódios de destruição de património cultural na viragem
para o novo século5. Esta Declaração surge como resposta às novas dificuldades
enfrentadas pelo património cultural, afirmando que o respeito pela diversidade das
culturas, a tolerância e a cooperação num clima de confiança e compreensão mútua,
são as melhores garantias para a manutenção da paz e da segurança internacional. Dois
anos mais tarde, é produzida, em 2003, pela UNESCO, a Convenção para a Salvaguarda
do património cultural Imaterial. A Convenção vem frisar que o património cultural não
é apenas composto pelo património edificado, mas também por uma vasta panóplia de
manifestações culturais de caráter intangível, como tradições orais, costumes, rituais e
lendas. O reconhecimento de expressões culturais imateriais enquanto património

5
Em março de 2001 foram destruídos os Budas de Bamiyan, no Afeganistão. Classificados como
Património Mundial da UNESCO, os Budas construídos entre o século IV e V, foram explodidos por ordem
do governo Talibã, que tinham recentemente tomado o poder no Afeganistão e os consideravam como
uma ameaça à sua governação e religião. O episódio foi a primeira de várias tentativas ocorridas no século
XXI, visando a eliminação da diversidade cultural e tolerância religiosa numa determinada região.

25
cultural foi um marco importante para a inclusão e reconhecimento internacional de
culturas não-europeias, ignoradas ou consideradas de menor importância.

No que concerne às destruições patrimoniais, as respostas internacionais e das


próprias Convenções da UNESCO são bastante limitadas, sem conseguirem que se
reflitam em medidas concretas. Debate-se igualmente se a segurança dos civis e das
comunidades deve ser separada da proteção assegurada ao património cultural em
contexto de conflitos armados. De um modo geral, a preservação da identidade cultural
tem vindo a ser entendida como um Direito Humano, o que torna obrigatória a
preservação do património cultural que sustente a identidade de uma comunidade.
Segundo o texto da Convenção de 1972:

“perante a extensão e a gravidade dos novos perigos que o ameaça,


incumbe à coletividade internacional, no seu todo, participar na proteção
do património cultural e natural, de valor universal excecional, mediante a
concessão de uma assistência coletiva que, sem se substituir à ação do
Estado interessado, a complete de forma eficaz” (UNESCO, 1972).

As medidas de proteção do património cultural estão dependentes de interesses,


especialmente ocidentais, havendo assim a necessidade de as repensar, descartando os
interesses económicos, ou pondo-os em sintonia com as necessidades das comunidades
que o detêm. É necessário respeitar a cultura e a história de determinada região e
reconhecer que os artefactos apropriados em períodos passados devem ser devolvidos
ao país de origem assim que possível. Acerca da proteção a conceder ao património, a
Convenção de 1972 reconhece que a “escala nacional é a maior parte das vezes
insuficiente devido à vastidão dos meios que são necessários para o efeito e da
insuficiência de recursos económicos, científicos e técnicos do país no território do qual
se encontra o bem a salvaguardar” (UNESCO, 1972). Além da recuperação do património
imóvel, é importante pensar também na recuperação dos artefactos que tenham sido
roubados, vendidos no mercado negro ou parcialmente danificados. Para além da sua
proteção em termos materiais é igualmente importante proteger o património cultural
nas suas dimensões intangíveis.

26
1.3. A destruição de património cultural

O património é destruído desde que há memória. Seja de forma mais ou menos


intencional, para afetar o inimigo, para reutilizar os materiais para novas construções,
demolido para permitir o crescimento urbano ou para incluir a representação de novos
regimes políticos ou religiões; seja de forma mais involuntária. A destruição do
património cultural é muitas vezes despoletada por conflitos armados, revoluções,
ideologias extremistas e/ou radicais, situações de pobreza e crises humanitárias. Nos
últimos casos, a destruição de património pode ser usada para suprimir necessidades
básicas à vida humana ou a consolidação de regimes políticos através da manipulação
do património e da História. Assim sendo, é conveniente clarificar o que se entende por
destruição patrimonial. Definimos a destruição do património cultural como um ataque
concretizado com a intenção de aniquilar a identidade cultural de determinada minoria
étnica ou de uma comunidade específica. Refere-se, então, à eliminação da diversidade
cultural e das características particulares de um determinado grupo, numa determinada
zona geográfica e num determinado tempo (Hill, 2016, p. 200).

A UNESCO considera a destruição de património cultural como:

"um ato destinado a destruir total ou parcialmente o património cultural,


comprometendo assim a sua integridade, de uma forma que constitua uma
violação do direito internacional ou uma ofensa injustificável aos princípios
da humanidade e aos ditames da consciência pública, na medida em que
tais atos não sejam já regidos por princípios fundamentais do direito
internacional” (Hill, 2016, p. 196).

Na voz de Irina Bokova (2015), a UNESCO divide os tipos de destruição do


património em: danos de superfície; danos causados por terrorismo; roubo; ocupação
militar; armas de fogo; incêndio; demolição e construções ilegais (Lilas, 2017, p. 20). A
literatura classifica a destruição como voluntária ou involuntária. Dentro da voluntária
existem as formas de destruição como o vandalismo, explosões, tráfico ilegal,
escavações ilegais e roubo. As destruições voluntárias geralmente têm objetivos

27
militares, políticos, religiosos, económicos, culturais ou sociais. Destruir por diferenças
políticas, religiosas ou culturais; objetivos militares em tempos de conflito armado para
desmoralizar o inimigo e eliminar a herança cultural de um povo; lucrar com a venda de
artefactos no mercado negro, seja para compra de armamento ou fazer face à pobreza
inerente a conflitos armados. Em todos os casos, o património é posto ao serviço da
afirmação de poder ou de um ponto de vista da história (Weiss & Connelly, 2019). No
caso das destruições involuntárias, estas ocorrem essencialmente em contexto bélico,
sem que o património cultural seja um alvo intencional, mas acabando por ser destruído
e/ou danificado em resultado do combate, criação de bases ou cumprimento de
objetivos militares.

Segundo Christoph Doppelhofer (2016), a destruição do património é um ataque


direto à identidade de uma comunidade. Não tem dúvidas quanto a afirmar que a
destruição intencional é “um crime de guerra devido à sua severidade sobre a
identidade e o capital cultural de uma população" (Doppelhofer, 2016, p. 1). Youssef
Kanjou (2014, p. 274) adiciona a esta lista de categorias de destruição de património
cultural, as escavações ilegais e o tráfico ilícito de antiguidades. No que respeita à
definição e categorização da destruição patrimonial, concordo com os autores
mencionados e com a necessidade de classificar as destruições. Se por um lado o
património se torna vulnerável durante os conflitos armados, são notórias as
destruições que podemos considerar como intencionais ou voluntárias para atingir
objetivos políticos.

A destruição voluntária ou intencional de património cultural durante conflitos


armados, embora cause o choque da comunidade internacional, não é algo de novo do
nosso século. Durante o período colonial, destruir património era uma forma de
destruição da identidade da respetiva comunidade. Durante o imperialismo colonial
europeu dos séculos XIX e XX, a destruição pretendeu atingir todos os símbolos culturais
e de poder indígenas que pudessem contestar a nova autoridade vigente dos
colonizadores. Além da sua destruição, grandes quantidades de objetos foram trazidas
para a Europa e exibidos em galerias e museus como troféus coloniais. Na sua grande
maioria, até hoje, em pleno século XXI, esses artefactos ainda permanecem em território

28
europeu, vistos como exemplares científicos e meios de demonstração da diversidade
cultural e civilizacional. Atualmente, e sobretudo depois do chamado Relatório Macron
(Sarr e Savoy, 2018), vão surgindo algumas ações pontuais de devolução de coleções
coloniais. Essa reivindicação já tinha sido levantada durante as negociações conducentes
às independências das antigas colónias europeias, mas com pouco resultados concretos
(Duarte, 2022). Na academia, o tópico começa a ser abordado a partir da obra de
Edward Saïd, O Orientalismo, publicado em 1978, que confrontava as narrativas
ocidentais sobre a definição de património cultural e o seu pretenso direito a manter
em território europeu os troféus coloniais e as reivindicações das populações afetadas
que exigiam a devolução dos artefactos como parte integrante da sua identidade
cultural e, consequentemente, do seu património cultural (Hill, 2016; Turku, 2018;
Palma, 2016; Meskell, 2018).
A destruição do património cultural pode ser vista como uma potente arma ao
serviço da política. Em tempos de guerra, destruir o património pode afetar o inimigo,
abalando o seu espírito e destruindo os pilares que constituem a respetiva identidade
cultural. Destruir deliberadamente monumentos-chave de importância histórica e
religiosa para uma certa comunidade pode ter efeitos efetivos. Além disso, visto pelo
lado oposto, é igualmente verdade que espaços significativos para determinada
comunidade também são muitas vezes usados como abrigos temporários para os
refugiados de guerra ou postos ao serviço da estratégia militar (Littlefield, 2018, p. 4).

As duas Guerras Mundiais constituíram-se como os maiores episódios de


destruição de património cultural. A força aérea alemã, a Luftwaffe, definia alvos com o
objetivo de os destruir e enfraquecer a moral do inimigo e a respetiva identidade
cultural, tornando mais fácil a invasão e a subjugação das populações à nova autoridade.
O exemplo mais significativo deste tipo de estratégia é a destruição de toda a zona
histórica da cidade de Varsóvia, na Polónia. A par disto, os nazis roubaram e
apropriaram-se de milhares de obras de arte dos países que invadiram, vendo-os como
troféus e espólios de guerra. Do lado dos Aliados pode ser referida outra atitude, mas
ela também não ocorreu sempre. Nomeadamente no caso dos ataques a Itália, sabe-se
que delineavam os seus ataques para que não afetassem os monumentos históricos de

29
valor nacional e internacional (Palma, 2016). Portanto, embora seja mais comum
relembrar as atrocidades cometidas pelas forças alemãs e seus aliados, também os
Aliados levaram a cabo operações de destruição intencional, deliberada e injustificável.
A força aérea britânica bombardeou a cidade alemã de Dresden, reduzindo-a
praticamente a pó. A cidade foi atacada para desmoralizar na fase final da guerra os
alemães, abalar a sua economia e antecipar a sua derrota (Palma, 2016, p. 14). No final
da guerra, o Exército Vermelho cobriu as paredes do Reichstag de palavras de vitória em
russo e em cirílico, procurando desse modo representar simbolicamente a queda do
regime nazi e a vitória dos Aliados.
Portanto, importa ter presente que a destruição intencional de património
cultural é um ato recorrente. Por outro lado, não acontece apenas em contexto de
conflito entre diferentes países. Veja-se o exemplo dos Budas de Bamiyan, no
Afeganistão, destruídos pelos Talibã em contexto de guerra civil. Os Budas faziam parte
da Lista do Património Mundial da UNESCO e representavam uma notável prova da
presença do budismo no Afeganistão. A sua destruição não era algo que não tivesse sido
previsto pela comunidade internacional e pela UNESCO aquando da tomada de poder
pelos Talibã. Contudo, as tentativas da UNESCO, visando a proteção dos Budas foram
em vão, acabando por ser destruídos por explosivos em março de 2001. Foram
destruídos sob o pretexto de não representarem o Islão, serem uma ameaça à sua
existência e ao próprio poder e autoridade dos Talibã. A destruição foi recebida no seio
da comunidade internacional como um ato bárbaro, ignorante e de total desrespeito
pela história de um povo, mas também desrespeito pela própria classificação como
património cultural Mundial. Por outro lado, olhada pelo lado inverso, a destruição pode
também ser vista como uma tentativa de criar uma identidade cultural para o
Afeganistão, assente agora nas crenças islamitas sem haver lugar para outras expressões
religiosas. Para os Talibã, os Budas destruídos tinham uma conotação negativa e tinham
de ser eliminados. Este tipo de episódio de destruição de património confirma que o
património cultural não tem um significado e uma interpretação unanime, sendo assim
constantemente utilizado como arma política (Palma, 2016).

30
De facto, remetendo ao objeto de estudo principal desta dissertação,
compreende-se claramente que a destruição dos Budas, no Afeganistão, foi acima de
tudo uma estratégia política dos Talibã. Materializou uma afronta ao ocidente e a
contestação do poder da ONU. A destruição foi também uma resposta às sanções
impostas pela ordem internacional aos Talibã por continuarem a treinar radicalizados e
a planear ataques terroristas. Mais recentemente, as destruições de património cultural
verificam-se sobretudo em zonas de conflito armado e controladas por grupos armados
extremistas e radicais, seja em virtude de crenças religiosas ou por estratégia política.
Disto é exemplo o Estado Islâmico que tem destruído deliberadamente património
cultural em vários países do Médio Oriente, se bem que com especial destaque no
Iraque e na Síria, a sua maior área de atuação. Pela comunidade internacional, as suas
ações são consideradas como crimes de guerra e de limpeza cultural (UNESCO, 2017).

O Estado Islâmico nasceu do subgrupo da Al Qaeda, no Iraque, por volta de 2010.


Aquando do início da guerra civil na Síria, em 2011, o grupo separou-se da Al Qaeda e
rebatizou-se como Estado Islâmico do Iraque e do Levante, mudando mais tarde para
Estado Islâmico do Iraque e da Síria. Ocupou várias zonas do Iraque e da Síria, tornando-
se rapidamente o grupo jihadista de referência, recrutando milhares de muçulmanos
estrangeiros e pessoas de outras crenças que acabavam radicalizados e unidos à sua
causa. Têm como missão principal reconquistar todos os territórios que já tiveram
presença muçulmana e criar um califado, onde as leis serão reguladas pela interpretação
sunita do Alcorão. Utilizam as redes sociais para promover o seu califado e manipular
psicologicamente. A partir de 2015, a comunidade internacional designa este grupo
terrorista como Estado Islâmico6 (Marshall, 2016, p. 140). No que concerne à destruição
de património, sabe-se que o Estado Islâmico utiliza o tráfico de artefactos para financiar
as suas atividades, como a compra de armas, propaganda e recrutamento de novos
membros. Portanto, os objetos de pequenas dimensões que possam ser facilmente

6
Estado Islâmico é o acrónimo do seu nome árabe Dawlat al Islamiya Iraq Wa al Shams. Tem um som
semelhante à palavra árabe daes que significa alguém que é dissimulado e rima com a palavra fahish (que
por sua vez significa pecador). Na cultura árabe é considerado um insulto grave que rebaixa o grupo,
reduzindo o seu estatuto e a eficácia com que incute o medo (Marshall, 2016).

31
transportáveis não são propriamente destruídos, mas inseridos no mercado negro de
obras de arte, o que também evidencia a cumplicidade e hipocrisia reinantes.

A cidade de Palmira, classificada como Património Mundial da UNESCO em 1980,


a pérola do deserto e da multiculturalidade no Médio Oriente, detém na sua área ruínas
que datam de há mais de 2000 anos. A cidade representava um verdadeiro encontro
entre religiões, tradições, arquiteturas, ocidente e oriente. Reunia vestígios de
arquitetura romana, tradições helénicas, cristãs e muçulmanas. A cidade e os seus
edifícios mudaram de funções e de importância ao longo dos séculos, mas manteve-se
praticamente intacta até aos inícios do século XXI. O Estado Islâmico apodera-se de
Palmira com o intuito de apagar esse passado e a sua herança cultural, mas também por
ser um ponto militar estratégico e próximo a poços de extração de petróleo e gás natural
(Turku, 2018)7.

1. 4. A reconstrução do património cultural

A reconstrução patrimonial é definida como um conjunto de interligações


culturais, sociais, políticas e económicas dentro de um processo multidimensional que
se pode localizar a nível local, regional, nacional e internacional (Barakat, 2007, p. 29).
A Recomendação de Varsóvia define a reconstrução patrimonial como:

“um processo técnico para a restituição de partes destruídas ou


severamente danificadas após um desastre ou conflito armado (…) essa
reconstrução deve ter em consideração os aspetos intangíveis, crenças e
conhecimento tradicional associados ao património cultural e que são
essenciais para sustentar os valores culturais das comunidades” (UNESCO,
2018).

A reconstrução patrimonial é sem sombra de dúvidas o conceito que mais gera


polémica entre os autores e especialistas, havendo quem se posicione a favor e contra.
A reconstrução pode ser aproveitada pela arqueologia para adquirir mais

7
As destruições e a atuação do Estado Islâmico em Palmira serão abordadas com pormenor no capítulo 4
da presente dissertação.

32
conhecimentos acerca das civilizações que estuda e das respetivas técnicas de
construção. Enquanto processo levado a cabo com a participação das populações, pode
também servir para unir e estabilizar comunidades locais e/ou revitalizar cidades
afetadas (Doppelhofer, 2016, p. 8). A favor da reconstrução, os argumentos
considerados destacam o valor emocional do património cultural para as comunidades;
as potencialidades do reuso das infraestruturas recuperadas para novas funções que
satisfaçam as necessidades das populações; o poder da mensagem transmitida contra a
destruição do património cultural; uma oportunidade de building back better8; a
possibilidade de recorrer à utilização das novas tecnologias, como o 3D e a realidade
virtual. A perspetiva favorável sobre a reconstrução engloba, portanto, a intenção de
recuperação do património cultural para que sirva às gerações atuais e futuras,
centrando-se nos aspetos intangíveis do património que são imprescindíveis para que
lhe possa ser devolvida a respetiva “autenticidade” e valor cultural (Hayek, 2018).

Na abordagem da recuperação pós-conflito, o património cultural deve ser


entendido como uma parte integral (Barakat, 2007, p. 252). Nesta perspetiva, a sua
reconstrução deve ser reconhecida como uma prioridade no processo de recuperação
urbana e no regresso à vida normal das próprias populações. A reconstrução de
monumentos com importância (simbolismo cultural) nacional ou a restituição de
artefactos roubados surgem como imperativos para a recuperação das comunidades
afetadas por conflitos armados (Littlefield, 2018, p. 4).

A visão mais negativa ou de recusa da reconstrução patrimonial surge


geralmente associada a uma perspetiva mais clássica, e mais ocidental, acerca do
património cultural. Os argumentos apontados contra a reconstrução do património
cultural destacam, quer o perigo do processo de reconstrução poder alterar a
interpretação histórica para as gerações futuras, quer a ideia de a reconstrução facilitar

8
Building Back Better (BBB) é uma estratégia implementada a partir de 2005 pelas Nações Unidas e
adotada por vários líderes mundiais. A estratégia defende a reconstrução de infraestruturas e a
recuperação das comunidades após crises, desastres naturais ou emergências. O conceito de building
back better desenvolve a ideia de que a emergência deve ser aproveitada para construir uma versão
melhorada, corrigir erros e criar estruturas mais fortes que possam resistir a ameaças futuras.

33
a interpretação falsa de que o conflito não aconteceu. Por outro lado, após o fim dos
conflitos armados, a reconstrução do património destruído pode ser entendida como
uma vingança contra o vandalismo das destruições e os seus autores, o que em si mesmo
pode fazer retardar o processo de sarar das feridas entre os opositores. São igualmente
apontadas as dificuldades de uma reconstrução fiel à imagem original, a potencial
destruição de vestígios da estrutura original e/ou a eliminação de alguma época
histórica. É defendido que a reconstrução patrimonial por arquitetos e engenheiros
atuais torna o património uma mera cópia do que outrora terá sido, perdendo-se a sua
autenticidade e valor detido para ser considerado património cultural. As recriações de
património cultural através da realidade virtual são entendidas como sendo apenas
coisas que existem digitalmente e que não são reais (Doppelhofer, 2016; Lilas, 2017;
Hayek, 2018).

Na ótica de quem é contra a reconstrução, projetos de reconstrução como o


relativo à cidade de Palmira aparecem como oportunistas e relacionados com
preocupações ocidentais de foro económico e político, como o afastamento do
terrorismo, e o acesso ao petróleo e a outros recursos naturais. Falta uma posição coesa
e coerente de como reintegrar as comunidades afetadas enquanto são ajudadas no
processo de reconstrução, visando preservar as suas identidades culturais. A
reconstrução deve ir além do material e conseguir recuperar também as dimensões
sociais e económicas, bem como as identitárias. Ainda que negligenciada pela
comunidade internacional, a dimensão religiosa é imprescindível para a recuperação das
respetivas comunidades (Barakat, 2007, p. 38).
Após o término da II Guerra Mundial, o Castelo de Varsóvia foi reconstruído pelo
mesmo motivo por que tinha sido destruído: por ser um símbolo nacional polaco. No
caso da cidade de Dresden, reconstruíram-se o Palácio de Zwinger e a ópera de Dresden.
O Reichstag, na Alemanha, foi reconstruído apenas nos anos de 1990 e os arquitetos
envolvidos decidiram preservar parte das inscrições soviéticas nas paredes do edifício
como parte da história da Alemanha e do próprio Parlamento alemão. Esses elementos
representam a adição de uma outra camada à história do edifício, embora essa
estratégia de conservação tenha gerado polémica entre os que acreditavam ser mais

34
benéfico apagar as marcas da ocupação soviética e os que defendiam o carácter
simbólico do ato e a importância de fazer chegar a mensagem às futuras gerações, para
que a história não se repetisse (Palma, 2016, p. 31).

Como se compreende, as discussões sobre a reconstrução patrimonial


encontraram campo fértil no período subsequente ao fim da II Guerra Mundial, dada a
massiva destruição de património cultural ocorrida. Contudo, desde a década de 1990,
a reconstrução do património cultural ganha maior relevância na comunidade
internacional. A reconstrução é, assim, vista como um desafio em desenvolvimento,
devendo sempre incluir no processo as comunidades afetadas (Barakat, 2007). A
reconstrução patrimonial tem vindo a ser referida nos discursos políticos como
produtora de estabilidade global e como um caminho para a manutenção da paz.

Sobretudo depois da II Guerra e no início deste século XXI surgem Convenções e


Cartas que pretendem definir e controlar as reconstruções de património cultural. A
Carta de Veneza, de 1964, recusa a reconstrução de ruínas, defendendo serem apenas
possíveis intervenções pelo método da anastilose9. Alerta para a questão de a
reconstrução poder levar à perda de autenticidade e do valor arquitetónico,
considerando mais adequadas as abordagens de proteção e conservação patrimonial
(Lilas, 2017). A Carta australiana, de 1980, defende a reconstrução do património
cultural o mais fiel possível ao seu estado de conservação anterior, usando materiais e
técnicas tradicionais e modernas acompanhadas de documentação sobre esse
património. A Carta canadiana de 2008 fala da reconstrução como um processo que faz
reviver os valores culturais de um edifício. A Carta de Cracóvia, de 2000, defende serem
de evitar as reconstruções totais do património cultural, recomendando ficar-se pelas
pequenas reconstruções, baseadas em documentação detalhada e com precisão
inquestionável. A Carta de Washington, de 1987, pede o respeito pela escala, área,
tamanho, bem como o uso de elementos contemporâneos que possam enriquecer a

9 Técnica de reconstrução ou reintegração de um monumento em ruínas, a partir do estudo das peças o


u fragmentos que o compõem, eventualmente com novos materiais a complementarem as peças origina
is (ICOMOS, 1964).

35
nível cultural o património. A Declaração de Dresden, de 1982, que comemora 37 anos
da reconstrução da cidade, revela as técnicas de restauro e reconstrução que foram
importantes para Dresden e que podem ser adotadas para casos semelhantes (Lilas,
2017).

A viragem de pensamento sobre a reconstrução patrimonial acontece com a


Carta de Nara, em 1994. Esse documento materializa a apresentação de uma nova
perspetiva sobre a reconstrução do património cultural. A Carta de Nara demonstra que
a autenticidade do património cultural é conferida pela sua contextualização na
comunidade, pelo simbolismo e valor cultural que lhe são atribuídos, deixando claro que
não depende apenas dos aspetos mais tangíveis (Naifeh, 2019). É considerado
património cultural tudo aquilo a que as comunidades atribuam esse título e dele
usufruam. Segundo esta perspetiva, a sua recuperação é uma necessidade, se bem que
seja um processo longo já que não existe uma fórmula de reconstrução que se aplique
a todo o património, devendo cada caso ser analisado individualmente para se alcance
um plano de atuação o mais adequado possível (Lilas, 2017).

A Recomendação de Varsóvia, de 2018, sob a alçada da UNESCO, defende que a


reconstrução é um processo que não deve ser isolado da assistência humanitária
prestada durante os conflitos armados. Defende igualmente que as comunidades devem
ser envolvidas no processo e as suas necessidades ouvidas, o que exige tempo para se
refletir e delinear um plano de ação. A reconstrução patrimonial pode inclusivamente
melhorar a qualidade de vida da comunidade onde o património cultural se insere, não
descurando a necessidade de incluir no plano de reconstrução as marcas da destruição
ocorrida e seguindo sempre inventários, registos e documentação adequada para que
não fique comprometido o respetivo valor cultural. Este documento refere ainda que
cada geração tem o direito de contribuir para o legado cultural da sua comunidade,
participando nos processos naturais e históricos de mudança e transformação
sociocultural. A par disto, deve ser feito um investimento na sensibilização e educação
para prevenção de futuras destruições. De um modo geral, a UNESCO deixa claro que
não existem objeções para transportar, transferir ou reconstruir património cultural que

36
esteja ameaçado por trabalhos públicos ou privados, se essa for a única forma de o
proteger (UNESCO, 2018).

Assim, o processo de reconstrução patrimonial pode ser encarado por dois


ângulos distintos: a visão tradicional ocidental que promove sobretudo a proteção física
do património e se preocupa com que não se perca a sua autenticidade, entendida como
inerente ao bem; e uma nova perspetiva que dá primazia à recuperação da identidade
cultural local através da reconstrução patrimonial que deve incluir, ou até centrar-se,
nos aspetos intangíveis.

Quanto aos resultados efetivos, é difícil documentar os benefícios práticos da


recuperação ou reconstrução do património cultural. Contudo, é sabido que ajuda a
reestabelecer o espírito de comunhão e a identidade cultural das comunidades que dela
beneficiam. Há a tendência de subvalorizar o património, só lhe dando o devido valor
quando o perdemos ou está ameaçado por fatores externos. Assim sendo, a sua
reconstrução leva a um fortalecimento da respetiva cultura em cenários pós-guerra.
Este é um tópico que ainda gera polémica e discordância entre os que são a favor e os
que são contra a reconstrução do património cultural, mas vai ganhando terreno a visão
de que a cultura e o património cultural devem estar ao serviço da sociedade e não
apenas em estruturas como museus (Naifeh, 2019). Por esta via, a cultura e o património
cultural são reconhecidos como podendo desempenhar um papel central na superação
das crises humanitárias, embora continuem a subsistir pessoas que acreditam que a
única prioridade a ter em conta em cenários pós-conflito seja a garantia de bens de
primeira necessidade. A frase: “a cultura tem de esperar” (Stanley-Price, 2005, p. 6)
traduz essa crítica ao esquecimento da recuperação do património. A cultura parece
assim ser vista como um obstáculo à recuperação urbana em vez de uma vantagem.

É importante entender a reconstrução como um processo de longa duração, que


precisa de se concretizar em articulação com as populações. No entanto, em cenários
de pós-guerra, as prioridades de reconstrução das populações locais podem não ser
óbvias para as autoridades nacionais e internacionais (Barakat, 2007, p. 30). Por outro
lado, no caso de países multiétnicos, a reconstrução pode ser entendida como um ato
agressivo para um dos grupos. Contudo, a reconstrução transporta sempre alguma

37
esperança e relembra a importância do papel da memória para as comunidades, sendo
também um protesto face à tentativa de aniquilar as identidades culturais. Para que
assim seja, as políticas do património devem envolver a sociedade e devem ser uma
peça de referência para a sociedade em questão e não apenas visarem a atração turística
(Littlefield, 2018, p. 222). Na ótica de Barakat, em tempos de guerra, as populações não
devem ser impedidas de se abrigarem em locais considerados património cultural, seja
ele de valor local, nacional ou internacional. Caberá às organizações internacionais,
autoridades nacionais e locais comprometerem-se para assegurar a reparação e a
proteção do património cultural Mundial depois da guerra. Contudo, as fontes de
financiamento para a reconstrução patrimonial são limitadas e dependentes da atração
de investimentos externos (Barakat, 2007, p. 31).

A reconstrução do património cultural também deve ter uma dimensão de


promoção de recuperação socioeconómica. Ignorar essas necessidades das populações
durante o processo de reconstrução do património é desperdiçar uma oportunidade de
combinar a reconstrução dos monumentos com uma assistência humanitária mais
alargada às populações (Barakat, 2007, p. 37). Porque as prioridades das comunidades
locais podem não ser as mesmas dos atores externos, é imprescindível existir uma visão
partilhada da reconstrução (Doppelhofer, 2016).

Em termos conclusivos, é possível identificar alguns pontos que parecem ser os


mais urgentes e importantes. A saber: é de incentivar a utilização de tecnologias para a
digitalização dos inventários como ações imediatas; urge fazer a identificação do
património móvel que se encontra em risco de tráfico ilícito, assim como combater o
mesmo; devem ser fomentadas as iniciativas que promovam o regresso dos habitantes
às regiões afetadas. Em casos como o de Palmira, a UNESCO realça a importância de
reabilitar o Museu de Palmira, que considera dever ser uma das prioridades dos
especialistas. O Museu já representava a diversidade cultural e era um símbolo de
tolerância no passado, pelo que a sua reabilitação terá o efeito de continuar a transmitir
essa mensagem. Os documentos apelam ainda à cooperação internacional para que haja
um rápido planeamento e análise de campo acerca do que pode ser reconstruído
(UNESCO, 2019).

38
Para terminar, convém reter que a reconstrução do património cultural não deve
apagar as fases da história do próprio património, incluindo os episódios de destruição,
que devem ser integrados no processo de reconstrução. A preservação das marcas da
destruição é benéfica tanto para as gerações atuais, como as futuras para que todas
reflitam e reconheçam que o património cultural é um processo vivo e em constante
mudança, que pode ser perdido ou esquecido quando não é protegido ou quando se
torna destituído do seu valor cultural e simbólico para determinada comunidade.

39
2. A UNESCO e o sonho de solideriedade internacional para o património
cultural

2.1. A UNESCO

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, mais


comumente conhecida como UNESCO, é uma agência especializada da Organização das
Nações Unidas (ONU), sediada em Paris e com vários escritórios espalhados pelo mundo.
Foi fundada a 16 de novembro de 1945, logo no pós-II Guerra Mundial, com os objetivos
centrais de manter a paz e a segurança mundiais. Assim, a UNESCO compromete-se a
atuar em cinco áreas que considera serem fundamentais para a manutenção da paz e a
promoção da liberdade de pensamento, informação e expressão – Educação; Ciências
Naturais; Ciências Sociais e Humanas; Cultura; Comunicação e Informação. Atualmente,
conta com 195 Estados-membros e 10 Estados associados ou com estatuto de
observador10.

A ideia da criação de uma organização que abordasse a Cultura e a Educação é


anterior à II Guerra Mundial. A antecessora da ONU, a Liga das Nações, criou em 1922
um Comité Internacional de Cooperação Internacional (CICI), um órgão consultivo e
composto por pessoas com base nas suas qualificações pessoais. Em 1925, é criado o
Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (IICI) para atuar como uma agência
executora do CICI. Contudo, os seus trabalhos foram interrompidos com o início da II
Guerra Mundial, não tendo havido progressos significativos deixados por estas
organizações sobre a Educação e a Cultura (UNESCO, 1987).

Antes do término da II Guerra e com a vitória à vista, os Aliados deliberam sobre


o futuro geopolítico da Europa e a criação de uma organização internacional para mediar
a paz e a segurança a nível internacional. Depois da assinatura da Carta do Atlântico e
da Declaração das Nações Unidas, a Conferência de Ministros Aliados da Educação
conclui, em Londres, os trabalhos que já havia realizado entre 1942 e 1945. Os Aliados
fazem saber pela Declaração de Moscovo (1943) da necessidade internacional de

10
https://www.unesco.org/en/brief

40
criação de uma organização que ajude a manter a paz e a promover a educação e a
tolerância no pós-guerra. Este acordo foi celebrado entre a China, o Reino Unido, os
Estados Unidos da América e a União Soviética. Seguidamente, a Conferência de
Dumbarton Oaks (1944), em Washington, também sublinha a importância da criação de
uma organização internacional para este efeito e esboça os princípios do que virá a ser
a Carta das Nações Unidas. Durante a Conferência das Nações Unidas, realizada em São
Francisco de abril a junho de 1945, debatem-se aqueles princípios e convoca-se uma
nova Conferência para a criação desta organização internacional. De 1 a 16 de novembro
do mesmo ano, tem lugar, em Londres, a Conferência da Constituição da UNESCO, que
foi assinada por 37 países, e estabelecida uma Comissão Preparatória. Esta atuou de 16
de novembro de 1945 a 4 de novembro de 1946, data em que é apresentada e ratificada
a Constituição da UNESCO que entra, assim, em vigor e tem vindo a sofrer alterações ao
longo das décadas.

A Carta das Nações Unidas já tinha sido assinada a 26 de junho de 1945 por 50
países, entrando em vigor a 24 de outubro desse ano. Pretende evitar novos conflitos
armados e reafirmar e proteger os direitos fundamentais do Homem, através de uma
prática de tolerância para a manutenção da paz e da segurança internacionais. Depois
de uma menção inicial à cultura, surgem claros os seus objetivos: “realizar a cooperação
internacional, resolvendo os problemas internacionais de carácter económico, social,
cultural ou humanitário, promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem
e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou
religião” (ONU, 1945).

No preâmbulo da Constituição da UNESCO, pode ler-se a icónica frase do seu


primeiro diretor-geral, Julian Huxley, que resume os motivos da sua criação e missão:
“uma vez que as guerras começam nas mentes dos homens, é nas suas mentes que
devem ser construídas as defesas da paz” (UNESCO, 1946). O preâmbulo diz ainda que
“o desconhecimento dos modos de vida dos outros tem sido uma causa comum, durante
a história da humanidade, de suspeita e desconfiança entre os povos do mundo através
da qual as suas diferenças têm levado a guerras”. A UNESCO é, assim, criada com o
propósito de combater a ignorância, os estereótipos e os preconceitos, a desconfiança

41
pelo diferente em termos culturais, entendidos como os grandes fatores que podem
resultar em guerras e destruição. Segundo a organização, a difusão da cultura e o
fomento da educação são as armas indispensáveis para a proteção da paz, liberdade e
dignidade do ser humano, a par do desenvolvimento de um espírito de tolerância e de
compreensão mútua. Devido às mais variadas experiências bélicas, os governos
internacionais percebem que a manutenção da paz duradoura não se pode basear
apenas em acordos políticos e económicos, mas também na solidariedade e na
transmissão de valores de humanidade de geração em geração. Ficam, assim, assentes
na sua Constituição os princípios criadores da UNESCO: promoção da paz e da
segurança; cooperação internacional; fomento da educação, ciência e cultura, a fim de
promover o respeito entre as nações e os Direitos Humanos, que não devem ser negados
a nenhum dos povos do mundo através da Carta das Nações Unidas. A UNESCO propõe-
se colaborar para a compreensão mútua dos povos e a livre circulação de ideias;
impulsionar a difusão da educação e da cultura; promover o igual acesso a
oportunidades educativas; assegurar a proteção da “herança mundial” assente em
todos os tipos e manifestações de património cultural.

A sua Constituição foi pela primeira vez alterada em novembro de 1954, em sede
de Conferência Geral, para especificar que os membros do Conselho Executivo
representavam os Estados-membros e não os seus interesses pessoais. Esta decisão
moldará a atuação da UNESCO em vários campos e, principalmente, na questão da
neutralidade política. Em 70 anos de história desde a sua formação, a UNESCO
enfrentará diversos problemas de atuação, nomeadamente, durante o período da
guerra fria, da descolonização, do desmantelamento da URSS, dos conflitos no Médio
Oriente e, mais recentemente, da guerra na Ucrânia. É importante salientar que a
UNESCO e a possibilidade de aplicação dos seus projetos estão dependentes do
financiamento concedido pelos Estados-membros e por contribuições voluntárias.
Como se compreende, a falta de financiamento compromete a eficácia e a concretização
dos projetos nas mais diversas áreas, mas principalmente na da proteção e reconstrução
do património cultural.

42
Embora a área de investigação da presente dissertação se prenda com o
património cultural, é importante referir que ao longo da sua história, a UNESCO tem
desenvolvido importantes projetos nas outras áreas de atuação da organização. O
combate ao racismo, o esforço pela redução da taxa de analfabetismo, a promoção da
igualdade de género, as assistências humanitárias em cenários de conflito armado ou de
catástrofes naturais, a consciencialização para as alterações climáticas e a denúncia de
ataques aos Direitos Humanos, são alguns dos projetos que tornam a UNESCO um ator
importante e imprescindível no cenário internacional.

Sendo a UNESCO uma organização definida como politicamente neutra, algumas


das decisões tomadas a nível do património cultural, ciências e educação foram, pelo
contrário, interpretadas por alguns dos Estados-membros como de teor político,
resultando nas suas saídas da organização. Em 1956, sai da organização a África do Sul
sob a justificação de que várias publicações da UNESCO causariam interferência nas
questões raciais do país. A África do Sul só retornará à organização em 1994, depois do
fim do apartheid e com a presidência do país por Nelson Mandela (UNESCO, 1955). Em
1966, também Portugal, na altura um recente Estado-membro, recebe uma condenação
por parte da UNESCO por ter práticas neocolonialistas, racistas e discriminatórias.
Portugal acaba por sair da UNESCO em 1971, apontando “razões políticas”, só voltando
à organização em 1974. Em 1984, é a vez dos Estados Unidos da América saírem da
UNESCO, alegando não se reverem na atuação universalista da organização, pela qual
estaria a faltar à conduta a que se propôs na sua criação por assumir “tendências
políticas”. Só reintegrará a UNESCO em 2003, mas, voltará a abandonar em 2019
juntamente com Israel. Em 1985, também o Reino Unido tinha decidido sair da UNESCO,
regressando em 199711.

Outro exemplo é o cancelamento do financiamento da UNESCO pelos EUA após


a admissão da Palestina como Estado-membro, levando mesmo, em 2017, ao anúncio
de nova saída da organização pelos Estados Unidos e também por Israel, ambos
considerando a política da UNESCO como anti-israelita por criticar a ocupação da

11
Os Estados Unidos anunciam em junho de 2023 o seu regresso à UNESCO.

43
Palestina por Israel, considerar certos territórios como herança palestiniana e ainda a
suposta admissão de um candidato árabe a diretor-geral da UNESCO. Ambos os países
ainda não tinham regressado à UNESCO, embora a organização desejasse que o
fizessem. A saída dos dois países causou um impacto significativo no já crónico
subfinanciamento da organização internacional.

Embora a UNESCO tenha a missão de preservar o património cultural e promover


com o seu auxílio a manutenção da paz no mundo, a verdade é que os seus programas
de proteção do Património Mundial têm sido afetados por políticas neoliberais que se
refletem em diferenciadas apropriações culturais. Os processos de classificação do
Património Mundial são muitas vezes influenciados por interesses políticos e
económicos, o que pode levar à exclusão de determinadas culturas. Além disto, a
UNESCO tem mostrado ao longo dos anos não ter capacidade ou recursos suficientes
para preservar o património cultural, especialmente em países em desenvolvimento,
onde os recursos financeiros são escassos para este tipo de iniciativas.

2.2. A UNESCO e a sua linha de pensamento sobre o património cultural: da


pretensão de universalismo à diversidade cultural

Como já anteriormente mencionado, a área cultural é uma das áreas centrais de


intervenção da UNESCO. Segundo a sua própria Constituição, propõe-se fomentar a
criatividade e a criação de projetos que envolvam as áreas culturais; preservar a
diversidade cultural; promover o incentivo à leitura e a procura de informação, a livre
circulação de ideias, a liberdade de expressão e de imprensa. Em particular, quanto ao
património cultural, a UNESCO desde a sua fundação que se compromete a contribuir
para a sua proteção. Assim, os projetos da UNESCO têm passado pela promoção da
diversidade cultural, preservação da cultura e da história nas suas mais variadas escalas
(internacional, nacional, regional) e criação de acordos internacionais de cooperação
para a preservação e a salvaguarda do património cultural, tendo a criação da
Convenção do Património Mundial e, consequentemente, da Lista do Património
Mundial, como o projeto mais notável da organização. Estes documentos surgem em
1972, tendo sido atribuídas as primeiras classificações de Património Mundial da
Humanidade a partir de 1978. Por outro lado, como foi demonstrado no Capítulo 1, o

44
próprio conceito de património cultural tem vindo a ser continuamente reformulado e
atualizado para que seja o mais inclusivo e abrangente possível. Esse processo é
ilustrado pelo conteúdo das Convenções de 2003 e de 2005, relativas respetivamente
ao património cultural Imaterial e à Proteção da Diversidade das Expressões Culturais.

Pode-se, portanto, firmar que, desde a sua fundação, a UNESCO tem visto o
património cultural como um instrumento de grande utilidade para o objetivo de se
alcançar posturas universais e a cooperação internacional. Para o seu primeiro Diretor-
geral, Julian Huxley, era clara a ideia do património, de “apenas uma agenda para o
mundo”, ter de se transformar num fator de união e de celebração da diversidade. A
organização pretende ainda ser uma mediadora entre os decisores políticos nacionais,
com capacidade de guiar os países nas suas decisões sobre o património cultural. Além
disso, vê a preservação dos bens patrimoniais como uma missão de compromisso para
com as gerações futuras.

O património cultural tem sido afetado por desastres naturais, regimes


extremistas, conflitos armados e até destruição intencional por parte de grupos
terroristas. O desastre dos Budas Bamiyan, no Afeganistão, destruiu um bem classificado
como património cultural da Humanidade, sendo o primeiro de vários episódios
semelhantes de “limpeza cultural” que põem em risco bens classificados como
Património Mundial. Quanto aos efeitos dos conflitos armados eles são diversos. Além
de estar exposto à possibilidade de destruição, os trabalhos arqueológicos têm de ser
interrompidos; conflitos entre fações nacionalistas comprometem o património cultural
de comunidades negligenciadas pelo Estado e pela comunidade internacional. A
negligência de comunidades ou minorias leva à adoção de apenas uma versão da
história, o que pode resultar em relatos parciais de ocupações, crimes de guerras e
genocídios. Com a politização do património cultural e o choque de perspetivas, a
conservação é relegada para segundo plano, com os Estados-membros e as suas
representações na UNESCO a priorizarem os fatores políticos e a capitalização do
património. Ou seja, os bens patrimoniais são sobretudo postos ao serviço da
Diplomacia Cultural. As redes políticas e as relações entre os Estados-membros não
consideram em si mesmo os bens patrimoniais como tópico central de discussão, o que

45
os torna vulneráveis a perigos diversos: desenvolvimento urbano; degradação
ambiental; alterações climáticas; comércio; turismo. A influência de certos Estados-
membros mantém-nos despreocupados com a censura internacional sobre os seus
problemas domésticos de conservação. A exceção vai para os países em
desenvolvimento, que contam com menos bens classificados como Património Mundial
e têm menos influência na esfera internacional e dentro da própria UNESCO, os quais
não escapam à censura pela sua gestão dos bens culturais.
Atualmente, a UNESCO é menos promotora de ideias e discussões e está mais
centrada na questão da gestão do património cultural, privilegiando a conservação
através dos seus programas de assistência técnica. O restauro do património cultural
substituiu a descoberta arqueológica que dominou no pós-II Guerra Mundial. Além
disso, nos anos mais recentes, a UNESCO passa de uma organização agregadora de
ideias e mobilizadora da cooperação internacional, para se tornar mediadora
internacional e definidora dos problemas e das soluções sobre o património cultural. A
UNESCO passou de uma organização internacional humanista e intelectual para uma
organização de caráter intergovernamental. A perspetiva da UNESCO sobre o
património cultural passa pela uniformização das suas formas de gestão e de
conservação, bem como do estabelecimento de um sistema internacional de
reconhecimento do que é ou não é Património cultural Mundial (Meskell, 2018).

No cenário do pós-II Guerra, surge a Convenção de Haia em 1954, cuja


designação completa é Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de
Conflito Armado. Ratificada em 1999, a Convenção de Haia pretende melhorar a
proteção dos bens culturais antes e durante os conflitos armados, através do
estabelecimento de um sistema de proteção internacional. Devem ser tomadas medidas
preparatórias em tempos de paz para a salvaguarda dos bens patrimoniais através de
inventários, planos de emergência e de transporte de tudo o que for móvel para a sua
proteção. Por outro lado, as partes em conflito devem evitar utilizar o património
cultural como bases militares ou objetivos estratégicos. Os signatários comprometem-
se a assegurar a imunidade dos bens culturais da outra parte em conflito (UNESCO,
1954).

46
Em 1964, pela Carta de Veneza, fruto do II Congresso Internacional de
Arquitetos, o foco são as preocupações com a conservação e o restauro do património
cultural. A Carta reconhece a responsabilidade coletiva de proteger o património
cultural para as gerações futuras, mantendo intacta a sua riqueza cultural e
autenticidade. Estes princípios já tinham sido introduzidos pela Carta de Atenas, de
1931, que impulsionou a criação de documentos nacionais de proteção ao património
cultural e também contribuiu para a criação de organizações como a UNESCO e o ICOM.
A noção de ‘monumento histórico’ define-o como englobando a criação arquitetónica
que testemunhe uma civilização, uma evolução significativa ou um acontecimento
histórico. A conservação e o restauro devem contribuir para o estudo e a salvaguarda
do património cultural, visando tanto a obra de arte como o testemunho histórico,
sendo que a sua manutenção deve ser permanente (ICOMOS, 1964).

Durante os anos de 1950 e 60, a UNESCO preocupou-se sobretudo com objetivos


a curto-prazo, já que estava dependente da ONU e da influência nela presente do
liberalismo norte-americano e da visão ocidental que ainda concedia particular ou
exclusivo destaque aos aspetos físicos do património cultural. Com Luther Evans como
diretor-geral da UNESCO, em 1953, a organização passará a promover e a priorizar a
assistência técnica, em detrimento das reformas na educação, e projetos de
investigação na área do património cultural. Assim, nos anos de 1960 tem início a
Campanha da Núbia que durará 20 anos e que concretiza o desejo do fundador da
UNESCO da cooperação internacional para a preservação de património cultural. Mais
tarde, surgirá, fruto do sucesso da colaboração internacional durante a Campanha da
Núbia, a Convenção de 1972, perpetuando o esforço coletivo para a proteção e
preservação do património cultural.

A Campanha da Núbia, no Egito, consistiu na deslocação do grande Templo de


Abu Simbel de modo a evitar que a construção da nova barragem de Assuão, no Nilo, o
deixasse submerso. Durante 20 anos, uma equipa de especialistas internacionais e a
UNESCO colaboraram para a transferência de 22 monumentos. A iniciativa é, então, tida
como o expoente máximo de cooperação e solidariedade internacional para com o
património cultural. Embora a Campanha da Núbia tenha sido um sucesso de

47
preservação patrimonial pela bem-sucedida deslocação que conseguiu concretizar,
revelou também as ambições e intenções, menos intelectuais, dos Estados-membros
envolvidos na missão. A força civilizacional do Egito torna-se alvo de disputa do ocidente
que exige os seus direitos à propriedade da herança cultural do Antigo Egito. Além disso,
faz-se sentir igualmente a ambição de adquirir e levar para os respetivos países
artefactos obtidos com as escavações arqueológicas, materializando as ambições
económicas e políticas que também podem estar associadas ao património cultural.

Mas é em resultado desta campanha tida por bem-sucedida e


internacionalmente apoiada que surge, em 1972, a Convenção que criará o projeto mais
conhecido da UNESCO para o património cultural – a Lista de património cultural
Mundial. A Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural,
reconhece a importância de proteger os bens de património cultural e natural,
estabelecendo objetivos para a cooperação internacional no ramo da sua proteção e
preservação. Nos termos desta Convenção é criada a Lista de património cultural
Mundial onde podem ser incorporados monumentos e paisagens naturais, entendidos
como materializando manifestações de “valor excecional universal” e património
comum da humanidade. O Comité do Património Mundial é composto por
representantes dos Estados signatários da Convenção e é responsável pela manutenção
da Lista do Património Mundial e de assegurar a proteção dos bens assim classificados.
O Comité reúne-se anualmente para avaliar as candidaturas de bens à Lista e para rever
o estado de conservação dos bens que a integram (UNESCO, 1972).

É indesmentível que com a constituição e aplicação da Lista do Património


Mundial se dá uma hegemonia de candidaturas e inscrições do património cultural
europeu e norte-americano, perpetuando uma perspetiva eurocêntrica de viver e
conservar o património. A própria criação da Lista resulta da ambição de várias nações
em verem o seu património cultural reconhecido mundialmente, assim o tornando
compatível com inúmeras agendas políticas e económicas que beneficiam dos bens com
a etiqueta de Património Mundial se transformarem em atrações turísticas. O domínio
e manutenção das ideias da monumentalidade patrimonial e da preservação ocidentais,
bem como as suas inscrições na Lista de Património Mundial, aumentam o risco de má

48
interpretação do passado de comunidades que não tenham património cultural que se
enquadre na perspetiva ocidental. Segundo as estatísticas da UNESCO sobre a Lista de
património cultural Mundial, esta conta com 900 bens culturais até ao momento. A
região da Europa e da América do Norte têm classificados como tal 469 bens; a América
Latina, 100 bens; a Ásia e o Pacífico, 195 bens; os Estados Árabes, 82 bens; e África,
apenas 54 bens12.
Face aos números de bens classificados como Património Mundial, é claro o
domínio ocidental, tendo mais de metade dos bens culturais no seu território. É urgente
então, perceber quem são os beneficiários da conservação patrimonial internacional e
quais são as comunidades subalternizadas. É importante não esquecer que para lá do
reconhecimento internacional do património cultural de um país, as candidaturas bem-
sucedidas podem legitimar as pretensões de uma determinada identidade cultural sobre
outras e uma versão única da história de determinado território. Conscientes desta
realidade, há ONG’S que assumem o papel de denunciar os abusos e as más-condutas
dos Estados-membros, já que a UNESCO se mostra incapaz de o fazer. Pode ser
confirmado que alguns Estados usam a sua nomeação para integrar o Comité como meio
para submeterem candidaturas do respetivo país, ou alcançarem as suas ambições, pois
ter assento no Comité significa ter mais influência nos outros assuntos através da
diplomacia cultural (Meskell, 2018).

É importante compreender que a Lista do Património Mundial não é apenas uma


lista de bens com “valor excecional universal”, mas também uma lista de bens que
representam culturas e regiões específicas. É necessário encontrar formas de assegurar
a sua conservação a longo prazo, bem como apurar as consequências positivas e/ou
negativas para as comunidades diretamente ligadas a esses bens. Ademais, sendo uma
Lista de reconhecimento internacional, os bens nela inscritas também se podem tornar
alvos políticos de destruição intencional.

Em 2001, a UNESCO publica a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural.


Nela se reafirma que “a cultura deve ser vista como um conjunto de características

12
https://whc.unesco.org/en/list/stat#d1

49
espirituais, materiais, intelectuais e emocionais diferenciadoras de uma sociedade ou
de um grupo social, e que compreende, para além da arte e da literatura, os estilos de
vida, as formas de viver em conjunto, os sistemas de valores, as tradições e as
convicções” (UNESCO, 2001). Em 2003, é publicada a Convenção para a Salvaguarda do
património cultural Imaterial que, como já foi debatido no Capítulo 1, traduz uma
viragem na linha de pensamento da UNESCO sobre o património cultural, processo em
grande parte devedor da pressão, nomeadamente, dos países sul-americanos. Pela dita
Convenção do património cultural imaterial, reconhece-se a interligação entre todos os
tipos de património nas suas dimensões material e imaterial, bem como do seu carácter
mutável e em contínua transformação. A noção de património cultural imaterial surge
como particularmente importante para as comunidades, em especial as indígenas.
Desse modo, é uma outra via de se contribuir para a manutenção da diversidade cultural
(UNESCO, 2003). A Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das
Expressões Culturais, assinada em 2005, insiste na relevância desse fator, destacando a
importância da diversidade cultural para a humanidade, um direito humano e de
extrema importância para o desenvolvimento nacional e internacional (UNESCO, 2005).

2.3. Reconstruir o património cultural na viragem do novo século: uma exceção ou


a nova tendência?

Sendo indesmentível a politização do património cultural e a sua utilização como


arma política nas relações entre a UNESCO e as nações, torna-se pertinente referir os
casos de reconstrução patrimonial anteriores aos dos projetos na Síria. A UNESCO
estabelece no Guia Operacional para a Implementação da Convenção do Património
Mundial que a reconstrução apenas se justifica em casos excecionais, que não
comprometam a autenticidade do sítio e que sejam baseados em técnicas tradicionais
e num acervo documental completo. Contudo, a partir do Documento de Nara, assinado
em 1994 e aprovado pela ICOMOS, os projetos de reconstrução de património cultural
tendem também a basear-se nos elementos intangíveis ligados ao bem patrimonial e
não apenas nos aspetos físicos, de monumentalidade e antiguidade.

Durante as suas primeiras décadas de história, a UNESCO pareceu ignorar a


reconstrução como uma opção viável para a preservação e reabilitação do património

50
cultural. Contudo, a partir da década de 1980 e nos anos mais recentes, a reconstrução
passou a tema da ordem do dia, embora polémico e divisor de opiniões. É na década de
1980 que o Comité do Património Mundial abre a primeira exceção de classificar como
Património Mundial o reconstruído centro histórico de Varsóvia que tinha sido destruído
durante a II Guerra Mundial. Esta decisão, tomada ainda em cenário de guerra fria, é
vista com bons olhos pela comunidade internacional, servindo uma simbolização da
cultura e do patriotismo polaco. Em 2005, na sequência da guerra da Jugoslávia e da
posterior reconstrução das suas cidades, também é classificada como Património
Mundial, a área da Antiga Ponte da Cidade Velha em Mostar, na Bósnia-Herzegovina. A
sua classificação foi justificada com o argumento da reconstrução ter restaurado o valor
cultural e o simbolismo intangível do sítio. Também em 2010, desta vez na sequência de
um incêndio, o Comité aprovou a reconstrução dos Túmulos dos Reis Buganda em
Kasubi, no Uganda. Essa reconstrução teria de seguir rigorosamente as formas de
construção tradicionais e a documentação existente sobre o monumento. Em 2012,
contrariando os apelos da diretora-geral da UNESCO, grupos extremistas destruíram
intencionalmente alguns mausoléus no Mali classificados como Património Mundial. A
UNESCO promoveu de imediato um projeto de reconstrução, terminado em 2015,
invocando os valores intangíveis dos mausoléus e o seu simbolismo como a herança do
passado da cidade de Tombuctu.

A reconstrução patrimonial mais recente aconteceu em Mossul, uma cidade do


Iraque, com um projeto de três anos lançado pela UNESCO. Abordarei com mais
pormenor este projeto por ser o mais recente e por se assemelhar aos casos da Síria,
quer pelo contexto cultural geral, quer pelo cenário de conflito armado envolvendo
ataques terroristas. O projeto “Reviver o Espírito de Mossul” foi iniciado em 2018,
encontrando-se ainda em desenvolvimento por causa da pausa nos trabalhos devido à
recente pandemia mundial de Covid-19. Este projeto propõe-se reconstruir a zona
histórica de Mossul, fazer reviver a sua cultura e vida intelectual e reabrir as escolas e
as universidades. Em 2018, Mossul estava 80% destruída em consequência da guerra
civil e subsequente ocupação da cidade pelo Estado Islâmico.

51
Desde o início dos trabalhos já foram reconstruídas mais de 100 casas na zona
histórica, levando ao retorno de cerca de 70 famílias. Este é entendido como um
importante passo para restaurar o acesso da comunidade à sua história, cultura e
diversidade religiosa. O projeto tem também ajudado a criar milhares de postos de
trabalho e abrange campanhas de sensibilização para a proteção do património cultural.
Tendo a cidade sido um importante símbolo de tolerância e coexistência de várias
religiões ao longo dos séculos, a reconstrução do seu património cultural deve
acompanhar as missões humanitárias, ajudando a garantir o retorno das populações, a
criação de postos de trabalho e o fomento da economia (UNESCO, 2022).

Até ao momento foram recuperados e catalogados mais de 7000 artefactos que


devem ser encaminhados para futuras ações de conservação. Além da reconstrução de
habitações e do restauro e recuperação de artefactos roubados, o projeto prevê a
reabilitação musical, o fomento da leitura e do regresso da vida cultural à cidade.
Encontra-se ainda em processo de reconstrução a importante mesquita de Al-Nouri,
destruída em 2014 pelo Estado Islâmico, ato reivindicado como símbolo do início do seu
califado na região. As destruições consecutivas de Mossul e do seu património cultural
chocaram tanto a nível nacional como internacional. Para a sua reconstrução, a UNESCO
recomenda aos especialistas no terreno a utilização de técnicas e materiais tradicionais.
A organização prevê que a reconstrução da Mesquita de Al-Nouri esteja concluída no
final do verão de 2023. Durante os trabalhos de reabilitação, houve descobertas
arqueológicas que integrarão novas salas na mesquita reconstruída, exibindo, assim, o
avanço do conhecimento com o projeto de reconstrução da UNESCO (UNESCO, 2022).

Há incontáveis ataques ao património cultural durante os conflitos armados. A


sua destruição e subsequente ponderação de reconstrução, mostram a viragem cultural
na perspetiva sobre o património cultural. Os projetos anteriores de conservação e
reconstrução patrimoniais apresentavam uma abordagem mais preservacionista e de
valorização da monumentalidade, o que não se confirma no projeto de Mossul. Este
demonstra a adoção de uma nova perspetiva. No projeto de reconstrução e reabilitação
de Mossul, as comunidades passam a estar no centro das preocupações. São vários os
planos de reconstrução patrimonial que incentivam à descoberta arqueológica, ao

52
envolvimento das comunidades e à reinterpretação do património. Estas iniciativas
também fortificam os laços das comunidades ao património cultural de Mossul, na
medida em que ajudam a diminuir o desemprego e a pobreza, possibilitando a formação
de profissionais iraquianos para a gestão do seu património. A concretização desses
projetos de reconstrução transmite ainda uma mensagem de esperança e de paz.

Se, por um lado, o projeto de reconstrução de Mossul angariou mais de 110


milhões de dólares, com destaque especial nas doações dos Emirados Árabes Unidos
(EAU) e da União Europeia (EU), o certo é que estes valores descem significativamente
nas doações para o Fundo de Emergência para o Património. Sendo Mossul uma cidade
iraquiana usada como símbolo bastião pelo califado do Estado Islâmico no Iraque, o que
a eleva, portanto, a símbolo de intolerância e extremismo religioso, esses mesmos factos
tornam-se a razão justificativa das grandes doações da EU e dos EAU. Para a União
Europeia, através da reconstrução do património cultural, trata-se de enviar uma
mensagem positiva e de esperança à comunidade internacional, enquanto se combate
o Estado Islâmico e as consequências dos seus crimes de guerra. Para os Emirados
Árabes Unidos, que são maioritariamente islâmicos, trata-se da intenção de claramente
se distanciarem do extremismo religioso do Estado Islâmico. Analisando o volume total
de doações e o valor despendido em projetos relativos ao património cultural no ano de
2020, verifica-se que se atinge apenas cerca de 7 milhões de dólares. E este valor era
ainda menor nos anos antecedentes (UNESCO, 2017; UNESCO, 2018; UNESCO, 2019).

A um outro nível, tem vindo a tornar-se cada vez mais evidente que a
reconstrução patrimonial, para ser eficaz, precisa de ser acompanhada pela reabilitação
das próprias comunidades. A população afetada pela guerra, deve ver os bens de
primeira necessidade garantidos, para que possa aderir e participar de modo inclusivo
no resgate e na reconstrução do seu património cultural. Além disso, é fundamental
consultar e envolver as comunidades nos projetos de reconstrução patrimonial para que
possam contribuir com o seu conhecimento e emotividade na consideração local do
património cultural, o que permitirá alcançar resultados mais positivos e consistentes. É
importante a UNESCO ter esta consciência, levando em atenção a diversidade étnica,

53
religiosa e de opinião, para que as missões realizadas não sejam insensíveis às opiniões
e necessidades das populações locais.

A perspetiva da UNESCO sobre a proteção e a reconstrução patrimoniais tem


vindo a ser mais abrangente e adaptada às diversas culturas. A ideia de
monumentalidade e a perspetiva de preservação ocidental são percebidas como não se
adequando a todas as zonas geográficas e contextos culturais. Assim, o património
cultural é encarado como um processo em constante evolução e mudança. Os bens
culturais podem ganhar ou perder valor, deixarem ou passarem a ser entendido como
merecedores de proteção ou deixar ou passar a ter um papel na comunidade em que se
insere. Antes de ser classificado como Património cultural Mundial, é nas suas
comunidades que lhe deve ser conferido significado e simbolismo. Contudo, a UNESCO
tem-se preocupado com projetos de reconstrução aplicados apenas a bens classificados
como Património Mundial, delegando a gestão do restante património cultural aos
países onde estão enquadrados.

54
3. O património cultural na Síria

Sendo a reconstrução do património cultural na Síria o enfoque principal desta


dissertação, é importante dar conta do tratamento a que este tem sido submetido. O
capítulo 3 divide-se em três partes, cada uma dedicada à análise dos processos de
proteção, destruição e reconstrução patrimonial aplicados na Síria. Abordo brevemente
o que poderá vir a ser feito após o término da guerra civil na Síria.

3.1. A proteção do património cultural na Síria

Até ao início da guerra civil, em 2011, a Síria era considerada o país mais seguro
e culturalmente mais rico do Médio Oriente. Concentrava no seu território muitos bens
patrimoniais, testemunhos de uma herança marcada pela presença de várias
civilizações, reinos, religiões e respetivas arquiteturas, bem como duas das mais antigas
e continuamente habitadas cidades do mundo (Doppelhofer, 2016, p. 5). Os trabalhos
de proteção e conservação do seu património cultural foram uma realidade no país após
a independência, em 1946, tendo sido criada a Direção-Geral das Antiguidades e dos
Museus (DGAM) sob a alçada do Ministério da Cultura sírio. O processo de proteção
iniciado na segunda metade do século XX teve como principal objetivo colocar o
património cultural sírio em destaque a nível internacional. Uma das suas principais
conquistas em termos de proteção patrimonial foi a classificação de seis bens como
Património Mundial da UNESCO. Estas nomeações, além de fomentarem o turismo
internacional, permitiam a captação direta de fundos internacionais para obras de
conservação. A cidade histórica de Damasco tornou-se parte da Lista do Património
Mundial, em 1979, sendo seguida, em 1980, pela cidade histórica de Bosra e pelo sítio
arqueológico de Palmira. Em 1986 é a vez de Alepo; em 2006, de Crac des Chevaliers; e,
em 2011, das vilas históricas do norte da Síria13. Apresento em seguida um mapa,
disponibilizado pela UN-Habitat no seu relatório de dezembro de 2021, que ilustra o
património cultural sírio considerado de importância nacional, bem como os seis bens
classificados como Património Mundial.

13
https://whc.unesco.org/en/statesparties/sy

55
Figura 1: Mapa do património cultural na Síria (UN-Habitat, dezembro 2021)

56
Ainda antes de 2011, a UNESCO tinha apontado alguns problemas e lacunas que
estariam a comprometer a missão de proteger e preservar o património cultural sírio.
Recorrendo aos relatórios produzidos pelo governo sírio sobre os seis bens classificados
como Património Mundial, a organização internacional resume os problemas existentes
nos seguintes tópicos: fraco estado de conservação; utilização de técnicas
desadequadas de restauro; falta de instrumentos legais de proteção; falta de planos de
manutenção; crescimento urbano comprometendo as cidades históricas e/ou a
integridade do património cultural com nova construções; falta de recursos financeiros
e humanos; extração de pedras; alterações climáticas; construção de empreendimentos
turísticos demasiado perto dos sítios arqueológicos e ausência de uma zona de
segurança em redor destes14.

Segundo Y. Kanjou (2014), a guerra civil veio interromper os projetos de proteção


do património cultural encetados pela DGAM. Além dos planos de proteção e
preservação dos bens já classificados como Património Mundial, a DGAM preparava-se
para reabilitar outros sítios arqueológicos para que se pudessem candidatar à Lista e
contribuírem para dinamizar o turismo e a economia. A partir de 2011 e até hoje, a
DGAM tem tido a difícil tarefa de proteger um património que está distribuído por um
país em retalhos e é disputado entre o governo, forças rebeldes e forças terroristas
(Kanjou, 2014, p. 122). Um bom exemplo disto são as vilas históricas no norte da Síria,
localizadas junto à fronteira turca, que foram seriamente atacadas por vandalismo e
roubo de artefactos até a DGAM assumir o controlo do sítio arqueológico. Até 2011, o
organismo estatal tinha-se dedicado ao seu restauro e reabilitação, tendo em vista a
atividade turística, o que lhe veio a garantir lugar na Lista de Património Mundial.
Contudo, com o início da guerra civil, as antigas vilas foram das primeiras áreas a cair
nas mãos dos opositores, grupos armados e terroristas, deitando por terra todo o
trabalho até então realizado (Kanjou, 2014, p. 154).

14
https://whc.unesco.org/en/statesparties/sy/

57
3.1.2. O início da guerra civil e as ameaças à segurança do património cultural

Em 2011, sob a influência da Primavera Árabe, organizam-se manifestações na


Síria em tom de desagrado para com as políticas de Bashar Al-Assad, pedindo um regime
mais democrático e reformas sociais e políticas. O governo sírio responde com violência
aos manifestantes, levando a que grupos armados, apoiados por países ocidentais,
retribuam a violência. O que começa por ser uma série de manifestações pacíficas,
rapidamente escala para uma violenta guerra civil que dura há doze anos. No terreno, o
poder é disputado entre o governo sírio (apoiado pelo Irão e pela Rússia), as forças
rebeldes (apoiadas por vários países, entre os quais os Estados Unidos, a Arábia Saudita
e a França), e o Estado Islâmico. Entre essas disputas de poder e de território, as
populações e o património cultural são os que mais sofrem e saem prejudicados pelo
conflito. Se, em tempos de paz, proteger o património pode ser uma tarefa difícil, em
tempo de guerra, quando há falta de financiamento e de pessoal especializado, a tarefa
torna-se hercúlea. Sendo a Síria um país rico em testemunhos materiais de civilizações
antigas que atraem o interesse de museus, leiloeiras e colecionadores privados, esse
património cultural torna-se ainda mais vulnerável durante conflitos armados. Para
além das destruições intencionais levadas a cabo pelo Estado Islâmico, todos os bens
patrimoniais enfrentam o perigo do tráfico ilegal a que as populações também recorrem
como último recurso para resistirem à pobreza.

No início do conflito, a DGAM e alguns voluntários tentaram proteger ao máximo


os museus, sítios arqueológicos e artefactos dos bombardeamentos, vandalismo e
roubo. Um exemplo bastante emblemático foi a ação dos voluntários que rapidamente
construíram um forte em redor do Museu de Ma’ara e enterraram as suas antiguidades,
arriscando as suas vidas na linha da frente do conflito para salvar o património (UNESCO,
2016). Subsequentemente, com o país dividido, a DGAM tentou evitar o roubo e o
tráfico ilícito dentro e fora das suas áreas de influência, deslocando para sítios seguros
todos os artefactos que o tempo e os recursos humanos permitissem. Os trabalhos
passaram pela construção de paredes de cimento e barreiras temporárias em redor de
estátuas e museus. Além disso, a DGAM tentou comunicar com as respetivas
autoridades e comunidades dos sítios controlados pelas forças opositoras, procurando

58
negociar a sua intervenção e ajuda na proteção do património cultural dessas áreas. Ou
seja, a propósito do património é tentada alguma cooperação com as novas autoridades
e respetivas comunidades (Kanjou, 2014, p. 127).

Mesmo com a divisão territorial da Síria entre as partes beligerantes, o relatório


produzido em 2017, pela Autoridade do Turismo e Proteção de Antiguidades (ATPA)
avalia positivamente os esforços de conservação do património cultural no nordeste do
país, confirmando que nessa zona ocupada pelas Forças Democráticas da Síria
continuava no terreno um grupo de arqueólogos. Estes, com o apoio de fundos
internacionais, continuam a proteger o património cultural da zona e a fazer trabalhos
de restauro que mantêm em segurança os sítios arqueológicos. Em abril de 2022, um
habitante de Raqqa, uma cidade severamente devastada pela guerra, dá a conhecer o
seu testemunho sobre o conflito armado e a forma como se esforça para manter vivas
as tradições da sua comunidade15. Apresento um mapa com a ocupação da Síria pelas
forças em conflito, em 2016, ilustrando também a extensão máxima de território
ocupado pelo Estado Islâmico16.

15
https://npasyria.com/en/76418/
16
Political Geography Now. Civil War Control Map. 31 de março de 2016. Link:
https://www.polgeonow.com/2016/03/syrian-civil-war-control-map-april-2016.html.

59
Figura 2: Mapa da ocupação da Síria pelas forças em disputa, a 31 de março de 2016

De qualquer modo, a situação é extremamente difícil para os bens patrimoniais


em todo o território da Síria. Em 2013, a UNESCO, representada pelo Comité do
Património Mundial, decide colocar os seis sítios classificados como Património Mundial
na Lista do Património da Humanidade em Perigo, para que se possam tomar medidas
a nível internacional para prevenir danos ou a sua destruição. Contudo, antes da
assistência internacional agir, é importante que a Síria ative todas as proteções legais
existentes para que a atuação a realizar seja mais eficaz. Assim, desde o início do conflito

60
armado, a UNESCO incentiva a Síria à assinatura dos Estatutos de Roma do Tribunal
Penal17 Internacional e do Segundo Protocolo da Convenção de Haia, de 199918.

Em simultâneo, consciente da ameaça real do tráfico ilegal de antiguidades, a


UNESCO pede à comunidade internacional que a ajude a combater, seguindo as
indicações da Resolução 2199 das Nações Unidas19. Esforços concertados nesse sentido
demonstram com efeito que os Estados Unidos conseguiram recuperar 700 artefactos
que tinham caído nas mãos do Estado Islâmico. À medida que o conflito armado se ia
intensificando e o Estado Islâmico ganhava terreno na Síria, a então diretora-geral da
UNESCO, Irina Bokova, chamava a atenção para o facto de, nas guerras modernas, os
bens patrimoniais e as identidades culturais serem usadas como arma política. Apela
por isso à união de todas as comunidades do mundo para a proteção do património
mundial que considera ser importante para todos, defendendo que se deve tentar fazer
todos os possíveis para salvar a história: “precisamos responder àqueles que procuram
atacar o património, através da partilha de mais cultura, ainda mais conhecimento,
respeito e cuidado” (UNESCO, 2016). Defende ainda que os crimes contra o património
não podem ser separados dos crimes contra os Direitos Humanos, sendo imperativo
proteger o património e encarar essa tarefa como uma questão humanitária e de
segurança.

Desde o início do conflito armado que o património cultural se encontra


comprometido, mas sem dúvida que os ataques intencionais a ele dirigidos se
intensificaram com o crescimento da presença do Estado Islâmico no país. Em zonas
controladas pelos rebeldes ou pelos extremistas torna-se muito mais difícil o acesso por
parte dos funcionários da DGAM e da UNESCO. Mas também aí, e talvez aí em particular,

17
O Estatuto de Roma é o tratado internacional que criou as bases jurídicas para a implementação do
Tribunal Penal Internacional (TPI). Pensado no rescaldo da II Guerra, as negociações para a sua criação
começaram apenas em 1995, por iniciativa das Nações Unidas, na sequência da Guerra dos Balcãs. O TPI
iniciou funções em 2003, assim que foi ratificado por mais de 60 países, contando atualmente com a
assinatura de 122 Estados. A sua assinatura por um Estado possibilita que cidadãos do mesmo possam ser
julgados por crimes de guerra.
18
O Segundo Protocolo da Convenção de Haia é uma ratificação, feita em 1999, à Convenção de Haia de
1954, que delibera sobre a proteção dos bens culturais em contexto de conflito armado.
19
https://press.un.org/en/2015/sc11775.doc.htm

61
é importante preservar o significado intangível dos sítios arqueológicos, protegendo a
história e a memória do país, mesmo que não se consigam evitar as destruições físicas
do património. Aquando das destruições de Palmira, Irina Bokova relembrava ao mundo
que “preservar as pedras de Palmira é importante, mas partilhar a mensagem de Palmira
é vital. Isto não é sobre templos ou edifícios. Isto é sobre prevenir ameaças que
conduzam a interpretações distorcidas da história ou da religião” (UNESCO, 2017).
Apesar destes apelos e do chamado de consciencialização que eles pressupõem, a
resposta internacional foi tardia. O conflito, iniciado em 2011, vê muito intensificada a
sua violência em 2012, com relatos de destruição de bens patrimoniais e a iminência de
furtos e tráfico ilegal de artefactos. É um facto que a resposta internacional só é notória
a partir de 2014. A resposta da UNESCO à crise de proteção do património cultural
passou pelo estabelecimento de um Observatório para a proteção do património
cultural sírio, localizado em Beirute20. Este tem por objetivo manter uma plataforma
online para compartilhar informações sobre o património cultural em risco e combater
o tráfico ilícito entre os especialistas nacionais e internacionais. Em paralelo, a UNESCO
criou missões de avaliação rápida ao Património Mundial na Síria que tivesse sofrido
danos, como Palmira e as cidades históricas de Alepo e Damasco (UNESCO, 2016). A
organização internacional tentou também implementar na Síria a estratégia de proteção
patrimonial que já tinha utilizado no Mali: criar um Passaporte do património cultural,
distribuído aos soldados para que evitem a destruição de património cultural ou o
estabelecimento de bases militares nas suas imediações, sendo uma forma ativa de
proteção do património. Além disso, com o apoio de arqueólogos e outros especialistas
suíços e franceses, a UNESCO enviou para Damasco material técnico para proteger de
forma mais eficaz os artefactos dos museus, procurando evitar que sejam danificados
ou destruídos.

A par da UNESCO, entre 2014 e 2017, também a União Europeia criou uma
missão de salvaguarda do património cultural sírio. Esta tinha o objetivo de preservar
bens patrimoniais e preparar um plano de ações prioritárias pós-conflito. Pretendia

20
https://whc.unesco.org/en/news/1135/

62
contribuir para restaurar a coesão social, a estabilidade e o desenvolvimento
sustentável através da proteção e salvaguarda do património. Esta missão aliou-se ao
Observatório da UNESCO, em Beirute, na tarefa de avaliação da situação do património
cultural na Síria. Era orientada pela intenção de o proteger através do fornecimento de
assistência técnica e da capacitação das comunidades e dos usufrutuários nacionais. A
missão da União Europeia alia-se à plataforma da UNESCO, fornecendo informações
atualizadas e contínuas sobre os danos sofridos, bem como acerca dos projetos e
iniciativas em curso21.

Consultando a 44º sessão da Convenção do Património Mundial é possível obter


um panorama geral da situação da proteção ao património cultural na Síria até 2021. A
UNESCO, representada pelo Comité do Património Mundial, elogia a atuação da DGAM
e dos seus profissionais e das comunidades locais na proteção do património em
condições adversas. Incentiva todas as partes envolvidas no conflito armado a que se
abstenham de danificar bens patrimoniais e que cumpram as obrigações estabelecidas
pelo Direito Internacional e pela Resolução 2347 do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, evitando a todo o custo qualquer ação que possa ter o património como alvo22.
Por outro lado, insta a Síria e a comunidade internacional a incluir ações de proteção ao
património nas missões humanitárias. Incentiva também as autoridades sírias para que
apliquem um plano de “primeiros-socorros” ao património danificado e que evitem o
seu roubo e degradação. Desse plano não devem fazer parte ações de restauro e
reconstrução até que a segurança no país seja restabelecida. Apela novamente à luta
contínua contra o roubo de artefactos, relembrando a Resolução 2199, de fevereiro de
2015, e a ideia da preservação da diversidade cultural da já referida Resolução 2347.
Pede novamente que a Síria considere a assinatura do Segundo Protocolo de Haia e que
continue a enviar relatórios anuais sobre o estado de conservação e das ações de
proteção ao património realizadas (UNESCO, 2021).

21
https://en.unesco.org/emergencysafeguardingofthesyrianculturalheritage
22
https://press.un.org/en/2017/sc12764.doc.htm

63
Considerando a documentação acabada de referir, constata-se que as entidades,
nacionais e internacionais, empenhadas na proteção do património sírio já parecem
incluir na equação as respetivas comunidades. De facto, alguns autores (Kanjou, 2014;
Almohamad, 2022) insistem que a proteção ao património cultural está incompleta
quando não é alargada às comunidades que o detêm e dele usufruem. Por outro lado,
para além das abordagens mais técnicas de proteção do património cultural, importa
torná-lo parte importante da economia local e nacional, bem como peça-chave para o
desenvolvimento da região. É por essa via que mais eficazmente se contribuirá de forma
positiva para a sensibilização da importância do património cultural para as
comunidades. Como aponta Adnan Almohamad (2002, p.65), a proteção do património
cultural deve-se fazer acompanhar do desenvolvimento e/ou suprimento das
necessidades das populações. Não será uma tarefa exequível pretender proteger o
património, quer através de missões internacionais, quer de projetos das autoridades
nacionais, se se verifica a carência de escolas, sistemas de esgotos, canalização, estradas
e outros tipos de infraestruturas. Para sustentar a sua posição, Adnan Almohamad
(2022, p.66) elabora um inquérito junto de uma comunidade síria que lhe permite
concluir que a maioria dos entrevistados reconhece o roubo e o tráfico ilegal como
danificando a cultura e a sociedade, mas não definem tais atos como algo proibido, já
que muitas pessoas praticam estes delitos para suprimir a pobreza. De um modo geral,
as pessoas enfatizam a necessidade de proteger o património cultural, mas para que
isso possa acontecer é preciso que haja condições propícias à participação das
comunidades que ultrapassem as meras campanhas de sensibilização. Tendo em mente
o objetivo da proteção do património cultural, Adnan Almohamad (2022, p.71) deixa
algumas recomendações ao governo sírio e às organizações internacionais. Considera
necessário melhorar as infraestruturas e os projetos de fomento de emprego nas áreas
rurais; apoiar os estudantes a concluírem os seus estudos; organizar campanhas de
sensibilização nas escolas e universidades, visando a proteção do património cultural;
procurar informar as comunidades do papel positivo que o património pode ter na
construção da paz e na identidade nacional; facilitar a criação de ONG’s que protejam

64
as antiguidades e o estabelecimento de parcerias com líderes religiosos que apelem à
importância do património cultural e das civilizações antigas.

Nesta mesma linha de pensamento, também Youssef Kanjou (2014) deixa


recomendações pertinentes para uma melhor proteção do património cultural. Este,
embora sirva e tenha significado particular para determinada comunidade, deve ser
visto, apreciado e protegido a nível universal. Nesse sentido, são necessários mais
especialistas no terreno para a proteção do património e deve haver uma expansão do
número de países que mutuamente se comprometem a protegê-lo. Contudo, o papel da
comunidade internacional na proteção do património, não substitui a necessidade de
iniciativas internas em cada país. O papel principal na proteção patrimonial deve ser
dado às respetivas comunidades, depois ao Estado e, por último, à comunidade
internacional. Portanto, para cada país há a necessidade de criação de políticas públicas
que envolvam a vida da comunidade com o património cultural. Em termos
internacionais é enfatizada a importância de se estabelecer um sistema de cooperação
e assistência que possa fazer a gestão dos esforços de proteção.

Continuando a procurar seguir a cronologia dos acontecimentos na Síria relativos


ao património cultural, parece ser possível afirmar que as iniciativas para a sua proteção
só ocorrem até 2018, não se tendo conhecimento de mais nenhuma em curso até ao
momento de redação desta dissertação. De facto, o panorama internacional também
não tem favorecido as atividades de proteção patrimonial, levando em conta a situação
pandémica que o mundo atravessou de 2020 a 2022 e todas as limitações subjacentes.
Mais recentemente, o início do conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia terá
igualmente contribuído para o abrandamento das operações. Importa, além disso, ter
em conta que a Rússia é o principal aliado do governo de Bashar Al-Assad, tendo antes
enviado fundos e especialistas em património para ajudar na sua preservação.

Por outro lado, passados doze anos desde o início do conflito armado e dez anos
da classificação dos seis sítios como Património Mundial em Perigo, o governo sírio
persiste em ignorar os apelos da UNESCO para que assine os Estatutos de Roma e o
Segundo Protocolo da Convenção de Haia. A subscrição desses dois documentos
permitiria à comunidade internacional poder agir legalmente sobre as infrações

65
militares cometidas em relação ao património e punir como crimes de guerra os ataques
dirigidos ao património cultural. Esta posição do Estado sírio, aliado à falta de segurança
e de financiamento, condiciona fortemente os trabalhos de proteção do património
cultural. Ademais, independentemente dos resultados das campanhas de sensibilização,
a estratégia mais eficaz seria diminuir os motivos pelos quais as comunidades roubam e
vendem ilegalmente o seu património. O governo sírio deve esforçar-se por acabar com
a marginalização de comunidades e etnias, criar medidas que incentivem o regresso das
populações, a par do fomento da economia e da recuperação do património cultural. É
bastante óbvio que sem uma base social pacificada e economicamente estável se torna
uma tarefa árdua ou quase impossível defender e preservar o património cultural, dado
este ser uma valiosa fonte de rendimento para colmatar a fome e a pobreza das
comunidades. Só alterando esta situação, as campanhas de sensibilização, de formação
de profissionais, as missões e os projetos internacionais de preservação poderão ser
profícuos e contribuir efetivamente para a eliminação do tráfico ilegal e de outros
delitos que afetam o património cultural. Além disto, é importante que sejam
desenvolvidas leis que protejam o património depois do fim do conflito, para assegurar
que as construções urbanas estarão sujeitas a fiscalização, não comprometendo
também por essa via a integridade do património cultural.

3.2. A destruição de património cultural na Síria: limpeza cultural, financiamento


bélico e o desmoronar dos oásis do Crescente Fértil

Recordando o que foi abordado no capítulo 1, a destruição patrimonial pode ser


dividida em categorias segundo os danos causados e os objetivos subjacentes. Uma
primeira distinção, divide a destruição entre intencional e acidental. Na destruição
acidental, muitas vezes fruto de conflitos armados, a destruição patrimonial é causada
por danos colaterais ou negligência forçada devido à primazia dos objetivos militares
(Weiss & Connelly, 2019). Entre outras possibilidades, podemos estar perante os efeitos
de bombardeamentos ou a proximidade a bases militares. Quanto à destruição
intencional ela pode abranger: roubo, tráfico e escavações ilegais, vandalismo e/ou
inscrições, podendo ser total ou parcial. Geralmente são eleitos alvos estrategicamente
significativos pelo seu valor militar, político, religioso e cultural.

66
No caso da guerra civil da Síria, quando se fala em destruição de património
cultural é quase impossível não pensar nas ações do Estado Islâmico. Contudo, existem
mais atores que contribuíram e contribuem para a destruição patrimonial. É o caso das
comunidades locais que permaneceram nos seus territórios e que, através do tráfico e
escavações ilegais, tentam fazer frente à pobreza resultante da guerra, sem esquecer
também a existência de vandalismos vários e até a remoção de pedras para
reconstrução de edifícios. Um outro interveniente importante são os grupos armados
e/ou as forças rebeldes, por vezes com aliados internacionais, que destroem, acidental
ou intencionalmente, património cultural através de tiroteios e bombardeamentos ou
vandalismo, roubo, tráfico e escavações ilegais, neste caso tendo em vista o
financiamento da compra de armas e a manutenção dos respetivos exércitos. Por fim,
deve ainda ser considerado o governo de Bashar al-Assad e os seus aliados
internacionais que destroem, acidental ou intencionalmente, através de
bombardeamentos, visando a recuperação das áreas controladas pelos rebeldes.

3.2.1. Os ataques ao Património Cultural Mundial e restante património na Síria

Todos os seis sítios classificados como Património Mundial, e depois como


Património Mundial em Perigo, pela UNESCO foram seriamente atingidos pela
destruição. No próximo capítulo, abordarei mais profundamente o ponto de situação
em Palmira e nas cidades históricas de Alepo e Damasco. Considero importante referir
agora alguns dos bem patrimoniais que foram destruídos ou parcialmente afetados.
Olhando para os tipos de bens patrimoniais atingidos pela destruição, estes podem ser
divididos em quatro categorias: zonas históricas, edifícios religiosos, sítios e estações
arqueológicas e museus. Nas quatro categorias, a destruição abrangeu danos nas
infraestruturas e nos artefactos nelas incluídos ou guardados. Imagens de satélite,
relatórios e vídeos diversos mostram o volume de destruição infligido ao património
cultural sírio durante o conflito armado. Essas imagens foram mundialmente
disseminadas como meio de combate ao tráfico ilegal, já que revelavam a existência de
procura de artefactos não catalogados, que eram depois vendidos nos países vizinhos
da Síria. O tráfico de antiguidades é um dos negócios mais lucrativos no mercado negro
e quanto mais antigo for o artefacto, mais valioso ele é considerado (Hayek, 2018). É,

67
contudo, também reconhecido por todos que o roubo de artefactos e a destruição de
monumentos e sítios arqueológicos resultam na perda de testemunhos insubstituíveis
da herança cultural de cada comunidade e da história da Humanidade (Lilas, 2017, p.
46)

Nas zonas ou cidades históricas, segundo os dados da UN-Habitat, a cidade de


Dar’a foi a primeira a ser afetada pela guerra civil, logo em 2011. A esta cidade, apenas
em 2018, se verifica o regresso de algumas famílias. A cidade de Alepo viu 98% das suas
estruturas destruídas ou danificadas e foi evacuada quase na sua totalidade. A cidade
de Raqqa registou 62% de destruição, contando com mais de 7000 estruturas afetadas
e Homs sofreu 34% de destruição. (UN-Habitat, Dezembro 2021). Embora o problema
esteja bastante disseminado, não há dúvida de que a principal zona histórica afetada
pelo conflito armado foi a cidade histórica de Alepo, no norte da Síria23 Sofreu danos
significativos nos seus souqs24, em zonas residenciais e em várias mesquitas (Kanjou,
2014, p. 272). Há, contudo, zonas históricas de outras cidades que também foram
gravemente afetadas, fosse por ocupação do Estado Islâmico e das forças rebeldes, ou
devido aos ataques do governo sírio e seus aliados. É o caso das cidades de Raqqa,
Homs, Bosra, Hama, Daara e Idlib. Atualmente, o norte da Síria continua a ser disputado
pelas forças leais a Bashar al-Assad, forças curdas e grupos armados apoiados pela
Turquia. Em particular, a cidade de Idlib continua sob controlo das forças democráticas
sírias, pelo que o levantamento do nível de destruição verificado nesta região ainda não
é muito claro.

Importa ter presente que a destruição massiva que afeta as zonas históricas das
cidades não atinge apenas os símbolos maiores do património cultural, já que tais zonas
são também áreas de residência de muitas famílias. Assim, a destruição das zonas
históricas não afeta apenas o património cultural, mas também as pessoas que ali
habitam e convivem com esse património diariamente para fins identitários,
económicos e turísticos (Lilas, 2017, p. 31). As cidades danificadas e destruídas por

23
O caso específico de Alepo será tratado no capítulo 4.
24
Mercados árabes tradicionais.

68
bombardeamentos, confrontos e operações militares deixam de ter condições de vida
para as pessoas (Hayek, 2018, p. 123). Sem condições de vida e com total falta de
segurança, o medo da guerra e a necessidade de fazer face à miséria, levam ao aumento
do tráfico de artefactos e antiguidades (Hayek, 2018, p. 114).

Quanto à categoria dos edifícios religiosos, a destruição mais tristemente famosa


é sem dúvida o incêndio na Mesquita de Umayyad, em Alepo, logo em 2011, e a queda
da sua torre, em 2013, por ter sido usada para fins militares (Lilas, 2017, p. 24). No que
diz respeito a sítios e escavações arqueológicas, as autoridades governamentais
reportaram que na cidade de Raqqa e na província conhecida como Al-Jazira há danos
graves ou destruição total em 379 sítios arqueológicos, dos 1063 registados. Estes danos
são derivados de bombardeamentos, explosões, tráfico e escavações ilegais (ATP, 2017).
A cidade e o sítio arqueológico de Apameia foram das zonas que mais sofreram com
escavações ilegais (Kanjou, 2014, p. 273). A par dos sítios arqueológicos, os museus são
espaços causadores de grande preocupação por atraírem os olhares dos traficantes
ilegais de artefactos e serem alvos de bombardeamentos durante os conflitos. Os
maiores danos a museus aconteceram no noroeste do país, registando-se bastantes
pilhagens de obras de arte e outros artefactos, para além do abalo das suas
infraestruturas pelo conflito armado. O museu mais importante da Síria, o Museu de
Mara’a, foi utilizado como base militar pelas forças rebeldes. Sobre o Museu de Raqqa
consta que um grupo de pessoas disfarçado de seguranças roubou caixas com artefactos
das suas reservas, sob o pretexto de as transferir para local seguro. Até ao momento,
apenas três caixas foram encontradas e devolvidas. Na Cidadela de Jaabar, a poucos
quilómetros de Raqqa, foram roubados da sala de exposições vários objetos de
cerâmica. O Museu de Hama, cidade situada no noroeste da Síria, também não escapou
às mãos dos salteadores. Deste Museu desapareceu uma estátua em bronze da era
Aramaica, sendo ainda desconhecido o seu paradeiro e receando os especialistas que
tenha sido vendida no mercado negro. Sobre o Museu do Folclore, em Alepo, há relatos
de roubo de peças em vidro, adagas e lanças. A proximidade de Alepo com a fronteira
turca faz aumentar as preocupações das autoridades em relação ao trafico ilegal.
Finalmente, há ainda notícia de o Museu da cidade de Maarrat, localizada entre Alepo e

69
Hama, ter sido invadido por grupos armados que roubaram mais de 30 artefactos,
incluindo bonecas de barro e estátuas, até hoje dadas como desaparecidas. Contudo, os
seus mosaicos permaneceram intactos25. De todos os acervos museológicos do país, as
únicas coleções que permaneceram a salvo são as dos Museus de Alepo e de Damasco,
graças aos trabalhos de proteção concretizados pela DGAM antes dos conflitos
chegarem a estas cidades. Até ao presente, as autoridades sírias conseguiram recuperar
mais de 4000 artefactos roubados de museus e sítios arqueológicos.

3.2.2. O Estado Islâmico e a destruição de património cultural: entre a campanha


de terror e a eliminação cultural

Até à data, a comunidade internacional ainda não chegou a um consenso para


definir terrorismo de uma forma sucinta e definitiva, o que compromete a elaboração
de medidas jurídicas à luz do Direito Internacional para lidar com ataques terroristas ao
património cultural, ou protagonizados por grupos considerados terroristas, em tempos
de paz ou de conflitos amado. De facto, em consequência dos ataques do 11 de
setembro de 2001, a palavra terrorismo cria no imaginário ocidental a imagem de um
individuo ou grupo de origem árabe e/ou islâmica, de caráter agressivo e veiculando
fundamentalismo religioso com ódio ao ocidente26. A invasão do Iraque e a guerra civil
na Síria registaram ataques ao património, sistemáticos e intencionais, sem
precedentes, levando a UNESCO a caracterizá-los como atos de limpeza cultural
(Schorlemer, 2022)27.

O terrorismo surge, então, definido como um fenómeno social complexo, que


necessita para ser combatido de um projeto a longo prazo que inclua tanto as
autoridades nacionais como internacionais, bem como as populações a uma escala
global. Salienta-se que os ataques terroristas são essencialmente orquestrados por
grupos armados e não por Estados, o que dificulta o seu combate aos ataques

25
https://www.unesco.org/en/node/66288
26
A falta de distinção entre a etnia árabe e palavras como “Islão”, “Islamismo” e “Muçulmanos” – muitas
vezes perpetuada pelos media ocidentais quando associadas à palavra terrorismo – é uma confusão
bastante comum nos países ocidentais, que as associam como se fossem sinónimos, o que em certas
situações se traduz em atitudes de xenofobia.
27
A expressão “limpeza cultural” será abordada mais à frente neste capítulo.

70
patrimoniais. Verifica-se uma discrepância entre as normas jurídicas e o seu
cumprimento por parte de grupos ou Estados não reconhecidos internacionalmente.
Numa perspetiva de Direito Internacional, seria importante que nem todos os grupos
armados não estatais fossem considerados terroristas. Ao excluir estes grupos da esfera
do Direito Internacional, eles tornam-se à partida imunes juridicamente, o que cria a
falsa impressão de que os grupos armados vivem num mundo à parte e sem leis.

Para além da destruição patrimonial generalizada e praticada por todos os


intervenientes no conflito, a posição e as atitudes do Estado Islâmico merecem uma
atenção particular. Neste caso, todos os ataques e destruições levadas a cabo são
destruições intencionais e previamente planeadas, motivadas por objetivos religiosos,
económicos e políticos. Em relação aos motivos religiosos, sem dúvidas os mais
invocados pelo Estado Islâmico para justificar as suas ações, a justificação é a eliminação
de todo o tipo de representação religiosa que negue Alá e o Islão, conforme acreditam
terem sido instruídos pelo Profeta Maomé. Argumentam além disso, que ao apagar as
provas físicas da existência de outras religiões, estarão a evitar que as populações
possam regressar ao paganismo ou a outro tipo de heresias (Cardoso, 2016, p. 39);
(Hayek, 2018). Este tipo de raciocínio parece não ser sensível a nenhum tipo de apelo
como pode ser confirmado pelo relato do diretor da DGAM que tentou dissuadir o
Estado Islâmico de destruir o Templo de Bel, em Palmira, argumentando que, embora
fosse um templo romano, tinha servido como mesquita durante séculos. Foi em vão. O
Estado Islâmico respondeu que tinha receio de que o paganismo voltasse e que as
provas da sua existência eram uma ameaça constante ao Islão. Perante as destruições
concretizadas, o diretor da DGAM acusa o Estado Islâmico de atos bárbaros e ignorantes
(Lilas, 2017, p. 96).

Os motivos económicos revelam como a própria ideologia e a interpretação do


Alcorão pelo Estado Islâmico são utilizadas de modo arbitrário, já que a destruição física
do património cultural deixa de ser praticada quando a sua venda pode ser
transformada em fonte de financiamento para a organização. As destruições de
património cultural pelo Estado Islâmico são ainda um meio de procurar destruir fontes
de rendimento futuros da Síria, mesmo que o vencedor da guerra civil seja Bashar al-

71
Assad, as Forças Democráticas da Síria ou até mesmo o Estado Islâmico. Ou seja, o
Estado islâmico reconhece a importância do património cultural para a economia da
Síria. Contudo, sem a recuperação do país ou uma democratização do governo, não há
motivos que atraiam os sírios a regressarem a casa, além da pobreza, o ódio ao governo
e o desrespeito pelas minorias étnicas encorajarem a radicalização e a adesão a
organizações terroristas (Doppelhofer, 2016, p. 5).

Tendo em vista o seu próprio financiamento – da campanha militar, da


subsistência dos combatentes e suas famílias e da compra de armamento – utilizam o
tráfico ilegal de antiguidades como principal estratégia. Assim que ocupam um território
com zonas arqueológicas, como foi o caso de Palmira, Raqqa, Bosra e Apameia,
organizam escavações ilegais para a descoberta de novos artefactos. Sem o seu devido
registo pelas autoridades e especialistas, é mais fácil vender estas “novas” peças no
mercado negro sem deixar rasto, do que vender os artefactos previamente
documentados. O Estado Islâmico vende principalmente a colecionadores privados,
leiloeiras e, talvez a algum museu (Cardoso, 2016, p. 50). Tudo o que não puder ser
vendido e, ao mesmo tempo, puder representar possível fonte de rendimento para os
opositores em caso de perda de controlo dessas áreas, é tido como devendo ser
destruído. Em última instância, procuram ocupar sítios arqueológicos e zonas históricas,
cuja existência conheçam, e zonas onde possam vir a descobrir poços de gás natural e
de petróleo (Cardoso, 2016, p. 38).

Quanto aos motivos políticos, o lema principal do Estado Islâmico é destruir tudo
o que possa contestar o seu poder, e se possível, chocar pelo caminho o ocidente e
desmoralizar os seus opositores (Doppelhofer, 2016, p. 2). Através dos seus ataques ao
património e da sua mediatização por meio dos média e das redes sociais, o Estado
Islâmico consegue garantir uma campanha de terror que elimina a identidade cultural
das populações locais, tudo contribuindo para um controlo mais fácil. Afirma tencionar
reescrever a história da Síria, eliminando as marcas da herança colonial e de qualquer
outro tipo de ocupação territorial ao longo dos séculos. Assim, libertará os muçulmanos
das suas falsas fronteiras nacionais, unindo-os como uma só nação e um só povo
(Doppelhofer, 2016, p. 4). Os radicais do Estado Islâmico demonstram o seu poder e a

72
sua capacidade de manipulação de massas, apoiando-se nos media e nas redes sociais
para organizarem verdadeiros espetáculos de horrores, nos quais executam
pubicamente todos os que se atrevem a contestar a sua autoridade. Entre as inúmeras
execuções públicas de jornalistas e soldados publicitadas, talvez a que mais chocou o
mundo, e em particular a UNESCO, tenha sido a decapitação do Chefe das Antiguidades
do sítio arqueológico de Palmira, Khaled al-Asaad. O arqueólogo tinha dedicado a sua
vida à descoberta e conservação de Palmira e pagou com a própria vida os “crimes” de
ter escondido do Estado Islâmico os artefactos descobertos e de ter preservado
“artefactos heréticos”.

A destruição intencional de património cultural pelo Estado Islâmico reflete o


que Irina Bokova viria a denominar por “limpeza cultural”. A expressão é usada para
referir os ataques ao património cultural que representa a identidade e a diversidade
cultural da Síria, tendo em vista eliminar todas as diferenças e/ou a essência de
determinada comunidade, impondo novas tradições ou a total ausência delas. A
campanha de terror do Estado Islâmico passa pelo ataque às tradições e à memória física
dos testemunhos da história, o que é útil para desmoralizar os oponentes e evitar a
contestação da sua ideologia pelos seus seguidores. Para o Estado Islâmico o
mediatismo à escala global e a utilização das redes sociais como meio de propaganda
atingiu proporções nunca vistas. Os vídeos e fotografias causam o choque e o terror a
nível mundial, mas também a curiosidade e o apoio em certas pessoas, alcançando com
sucesso o objetivo do grupo de recrutar mais seguidores. O espetáculo de horrores tinha
como alvo o património de dimensão monumental e de valor inestimável para a
humanidade. As imagens perpetuam a estratégia militar de rápido domínio dos
adversários através do medo e da intimidação das populações.

3.2.3. As destruições de património cultural na ótica da UNESCO e da Comunidade


Internacional

Sobre esta questão em particular, a UNESCO não tem deixado de se pronunciar.


Em 2015, fez notar que “o património cultural da Síria está sob o ataque de uma
combinação tóxica de absolutismo religioso, políticas de identidade, dor pós-colonial,
tecnologia incendiária e insensatez adolescente” (UNESCO, 2015). Palmira, em

73
particular, tornou-se um símbolo da vulnerabilidade do património cultural e um aviso
para as futuras gerações sobre o não se dever ou poder dá-lo como garantido. Importa
ter presente que os bens patrimoniais se podem perder a qualquer momento se não
houver medidas de proteção e sensibilização quanto à sua importância para as pessoas
e para as comunidades (Doppelhofer, 2016, p. 1).

Já foi referido que, em 2013, a UNESCO transferiu os seis sítios da Síria inicialmente
classificados como Património Mundial para a Lista do Património Mundial em Perigo.
A intenção era que por essa via pudessem receber ajuda internacional para a sua
proteção e preservação. Desde o início da guerra cível que a UNESCO tem
incansavelmente alertado as partes em conflito para a necessidade de proteger o
património e mostrar respeito pelas tradições e crenças do povo sírio. Além disso, tem
alertado a comunidade internacional para o perigo do tráfico ilegal e da obrigação dos
Estados-membros da Organização das Nações Unidas fiscalizarem e impedirem este tipo
de atividade dentro e fora das suas fronteiras (Hayek, 2018, p. 128). A par destas
posições, o International Council of Museums (ICOM) criou uma lista dos artefactos
sírios em perigo, assim ajudando a identificar os artefactos mais suscetíveis de vendas
ilegais. Em simultâneo, a UNESCO tem formado pessoas na Jordânia, Líbano e Turquia
para monitorizarem e denunciarem o tráfico ilegal de bens culturais.

As manifestações culturais têm sido sempre grandes vítimas da guerra. A


Diretora-geral da UNESCO chama a atenção para o fenómeno de limpeza cultural levada
a cabo pelo Estado Islâmico. Através da destruição intencional, planeada e sistemática,
o Estado Islâmico ataca a diversidade, identidade e herança cultural das áreas que quer
conquistar e controlar. Persegue as pessoas pela sua pertença étnica e religiosa, de
forma a eliminar tudo o que tenha existido antes da sua chegada. A destruição de
património cultural e a limpeza cultural que lhe está associada são crimes de guerra e
atentados aos Direitos Humanos. No início da campanha de terror do Estado Islâmico,
dizia Irina Bokova: “qualquer cultura é o reflexo das influências que a formaram ao longo
do tempo. Os ataques ao património cultural e à cultura tencionam enfraquecer a
identidade e o tecido social das sociedades e eliminar todas as possibilidades de
renovação” (UNESCO, 2015).

74
Recuperando o episódio do assassinato do arqueólogo Khaled al-Assad, Irina
Bokova recorda-o como um grande humanista, arqueólogo e um grande amigo da
UNESCO (UNESCO, 2015). O Estado Islâmico torturou e eliminou o homem que
personificava em si o carinho e a importância que, não só os sírios, mas o ocidente e o
oriente sentiam em relação a Palmira. A Diretora-geral da UNESCO considera que a
forma mais eficaz de combater o terrorismo e qualquer forma de extremismo é através
do combate à ignorância. Assim, a proteção do património cultural é também parte da
resposta ao extremismo violento e instrumento para a construção da paz, resiliência e
reconciliação no futuro (UNESCO, 2015). Nas suas intervenções, procura insistir na
defesa da diversidade cultural: “não existe um choque de civilizações. O que existe é
uma divisão entre quem rejeita viver em comunidade e quem acredita na humanidade
como uma única comunidade” (UNESCO, 2016). Em simultâneo, a UNESCO enviou
missões para avaliação de danos a Palmira, a Nimrud e a Ashur, esta última, uma cidade
do Iraque, assim que as condições de segurança o permitirem, e informou a comunidade
internacional disso. A intenção era ajudar a delinear medidas de proteção e avaliar
possíveis missões de restauro no futuro (UNESCO, 2017). A par das missões de avaliação,
a UNESCO uniu-se à ICCROM para produzir guias de autoajuda, visando proteger as
coleções em perigo dos museus.

De facto, as medidas implementadas a nível internacional para a proteção do


património cultural são positivas, mas não lidam com os perigos a que o património
cultural está sujeito, até que ocorram. Assim como a UNESCO, consideramos que a
assinatura dos já referidos Estatutos de Roma poderia beneficiar a Síria na prevenção
das destruições de património, bem como julgá-las e puni-las enquanto crimes de
guerra. Estima-se que no auge do período de operações do Estado Islâmico, cerca de 25
mil combatentes fossem oriundos de países signatários dos Estatutos de Roma,
podendo ser julgados. “Isto é sobre a identidade e a dignidade humana. Isto é sobre a
cultura como uma força de resiliência. Temos fundações legais fortes para construir uma
resposta” (UNESCO, 2015).

Segundo a UN-Habitat, a UNESCO está a trabalhar atualmente em campanhas de


sensibilização, avaliação de danos, projetos de coordenação e educação a serem

75
aplicados na Síria. De 2014 a 2017, a organização internacional coordenou o projeto de
emergência para a salvaguarda do património cultural sírio, que visava contribuir para
restabelecer a coesão social, estabilidade e desenvolvimento sustentável através da sua
proteção, encorajar as autoridades locais a restaurar pequenas casas e não apenas
edifícios religiosos (UN-Habitat, Dezembro 2021).

Desde 2011 que são vários os fatores que comprometem a segurança do


património cultural na Síria, desde a criação de postos militares em zonas com sítios
arqueológicos; explosões; abandono dos locais pelas populações; construções ilegais
nas zonas fora do controlo do governo sírio; tráfico ilegal de artefactos;
bombardeamentos; escavações ilegais; ataques intencionalmente direcionados ao
património cultural; utilização dos sítios arqueológicos como bases militares por grupos
armados; uso das pedras e outros materiais para construção de casas; e incêndios.28

A destruição de património cultural na Síria traz consequências nefastas para a


identidade e a herança cultural de uma comunidade nação e uma perda para o próprio
Património cultural da Humanidade. Estando a Síria localizada na região do Crescente
Fértil onde se encontraram as provas da existência das primeiras civilizações, a perda
destes testemunhos é uma perda para a nossa História comum. O desemprego, perda
de fontes de rendimento, paralisação do turismo, tráfico ilegal de antiguidades e a falta
de sentimento de segurança são as consequências mais notórias em tempos de guerra.
A falta de especialistas, fundos, segurança e proteção legal ao património cultural
impedem a sua proteção. “Isto não é sobre a escolha de proteger as pessoas ou a
cultura. É uma parte da mesma responsabilidade porque a cultura é sobre pertença,
identidade, valores e história comum e sobre o mundo em que queremos viver”
(UNESCO, 2015).

O uso contínuo do património cultural para fins políticos e bélicos deve parar. O
património cultural confere a qualquer comunidade o sentido da sua história e da sua
própria evolução. A sua destruição apenas elimina as provas físicas da herança cultural

28
https://whc.unesco.org/en/statesparties/sy/

76
de séculos de tolerância, multiculturalidade e coabitação de várias religiões, povos e
expressões artísticas (UN-Habitat, Dezembro 2021); (Abdulkarim, 4 de março de 2016);
(Naifeh, 2019). O governo sírio, a UNESCO e a comunidade internacional prometem
reconstruir o que o Estado Islâmico destruiu para provar que nenhum ataque ao
património cultural é definitivo ou pode abalar a identidade cultural de uma
comunidade ou a herança cultural comum a vários países. Será que o património cultural
destruído estará mesmo perdido? A destruição não marca necessariamente o fim do
património cultural, mas sim o início das discussões sobre a reconstrução (Doppelhofer,
2016, p. 5).

Acredito que a luta contra o terrorismo e os ataques ao património cultural deva


ser pensada numa abordagem mais ampla, que não se limite apenas às medidas jurídicas
aplicadas aos Estados e acordadas em contexto internacional. Esta luta deve ser
estendida a todas as pessoas que individualmente sintam ter um papel ativo no combate
do terrorismo, através da educação para a tolerância religiosa e cultural, bem como todo
o tipo de iniciativas que apelem à paz, ao respeito dos Direitos Humanos e à importância
de proteger o património cultural.

No sentido de à priori não considerar todos os grupos armados como terroristas,


a organização governamental Swiss Call, especializada na promoção dos Direitos
Humanos, realizou formações-piloto sobre a proteção do património cultural com
comandantes do Exército Livre da Síria, entre 2015 e 2017. Dai resultou para o grupo em
questão um sentimento de pertença à esfera internacional e a vontade de cumprir as
normas jurídicas que gerem os conflitos armados. Seria útil complementar as formações
com documentos assinados pelos grupos armados quanto a se comprometerem a
respeitar os bens culturais, o que poderia diminuir de forma mais efetiva os episódios
de destruição em contextos bélicos. Ao assinarem este tipo de compromissos, os grupos
signatários aderem às normas humanitárias internacionais. Esta experiência tem tido
um impacto positivo nas áreas da Síria controladas por rebeldes, o que tem permitido
ações humanitárias no terreno.

Procurando dar uma resposta às novas formas de terrorismo e aos ataques ao


património cultural, a UNESCO adotou em 2015, na 38º Conferência Geral, a Estratégia

77
para o Reforço da Ação da UNECO para a Proteção e Promoção do Pluralismo Cultural
em Caso de Conflitos Armados, revista em 2017. Este documento representou a reação
da UNESCO ao volume sem precedentes de ataques ao património cultural. Pela
primeira vez, a organização internacional vai incluir o papel das populações locais como
portadoras e guardiãs do património em todas as suas expressões, mencionando que as
expressões imateriais do património contribuem para a resiliência das populações e a
recuperação no pós-crise. Para combater o terrorismo e chegar às populações, a
UNESCO compromete-se a desenvolver material que promova e divulgue o pluralismo e
a diversidade cultural como forma de combate ao extremismo e ao discurso de ódio.

No ponto de vista desta dissertação, a UNESCO foi além das suas abordagens
mais conservacionistas e das medidas de proteção orientadas para os Estados e as
organizações internacionais, incluindo toda a gente no processo de proteção do
património cultural e no combate ao fundamentalismo. Obviamente que a nova
realidade do património cultural, nomeadamente os ataques protagonizados pelo
Estado Islâmico, levaram a UNESCO a reavaliar a sua postura e planos de gestão do
património cultural, até então ainda bastante centrados na proteção do Património
Mundial. Além disso, a omnipresença dos media constitui um enorme desafio ao
combate do terrorismo, tornando-se vital que também as palavras da UNESCO e da ONU
cheguem as populações. À semelhança da UNESCO, também os líderes do G20
declararam, em 2017, que a campanha antiterrorista tem de ser uma abordagem mais
abrangente e que se esforce em acabar com a radicalização dos jovens.

Pondo em prática os esforços contra o fundamentalismo e os discursos de ódio,


a UNESCO publica, em 2016, o Guia do Professor para a prevenção do extremismo e
abordagem em contexto de sala de aula de temas como a radicalização e a violência.
Numa outra iniciativa focada nas populações, inaugura a campanha #Unite4Heritage
que visa o envolvimento dos jovens na proteção do património cultural, a fim de
promover sociedades mais inclusivas. A campanha foi lançada a 28 de março de 2015 e
tinha como objetivo tornar-se um movimento global através da partilha de histórias,
conhecimentos e experiências sobre o património e a cultura. Estas duas iniciativas
representam bons exemplos de estratégias de soft power ao nível das comunidades e

78
uma resposta nas redes sociais ao extremismo. A viragem das estratégias tendo como
alvo a população é crucial para o combate ao terrorismo, já que são elas que são
influenciadas e recrutadas pelos grupos armados, e não as organizações ou os Estados.

3.3. A reconstrução do património cultural na Síria: uma nova esperança?

A reconstrução do património cultural na Síria junta vários interesses. Por um


lado, o interesse cultural e de reconstrução da identidade cultural do povo sírio que se
encontra dividido por divergências políticas. A sua recuperação para fins turísticos, que
era uma importante fonte de rendimento antes da guerra civil, também será central
para a reconstrução da própria economia síria. Por outro lado, interessa de igual modo
o combate da ideologia extremista do Estado Islâmico que pretendia com os seus
ataques apagar a história e reformatar a identidade cultural da Síria.

O apoio tanto por parte do governo sírio, como da UNESCO, da comunidade


internacional e, em especial, de outros países de maioria muçulmana, sublinha a
principal razão política para o incentivo aos projetos de reconstrução – combater a
campanha de terror do Estado Islâmico e a sua influência. Além disto, o apoio monetário
fornecido por países árabes e de maioria muçulmana como é o caso da Arábia Saudita,
demonstra o desejo de demarcação em relação àquela interpretação extremista do
Islão. Mas até que ponto será possível a reconstrução do património cultural? São vários
os fatores que obrigam a impor um ritmo relativamente moderado às operações de
reconstrução do património cultural na Síria. Se, por um lado, o conflito armado persiste,
ainda que com dimensões menores ao verificado em anos anteriores, a verdade é que
ainda não se reúnem todas as condições de segurança necessárias para projetos de
reconstrução patrimonial. É crucial continuar a produzir relatórios anuais dos danos ao
património cultural, bem como a constante avaliação do que pode vir a ser refeito.
Apresento um mapa relativo à ocupação da Síria pelas forças em disputa a 15 de março
de 2023. O exército sírio e as forças aliadas a Bashar al-Assad tem recuperado uma
grande extensão de território desde 2016, isolando as forças rebeldes na província de
Idlib. Cresce, no entanto, a presença de grupos armados apoiados por bases e pelo
exército dos Estados Unidos perto da fronteira com o Iraque e a Jordânia. O Estado
Islâmico já não tem uma presença significativa no país, mas as forças curdas ganham

79
relevância com o apoio da Turquia, tornando inacessível as vilas históricas no Norte da
Síria. 29

Figura 3: Mapa da ocupação da Síria pelas partes em conflito a 15 de março de 2023

29
Al Jazeera. Twelve years on from the beginning of Syria’s war. 15 de março de 2023.
https://www.aljazeera.com/news/2023/3/15/twelve-years-on-from-the-beginning-of-syrias-war

80
Como tem vindo a ser referido ao longo desta dissertação, as operações relativas
ao património cultural devem estar integradas nos planos de ajuda humanitária à Síria,
quer sejam de cariz nacional ou internacional. Por outro lado, não deve ser esquecido
que a reabilitação patrimonial permite a criação de empregos, bem como a formação
de especialistas e o uso de monumentos para outros fins, como escolas ou
universidades. Este conjunto de efeitos e a correspondente indicação de que a situação
militar e social estará mais controlada convida ao regresso das populações. O
envolvimento das comunidades nos processos de reconstrução patrimonial é, portanto,
crucial para a sobrevivência do património e das populações. A sensibilização das
populações para a importância e os benefícios do património cultural contribui para o
reforço da sua identidade cultural e para uma proteção mais eficaz dos bens, o que
também permitirá voltar a atrair investimentos, turismo, criação de postos de trabalho
e fomento da economia. É, portanto, central que tanto as comunidades, como o Estado
sírio e a comunidade internacional percebam que a assistência aos cuidados primários
deve ser acompanhada de processos de proteção e reconstrução patrimonial. Antes e
durante o conflito armado verificava-se o roubo de artefactos para venda ilegal, de
forma a fazer face à pobreza. Se, a par das campanhas de sensibilização, for possível
criar meios auxiliares de subsistência às populações locais, então o trabalho de
proteção, preservação e posterior reconstrução será muito mais eficaz. Os processos de
proteção e reconstrução patrimonial devem ir além da dimensão tangível do património
cultural. Os monumentos apenas têm significado histórico e cultural na medida em que
estão associados à história do país e à identidade e sentimentos de pertença das
comunidades locais. Portanto, a par da reabilitação ou reconstrução física, é necessária
a recuperação dessas dimensões intangíveis. E por essa via, alcança-se também a
sensibilização das populações para a proteção patrimonial e para a tomada de
consciência do seu património e identidade cultural. Para contrariar todas as práticas de
destruição do património cultural e a sua banalização, além da reconstrução física e dos
seus potenciais benefícios económicos, são imperativas ações de formação no sentido
do respeito e da tolerância pela cultura e pela história de todas as comunidades. É de
acreditar que a politização do património cultural e a sua utilização como arma política

81
a favor da convivência pacifica e da paz são peças-chave para que a reconstrução do
património cultural possa alcançar todos os seus objetivos.

Como apontado pela UN-Habitat, há vários fatores que contribuem para a


persistência de dificuldades nos processos de recuperação do património cultural.
Devem ser analisados para que se possam encontrar soluções adequadas. Uma má
manutenção dos edifícios tradicionais, concretizada antes e durante o conflito, tem o
efeito pernicioso de provocar mudanças não planificadas no tecido urbano e, assim, a
erosão histórica dos bairros tradicionais. De forma evidente e não surpreendente, o
conflito armado e as destruições levaram à fuga das populações das cidades, mas sem o
seu regresso há o perigo da perda das dimensões intangíveis do património cultural,
bem como de falta de mão de obra para a recuperação económica, cultural e social da
própria cidade. Por outro lado, para além do abandono temporário e do vandalismo, os
proprietários têm dificuldades em provar o que é seu sem a respetiva documentação
que também foi destruída durante os ataques. A pobreza e a consequente
impossibilidade de contratar empresas ou a compra de materiais apropriados à
reconstrução e restauro de casas em bairros históricos impede a recuperação adequada
da sua arquitetura. Por fim, a divisão do país pelas várias fações que ainda se verifica
leva ao enfraquecimento das instituições nacionais e à sua reduzida capacidade de
resposta às exigências colocadas pela recuperação patrimonial (UN-Habitat, Dezembro
2021).

O processo de recuperação do património requer um planeamento exaustivo,


desenhando prioridades de intervenção através de uma recolha de informação e
avaliação dos danos, que precisa anteceder a reconstrução propriamente dita. Dentro
dos processos de reconstrução existem diversas abordagens possíveis, desde restaurar
o antigo com materiais e técnicas tradicionais, a restaurar com recurso a materiais e
técnicas modernas, passando por uma abordagem idêntica à adotada no final da II
Guerra Mundial: a reconstrução parcial ou total, com recurso a materiais e técnicas
modernas. Esta última abordagem é a mais contestada pelos especialistas, pois será a
que mais põe em causa a habitual ideia de “autenticidade”, já que a nova construção
pode refletir o estilo dos novos arquitetos, sendo diferente do original (Hayek, 2018).

82
Como já referido no Capítulo 2, o centro histórico de Varsóvia foi reconstruído desta
forma e, tendo por base a Carta de Veneza, a sua classificação como Património Mundial
foi dificultada. No caso da Síria, tanto a UNESCO como a DGAM concordam que a
reconstrução deva ser o mais próxima possível do estado anterior, através da
reutilização de materiais originais e técnicas tradicionais e que a sua reconstrução possa
contribuir para o desenvolvimento da comunidade. A mais recente Declaração de Nara
veio mudar as regras, expandindo o conceito de património cultural e fazendo entender
a noção de autenticidade como dependente do respetivo contexto sociocultural local,
ou seja, dos aspetos intangíveis. Se para a Carta de Veneza, a reconstrução do
património para receber novos usos e funções era inaceitável, a Declaração de Nara abre
a possibilidade de a reconstrução servir a comunidade e efetivamente contribuir para a
continuada proteção do património cultural (Hayek, 2018). A adoção deste novo tipo de
pensamento possibilita e beneficia a recuperação da Síria em geral no pós-conflito, bem
como a reconstrução do seu património cultural.

As políticas de reconstrução devem preocupar-se de igual modo com o valor


cultural e histórico e com a dimensão económica. O processo de reconstrução deve
passar pela recuperação das partes perdidas ou danificadas do património cultural, o
restauro do original e a ênfase nos aspetos mais simbólicos e intangíveis do património
cultural. Além disto, importa incorporar na recuperação do património medidas que
possibilitem a sua utilização ao serviço da comunidade. Por exemplo, para fins turísticos
ou de serviços públicos, é importante terem infraestruturas básicas como saneamento,
água canalizada, eletricidade e estradas. O processo de reconstrução deve incluir
também a melhoria das infraestruturas para serviço da comunidade, por exemplo,
residências de construção tradicional, mas com atuais condições de habitabilidade para
que possam novamente receber famílias. A reconstrução pode ajudar a reduzir a
desigualdade social e a pobreza, enquanto se preserva o património cultural. Importa
tornar os bens destruídos em oportunidades para building-back-better e para abrir
caminho à reconciliação, recuperando espaços públicos ligados a práticas culturais. A
par disto, conseguir fortalecer o sentimento de pertença, reduzir a especulação e
conectar o património ao desenvolvimento socioeconómico.

83
O processo de reconstrução pode ser interpretado em si como um processo de
patrimonialização. Após a reconstrução, o património cultural ganha uma nova forma e
simbolismo, acrescentando-lhe uma nova etapa. É, assim, necessário começar por
decidir o que se quer recuperar e o que se quer alcançar com o processo de
reconstrução. Devem ser tomadas pelas autoridades as medidas mais apropriadas,
nunca descurando de auscultar os peritos em questões patrimoniais (arquitetos,
historiadores, arqueólogos), mas também as próprias comunidades que serão as
principais beneficiadas das reconstruções.

As reconstruções após conflitos armados são diferentes das reconstruções após


desastres naturais. No primeiro caso, há a capacidade de antecipar e tentar impedir a
sua destruição, minimizando a necessidade de futuras intervenções. No processo de
reconstrução deve-se desmantelar o que está danificado e o que ainda pode estar
vulnerável a destruições ou a tráfico ilegal.

É ainda difícil abordar com rigor a reconstrução patrimonial na Síria, tendo em


conta a perpetuação do conflito armado até à atualidade. Os recursos humanos e
financeiros são limitados, sendo necessário um equilíbrio entre a conservação do
património cultural nas suas mais diversas manifestações e a assistência humanitária.
Além disso, o património classificado como Património Mundial, sendo entendido como
património comum da Humanidade, deve ser recuperado com participação universal,
havendo esforços para a sua proteção e recuperação. É importante também não
esquecer que muitas vezes a perspetiva local sobre o património é diferente da
perspetiva internacional, sendo que a abordagem mais profícua será a junção das duas.

A par disto, as capacidades de ação e de resposta das instituições nacionais são


constrangidas por danos diretos nas infraestruturas e órgãos de administração, tendo
como exemplo a destruição dos registos na posse da Direção Geral dos Assuntos
Cadastrais em várias cidades, o que impossibilita o acesso a documentos que provam,
por exemplo, o direito de propriedade de alguém sobre uma casa tradicional na zona
histórica da cidade. A própria ação da DGAM está limitada em vários pontos do país,
atuando sem estes limites apenas em Damasco e Alepo. Apesar dos esforços da DGAM
e de outras entidades locais, o seu trabalho está condicionado pela mão de obra

84
disponível, recursos, técnicos especializados, planeamento e segurança. São necessárias
mais medidas de proteção, como o planeamento e a gestão das zonas tampão nas áreas
históricas e com concentração de bens classificados como património cultural
(Abdulkarim, 4 de março de 2016).

3.3.1. A ação das organizações internacionais para a recuperação do património


cultural na Síria

Um número considerável de ataques ao património causou um volume de perdas


de Património Mundial sem precedentes. A reconstrução tornou-se uma opção cada vez
mais realista para a UNESCO que até então não via esta solução com bons olhos. Embora
os projetos de reconstrução devam ter sempre em consideração o valor excecional
universal, as questões socioeconómicas e as necessidades das comunidades locais têm
de ser também levadas em conta através de uma visão mais ampla do projeto de
recuperação. As tentativas de resposta a todas estas dificuldades têm sido procuradas
através do apoio de organizações internacionais, cujos objetivos estejam em sintonia
total com as posições da UNESCO: “a nossa resposta deve ir além da proteção e da
reconstrução dos edifício e pedras – deve ser subre proteger o que somos e no que
acreditamos, através da educação e do conhecimento, através da pesquisa científica e
liberdade de expressão” (UNESCO, 2017).

Atualmente a UNESCO opta por uma abordagem mais pragmática da


reconstrução, bastante centrada na descoberta e investigação científica, bem como no
superior interesse e envolvimento das populações locais. É um processo visto como um
meio de reforçar a confiança das pessoas em tempos de crise e (re)conectar as
populações com a sua cultura e com os aspetos intangíveis que rodeiam o património
edificado. É precisamente no superior interesse e benefício das comunidades que
residem os argumentos a favor da construção da Síria, através da utilização de técnicas
tradicionais transmitidas dos mais velhos às novas gerações. Contudo, atendendo à
proteção e promoção do pluralismo cultural, a UNESCO apela à recolha de dados que
apoiem o processo de reconstrução. É de extrema importância não só consultar as
populações, mas dar-lhes voz e poder de decisão durante o processo de reconstrução.
Do ponto de vista ético, é imperativo encontrar um equilíbrio entre as diferentes

85
prioridades de reconstrução, já que pode ser mais conveniente para as pessoas
reconstruir primeiramente os edifícios de devoção e culto religioso, antes de património
mais antigo ou com um simbolismo mais civilizacional e universal, que pode ser mais
importante à luz da comunidade internacional (Deknatel, 2022).

Assim, para além dos trabalhos iniciados pelas instituições nacionais, verificam-
se atividades de restauro e reabilitação levados a cabo por parte de organizações
internacionais. A UNESCO está a trabalhar na avaliação dos danos, na coordenação das
iniciativas e nos programas de educação. De 2014 a 2017, coordenou o projeto de
Salvaguarda de Emergência do património cultural sírio, destinado a contribuir para o
restauro da coesão social, estabilidade e desenvolvimento sustentável através da
proteção do património cultural, encorajando as autoridades locais a restaurarem casas
e pequenos monumentos. De 2013 a 2018, organizou vários encontros entre
especialistas internacionais para que se discutisse a preservação e reabilitação do
património cultural de Alepo. De momento, existe uma cooperação contínua entre a
DGAM e a UNESCO, visando documentar o progresso nos procedimentos para remover
Damasco da Lista do Património Mundial em Perigo (UN-Habitat, Dezembro 2021). A
UN-Habitat está a trabalhar em várias iniciativas para promover a recuperação urbana,
com especial atenção aos espaços culturais de 85 cidades da Síria. Muitos destes planos
de ação foram desenvolvidos em torno do espaço público, do património cultural, dos
mercados e das habitações. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) iniciou também vários projetos de apoio à salvaguarda do património cultural
sírio. Apoia projetos concretos de reconstrução em Homs e nos souqs de Alepo, bem
como a formação de especialistas locais, tendo também fornecido apoio a vários
museus, incluindo o Museu Nacional de Damasco e o Museu Nacional de Alepo. A
Fundação Aga Khan financiou projetos de restauro do principal souq de Alepo e da
Cidadela, tendo também formado um grupo de especialistas para restauro (Hayek,
2018).

Em paralelo com todas estas iniciativas, duas estátuas de Palmira foram


transportadas para Roma para serem restauradas e devolvidas assim que for possível ao
seu local de origem. Parece que se vai tornando claro que “é este tipo de mobilização

86
que o mundo precisa para defender e proteger o património cultural contra as ideias
fundamentalistas do Estado Islâmico”, assim defendia o Diretor da DGAM30.

3.3.2. Sendo a reconstrução um cenário possível na Síria, em que contornos


acontecerá?

Procuro, então, agora especificar alguns dos contornos em que serão aplicados
os projetos de reconstrução. Os processos de reabilitação e reconstrução patrimonial na
Síria são possíveis se forem integrados nos restantes processos de recuperação do país.
A nova utilização de materiais tradicionais nos edifícios destruídos é fundamental para
lhes conferir o seu aspeto e significados característicos. Os planos de ação precisam
comportar flexibilidade de decisão para se poderem adaptar a cada área ou edifício. O
património cultural da Síria é muito diversificado e as medidas de proteção a adotar
devem refletir essa diversidade. Já foi visto como é importante considerar a comunidade
e a sua história comum, bem como os desafios sociais, a pobreza, as desigualdades de
género e as mudanças na composição da população que afetarão as futuras práticas
culturais e económicas.

Convém também compreender que o conflito armado e as destruições massivas


de bens levaram à introdução de mudanças nos próprios bens patrimoniais da Síria e na
forma como são percecionados e vividos pelas populações locais, e até por eventuais
turistas assim que a situação se regularize e se reestabeleçam condições de segurança.
A par disto, as reconstruções devem ser acompanhadas por escavações arqueológicas
para que, no caso da descoberta de novos vestígios, estes possam ser incorporados nos
próprios trabalhos de reconstrução. Importa ter presente que o património cultural é
importantíssimo no cenário pós-conflito para fortalecer a identidade cultural e
reconciliar as partes em conflito. Reconstruir e reabilitar o património através de um
processo comum partilhado é importante para instigar à tolerância e ao sentimento de
pertença. Com isto em mente, a reconstrução deve ser facilitada através de leis e

30
http://edition.cnn.com/2017/02/17/europe/palmyra-treasures-restored-isis/index.html

87
políticas adequadas, sem esquecer as medidas de proteção patrimonial e a sua
integração no planeamento e gestão urbanos.

As autoridades internacionais, nacionais, bem como os proprietários têm a


responsabilidade moral de reconstruir as cidades e as aldeias através de métodos que
não ponham em causa o seu valor histórico e artístico. Não existe uma fórmula única
para a reconstrução de património cultural, devendo cada caso ser analisado
autonomamente para ser aplicada a abordagem mais adequada.

A reabilitação, restauro e preservação do património cultural das cidades sírias


deve ser integral para que possam contribuir para o desenvolvimento socioeconómico
e estabilização e reconciliação da Síria no pós-conflito. Assim, a reconstrução do
património cultural deve ser parte de qualquer plano de recuperação urbano,
contribuindo para a recuperação da economia local e para a coesão social. Isto quer
dizer também que se vai necessitar de uma abordagem delicada e apoiada em medidas
apropriadas. Delas são exemplo o encorajamento da participação da população, os
incentivos à economia local e ao estabelecimento de indústrias criativas, o
fortalecimento da gestão e recolha de informação focada nas vertentes sociais, culturais
e económicas para a recuperação do património cultural (UN-Habitat, Dezembro 2021).

Segundo o diretor da DGAM, a reconstrução de património cultural é a vontade


do governo sírio e das populações. Os sírios insistem na ideia de que o templo de Baal-
Shamin deve ser reconstruído, utilizando as pedras originais e novas também. Tratar-se-
á, além de um ato de reconstrução de um património de importância mundial, de uma
mensagem de esperança contra o terrorismo. Relativamente aos mercados tradicionais,
os souqs, em Alepo e Damasco, a sua reabilitação não é um problema, na medida em
que são na sua maioria propriedade de abastados proprietários. Contudo, em cidades
como Homs, estes souqs pertencem a famílias mais pobres que não conseguem
restaurar as suas lojas nem reerguer os seus negócios sem o investimento do governo,
iniciativas privadas ou internacionais. Ainda em Alepo, o restauro da Mesquita de
Umayyad é sem dúvida o projeto que mais retém olhares e investimento nacional e
internacional. Está ainda em reconstrução, mas no bom caminho para o usufruto futuro
da população síria. Assim que foi retomado o controlo governamental sobre a cidade de

88
Homs, também a sua mesquita principal foi restaurada e finalizada em 2015
(Abdulkarim, 4 de março de 2016).

A DGAM está também a implementar o Plano de Intervenção na Cidade Histórica


de Alepo com base nas recomendações da UNESCO. O plano foi preparado com vários
especialistas e enviado para apreciação da UNESCO, em 2019. Inclui pequenas
modificações na zona tampão da Cidade Velha e estão ainda a decorrer negociações
com o Município de Alepo para restaurar a Mesquita de Umayyad, neste caso
beneficiando de um financiamento da República da Chechénia no valor de 1.4 milhões
de dólares e da colaboração da Universidade de Alepo.

As instituições nacionais e internacionais enfrentam desafios como políticas


desatualizadas e carência de fundos. Dada a situação económica, os esforços de
recuperação do património cultural são concretizados de forma ad hoc e baseados no
financiamento disponível. Para além da recuperação física do património, torna-se
crucial aprender com os erros cometidos antes do início do conflito armado. São
necessárias mais e melhores medidas de proteção ao património cultural e um maior
incentivo ao envolvimento das comunidades na sua proteção. Segundo a UN-Habitat
parece também haver descoordenação a nível horizontal e vertical entre as instituições
envolvidas nos processos de reconstrução e proteção ao património cultural. Existe falta
de diálogo entre as iniciativas locais, nacionais e internacionais. Além disso, a falta de
acesso a áreas controladas por rebeldes, a perpetuação do conflito e a situação política
não favorecem o desenvolvimento dos trabalhos (UN-Habitat, Dezembro 2021). Em
paralelo, verifica-se uma tendência de reconstrução e restauro de monumentos e outros
tipos de edifícios que não acompanha a reconstrução de habitações e serviços, tornando
a recuperação um processo lento e de fraco planeamento. Os souqs são a prioridade de
reconstrução nas cidades. Além de serem um ponto de interesse cultural, são uma fonte
de rendimento para várias famílias, ajudando à dinamização do comércio local e à
recuperação económica, mantendo as características arquitetónicas únicas que há
séculos lhes conferem a sua identidade cultural.

Entre os refugiados saem do país também especialistas e profissionais que


ameaçam a perda dos conhecimentos técnicos e a recuperação do património cultural.

89
A perda de artesãos e trabalhadores que dominam técnicas tradicionais tem impacto na
recuperação do património cultural pela abordagem mais tradicional. As reconstruções
para habitação estão principalmente dependentes de capital privado, dificultando a
construção pela falta de mão de obra e especulação de preços, dificultando mais ainda
o regresso das populações. Com efeito, sem a reabilitação humanitária é difícil executar
planos de reconstrução de património cultural. A continuação do elevado número de
refugiados sírios no estrangeiro dificulta a recuperação da cultura e do património. Sem
o seu regresso, não é possível envolver as comunidades nos processos de reabilitação e
corre o risco de as dimensões intangíveis do património cultural caírem no
esquecimento, se não for transmitido às gerações mais novas e futuras. É importante
que os países anfitriões promovam iniciativas e campanhas de sensibilização para a
promoção da cultura síria, para que os refugiados não se desliguem totalmente da sua
cultura e possam celebrá-la até que, eventualmente, regressem à Síria.

No processo de recuperação e reconstrução do património cultural da Síria,


assiste-se sem dúvida a uma abordagem abrangente. Embora se procure manter o
máximo possível o original dos edifícios, o mais importante é recuperar os bens que
testemunham a herança cultural da Síria e que unem os sírios pela história e tradição.
Para uma recuperação positiva e eficaz do património cultural na Síria, o que for
recuperado tem de ser útil e estar ao serviço das populações, seja por ser mercados que
são fontes de rendimento, escolas, universidades, locais de culto, edifícios públicos ou
mensagens de esperança e de tolerância que combatam o terrorismo.

O património cultural pode ganhar e perder valor. No caso da Síria, os bens


destruídos terão perdido seu valor de antiguidade, mas podem ganhar o valor da
tolerância religiosa e étnica entre os sírios e de testemunho do violento conflito armado.
É, assim, uma recuperação patrimonial com um caráter menos preservacionista e mais
preocupada com as pessoas a quem serve e para quem tem significado. Num cenário de
pós-conflito armado, não é uma prioridade e nem seria bem recebida pelas populações
uma preservação meramente física do património cultural, que não pudesse ser
utilizado para fins políticos e económicos pela sociedade em que está inserido.

90
Sendo o património cultural na Síria vasto, entre cenário urbano e rural,
contando com seis bens classificados como Património Mundial, são necessárias
abordagens diferentes e planeamento individual para cada caso. No capítulo seguinte,
três desses Patrimónios Mundiais são estudados em maior profundidade: Alepo,
Damasco e Palmira.

91
4. A “Estrada de Damasco” do Património Cultural Mundial e o sonho de
reconstrução: estudos de caso

4.1. O caso da cidade histórica de Alepo

“Restaurar o património cultural faz parte do processo de cura das comunidades em cenário
pós-crise. É uma força poderosa para a reconciliação e o diálogo, e será vital para os habitantes de Alepo
nos próximos anos” (UNESCO, 2018)

A cidade de Alepo é uma das cidades mais antigas e continuamente habitadas do


mundo. Localizada entre importantes rotas comerciais, ligando o Médio Oriente à
Europa e ao Extremo Oriente, desde o segundo milénio A.C., Alepo foi testemunha de
várias civilizações, tendo sido governada por assírios, acádios, gregos, romanos,
omíadas, pelo Império Aiúbida, Mameluco e Otomano que deixaram as suas marcas
culturais na cidade. Desde a Cidadela, a Grande Mesquita do século XII ou a Mesquita
Umayyad, madraças31 dos séculos XVI e XVII, residências tradicionais, souqs32, khans33 e
banhos públicos, tudo compõe um tecido urbano único e coeso que foi classificado como
Património cultural da Humanidade, em 1986.

Nas vésperas do início da guerra civil, os resultados da implementação do projeto


eram notáveis. Alepo tornara-se próspera a nível económico e as autoridades
conciliavam os interesses da população com o investimento turístico. Este crescimento
da cidade e processo de modernização foi interrompido pelo início da guerra, que
entrou nas ruas de Alepo em julho de 2012, fazendo regredir os progressos alcançados
até à data. A guerra civil teve graves consequências para a cidade, resultando numa crise
humanitária com avultado número de refugiados, destruição e danos do tecido urbano,
consequência dos intensos bombardeamentos, tiroteios, incêndios e minas.

A Batalha de Alepo, como ficou conhecida a ocupação da cidade, foi um dos


conflitos mais longos e sangrentos desde a II Guerra Mundial. A luta por Alepo durou

31
Escolas de iniciativa pública ou privada, que se dedicam ao estudo do islão
32
Mercados tradicionais de rua, típicos dos países árabes, localizados em ruas cobertas em que cada
extremidade tem uma porta. Os souqs podem ter lojas físicas no seu interior ou pequenas bancas
montadas pelos comerciantes.
33
Alojamentos dentro dos souqs para comerciantes e para armazenamento de mercadorias.

92
cinco anos, desde julho de 2012 até ao final de 2016, envolvendo o exército sírio,
apoiado por milícias xiitas, o Irão e a Rússia e as forças rebeldes, estas repartindo-se por
vários grupos como o Estado Islâmico, o Exército Livre da Síria, as Forças Democráticas
da Síria, a frente Islâmica da Síria, milícias curdas e grupos apoiados pela Turquia e pelos
Estados Unidos. Durante a Batalha de Alepo, a cidade estava dividida em duas partes: o
lado ocidental, controlado pelo governo, e o lado oriental, pelas forças opositoras. Toda
a cidade sofreu bombardeamentos e muitos edifícios foram destruídos, mas a maior
parte da destruição concentrou-se na zona este e na antiga Cidadela de Alepo.

Os rebeldes entraram na cidade em julho de 2012, intensificando os combates


que danificaram várias partes da cidade histórica, incluindo souqs, mesquitas, edifícios
públicos, de serviços e residências. A destruição de Alepo é consideravelmente diferente
da das outras cidades, já que conta com um complexo tecido urbano que junta
diferentes épocas da História. A área mais afetada foi a residencial, onde as pessoas
além de residirem, conviviam com o património para fins económicos, religiosos e
turísticos. A sua destruição não afetou apenas os aspetos físicos do património cultural,
mas também a comunidade que dele usufruía, obrigada a fugir de Alepo.

Em fevereiro de 2013, o Estado Islâmico entrou na cidade e conquistou vários


pontos estratégicos em Alepo, intensificando os bombardeamentos, especialmente na
zona oriental ocupada por outras forças rebeldes, obrigando mais de 300 mil pessoas a
abandonarem a cidade. Ao longo do conflito, organizações humanitárias envolvidas na
crise, especialistas e observadores esforçaram-se por recolher informações sobre a
evolução dos danos ao património cultural de Alepo e à sua população, deliberando
planos de reabilitação a serem executados assim que fosse alcançada a paz no país.

Vários monumentos e sítios arqueológicos foram danificados e destruídos de


forma intencional, por serem utilizados como abrigos ou postos militares, ou de forma
involuntária como foi o caso da Mesquita Umayyad, segundo relatos de testemunhas,
que fora danificada durante bombardeamentos34. No início da ocupação de Alepo, cerca

34
Abordaremos mais à frente no capítulo, o caso da Mesquita Umayyad, pois os relatos da sua destruição
são contestados por todas as partes envolvidas, que se acusam mutuamente da autoria da destruição.

93
de 1000 artefactos (cerca de 5% da coleção do Museu Nacional de Alepo), foram
transferidos para local mais seguro, enquanto o resto da coleção foi escondida na cave
do museu. As peças em exposição que não foi possível transportar por serem de grandes
dimensões foram protegidas com sacos de areia e as paredes revestidas com portas anti-
incêndios e reforçadas com cimento. Até 2014, os artefactos considerados mais
importantes continuaram a ser transferidos para Damasco.

Em setembro de 2012, um incêndio nos souqs danificou uma parte significativa


da Mesquita Umayyad e destruiu a sua biblioteca. A 24 de abril de 2013, o minarete da
Mesquita Umayyad é destruído durante bombardeamentos, levando a que as forças
governamentais e rebeldes se acusem mutuamente da sua destruição. A 8 de maio de
2014, uma explosão destruiu o histórico Hotel Carlton perto da Cidadela, onde as forças
opositoras tinham construído um túnel, explodindo-o. Este tipo de tática foi bastante
utilizado na cidade para afetar edifícios e bases militares do governo sírio. A 14 de agosto
de 2014, o Estado Islâmico destruiu a Mesquita Khasrawiya, construída no século XVI,
ficando apenas um buraco de 40 metros no seu lugar (Al Hayek, 2018). Entre 2014 e
2015, a maioria dos edifícios históricos no sul da cidadela de Alepo foram destruídos,
onde se concentrava uma parte significativa dos edifícios governamentais, incluindo a
Madraça al-Sultaniyya, os banhos públicos Hammam Yalbougha al-Nairi e o complexo
de edifícios al-Khusrawiyya. A 26 de abril de 2016, juntam-se às destruições
confirmadas, o bairro al-Judaydeh e a praça al-Habat. Face aos graves danos infligidos
ao património cultural, a UNESCO apelava ao respeito das partes pelo património
cultural, relembrando que a cidade histórica de Alepo era classificada como Património
cultural Mundial e que tinha de ser protegida por todos os intervenientes no conflito. A
devastação de vários dos edifícios de Alepo, incluindo residenciais e comerciais,
aumentou a pobreza da população, colocando a Síria em 2016, segundo os dados da
PNUD, no 173º lugar do Índice de Desenvolvimento Humano.

94
Figura 5: Mesquita Umayyad antes da destruição do minarete (Omar Sanadiki/Reuters)

Figura 4: Mesquita Umayyad após a destruição (Omar Sanadiki/Reuters)

95
As conquistas de grandes extensões de território sírio pelo Estado Islâmico
preocupavam o governo sírio e as restantes forças opositoras, mas também a
comunidade internacional. Assim, os EUA e uma coligação internacional iniciaram uma
campanha para eliminar os grupos terroristas da região, contribuindo para a
consolidação do controlo de Alepo pelo exército sírio. Em 2016, a Rússia e os Estados
Unidos negociaram e mediaram um cessar-fogo entre as partes envolvidas para a
retirada de civis da cidade. Após vários bombardeamentos à parte oriental da cidade, as
forças opositoras foram evacuadas de Alepo e transferidas para a província de Idlib
entre 15 e 22 de dezembro de 2016, pondo fim ao cerco da cidade de Alepo. Esta é
considerada segura a 22 de dezembro de 2016.

Em meados de 2016, permaneciam apenas 250 mil pessoas na zona oriental de


Alepo. As avaliações dos danos físicos foram realizadas pelo Banco Mundial, a UN-
Habitat, em 2014; pela UNITAR, em 2016; e pela Fundação Aga Khan, em 2017. A UNITAR
e a UNESCO documentaram, no final de 2016, que mais de 34 mil edifícios estavam
danificados ou destruídos. Os danos mais significativos incluem a destruição da Madraça
Sultaniyya de 1223, do Khan al-Sabun, do Carlton Hotel, do palácio do governo, da
cidadela de Alepo, da Mesquita Umayyad e de residências medievais, bem como o roubo
de manuscritos. A UNESCO estima que dentro dos limites da cidade histórica, 60% do
património cultural tenha sido severamente danificado e 30% destruído. (UNESCO,
2018). Dentro dos limites da Cidadela, a UNESCO em parceria com a UNITAR reportou
que 31 mil edifícios foram danificados ou destruídos. Contudo, tendo em conta as
medidas de precaução tomadas pela DGAM no início do conflito para proteção do
património cultural, a UNESCO considera também que os danos foram moderados em
certas áreas, como foi o caso do Museu Nacional de Alepo.

Em dezembro de 2016, uma relativa segurança no terreno permitiu que parte da


cidade de Alepo se tornasse acessível. A UNESCO liderou uma missão de emergência
para a avaliação dos danos à cidade em janeiro de 2017, organizando também nesse ano
um encontro internacional de especialistas para discutirem a recuperação do
património cultural de Alepo. No fim da reunião ficou acordado que a UNESCO
forneceria as diretrizes para os esforços de recuperação da cidade de Alepo.

96
A recuperação económica do país tem sido lenta devido às sanções económicas
internacionais contra o governo sírio, que impediam o investimento e a transferência de
recursos estrangeiros para a Síria. Essa decisão foi revertida apenas em 2021, mas ainda
sem grandes efeitos práticos. Durante o cerco à cidade, a única ajuda recebida foi
fornecida pela Comissão Europeia, que financiou um projeto da UNESCO e da ICCROM
para dar apoio à conservação do património cultural sírio, embora a maioria das
atividades tenha sido realizada fora do país e por especialistas internacionais. No
entanto, este projeto terminou em 2020. Apesar da existência de convenções
internacionais e de apelos importantes à proteção do património, nada parece ter sido
eficaz a evitar a destruição de património cultural durante o conflito.

Os relatórios mais recentes da DGAM e submetidos ao Comité do Património


cultural Mundial da UNESCO são relativos ao período entre 2018 e 2021. É importante
referir que, devido à pandemia de Covid-19, não existiu a reunião do Comité do
Património cultural Mundial em 2020, nem em 2022, desta feita por causa do conflito
armado entre a Ucrânia e a Rússia. Assim, o último relatório disponibilizado pela
UNESCO compreende informação até 31 de dezembro de 2021. Além disso, entre 2020
e 2021, os avanços na reconstrução de Alepo foram menores se comparados com 2019.

Até 2018, a DGAM reportava que eram necessárias medidas urgentes de


intervenção, mas a falta de recursos materiais e verbas disponíveis dificultavam o início
dos trabalhos. Referem um plano de recuperação para a Cidade Histórica de Alepo para
redesenhar e melhorar as infraestruturas existentes e identificar as zonas especiais de
atuação, como os souqs, de forma a incentivar a dinamização das atividades comerciais
e económicas. Em 2020, faz notar a existência do bloqueio económico à Síria que torna
difícil o acesso a materiais, permanecendo os mesmos desafios no relatório de 2021. Em
2019, foram repostas infraestruturas básicas como a eletricidade, água e rede de
telefones. Foram reabilitados o perímetro do Castelo de Alepo e a sua muralha, bem
como o Al-Khabiya Souq, além do restauro de residências da zona histórica e a
reconstrução da muralha da Cidadela de Alepo.

Os relatórios referem iniciativas conjuntas entre a DGAM e a Fundação Aga Khan


que restauraram, em 2018, cerca de 60 lojas no Khan Al-Harir Souq. No Al-Haddadeen

97
Souq, perto da Mesquita Ummayyad, os trabalhos de recuperação foram feitos pelos
respetivos proprietários e 25% das lojas estavam concluídas. No Al-Niswan Souq cerca
de 100 lojas contavam com a licença de restauro para que os trabalhos se iniciassem
assim que possível. Em geral, mais de 200 vendedores foram apoiados por organizações
nacionais e internacionais para recuperarem as suas lojas e conseguirem rendimentos
para revivificar estes mercados. Os lojistas e os artesãos estão a treinar jovens para
aprenderem os seus ofícios, para que as suas práticas tradicionais não se percam. Em
vista à preservação dos aspetos intangíveis dos souqs, as lojas reabertas venderão
apenas os produtos tradicionais, como frutos secos, especiarias, carne e doces.
Entretanto, o Souq Al-Saqattiyya reabriu a 17 de outubro de 2019.

O Fundo Sírio para o Desenvolvimento (FSD) documentou o património cultural


existente, situando-o na respetiva comunidade através de um questionário aos
proprietários para confirmar os donos de cada loja e ajudar na recuperação da
documentação legal. Assegurar a implementação dos projetos de reabilitação conforme
o estipulado, assegurar apoio financeiro aos proprietários das lojas e envolver
estudantes locais nestes projetos são os grandes objetivos. Foram ainda levantadas as
necessidades destes comerciantes de acordo com as suas profissões, a ajuda legal e as
ações de restauro necessárias. As autoridades esforçam-se para envolver as
comunidades nos trabalhos de restauro para estimular o desenvolvimento cultural,
social e económico, ouvindo as suas propostas para o projeto de revivificar os souqs.

Uma outra iniciativa para recuperar o património cultural imaterial é a


organização de teatros de sombras nas ruas de Alepo, uma tradição associada à
sociedade síria. Além disto, vários profissionais estão a receber formação para lidar com
os efeitos da guerra: apoio psicológico a crianças vítimas da guerra; atividades e cursos
para procurar diminuir os efeitos negativos da guerra; abertura de cursos de caligrafia
arábica, leitura árabe e literatura; expansão da florestação nos jardins das zonas
históricas.

Os trabalhos de reconstrução são supervisionados pelo Comité da Cidade


Histórica e pelo Governador de Alepo. O governo local quer reabilitar as escolas na zona
histórica e restaurar os edifícios religiosos, com a ajuda de doações locais e

98
internacionais. Em 2019, foram aprovados restauros para mais de 20 mesquitas, em
adição às cinco anteriores. As mesquitas parcialmente danificadas foram reabilitadas e
usadas para rituais religiosos. Com efeito, também foram completados trabalhos de
restauro em várias igrejas cristãs, continuando os trabalhos na Igreja dos 40 Mártires,
na Catedral Católica Romana. No maior projeto de reconstrução de edifícios religiosos,
o da Mesquita Umayyad, os trabalhos foram financiados pela República da Chechénia.
Foi concluída a triagem de pedras do minarete que podem ser reutilizadas e começaram
os seus trabalhos de reconstrução, de acordo com os estudos aprovados. Foram
igualmente realizadas escavações arqueológicas no jardim da Mesquita, mas sem
resultados significativos.

Foi também finalizado o registo dos danos a edifícios, como o Museu das Artes
Folclóricas, procurando-se salvar artefactos, evitar mais colapsos e preparar futuros
trabalhos de restauro. A DGAM, seguindo as indicações da UNESCO, adicionou mais
algumas zonas à área classificada como Património Mundial. Com o apoio e fundos do
Japão e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Museu Nacional de
Alepo reabriu portas a 24 de outubro de 2019, com isso se procurando simbolizar o
regresso de Alepo à vida. Atualmente, a DGAM impõe restrições na mudança de funções
e reuso dos edifícios, com o propósito de reconstruir o tecido urbano e as atividades
como eram antes de 2012, aproveitando a estratégia do building-back-better (UNESCO,
2018). Contudo, apenas 25% dos lojistas originais regressaram às suas lojas na cidade
histórica. Muitos mudaram-se para outras cidades ou para a periferia com bairros mais
modernos e arrendaram as suas lojas nos souqs a terceiros, o que leva à alteração do
uso tradicional das lojas (UN-HABITAT, 2022).

No último relatório submetido à UNESCO, a DGAM dá a conhecer que continuam


os trabalhos de restauro nos souqs para o avanço da economia de Alepo, bem como a
eliminação das ameaças à segurança pública. Segundo a DGAM, os souqs tiveram uma
notável intervenção por parte da comunidade e dos donos das lojas sob a supervisão do
DGAM. Metade do minarete da Mesquita Umayyad está reconstruído com as pedras
que permaneceram intactas. Ao mesmo tempo, o governo sírio apoia os residentes a

99
regressar às suas casas, a dinamização de atividades e de cursos culturais e a formação
de professores capazes de lidar com crianças afetadas pela guerra.

A UNESCO em resposta aos relatórios da DGAM faz notar o esforço da Síria para
a recuperação de Alepo desde dezembro de 2016. Incentiva ao desenvolvimento de um
Plano de Recuperação e que este seja desenvolvido de acordo as recomendações da
UNESCO. Pede que a Síria faça um relatório de avaliação das estruturas em risco e que
se tomem as medidas necessárias para aumentar a segurança dos habitantes. Nota a
boa qualidade dos trabalhos de restauro no Souq Al-Saqatiyya, um modelo de sucesso a
ser utilizado em outros trabalhos de restauro de mercados tradicionais. Incentiva ainda
os Estados-membros a contribuírem financeiramente para o restauro e reitera a
necessidade de uma missão de avaliação de danos entre a UNESCO, a ICOMOS e a
ICCROM assim que a segurança o permitir. Felicita a criação de zonas tampão na cidade
histórica e incentiva a elaboração de medidas que retirem Alepo da Lista do Património
em Perigo. A 17 de março de 2023, a UNESCO autoriza o financiamento no valor de 75
mil dólares para reconstruir a torre oeste na muralha de Alepo.

Em vista do processo realizado de recuperação da cidade, os trabalhos de


reconstrução recomendam que se considere a possibilidade de acontecerem novos
desastres similares no futuro. Deixar áreas livres nas redondezas dos bens patrimoniais
para construção de áreas públicas é um conselho geral; coordenar as escavações com a
reabilitação da cidade, colocando a hipótese de novas descobertas arqueológicas é
outra recomendação; usar edifícios históricos para novas funções e promover a
melhoria das infraestruturas, outras ainda. O foco é que o restauro e a manutenção
tenham continuidade e sejam assegurados, enquanto se respeita o uso atual, a história
e a natureza artística dos bens patrimoniais. Uma das recomendações mais importantes
da UNESCO é a preservação do caráter arqueológico do sítio para que não se infrinja o
princípio da sua autenticidade.

Embora a ONU, a UNESCO e outras autoridades e organizações internacionais


tenham manifestado o seu apoio à reabilitação cultural e à reconstrução do património
cultural do país, a verdade é que poucas foram as medidas tomadas dentro do território
sírio. Tendo em conta as razões do bloqueio económico à Síria, não haverá

100
financiamento internacional de valor significativo para a reconstrução enquanto não
houver mudanças políticas no país. Verificam-se algumas iniciativas internacionais,
pequenas, como a reconstrução de escolas, hospitais, ajuda humanitária ou a reposição
de saneamento básico, água e eletricidade, mas nada que faça parte de um
planeamento geral que abranja toda a cidade de Alepo. Para a comunidade
internacional não haverá reconstrução de Alepo, seja do seu património cultural ou de
edifícios necessários ao funcionamento da sociedade, sem mudança no panorama
político sírio. A ONU vê o embargo económico como uma forma de obrigar Bashar al-
Assad a ceder e a adotar mudanças mais democráticas. Claro está que este panorama
internacional não impede pequenos projetos de reabilitação e reconstrução que até já
estão em curso, mas num país ainda em guerra, o financiamento para este tipo de
projetos é bastante limitado. E é-o também porque é sempre usado em benefício do
governo vigente, consolidando o seu poder na região.

Segundo os dados da UN-HABITAT, no ano de 2019 a população de Alepo era de


1,6 milhões de pessoas, contando com um baixo número de retornados depois do início
do conflito armado. Relativamente ao perímetro da cidade histórica de Alepo, o número
dos seus residentes era de 110 mil habitantes antes da crise, baixando depois do seu
início para os 15 mil habitantes. Em ambas as áreas se registam alguns desafios comuns
à preservação do património cultural, como os custos elevados do restauro e
reconstrução e o número elevado de casas e souqs danificados, tendo um grande
impacto na economia local e nacional. Além disso, a falta de materiais e técnicas de
restauro apropriadas são condicionantes da continuação dos trabalhos de reabilitação
do património cultural e da cidade histórica em si. De facto, o baixo número de
residentes, além de ameaçar a economia de Alepo, ameaça igualmente a continuação
das tradições orais e aspetos mais intangíveis do património cultural sírio. Sem pessoas
da comunidade para o transmitir e sem as gerações mais novas para o receber e
preservar, corre-se o risco do seu esquecimento.

Ainda assim, mesmo sem a guerra ter terminado, alguns projetos de


reconstrução estão em curso. A reconstrução é promovida pelo governo de Assad e pela
sua visão política da reconstrução, utilizada como um instrumento de propaganda e de

101
benefício das elites. No caso de Alepo, a Mesquita Umayyad está a ser reconstruída para
passar a imagem da vitória do governo sobre as forças rebeldes e a vitória de um
governo que é contestado internacionalmente. Bashar al-Assad descreve todas a
destruições como obra dos terroristas, não diferenciando entre o Estado Islâmico e as
restantes forças rebeldes. Bashar al-Assad procura, assim, ser visto como o protetor da
história e da cultura sírias, sendo ao mesmo tempo o responsável por decidir o que é e
o que não é reconstruído. A reconstrução da Mesquita Umayyad tem sido envolvida na
propaganda governamental, que a utiliza não para fins pacíficos, mas para consolidar a
sua autoridade e controlo do território. É um alerta para futuros conflitos, pois torna-se
evidente que os recursos limitados para a reconstrução não são bem distribuídos e
desrespeitam as minorias presentes na Síria.

Consta que, em 2013, o minarete da Mesquita terá sido destruído pelas próprias
forças de Bashar al-Assad, embora na versão do governo quem o destruiu tenham sido
os terroristas. No processo de reconstrução, o governo procura selecionar a
reconstrução de edifícios, privilegiando os religiosos e ignorando a vasta destruição de
zonas residenciais que apoiaram as forças rebeldes durante o cerco. Este tipo de
reconstrução seletiva pretende consolidar a autoridade do regime e a divisão entre
aqueles que apoiam e os que não apoiam o regime sírio, dividindo ainda mais o país.
Bashar al-Assad implementa políticas de reconstrução que continuam a consolidar o seu
regime e as elites políticas que o apoiam, negligenciando as fações e etnias que
contestam o seu poder. Segundo o arqueólogo e antropólogo sírio Amr al-Azm, o
governo sírio utiliza duas estratégias na reconstrução: recompensar as forças que lhe
foram leais e enriquecer ainda mais a elite política. À semelhança de Homs, também
Alepo regista um maior número de danos nos edifícios situados nas áreas rebeldes e o
governo não mostra interesse em canalizar os fundos para estas áreas, geralmente mais
pobres e com mais refugiados, preferindo recompensar as áreas leais e levantar como
bandeira a prioridade da reconstrução do património cultural (Deknatel, 2022).

A zona histórica de Alepo tem sido o foco das preocupações de reconstrução,


estando a resultar numa Alepo com o seu centro comercial e cultural reconstruído e
melhorado, mas com uma periferia abandonada, destruída e ainda mais pobre. Além

102
disso, no que concerne à destruição do património cultural, o governo tem tentado
impor a sua versão da história, acusando exclusivamente o Estado Islâmico e as outras
forças da oposição como os culpados de todas as destruições em Alepo e nas outras
cidades do país. Exemplo disto é a destruição da Mesquita de Umayyad, cuja rápida
reconstrução revela o que o governo sírio quer que se retenha sobre o conflito armado
– as forças rebeldes destroem e o governo apressa-se a reconstruir o património cultural
nacional da Síria. Sem qualquer registo testemunhal da destruição da Mesquita, a
história apenas preservará o que interessa ao governo de Assad que seja contado. Corre-
se o risco também de que caiam no esquecimento os esforços de especialistas e ativistas
sírios que se uniram no início do cerco a Alepo para proteger a Mesquita com sacos de
areia e outras técnicas improvisadas. Estas ações foram mais tarde reclamadas pelas
autoridades governamentais que argumentam terem sido as únicas a preocuparam-se
com a proteção do património cultural durante o conflito armado, e que são elas agora
que continuam preocupadas em reconstruir o património para benefício da Síria e dos
seus cidadãos.

Comprovando esta teoria, sabe-se que a empresa que está encarregue da


reconstrução da Mesquita é uma empresa de construção militar síria, sem grande
presença de especialistas em património cultural, religião ou história. Obviamente, esta
reconstrução do património cultural tem os seus pontos positivos, já que pode ajudar à
regeneração da sociedade síria e ao regresso das populações, vendo-se como exemplar
o caso da Mesquita Umayyad que é um edifício de orgulho nacional. Além disso, projetos
de restauro e de reconstrução fomentam o emprego, a contratação de artesãos e, numa
perspetiva de longo-prazo, dinamizarão novamente o turismo na cidade. Porém, não se
pode escamotear que tem também um lado mais negativo. A reconstrução do
património cultural em Alepo é prejudicial, numa primeira fase de reabilitação da
cidade, se não for incluída num plano geral de assistência humanitária e não envolver as
populações locais nos projetos. Sem assistência às necessidades básicas das populações
e sem fornecimento de meios para que possam voltar a ganhar independência
financeira, as reconstruções patrimoniais parecem ser apenas um investimento turístico
num cenário, ainda imprevisível, de pós-guerra civil (Deknatel, 2022).

103
Algumas das intervenções em curso ou já finalizadas em Alepo foram financiadas
ou pelo governo ou por organizações não-governamentais envolvidas na preservação
do património cultural, como a Fundação Aga Khan que tem permitido a reconstrução
de partes dos souqs principais de Alepo. Estes contam já com 650 metros reconstruídos
numa rede de souqs com quase nove quilómetros quadrados de área. Os arquitetos
envolvidos no projeto estimam que a reconstrução total dos souqs levará entre 10 e 20
anos, sendo os trabalhos dificultados pela continuação do conflito armado e a falta de
materiais e de financiamento. O governo sírio estabeleceu 15 zonas de reconstrução
prioritária em Alepo, das quais oito estão na área ocidental e zona histórica da cidade,
as quais sofreram, contudo, menos danos do que as zonas rebeldes. Como referido
anteriormente, assiste-se em Alepo a uma reconstrução seletiva. A parte oriental da
cidade, fortemente bombardeada e destruída durante a Batalha de Alepo, permanece
praticamente igual a como ficou em 2016, não tendo havido esforços por parte do
governo para reconstruir residências ou incentivar a reabilitação dessa parte da cidade.
São os habitantes que permaneceram nesta zona, ou que a ela regressaram no final do
cerco que têm reconstruído de forma lenta e autónoma as suas casas. Na zona oriental,
a reconstrução mais percetível e significativa até ao momento foi uma pequena
extensão do souq para a venda de itens básicos e materiais de reconstrução para os
habitantes que tivessem regressado à cidade.

Portanto, não podemos falar de reconstrução em Alepo até haver mudança no


panorama político e o fim do conflito armado, utilizando-se muito mais as expressões
‘reabilitação’ ou ‘recuperação’. A priorização da reconstrução do património cultural a
que se assiste é utilizada como propaganda e em benefício do governo de Bashar al-
Assad, que quer controlar o que é e o que não é reconstruído, bem como a forma como
a história se lembrará dos acontecimentos, quem são os heróis e quem são os vilões.
Embora se pudesse deixar o património cultural destruído na forma de ruínas, como
símbolo tanto da guerra civil como da história do próprio património cultural, parece
que a tendência verificada na Síria é a sua reconstrução para fins simbólicos e de
propaganda governamental, acusando as forças opositoras (e não só os grupos
terroristas) de atentarem contra o património, a memória e a diversidade cultural e

104
religiosa do país. Alepo apresenta-se, assim, como um caso único entre os seis sítios
classificados como Património Mundial sírios, em parte por ser o que mais severamente
sofreu destruições patrimoniais, mas principalmente por ser usada como bastião da
propaganda do governo sírio e símbolo da sua forte influência e reconquista da região.
Percebemos, portanto, a razão por que a reabilitação não é ignorada pelo governo sírio,
embora, o mesmo já não se possa dizer da UNESCO e da comunidade internacional. Por
outro lado, é indesmentível que os atores internacionais também politizam o património
cultural, no caso de Alepo classificado como Património Mundial, e que ignoram a
necessidade de fundos e especialistas internacionais serem canalizados para a
reconstrução da cidade até haver mudanças no panorama político sírio que satisfaçam
as pretensões internacionais para o país. No caso, a traduzirem-se no fim da guerra civil
e na democratização do governo de Bashar Al-Assad, com a convocação de eleições
verdadeiramente democráticas.

4.2. O caso da cidade histórica de Damasco

O segundo estudo de caso eleito para a presente dissertação é a cidade histórica


de Damasco, classificada como património nacional, em 1976, e pela UNESCO como
Património cultural Mundial, em 1979. Damasco foi fundada no terceiro milénio a.C.,
sendo uma das cidades mais antigas do Médio Oriente e continuamente habitadas do
mundo. As escavações arqueológicas nos arredores da cidade comprovam a existência
de vida humana na região entre 8000 e 10.000 a.C. É desde há muito um importante
centro cultural e comercial devido à sua excelente posição geográfica, unindo o oriente
e o ocidente, a África e a Ásia.
Damasco tem cerca de 125 bens patrimoniais considerados de importância
nacional e mundial, marcando a passagem pela cidade de vários períodos da História e
de civilizações como a grega, romana, bizantina e islâmica. Embora tenha sido tornada
capital pelos Omíadas, o desenvolvimento contínuo da cidade e a proliferação da cultura
islâmica, acabando por dominar a região, não impediu a excelente preservação do seu
tecido urbano de inspiração romana e helénica35. Damasco mantém a orientação típica

35
https://whc.unesco.org/en/list/20/

105
de uma cidade grega, com as suas ruas orientadas no sentido norte-sul ou este-oeste,
conservando ainda vestígios do Templo de Júpiter e partes das muralhas romanas. Da
idade medieval sobrevivem as mesquitas, os túmulos, as atuais muralhas da cidade e a
Cidadela, mas a maior parte do património cultural edificada de Damasco remonta à
conquista otomana dos inícios do século XVI.

Aquando da classificação de Damasco como Património Mundial e até às


vésperas da guerra civil, a UNESCO tinha identificado alguns problemas na conservação
do património cultural da cidade. Alguns destes problemas são comuns a todos os sítios
classificados como Património Mundial na Síria, e também ao seu património cultural
nacional e local. Embora a DGAM procure proteger Damasco e incentive a preservação
do seu património, alguns problemas têm por base o pouco valor atribuído pelas
comunidades a esse património cultural ou a forma como o vivem. No caso de Damasco,
há a assinalar uma crescente falta de valorização do património cultural pelas
comunidades, a transmissão desadequada dos conhecimentos e técnicas tradicionais
ou, até mesmo os métodos incorretos de restauro aplicados. Antes do início do conflito
armado, a cidade não tinha uma zona tampão a delimitar a zona histórica e considerada
Património Mundial da UNESCO; carecia de um plano de gestão do seu património
cultural e apresentava um desenvolvimento urbano desenfreado que ameaçava o tecido
urbano histórico e não tinha como prioridade o respeito pelo património cultural. O
início do conflito armado, e a sua perpetuação ao longo de doze anos, acrescentaram a
esta lista as ameaças inerentes a situações bélicas, bem como o risco de incêndios que
têm assolado a cidade e o seu património cultural nos últimos anos (Hayek, 2018).

Os riscos a que estava exposto o património cultural da Síria, mais propriamente


o de Damasco, agravaram-se no início de 2011, quando as manifestações anti-Bashar al-
Assad e o espírito da Primavera Árabe invadiram as ruas da capital. A resposta agressiva
do governo sírio sobre os manifestantes pacíficos e os mais revoltosos resultaram na
perpetuação da violência e em danos ao património cultural. Entre 2011 e 2013, os
danos e destruições do património cultural são apenas noticiados pela comunicação
social e por testemunhos, tendo sido apresentado, em 2014, ao Comité do Património

106
Mundial, o primeiro relatório sobre o ponto da situação na cidade histórica de Damasco
desde o início da guerra civil.

A primeira notícia de danos ao património edificado é registada a 30 de abril de


2013, quando um carro armadilhado explodiu perto do antigo edifício do Ministério do
Interior, provocando danos materiais em edifícios históricos com mais de 200 anos e
afetando também o edifício da Direção de Antiguidades de Damasco. Seguem-se
explosões na zona cristã da cidade, danificando lojas tradicionais na área entre Bab
Touma e Bab Sharqi, além da queda de morteiros que danificaram gravemente a Igreja
Ortodoxa da Arménia. Uma bomba explodiu à entrada de uma esquadra da polícia no
bairro histórico de Bab Touma, danificando uma das sete portas da Cidade Velha. Um
morteiro também atingiu a fachada oeste do portão oriental da Cidadela de Damasco e,
outro, o telhado e a parede norte do Salão Real. Num episódio de confrontos violentos,
duas bombas explodiram nos arredores da Grande Mesquita e do popular mercado de
Hamidiyeh, resultando em danos na fachada da Madraça Al-Adliya e em várias lojas
dentro do mercado (Ministry of Culture, 2022).

Para além dos tiroteios e bombardeamentos, os incêndios têm sido uma


preocupante fonte de destruição do património cultural nos bairros históricos, como no
caso dos bairros Sarouja, Qanawat e Amara, causando a destruição de sete edifícios
residenciais e comerciais. Em adição, o Banco Otomano sofreu um grande incêndio em
2015, que destruiu o seu primeiro piso e danificou gravemente a estrutura. Em 2019,
deflagraram três incêndios em bairros históricos da zona tampão de Damasco. Os
incêndios tomaram proporções preocupantes, que segundo as autoridades
governamentais, poderiam ter sido evitados se a construção das casas tivesse levado
em conta as técnicas e materiais tradicionais. Este desastre é também uma
consequência indireta da guerra civil na cidade, já que as casas albergavam mais famílias
do que o suposto, deteriorando os edifícios, e não há opções de reparação por causa da
escassez de materiais e de financiamento. A reconstrução das casas pelos próprios
proprietários, sem formação ou condições de segurança, fizeram também aumentar o
risco de incêndio na zona histórica de Damasco, havendo até ao momento registo de

107
mais de 250 infrações na construção de residências na Cidade Velha, o que representa
cerca de 4% dos edifícios (Ministry of Culture, 2022)

Várias construções residenciais, patrimoniais e governamentais foram atingidas


pelos tiroteios, bombardeamentos e ataques intencionas dos terroristas, reivindicados
pelo Estado Islâmico. O método mais comum era a utilização de pessoas com explosivos
amarrados ao corpo, fazendo-se explodir em locais estratégicos para causar os maiores
danos e mortes possíveis. A área mais afetada por este tipo de ataques foram as
muralhas da Cidadela. Os edifícios religiosos também não escaparam às destruições,
tendo a Grande Mesquita de Damasco ficado com os seus mosaicos destruídos. A
Mesquita Al-Baseawi, a Igreja Católica Romana, a Igreja Católica Arménia e a Sinagoga
Judaica também sofreram danos durante os confrontos. Segundo relatos do governo
sírio, grupos de rebeldes invadiram estes monumentos e tornaram-nos abrigos e postos
militares, vandalizando-os e destruindo-os, para além de procederem a escavações
ilegais e ao roubo de artefactos para venda no mercado negro.

A 2 de fevereiro de 2019, parte da muralha histórica colapsou entre os bairros


de Bab Al-Salam e Bab Touma. A falta permanente de manutenção da muralha, de obras
de restauro e de acompanhamento das alterações na estrutura da muralha durante o
conflito armado levaram ao seu colapso, devido, nomeadamente, ao excesso de
humidade e à corrosão da argamassa interna. A rede de esgotos por baixo do bairro
adjacente à muralha foi danificada, provocando fugas de água no interior dos muros que
atingiram as fundações das casas. O colapso da muralha histórica é justificado pela falta
prolongada de financiamento disponível para projetos de restauro, já que o governo
sírio não conseguia canalizar fundos suficientes para um projeto tão dispendioso, o que
contribui para a degradação diária do património cultural na cidade (Ministry of Culture,
2022).

Vários monumentos e património edificado de Damasco eram utilizados até ao


início da guerra civil para fins turísticos, educativos ou como sede de departamentos
governamentais ou de serviços públicos. Disso são exemplo, o Castelo de Damasco na
Cidadela, o Museu das Tradições Folclóricas, o edifício do Departamento dos
Monumentos, a histórica estação de comboios de Hijaz e escolas arqueológicas. Embora

108
Damasco não seja a cidade que mais danos sofreu a nível patrimonial, em comparação
com a destruição de Alepo ou de cidades até não reconhecidas como Património
Mundial, como Raqqa ou Homs, regista tentativas de ataques terroristas a vários dos
seus monumentos.

Em Damasco, no decorrer do conflito armado, a DGAM estabeleceu algumas


medidas de proteção ao património cultural, adaptadas à situação bélica ainda em
desenvolvimento. A necessidade de reconstruir edifícios fundamentais ao
funcionamento da cidade ainda antes de acabar a guerra, leva a um certo descuido no
planeamento urbano e a pouco respeito pelo património cultural. É imperativo
combater as violações às leis de construção e a demolição de edifícios, impedindo
construções sem licença ou que prejudiquem o valor cultural da cidade histórica. A
DGAM tem também feito esforços para documentar os danos infligidos ao património
cultural, além de fornecer ajuda aos donos das casas históricas danificadas para a sua
reparação e recuperação, desde que provem ser os legítimos proprietários, passando
ainda por proporcionar formação em técnicas de restauro e levantamento do estado
das propriedades. A principal preocupação parece ser a documentação como técnica de
conservação patrimonial, preservando a memória visual do edifício, antes e depois de
ser danificado, o que serve de apoio para estudos futuros e é uma importante
ferramenta de projetos de restauro e reconstrução. A par disto, tem sido concretizada
a construção de arquivos digitais com toda a documentação existente sobre a cidade,
digitalizando várias cópias e distribuindo-as por vários locais, de forma a criar uma base
de dados sobre o tecido urbano da cidade e do seu património cultural. Reunir
fotografias, mapas e diagramas de Damasco, com a localização do património cultural,
relativos ao antes e depois das destruições, para documentar e preservar a história dos
próprios edifícios é uma estratégia recorrente. Em simultâneo, tem sido construída uma
ponte de comunicação entre as populações locais e as autoridades governamentais,
para alertar sobre a importância do património cultural e do papel das pessoas na
preservação e na participação de projetos de restauro, bem como elucidá-las de que
elas são em si mesmas os transmissores de valores e de património cultural. Cientes da
falta de comunicação e articulação entre as autoridades governamentais, as

109
organizações internacionais e as próprias comunidades, a DGAM, em nome do governo
sírio, quer melhorar os mecanismos de proteção do património cultural, de forma a
prevenir incêndios e outro tipo de ameaças (Deknatel, 2022).

Em concreto, no que concerne à prevenção de incêndios, a principal e recorrente


ameaça ao património cultural em Damasco, foram lançadas várias iniciativas. Um
workshop com o mote “Preservar o Património cultural” foi organizado pelo Sindicato
dos Engenheiros do Comité do Património Mundial e pela Brigada de Incêndios de
Damasco. Dele resultaram várias ideias para o combate aos incêndios, tais como equipar
os bairros com mecanismos e equipamentos de primeiros socorros para incêndios, a
instalação de tanques de emergência e a elaboração de um plano de combate a
incêndios adequado e adaptado ao tecido arqueológico e urbano da cidade. Importa
que todas as operações não comprometam o património cultural e que a atribuição de
licenças e redes de combate a incêndios comprovem a sua eficácia. Com efeito, a medida
mais importante passou pela identificação das zonas da cidade histórica onde não é
possível a circulação de carros de bombeiros, sendo imperativo a procura e aplicação de
soluções adaptadas (Ministry of Culture, 2022)

Desde 2016 que a situação de conflito em Damasco está controlada e a cidade


goza de uma certa segurança e estabilidade, o que permitiu o início de alguns projetos
de reabilitação e reconstrução. Durante a guerra civil e após a saída da guerra das ruas
de Damasco, a DGAM tem estado em constante coordenação com a Direção dos
Edifícios e Mesquitas Históricas, a Universidade de Damasco e a Direção da Cidade
Histórica de Damasco para a troca de informações, experiências e cooperação, visando
a preservação do património cultural através de formações de especialistas e das
comunidades, de campanhas de sensibilização sobre a importância do património
cultural e de projetos de restauro. É importante notar, no entanto, que sendo Damasco
uma cidade classificada como Património Mundial, a UNESCO está obrigada a fornecer
apoio logístico, financeiro e profissional à preservação e reabilitação da cidade.

Nos dois últimos relatórios sobre o ponto de situação em Damasco,


disponibilizados ao Comité do Património Mundial (2020 e 2022), a DGAM dá a conhecer
os principais desafios da reabilitação da cidade. Reconhece que são necessários estudos

110
mais aprofundados quer sobre o estado atual da cidade, quer sobre as técnicas e
métodos de preservação que ajudem a manter a autenticidade e integridade da zona
histórica. Em dezembro de 2019, o Município de Damasco, em cooperação com a
DGAM, implementou o projeto-piloto de retirar os carros da zona histórica da cidade
durante o dia, tendo em vista a preservação do património cultural e da cidade histórica.
Os resultados desse projeto ainda estão a ser averiguados, bem como a opinião dos
residentes. Ainda em 2019, foram também iniciadas as obras de restauro da zona da
muralha entre Bab Touma e Bab Al-Salam, o que passou pela preservação das ruínas
arqueológicos e pela análise de documentação anterior ao seu desmoronamento.
Contudo, a falta de fundos disponíveis tem impedido a conclusão em tempo útil dos
estudos de consolidação necessários.

Durante os anos de 2020 e 2021, a DGAM incentivou a preservação das técnicas


de construção e de restauro tradicionais, expandindo a iniciativa em 2022 com o apoio
do Sindicato dos Engenheiros do Comité do Património Mundial. Procurou trazer a
debate o estado atual dos materiais de construção tradicionais, o seu custo e os
materiais alternativos. A DGAM refere ainda que a Direção da Cidade Histórica de
Damasco restaurou o Souq Al Sarija, usando apenas materiais tradicionais. Ainda em
2021, foi inaugurado em Damasco um centro educacional, especializado em técnicas e
aplicação de materiais tradicionais no restauro de património cultural. A reconstrução
do Banco Otomano foi consolidada com o auxílio do Comité do Património Mundial,
considerando a documentação existente antes e depois do incêndio, conciliando em
particular as necessidades sociais e económicas da área circundante. O projeto de
reabilitação enfrenta dificuldades de aplicação pela complexidade que deriva da
sobreposição das competências administrativas da zona entre a DGAM e o Governo de
Damasco, sendo necessária uma definição de responsabilidades entre essas autoridades
e um processo de coordenação global (Lablaude & Russo, 2016).

111
Figura 6: Banco Otomano depois do incêndio (Ministry of Culture, 2016)

Figura 7: Banco Otomano em processo de reabilitação (Ministry of Culture, 2020)

112
Em 2022, terminaram os trabalhos na zona norte da cidade, entre Bab Touma e
Bab Al-Salam. Estão atualmente em curso obras de implementação de uma rede de
esgotos mais moderna nos bairros adjacentes à antiga muralha de Damasco, o que a
protegerá de fugas de águas residuais e do deslizamento de terras. Em virtude de casas
e outros locais terem sido abandonados pelos seus proprietários, a Direção da Cidade
Velha de Damasco concedeu várias autorizações de reparação de emergência e de
restauro, sendo que, em 2022, 13 das de reparações de emergência foram concedidas
na zona dos bens imobiliários judaicos.

Como referido no Capítulo 2, a UNESCO tem enfrentado cortes no financiamento


disponível e tem dependido em grande parte das doações dos Estados-membros para
investir, ainda que em quantias modestas, em projetos de reconstrução do Património
Mundial. Assim, em 2020 e no que diz respeito a Damasco, a UNESCO apoiou
financeiramente o projeto de preservação da muralha e das suas residências históricas
adjacentes, na zona de Bab al-Salam e Bab Touma, atribuindo ao projeto apenas 30 mil
dólares, oriundos do Fundo de Emergência do Património cultural da UNESCO. As suas
iniciativas de reabilitação de Damasco têm sido em pequena escala, relembrando que o
país permanece em guerra civil, sem fim à vista. Os trabalhos em curso são de prevenção
de riscos e preparação para futuros projetos de restauro e reconstrução do património
cultural e das casas tradicionais que estão ou estavam localizadas na zona da cidade
histórica e classificada como Património Mundial da UNESCO. Além disso, faz notar que
a DGAM enfrenta dificuldades em controlar os trabalhos de restauro e reconstrução
devido à falta de fundos e aos conflitos de interesses entre as partes envolvidas.

De uma forma geral, a DGAM considera que os trabalhos a decorrer e os projetos


terminados de conservação, restauro ou reconstrução em Damasco estão a progredir
ou fluíram da melhor forma possível, de acordo com os fundos disponíveis. No relatório
de 2022, defende também que a manutenção de Damasco na Lista de Património
Mundial em Perigo já não é aplicável, tendo em conta que as zonas da Síria ainda em
disputa entre as forças do governo e os rebeldes estão bastante longe de Damasco, não
havendo mais perigo. A autoridade governamental pede, assim, à UNESCO e ao Comité

113
do Património Internacional que organizem missões de acompanhamento para decidir
as medidas necessárias para retirar a cidade da Lista.

A nível da assistência internacional, e à semelhança de Alepo, Damasco ainda


não recebeu ajuda significativa a nível financeiro ou de recursos humanos para se
reabilitar. Em 2016, a DGAM pediu à Delegação da UNESCO em Beirute, que organizasse
uma reunião de emergência com especialistas internacionais para definir medidas de
primeiros socorros à cidade, no seguimento de um incêndio em abril desse ano que
destruiu o bairro histórico Al-Asrooniya. A reunião aconteceu entre os dias 14 e 16 de
dezembro de 2016, tendo ficado estabelecido por indicação do Comité do Património
Mundial que qualquer plano de conservação ou reconstrução de Damasco deveria ser
de intervenção mínima e sem efeitos irreversíveis, para que pudesse ser feita uma
avaliação mais pormenorizada e delineado um projeto de reconstrução aprovado pelo
Comité (HEF, 2018). Até ao final de 2022, a DGAM registou alguns projetos de
cooperação internacional, por exemplo com a Fundação Aga Khan, para a recuperação
de edifícios históricos, além da atribuição de pequenos empréstimos a proprietários
para que pudessem restaurar as suas casas na zona histórica de Damasco. A par disto,
há a registar a iniciativa Creative Space, que lançou o desafio de encontrar o melhor
design para a reconstrução da praça urbana de Bab Touma, uma iniciativa realizada em
conjunto com a British Syrian Society, cujos trabalhos estão ainda em curso para apurar
o projeto vencedor.

Em resposta ao último relatório submetido, a UNESCO expressa a sua


preocupação em relação ao colapso de parte da muralha da cidade histórica de
Damasco, entre as áreas de Bab al-Salam e Bab Touma, e toma nota da documentação
e medidas de emergência, aprovadas em outubro de 2020, para identificar as razões
que levaram ao colapso e tomar medidas para minimizar os riscos. Encoraja a Síria a
aumentar os esforços no sentido da utilização de materiais e técnicas tradicionais para
os trabalhos de restauro, através da formação de especialistas e de licenças reguladoras
de reconstrução que controlem as ameaças à autenticidade do património cultural.
Encoraja também a continuação da implementação das recomendações da UNESCO e
do desenvolvimento de um plano de ação para Damasco se candidatar a um projeto de

114
assistência internacional. Reitera a necessidade de submeter os projetos de
reconstrução ao Comité antes que se tomem decisões irreversíveis36.

À semelhança do estudo de caso anterior, também a reabilitação do património


cultural de Damasco tem sido um processo lento e com dificuldades em captar
financiamento internacional. Porém, a capital da Síria não sofreu grandes destruições
patrimoniais que obriguem a grandes projetos de reconstrução, mas antes projetos de
intervenção e restauro em alguns monumentos. Deve, contudo, ser referido que, a nível
patrimonial, Alepo parece importar mais ao governo sírio do que a sua capital, Damasco.
Embora sejam ambas cidades históricas, consideradas património nacional e
classificadas como Património Mundial da UNESCO, as abordagens governamentais
diferem claramente nas duas cidades. Conforme abordado no ponto 4.1, Alepo é
essencialmente utilizada como arma política e de fortalecimento do regime de Bashar
al-Assad, através das reconstruções patrimoniais nela levadas a efeito e da sua
manipulação enquanto lugar de memória e da mensagem de que se perpetuará para as
gerações vindouras. Ainda que os fundos sejam escassos, para Alepo há alguns fundos
que são aplicados na reabilitação do património do seu centro histórico, esquecendo as
zonas da cidade que se opuseram ao regime e compensando as que lhe foram leais. Em
Damasco, a situação é diferente. Os trabalhos de reabilitação são de facto mais pontuais,
embora se use a mesma justificação de falta de fundos disponíveis, como para Alepo.
Compreende-se, no entanto, que a afirmação do regime na capital passa por outra
estratégia. Talvez por esta cidade não ter sido tão afetada como Alepo pelos conflitos,
o projeto é tornar Damasco uma cidade mais cosmopolita e com centros empresariais
que possam competir com cidades como o Dubai.

Embora não fazendo parte da temática da presente dissertação, é importante


informar que, a par dos projetos de reabilitação patrimonial a ocorrer dentro dos limites
da cidade histórica, se encontram em curso dois projetos megalómanos de construção
residencial e empresarial – o Marota City e o Basilia City37 – situados na periferia de

36
https://whc.unesco.org/en/decisions/7685
37
https://syriadirect.org/how-the-promise-of-alternative-housing-in-damascus-marota-and-basilia-
cities-turned-from-a-blessing-into-a-curse-for-those-eligible/

115
Damasco. Estes projetos foram anunciados em 2012 e têm como destinatários
exclusivos as elites sírias, as únicas que poderão comprar uma casa nestes
empreendimentos de luxo e de preços astronómicos. Ambas as cidades na periferia de
Damasco estão a ser construídas em terras que foram expropriadas a pequenos
proprietários que viram as suas casas destruídas durante os conflitos e que agora não
têm capacidade financeira para comprar a casa no terreno que era antes seu. Nesse
aspeto, de certa forma assemelha-se ao que se passa em Alepo, já que em ambas as
cidades as necessidades dos mais pobres são ignoradas em benefício das elites políticas
e comerciais (Deknatel, 2022).

4.3. O caso da cidade arqueológica de Palmira

O último dos três estudos de caso é a cidade arqueológica de Palmira, também


conhecida como a Pérola do Deserto. A 215 km de Damasco, foi classificada como
Património Mundial da UNESCO em 1980. Recebeu, contudo, já desde o fim da I Guerra
Mundial bastante atenção governamental, primeiro no contexto do Mandato francês38,
que autorizou o início das escavações arqueológicas em Palmira e, mais tarde, do
governo sírio que trabalhou para a reabilitar e torná-la o centro de turismo mais
importante da Síria. Esta cidade remonta à Antiguidade Clássica, juntando a cultura do
Este e do Oeste, as suas distintas artes e tradições ancestrais. A sua grandeza
arquitetónica teria competido com Roma e estava localizada estrategicamente entre o
rio Eufrates e o Mar Mediterrâneo. A cidade de Palmira viveu o período de conflito entre
os maiores impérios da Antiguidade, os persas e os romanos, mantendo sob seu
controlo a rota entre o ocidente e o oriente e desafiando o tempo com o seu estado de
conservação excelente. A sua localização estratégica no deserto e a sua proeminência

38
O Mandato Francês, oficialmente reconhecido como Mandato para a Síria e o Líbano, foi criado após o
fim da I Guerra e do desmantelamento do Império Otomano. O Mandato foi formalizado pelo acordo
Sykes-Picot entre a França e o Reino Unido que dividiram entre si o controlo dos atuais territórios que
compreendem o Iraque, Síria, Israel, Líbano e Jordânia. Reconhecido pela Liga das Nações, o Mandato
Francês durou de 1923 a 1943, terminando com a revolta da Síria e do Líbano que culminou na
independência dos países atuais.

116
comercial foi notória durante o reinado da Rainha Zenóbia, sendo uma estação de
descanso e de comércio, além de uma paragem obrigatória das caravanas39.

Desde o início do atual conflito armado na Síria que foram tomadas medidas para
proteger Palmira. A DGAM reconheceu que a cidade estaria em perigo devido ao valor
inestimável dos artefactos guardados no seu Museu e no sítio arqueológico, prevendo
que em contexto de guerra civil, a cidade arqueológica seria a principal atração para
ladrões de artefactos e para o financiamento de grupos armados. O departamento de
Antiguidades de Palmira reforçou e fortaleceu os portões dos túmulos que estavam
preparados para receber visitas, adicionou portas de aço e voltou a enterrar todas as
entradas para as proteger do roubo e destruição. Todos os corredores, entradas do
Museu e armazéns foram reforçados com portões de aço; as janelas foram seladas com
painéis de ferro e blocos de pedras, assim como o jardim. Todos os pequenos artefactos,
ou, pelo menos, os transportáveis para armazéns, foram retirados do Museu. O Leão de
Atenas, exposto no jardim da entrada principal, foi coberto na tentativa de o proteger
de danos. Por outro lado, em 2013, a própria UNESCO decide como medida de
emergência transferir Palmira para a Lista do Património Mundial em Perigo, para que
pudesse receber fundos internacionais. A preocupação com a segurança de Palmira
atravessou fronteiras e pôs o mundo em sobressalto. Na sequência do escalar do
conflito e do crescimento do Estado Islâmico e sua conquista de território em conjunto
com os seus ideias fundamentalistas, a UNESCO deixa algumas recomendações ao
governo sírio. Aconselha-o a garantir as medidas de combate ao tráfico ilegal, em linha
com a Resolução 2199 da ONU (2015), a assinatura da Convenção de Haia e o seu
Segundo Protocolo (1999); bem como a comprometer-se a não fazer nada que tornasse
Palmira um alvo militar, para além de sensibilizar as suas tropas presentes em Palmira e
a população para o valor cultural inestimável da cidade arqueológica.

É inegável que em qualquer um dos três estudos de caso analisados foram


tomadas medidas de emergência, mas a rápida coordenação e mobilização de recursos
em Palmira é incomparável às outras situações. Infelizmente, contudo, os esforços das

39
https://whc.unesco.org/en/list/23

117
populações, do Departamento de Antiguidades e da DGAM não foram suficientemente
eficazes para salvar Palmira de destruições, roubos, escavações ilegais e do período de
terror na cidade imposto pelo Estado Islâmico. Devido ao agravamento da situação de
segurança em Palmira, vários grupos organizados, assaltaram e roubaram várias
antiguidades, incluindo no Hotel Zenobia, no coração do sítio arqueológico, de onde
foram roubadas cinco estátuas. As duas estátuas que escaparam a este assalto serão
transportadas para o Museu de Palmira. Alguns dos túmulos foram igualmente expostos
a vandalismo e roubo, mesmo com as medidas de proteção aplicadas (Ministry of
Culture, 2022).

Sendo, portanto, verdade que não foi possível evitar atos de destruição
patrimonial, os esforços conjuntos das autoridades competentes e das comunidades
locais acabarão por conseguir confiscar e devolver muitos artefactos roubados de
Palmira que foram posteriormente armazenados no seu Museu. Uma das ações mais
importantes foi o confisco de três meios pratos e de esculturas funerárias entre agosto
e outubro de 2014 (Ministry of Culture, 2016). Antes da queda da cidade arqueológica
às mãos do Estado Islâmico, a DGAM já tinha tomada a medida de transferir a maior
parte dos artefactos para Damasco.

O Estado Islâmico conquistou Palmira em maio de 2015, após um ataque em


quatro frentes à cidade, dando início a um período de terror, crimes de guerra e limpeza
cultural. O grupo começou por bombardear os templos e monumentos, com vista ao
roubo de tudo o que pudesse ser transportado. Só progressivamente adotará uma
atitude mais politizada em relação ao património, utilizando-o como arma para a
manipulação das populações e enfraquecimento dos opositores.

A 20 de junho de 2015, o Estado Islâmico fez explodir a estátua do Leão de Atenas


que se encontrava à entrada do Museu. Em seguida, invade o próprio Museu e destrói
frescos, mas a maior parte eram já cópias deixadas pelas autoridades como estratégia
de engano. Felizmente, também neste caso, a DGAM tinha transferido a maior parte de
os bens para a capital antes dos terroristas chegarem à cidade. Em julho desse mesmo
ano, vários túmulos, alguns em excelente estado de conservação, são bombardeados
com o fim de conseguir alcançar e roubar diversos artefactos. A 23 de agosto de 2015,

118
o Estado Islâmico explodiu o Templo de Baal-Shamin, que datava do século II, tendo
servido também de igreja católica entre os séculos V e VI. Em setembro de 2015, faz
explodir o Templo de Bel, um dos mais importantes templos do século I. Era considerado
único e o mais famoso do Médio Oriente do período da Antiguidade Clássica. A UNESCO
considerou a destruição destes dois templos um crime de guerra e uma atitude
deliberada de eliminação dos símbolos da diversidade cultural e tolerância religiosa da
Síria. A terceira destruição com mais impacto foi a explosão do Arco do Triunfo de
Palmira, um verdadeiro cartão de boas-vindas ao sítio arqueológico e localizado na
entrada principal da cidade, construído por Sétimo Severo entre 193 e 211 d.C. (Ministry
of Culture, 2016).

Figura 1: Templo de Bel antes e depois da sua destruição

119
Figura 2: Arco do Triunfo antes e depois da sua destruição

Conforme abordado nos capítulos anteriores, esta destruição do património


cultural de Palmira protagonizada pelo Estado Islâmico é enunciada como justificada por
servir a luta contra os infiéis, pela eliminação de vestígios de outras religiões ou da
presença de ocidentais na região, como do Império Romano. O Estado Islâmico parece
acreditar que sem provas físicas da diversidade cultural na Síria, mais especificamente
em Palmira, e da convivência entre as mais diversas religiões, a sua doutrina poderia ser
mais facilmente imposta. Para além das destruições em grande escala, também é de
notar os graves danos impostos a Palmira pelo roubo de artefactos extraídos de
escavações ilegais, em locais como o Vale dos Túmulos e o Campo Diocleciano, além do
roubo de equipamentos de escavação que se encontravam no Anfiteatro.

Contudo, as perdas, danos e destruições na Pérola do Deserto não se ficaram


apenas pelo património cultural em si. A 26 de outubro de 2015, o Estado Islâmico
executa publicamente, e divulga amplamente através das redes e comunicação sociais,
três cidadãos que aparecem amarrados a três colunas da rua principal, fazendo-as
explodir. Foram testemunhados vários episódios de execuções públicas, realizadas no

120
Anfiteatro de Palmira, de jornalistas, arqueólogos e especialistas em património
cultural, sendo o caso mais famoso a decapitação do arqueólogo responsável pela
descoberta de Palmira – Khalid al-Assad. Apelidado como o ‘pai de Palmira’, era um
verdadeiro especialista e apaixonado pela preservação da cidade, tendo escondido
muitos artefactos antes da chegada dos terroristas e acabando por pagar com a sua vida.
Foi decapitado pelo Estado Islâmico aos 82 anos, a 8 de agosto de 2015, após recusar
revelar os esconderijos das antiguidades. O seu corpo foi exposto em frente a uma
multidão de forma a causar terror nos espectadores e na comunidade internacional.
Seguiram-se mais 200 execuções, dentro e fora dos limites de Palmira. Estas execuções
de civis, além de serem crimes de guerra e um verdadeiro espetáculo de horrores,
demonstram a estratégia militar e de propaganda usada pelo grupo terrorista. Não se
trata apenas de delapidar o património cultural, visto como símbolo dos infiéis, mas
também de o usar como cenário para o horror infligido.

Para além das destruições patrimoniais e das evidentes tentativas de eliminação


de tudo o que pudesse desautorizar a sua doutrina, assassinam os jornalistas que
poderiam confirmar essas ações, os arqueólogos e outros especialistas em património
cultural que pudessem vir a ajudar a reviver a memória e a identidade cultural da Síria.
Tudo o que possa remeter para a tolerância religiosa e a diversidade cultural milenar da
região é alvo potencial da sua violência destruidora. A par disto, estes atos agressivos
espalham o terror e o medo nos opositores e nas populações locais, subjugando-as mais
facilmente ao seu poder com medo das represálias. Por outro lado, ainda, a divulgação
tanto das destruições como das execuções em cenário patrimonial parecem ser uma
excelente forma de captar novos membros, atraídos pela brutalidade do grupo e pela
sua doutrina. Para a adesão de novos membros contribuíam também a rápida conquista
de território e o medo plantado na comunidade internacional, através de ataques
terroristas em cidades maioritariamente europeias. Esta ideia de luta contra a
supremacia e o passado colonial do ocidente, contra os vestígios de outras religiões e
culturas na região e a promessa de libertação da Síria e da construção de um verdadeiro
estado islâmico, conquistou a atenção de vários jovens ao redor do mundo que se
alistaram no Estado Islâmico. O grupo armado confirma, portanto, o acerto das suas

121
estratégias que causam impacto mundial, sendo consideradas uma ameaça a qualquer
país e levando à organização de uma missão internacional na Síria para o eliminar.

O exército sírio e seus aliados entraram em Palmira e libertaram-na a 27 de


março de 2016. No seguimento dessa libertação, a UNESCO e a comunidade
internacional apressam-se a falar de Palmira e a assumir ter de a proteger, restaurar e
reabilitar. Contudo, após nove meses na posse do governo sírio, a cidade voltará a cair
nas mãos do Estado Islâmico. A 21 de dezembro de 2016, o Estado Islâmico reconquistou
Palmira e, desta vez, os monumentos são rodeados de minas para prevenir que o
exército sírio não possa recuperar a cidade. Na segunda ocupação, a Cidadela também
sofreu danos, ficando inacessível durante vários meses, mas as partes destruídas foram
torres que tinham sido reconstruídas há apenas 15 anos e que poderão ser novamente
reconstruídas, não tendo sido afetada a sua estrutura principal. Em 2017, serão também
danificados o Anfiteatro e o Tetrápilo (Ministry of Culture, 2018).

A comunidade internacional e a UNESCO condenaram as destruições na Síria,


especialmente em Palmira, protagonizadas pelo Estado Islâmico como fonte de
rendimento para recrutar e fortalecer as suas operações no terreno. Homenageiam
todos os trabalhadores e peritos que continuam a trabalhar em prol da preservação do
património cultural ainda que não haja segurança e as suas vidas estejam em perigo. A
UNESCO apela ainda a que sejam feitas contribuições voluntarias para preservar e
reconstruir Palmira, prometendo que será enviada uma missão internacional logo que a
segurança seja estabelecida.

Entretanto, três meses depois da segunda ocupação de Palmira pelo Estado


Islâmico, após o estudo da cidade e dos planos de proteção aos monumentos, o governo
sírio e a Rússia atacam de surpresa e rapidamente e libertam a cidade. O exército sírio e
os seus aliados derrotaram o Estado Islâmico a 2 de março de 2017 com o mínimo
possível de perdas. Com a ajuda de especialistas russos na desativação de minas,
centenas de minas deixadas pelo Estado Islâmico foram desmanteladas. Foi feito um
levantamento a 3D da cidade para documentar o seu estado atual e foram assinados
acordos com várias instituições estrangeiras empenhadas no seu restauro, tendo os
trabalhos já sido iniciados.

122
Passando agora à fase de reabilitação de Palmira, existem várias abordagens a
poderem ser adotadas, sendo necessário estabelecer a forma como se quer preservar a
cidade. Preservar através do património cultural, a própria memória das destruições e
da guerra civil ou eliminar as suas provas? Se preservarmos as destruições, até que
ponto deve ser preservada a imagem de uma Palmira mártir às mãos do
fundamentalismo e extremismo religioso? Em qualquer dos cenários, devemos ter em
consideração que Palmira já estava em ruínas, ainda que em excelente estado de
conservação, antes da entrada do Estado Islâmico na cidade e deverá continuar como
ruína no futuro. As destruições perpetradas durante a guerra civil deverão ser
preservadas como uma parte da história do monumento e como uma lição para as
gerações futuras (Lilas, 2017).

Na missão enviada pela UNESCO após o fim da primeira ocupação de Palmira,


em abril de 2016, tinha sido sublinhado que as ações da UNESCO deviam ser
coordenadas e integradas na resposta humanitária da ONU. Entre maio e junho de 2016,
a missão identificou danos consideráveis no Museu e ajudou à implementação de
medidas de emergência de segurança. Não teve acesso às torres funerárias do Vale dos
Túmulos, mas consegue saber que tinham sido destruídas seis torres e que é notória a
presença de instalações militares e do seu impacto nas ruínas arqueológicas. Consegue
também averiguar que percentagem considerável das pedras resultantes das explosões
estavam em condições de serem utilizadas em futuras intervenções de reconstrução se
se considerasse a aplicação do método da anastílose. Além disso, é recomendado que
qualquer intervenção na cidade deve ter a garantia de que é compatível com o estatuto
de Património cultural Mundial de Palmira e respeitar a sua zona-tampão. Portanto,
qualquer abordagem que se aplique deve também estar alinhada com as decisões das
Cartas de conservação internacionais e do Comité do Património Mundial. A UNESCO
sugere que quando for alcançada a paz e o fim do conflito se considere uma abordagem
inovadora e mais museológica para o Museu de Palmira, adicionando-lhe novas coleções
e experiências, mas sem deixar de também o tornar um lugar de memória.

Na sequência da primeira reconquista da cidade arqueológica, a Rússia


apresentou à UNESCO o seu projeto de restauro de Palmira, que foi aprovado por

123
unanimidade na 199º sessão, a 4 de abril de 2016. Recentemente tem havido trabalhos
de restauro em sítios arqueológicos destruídos através de tecnologias modernas. Um
dos métodos é a impressão a 3D, capaz de reconstruir como estava antes e usando
material original. Isto foi ensaiado pelo Instituto de Arqueologia Digital de Oxford.
Construíram um Arco do Triunfo com mármore egípcio40. Muitos cientistas e
arqueólogos parecem prontos a aderir a esta técnica e estarem dispostos a ter
impressoras para reconstruir Palmira num período de seis meses (Deknatel, 2022). Em
2017, a UNESCO financiou o restauro através de técnicas tradicionais da estátua do Leão
de Atenas, conferindo ao projeto um fundo de 915520 dólares.

Divergindo dos dois estudos de caso anteriores, a propósito de Palmira, a


comunidade internacional e a UNESCO parecem estar a favor e incentivarem a sua
reconstrução imediata, oferecendo equipas de especialistas internacionais e fundos que
não se comparam aos de Alepo ou Damasco. Com efeito, assistimos a uma outra via de
politização do património cultural por parte da comunidade internacional e da própria
UNESCO, que utilizam a reconstrução de Palmira para desautorizar a doutrina
fundamentalista do Estado Islâmico. Assim o confirma Irina Bokova, diretora-geral da
UNESCO em 2015: “diria que preservar as pedras de Palmira é importante, mas partilhar
a mensagem de Palmira é vital. (…) Isto não é sobre templos ou edifícios, mas sim sobre
prevenir ameaças conduzidas por interpretações distorcidas da história e religião”
(UNESCO, 2015).

Utilizando a ainda polémica técnica de reconstrução em 3D, a réplica do Arco do


Triunfo foi produzida em Itália pelos especialistas da Universidade de Oxford e exposta
em várias partes do mundo, como um ato simbólico contra as destruições de Palmira
pelo Estado Islâmico. Trata-se de uma tentativa de mostrar ao mundo que os atos do
Estado Islâmico podem ser reversíveis e que nada do que destroem é impossível de
reconstruir. De facto, é também uma tentativa de convencer a comunidade e os
especialistas internacionais de que se pode reconstruir património cultural, com os

40
Outra das experiências bem-sucedidas usando esta técnica foi a reconstrução de uma versão de quatro
metros do touro com asas, em Nimrud, no Iraque, também destruído por terroristas.

124
materiais originais, sua textura e cor, recorrendo à impressão 3D nos casos em que as
técnicas tradicionais não sejam suficientes.

Analisando os relatórios da DGAM submetidos à análise do Comité do Património


Mundial compreende-se que, de facto, os trabalhos ainda não avançaram como
planeado devido à situação pandémica, à Guerra na Ucrânia e à própria perpetuação do
conflito na Síria. Nos relatórios são identificadas como ameaças ao património a falta de
apoio internacional para reabilitar Palmira, algo que é transversal a todo o património
cultural na Síria por causa do bloqueio económico imposto ao país. A inexistência de
uma unidade administrativa e de gestão de Palmira, sendo necessário ser gerida
remotamente por Damasco e Homs é outra dificuldade. É também apontado o aumento
dos perigos que afetam os monumentos destruídos e danificados por via das alterações
das condições climáticas e pelo facto da população ainda não ter regressado à cidade
vizinha de Palmira, Tadmor. A DGAM estabeleceu um comité científico internacional
para o restauro de Palmira, sob tutela da UNESCO, mas este comité ainda não foi
ativado. A DGAM lançou ainda uma missão para avaliar os danos resultantes das
escavações ilegais. Foram documentados 461 fossos, que danificaram a estrutura de
túmulos, sendo que estas escavações levaram à descoberta de novos túmulos que foram
igualmente assaltados e vandalizados. A equipa documentou os danos em alguns
cemitérios e túmulos bombardeados pelo Estado Islâmico, sendo também notado que
alguns cemitérios foram usados pelos terroristas como quartel-general e depósitos de
munições. A aprovação deste comité científico internacional, pelo governo sírio e pela
DGAM é um processo decisivo para a reconstrução de Palmira, especialmente dos dois
templos destruídos. Este processo enfrenta obstáculos sérios como a dificuldade em
concretizar a digitalização 3D de Palmira, mas, de acordo com os especialistas, os
milhares de fotos dos monumentos podem ajudar nesse processo de produzir uma
versão 3D completa de Palmira.

Até ao final de 2021, tinham sido tomadas as medidas possíveis tendo em conta
o estado de conflito no país e a situação pandémica a nível mundial. Uma equipa
composta por especialistas sírios e russos, sob a supervisão da DGAM, começou os
trabalhos de reabilitação das termas naturais de Palmira, vandalizadas pelo Estado

125
Islâmico. O projeto é cofinanciado pela Associação Russa para a Preservação do
Património cultural, juntamente com os arqueólogos do Instituto de Património de
Moscovo e o Centro Científico Kabardino-Balkaria, da Academia das Ciências. O projeto
tem como objetivo a limpeza das termas e o restauro da cave arqueológica, devolvendo-
a ao estado em que estava antes do início do conflito. Estas termas são de especial
importância cultural, mas também para a manutenção da vida na cidade e a sua
recuperação envolve a comunidade no projeto. O seu restauro contribuirá para o
regresso das populações, em especial dos agricultores, o que voltará a estabilizar a
região.

Graças à cooperação do Ministério do Turismo sírio e do Governo de Homs, o


Centro Histórico de visitantes foi reaberto depois de restaurado, com o custo estimado
de 300 milhões de libras sírias. Foi restaurado e reabilitado através do uso de materiais
tradicionais. Além disso, está a ser restaurado o hotel, perto do Templo de Bel, para que
seja possível albergar os especialistas e as equipas durante as suas missões em Palmira.
O governo de Homs lançou também vários projetos para reabilitar a cidade moderna,
incluindo instalações de escolas, cuidados de saúde, instituições sociais e
governamentais, reparação do saneamento e canalização, restauro das estradas e
espaços públicos. Com a ajuda do Crescente Vermelho, foram restauradas 250 casas
para ajudar as pessoas e encorajar o seu retorno.

A guerra civil teve e tem consequências desastrosas a vários níveis, não devendo
excluir-se da lista a própria identidade cultural da Síria. No caso de Palmira, tanto a
comunidade internacional como o governo sírio estão empenhados na recuperação da
cidade arqueológica, mas é importante mencionar que há opiniões contra a sua
reconstrução. Dentre elas, surge o argumento disso significar a tentativa de eliminar a
destruição enquanto parte da história de Palmira, ou eliminar da memória o próprio
sofrimento do povo sírio às mãos do Estado Islâmico. Parece-me defensável que, no caso
de Palmira, todas as abordagens devam ser ponderadas, dando poder, nomeadamente,
às opiniões das populações locais. É preciso preservar Palmira enquanto património
cultural e enquanto espaço de memória através do planeamento a curto e longo prazo
das medidas a serem tomadas. Claramente, tudo o que o Estado Islâmico destruiu

126
poderá vir a ser reconstruído novamente, assim que a situação no país fique
regularizada. Em todo o processo, é notória a intenção e a necessidade de utilizar
Palmira como uma bandeira e exemplo que possa combater e retirar influência ao
Estado Islâmico. Verificou-se que os trabalhos de preservação se iniciaram quase de
imediato, após a primeira expulsão do grupo armado da cidade arqueológica. Não
obstante, os trabalhos tiveram de abrandar com a situação pandémica, entre 2020 e
2021, e o início da Guerra na Ucrânia, em 2022. Este último acontecimento teve como
consequência a Rússia retirar o seu apoio fundamental, tanto ao desenrolar da guerra
civil na Síria, como ao seu investimento em projetos de reconstrução, o que voltará a
atrasar os prazos antes estabelecidos.

Recorrendo à Carta de Veneza, de 1964, é defensável que nas reconstruções


devem ser apenas utilizados materiais e técnicas tradicionais, que não adicionem uma
perspetiva contemporânea ao património cultural e que não comprometam a perceção
da sua estrutura original. Contudo, ainda que se deva preservar a autenticidade e as
ruínas de Palmira, é importante incorporar nessa preservação a memória da guerra civil
e das destruições, assim como a sua reconstrução representará o combate ao
extremismo religioso e à intolerância cultural. Creio que será mais comovente e
simbolicamente impactante que Palmira apresente provas do que aconteceu no seu
passado recente, não havendo a necessidade de apagar de forma total a memória
dolorosa da presença do Estado Islâmico na cidade. Será, portanto, muito pertinente
que se recuperem partes dos monumentos e se deixem outras em ruínas, oferecendo
um local mais autêntico e que respeite a história de Palmira e da sua população. Em
alternativa, se o governo sírio e a UNESCO optarem pela reconstrução dos monumentos
como estavam antes da guerra, ou até mesmo a sua reconstrução total, seria importante
que o Museu de Palmira pudesse apresentar uma exposição dedicada à destruição de
Palmira, para que não venha a ser esquecida. Por outro lado, defendo sem dúvida que
a reconstrução de Palmira deve ser utilizada, em primeiro lugar, para benefício das
populações locais, seja para a celebração da sua história, seja como incentivo para o seu
regresso a Tadmor, através do fomento de postos de trabalho e da preparação da cidade
classificada como Património Mundial para no futuro poder voltar a receber turistas.

127
Dos três estudos de caso, sem dúvida que Palmira é a cidade que mais capta a
atenção internacional, embora as três cidades registem destruições significativas do seu
património cultural e todas sejam classificadas como Património Mundial da UNESCO.
Foi possível distinguir cada caso atendendo às estratégias de reconstrução distintas
adotadas, embora todos partilhem uma politização dos seus processos de reconstrução
e do próprio património cultural. No caso de Alepo as reconstruções são utilizadas
sobretudo como meio de propaganda política do regime sírio. Servem a ocultação de
provas de ações contra as populações, bem assim como a deturpação da história e a
eliminação da contestação ao regime instituído na cidade e no país, beneficiando os que
foram leais e negligenciando os opositores. No caso de Damasco, a capital do país, a
cidade recebe alguns projetos de reconstrução do seu património cultural, mas a
atenção do governo sírio está centrada nos projetos que possam tornar a capital síria
num centro cosmopolita. Isso beneficiará as elites políticas, religiosas e comerciais que
têm defendido o regime, perpetuando o seu poder e influência na sociedade e
menosprezando as minorias étnicas e religiosas. No caso de Palmira é bastante evidente
que esta é a cidade que mais tem recebido a atenção internacional e captado mais
fundos, ainda que sempre insuficientes, para a sua reconstrução. Surge evidenciado que
a recuperação da cidade arqueológica de Palmira tem grande significado para o governo
de Bashar al-Assad, para fins económicos e de perpetuação do regime, e para a
comunidade internacional, que vê Palmira como um símbolo da derrota da doutrina do
Estado Islâmico e da preservação da herança cultural coletiva.

128
Conclusão

No capítulo 1 da dissertação apresentei a mudança ao longo do tempo da


perceção dos conceitos utilizados na investigação até alcançarem a sua definição mais
atual ou com um maior consenso. Falando primeiramente no património cultural, a
definição de base, mas também a mais importante para o desenvolvimento da
dissertação, procurei elucidar sobre os vários pontos de vista possíveis. Utilizei-a ao
longo do texto como uma noção de produção histórica, essencialmente social e política.
A noção de património é o resultado de um processo de relembrar, que passa
conhecimentos e que cria memórias, fazendo parte da identidade cultural de uma
comunidade. O património cultural constituído como tal é uma manifestação da cultura
de um determinado grupo, podendo tornar-se em lugares de memória de
acontecimentos históricos ou de celebração de elementos diferenciados e
diferenciadores que unem um grupo de indivíduos. O património cultural é alcançado
pelo respetivo processo de patrimonialização, traduzindo-se em construções,
desconstruções e reconstruções permanentes das memórias e tradições de uma
comunidade. Este processo não se manifesta apenas no edificado, englobando também
a dimensão imaterial. O património cultural é, em última instância, uma forma de
expressão cultural, mantida e valorizada através da conservação física ou da memória.
Pode servir a comunidade a nível cultural, social, económico, turístico e político,
existindo enquanto as pessoas lhe atribuírem o significado de património cultural. Como
abordado ao longo do capítulo, foi utilizado durante o passado, mas também no
presente para justificar narrativas sustentadoras de regimes políticos ou uma
determinada visão sobre o passado histórico. Por último, o património cultural é
importante em todas as suas dimensões, não havendo lugar para hierarquizações, já que
mudam de importância conforme a sociedade e o tempo histórico.

O conceito de proteção patrimonial pode aparecer recobrindo um sentido de


preservação ou salvaguarda; no primeiro caso remetendo para medidas de diretriz
governamental, e, no segundo, sendo mais sensível a dinâmicas que têm por base as
comunidades locais. A proteção do património nasceu após o reconhecimento do
próprio conceito de património cultural e do reconhecimento de que este estava

129
exposto a perigos com as transformações da sociedade, seja pelo crescimento
urbanístico e a modernização das cidades e do modo de vida, seja por destruições como
forma de insurreição e revolta para com o regime político vigente, simbolizando a
eliminação desse património o término desse regime e a própria eliminação da memória
cultural dos acontecimentos anteriores às revoluções. Desde cedo, as autoridades,
governos e organizações internacionais se preocuparam em se capacitar de
instrumentos legais para evitarem danos ao património cultural e punir os infratores,
traduzindo-se nas várias Cartas e Convenções que foram abordadas ao longo da
dissertação. De uma forma geral, as Convenções foram gradualmente adaptando-se aos
novos perigos e realidades enfrentados pelo património, mas também incluindo todas
as novas formas de património cultural que iam sendo reconhecidas. Sem dúvida que a
ação mais importante de proteção do património a nível internacional foi ensaiada pela
UNESCO com a criação da Lista de Património Mundial, em 1972, tendo até aos dias de
hoje, sido alargada e revistos os seus requisitos para poder ser mais inclusiva e perder o
caráter monumental e europeu que marcou os seus primeiros anos. Se, por um lado, as
primeiras Cartas, no início do século XX, assinalavam sobretudo a importância de
preservar um património edificado e monumental, típico dos países europeus; por outro
lado, em 2003, a UNESCO reconhece importância a outras formas de manifestação do
património cultural, presentes também em países não europeus. Este reconhecimento
de expressões culturais imateriais foi um marco importante para o reconhecimento
internacional das restantes culturas não-europeias, abrindo caminho para novos
projetos de proteção patrimonial que não sejam apenas dirigidas ao património
edificado.

Segue-se, então, o conceito de destruição patrimonial. São registadas


destruições desde que há memória, seja de forma mais ou menos voluntária, com a
intenção de acomodar o crescimento urbano ou para a imposição de novas ideologias
ou regimes. Considerei como definição de destruição patrimonial, um ataque
intencional ou involuntário ao património cultural, cujo resultado afeta a respetiva
identidade cultural. No caso dos ataques voluntários, seja para cumprimento de
objetivos militares ou de imposição de regimes políticos ou visões religiosas, o

130
património cultural é posto ao serviço da afirmação de um poder e de um ponto de vista
da história. As destruições involuntárias são efeitos colaterais, não havendo o objetivo
de destruir a diversidade cultural, mas como pude verificar, é bastante comum em
cenários de conflito armado através do tráfico ilegal de antiguidades para fazer face às
dificuldades inerentes a cenários bélicos. Ao longo do capítulo são dados exemplos de
destruições, principalmente intencionais, entre a I Guerra e o crescimento da influência
do Estado Islâmico na Síria. Este grupo armado terrorista redefiniu a forma como
atualmente se perceciona as destruições de património, já que recorreu ao seu uso
sistemático como meio de propaganda de terror e mediatismo na comunicação social e
redes sociais. O Estado Islâmico viu os seus atos denominados como crimes de guerra,
pela comunidade internacional, e como limpeza cultural, pela UNESCO. Perpetrou atos
de destruição que vão desde escavações e tráfico ilegais para compra de armamento e
financiamento da sua campanha, até às explosões e destruição intencional de
monumentos para a eliminação da diversidade cultural e tolerância religiosa, além da
imposição da sua doutrina fundamentalista. O Estado Islâmico concentra nas suas ações
formas de destruição típicas de índole voluntária e involuntária, para alcançar objetivos
militares, políticos, religiosos, sociais, económicos e culturais.

O último conceito apresentado no Capítulo 1 foi o de reconstrução patrimonial.


Sem dúvida, o conceito que mais gera polémica e discordância entre os especialistas de
património, principalmente sobre a sua aplicação prática. Após ter sofrido episódios de
destruição patrimonial, o processo da “vida” seguinte do património cultural seria a
reconstrução. Contudo, este processo pode ser percecionado e orientado de várias
formas: a maneira mais clássica, recorrendo ao método da anastílose; recorrendo ao
uso de novos materiais, distinguindo as partes que foram reconstruídas das do edifício
original; a reconstrução através de técnicas e materiais tradicionais, mantendo o
património edificado no estado em que estava antes de ser destruído; ou a nova
abordagem da reconstrução, que inclui e justifica o processo de reconstrução através
dos elementos intangíveis do património cultural, do seu simbolismo, passado histórico
e memória coletiva. Esta última abordagem, antes esquecida e ignorada pelos
especialistas, é agora vital para o combate ao terrorismo e a reabilitação das

131
comunidades em cenários de crise. Considero que em cada caso onde seja necessário
aplicar um projeto de reconstrução, todas as abordagens devem ser consideradas a fim
de encontrar a mais adequada. Concordo com a reconstrução do património cultural e
com a sua adaptação ao serviço da população. Pode ser um aliado valioso em cenário
de pós-conflito quando associado a uma resposta humanitária.

O Capítulo 2 é inteiramente dedicado à UNESCO, contando brevemente na


primeira parte a sua história desde a sua formação e objetivos. A segunda parte
apresenta a linha de pensamento da UNESCO sobre o património cultural e como foi
mudando desde a sua fundação até à atualidade. O que começou por ser uma
organização internacional em que todos os seus membros trabalhariam em conjunto em
prol da investigação científica, ao mesmo tempo que se desenvolviam mecanismos de
proteção ao património, passou rapidamente a ter uma postura que pretendia ser
universalista do património, mas que não reconhecia que o património cultural de todas
as zonas geográficas e nas suas mais diversas expressões, tivessem o mesmo valor e
importância que o património edificado, monumental e de origem civilizacional para os
países europeus. Entre os vários mecanismos de proteção mencionados, sem dúvida que
o mais importante se manifestou na criação da Convenção do Património Mundial, em
1972. Com os processos de descolonização, as novas nações exigiam igual
reconhecimento do seu património a nível internacional, à semelhança de algumas das
antigas metrópoles, o que virá a culminar no alargamento da Convenção de 1972,
incluindo bens imateriais e o reconhecimento do seu valor e necessidade de proteção e
transmissão às novas gerações. Apesar deste processo, ainda hoje os bens classificados
como Património Mundial são significativamente em maior número europeus e
compostos por património edificado.

Tendo em conta as ameaças ao património e à diversidade cultural para que elas


podem remeter, e ciente do papel fundamental do património no combate ao
extremismo e à limpeza cultural, a UNESCO caminha a passos largos para ser uma
organização que acolhe equitativamente as culturas, reconhecendo o seu valor e
importância. Como demonstrado no capítulo 2, a organização internacional enfrenta
alguns constrangimentos que impedem o seu bom funcionamento, passando pela falta

132
de financiamento adequado para a proteção patrimonial e pela não imunidade às
pressões políticas das decisões tomadas pelos seus Estados-membros, as quais visam
objetivos políticos e menos culturais.

A última parte do Capítulo 2 diz respeito à reconstrução patrimonial, mais


precisamente à reconstrução do Património Mundial, apoiada pela UNESCO.
Considerando os casos decididos desde a II Guerra, a Guerra nos Balcãs e passando pela
nova ameaça do século XXI, o terrorismo, é notória a nova tendência de opção pela
reconstrução do património. Esta atitude não significa um desrespeito pelo valor e
autenticidade do património, mas antes uma atitude necessária, em vista das graves
perdas de Património Mundial nos últimos anos e do benefício que a sua reconstrução
pode trazer, tanto para as populações como para o envio de mensagens claras aos
grupos terroristas. A UNESCO tem defendido a reconstrução dos mais recentes bens
patrimoniais classificados como Património Mundial, destruídos em conflitos armados,
insistindo nos seus aspetos mais intangíveis e no que representam para a sua
comunidade detentora e para o mundo. Refiro também casos de reconstrução
patrimonial patrocinados pela UNESCO e considerados um sucesso, como no Mali e no
Iraque. No caso da cidade de Mossul, no Iraque, reconhece-se a vontade de regressar
ao investimento na descoberta arqueológica e investigação científica a par dos projetos
de reconstrução.

O Capítulo 3 também está dividido em três partes, dizendo respeito à análise dos
processos de proteção, destruição e reconstrução patrimonial na Síria, na atualidade.
Na primeira parte do Capítulo é feito um pequeno resumo sobre o início das
manifestações pacificas na Síria, inspiradas pela Primavera Árabe, e que culminarão
numa sangrenta guerra civil que perdura até hoje. Entre outras coisas, o conflito colocou
o património cultural em perigo, sendo necessárias medidas de proteção de urgência
para evitar a todo o custo mais destruições ou danos. Entre voluntários e profissionais
foram feitos esforços em várias partes do país para esconder artefactos e proteger
estruturas e monumentos que pudessem estar vulneráveis, tendo também em vista
diminuir o risco de tráfico ilícito de antiguidades. Além das autoridades governamentais,
foi notória a tentativa de proteção patrimonial em territórios ocupados pelas forças

133
rebeldes, bem como o esforço de civis para reavivar tradições e costumes da cultura
síria, protegendo o património em todas as suas manifestações. A nível internacional
foram publicadas algumas medidas como as Resoluções do Conselho de Segurança da
ONU que proíbem o tráfico ilícito de antiguidades e estabelecem redes de comunicação
internacionais para os intercetar, bem como a criação de observatórios pela UNESCO
para monitorizar o estado do património na Síria. Denota-se aqui já um esforço de
inclusão das comunidades para a proteção e valorização do património cultural.
Defende-se que a proteção será mais eficaz se for integrada num plano de assistência
humanitária durante as crises, e incentivada junto das comunidades em épocas de paz.
Contudo, há também a assinalar que existem algumas medidas de proteção que podiam
ser aplicadas e ainda não o foram. Por exemplo, a assinatura da Convenção de Haia e do
Estatuto de Roma pela Síria, o que impede que se concretize uma ação jurídica em
relação a crimes relacionados com o património.

Relativamente à destruição de património na Síria, é quase impossível não pensar de


imediato no Estado Islâmico, mas, na verdade, as destruições foram cometidas tanto
pelo grupo terrorista, como pelas forças rebeldes e pelo exército sírio. Verificam-se
algumas destruições menos visíveis, como as escavações e o tráfico ilegal de
antiguidades, um pouco por todo o país. O intuito subjacente é tanto de financiar a
compra de armamento como fazer frente à pobreza inerente à situação de guerra civil.
Todos os seis sítios classificados como Património Mundial sofreram danos, mas a
destruição afetou muitas outras cidades históricas, edifícios religiosos e museus. De
forma mais ou menos intencional, foram documentadas destruições provocadas por
misseis, tiroteios, explosões e incêndios, desencadeadas por todas as partes
beligerantes. Sem dúvida que o património cultural da Síria sofreu, tem sofrido e
provavelmente ainda sofrerá, graves perdas de bens culturais de valor incalculável
enquanto a guerra persistir. Entre os atores das destruições, o Estado Islâmico ocupa o
lugar de principal infrator, fornecendo forte carga ideológica às destruições e utilizando-
as como estratégia da sua campanha de terror. A par disto, financia as suas atividades
através de escavações ilegais que também usam instrumentos e técnicas desadequadas,
procurando pilhar antiguidades não catalogadas para financiar armamento e a sua

134
presença no conflito. A sua ação foi apelidada como limpeza cultural, pois a sua intenção
última é impor o seu poder numa região através da eliminação da memória da
diversidade cultural.

A luta contra o terrorismo e a destruição patrimonial não deve considerar todos


os grupos armados não estatais como grupos terroristas. Importa que se consiga não os
excluir da orla da comunidade internacional, para que se sintam obrigados a agir em
conformidade com o Direito Internacional. Sensibilizar estes grupos armados para a
proteção e a importância do património cultural é tão crucial como investir nos
programas de educação escolares e neles realizar debates sobre a diversidade cultural
e outros temas que ajudem no combate ao extremismo religioso. O contraterrorismo
deve ser estendido à sensibilização das comunidades, empoderando cada individuo da
capacidade de por si só proteger o património na medida em que reconheça o seu valor
e importância. A partir destas iniciativas de partilha entre jovens e menos jovens e da
divulgação nos media da importância do património, a UNESCO descentraliza o combate
ao terrorismo e ao discurso de ódio.

A última parte do Capítulo 3 aborda a reconstrução patrimonial na Síria hoje: os


objetivos, vantagens e desvantagens e os atores envolvidos. Em termos políticos,
interessa reconstruir o que foi destruído pelo Estado Islâmico, como uma mensagem de
esperança contra o terrorismo. Em termos económicos, o governo sírio tem como
objetivo vir a retomar o turismo no país e atrair investimentos. Contudo, pensar em
investimento turístico num país com uma guerra civil sem fim à vista e com falta de
verbas para ajudar a população em situação de pobreza e a reabilitar as suas casas é um
investimento injustificável. O regresso do turismo à Síria é um cenário utópico que não
se realizará até haver uma mudança política no país, o estabelecimento da segurança e
o regresso das populações. Em contrapartida, investir na reconstrução patrimonial tem
as suas vantagens, nomeadamente, pela criação de emprego, dinamização da economia
e ajuda à reabilitação da identidade cultural síria, essencial para a recuperação mental
e cultural do país, quando aliada à educação para a proteção e importância do
património. Atualmente, persistem muitas dificuldades para a recuperação do
património cultural. A falta de financiamento, a má manutenção dos edifícios ainda de

135
pé, a erosão histórica e do tecido urbano, bem como a fuga das populações, colocando
em risco a preservação do património intangível, além da falta de mão de obra
disponível e do vandalismo. A pobreza e a destruição de documentação dificultam
também a tarefa de recuperação aos proprietários das casas já que ficam sem
conseguirem provar o que é seu.

A reconstrução requer um planeamento exaustivo, personalizado e adaptado a


cada situação. Embora se coloque sempre a questão da autenticidade do património
cultural, de facto os aspetos intangíveis podem ser peça central para reforçar o valor
cultural do bem patrimonial reconstruído. A reconstrução pode ajudar a reduzir a
desigualdade social e a pobreza, enquanto se preserva o património cultural, para abrir
caminho à reconciliação, recuperar espaços públicos ligados a práticas culturais. A par
disto, fortalece o sentimento de pertença, reduz a especulação e conecta o património
ao desenvolvimento socioeconómico.

O processo de reconstrução pode ser interpretado em si como um processo de


patrimonialização. Após a reconstrução, o património cultural ganha uma nova forma e
simbolismo, acrescentando-lhe uma nova etapa. É assim necessário começar por decidir
o que se quer recuperar e o que se quer alcançar com o processo de reconstrução. É
ainda difícil abordar com rigor a reconstrução patrimonial na Síria, tendo em conta a
perpetuação do conflito armado até à atualidade. Os recursos humanos e financeiros
são limitados, sendo necessário um equilíbrio entre a conservação do património
cultural nas suas mais diversas manifestações e a assistência humanitária. Além disso, o
património classificado como Património Mundial, sendo entendido como património
comum da Humanidade, deve ser recuperado com participação internacional, havendo
esforços para a sua proteção e recuperação. É importante também não esquecer que,
muitas vezes, a perspetiva local sobre o património é diferente da perspetiva
internacional, sendo que a abordagem mais profícua seria a junção das duas.

Atualmente a UNESCO opta por uma abordagem mais pragmática da


reconstrução, bastante centrada na descoberta e investigação científica, bem como no
superior interesse e envolvimento das populações locais. Contudo, atendendo à
proteção e promoção do pluralismo cultural, a UNESCO apela à recolha de dados que

136
apoiem o processo de reconstrução. É de extrema importância não só consultar as
populações, mas dar-lhes voz e poder de decisão durante o processo de reconstrução.
Os processos de reabilitação e reconstrução patrimonial na Síria são possíveis se forem
integrados nos restantes processos de recuperação do país. O património cultural da
Síria é muito diversificado e as medidas de proteção a adotar devem refletir essa
diversidade. O património cultural pode ganhar e perder valor. No caso da Síria, os bens
destruídos terão perdido o seu valor de antiguidades, mas poderão ganhar um novo
valor de tolerância religiosa e étnica entre os sírios se servirem como testemunho de
ultrapassagem do violento conflito armado. Será, assim, uma recuperação patrimonial
com um caráter menos preservacionista e mais preocupada com as pessoas a quem
serve e para quem tem significado. Num cenário de pós-conflito armado, não será uma
prioridade, e nem seria bem recebida pelas populações, uma preservação meramente
física do património cultural; que não pudesse ser utilizada para fins políticos e
económicos pela sociedade em que está inserido.

Por último, no Capítulo 4, são apresentados os três estudos de caso selecionados


para analisar a reconstrução patrimonial na Síria. No caso de Alepo, verifica-se ser dos
três casos o que mais é utilizado como propaganda política a favor do regime de Bashar
al-Assad. É bastante percetível que nesta cidade histórica impera a estratégia de
privilegiar e premiar as elites e comunidades que permaneceram leais ao regime,
excluindo da ajuda as minorias étnicas e restantes zonas que se opuseram. Enquanto as
primeiras veem as suas casas e bairros reconstruídos pelo governo, as restantes zonas
são deixadas à sua sorte, fruto de uma desigual distribuição dos poucos recursos
disponíveis. A par disto, os projetos de reconstrução de bens patrimoniais de
importância nacional, enquanto se escreve uma narrativa sobre as suas destruições e os
seus culpados, inclui as intenções do regime sírio de controlar que versão da história da
guerra civil é contada, quem são os seus vilões e os seus heróis, bem como culpar as
forças rebeldes de destruírem o património cultural e Alepo. Esta estratégia de
premiação das elites e fiéis ao regime, contribui para o não retorno de refugiados à
cidade, pela falta de fundos e apoio à reconstrução das suas casas. A par disto, a
reconstrução patrimonial enquanto projeto separado da ajuda humanitária e

137
recuperação das populações, transmite a ideia de o património ser priorizado em
relação às pessoas. Isso retira ao património um papel fulcral na recuperação pós-
conflito e coloca o risco das populações se alienarem do seu próprio património e
identidade cultural. Assim, Alepo, uma das cidades mais afetadas e destruídas pela
guerra, torna-se uma manta de retalhos, sendo reconstruída em determinadas zonas
estratégicas e esquecida nas outrora mais rebeldes.

O segundo caso remete à cidade histórica de Damasco, capital da Síria. Esta


cidade, também ela classificada como Património Mundial, foi a menos afetada das três
analisadas por destruições patrimoniais intencionais. Sofreu, contudo, vários incêndios,
que afetaram a muralha, casas e ruas históricas, destruições originadas pelos combates
nas ruas da cidade. Damasco tem recebido alguns projetos de reconstrução ao seu
património, mas é evidente que aqui as atenções e intenções governamentais estão
focadas em projetos de reconstrução de cariz residencial e empresarial, procurando
tornar Damasco uma cidade cosmopolita. Este objetivo beneficia as elites políticas e
religiosas que têm defendido o regime, perpetuando o seu poder no país e na sociedade.
Obviamente, este tipo de projetos menospreza as minorias étnicas e religiosas
deslocadas para Damasco. Estas e o resto do país envolto em destruição e pobreza, com
uma larga percentagem da população em condição de refugiados e sem perspetiva de
regresso, contrasta com as elites já beneficiadas da capital. A construção dos novos
centros de poder – Marota e Basília City – perpetuam os interesses de Bashar al-Assad
através da compensação das elites sírias, canalizando para elas fundos que seriam vitais
à recuperação das zonas mais pobres. Isso contribui ainda para a manutenção do
conflito armado no país.

O terceiro estudo de caso analisa a cidade arqueológica de Palmira, também


conhecida como a pérola do deserto, uma cidade que junta várias culturas, religiões e
civilizações na sua herança cultural. Por juntar vestígios de civilizações como a grega e a
romana, Palmira é considerada património mundial e uma herança de várias culturas. A
cidade foi palco da propaganda de terror do Estado Islâmico, sofrendo destruições
patrimoniais que chocaram o mundo. Aquando da sua libertação das mãos do grupo
terrorista, a comunidade internacional e a UNESCO prontamente incentivaram a

138
reconstrução das suas ruínas arqueológicas, prometendo estudos, especialistas e
financiamento. De facto, em Palmira, a reconstrução patrimonial como resposta às
destruições intencionais ocorridas tem também ela uma forte carga política: é uma
estratégia de combate ao terrorismo pela afirmação de que os seus atos, ou crimes de
guerra, não são completamente irremediáveis. Os projetos de reconstrução e os
trabalhos efetivos já tinham sido iniciados, tendo sofrido atrasos em virtude da
pandemia global e do início do conflito na Ucrânia. Sem dúvida alguma que no futuro
Palmira será reconstruída à luz do seu estado anterior à invasão pelo Estado Islâmico e
que será um projeto cuidadosamente guiado pela UNESCO e outros atores
internacionais.

Relativamente às questões de partida colocadas foi possível obter algumas


respostas. Acredito que a reconstrução do património cultural na Síria é um cenário
possível e exequível se a virmos como um projeto a longo-prazo, sustentado em
documentação e levando sempre em conta o superior interesse da comunidade que
dele usufrui. A reconstrução deve servir essencialmente a memória cultural da
comunidade e ser um incentivo à recuperação da sociedade e da região em situação de
pós-crise.

Considero a reconstrução patrimonial uma realidade cada vez mais presente e


adaptada às novas formas de conflitos armados e de combate ao terrorismo e grupos
fundamentalistas. É ainda objeto de propaganda política por parte do governo sírio e da
sua vontade de controlar a memória, a história e a versão contada sobre a guerra civil.
Utiliza os projetos de reconstrução do património cultural como exemplo da vontade de
recuperar a Síria. Contudo, faz isso negligenciando minorias étnicas, cidades devastadas,
tudo e todos os que acredita serem contra o regime, culpando-os das destruições e da
perpetuação do conflito no país. De facto, a comunidade internacional e a própria
UNESCO utilizam a reconstrução do património cultural como forma de mediar o
conflito na Síria e intentar uma mudança de regime político. Acenam com a ameaça de
que sem a convocação de eleições democráticas, não serão canalizados fundos
internacionais para o auxílio da recuperação patrimonial no país. É também importante
referir que tendo em conta as clivagens internas na Síria, o que o governo de Bashar al-

139
Assad apelida como projetos de reconstrução, a comunidade internacional prefere
chamar recuperação ou reabilitação, mostrando assim a sua posição de desacordo com
a ideia de reconstrução patrimonial até que se encontre uma solução democrática e o
fim da guerra civil.

Palmira, além de ter emocionado o mundo com a sua ocupação e destruição pelo
Estado Islâmico, é o sítio classificado como Património Mundial que diverge dos
restantes casos de destruição no país. Seja por se localizar no meio do deserto e de mais
fácil defesa, a pérola do deserto canalizou fundos, palavras de esperança e especialistas
internacionais assim que foi libertada do controlo do Estado Islâmico. Acredito que as
suas ruínas, herança de diversas civilizações euroasiáticas, atraem as atenções e
comovem e revoltam mais a comunidade internacional, do que as restantes zonas
destruídas. No caso de Palmira, não foi atacado apenas o passado e a memória cultural
da Síria, mas o passado partilhado da humanidade. Tal como a sua destruição foi de
índole política e de propaganda, assim é a sua reconstrução: como meio para proteger
a diversidade cultural, mas também combater o terrorismo.

Sem dúvida que a recolha documental sem a possibilidade do estágio na UNESCO


limitou as minhas fontes, no essencial, às produzidas pela UNESCO e pelo governo sírio,
já que não havia outro produtor de informação que pudesse usar para abordar as
questões do património cultural na Síria. Além disso, a inacessibilidade de algumas
fontes que estão apenas fisicamente disponíveis na biblioteca da UNESCO também me
terá vedado o acesso a dados reveladores e pertinentes à dissertação. As fontes tanto
da UNESCO como da DGAM documentam o estado do património na Síria apenas até ao
final do ano de 2021. O início do conflito armado na Ucrânia obrigou ao cancelamento
da 45º reunião do Comité do Património Mundial que deveria ter acontecido em Kiev,
em 2022, tendo sido adiada para setembro de 2023 e mudado a localização para Riad,
capital da Arábia Saudita. Obviamente que a persistência da guerra civil síria, sem que
haja previsão para o seu fim, dificulta a análise dos processos de reabilitação e
reconstrução do património, de facto, ainda em constante ameaça pela nova
intensificação dos combates. Em acrescento, o recente terramoto no início do ano de

140
2023, que atingiu a Turquia, mas também o norte da Síria incluindo algumas cidades
rebeldes e Alepo, deixou um rasto de destruição que ainda não foi documentado.

No futuro, idealmente quando a guerra civil síria tiver terminado ou tenha um


fim à vista, será pertinente voltar a debruçar-me sobre os projetos de reconstrução do
património cultural na Síria e todas as suas vertentes de politização. Sem dúvida que em
cenário de pós-conflito poderei avaliar com maior precisão as verdadeiras intenções do
governo sírio e da própria UNESCO para com o património cultural, mas também a
aplicabilidade dos projetos de reconstrução e os seus possíveis frutos para a
comunidade que dele usufrui. Numa possível tese de doutoramento será também
pertinente incluir os restantes três sítios sírios classificados como Património cultural
Mundial na investigação, se a disponibilidade de fontes e a segurança no terreno o
permitir.

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