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Carolina Pinto
M
2023
Carolina Pinto
2023
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Sumário
Declaração de honra......................................................................................................... 5
Agradecimentos................................................................................................................ 6
Resumo ............................................................................................................................. 7
Abstract ............................................................................................................................ 8
Introdução ........................................................................................................................ 9
1. Os processos do património cultural ......................................................................... 14
1.1.O Património cultural ............................................................................................. 14
1.2.A proteção do património cultural ......................................................................... 22
1.3.A destruição de património cultural....................................................................... 27
1. 4. A reconstrução do património cultural................................................................. 32
2. A UNESCO e o sonho de solideriedade internacional para o património cultural .... 40
2.1.A UNESCO ............................................................................................................... 40
2.2.A UNESCO e a sua linha de pensamento sobre o património cultural: da pretensão
de universalismo à diversidade cultural ....................................................................... 44
2.3.Reconstruir o património cultural na viragem do novo século: uma exceção ou a
nova tendência? ........................................................................................................... 50
3. O património cultural na Síria .................................................................................... 55
3.1.A proteção do património cultural na Síria ............................................................ 55
3.1.2. O início da guerra civil e as ameaças à segurança do património cultural ........ 58
3.2.A destruição de património cultural na Síria: limpeza cultural, financiamento
bélico e o desmoronar dos oásis do Crescente Fértil ................................................... 66
3.2.1. Os ataques ao Património Cultural Mundial e restante património na Síria ... 67
3.2.2. O Estado Islâmico e a destruição de património cultural: entre a campanha de
terror e a eliminação cultural .................................................................................... 70
3.2.3. As destruições de património cultural na ótica da UNESCO e da Comunidade
Internacional .............................................................................................................. 73
3.3.A reconstrução do património cultural na Síria: uma nova esperança? ................ 79
3
3.3.1. A ação das organizações internacionais para a recuperação do património
cultural na Síria .......................................................................................................... 85
3.3.2. Sendo a reconstrução um cenário possível na Síria, em que contornos
acontecerá? ............................................................................................................... 87
4. A “Estrada de Damasco” do Património Cultural Mundial e o sonho de reconstrução:
estudos de caso .............................................................................................................. 92
4.1.O caso da cidade histórica de Alepo....................................................................... 92
4.2.O caso da cidade histórica de Damasco ............................................................... 105
4.3.O caso da cidade arqueológica de Palmira........................................................... 116
Conclusão...................................................................................................................... 129
Fontes ........................................................................................................................... 142
Referências Bibliográficas ............................................................................................. 145
4
Declaração de honra
Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizado previamente
noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros
autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da
atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências
bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a
prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.
Carolina Pinto
5
Agradecimentos
Desejo exprimir os meus agradecimentos a todos aqueles que permitiram que a
presente dissertação se concretizasse.
Aos meus orientadores, que durante vários meses acreditaram em mim e no meu
trabalho, acompanhando-me atentamente e prestando todo o auxílio necessário para a
elaboração da dissertação.
Agradeço aos meus pais e irmã que ao longo de todo o meu percurso académico, mas
em especial durante o processo de investigação e redação da dissertação me deram
apoio incondicional, incentivo e não permitiram que eu desistisse dos meus objetivos.
Aos meus amigos, a quem agradeço a compreensão pelas largas ausências e os convites
adiados.
A todos os que durante meses participaram nesta etapa, ora aconselhando, ouvindo ou
simplesmente acreditando em mim.
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Resumo
A presente dissertação pretende elucidar sobre o posicionamento e os contributos da
UNESCO para a salvaguarda do património cultural no mundo, focando a questão a
partir da guerra civil desencadeada na Síria em 2011 e que perdura até à atualidade.
Importa perceber a utilização do património cultural para atingir objetivos políticos e
como tem sido manipulado durante conflitos armados por organizações internacionais,
governos, grupos armados e as comunidades locais. Analisa os projetos de reconstrução
do Património cultural Mundial na Síria, através dos argumentos contra e a favor, bem
como se é um cenário desejável a nível local, nacional e internacional. Para o efeito foi
analisado os conjuntos de relatórios produzidos pela UNESCO e pelas forças
governamentais sírias sobre o estado de conservação do patirmónio. Conclui-se que o
património cultural é uma arma política usada por diversas instituições, entre as quais
não é exceção a UNESCO, para alcançar o fim político desejado, não sendo utilizado
consensualmente. A exiquibilidade do processo de reconstrução carece ainda de
financiamento adequado, estabilização socioeconómica da popuação síria e o término
da guerra civil.
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Abstract
This dissertation aims to enlighten on the positioning and the contributions of UNESCO
to safeguard cultural heritage in the world, focusing on the issue from the civil war
unleashed in Syria in 2011 and which continues to the present day. It is important to
understand the use of cultural heritage to achieve political objectives and how it has
been manipulated during armed conflicts by international organisations, governments,
armed groups and local communities. It analyses the World Cultural Heritage
reconstruction projects in Syria, through the arguments for and against, as well as
whether it is a desirable scenario at local, national and international level. To this end,
the sets of reports produced by UNESCO and Syrian government forces on the state of
conservation of heritage was analysed. It is concluded that cultural heritage is a political
weapon used by various institutions, among which UNESCO is no exception, to achieve
the desired political end, not being used consensually. The viability of the reconstruction
process still lacks adequate funding, socio-economic stabilisation of the Syrian
population and the end of the civil war.
8
Introdução
O conceito de património cultural, a forma como o vivemos e percecionamos,
sofreu alterações desde que tomamos consciência da sua existência até aos nossos dias.
As manifestações culturais e o património cultural nas suas mais diversas expressões e
manifestações encontram-se enraizadas em qualquer sociedade, convivendo-se
diariamente com elas sem que tenhamos sempre plena consciência. A tomada de
consciência da importância e da própria existência de bens patrimoniais acontece de
forma abrupta, quando a ameaça do seu desaparecimento se torna uma realidade, seja
em cenário de conflitos armados ou pelo aparecimento de um grupo de indivíduos que
almeja impor a sua visão sobre o património cultural ou utilizá-lo para fins menos
culturais.
9
esforços que foram desenvolvidos a nível internacional e pelas instituições sírias para
proteger o património cultural; traçar o panorama geral das destruições, a sua tipologia
e o seu impacto na sociedade síria e na comunidade internacional; analisar a situação
atual do património cultural sírio, o que está a salvo, o que foi destruído e o que pode
ser reconstruído.
10
A dimensão política é inerente a qualquer realidade humana, incluindo o
património cultural. A própria UNESCO tem objetivos políticos na sua criação, visando a
manutenção da paz pelo fomento da educação, ciência e cultura. A manipulação do
património pela sua proteção, destruição ou reconstrução elucida-nos sobre a
importância que instituições governamentais e não-governamentais dão ao património
cultural como meios para atingir diversos fins. De facto, um novo interveniente irá
juntar-se aos agentes do fenómeno de politização patrimonial, marcando a forma como
o património cultural é abordado – o Estado Islâmico1.
No capítulo 1 parto para a definição dos conceitos que são utilizados e orientam
a redação da dissertação, baseando-me na história e sua aplicação ao longo dos tempos,
bem como nas definições sugeridas por autores e especialistas internacionais sobre
património. Assim, neste capítulo, o foco prendeu-se com a definição de património
cultural: o que é, como surge, em que formas se manifesta e como é que organizações
internacionais, como a UNESCO, lidam com ele e a importância que lhe atribuem.
Abordei de seguida o conceito de proteção patrimonial, tentando fazer a distinção entre
proteção e preservação e debati os principais e mais importantes instrumentos legais
existentes para a proteção do património cultural e a sua aplicabilidade. Considerei
1
Para efeitos da redação da dissertação, o grupo terrorista será sempre mencionado como Estado
Islâmico, excluindo outras designações possíveis como Autoproclamado Estado Islâmico, ISIS ou DAESH.
11
também o conceito de destruição patrimonial, porque é que acontece, que tipos de
destruição existem e com que fins, tentando incluir aqui o Estado Islâmico e o seu
histórico de destruições. Por último, defino o conceito de reconstrução patrimonial, o
conceito mais recente e ainda em elaboração, apontando as suas vantagens e
desvantagens, bem como as tentativas já postas em prática e os seus objetivos.
2
A guerra civil na Síria iniciou-se a 15 de março de 2011, fruto de manifestações pacíficas inspiradas pelo
movimento da Primavera Árabe, mas que escalaram em violência a partir do envolvimento de grupos
armados e da utilização da força pelo exército sírio na tentativa de acalmar os ânimos. O violento conflito
armado perdura até aos nossos dias, envolvendo o exército sírio e as forças leais ao regime de Bashar al-
Assad, apoiados pela Rússia e pelo Irão; forças curdas e grupos armados organizados (Exército Livre da
Síria e o Exército Nacional Sírio), apoiados por países ocidentais; e o grupo terrorista Estado Islâmico.
12
património como um meio para alcançar diversos fins, sendo evidenciada a questão da
politização do património cultural ao longo da dissertação.
13
1. Os processos do património cultural
“The past in the Internet age has become more intimate yet more remote, readily found but rapidly
forgotten.” (Lilas, 2017)
“(...) a herança que recebemos do passado, aquilo com que vivemos no presente, que é fonte
de inspiração de encanto e de prazer, e que transmitimos às gerações futuras.” (UNESCO, 2012)
14
global. O património cultural, ou se quisermos a patrimonialização alcançada, é o
resultado de construções, desconstruções e reconstruções permanentes das memórias
e tradições de uma comunidade. Em virtude disso, o património cultural deve ser
entendido como abrangendo necessariamente dimensões materiais e imateriais, já que
não se confina a qualquer bem físico em si, mas engloba também os significados que
justificam a respetiva valorização particular. A patrimonialização é, portanto, um
processo sociocultural e político, manifestando-se de forma diferente de comunidade
para comunidade. É a reprodução de memórias e da identidade de uma comunidade,
resultado de trocas e interações sociais. O património cultural é em última instância uma
forma de expressão cultural, mantida e valorizada através da conservação física ou da
memória (Smith, 2006).
15
crescimento urbano ameaçava os edifícios antigos que eram destruídos para dar lugar a
fábricas e a novas áreas residenciais. Surge, assim, a intenção de preservar
determinadas áreas com monumentos históricos, onde a nova construção deveria ser
ponderada (Agudo Torrico, 2006).
3
“O valor universal excecional significa uma importância cultural e/ou natural tão excecional que
transcende as fronteiras nacionais e se reveste do mesmo carácter inestimável para as gerações atuais e
16
portanto, um conceito de património sobretudo ocidental, que está ligado à
conservação e monumentalidade física do Património. Embora, até depois de meados
do século XX, a noção de património se tenha prendido com a monumentalidade e a
tangibilidade, a verdade é que a “viragem cultural” que ocorre por influência da
antropologia facilita que albergue também na sua definição manifestações mais
intangíveis, como as tradições orais, rituais, danças, lendas e línguas (Fabrino e Duarte,
2022). Passam, então, a poder ser consideradas património, quer a monumentalidade e
o edifício histórico, quer outras manifestações mais prosaicas, mas definidoras de um
estilo de vida e tradições que conferem identidades culturais.
Relativamente às dimensões intangíveis do património, estas começam a ganhar
mais reconhecimento durante as décadas de 1960 e 70 com os movimentos de
independência das antigas colónias europeias e as políticas pós-coloniais. A defesa das
suas identidades culturais passa pela proteção das tradições, costumes e memórias orais
passadas de geração em geração, e não apenas pela valorização das grandiosas
edificações deixadas pelos colonizadores. Torna-se necessário defender as identidades
culturais do Oriente, América do Sul, África e Ásia, conferindo-lhes igual importância à
dada às identidades culturais do Ocidente (Meskell, 2018). Por outro lado, mesmo nos
países ocidentais, gradualmente, as comunidades locais vão-se apercebendo da
necessidade de afirmarem a sua especificidade e o seu papel enquanto mediadores e
reguladores do próprio património, por vezes discordando das definições impostas pelas
pelos poderes centrais e organizações internacionais. Reconhecer o uso desigual das
fontes disponíveis nos processos de patrimonialização é importante para que possa ser
assegurada a defesa das comunidades indígenas em contextos pós-coloniais.
futuras de toda a humanidade. Assim sendo, a proteção permanente deste património é da maior
importância para toda a comunidade internacional” (UNESCO, 2021).
17
se apenas com os bens em si, ignorando as comunidades que nele se enquadram e para
as quais terão valor específico. Convém ter presente que o património cultural apenas
tem sentido e simbolismo quando enquadrado na sua área e comunidades envolventes,
perdendo o seu significado quando removido ou desenquadrado (Smith, 2006).
18
património, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado por comunidades
e grupos, em resposta ao seu ambiente, à sua interação com a natureza e a sua história, e
proporciona-lhes um sentido de identidade e continuidade, promovendo assim o respeito pela
diversidade cultural e pela criatividade humana” (UNESCO, 2003).
19
que lhes dão um sentimento de pertença a uma comunidade, localidade, etnia, nação
ou civilização. Estas interações e o próprio processo de patrimonialização contribuem
para a criação da identidade cultural (Smith, 2006, p. 272).
Por sua vez, a UNESCO define património cultural no artigo 1º da Convenção para
a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, de 1972 como:
4 Os sete tipos de esquecimento de que falava P. Connerton (1989) eram os seguintes: o esquecimento
repressivo, ocorrido quando há repressão de memórias dolorosas ou traumáticas; a amnésia estrutural,
verificada, por exemplo, quando uma cidade é reconstruída após um conflito armado e as memórias do
que existia antes são esquecidas; o esquecimento circunstancial, resultante das circunstâncias em que a
memória é criada; o esquecimento intertextual que ocorre quando se perdem os registos escritos de
memórias; o esquecimento retrospetivo que se dá quando a memória é relembrada de formas diferentes,
perdendo-se a memória original; o esquecimento testemunhal, que acontece quando as testemunhas
oculares de um evento morrem ou não estão em condições de contar o acontecimento; o esquecimento
da tradição, que ocorre quando as tradições culturais e sociais são perdidas ao longo do tempo, muitas
vezes devido à globalização.
20
Os conjuntos. – Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude
da sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem têm valor universal
excecional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
21
alcançar o significado que tinham no passado e o que representam para o presente. Com
efeito, o património cultural é importante em todas as suas dimensões e
representações, não havendo lugar para hierarquizações, já que os seus graus de
simbolismo e de importância mudam conforme a sociedade em que estão inseridos e
são ligados, no presente, aos passados históricos. Se até meados do século XX o
património cultural era apreciado e tido como devendo ser preservado em virtude da
sua monumentalidade e antiguidade, o século XXI vem insistir na importância de a
preservação patrimonial dever estar ao serviço das comunidades em que se insere.
22
representava o feudalismo, o poder dos nobres, o absolutismo e a opressão do povo,
mas esses mesmos bens podiam tornar-se bens nacionais, símbolos da nação francesa
e, enquanto tal, serem poupados.
23
património para as próximas gerações como um dever de todas as pessoas e países.
Inclui-se, aqui, pela primeira vez a perspetiva e a noção de um património comum ou
mundial, além da preocupação constante com a conservação e restauro do património
(ICOMOS, 1964).
“a) Adotar uma política geral que vise determinar uma função ao
património cultural e natural na vida coletiva e integrar a proteção do
referido património nos programas de planificação geral;
24
b) Instituir no seu território, caso não existam, um ou mais serviços de
proteção, conservação e valorização do património cultural e natural, com
pessoal apropriado, e dispondo dos meios que lhe permitam cumprir as
tarefas que lhe sejam atribuídas;
5
Em março de 2001 foram destruídos os Budas de Bamiyan, no Afeganistão. Classificados como
Património Mundial da UNESCO, os Budas construídos entre o século IV e V, foram explodidos por ordem
do governo Talibã, que tinham recentemente tomado o poder no Afeganistão e os consideravam como
uma ameaça à sua governação e religião. O episódio foi a primeira de várias tentativas ocorridas no século
XXI, visando a eliminação da diversidade cultural e tolerância religiosa numa determinada região.
25
cultural foi um marco importante para a inclusão e reconhecimento internacional de
culturas não-europeias, ignoradas ou consideradas de menor importância.
26
1.3. A destruição de património cultural
27
militares, políticos, religiosos, económicos, culturais ou sociais. Destruir por diferenças
políticas, religiosas ou culturais; objetivos militares em tempos de conflito armado para
desmoralizar o inimigo e eliminar a herança cultural de um povo; lucrar com a venda de
artefactos no mercado negro, seja para compra de armamento ou fazer face à pobreza
inerente a conflitos armados. Em todos os casos, o património é posto ao serviço da
afirmação de poder ou de um ponto de vista da história (Weiss & Connelly, 2019). No
caso das destruições involuntárias, estas ocorrem essencialmente em contexto bélico,
sem que o património cultural seja um alvo intencional, mas acabando por ser destruído
e/ou danificado em resultado do combate, criação de bases ou cumprimento de
objetivos militares.
28
europeu, vistos como exemplares científicos e meios de demonstração da diversidade
cultural e civilizacional. Atualmente, e sobretudo depois do chamado Relatório Macron
(Sarr e Savoy, 2018), vão surgindo algumas ações pontuais de devolução de coleções
coloniais. Essa reivindicação já tinha sido levantada durante as negociações conducentes
às independências das antigas colónias europeias, mas com pouco resultados concretos
(Duarte, 2022). Na academia, o tópico começa a ser abordado a partir da obra de
Edward Saïd, O Orientalismo, publicado em 1978, que confrontava as narrativas
ocidentais sobre a definição de património cultural e o seu pretenso direito a manter
em território europeu os troféus coloniais e as reivindicações das populações afetadas
que exigiam a devolução dos artefactos como parte integrante da sua identidade
cultural e, consequentemente, do seu património cultural (Hill, 2016; Turku, 2018;
Palma, 2016; Meskell, 2018).
A destruição do património cultural pode ser vista como uma potente arma ao
serviço da política. Em tempos de guerra, destruir o património pode afetar o inimigo,
abalando o seu espírito e destruindo os pilares que constituem a respetiva identidade
cultural. Destruir deliberadamente monumentos-chave de importância histórica e
religiosa para uma certa comunidade pode ter efeitos efetivos. Além disso, visto pelo
lado oposto, é igualmente verdade que espaços significativos para determinada
comunidade também são muitas vezes usados como abrigos temporários para os
refugiados de guerra ou postos ao serviço da estratégia militar (Littlefield, 2018, p. 4).
29
valor nacional e internacional (Palma, 2016). Portanto, embora seja mais comum
relembrar as atrocidades cometidas pelas forças alemãs e seus aliados, também os
Aliados levaram a cabo operações de destruição intencional, deliberada e injustificável.
A força aérea britânica bombardeou a cidade alemã de Dresden, reduzindo-a
praticamente a pó. A cidade foi atacada para desmoralizar na fase final da guerra os
alemães, abalar a sua economia e antecipar a sua derrota (Palma, 2016, p. 14). No final
da guerra, o Exército Vermelho cobriu as paredes do Reichstag de palavras de vitória em
russo e em cirílico, procurando desse modo representar simbolicamente a queda do
regime nazi e a vitória dos Aliados.
Portanto, importa ter presente que a destruição intencional de património
cultural é um ato recorrente. Por outro lado, não acontece apenas em contexto de
conflito entre diferentes países. Veja-se o exemplo dos Budas de Bamiyan, no
Afeganistão, destruídos pelos Talibã em contexto de guerra civil. Os Budas faziam parte
da Lista do Património Mundial da UNESCO e representavam uma notável prova da
presença do budismo no Afeganistão. A sua destruição não era algo que não tivesse sido
previsto pela comunidade internacional e pela UNESCO aquando da tomada de poder
pelos Talibã. Contudo, as tentativas da UNESCO, visando a proteção dos Budas foram
em vão, acabando por ser destruídos por explosivos em março de 2001. Foram
destruídos sob o pretexto de não representarem o Islão, serem uma ameaça à sua
existência e ao próprio poder e autoridade dos Talibã. A destruição foi recebida no seio
da comunidade internacional como um ato bárbaro, ignorante e de total desrespeito
pela história de um povo, mas também desrespeito pela própria classificação como
património cultural Mundial. Por outro lado, olhada pelo lado inverso, a destruição pode
também ser vista como uma tentativa de criar uma identidade cultural para o
Afeganistão, assente agora nas crenças islamitas sem haver lugar para outras expressões
religiosas. Para os Talibã, os Budas destruídos tinham uma conotação negativa e tinham
de ser eliminados. Este tipo de episódio de destruição de património confirma que o
património cultural não tem um significado e uma interpretação unanime, sendo assim
constantemente utilizado como arma política (Palma, 2016).
30
De facto, remetendo ao objeto de estudo principal desta dissertação,
compreende-se claramente que a destruição dos Budas, no Afeganistão, foi acima de
tudo uma estratégia política dos Talibã. Materializou uma afronta ao ocidente e a
contestação do poder da ONU. A destruição foi também uma resposta às sanções
impostas pela ordem internacional aos Talibã por continuarem a treinar radicalizados e
a planear ataques terroristas. Mais recentemente, as destruições de património cultural
verificam-se sobretudo em zonas de conflito armado e controladas por grupos armados
extremistas e radicais, seja em virtude de crenças religiosas ou por estratégia política.
Disto é exemplo o Estado Islâmico que tem destruído deliberadamente património
cultural em vários países do Médio Oriente, se bem que com especial destaque no
Iraque e na Síria, a sua maior área de atuação. Pela comunidade internacional, as suas
ações são consideradas como crimes de guerra e de limpeza cultural (UNESCO, 2017).
6
Estado Islâmico é o acrónimo do seu nome árabe Dawlat al Islamiya Iraq Wa al Shams. Tem um som
semelhante à palavra árabe daes que significa alguém que é dissimulado e rima com a palavra fahish (que
por sua vez significa pecador). Na cultura árabe é considerado um insulto grave que rebaixa o grupo,
reduzindo o seu estatuto e a eficácia com que incute o medo (Marshall, 2016).
31
transportáveis não são propriamente destruídos, mas inseridos no mercado negro de
obras de arte, o que também evidencia a cumplicidade e hipocrisia reinantes.
7
As destruições e a atuação do Estado Islâmico em Palmira serão abordadas com pormenor no capítulo 4
da presente dissertação.
32
conhecimentos acerca das civilizações que estuda e das respetivas técnicas de
construção. Enquanto processo levado a cabo com a participação das populações, pode
também servir para unir e estabilizar comunidades locais e/ou revitalizar cidades
afetadas (Doppelhofer, 2016, p. 8). A favor da reconstrução, os argumentos
considerados destacam o valor emocional do património cultural para as comunidades;
as potencialidades do reuso das infraestruturas recuperadas para novas funções que
satisfaçam as necessidades das populações; o poder da mensagem transmitida contra a
destruição do património cultural; uma oportunidade de building back better8; a
possibilidade de recorrer à utilização das novas tecnologias, como o 3D e a realidade
virtual. A perspetiva favorável sobre a reconstrução engloba, portanto, a intenção de
recuperação do património cultural para que sirva às gerações atuais e futuras,
centrando-se nos aspetos intangíveis do património que são imprescindíveis para que
lhe possa ser devolvida a respetiva “autenticidade” e valor cultural (Hayek, 2018).
8
Building Back Better (BBB) é uma estratégia implementada a partir de 2005 pelas Nações Unidas e
adotada por vários líderes mundiais. A estratégia defende a reconstrução de infraestruturas e a
recuperação das comunidades após crises, desastres naturais ou emergências. O conceito de building
back better desenvolve a ideia de que a emergência deve ser aproveitada para construir uma versão
melhorada, corrigir erros e criar estruturas mais fortes que possam resistir a ameaças futuras.
33
a interpretação falsa de que o conflito não aconteceu. Por outro lado, após o fim dos
conflitos armados, a reconstrução do património destruído pode ser entendida como
uma vingança contra o vandalismo das destruições e os seus autores, o que em si mesmo
pode fazer retardar o processo de sarar das feridas entre os opositores. São igualmente
apontadas as dificuldades de uma reconstrução fiel à imagem original, a potencial
destruição de vestígios da estrutura original e/ou a eliminação de alguma época
histórica. É defendido que a reconstrução patrimonial por arquitetos e engenheiros
atuais torna o património uma mera cópia do que outrora terá sido, perdendo-se a sua
autenticidade e valor detido para ser considerado património cultural. As recriações de
património cultural através da realidade virtual são entendidas como sendo apenas
coisas que existem digitalmente e que não são reais (Doppelhofer, 2016; Lilas, 2017;
Hayek, 2018).
34
benéfico apagar as marcas da ocupação soviética e os que defendiam o carácter
simbólico do ato e a importância de fazer chegar a mensagem às futuras gerações, para
que a história não se repetisse (Palma, 2016, p. 31).
35
nível cultural o património. A Declaração de Dresden, de 1982, que comemora 37 anos
da reconstrução da cidade, revela as técnicas de restauro e reconstrução que foram
importantes para Dresden e que podem ser adotadas para casos semelhantes (Lilas,
2017).
36
esteja ameaçado por trabalhos públicos ou privados, se essa for a única forma de o
proteger (UNESCO, 2018).
37
esperança e relembra a importância do papel da memória para as comunidades, sendo
também um protesto face à tentativa de aniquilar as identidades culturais. Para que
assim seja, as políticas do património devem envolver a sociedade e devem ser uma
peça de referência para a sociedade em questão e não apenas visarem a atração turística
(Littlefield, 2018, p. 222). Na ótica de Barakat, em tempos de guerra, as populações não
devem ser impedidas de se abrigarem em locais considerados património cultural, seja
ele de valor local, nacional ou internacional. Caberá às organizações internacionais,
autoridades nacionais e locais comprometerem-se para assegurar a reparação e a
proteção do património cultural Mundial depois da guerra. Contudo, as fontes de
financiamento para a reconstrução patrimonial são limitadas e dependentes da atração
de investimentos externos (Barakat, 2007, p. 31).
38
Para terminar, convém reter que a reconstrução do património cultural não deve
apagar as fases da história do próprio património, incluindo os episódios de destruição,
que devem ser integrados no processo de reconstrução. A preservação das marcas da
destruição é benéfica tanto para as gerações atuais, como as futuras para que todas
reflitam e reconheçam que o património cultural é um processo vivo e em constante
mudança, que pode ser perdido ou esquecido quando não é protegido ou quando se
torna destituído do seu valor cultural e simbólico para determinada comunidade.
39
2. A UNESCO e o sonho de solideriedade internacional para o património
cultural
2.1. A UNESCO
10
https://www.unesco.org/en/brief
40
criação de uma organização que ajude a manter a paz e a promover a educação e a
tolerância no pós-guerra. Este acordo foi celebrado entre a China, o Reino Unido, os
Estados Unidos da América e a União Soviética. Seguidamente, a Conferência de
Dumbarton Oaks (1944), em Washington, também sublinha a importância da criação de
uma organização internacional para este efeito e esboça os princípios do que virá a ser
a Carta das Nações Unidas. Durante a Conferência das Nações Unidas, realizada em São
Francisco de abril a junho de 1945, debatem-se aqueles princípios e convoca-se uma
nova Conferência para a criação desta organização internacional. De 1 a 16 de novembro
do mesmo ano, tem lugar, em Londres, a Conferência da Constituição da UNESCO, que
foi assinada por 37 países, e estabelecida uma Comissão Preparatória. Esta atuou de 16
de novembro de 1945 a 4 de novembro de 1946, data em que é apresentada e ratificada
a Constituição da UNESCO que entra, assim, em vigor e tem vindo a sofrer alterações ao
longo das décadas.
A Carta das Nações Unidas já tinha sido assinada a 26 de junho de 1945 por 50
países, entrando em vigor a 24 de outubro desse ano. Pretende evitar novos conflitos
armados e reafirmar e proteger os direitos fundamentais do Homem, através de uma
prática de tolerância para a manutenção da paz e da segurança internacionais. Depois
de uma menção inicial à cultura, surgem claros os seus objetivos: “realizar a cooperação
internacional, resolvendo os problemas internacionais de carácter económico, social,
cultural ou humanitário, promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem
e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou
religião” (ONU, 1945).
41
pelo diferente em termos culturais, entendidos como os grandes fatores que podem
resultar em guerras e destruição. Segundo a organização, a difusão da cultura e o
fomento da educação são as armas indispensáveis para a proteção da paz, liberdade e
dignidade do ser humano, a par do desenvolvimento de um espírito de tolerância e de
compreensão mútua. Devido às mais variadas experiências bélicas, os governos
internacionais percebem que a manutenção da paz duradoura não se pode basear
apenas em acordos políticos e económicos, mas também na solidariedade e na
transmissão de valores de humanidade de geração em geração. Ficam, assim, assentes
na sua Constituição os princípios criadores da UNESCO: promoção da paz e da
segurança; cooperação internacional; fomento da educação, ciência e cultura, a fim de
promover o respeito entre as nações e os Direitos Humanos, que não devem ser negados
a nenhum dos povos do mundo através da Carta das Nações Unidas. A UNESCO propõe-
se colaborar para a compreensão mútua dos povos e a livre circulação de ideias;
impulsionar a difusão da educação e da cultura; promover o igual acesso a
oportunidades educativas; assegurar a proteção da “herança mundial” assente em
todos os tipos e manifestações de património cultural.
A sua Constituição foi pela primeira vez alterada em novembro de 1954, em sede
de Conferência Geral, para especificar que os membros do Conselho Executivo
representavam os Estados-membros e não os seus interesses pessoais. Esta decisão
moldará a atuação da UNESCO em vários campos e, principalmente, na questão da
neutralidade política. Em 70 anos de história desde a sua formação, a UNESCO
enfrentará diversos problemas de atuação, nomeadamente, durante o período da
guerra fria, da descolonização, do desmantelamento da URSS, dos conflitos no Médio
Oriente e, mais recentemente, da guerra na Ucrânia. É importante salientar que a
UNESCO e a possibilidade de aplicação dos seus projetos estão dependentes do
financiamento concedido pelos Estados-membros e por contribuições voluntárias.
Como se compreende, a falta de financiamento compromete a eficácia e a concretização
dos projetos nas mais diversas áreas, mas principalmente na da proteção e reconstrução
do património cultural.
42
Embora a área de investigação da presente dissertação se prenda com o
património cultural, é importante referir que ao longo da sua história, a UNESCO tem
desenvolvido importantes projetos nas outras áreas de atuação da organização. O
combate ao racismo, o esforço pela redução da taxa de analfabetismo, a promoção da
igualdade de género, as assistências humanitárias em cenários de conflito armado ou de
catástrofes naturais, a consciencialização para as alterações climáticas e a denúncia de
ataques aos Direitos Humanos, são alguns dos projetos que tornam a UNESCO um ator
importante e imprescindível no cenário internacional.
11
Os Estados Unidos anunciam em junho de 2023 o seu regresso à UNESCO.
43
Palestina por Israel, considerar certos territórios como herança palestiniana e ainda a
suposta admissão de um candidato árabe a diretor-geral da UNESCO. Ambos os países
ainda não tinham regressado à UNESCO, embora a organização desejasse que o
fizessem. A saída dos dois países causou um impacto significativo no já crónico
subfinanciamento da organização internacional.
44
próprio conceito de património cultural tem vindo a ser continuamente reformulado e
atualizado para que seja o mais inclusivo e abrangente possível. Esse processo é
ilustrado pelo conteúdo das Convenções de 2003 e de 2005, relativas respetivamente
ao património cultural Imaterial e à Proteção da Diversidade das Expressões Culturais.
Pode-se, portanto, firmar que, desde a sua fundação, a UNESCO tem visto o
património cultural como um instrumento de grande utilidade para o objetivo de se
alcançar posturas universais e a cooperação internacional. Para o seu primeiro Diretor-
geral, Julian Huxley, era clara a ideia do património, de “apenas uma agenda para o
mundo”, ter de se transformar num fator de união e de celebração da diversidade. A
organização pretende ainda ser uma mediadora entre os decisores políticos nacionais,
com capacidade de guiar os países nas suas decisões sobre o património cultural. Além
disso, vê a preservação dos bens patrimoniais como uma missão de compromisso para
com as gerações futuras.
45
os torna vulneráveis a perigos diversos: desenvolvimento urbano; degradação
ambiental; alterações climáticas; comércio; turismo. A influência de certos Estados-
membros mantém-nos despreocupados com a censura internacional sobre os seus
problemas domésticos de conservação. A exceção vai para os países em
desenvolvimento, que contam com menos bens classificados como Património Mundial
e têm menos influência na esfera internacional e dentro da própria UNESCO, os quais
não escapam à censura pela sua gestão dos bens culturais.
Atualmente, a UNESCO é menos promotora de ideias e discussões e está mais
centrada na questão da gestão do património cultural, privilegiando a conservação
através dos seus programas de assistência técnica. O restauro do património cultural
substituiu a descoberta arqueológica que dominou no pós-II Guerra Mundial. Além
disso, nos anos mais recentes, a UNESCO passa de uma organização agregadora de
ideias e mobilizadora da cooperação internacional, para se tornar mediadora
internacional e definidora dos problemas e das soluções sobre o património cultural. A
UNESCO passou de uma organização internacional humanista e intelectual para uma
organização de caráter intergovernamental. A perspetiva da UNESCO sobre o
património cultural passa pela uniformização das suas formas de gestão e de
conservação, bem como do estabelecimento de um sistema internacional de
reconhecimento do que é ou não é Património cultural Mundial (Meskell, 2018).
46
Em 1964, pela Carta de Veneza, fruto do II Congresso Internacional de
Arquitetos, o foco são as preocupações com a conservação e o restauro do património
cultural. A Carta reconhece a responsabilidade coletiva de proteger o património
cultural para as gerações futuras, mantendo intacta a sua riqueza cultural e
autenticidade. Estes princípios já tinham sido introduzidos pela Carta de Atenas, de
1931, que impulsionou a criação de documentos nacionais de proteção ao património
cultural e também contribuiu para a criação de organizações como a UNESCO e o ICOM.
A noção de ‘monumento histórico’ define-o como englobando a criação arquitetónica
que testemunhe uma civilização, uma evolução significativa ou um acontecimento
histórico. A conservação e o restauro devem contribuir para o estudo e a salvaguarda
do património cultural, visando tanto a obra de arte como o testemunho histórico,
sendo que a sua manutenção deve ser permanente (ICOMOS, 1964).
47
preservação patrimonial pela bem-sucedida deslocação que conseguiu concretizar,
revelou também as ambições e intenções, menos intelectuais, dos Estados-membros
envolvidos na missão. A força civilizacional do Egito torna-se alvo de disputa do ocidente
que exige os seus direitos à propriedade da herança cultural do Antigo Egito. Além disso,
faz-se sentir igualmente a ambição de adquirir e levar para os respetivos países
artefactos obtidos com as escavações arqueológicas, materializando as ambições
económicas e políticas que também podem estar associadas ao património cultural.
48
interpretação do passado de comunidades que não tenham património cultural que se
enquadre na perspetiva ocidental. Segundo as estatísticas da UNESCO sobre a Lista de
património cultural Mundial, esta conta com 900 bens culturais até ao momento. A
região da Europa e da América do Norte têm classificados como tal 469 bens; a América
Latina, 100 bens; a Ásia e o Pacífico, 195 bens; os Estados Árabes, 82 bens; e África,
apenas 54 bens12.
Face aos números de bens classificados como Património Mundial, é claro o
domínio ocidental, tendo mais de metade dos bens culturais no seu território. É urgente
então, perceber quem são os beneficiários da conservação patrimonial internacional e
quais são as comunidades subalternizadas. É importante não esquecer que para lá do
reconhecimento internacional do património cultural de um país, as candidaturas bem-
sucedidas podem legitimar as pretensões de uma determinada identidade cultural sobre
outras e uma versão única da história de determinado território. Conscientes desta
realidade, há ONG’S que assumem o papel de denunciar os abusos e as más-condutas
dos Estados-membros, já que a UNESCO se mostra incapaz de o fazer. Pode ser
confirmado que alguns Estados usam a sua nomeação para integrar o Comité como meio
para submeterem candidaturas do respetivo país, ou alcançarem as suas ambições, pois
ter assento no Comité significa ter mais influência nos outros assuntos através da
diplomacia cultural (Meskell, 2018).
12
https://whc.unesco.org/en/list/stat#d1
49
espirituais, materiais, intelectuais e emocionais diferenciadoras de uma sociedade ou
de um grupo social, e que compreende, para além da arte e da literatura, os estilos de
vida, as formas de viver em conjunto, os sistemas de valores, as tradições e as
convicções” (UNESCO, 2001). Em 2003, é publicada a Convenção para a Salvaguarda do
património cultural Imaterial que, como já foi debatido no Capítulo 1, traduz uma
viragem na linha de pensamento da UNESCO sobre o património cultural, processo em
grande parte devedor da pressão, nomeadamente, dos países sul-americanos. Pela dita
Convenção do património cultural imaterial, reconhece-se a interligação entre todos os
tipos de património nas suas dimensões material e imaterial, bem como do seu carácter
mutável e em contínua transformação. A noção de património cultural imaterial surge
como particularmente importante para as comunidades, em especial as indígenas.
Desse modo, é uma outra via de se contribuir para a manutenção da diversidade cultural
(UNESCO, 2003). A Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das
Expressões Culturais, assinada em 2005, insiste na relevância desse fator, destacando a
importância da diversidade cultural para a humanidade, um direito humano e de
extrema importância para o desenvolvimento nacional e internacional (UNESCO, 2005).
50
cultural. Contudo, a partir da década de 1980 e nos anos mais recentes, a reconstrução
passou a tema da ordem do dia, embora polémico e divisor de opiniões. É na década de
1980 que o Comité do Património Mundial abre a primeira exceção de classificar como
Património Mundial o reconstruído centro histórico de Varsóvia que tinha sido destruído
durante a II Guerra Mundial. Esta decisão, tomada ainda em cenário de guerra fria, é
vista com bons olhos pela comunidade internacional, servindo uma simbolização da
cultura e do patriotismo polaco. Em 2005, na sequência da guerra da Jugoslávia e da
posterior reconstrução das suas cidades, também é classificada como Património
Mundial, a área da Antiga Ponte da Cidade Velha em Mostar, na Bósnia-Herzegovina. A
sua classificação foi justificada com o argumento da reconstrução ter restaurado o valor
cultural e o simbolismo intangível do sítio. Também em 2010, desta vez na sequência de
um incêndio, o Comité aprovou a reconstrução dos Túmulos dos Reis Buganda em
Kasubi, no Uganda. Essa reconstrução teria de seguir rigorosamente as formas de
construção tradicionais e a documentação existente sobre o monumento. Em 2012,
contrariando os apelos da diretora-geral da UNESCO, grupos extremistas destruíram
intencionalmente alguns mausoléus no Mali classificados como Património Mundial. A
UNESCO promoveu de imediato um projeto de reconstrução, terminado em 2015,
invocando os valores intangíveis dos mausoléus e o seu simbolismo como a herança do
passado da cidade de Tombuctu.
51
Desde o início dos trabalhos já foram reconstruídas mais de 100 casas na zona
histórica, levando ao retorno de cerca de 70 famílias. Este é entendido como um
importante passo para restaurar o acesso da comunidade à sua história, cultura e
diversidade religiosa. O projeto tem também ajudado a criar milhares de postos de
trabalho e abrange campanhas de sensibilização para a proteção do património cultural.
Tendo a cidade sido um importante símbolo de tolerância e coexistência de várias
religiões ao longo dos séculos, a reconstrução do seu património cultural deve
acompanhar as missões humanitárias, ajudando a garantir o retorno das populações, a
criação de postos de trabalho e o fomento da economia (UNESCO, 2022).
52
envolvimento das comunidades e à reinterpretação do património. Estas iniciativas
também fortificam os laços das comunidades ao património cultural de Mossul, na
medida em que ajudam a diminuir o desemprego e a pobreza, possibilitando a formação
de profissionais iraquianos para a gestão do seu património. A concretização desses
projetos de reconstrução transmite ainda uma mensagem de esperança e de paz.
A um outro nível, tem vindo a tornar-se cada vez mais evidente que a
reconstrução patrimonial, para ser eficaz, precisa de ser acompanhada pela reabilitação
das próprias comunidades. A população afetada pela guerra, deve ver os bens de
primeira necessidade garantidos, para que possa aderir e participar de modo inclusivo
no resgate e na reconstrução do seu património cultural. Além disso, é fundamental
consultar e envolver as comunidades nos projetos de reconstrução patrimonial para que
possam contribuir com o seu conhecimento e emotividade na consideração local do
património cultural, o que permitirá alcançar resultados mais positivos e consistentes. É
importante a UNESCO ter esta consciência, levando em atenção a diversidade étnica,
53
religiosa e de opinião, para que as missões realizadas não sejam insensíveis às opiniões
e necessidades das populações locais.
54
3. O património cultural na Síria
Até ao início da guerra civil, em 2011, a Síria era considerada o país mais seguro
e culturalmente mais rico do Médio Oriente. Concentrava no seu território muitos bens
patrimoniais, testemunhos de uma herança marcada pela presença de várias
civilizações, reinos, religiões e respetivas arquiteturas, bem como duas das mais antigas
e continuamente habitadas cidades do mundo (Doppelhofer, 2016, p. 5). Os trabalhos
de proteção e conservação do seu património cultural foram uma realidade no país após
a independência, em 1946, tendo sido criada a Direção-Geral das Antiguidades e dos
Museus (DGAM) sob a alçada do Ministério da Cultura sírio. O processo de proteção
iniciado na segunda metade do século XX teve como principal objetivo colocar o
património cultural sírio em destaque a nível internacional. Uma das suas principais
conquistas em termos de proteção patrimonial foi a classificação de seis bens como
Património Mundial da UNESCO. Estas nomeações, além de fomentarem o turismo
internacional, permitiam a captação direta de fundos internacionais para obras de
conservação. A cidade histórica de Damasco tornou-se parte da Lista do Património
Mundial, em 1979, sendo seguida, em 1980, pela cidade histórica de Bosra e pelo sítio
arqueológico de Palmira. Em 1986 é a vez de Alepo; em 2006, de Crac des Chevaliers; e,
em 2011, das vilas históricas do norte da Síria13. Apresento em seguida um mapa,
disponibilizado pela UN-Habitat no seu relatório de dezembro de 2021, que ilustra o
património cultural sírio considerado de importância nacional, bem como os seis bens
classificados como Património Mundial.
13
https://whc.unesco.org/en/statesparties/sy
55
Figura 1: Mapa do património cultural na Síria (UN-Habitat, dezembro 2021)
56
Ainda antes de 2011, a UNESCO tinha apontado alguns problemas e lacunas que
estariam a comprometer a missão de proteger e preservar o património cultural sírio.
Recorrendo aos relatórios produzidos pelo governo sírio sobre os seis bens classificados
como Património Mundial, a organização internacional resume os problemas existentes
nos seguintes tópicos: fraco estado de conservação; utilização de técnicas
desadequadas de restauro; falta de instrumentos legais de proteção; falta de planos de
manutenção; crescimento urbano comprometendo as cidades históricas e/ou a
integridade do património cultural com nova construções; falta de recursos financeiros
e humanos; extração de pedras; alterações climáticas; construção de empreendimentos
turísticos demasiado perto dos sítios arqueológicos e ausência de uma zona de
segurança em redor destes14.
14
https://whc.unesco.org/en/statesparties/sy/
57
3.1.2. O início da guerra civil e as ameaças à segurança do património cultural
58
negociar a sua intervenção e ajuda na proteção do património cultural dessas áreas. Ou
seja, a propósito do património é tentada alguma cooperação com as novas autoridades
e respetivas comunidades (Kanjou, 2014, p. 127).
15
https://npasyria.com/en/76418/
16
Political Geography Now. Civil War Control Map. 31 de março de 2016. Link:
https://www.polgeonow.com/2016/03/syrian-civil-war-control-map-april-2016.html.
59
Figura 2: Mapa da ocupação da Síria pelas forças em disputa, a 31 de março de 2016
60
armado, a UNESCO incentiva a Síria à assinatura dos Estatutos de Roma do Tribunal
Penal17 Internacional e do Segundo Protocolo da Convenção de Haia, de 199918.
17
O Estatuto de Roma é o tratado internacional que criou as bases jurídicas para a implementação do
Tribunal Penal Internacional (TPI). Pensado no rescaldo da II Guerra, as negociações para a sua criação
começaram apenas em 1995, por iniciativa das Nações Unidas, na sequência da Guerra dos Balcãs. O TPI
iniciou funções em 2003, assim que foi ratificado por mais de 60 países, contando atualmente com a
assinatura de 122 Estados. A sua assinatura por um Estado possibilita que cidadãos do mesmo possam ser
julgados por crimes de guerra.
18
O Segundo Protocolo da Convenção de Haia é uma ratificação, feita em 1999, à Convenção de Haia de
1954, que delibera sobre a proteção dos bens culturais em contexto de conflito armado.
19
https://press.un.org/en/2015/sc11775.doc.htm
61
é importante preservar o significado intangível dos sítios arqueológicos, protegendo a
história e a memória do país, mesmo que não se consigam evitar as destruições físicas
do património. Aquando das destruições de Palmira, Irina Bokova relembrava ao mundo
que “preservar as pedras de Palmira é importante, mas partilhar a mensagem de Palmira
é vital. Isto não é sobre templos ou edifícios. Isto é sobre prevenir ameaças que
conduzam a interpretações distorcidas da história ou da religião” (UNESCO, 2017).
Apesar destes apelos e do chamado de consciencialização que eles pressupõem, a
resposta internacional foi tardia. O conflito, iniciado em 2011, vê muito intensificada a
sua violência em 2012, com relatos de destruição de bens patrimoniais e a iminência de
furtos e tráfico ilegal de artefactos. É um facto que a resposta internacional só é notória
a partir de 2014. A resposta da UNESCO à crise de proteção do património cultural
passou pelo estabelecimento de um Observatório para a proteção do património
cultural sírio, localizado em Beirute20. Este tem por objetivo manter uma plataforma
online para compartilhar informações sobre o património cultural em risco e combater
o tráfico ilícito entre os especialistas nacionais e internacionais. Em paralelo, a UNESCO
criou missões de avaliação rápida ao Património Mundial na Síria que tivesse sofrido
danos, como Palmira e as cidades históricas de Alepo e Damasco (UNESCO, 2016). A
organização internacional tentou também implementar na Síria a estratégia de proteção
patrimonial que já tinha utilizado no Mali: criar um Passaporte do património cultural,
distribuído aos soldados para que evitem a destruição de património cultural ou o
estabelecimento de bases militares nas suas imediações, sendo uma forma ativa de
proteção do património. Além disso, com o apoio de arqueólogos e outros especialistas
suíços e franceses, a UNESCO enviou para Damasco material técnico para proteger de
forma mais eficaz os artefactos dos museus, procurando evitar que sejam danificados
ou destruídos.
A par da UNESCO, entre 2014 e 2017, também a União Europeia criou uma
missão de salvaguarda do património cultural sírio. Esta tinha o objetivo de preservar
bens patrimoniais e preparar um plano de ações prioritárias pós-conflito. Pretendia
20
https://whc.unesco.org/en/news/1135/
62
contribuir para restaurar a coesão social, a estabilidade e o desenvolvimento
sustentável através da proteção e salvaguarda do património. Esta missão aliou-se ao
Observatório da UNESCO, em Beirute, na tarefa de avaliação da situação do património
cultural na Síria. Era orientada pela intenção de o proteger através do fornecimento de
assistência técnica e da capacitação das comunidades e dos usufrutuários nacionais. A
missão da União Europeia alia-se à plataforma da UNESCO, fornecendo informações
atualizadas e contínuas sobre os danos sofridos, bem como acerca dos projetos e
iniciativas em curso21.
21
https://en.unesco.org/emergencysafeguardingofthesyrianculturalheritage
22
https://press.un.org/en/2017/sc12764.doc.htm
63
Considerando a documentação acabada de referir, constata-se que as entidades,
nacionais e internacionais, empenhadas na proteção do património sírio já parecem
incluir na equação as respetivas comunidades. De facto, alguns autores (Kanjou, 2014;
Almohamad, 2022) insistem que a proteção ao património cultural está incompleta
quando não é alargada às comunidades que o detêm e dele usufruem. Por outro lado,
para além das abordagens mais técnicas de proteção do património cultural, importa
torná-lo parte importante da economia local e nacional, bem como peça-chave para o
desenvolvimento da região. É por essa via que mais eficazmente se contribuirá de forma
positiva para a sensibilização da importância do património cultural para as
comunidades. Como aponta Adnan Almohamad (2002, p.65), a proteção do património
cultural deve-se fazer acompanhar do desenvolvimento e/ou suprimento das
necessidades das populações. Não será uma tarefa exequível pretender proteger o
património, quer através de missões internacionais, quer de projetos das autoridades
nacionais, se se verifica a carência de escolas, sistemas de esgotos, canalização, estradas
e outros tipos de infraestruturas. Para sustentar a sua posição, Adnan Almohamad
(2022, p.66) elabora um inquérito junto de uma comunidade síria que lhe permite
concluir que a maioria dos entrevistados reconhece o roubo e o tráfico ilegal como
danificando a cultura e a sociedade, mas não definem tais atos como algo proibido, já
que muitas pessoas praticam estes delitos para suprimir a pobreza. De um modo geral,
as pessoas enfatizam a necessidade de proteger o património cultural, mas para que
isso possa acontecer é preciso que haja condições propícias à participação das
comunidades que ultrapassem as meras campanhas de sensibilização. Tendo em mente
o objetivo da proteção do património cultural, Adnan Almohamad (2022, p.71) deixa
algumas recomendações ao governo sírio e às organizações internacionais. Considera
necessário melhorar as infraestruturas e os projetos de fomento de emprego nas áreas
rurais; apoiar os estudantes a concluírem os seus estudos; organizar campanhas de
sensibilização nas escolas e universidades, visando a proteção do património cultural;
procurar informar as comunidades do papel positivo que o património pode ter na
construção da paz e na identidade nacional; facilitar a criação de ONG’s que protejam
64
as antiguidades e o estabelecimento de parcerias com líderes religiosos que apelem à
importância do património cultural e das civilizações antigas.
Por outro lado, passados doze anos desde o início do conflito armado e dez anos
da classificação dos seis sítios como Património Mundial em Perigo, o governo sírio
persiste em ignorar os apelos da UNESCO para que assine os Estatutos de Roma e o
Segundo Protocolo da Convenção de Haia. A subscrição desses dois documentos
permitiria à comunidade internacional poder agir legalmente sobre as infrações
65
militares cometidas em relação ao património e punir como crimes de guerra os ataques
dirigidos ao património cultural. Esta posição do Estado sírio, aliado à falta de segurança
e de financiamento, condiciona fortemente os trabalhos de proteção do património
cultural. Ademais, independentemente dos resultados das campanhas de sensibilização,
a estratégia mais eficaz seria diminuir os motivos pelos quais as comunidades roubam e
vendem ilegalmente o seu património. O governo sírio deve esforçar-se por acabar com
a marginalização de comunidades e etnias, criar medidas que incentivem o regresso das
populações, a par do fomento da economia e da recuperação do património cultural. É
bastante óbvio que sem uma base social pacificada e economicamente estável se torna
uma tarefa árdua ou quase impossível defender e preservar o património cultural, dado
este ser uma valiosa fonte de rendimento para colmatar a fome e a pobreza das
comunidades. Só alterando esta situação, as campanhas de sensibilização, de formação
de profissionais, as missões e os projetos internacionais de preservação poderão ser
profícuos e contribuir efetivamente para a eliminação do tráfico ilegal e de outros
delitos que afetam o património cultural. Além disto, é importante que sejam
desenvolvidas leis que protejam o património depois do fim do conflito, para assegurar
que as construções urbanas estarão sujeitas a fiscalização, não comprometendo
também por essa via a integridade do património cultural.
66
No caso da guerra civil da Síria, quando se fala em destruição de património
cultural é quase impossível não pensar nas ações do Estado Islâmico. Contudo, existem
mais atores que contribuíram e contribuem para a destruição patrimonial. É o caso das
comunidades locais que permaneceram nos seus territórios e que, através do tráfico e
escavações ilegais, tentam fazer frente à pobreza resultante da guerra, sem esquecer
também a existência de vandalismos vários e até a remoção de pedras para
reconstrução de edifícios. Um outro interveniente importante são os grupos armados
e/ou as forças rebeldes, por vezes com aliados internacionais, que destroem, acidental
ou intencionalmente, património cultural através de tiroteios e bombardeamentos ou
vandalismo, roubo, tráfico e escavações ilegais, neste caso tendo em vista o
financiamento da compra de armas e a manutenção dos respetivos exércitos. Por fim,
deve ainda ser considerado o governo de Bashar al-Assad e os seus aliados
internacionais que destroem, acidental ou intencionalmente, através de
bombardeamentos, visando a recuperação das áreas controladas pelos rebeldes.
67
contudo, também reconhecido por todos que o roubo de artefactos e a destruição de
monumentos e sítios arqueológicos resultam na perda de testemunhos insubstituíveis
da herança cultural de cada comunidade e da história da Humanidade (Lilas, 2017, p.
46)
Importa ter presente que a destruição massiva que afeta as zonas históricas das
cidades não atinge apenas os símbolos maiores do património cultural, já que tais zonas
são também áreas de residência de muitas famílias. Assim, a destruição das zonas
históricas não afeta apenas o património cultural, mas também as pessoas que ali
habitam e convivem com esse património diariamente para fins identitários,
económicos e turísticos (Lilas, 2017, p. 31). As cidades danificadas e destruídas por
23
O caso específico de Alepo será tratado no capítulo 4.
24
Mercados árabes tradicionais.
68
bombardeamentos, confrontos e operações militares deixam de ter condições de vida
para as pessoas (Hayek, 2018, p. 123). Sem condições de vida e com total falta de
segurança, o medo da guerra e a necessidade de fazer face à miséria, levam ao aumento
do tráfico de artefactos e antiguidades (Hayek, 2018, p. 114).
69
Hama, ter sido invadido por grupos armados que roubaram mais de 30 artefactos,
incluindo bonecas de barro e estátuas, até hoje dadas como desaparecidas. Contudo, os
seus mosaicos permaneceram intactos25. De todos os acervos museológicos do país, as
únicas coleções que permaneceram a salvo são as dos Museus de Alepo e de Damasco,
graças aos trabalhos de proteção concretizados pela DGAM antes dos conflitos
chegarem a estas cidades. Até ao presente, as autoridades sírias conseguiram recuperar
mais de 4000 artefactos roubados de museus e sítios arqueológicos.
25
https://www.unesco.org/en/node/66288
26
A falta de distinção entre a etnia árabe e palavras como “Islão”, “Islamismo” e “Muçulmanos” – muitas
vezes perpetuada pelos media ocidentais quando associadas à palavra terrorismo – é uma confusão
bastante comum nos países ocidentais, que as associam como se fossem sinónimos, o que em certas
situações se traduz em atitudes de xenofobia.
27
A expressão “limpeza cultural” será abordada mais à frente neste capítulo.
70
patrimoniais. Verifica-se uma discrepância entre as normas jurídicas e o seu
cumprimento por parte de grupos ou Estados não reconhecidos internacionalmente.
Numa perspetiva de Direito Internacional, seria importante que nem todos os grupos
armados não estatais fossem considerados terroristas. Ao excluir estes grupos da esfera
do Direito Internacional, eles tornam-se à partida imunes juridicamente, o que cria a
falsa impressão de que os grupos armados vivem num mundo à parte e sem leis.
71
Assad, as Forças Democráticas da Síria ou até mesmo o Estado Islâmico. Ou seja, o
Estado islâmico reconhece a importância do património cultural para a economia da
Síria. Contudo, sem a recuperação do país ou uma democratização do governo, não há
motivos que atraiam os sírios a regressarem a casa, além da pobreza, o ódio ao governo
e o desrespeito pelas minorias étnicas encorajarem a radicalização e a adesão a
organizações terroristas (Doppelhofer, 2016, p. 5).
Quanto aos motivos políticos, o lema principal do Estado Islâmico é destruir tudo
o que possa contestar o seu poder, e se possível, chocar pelo caminho o ocidente e
desmoralizar os seus opositores (Doppelhofer, 2016, p. 2). Através dos seus ataques ao
património e da sua mediatização por meio dos média e das redes sociais, o Estado
Islâmico consegue garantir uma campanha de terror que elimina a identidade cultural
das populações locais, tudo contribuindo para um controlo mais fácil. Afirma tencionar
reescrever a história da Síria, eliminando as marcas da herança colonial e de qualquer
outro tipo de ocupação territorial ao longo dos séculos. Assim, libertará os muçulmanos
das suas falsas fronteiras nacionais, unindo-os como uma só nação e um só povo
(Doppelhofer, 2016, p. 4). Os radicais do Estado Islâmico demonstram o seu poder e a
72
sua capacidade de manipulação de massas, apoiando-se nos media e nas redes sociais
para organizarem verdadeiros espetáculos de horrores, nos quais executam
pubicamente todos os que se atrevem a contestar a sua autoridade. Entre as inúmeras
execuções públicas de jornalistas e soldados publicitadas, talvez a que mais chocou o
mundo, e em particular a UNESCO, tenha sido a decapitação do Chefe das Antiguidades
do sítio arqueológico de Palmira, Khaled al-Asaad. O arqueólogo tinha dedicado a sua
vida à descoberta e conservação de Palmira e pagou com a própria vida os “crimes” de
ter escondido do Estado Islâmico os artefactos descobertos e de ter preservado
“artefactos heréticos”.
73
particular, tornou-se um símbolo da vulnerabilidade do património cultural e um aviso
para as futuras gerações sobre o não se dever ou poder dá-lo como garantido. Importa
ter presente que os bens patrimoniais se podem perder a qualquer momento se não
houver medidas de proteção e sensibilização quanto à sua importância para as pessoas
e para as comunidades (Doppelhofer, 2016, p. 1).
Já foi referido que, em 2013, a UNESCO transferiu os seis sítios da Síria inicialmente
classificados como Património Mundial para a Lista do Património Mundial em Perigo.
A intenção era que por essa via pudessem receber ajuda internacional para a sua
proteção e preservação. Desde o início da guerra cível que a UNESCO tem
incansavelmente alertado as partes em conflito para a necessidade de proteger o
património e mostrar respeito pelas tradições e crenças do povo sírio. Além disso, tem
alertado a comunidade internacional para o perigo do tráfico ilegal e da obrigação dos
Estados-membros da Organização das Nações Unidas fiscalizarem e impedirem este tipo
de atividade dentro e fora das suas fronteiras (Hayek, 2018, p. 128). A par destas
posições, o International Council of Museums (ICOM) criou uma lista dos artefactos
sírios em perigo, assim ajudando a identificar os artefactos mais suscetíveis de vendas
ilegais. Em simultâneo, a UNESCO tem formado pessoas na Jordânia, Líbano e Turquia
para monitorizarem e denunciarem o tráfico ilegal de bens culturais.
74
Recuperando o episódio do assassinato do arqueólogo Khaled al-Assad, Irina
Bokova recorda-o como um grande humanista, arqueólogo e um grande amigo da
UNESCO (UNESCO, 2015). O Estado Islâmico torturou e eliminou o homem que
personificava em si o carinho e a importância que, não só os sírios, mas o ocidente e o
oriente sentiam em relação a Palmira. A Diretora-geral da UNESCO considera que a
forma mais eficaz de combater o terrorismo e qualquer forma de extremismo é através
do combate à ignorância. Assim, a proteção do património cultural é também parte da
resposta ao extremismo violento e instrumento para a construção da paz, resiliência e
reconciliação no futuro (UNESCO, 2015). Nas suas intervenções, procura insistir na
defesa da diversidade cultural: “não existe um choque de civilizações. O que existe é
uma divisão entre quem rejeita viver em comunidade e quem acredita na humanidade
como uma única comunidade” (UNESCO, 2016). Em simultâneo, a UNESCO enviou
missões para avaliação de danos a Palmira, a Nimrud e a Ashur, esta última, uma cidade
do Iraque, assim que as condições de segurança o permitirem, e informou a comunidade
internacional disso. A intenção era ajudar a delinear medidas de proteção e avaliar
possíveis missões de restauro no futuro (UNESCO, 2017). A par das missões de avaliação,
a UNESCO uniu-se à ICCROM para produzir guias de autoajuda, visando proteger as
coleções em perigo dos museus.
75
aplicados na Síria. De 2014 a 2017, a organização internacional coordenou o projeto de
emergência para a salvaguarda do património cultural sírio, que visava contribuir para
restabelecer a coesão social, estabilidade e desenvolvimento sustentável através da sua
proteção, encorajar as autoridades locais a restaurar pequenas casas e não apenas
edifícios religiosos (UN-Habitat, Dezembro 2021).
O uso contínuo do património cultural para fins políticos e bélicos deve parar. O
património cultural confere a qualquer comunidade o sentido da sua história e da sua
própria evolução. A sua destruição apenas elimina as provas físicas da herança cultural
28
https://whc.unesco.org/en/statesparties/sy/
76
de séculos de tolerância, multiculturalidade e coabitação de várias religiões, povos e
expressões artísticas (UN-Habitat, Dezembro 2021); (Abdulkarim, 4 de março de 2016);
(Naifeh, 2019). O governo sírio, a UNESCO e a comunidade internacional prometem
reconstruir o que o Estado Islâmico destruiu para provar que nenhum ataque ao
património cultural é definitivo ou pode abalar a identidade cultural de uma
comunidade ou a herança cultural comum a vários países. Será que o património cultural
destruído estará mesmo perdido? A destruição não marca necessariamente o fim do
património cultural, mas sim o início das discussões sobre a reconstrução (Doppelhofer,
2016, p. 5).
77
para o Reforço da Ação da UNECO para a Proteção e Promoção do Pluralismo Cultural
em Caso de Conflitos Armados, revista em 2017. Este documento representou a reação
da UNESCO ao volume sem precedentes de ataques ao património cultural. Pela
primeira vez, a organização internacional vai incluir o papel das populações locais como
portadoras e guardiãs do património em todas as suas expressões, mencionando que as
expressões imateriais do património contribuem para a resiliência das populações e a
recuperação no pós-crise. Para combater o terrorismo e chegar às populações, a
UNESCO compromete-se a desenvolver material que promova e divulgue o pluralismo e
a diversidade cultural como forma de combate ao extremismo e ao discurso de ódio.
No ponto de vista desta dissertação, a UNESCO foi além das suas abordagens
mais conservacionistas e das medidas de proteção orientadas para os Estados e as
organizações internacionais, incluindo toda a gente no processo de proteção do
património cultural e no combate ao fundamentalismo. Obviamente que a nova
realidade do património cultural, nomeadamente os ataques protagonizados pelo
Estado Islâmico, levaram a UNESCO a reavaliar a sua postura e planos de gestão do
património cultural, até então ainda bastante centrados na proteção do Património
Mundial. Além disso, a omnipresença dos media constitui um enorme desafio ao
combate do terrorismo, tornando-se vital que também as palavras da UNESCO e da ONU
cheguem as populações. À semelhança da UNESCO, também os líderes do G20
declararam, em 2017, que a campanha antiterrorista tem de ser uma abordagem mais
abrangente e que se esforce em acabar com a radicalização dos jovens.
78
uma resposta nas redes sociais ao extremismo. A viragem das estratégias tendo como
alvo a população é crucial para o combate ao terrorismo, já que são elas que são
influenciadas e recrutadas pelos grupos armados, e não as organizações ou os Estados.
79
relevância com o apoio da Turquia, tornando inacessível as vilas históricas no Norte da
Síria. 29
29
Al Jazeera. Twelve years on from the beginning of Syria’s war. 15 de março de 2023.
https://www.aljazeera.com/news/2023/3/15/twelve-years-on-from-the-beginning-of-syrias-war
80
Como tem vindo a ser referido ao longo desta dissertação, as operações relativas
ao património cultural devem estar integradas nos planos de ajuda humanitária à Síria,
quer sejam de cariz nacional ou internacional. Por outro lado, não deve ser esquecido
que a reabilitação patrimonial permite a criação de empregos, bem como a formação
de especialistas e o uso de monumentos para outros fins, como escolas ou
universidades. Este conjunto de efeitos e a correspondente indicação de que a situação
militar e social estará mais controlada convida ao regresso das populações. O
envolvimento das comunidades nos processos de reconstrução patrimonial é, portanto,
crucial para a sobrevivência do património e das populações. A sensibilização das
populações para a importância e os benefícios do património cultural contribui para o
reforço da sua identidade cultural e para uma proteção mais eficaz dos bens, o que
também permitirá voltar a atrair investimentos, turismo, criação de postos de trabalho
e fomento da economia. É, portanto, central que tanto as comunidades, como o Estado
sírio e a comunidade internacional percebam que a assistência aos cuidados primários
deve ser acompanhada de processos de proteção e reconstrução patrimonial. Antes e
durante o conflito armado verificava-se o roubo de artefactos para venda ilegal, de
forma a fazer face à pobreza. Se, a par das campanhas de sensibilização, for possível
criar meios auxiliares de subsistência às populações locais, então o trabalho de
proteção, preservação e posterior reconstrução será muito mais eficaz. Os processos de
proteção e reconstrução patrimonial devem ir além da dimensão tangível do património
cultural. Os monumentos apenas têm significado histórico e cultural na medida em que
estão associados à história do país e à identidade e sentimentos de pertença das
comunidades locais. Portanto, a par da reabilitação ou reconstrução física, é necessária
a recuperação dessas dimensões intangíveis. E por essa via, alcança-se também a
sensibilização das populações para a proteção patrimonial e para a tomada de
consciência do seu património e identidade cultural. Para contrariar todas as práticas de
destruição do património cultural e a sua banalização, além da reconstrução física e dos
seus potenciais benefícios económicos, são imperativas ações de formação no sentido
do respeito e da tolerância pela cultura e pela história de todas as comunidades. É de
acreditar que a politização do património cultural e a sua utilização como arma política
81
a favor da convivência pacifica e da paz são peças-chave para que a reconstrução do
património cultural possa alcançar todos os seus objetivos.
82
Como já referido no Capítulo 2, o centro histórico de Varsóvia foi reconstruído desta
forma e, tendo por base a Carta de Veneza, a sua classificação como Património Mundial
foi dificultada. No caso da Síria, tanto a UNESCO como a DGAM concordam que a
reconstrução deva ser o mais próxima possível do estado anterior, através da
reutilização de materiais originais e técnicas tradicionais e que a sua reconstrução possa
contribuir para o desenvolvimento da comunidade. A mais recente Declaração de Nara
veio mudar as regras, expandindo o conceito de património cultural e fazendo entender
a noção de autenticidade como dependente do respetivo contexto sociocultural local,
ou seja, dos aspetos intangíveis. Se para a Carta de Veneza, a reconstrução do
património para receber novos usos e funções era inaceitável, a Declaração de Nara abre
a possibilidade de a reconstrução servir a comunidade e efetivamente contribuir para a
continuada proteção do património cultural (Hayek, 2018). A adoção deste novo tipo de
pensamento possibilita e beneficia a recuperação da Síria em geral no pós-conflito, bem
como a reconstrução do seu património cultural.
83
O processo de reconstrução pode ser interpretado em si como um processo de
patrimonialização. Após a reconstrução, o património cultural ganha uma nova forma e
simbolismo, acrescentando-lhe uma nova etapa. É, assim, necessário começar por
decidir o que se quer recuperar e o que se quer alcançar com o processo de
reconstrução. Devem ser tomadas pelas autoridades as medidas mais apropriadas,
nunca descurando de auscultar os peritos em questões patrimoniais (arquitetos,
historiadores, arqueólogos), mas também as próprias comunidades que serão as
principais beneficiadas das reconstruções.
84
disponível, recursos, técnicos especializados, planeamento e segurança. São necessárias
mais medidas de proteção, como o planeamento e a gestão das zonas tampão nas áreas
históricas e com concentração de bens classificados como património cultural
(Abdulkarim, 4 de março de 2016).
85
prioridades de reconstrução, já que pode ser mais conveniente para as pessoas
reconstruir primeiramente os edifícios de devoção e culto religioso, antes de património
mais antigo ou com um simbolismo mais civilizacional e universal, que pode ser mais
importante à luz da comunidade internacional (Deknatel, 2022).
Assim, para além dos trabalhos iniciados pelas instituições nacionais, verificam-
se atividades de restauro e reabilitação levados a cabo por parte de organizações
internacionais. A UNESCO está a trabalhar na avaliação dos danos, na coordenação das
iniciativas e nos programas de educação. De 2014 a 2017, coordenou o projeto de
Salvaguarda de Emergência do património cultural sírio, destinado a contribuir para o
restauro da coesão social, estabilidade e desenvolvimento sustentável através da
proteção do património cultural, encorajando as autoridades locais a restaurarem casas
e pequenos monumentos. De 2013 a 2018, organizou vários encontros entre
especialistas internacionais para que se discutisse a preservação e reabilitação do
património cultural de Alepo. De momento, existe uma cooperação contínua entre a
DGAM e a UNESCO, visando documentar o progresso nos procedimentos para remover
Damasco da Lista do Património Mundial em Perigo (UN-Habitat, Dezembro 2021). A
UN-Habitat está a trabalhar em várias iniciativas para promover a recuperação urbana,
com especial atenção aos espaços culturais de 85 cidades da Síria. Muitos destes planos
de ação foram desenvolvidos em torno do espaço público, do património cultural, dos
mercados e das habitações. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) iniciou também vários projetos de apoio à salvaguarda do património cultural
sírio. Apoia projetos concretos de reconstrução em Homs e nos souqs de Alepo, bem
como a formação de especialistas locais, tendo também fornecido apoio a vários
museus, incluindo o Museu Nacional de Damasco e o Museu Nacional de Alepo. A
Fundação Aga Khan financiou projetos de restauro do principal souq de Alepo e da
Cidadela, tendo também formado um grupo de especialistas para restauro (Hayek,
2018).
86
que o mundo precisa para defender e proteger o património cultural contra as ideias
fundamentalistas do Estado Islâmico”, assim defendia o Diretor da DGAM30.
Procuro, então, agora especificar alguns dos contornos em que serão aplicados
os projetos de reconstrução. Os processos de reabilitação e reconstrução patrimonial na
Síria são possíveis se forem integrados nos restantes processos de recuperação do país.
A nova utilização de materiais tradicionais nos edifícios destruídos é fundamental para
lhes conferir o seu aspeto e significados característicos. Os planos de ação precisam
comportar flexibilidade de decisão para se poderem adaptar a cada área ou edifício. O
património cultural da Síria é muito diversificado e as medidas de proteção a adotar
devem refletir essa diversidade. Já foi visto como é importante considerar a comunidade
e a sua história comum, bem como os desafios sociais, a pobreza, as desigualdades de
género e as mudanças na composição da população que afetarão as futuras práticas
culturais e económicas.
30
http://edition.cnn.com/2017/02/17/europe/palmyra-treasures-restored-isis/index.html
87
políticas adequadas, sem esquecer as medidas de proteção patrimonial e a sua
integração no planeamento e gestão urbanos.
88
Homs, também a sua mesquita principal foi restaurada e finalizada em 2015
(Abdulkarim, 4 de março de 2016).
89
A perda de artesãos e trabalhadores que dominam técnicas tradicionais tem impacto na
recuperação do património cultural pela abordagem mais tradicional. As reconstruções
para habitação estão principalmente dependentes de capital privado, dificultando a
construção pela falta de mão de obra e especulação de preços, dificultando mais ainda
o regresso das populações. Com efeito, sem a reabilitação humanitária é difícil executar
planos de reconstrução de património cultural. A continuação do elevado número de
refugiados sírios no estrangeiro dificulta a recuperação da cultura e do património. Sem
o seu regresso, não é possível envolver as comunidades nos processos de reabilitação e
corre o risco de as dimensões intangíveis do património cultural caírem no
esquecimento, se não for transmitido às gerações mais novas e futuras. É importante
que os países anfitriões promovam iniciativas e campanhas de sensibilização para a
promoção da cultura síria, para que os refugiados não se desliguem totalmente da sua
cultura e possam celebrá-la até que, eventualmente, regressem à Síria.
90
Sendo o património cultural na Síria vasto, entre cenário urbano e rural,
contando com seis bens classificados como Património Mundial, são necessárias
abordagens diferentes e planeamento individual para cada caso. No capítulo seguinte,
três desses Patrimónios Mundiais são estudados em maior profundidade: Alepo,
Damasco e Palmira.
91
4. A “Estrada de Damasco” do Património Cultural Mundial e o sonho de
reconstrução: estudos de caso
“Restaurar o património cultural faz parte do processo de cura das comunidades em cenário
pós-crise. É uma força poderosa para a reconciliação e o diálogo, e será vital para os habitantes de Alepo
nos próximos anos” (UNESCO, 2018)
31
Escolas de iniciativa pública ou privada, que se dedicam ao estudo do islão
32
Mercados tradicionais de rua, típicos dos países árabes, localizados em ruas cobertas em que cada
extremidade tem uma porta. Os souqs podem ter lojas físicas no seu interior ou pequenas bancas
montadas pelos comerciantes.
33
Alojamentos dentro dos souqs para comerciantes e para armazenamento de mercadorias.
92
cinco anos, desde julho de 2012 até ao final de 2016, envolvendo o exército sírio,
apoiado por milícias xiitas, o Irão e a Rússia e as forças rebeldes, estas repartindo-se por
vários grupos como o Estado Islâmico, o Exército Livre da Síria, as Forças Democráticas
da Síria, a frente Islâmica da Síria, milícias curdas e grupos apoiados pela Turquia e pelos
Estados Unidos. Durante a Batalha de Alepo, a cidade estava dividida em duas partes: o
lado ocidental, controlado pelo governo, e o lado oriental, pelas forças opositoras. Toda
a cidade sofreu bombardeamentos e muitos edifícios foram destruídos, mas a maior
parte da destruição concentrou-se na zona este e na antiga Cidadela de Alepo.
34
Abordaremos mais à frente no capítulo, o caso da Mesquita Umayyad, pois os relatos da sua destruição
são contestados por todas as partes envolvidas, que se acusam mutuamente da autoria da destruição.
93
de 1000 artefactos (cerca de 5% da coleção do Museu Nacional de Alepo), foram
transferidos para local mais seguro, enquanto o resto da coleção foi escondida na cave
do museu. As peças em exposição que não foi possível transportar por serem de grandes
dimensões foram protegidas com sacos de areia e as paredes revestidas com portas anti-
incêndios e reforçadas com cimento. Até 2014, os artefactos considerados mais
importantes continuaram a ser transferidos para Damasco.
94
Figura 5: Mesquita Umayyad antes da destruição do minarete (Omar Sanadiki/Reuters)
95
As conquistas de grandes extensões de território sírio pelo Estado Islâmico
preocupavam o governo sírio e as restantes forças opositoras, mas também a
comunidade internacional. Assim, os EUA e uma coligação internacional iniciaram uma
campanha para eliminar os grupos terroristas da região, contribuindo para a
consolidação do controlo de Alepo pelo exército sírio. Em 2016, a Rússia e os Estados
Unidos negociaram e mediaram um cessar-fogo entre as partes envolvidas para a
retirada de civis da cidade. Após vários bombardeamentos à parte oriental da cidade, as
forças opositoras foram evacuadas de Alepo e transferidas para a província de Idlib
entre 15 e 22 de dezembro de 2016, pondo fim ao cerco da cidade de Alepo. Esta é
considerada segura a 22 de dezembro de 2016.
96
A recuperação económica do país tem sido lenta devido às sanções económicas
internacionais contra o governo sírio, que impediam o investimento e a transferência de
recursos estrangeiros para a Síria. Essa decisão foi revertida apenas em 2021, mas ainda
sem grandes efeitos práticos. Durante o cerco à cidade, a única ajuda recebida foi
fornecida pela Comissão Europeia, que financiou um projeto da UNESCO e da ICCROM
para dar apoio à conservação do património cultural sírio, embora a maioria das
atividades tenha sido realizada fora do país e por especialistas internacionais. No
entanto, este projeto terminou em 2020. Apesar da existência de convenções
internacionais e de apelos importantes à proteção do património, nada parece ter sido
eficaz a evitar a destruição de património cultural durante o conflito.
97
Souq, perto da Mesquita Ummayyad, os trabalhos de recuperação foram feitos pelos
respetivos proprietários e 25% das lojas estavam concluídas. No Al-Niswan Souq cerca
de 100 lojas contavam com a licença de restauro para que os trabalhos se iniciassem
assim que possível. Em geral, mais de 200 vendedores foram apoiados por organizações
nacionais e internacionais para recuperarem as suas lojas e conseguirem rendimentos
para revivificar estes mercados. Os lojistas e os artesãos estão a treinar jovens para
aprenderem os seus ofícios, para que as suas práticas tradicionais não se percam. Em
vista à preservação dos aspetos intangíveis dos souqs, as lojas reabertas venderão
apenas os produtos tradicionais, como frutos secos, especiarias, carne e doces.
Entretanto, o Souq Al-Saqattiyya reabriu a 17 de outubro de 2019.
98
internacionais. Em 2019, foram aprovados restauros para mais de 20 mesquitas, em
adição às cinco anteriores. As mesquitas parcialmente danificadas foram reabilitadas e
usadas para rituais religiosos. Com efeito, também foram completados trabalhos de
restauro em várias igrejas cristãs, continuando os trabalhos na Igreja dos 40 Mártires,
na Catedral Católica Romana. No maior projeto de reconstrução de edifícios religiosos,
o da Mesquita Umayyad, os trabalhos foram financiados pela República da Chechénia.
Foi concluída a triagem de pedras do minarete que podem ser reutilizadas e começaram
os seus trabalhos de reconstrução, de acordo com os estudos aprovados. Foram
igualmente realizadas escavações arqueológicas no jardim da Mesquita, mas sem
resultados significativos.
Foi também finalizado o registo dos danos a edifícios, como o Museu das Artes
Folclóricas, procurando-se salvar artefactos, evitar mais colapsos e preparar futuros
trabalhos de restauro. A DGAM, seguindo as indicações da UNESCO, adicionou mais
algumas zonas à área classificada como Património Mundial. Com o apoio e fundos do
Japão e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Museu Nacional de
Alepo reabriu portas a 24 de outubro de 2019, com isso se procurando simbolizar o
regresso de Alepo à vida. Atualmente, a DGAM impõe restrições na mudança de funções
e reuso dos edifícios, com o propósito de reconstruir o tecido urbano e as atividades
como eram antes de 2012, aproveitando a estratégia do building-back-better (UNESCO,
2018). Contudo, apenas 25% dos lojistas originais regressaram às suas lojas na cidade
histórica. Muitos mudaram-se para outras cidades ou para a periferia com bairros mais
modernos e arrendaram as suas lojas nos souqs a terceiros, o que leva à alteração do
uso tradicional das lojas (UN-HABITAT, 2022).
99
regressar às suas casas, a dinamização de atividades e de cursos culturais e a formação
de professores capazes de lidar com crianças afetadas pela guerra.
A UNESCO em resposta aos relatórios da DGAM faz notar o esforço da Síria para
a recuperação de Alepo desde dezembro de 2016. Incentiva ao desenvolvimento de um
Plano de Recuperação e que este seja desenvolvido de acordo as recomendações da
UNESCO. Pede que a Síria faça um relatório de avaliação das estruturas em risco e que
se tomem as medidas necessárias para aumentar a segurança dos habitantes. Nota a
boa qualidade dos trabalhos de restauro no Souq Al-Saqatiyya, um modelo de sucesso a
ser utilizado em outros trabalhos de restauro de mercados tradicionais. Incentiva ainda
os Estados-membros a contribuírem financeiramente para o restauro e reitera a
necessidade de uma missão de avaliação de danos entre a UNESCO, a ICOMOS e a
ICCROM assim que a segurança o permitir. Felicita a criação de zonas tampão na cidade
histórica e incentiva a elaboração de medidas que retirem Alepo da Lista do Património
em Perigo. A 17 de março de 2023, a UNESCO autoriza o financiamento no valor de 75
mil dólares para reconstruir a torre oeste na muralha de Alepo.
100
financiamento internacional de valor significativo para a reconstrução enquanto não
houver mudanças políticas no país. Verificam-se algumas iniciativas internacionais,
pequenas, como a reconstrução de escolas, hospitais, ajuda humanitária ou a reposição
de saneamento básico, água e eletricidade, mas nada que faça parte de um
planeamento geral que abranja toda a cidade de Alepo. Para a comunidade
internacional não haverá reconstrução de Alepo, seja do seu património cultural ou de
edifícios necessários ao funcionamento da sociedade, sem mudança no panorama
político sírio. A ONU vê o embargo económico como uma forma de obrigar Bashar al-
Assad a ceder e a adotar mudanças mais democráticas. Claro está que este panorama
internacional não impede pequenos projetos de reabilitação e reconstrução que até já
estão em curso, mas num país ainda em guerra, o financiamento para este tipo de
projetos é bastante limitado. E é-o também porque é sempre usado em benefício do
governo vigente, consolidando o seu poder na região.
101
benefício das elites. No caso de Alepo, a Mesquita Umayyad está a ser reconstruída para
passar a imagem da vitória do governo sobre as forças rebeldes e a vitória de um
governo que é contestado internacionalmente. Bashar al-Assad descreve todas a
destruições como obra dos terroristas, não diferenciando entre o Estado Islâmico e as
restantes forças rebeldes. Bashar al-Assad procura, assim, ser visto como o protetor da
história e da cultura sírias, sendo ao mesmo tempo o responsável por decidir o que é e
o que não é reconstruído. A reconstrução da Mesquita Umayyad tem sido envolvida na
propaganda governamental, que a utiliza não para fins pacíficos, mas para consolidar a
sua autoridade e controlo do território. É um alerta para futuros conflitos, pois torna-se
evidente que os recursos limitados para a reconstrução não são bem distribuídos e
desrespeitam as minorias presentes na Síria.
Consta que, em 2013, o minarete da Mesquita terá sido destruído pelas próprias
forças de Bashar al-Assad, embora na versão do governo quem o destruiu tenham sido
os terroristas. No processo de reconstrução, o governo procura selecionar a
reconstrução de edifícios, privilegiando os religiosos e ignorando a vasta destruição de
zonas residenciais que apoiaram as forças rebeldes durante o cerco. Este tipo de
reconstrução seletiva pretende consolidar a autoridade do regime e a divisão entre
aqueles que apoiam e os que não apoiam o regime sírio, dividindo ainda mais o país.
Bashar al-Assad implementa políticas de reconstrução que continuam a consolidar o seu
regime e as elites políticas que o apoiam, negligenciando as fações e etnias que
contestam o seu poder. Segundo o arqueólogo e antropólogo sírio Amr al-Azm, o
governo sírio utiliza duas estratégias na reconstrução: recompensar as forças que lhe
foram leais e enriquecer ainda mais a elite política. À semelhança de Homs, também
Alepo regista um maior número de danos nos edifícios situados nas áreas rebeldes e o
governo não mostra interesse em canalizar os fundos para estas áreas, geralmente mais
pobres e com mais refugiados, preferindo recompensar as áreas leais e levantar como
bandeira a prioridade da reconstrução do património cultural (Deknatel, 2022).
102
disso, no que concerne à destruição do património cultural, o governo tem tentado
impor a sua versão da história, acusando exclusivamente o Estado Islâmico e as outras
forças da oposição como os culpados de todas as destruições em Alepo e nas outras
cidades do país. Exemplo disto é a destruição da Mesquita de Umayyad, cuja rápida
reconstrução revela o que o governo sírio quer que se retenha sobre o conflito armado
– as forças rebeldes destroem e o governo apressa-se a reconstruir o património cultural
nacional da Síria. Sem qualquer registo testemunhal da destruição da Mesquita, a
história apenas preservará o que interessa ao governo de Assad que seja contado. Corre-
se o risco também de que caiam no esquecimento os esforços de especialistas e ativistas
sírios que se uniram no início do cerco a Alepo para proteger a Mesquita com sacos de
areia e outras técnicas improvisadas. Estas ações foram mais tarde reclamadas pelas
autoridades governamentais que argumentam terem sido as únicas a preocuparam-se
com a proteção do património cultural durante o conflito armado, e que são elas agora
que continuam preocupadas em reconstruir o património para benefício da Síria e dos
seus cidadãos.
103
Algumas das intervenções em curso ou já finalizadas em Alepo foram financiadas
ou pelo governo ou por organizações não-governamentais envolvidas na preservação
do património cultural, como a Fundação Aga Khan que tem permitido a reconstrução
de partes dos souqs principais de Alepo. Estes contam já com 650 metros reconstruídos
numa rede de souqs com quase nove quilómetros quadrados de área. Os arquitetos
envolvidos no projeto estimam que a reconstrução total dos souqs levará entre 10 e 20
anos, sendo os trabalhos dificultados pela continuação do conflito armado e a falta de
materiais e de financiamento. O governo sírio estabeleceu 15 zonas de reconstrução
prioritária em Alepo, das quais oito estão na área ocidental e zona histórica da cidade,
as quais sofreram, contudo, menos danos do que as zonas rebeldes. Como referido
anteriormente, assiste-se em Alepo a uma reconstrução seletiva. A parte oriental da
cidade, fortemente bombardeada e destruída durante a Batalha de Alepo, permanece
praticamente igual a como ficou em 2016, não tendo havido esforços por parte do
governo para reconstruir residências ou incentivar a reabilitação dessa parte da cidade.
São os habitantes que permaneceram nesta zona, ou que a ela regressaram no final do
cerco que têm reconstruído de forma lenta e autónoma as suas casas. Na zona oriental,
a reconstrução mais percetível e significativa até ao momento foi uma pequena
extensão do souq para a venda de itens básicos e materiais de reconstrução para os
habitantes que tivessem regressado à cidade.
104
religiosa do país. Alepo apresenta-se, assim, como um caso único entre os seis sítios
classificados como Património Mundial sírios, em parte por ser o que mais severamente
sofreu destruições patrimoniais, mas principalmente por ser usada como bastião da
propaganda do governo sírio e símbolo da sua forte influência e reconquista da região.
Percebemos, portanto, a razão por que a reabilitação não é ignorada pelo governo sírio,
embora, o mesmo já não se possa dizer da UNESCO e da comunidade internacional. Por
outro lado, é indesmentível que os atores internacionais também politizam o património
cultural, no caso de Alepo classificado como Património Mundial, e que ignoram a
necessidade de fundos e especialistas internacionais serem canalizados para a
reconstrução da cidade até haver mudanças no panorama político sírio que satisfaçam
as pretensões internacionais para o país. No caso, a traduzirem-se no fim da guerra civil
e na democratização do governo de Bashar Al-Assad, com a convocação de eleições
verdadeiramente democráticas.
35
https://whc.unesco.org/en/list/20/
105
de uma cidade grega, com as suas ruas orientadas no sentido norte-sul ou este-oeste,
conservando ainda vestígios do Templo de Júpiter e partes das muralhas romanas. Da
idade medieval sobrevivem as mesquitas, os túmulos, as atuais muralhas da cidade e a
Cidadela, mas a maior parte do património cultural edificada de Damasco remonta à
conquista otomana dos inícios do século XVI.
106
Mundial, o primeiro relatório sobre o ponto da situação na cidade histórica de Damasco
desde o início da guerra civil.
107
mais de 250 infrações na construção de residências na Cidade Velha, o que representa
cerca de 4% dos edifícios (Ministry of Culture, 2022)
108
Damasco não seja a cidade que mais danos sofreu a nível patrimonial, em comparação
com a destruição de Alepo ou de cidades até não reconhecidas como Património
Mundial, como Raqqa ou Homs, regista tentativas de ataques terroristas a vários dos
seus monumentos.
109
organizações internacionais e as próprias comunidades, a DGAM, em nome do governo
sírio, quer melhorar os mecanismos de proteção do património cultural, de forma a
prevenir incêndios e outro tipo de ameaças (Deknatel, 2022).
110
mais aprofundados quer sobre o estado atual da cidade, quer sobre as técnicas e
métodos de preservação que ajudem a manter a autenticidade e integridade da zona
histórica. Em dezembro de 2019, o Município de Damasco, em cooperação com a
DGAM, implementou o projeto-piloto de retirar os carros da zona histórica da cidade
durante o dia, tendo em vista a preservação do património cultural e da cidade histórica.
Os resultados desse projeto ainda estão a ser averiguados, bem como a opinião dos
residentes. Ainda em 2019, foram também iniciadas as obras de restauro da zona da
muralha entre Bab Touma e Bab Al-Salam, o que passou pela preservação das ruínas
arqueológicos e pela análise de documentação anterior ao seu desmoronamento.
Contudo, a falta de fundos disponíveis tem impedido a conclusão em tempo útil dos
estudos de consolidação necessários.
111
Figura 6: Banco Otomano depois do incêndio (Ministry of Culture, 2016)
112
Em 2022, terminaram os trabalhos na zona norte da cidade, entre Bab Touma e
Bab Al-Salam. Estão atualmente em curso obras de implementação de uma rede de
esgotos mais moderna nos bairros adjacentes à antiga muralha de Damasco, o que a
protegerá de fugas de águas residuais e do deslizamento de terras. Em virtude de casas
e outros locais terem sido abandonados pelos seus proprietários, a Direção da Cidade
Velha de Damasco concedeu várias autorizações de reparação de emergência e de
restauro, sendo que, em 2022, 13 das de reparações de emergência foram concedidas
na zona dos bens imobiliários judaicos.
113
do Património Internacional que organizem missões de acompanhamento para decidir
as medidas necessárias para retirar a cidade da Lista.
114
assistência internacional. Reitera a necessidade de submeter os projetos de
reconstrução ao Comité antes que se tomem decisões irreversíveis36.
36
https://whc.unesco.org/en/decisions/7685
37
https://syriadirect.org/how-the-promise-of-alternative-housing-in-damascus-marota-and-basilia-
cities-turned-from-a-blessing-into-a-curse-for-those-eligible/
115
Damasco. Estes projetos foram anunciados em 2012 e têm como destinatários
exclusivos as elites sírias, as únicas que poderão comprar uma casa nestes
empreendimentos de luxo e de preços astronómicos. Ambas as cidades na periferia de
Damasco estão a ser construídas em terras que foram expropriadas a pequenos
proprietários que viram as suas casas destruídas durante os conflitos e que agora não
têm capacidade financeira para comprar a casa no terreno que era antes seu. Nesse
aspeto, de certa forma assemelha-se ao que se passa em Alepo, já que em ambas as
cidades as necessidades dos mais pobres são ignoradas em benefício das elites políticas
e comerciais (Deknatel, 2022).
38
O Mandato Francês, oficialmente reconhecido como Mandato para a Síria e o Líbano, foi criado após o
fim da I Guerra e do desmantelamento do Império Otomano. O Mandato foi formalizado pelo acordo
Sykes-Picot entre a França e o Reino Unido que dividiram entre si o controlo dos atuais territórios que
compreendem o Iraque, Síria, Israel, Líbano e Jordânia. Reconhecido pela Liga das Nações, o Mandato
Francês durou de 1923 a 1943, terminando com a revolta da Síria e do Líbano que culminou na
independência dos países atuais.
116
comercial foi notória durante o reinado da Rainha Zenóbia, sendo uma estação de
descanso e de comércio, além de uma paragem obrigatória das caravanas39.
Desde o início do atual conflito armado na Síria que foram tomadas medidas para
proteger Palmira. A DGAM reconheceu que a cidade estaria em perigo devido ao valor
inestimável dos artefactos guardados no seu Museu e no sítio arqueológico, prevendo
que em contexto de guerra civil, a cidade arqueológica seria a principal atração para
ladrões de artefactos e para o financiamento de grupos armados. O departamento de
Antiguidades de Palmira reforçou e fortaleceu os portões dos túmulos que estavam
preparados para receber visitas, adicionou portas de aço e voltou a enterrar todas as
entradas para as proteger do roubo e destruição. Todos os corredores, entradas do
Museu e armazéns foram reforçados com portões de aço; as janelas foram seladas com
painéis de ferro e blocos de pedras, assim como o jardim. Todos os pequenos artefactos,
ou, pelo menos, os transportáveis para armazéns, foram retirados do Museu. O Leão de
Atenas, exposto no jardim da entrada principal, foi coberto na tentativa de o proteger
de danos. Por outro lado, em 2013, a própria UNESCO decide como medida de
emergência transferir Palmira para a Lista do Património Mundial em Perigo, para que
pudesse receber fundos internacionais. A preocupação com a segurança de Palmira
atravessou fronteiras e pôs o mundo em sobressalto. Na sequência do escalar do
conflito e do crescimento do Estado Islâmico e sua conquista de território em conjunto
com os seus ideias fundamentalistas, a UNESCO deixa algumas recomendações ao
governo sírio. Aconselha-o a garantir as medidas de combate ao tráfico ilegal, em linha
com a Resolução 2199 da ONU (2015), a assinatura da Convenção de Haia e o seu
Segundo Protocolo (1999); bem como a comprometer-se a não fazer nada que tornasse
Palmira um alvo militar, para além de sensibilizar as suas tropas presentes em Palmira e
a população para o valor cultural inestimável da cidade arqueológica.
39
https://whc.unesco.org/en/list/23
117
populações, do Departamento de Antiguidades e da DGAM não foram suficientemente
eficazes para salvar Palmira de destruições, roubos, escavações ilegais e do período de
terror na cidade imposto pelo Estado Islâmico. Devido ao agravamento da situação de
segurança em Palmira, vários grupos organizados, assaltaram e roubaram várias
antiguidades, incluindo no Hotel Zenobia, no coração do sítio arqueológico, de onde
foram roubadas cinco estátuas. As duas estátuas que escaparam a este assalto serão
transportadas para o Museu de Palmira. Alguns dos túmulos foram igualmente expostos
a vandalismo e roubo, mesmo com as medidas de proteção aplicadas (Ministry of
Culture, 2022).
Sendo, portanto, verdade que não foi possível evitar atos de destruição
patrimonial, os esforços conjuntos das autoridades competentes e das comunidades
locais acabarão por conseguir confiscar e devolver muitos artefactos roubados de
Palmira que foram posteriormente armazenados no seu Museu. Uma das ações mais
importantes foi o confisco de três meios pratos e de esculturas funerárias entre agosto
e outubro de 2014 (Ministry of Culture, 2016). Antes da queda da cidade arqueológica
às mãos do Estado Islâmico, a DGAM já tinha tomada a medida de transferir a maior
parte dos artefactos para Damasco.
118
o Estado Islâmico explodiu o Templo de Baal-Shamin, que datava do século II, tendo
servido também de igreja católica entre os séculos V e VI. Em setembro de 2015, faz
explodir o Templo de Bel, um dos mais importantes templos do século I. Era considerado
único e o mais famoso do Médio Oriente do período da Antiguidade Clássica. A UNESCO
considerou a destruição destes dois templos um crime de guerra e uma atitude
deliberada de eliminação dos símbolos da diversidade cultural e tolerância religiosa da
Síria. A terceira destruição com mais impacto foi a explosão do Arco do Triunfo de
Palmira, um verdadeiro cartão de boas-vindas ao sítio arqueológico e localizado na
entrada principal da cidade, construído por Sétimo Severo entre 193 e 211 d.C. (Ministry
of Culture, 2016).
119
Figura 2: Arco do Triunfo antes e depois da sua destruição
120
Anfiteatro de Palmira, de jornalistas, arqueólogos e especialistas em património
cultural, sendo o caso mais famoso a decapitação do arqueólogo responsável pela
descoberta de Palmira – Khalid al-Assad. Apelidado como o ‘pai de Palmira’, era um
verdadeiro especialista e apaixonado pela preservação da cidade, tendo escondido
muitos artefactos antes da chegada dos terroristas e acabando por pagar com a sua vida.
Foi decapitado pelo Estado Islâmico aos 82 anos, a 8 de agosto de 2015, após recusar
revelar os esconderijos das antiguidades. O seu corpo foi exposto em frente a uma
multidão de forma a causar terror nos espectadores e na comunidade internacional.
Seguiram-se mais 200 execuções, dentro e fora dos limites de Palmira. Estas execuções
de civis, além de serem crimes de guerra e um verdadeiro espetáculo de horrores,
demonstram a estratégia militar e de propaganda usada pelo grupo terrorista. Não se
trata apenas de delapidar o património cultural, visto como símbolo dos infiéis, mas
também de o usar como cenário para o horror infligido.
121
estratégias que causam impacto mundial, sendo consideradas uma ameaça a qualquer
país e levando à organização de uma missão internacional na Síria para o eliminar.
122
Passando agora à fase de reabilitação de Palmira, existem várias abordagens a
poderem ser adotadas, sendo necessário estabelecer a forma como se quer preservar a
cidade. Preservar através do património cultural, a própria memória das destruições e
da guerra civil ou eliminar as suas provas? Se preservarmos as destruições, até que
ponto deve ser preservada a imagem de uma Palmira mártir às mãos do
fundamentalismo e extremismo religioso? Em qualquer dos cenários, devemos ter em
consideração que Palmira já estava em ruínas, ainda que em excelente estado de
conservação, antes da entrada do Estado Islâmico na cidade e deverá continuar como
ruína no futuro. As destruições perpetradas durante a guerra civil deverão ser
preservadas como uma parte da história do monumento e como uma lição para as
gerações futuras (Lilas, 2017).
123
unanimidade na 199º sessão, a 4 de abril de 2016. Recentemente tem havido trabalhos
de restauro em sítios arqueológicos destruídos através de tecnologias modernas. Um
dos métodos é a impressão a 3D, capaz de reconstruir como estava antes e usando
material original. Isto foi ensaiado pelo Instituto de Arqueologia Digital de Oxford.
Construíram um Arco do Triunfo com mármore egípcio40. Muitos cientistas e
arqueólogos parecem prontos a aderir a esta técnica e estarem dispostos a ter
impressoras para reconstruir Palmira num período de seis meses (Deknatel, 2022). Em
2017, a UNESCO financiou o restauro através de técnicas tradicionais da estátua do Leão
de Atenas, conferindo ao projeto um fundo de 915520 dólares.
40
Outra das experiências bem-sucedidas usando esta técnica foi a reconstrução de uma versão de quatro
metros do touro com asas, em Nimrud, no Iraque, também destruído por terroristas.
124
materiais originais, sua textura e cor, recorrendo à impressão 3D nos casos em que as
técnicas tradicionais não sejam suficientes.
Até ao final de 2021, tinham sido tomadas as medidas possíveis tendo em conta
o estado de conflito no país e a situação pandémica a nível mundial. Uma equipa
composta por especialistas sírios e russos, sob a supervisão da DGAM, começou os
trabalhos de reabilitação das termas naturais de Palmira, vandalizadas pelo Estado
125
Islâmico. O projeto é cofinanciado pela Associação Russa para a Preservação do
Património cultural, juntamente com os arqueólogos do Instituto de Património de
Moscovo e o Centro Científico Kabardino-Balkaria, da Academia das Ciências. O projeto
tem como objetivo a limpeza das termas e o restauro da cave arqueológica, devolvendo-
a ao estado em que estava antes do início do conflito. Estas termas são de especial
importância cultural, mas também para a manutenção da vida na cidade e a sua
recuperação envolve a comunidade no projeto. O seu restauro contribuirá para o
regresso das populações, em especial dos agricultores, o que voltará a estabilizar a
região.
A guerra civil teve e tem consequências desastrosas a vários níveis, não devendo
excluir-se da lista a própria identidade cultural da Síria. No caso de Palmira, tanto a
comunidade internacional como o governo sírio estão empenhados na recuperação da
cidade arqueológica, mas é importante mencionar que há opiniões contra a sua
reconstrução. Dentre elas, surge o argumento disso significar a tentativa de eliminar a
destruição enquanto parte da história de Palmira, ou eliminar da memória o próprio
sofrimento do povo sírio às mãos do Estado Islâmico. Parece-me defensável que, no caso
de Palmira, todas as abordagens devam ser ponderadas, dando poder, nomeadamente,
às opiniões das populações locais. É preciso preservar Palmira enquanto património
cultural e enquanto espaço de memória através do planeamento a curto e longo prazo
das medidas a serem tomadas. Claramente, tudo o que o Estado Islâmico destruiu
126
poderá vir a ser reconstruído novamente, assim que a situação no país fique
regularizada. Em todo o processo, é notória a intenção e a necessidade de utilizar
Palmira como uma bandeira e exemplo que possa combater e retirar influência ao
Estado Islâmico. Verificou-se que os trabalhos de preservação se iniciaram quase de
imediato, após a primeira expulsão do grupo armado da cidade arqueológica. Não
obstante, os trabalhos tiveram de abrandar com a situação pandémica, entre 2020 e
2021, e o início da Guerra na Ucrânia, em 2022. Este último acontecimento teve como
consequência a Rússia retirar o seu apoio fundamental, tanto ao desenrolar da guerra
civil na Síria, como ao seu investimento em projetos de reconstrução, o que voltará a
atrasar os prazos antes estabelecidos.
127
Dos três estudos de caso, sem dúvida que Palmira é a cidade que mais capta a
atenção internacional, embora as três cidades registem destruições significativas do seu
património cultural e todas sejam classificadas como Património Mundial da UNESCO.
Foi possível distinguir cada caso atendendo às estratégias de reconstrução distintas
adotadas, embora todos partilhem uma politização dos seus processos de reconstrução
e do próprio património cultural. No caso de Alepo as reconstruções são utilizadas
sobretudo como meio de propaganda política do regime sírio. Servem a ocultação de
provas de ações contra as populações, bem assim como a deturpação da história e a
eliminação da contestação ao regime instituído na cidade e no país, beneficiando os que
foram leais e negligenciando os opositores. No caso de Damasco, a capital do país, a
cidade recebe alguns projetos de reconstrução do seu património cultural, mas a
atenção do governo sírio está centrada nos projetos que possam tornar a capital síria
num centro cosmopolita. Isso beneficiará as elites políticas, religiosas e comerciais que
têm defendido o regime, perpetuando o seu poder e influência na sociedade e
menosprezando as minorias étnicas e religiosas. No caso de Palmira é bastante evidente
que esta é a cidade que mais tem recebido a atenção internacional e captado mais
fundos, ainda que sempre insuficientes, para a sua reconstrução. Surge evidenciado que
a recuperação da cidade arqueológica de Palmira tem grande significado para o governo
de Bashar al-Assad, para fins económicos e de perpetuação do regime, e para a
comunidade internacional, que vê Palmira como um símbolo da derrota da doutrina do
Estado Islâmico e da preservação da herança cultural coletiva.
128
Conclusão
129
exposto a perigos com as transformações da sociedade, seja pelo crescimento
urbanístico e a modernização das cidades e do modo de vida, seja por destruições como
forma de insurreição e revolta para com o regime político vigente, simbolizando a
eliminação desse património o término desse regime e a própria eliminação da memória
cultural dos acontecimentos anteriores às revoluções. Desde cedo, as autoridades,
governos e organizações internacionais se preocuparam em se capacitar de
instrumentos legais para evitarem danos ao património cultural e punir os infratores,
traduzindo-se nas várias Cartas e Convenções que foram abordadas ao longo da
dissertação. De uma forma geral, as Convenções foram gradualmente adaptando-se aos
novos perigos e realidades enfrentados pelo património, mas também incluindo todas
as novas formas de património cultural que iam sendo reconhecidas. Sem dúvida que a
ação mais importante de proteção do património a nível internacional foi ensaiada pela
UNESCO com a criação da Lista de Património Mundial, em 1972, tendo até aos dias de
hoje, sido alargada e revistos os seus requisitos para poder ser mais inclusiva e perder o
caráter monumental e europeu que marcou os seus primeiros anos. Se, por um lado, as
primeiras Cartas, no início do século XX, assinalavam sobretudo a importância de
preservar um património edificado e monumental, típico dos países europeus; por outro
lado, em 2003, a UNESCO reconhece importância a outras formas de manifestação do
património cultural, presentes também em países não europeus. Este reconhecimento
de expressões culturais imateriais foi um marco importante para o reconhecimento
internacional das restantes culturas não-europeias, abrindo caminho para novos
projetos de proteção patrimonial que não sejam apenas dirigidas ao património
edificado.
130
património cultural é posto ao serviço da afirmação de um poder e de um ponto de vista
da história. As destruições involuntárias são efeitos colaterais, não havendo o objetivo
de destruir a diversidade cultural, mas como pude verificar, é bastante comum em
cenários de conflito armado através do tráfico ilegal de antiguidades para fazer face às
dificuldades inerentes a cenários bélicos. Ao longo do capítulo são dados exemplos de
destruições, principalmente intencionais, entre a I Guerra e o crescimento da influência
do Estado Islâmico na Síria. Este grupo armado terrorista redefiniu a forma como
atualmente se perceciona as destruições de património, já que recorreu ao seu uso
sistemático como meio de propaganda de terror e mediatismo na comunicação social e
redes sociais. O Estado Islâmico viu os seus atos denominados como crimes de guerra,
pela comunidade internacional, e como limpeza cultural, pela UNESCO. Perpetrou atos
de destruição que vão desde escavações e tráfico ilegais para compra de armamento e
financiamento da sua campanha, até às explosões e destruição intencional de
monumentos para a eliminação da diversidade cultural e tolerância religiosa, além da
imposição da sua doutrina fundamentalista. O Estado Islâmico concentra nas suas ações
formas de destruição típicas de índole voluntária e involuntária, para alcançar objetivos
militares, políticos, religiosos, sociais, económicos e culturais.
131
comunidades em cenários de crise. Considero que em cada caso onde seja necessário
aplicar um projeto de reconstrução, todas as abordagens devem ser consideradas a fim
de encontrar a mais adequada. Concordo com a reconstrução do património cultural e
com a sua adaptação ao serviço da população. Pode ser um aliado valioso em cenário
de pós-conflito quando associado a uma resposta humanitária.
132
de financiamento adequado para a proteção patrimonial e pela não imunidade às
pressões políticas das decisões tomadas pelos seus Estados-membros, as quais visam
objetivos políticos e menos culturais.
O Capítulo 3 também está dividido em três partes, dizendo respeito à análise dos
processos de proteção, destruição e reconstrução patrimonial na Síria, na atualidade.
Na primeira parte do Capítulo é feito um pequeno resumo sobre o início das
manifestações pacificas na Síria, inspiradas pela Primavera Árabe, e que culminarão
numa sangrenta guerra civil que perdura até hoje. Entre outras coisas, o conflito colocou
o património cultural em perigo, sendo necessárias medidas de proteção de urgência
para evitar a todo o custo mais destruições ou danos. Entre voluntários e profissionais
foram feitos esforços em várias partes do país para esconder artefactos e proteger
estruturas e monumentos que pudessem estar vulneráveis, tendo também em vista
diminuir o risco de tráfico ilícito de antiguidades. Além das autoridades governamentais,
foi notória a tentativa de proteção patrimonial em territórios ocupados pelas forças
133
rebeldes, bem como o esforço de civis para reavivar tradições e costumes da cultura
síria, protegendo o património em todas as suas manifestações. A nível internacional
foram publicadas algumas medidas como as Resoluções do Conselho de Segurança da
ONU que proíbem o tráfico ilícito de antiguidades e estabelecem redes de comunicação
internacionais para os intercetar, bem como a criação de observatórios pela UNESCO
para monitorizar o estado do património na Síria. Denota-se aqui já um esforço de
inclusão das comunidades para a proteção e valorização do património cultural.
Defende-se que a proteção será mais eficaz se for integrada num plano de assistência
humanitária durante as crises, e incentivada junto das comunidades em épocas de paz.
Contudo, há também a assinalar que existem algumas medidas de proteção que podiam
ser aplicadas e ainda não o foram. Por exemplo, a assinatura da Convenção de Haia e do
Estatuto de Roma pela Síria, o que impede que se concretize uma ação jurídica em
relação a crimes relacionados com o património.
134
presença no conflito. A sua ação foi apelidada como limpeza cultural, pois a sua intenção
última é impor o seu poder numa região através da eliminação da memória da
diversidade cultural.
135
pé, a erosão histórica e do tecido urbano, bem como a fuga das populações, colocando
em risco a preservação do património intangível, além da falta de mão de obra
disponível e do vandalismo. A pobreza e a destruição de documentação dificultam
também a tarefa de recuperação aos proprietários das casas já que ficam sem
conseguirem provar o que é seu.
136
apoiem o processo de reconstrução. É de extrema importância não só consultar as
populações, mas dar-lhes voz e poder de decisão durante o processo de reconstrução.
Os processos de reabilitação e reconstrução patrimonial na Síria são possíveis se forem
integrados nos restantes processos de recuperação do país. O património cultural da
Síria é muito diversificado e as medidas de proteção a adotar devem refletir essa
diversidade. O património cultural pode ganhar e perder valor. No caso da Síria, os bens
destruídos terão perdido o seu valor de antiguidades, mas poderão ganhar um novo
valor de tolerância religiosa e étnica entre os sírios se servirem como testemunho de
ultrapassagem do violento conflito armado. Será, assim, uma recuperação patrimonial
com um caráter menos preservacionista e mais preocupada com as pessoas a quem
serve e para quem tem significado. Num cenário de pós-conflito armado, não será uma
prioridade, e nem seria bem recebida pelas populações, uma preservação meramente
física do património cultural; que não pudesse ser utilizada para fins políticos e
económicos pela sociedade em que está inserido.
137
recuperação das populações, transmite a ideia de o património ser priorizado em
relação às pessoas. Isso retira ao património um papel fulcral na recuperação pós-
conflito e coloca o risco das populações se alienarem do seu próprio património e
identidade cultural. Assim, Alepo, uma das cidades mais afetadas e destruídas pela
guerra, torna-se uma manta de retalhos, sendo reconstruída em determinadas zonas
estratégicas e esquecida nas outrora mais rebeldes.
138
reconstrução das suas ruínas arqueológicas, prometendo estudos, especialistas e
financiamento. De facto, em Palmira, a reconstrução patrimonial como resposta às
destruições intencionais ocorridas tem também ela uma forte carga política: é uma
estratégia de combate ao terrorismo pela afirmação de que os seus atos, ou crimes de
guerra, não são completamente irremediáveis. Os projetos de reconstrução e os
trabalhos efetivos já tinham sido iniciados, tendo sofrido atrasos em virtude da
pandemia global e do início do conflito na Ucrânia. Sem dúvida alguma que no futuro
Palmira será reconstruída à luz do seu estado anterior à invasão pelo Estado Islâmico e
que será um projeto cuidadosamente guiado pela UNESCO e outros atores
internacionais.
139
Assad apelida como projetos de reconstrução, a comunidade internacional prefere
chamar recuperação ou reabilitação, mostrando assim a sua posição de desacordo com
a ideia de reconstrução patrimonial até que se encontre uma solução democrática e o
fim da guerra civil.
Palmira, além de ter emocionado o mundo com a sua ocupação e destruição pelo
Estado Islâmico, é o sítio classificado como Património Mundial que diverge dos
restantes casos de destruição no país. Seja por se localizar no meio do deserto e de mais
fácil defesa, a pérola do deserto canalizou fundos, palavras de esperança e especialistas
internacionais assim que foi libertada do controlo do Estado Islâmico. Acredito que as
suas ruínas, herança de diversas civilizações euroasiáticas, atraem as atenções e
comovem e revoltam mais a comunidade internacional, do que as restantes zonas
destruídas. No caso de Palmira, não foi atacado apenas o passado e a memória cultural
da Síria, mas o passado partilhado da humanidade. Tal como a sua destruição foi de
índole política e de propaganda, assim é a sua reconstrução: como meio para proteger
a diversidade cultural, mas também combater o terrorismo.
140
2023, que atingiu a Turquia, mas também o norte da Síria incluindo algumas cidades
rebeldes e Alepo, deixou um rasto de destruição que ainda não foi documentado.
141
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