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A cura no tanque de Betesda (Jo 5.

1-9a)

1. Os capítulos centrais do evangelho de João são cronologicamente relacionados com as diversas festas do ano judaico; veja
6.4 (Páscoa), 7.2 (Tabernáculos), 10.22 (Dedicação), 11.55 (novamente Páscoa). A identificação da festa mencionada aqui é
incerta. Há uma variante com o artigo definido antes de festa; a festa dos judeus provavelmente é a dos Tabernáculos. Mas o
peso da evidência favorece a ausência de artigo.

Foram levantados alguns argumentos interessantes para identificar a festa com o Dia do Ano Novo (a festa das Trombetas,
como é chamada em Lv 23.23-25). Esta era a identificação preferida de B. F. Westcott. Em 1908, J. Rendei Harris indicou que
a crença popular mencionada na interpolação depois do versículo 3 pertence a um tipo que, no folclore de muitos povos, é
associado ao Ano Novo. Um argumento de mais peso foi desenvolvido pela Dra. Aileen Guilding. Ela mostra como os discursos
destes capítulos centrais estão muito relacionados com as passagens do Pentateuco prescritas para as leituras nas sinagogas
nas festas que formam o contexto dos respectivos discursos. Neste particular, o tom de juízo do discurso do capítulo 5 é
característico das leituras da época das Trombetas.

2,3a. Nesta versão, a expressão porta das ovelhas corresponde ao adjetivo grego probatikê ("de ovelhas"). O substantivo
qualificado por este adjetivo não é citado, provavelmente porque no tempo que o evangelista vivia todos os Conheciam.
(Jerusalém podia estar em ruínas, já por diversos anos quando este evangelho foi escrito, mas o autor a visualiza como era
quando ele a conhecia, descreve seus traços naturais no tempo presente). Uma tradução antiga traz "mercado das ovelhas",
mas isto é menos provável do que "porta das ovelhas", apesar de a porta das ovelhas provavelmente levar ao mercado das
ovelhas. A NEB traduz "Tanque das ovelhas", seguindo o costume da tradição cristã posterior, que paulatinamente substituiu o
nome Betesda por Probatikê (em latim Probatica). Mas provavelmente não é este o sentido aqui; seria necessário tomar
kolymbêthra ("tanque") como dativo, o que deixaria o verbo existe sem sujeito e daria uma construção grega muito ruim. A
porta das ovelhas é mencionada três vezes no livro de Neemias (3.1,32, 12.39), de onde concluímos que era uma abertura no
muro norte da cidade, um pouco a oeste do "eirado da esquina" (a esquina a nordeste do muro da cidade).

O nome do tanque aparece sob diversas formas em nossos manuscritos principais: Betesda, Betezata, Betsaida (esta última
forma provavelmente provém de confusão com o nome da cidade de pescadores no lago da Galileia, mencionada em 1.44).
Foi confirmado que Betesda (heb. bêth 'eshdãh, "lugar do derramamento") é a forma correta, em 1960, quando o texto do Rolo
de Cobre de Qumrã foi publicado pela primeira vez. Neste rolo, o lugar é claramente chamado de Beth'eshdãthaim - e
'eshdãthaim é a forma dual de 'eshdSh: "o lugar dos dois derramamentos". Por que a forma dual? O peregrino de Bordeaux,
que visitou Jerusalém em 333 d. C, percebeu que "há na cidade um tanque duplo com cinco arcadas, chamado Betsaida". Esta
afirmação foi confirmada pela evidência de escavações recentes no local, que fica próximo à Igreja de Santa Ana, na região
nordeste da Cidade Velha. É verdade que de tempos em tempos são feitas escavações no local desde que Napoleão III ad-
quiriu a área para a França, em 1856. Agora ficou claro que havia dois tanques adjacentes, um para o norte e outro para o sul,
e que a área em forma de trapézio ocupada por eles era cercada por quatro séries de colunas cobertas, uma em cada lado,
com uma quinta sobre o muro de rocha viva que separava os dois compartimentos do tanque. Na sombra destas séries de
colunas, a multidão de aflitos de todos os tipos esperava a oportunidade de cura.

A ARC e a IBB incluem uma expansão primitiva do texto, no fim do versículo 3 e no versículo 4 (a ARA a identifica com
colchetes, englobando todo o trecho no versículo 4), que apareceu pela primeira vez nas revisões Ocidental e de Cesaréia.
Não podemos creditar (ou debitar) ao evangelista esta informação sobre o anjo, mas provavelmente ela reproduz a crença
popular sobre a causa das propriedades terapêuticas atribuídas à água. Pode ser concluído, a partir do versículo 7, que a água
realmente se movimentava de vez em quando, e que havia vantagem em entrar no tanque nestas ocasiões.

O tanque duplo fazia parte de um grande sistema de reservatórios, supridos a partir de outros mais amplos, chamados
Tanques de Salomão (a sudoeste de Belém). Foram encontrados restos dos canais de pedra que levavam a água, perto de
Betesda. Mas a referência ao movimento periódico da água dá a impressão de que o tanque também recebia água de uma
fonte intermitente (possivelmente uma fonte medicinal, a julgar das referências antigas ao tom avermelhado da água).

5. Não está dito que este homem esteve deitado todos os trinta e oito anos à sombra das colunas de Betesda; devemos
presumir que ele era levado para lá regularmente, cada vez que se esperava o "movimento" da água, na esperança de que um
dia ele fosse o primeiro a entrar nela. Também não se esclarece qual era sua doença; evidentemente era algum tipo de aleijão
ou paralisia, já que ele não era capaz de descer à água a tempo sem ajuda (v. 7), e há um indício (v. 14) de que ela era
consequência de algum pecado que cometera. Os mesmos intérpretes que alegorizam os cinco maridos da mulher samaritana
tentam alegorizar também os trinta e oito anos da doença deste homem, vinculando-os aos trinta e oito anos desnecessários
que os israelitas passaram no deserto ( Dt 2.14), como se o homem representasse a frustração da nação em seu esforço de
chegar à terra prometida. Isto convence quem quiser deixar-se convencer. Entretanto, pode-se ver um contraste entre a
chance remota de ser curado no tanque e a palavra eficaz de Cristo. Neste caso, a água de Betesda, como a água nos jarros
de pedra de Caná (2.6) ou do poço de Jacó (4.13) pode ilustrar os ritos da religião judaica, ou mesmo a lei dada por Deus,
contrastados com a salvação trazida pelo evangelho.
6,7. A pergunta de Jesus apontou para o coração do problema. Será que este homem queria realmente ser curado? A pergunta
pode parecer estranha, mas é possível que, depois de tantos anos nesta condição, o homem preferia não enfrentar os desafios
de uma vida sadia normal. Se a água, no entender do evangelista (e sobre isto não há certeza), representa a lei, a lição pode
ser que a lei mostra o caminho para a vida ("Faça isto e você viverá"), mas não pode transmitir a vontade de escolher a vida,
muito menos de dar vida em si.

E evidente que o coxo compartilhava a crença comum das propriedades terapêuticas da água agitada. Sua resposta à
pergunta de Jesus mostra que foi falta de oportunidade, não de vontade, que o impediu de tirar proveito destas propriedades.
Chamar sua resposta de "desculpa frágil", como faz C.H. Dodd, vai mais longe do que a evidência permite. Seja como for, até
onde vai nossa influência, se alguém disser: "Ninguém me ajuda", que não seja por ausência nossa.

8,9a. A cura deste homem desempenha um papel na narrativa de João comparável ao da cura do paralítico de Cafarnaum na
narrativa dos sinóticos (Mc 2.1-12 e paralelos). As palavras de Jesus que operaram a cura de ambos foram as mesmas. O
homem de Betesda, entretanto, não recebeu a garantia de que seus pecados estavam perdoados (veja o versículo 14); o
escândalo causado pelo incidente de Betesda tinha outra razão (veja o versículo 9b).

A cama ou leito era uma esteira ou colchão de palha, fácil de enrolar e levar sob o braço (em grego krabattos, como em Mc
2.9,11,12). Nos versículos 8 e 9, o verbo andar é peripateõ, literalmente "dar voltas" (como em Mc 2.9 e At 3.6). A sequência de
verbos é significativa; obviamente o homem precisava primeiro ser curado antes de poder levantar seu leito e andar. Então, o
que o curou? Nada menos que a ordem capacitadora de Jesus, à qual sua vontade obedeceu. Assim, ele recebeu poder para
fazer o que momentos antes estivera bem aquém de sua capacidade.

Bibliografia F. F. Bruce

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