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RAÍDO

v.8, n.16

UNIVERSIDADE FEDERAL
DA GRANDE DOURADOS
Coordenadoria Editorial

Revista Semestral do Programa de Pós-Graduação em Letras


da Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD
Dourados, v.8, n.16, jul./dez. 2014.
UFGD
Reitor: Damião Duque de Farias
Vice-Reitor: Wedson Desidério Fernandes
COED
Coordenador Editorial da UFGD: Paulo Custódio de Oliveira
Técnico de Apoio: Givaldo Ramos da Silva Filho
FACALE
Diretor da Faculdade de Comunicação
Artes e Letras: Rogério Silva Pereira

Conselho Editorial Consultivo


Adair Vieira Gonçalves (UFGD-Brasil)
André Luiz Gomes (UnB-Brasil)
América Lucia César (UFBA-Brasil)
Carmen Mejia Ruiz (Universidad Complutense de Madrid-Madrid)
Edgar Cézar Nolasco dos Santos (UFMS-Brasil)
Eneida Maria de Souza (UFMG-Brasil)
Idelber Avelar (University of Tulane-New Orleans-USA)
Leoné Astride Barzotto (UFGD-Brasil)
Lisa Block de Behar (Universidad de la República-Uruguay)
Luiz Gonzaga Marchezan (UNESP-Brasil)
Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP-Brasil)
Manuel Fernando Medina (University of Louisville-USA)
Marcelo Marinho (Universidade de Quebec-UQAM-Montreal)
Miguel Angel Fernández (UNA-Asunción-PY)
Norma Wimmer (UNESP-Brasil)
Pablo Rocca (Universidad de la Republica – Montevidéu /Uy)
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFGD-Brasil)
Rita de Cássia Aparecida Pacheco Limberti (UFGD-Brasil)
Wander Melo Miranda (UFMG-Brasil)

Raído: Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGD / Universidade Federal


da Grande Dourados (v.8, n. 16, jul./ dez. 2014) -. Dourados, MS : UFGD, 2014 -.

Semestral

ISSN 1984-4018

1. Linguística Aplicada. 2. Letramento acadêmico. 3.Escrita do professor.


RAÍDO
v.8, n.16

UNIVERSIDADE FEDERAL
DA GRANDE DOURADOS
Coordenadoria Editorial

Raído: Revista do PPG em Letras | Dourados, MS | v.8 n. 16 | p. 1 - 296 | jul./dez. 2014


RAÍDO
v.8, n.16, jul./dez. 2014

Editores
Adair Vieira Gonçalves (UFGD)
Manoel Luiz Gonçalves Corrêa (USP)

Revisão
A revisão gramatical é de responsabilidade dos(as) autores(as).

Editoração Eletrônica, Produção Gráica,


Fabrício Trindade Ferreira ME

Correspondências para: UFGD/FACALE


Rua João Rosa Goes n. 1761, Vila Progresso - Caixa Postal 322
CEP 79825-070 - Dourados-MS
Fones: +55 67 3410-2015 / Fax: +55 67 3410-2011
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................7
LETRAMENTO NA ERA DIGITAL: O COPIAR-COLAR DOS ESTUDANTES / LITTÉ-
RATIE A L’ÈRE DU NUMÉRIQUE: LE COPIER-COLLER CHEZ LES ÉTUDIANTS.........15
Fanny Rinck
Leda Mansour
O “RESUMO DE COMUNICAÇÃO” COMO OBJETO DE ENSINO / “ABSTRACTS
FOR SCIENTIFIC EVENTS” AS TEACHING OBJECT ................................................33
Florencia Miranda
DA PALAVRA NEUTRA À PALAVRA PRÓPRIA: FORMAS DE CONCEBER A
PALAVRA NA ESCRITA ACADÊMICO-CIENTÍFICA / FROM THE NEUTRAL WORD
TO THE OWN WORD: THE WAYS OF CONCEIVING THE WORD IN ACADEMIC
SCIENTIFIC WRITING .............................................................................................57
Poliana Dayse Vasconcelos Leitão
Regina Celi Mendes Pereira
PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA EM CONTEXTO ACADÊMICO: RELAÇÕES
(HIPER)TEXTUAIS SINGULARES / WRITING AND READING PRACTICES IN AN
ACADEMIC CONTEXT (HYPER) TEXTUAL SINGULAR RELATIONS....................79
Fabiana Komesu
Fernanda Correa Silveira Galli
A (RE) ESCRITA NA FORMAÇÃO DOCENTE: AÇÕES E INTERVENÇÕES COM O
USO DE MÍDIA DIGITAL / (RE) WRITING IN THE TEACHER TRAINING: ACTIONS
AND INTERVENTIONS WITH THE USE OF DIGITAL MEDIA ................................95
Kleber Ferreira da Silva
Adair Vieira Gonçalves
CONCEPÇÕES SOBRE A ESCRITA ACADÉMICA DE ESTUDANTES DO
ENSINO SUPERIOR / CONCEPTIONS ON ACADEMIC WRITING OF UNIVERSITY
STUDENTS ..............................................................................................................125
Luísa Álvares Pereira
Luciana Graça
TRACES DE LA FORMATION DES ENSEIGNANTS SUR LA TRANSFORMATION
DU RAPPORT À L’ÉCRIT D’ÉTUDIANTS QUÉBÉCOIS / EVOLUTION OF
RELATIONSHIP WITH WRITING OF QUEBEC EDUCATION STUDENT TEACHERS:
MARKS OF UNIVERSITY TRAINING ......................................................................141
Chantale Beaucher
Christiane Blaser
Olivier Dezutter
PERSPECTIVAS DE ALFABETIZAÇÃO: LIÇÕES DA PESQUISA E DA PRÁTICA
PEDAGÓGICA / PERSPECTIVES ON LITERACY: LESSONS FROM RESEARCH AND
PEDAGOGICAL PRACTICES ...................................................................................157
Cecilia M. A. Goulart
ENTRE FAZER E DIZER: ATIVIDADE DOCENTE E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
ESCOLARES, NOS ATOS DE ESCRITA NA FORMAÇÃO / DOING OR SAYING:
TEACHERS`ACTIVITY AND PEDAGOGICAL PRACTICES AT SCHOOL, BROUGHT
TO THE ACTS OF WRITING IN THE CONTEXT OF TEACHERS’TRAINNING .....177
Ludmila homé de Andrade (UFRJ)
O SISTEMA SEMÂNTICO DE PROJEÇÃO EM CITAÇÕES NA ESCRITA ACADÊMICA
DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIOS / THE SEMANTIC SYSTEM OF PROJECTION IN
CITATIONS IN ACADEMIC WRITING PRACTICUM REPORTS..................................197
Lívia Chaves de Melo
Elaine Espindola
PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL NA ESCRITA REFLEXIVA PROFISSIONAL:
ABORDAGEM SISTÊMICO-FUNCIONAL NA LINGUÍSTICA APLICADA / PRE-
SERVICE TEACHERS IN THE REFLEXIVE PROFESSIONAL WRITING: SYSTEMIC
FUNCTIONAL APPROACH IN APPLIED LINGUISTICS .......................................... 223
Bruno Gomes Pereira
Wagner Rodrigues Silva
Universidade Federal da Grande Dourados

APRESENTAÇÃO
EM TORNO DA VARIEDADE DE LETRAMENTOS

A organização deste volume da Revista Raído, destinado a diferentes perspectivas


dos Estudos do Letramento, juntamente com outros periódicos brasileiros, delineia
uma temática extremamente relevante e promissora dentro da Linguística Aplicada.
Trata-se de uma tentativa de investigar e compreender os eventos de letramentos que
ocorrem em ambientes acadêmicos, dentro e fora do Brasil. Em âmbito nacional, o
espectro de posicionamentos dos pesquisadores e de suas instituições está representado
neste número pelas seguintes instituições: Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD-MS-BR); Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ-BR), Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ-RJ-BR), Universidade Federal do Tocantins Universidade Federal
da Paraíba (UFPB-PB-BR); (UFT-TO-BR); Universidade de São Paulo (USP-SP-BR);
Universidade Estadual Paulista (UNESP-SP-BR), e, pelo diálogo com pesquisadores de
outros países, representados aqui pela: Université Stendhal Grenoble III (U3-Grenoble-
-FR); Université Paris Ouest Nanterre la Defense (U-Paris-10-FR), Universidad Nacio-
nal de Rosario – (UNR-AR), Universidade de Aveiro (UA-PT), Université de Sherbrooke
(UdeS-CA) e The Hong Kong Polytechnic University (POLY-U-CN), mostra a dimensão
da demanda de investigação para os estudos aplicados da linguagem.
Compreendemos letramentos aqui como “o estado ou condição de quem exerce as
práticas sociais de leitura e de escrita, de quem participa de eventos em que a escrita é
parte integrante da interação entre pessoas e do processo de interpretação dessa intera-
ção - os eventos de letramento” (SOARES, 2002, p.145, grifos da autora). Ao optar por
essa compreensão, o foco recai no estado ou na condição e não apenas as práticas sociais
de leitura e de escrita e os eventos em que estas práticas ocorrem.
Vem de Corrêa (em elaboração) a retomada sobre a noção de letramento que se
segue. É sabido que se pode, por um lado, compreender o letramento como “o estado
ou condição de quem exerce as práticas sociais de leitura e de escrita, de quem participa
de eventos em que a escrita é parte integrante da interação entre pessoas e do processo
de interpretação dessa interação – os eventos de letramento” (SOARES, 2002, p. 145),
opção que enfatiza o estado ou condição de um indivíduo em sua relação com práticas
sociais específicas. Desse ponto de vista, justifica-se a utilização classificatória dos in-
divíduos como apresentando baixo ou alto grau de letramento. Por outro lado, a ideia
de letramentos (STREET, 1984, 1995, 2006, 2010; KLEIMAN, 1999; KLEIMAN e
MATENCIO, 2005) enfatiza o papel das práticas sociais nas quais o sujeito se insere,
o que reforça a consideração de aspectos sócio-históricos determinantes da identidade
de indivíduos. Dessa perspectiva, o empenho em classificar o sujeito quanto ao seu grau
de letramento transmuta-se na observação da sempre complexa inserção dos indivíduos

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nas condições sócio-históricas de sua existência social. Esses aspectos sócio-históricos,
quando vistos segundo a noção de autoria (TFOUNI, 1988, 1994, 2010), permitem
redimensionar a noção de letramento, ao considerar a relação entre intra e interdiscur-
so, destacando-se, dela, o modo pelo qual o sujeito ocupa o lugar de autor quando faz,
metalinguisticamente, da matéria do intradiscurso forma de construção do discurso (e
também do texto), o que constitui um modo particular de lidar com o inacessível do
interdiscurso. Ainda no interior da noção de letramentos (no plural) e assumindo que a
pluralidade de letramentos inclui formas não estritamente gráficas de registro, Corrêa
(2001) assume que, mesmo em sociedades ágrafas, não existe o grau zero de letramento.
Nos trabalhos reunidos nesta edição temática, são contemplados amálgamas e inter-
secções entre tipos de letramento, por exemplo, entre práticas letradas tradicionais e prá-
ticas letradas na cibercultura. Várias nuanças são aqui abordadas, em torno da temática.
Fanny Rinck e Leda Mansur, em Letramento na era digital: o copiar-colar dos estu-
dantes, abordam a prática do copiar-colar em termos de aculturação. Praticada pelas
gerações mais jovens, não reconhecida como prática legítima de pesquisa, Rinck e
Mansour discutem a temática como uma entrada interessante para a compreensão da
escrita de fontes que, antes, centravam-se unicamente na exigência do citar. Como se
vê, ao enfrentar o tema candente de como encarar o plágio no copiar/colar da internet,
o artigo põe em questão, no limite, a fronteira entre ética e linguagem. Vale, ainda,
uma observação sobre a opção de traduzi-lo neste número: escrito originalmente em
francês, já foi publicado no Brasil na língua de origem. No entanto, por interessar
ao professor em geral (de todas as disciplinas) e, particularmente, ao professor que se
ocupa do ensino de escrita, consideramos oportuno traduzi-lo para o português para
que, atendendo não só a formação inicial do professor como também a continuada,
possa alcançar um público mais amplo no Brasil.
Em O “Resumo” de comunicação como objeto de Ensino, Florencia Miranda aborda
a transposição didática do gênero resumo de comunicação, situando-se nos pressu-
postos do Interacionismo Sociodiscursivo. Partindo do Modelo Didático do Gênero,
problematiza essa prática linguageira a partir da observação de textos elaborados por
estudantes do Curso de Português da Universidade Nacional de Rosário (Argentina).
Pode-se dizer que Miranda descortina dimensões escondidas que emergem na escrita
do gênero resumo de comunicação (STREET, 2010). Finalmente, são tematizadas
propostas de didatização do gênero, a partir do procedimento teórico-metodológico
das Sequências Didáticas.
Em Da palavra neutra à palavra própria: formas de conceber a palavra na escrita
acadêmico-científica, Poliana Dayse Vasconcelos Leitão e Regina Celi Mendes Pereira
partem do pressuposto de que a experiência discursiva individual constroi-se e desen-
volve-se a partir da apreensão da palavra de outrem. Tendo em conta esse processo
dialógico, as autoras analisam a palavra de diversas formas, impregnando-a de dife-
rentes graus de subjetividade e de diferentes níveis de responsabilidade enunciativa.
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Contudo, no âmbito acadêmico-científico – as autoras analisam o gênero acadêmico


“monografia” –, a neutralidade é concebida como critério de cientificidade e frequen-
temente almejada pelos pesquisadores. Nesse sentido, a análise das monografias, res-
paldada no dialogismo (BAKHTIN, 1993 [1920], 2003 [1952-1953]) e nos pres-
supostos teórico-metodológicos do Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART,
1999, 2006), evidenciou que as marcas de subjetividade delimitam diferentes níveis de
distanciamento e de aproximação que oscilam não apenas em virtude dos elementos
textuais que compõem o gênero textual, mas também em decorrência da relação que o
professor concluinte de Letras estabelece com o objeto de estudo investigado. Assim,
distribuídas num contínuo de um menor a um maior nível de subjetividade, as autoras
propõem a seguinte ordem: palavra neutra, palavra de outrem, palavra alheia/própria,
palavra própria/alheia e palavra minha.
Refletindo a respeito de práticas discursivas de leitura/escrita em/na rede, Fa-
biana Komesu e Fernanda Correa Silveira Galli, no artigo Práticas de leitura e escrita
em contexto acadêmico: relações (hiper)textuais singulares, tratam especificamente dos
percursos de leitura de docentes (em formação e já formados) a partir de atividade
desenvolvida com base no motor de busca da Internet “Google”. Situa-se o estudo
na Análise do Discurso Francesa e nos Estudos de Letramento, objetivando compre-
ender as relações (hiper)textuais estabelecidas por docentes num curso de extensão
universitária e as marcas discursivas que emergiram no modo singular de ler de um
determinado sujeito.
Já Kleber Ferreira da Silva e Adair Vieira Gonçalves investigam não a formação
continuada, mas a formação inicial. Apresentam, no artigo, A (re)escrita na formação
docente: ações e intervenções com o uso de mídia digital resultados de pesquisa no campo
da formação inicial de professores, realizada com alunos do 4º ano do curso de Letras
da UFGD. Reunindo diferentes contribuições teóricas de especialistas no ensino de
escrita, os autores investigam a eficácia da interação on-line e interrogam sobre o pa-
pel das plataformas digitais na relação dialógica entre as intervenções do professor e as
réplicas a elas introduzidas pelos alunos na versão reescrita. Os autores concluem que,
embora a intervenção textual-interativa nas plataformas digitais ocorra, em termos
quantitativos, em maior número do que as mesmas intervenções em contexto tradi-
cional de ensino, as ações humanas exemplificadas na interlocução na esfera digital
misturam-se e complementam-se com o que já está consolidado na escrita tradicional.
Luísa Álvares Pereira e Luciana Graça, em Concepções sobre a escrita acadêmica
de estudantes do ensino superior, apresentam resultados de um questionário aplicado
a estudantes, com o objetivo de investigar suas concepções de escrita e o trabalho
feito com a escrita pela/na universidade. Os dados apontam para duas conclusões: i)
não há diferença significativa em relação às operações do processo de escrita entre os
estudantes das diferentes áreas do conhecimento; b) as diferenças se situam no como
a universidade portuguesa acompanha (ou não) tais atividades durante o período de
graduação de seus estudantes.

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Em Traces de la formation des enseignants sur la transformation du rapport à l’écrit


d’étudiants québécois, Chantale Beaucher, Christiane Blaser e Olivier Dezutter discu-
tem o papel central que a escrita desempenha na aprendizagem. Os dados da pesquisa
foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas feitas com 15 estudantes,
na Universidade Sherbrooke, no Canadá, em dois cursos distintos: oito estudantes
do ensino secundário e sete estudantes do ensino profissionalizante. A análise mostra
semelhanças e diferenças entre os dois grupos, sobretudo como os estudantes discutem
sua competência na escrita. Os dados revelam importantes questões para os docentes
que acompanham o processo de escrita no contexto investigado.
Discutindo o trabalho com a linguagem na escola, na área da alfabetização, Cecília
Goulart, no artigo Perspectivas de alfabetização: lições da pesquisa e da prática pedagógi-
ca, vale-se da perspectiva enunciativa bakhtiniana. Apoia-se em dados de pesquisa e no
acompanhamento contínuo de professores do Ensino Fundamental I para apresentar
princípios de pesquisa e de prática pedagógica (para o ensino da linguagem verbal) e
para defender que a alfabetização com base em textos cria uma possibilidade concreta
de os estudantes “mergulharem nos sentidos dos textos que leem e [de] inventarem
novos sentidos para os textos que escrevem”.
Ludmila Thomé de Andrade, no artigo Entre fazer e dizer: atividade docente e prá-
ticas pedagógicas escolares nos atos de escrita na formação, nos brinda com uma discussão
“meta”, ao permitir pensar a própria escrita da pesquisa em relação estreita com as
políticas públicas e com ações de formação implementadas durante os Encontros de
Professores para Estudos de Letramento, Leitura e Escrita (EPELLE). Andrade pro-
cura, sobretudo, (inter)relacionar identidade e fazer docente e lança bases para uma
análise discursiva de textos produzidos na formação (continuada) de professores por
parte do docente formador.
Seguindo os pressupostos da Linguística Sistêmico-Funcional, Lívia Chaves de
Melo e Elaine Espindola investigam o sistema semântico de projeção, por meio de re-
cursos léxico-gramaticais no artigo O sistema de projeção em citações na escrita acadêmi-
ca de relatórios de estágio. As autoras propõem uma discussão das enunciações próprias
e alheias e da literatura acadêmica e não acadêmica em relatórios de estágio supervisio-
nado, produzidos por professores em formação inicial, em curso de Licenciatura em
Língua Portuguesa e Língua Inglesa, numa universidade pública do norte brasileiro.
Em Professores em formação inicial na escrita reflexiva profissional: abordagem sis-
têmico-funcional na Linguística Aplicada, Bruno Gomes Pereira e Wagner Rodrigues
Silva utilizam o gênero relatório de estágio supervisionado produzidos por professores
de Matemática para analisar a autorrepresentação docente na escrita desses relatórios.
Os dados apontam, na opinião de Pereira e Silva, para o não empoderamento dos
alunos-mestres, ainda que estes conhecessem os mecanismos linguísticos indicadores
de reflexão no texto.

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Por fim, agradecemos ao corpo de pareceristas ad hoc, especialmente convidados


para os trabalhos deste número temático, que, em tempo recorde, avaliou cuidadosa-
mente os textos.
Dourados (MS), São Paulo (SP), 16de setembro de 2014.
Adair Vieira Gonçalves (UFGD/CNPq)
Manoel Luiz Gonçalves Corrêa (USP/CNPq)

REFERÊNCIAS
CORRÊA, M.L.G. Letramento e heterogeneidade da escrita no ensino de Português.
In: Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas (SP) :
Mercado de Letras, 2001, p. 135‐166.
CORRÊA, M.L.G. Identidades em deriva e identidades usupardas: letramentos no
tempo e no espaço. (em elaboração).
KLEIMAN, A. B.; (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre
a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1999.
_______.; MATENCIO, M. de L. M. (Orgs.). Letramento e formação do professor:
práticas discursivas, representações e construção do saber. Campinas: Mercado de Le-
tras, 2005. 271 p. (Col. Ideias sobre Linguagem)
SOARES, M.B. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Edu-
cação & Sociedade. v.23, n.81, p.143-160, 2002. Disponível em: http://www.cedes.
unicamp.br. Acesso em 14 de ago. de 2014.
STREET, B. Literacy in theory and practice. Cambridge : Cambridge University
Press, 1984.
_________. Social literacies: criticial approaches to literacy in development, ethnogra-
phy and education. London : Longman, 1995.
_________. Perspectivas interculturais sobre o letramento. Filologia e Linguística
Portuguesa, São Paulo, v. 8, p. 465-488, 2006.
_________. Dimensões “escondidas” na escrita de artigos acadêmicos. Perspectiva,
v.28, n.2, p.541-567, 2010.
TFOUNI, L.V. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988.
______. Perspectivas históricas e a-históricas do letramento. Cadernos de Estudos Lin-
güísticos. Campinas (SP), v. 26, p. 49-62, 1994.
______ . Letramento e Alfabetização. 9ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2010.

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LETRAMENTO
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LETRAMENTO NA ERA DIGITAL: O COPIAR-COLAR


DOS ESTUDANTES1

LITTÉRATIE A L’ÈRE DU NUMÉRIQUE: LE COPIER-COLLER


CHEZ LES ÉTUDIANTS
Fanny Rinck*
Leda Mansour**

RESUMO: O copiar-colar dos estudantes é considerado como plágio e proibido


por razões de honestidade acadêmica. No entanto, esta prática questiona os “novos
estudos de letramento” e a questão da leitura e da escrita na era do digital, e é isso
que este artigo explora na perspectiva do ensino da escrita na universidade. Propomos
analisar a prática do copiar-colar em termos de aculturação: trata-se de uma prática
espontânea das gerações jovens que não é reconhecida como uma prática legítima,
no que tange a questões ligadas à noção de autor e às fontes de nossos escritos e de
nossos conhecimentos. Interrogamos, de um lado, a cultura dos “nativos digitais”; de
outro lado, as expectativas acadêmicas e as diiculdades dos estudantes. O copiar-colar
aparece, assim, como uma entrada interessante para melhor compreender a escrita a
partir de fontes antes do que centrar-se unicamente na exigência de citar.
Palavras-chave: Escrita dos estudantes; Plágio; Letramento Acadêmico.
RÉSUMÉ: Le copier-coller des étudiants est considéré comme du plagiat et interdit
pour des raisons d’honnêteté académique. Cependant, il interroge les “new litteracy
studies” et la question de la lecture et de l’écriture à l’ère du numérique et c’est ce que
cet article explore dans la perspective de l’enseignement de l’écrit à l’université. Nous
proposons d’analyser la pratique du copier-coller en termes d’acculturation: il s’agit
d’une pratique spontanée des jeunes générations qui n’est pas reconnue comme une
pratique légitime, en regard de questions liées à la notion d’auteur et aux sources de
nos écrits et de nos connaissances. Nous interrogeons d’une part la culture des “digital
natives”, d’autre part les attentes académiques et les diicultés des étudiants. Le copier-
coller apparaît ainsi comme une entrée intéressante pour mieux comprendre l’écriture
à partir de sources plutôt que de se centrer uniquement sur l’exigence de citer.
Mots-clés: Écriture des étudiants; Plagiat; Littératie académique.
1
Tradução de Milenne Biasotto (PNPD/CAPES/UFGD)

Nota do tradutor: o texto original em língua francesa, Littératie a l’ère du numérique: le copier-coller chez les étudiants,
foi publicado na revista Linguagem em (Dis)curso, periódico do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), no ano de 2013. (Linguagem em Dis(curso), Tubarão, SC, v. 13, n. 3,
p. 613-637, set./dez. 2013).
*
Professora em Ciências da Linguagem, ESPE de Grenoble e Laboratório Lidilem, Universidade Grenoble Alpes. Email:
fanny.rinck@ujf-grenoble.fr
**
Pesquisadora convidada no Centro Marc Bloch em Ciências Escolares, Berlin. Email: ledamansour@hotmail.com

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Universidade Federal da Grande Dourados

INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é abordar elementos de compreensão da prática do
copiar-colar dos estudantes: como podemos passar da lamentação a uma relexão
pedagógica sobre o copiar-colar?
Tomamos como contexto os letramentos universitários e os trabalhos realizados
sobre os gêneros em uso na esfera acadêmica, sobre as diiculdades dos estudantes e
sobre a maneira de melhor formá-los. Em um contexto de interrogações renovadas
sobre a cultura da escrita na era digital, a prática do copiar-colar parece-nos ser uma
entrada interessante para tratar das práticas de letramento como fundamento do
domínio da informação e da construção das chamadas sociedades do conhecimento,
segundo a deinição de letramento4 dada pela UNESCO – dito de outro modo, em
referência a uma antropologia dos saberes.
A noção de letramento diz respeito, em primeiro lugar, à diversidade das práticas
de leitura e de escrita e às competências que elas mobilizam, mas também àquilo que se
põe em jogo, por meio do ler-escrever, em termos de uso da informação e de construção
de saberes. Ela permite visualizar, para além da alfabetização, uma aprendizagem que
repousa sobre “continuidades e rupturas entre esfera escolar e doméstica” (LE DEUFF,
2011, p.69), se perseguida “ao longo de toda vida” e representa “um meio de formar
os espíritos” (LE DEUFF, 2011, p.72). Os Novos Estudos de Letramento (STREET,
1993; FRAENKEL e MBODJ, 2010) colocam ênfase, em particular, na competência
digital e na necessidade não somente de dar acesso a todas essas ferramentas, mas
também desenvolver seu uso crítico.
A hipótese de trabalho que serve de ponto de partida à relexão que propomos
aqui é que o copiar-colar permite interrogar sobre o desenvolvimento das competências
de letramento em termos de aculturação. Ele representa uma prática espontânea das
gerações jovens, mas que não é admitida como uma prática de letramento legítima em
relação a questões ligadas à noção de autor e de trabalho pessoal bem como às fontes
de nossos escritos e de nossos saberes.
Em uma primeira parte, mostramos como o copiar-colar é percebido e o
deinimos como prática de letramento no contexto dos letramentos universitários.
Questionamos então, face a face, de um lado, a cultura dos “nativos digitais” e as
implicações das tecnologias digitais no tratamento da informação, o acesso ao
conhecimento e a relação ao saber dos estudantes; de outro lado, as expectativas
acadêmicas e as diiculdades dos estudantes confrontadas à exigência de dever remeter-
se às fontes e de produzir uma relexão pessoal – senão original.

4
“É chave para comunicação e aprendizado de todos os tipos e uma condição fundamental de acesso às sociedades
de conhecimento atuais”, Unesco (2008). he global literacy challenge, Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0016/001631/163170e.pdf>.

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Universidade Federal da Grande Dourados

O COPIAR-COLAR COMO PRÁTICA DE LETRAMENTO


NA UNIVERSIDADE

UM OBJETO ESTIGMATIZADO
Nesses últimos anos vimos multiplicarem-se os discursos, na universidade e na
imprensa, sobre a prática do copiar-colar dos estudantes. Designando, inicialmente,
uma função informática, o termo generalizou-se e seu uso alega a facilidade do
procedimento. O termo copiar-colar intervém de maneira recorrente na expressão
“um simples copiar-colar”. É questão de “simples clique”, “simples como um jogo de
criança”, ou, “em um mínimo de esforço”, “basta...” (“contentar-se de...”). Partindo
daí, o copiar-colar na universidade é considerado por alguns como prova manifesta
da “preguiça intelectual” e da “falta de limite” das gerações jovens. Copiar-colar
seria “ceder à tentação”, e até mesmo “sem escrúpulo” e “sem vergonha”, “trapacear”,
“saquear”, “furtar” e “violar o direito do autor”. Prática “selvagem”, “novo pesadelo”,
“verdadeiro lagelo”, o copiar-colar pede por ser detectado, perseguido, denunciado.
Trata-se de “quebrar o tabu” e de se engajar numa “luta” contra esse fenômeno5.
O copiar-colar liga-se a numerosos fenômenos da trapaça na escola ou em
situações de concurso: do mesmo modo que copiar do seu vizinho ou utilizar colas,
ele seria signo de uma incapacidade ou de uma desonestidade. Mas ele aparece como
um fenômeno “novo”, já que fundado nas possibilidades oferecidas na era digital6. A
amplidão do fenômeno faz com que ele seja mesmo questão da “indústria da trapaça”,
para designar ora as práticas dos estudantes, ora aquelas, lucrativas, dos sites fornecedores
de trabalhos prontos, que às vezes (em nome talvez de uma responsabilidade ética dos
empreendimentos) vão até recomendar aos seus compradores que os utilizem apenas
como fonte e, em nenhum caso, a título de trabalho pessoal.
A resposta institucional nos estabelecimentos de ensino superior contribui
com a não menos lucrativa indústria da antitrapaça, com o recurso aos programas
(softwares) de detecção do plágio. Estes programas baseiam-se no procedimento
espontaneamente utilizado pelos professores que se dedicam a uma pesquisa no Google
para determinar se uma ou outra passagem é um feito do estudante ou de um copiar-
colar: do mesmo modo, os programas comparam o texto com uma base de dados e
indicam uma porcentagem de empréstimos. Ao professor cabe veriicar, em seguida,
se os empréstimos são assinalados como tais no texto ou se, na falta de sê-lo, eles são
considerados como plágio (HARRIS, 2001).
A detecção da fraude está de acordo com o desenvolvimento de sanções e de
um arsenal regulamentário, em particular atestados de não plágio que os estudantes
devem fornecer no início de seus documentos. Estas práticas suscitam debates de
ordem ética sobre a questão de saber se é legítimo suspeitar a priori dos estudantes,
5
Referimo-nos, neste parágrafo, a diversos artigos on-line, especialmente artigos da imprensa e de blogs como aquele de
J.-N. Darde, “Arqueologia do copiar-colar”, disponível em: < http://archeologie-copier-coller.com>.
6
Com o uso, por exemplo, de smartphones em situação de exame.

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até mesmo de presumi-los culpados antes do momento em que forneçam a prova


do contrário7. Como na literatura, a indústria cultural ou as marcas, a propriedade
intelectual tornam-se, pois, um problema julgado central, senão tabu, no ensino
secundário e superior. O problema não tem nada de simples, contrariamente à ideia
que se faz espontaneamente de que uma criação pertence ao seu autor. Podemos citar
como exemplo os debates sobre as descobertas cientíicas e a complexidade da questão
do autor cientíico (uma equipe de pesquisa, um ou dois redatores, uma assinatura que
inclui aqueles que participaram da pesquisa sem ter necessariamente redigido) (ver por
ex. PONTILLE, 2004).

UM OBJETO A SE REPENSAR NO CONTEXTO


DO LETRAMENTO
O copiar-colar entre os estudantes, como mostra Aron (2009), chancelou o
proibido; ele é assimilado à trapaça e ao plágio a ponto de o proibido ser prioritário
sobre qualquer outra consideração. Esta proibição, sustentada juridicamente, é
amplamente fundamentada no argumento segundo o qual é um mal copiar (ARON,
2009). Podemos ver aí uma concepção romântica do autor-criador aplicada ao
mundo acadêmico, o que impõe uma outra exigência: é preciso citar suas fontes – e
referir-se a fontes legítimas. Podemos citar, a esse respeito, a alusão, ao mesmo tempo
literária e cientíica, desse pesquisador que explica em preâmbulo a sua “história do
plágio universitário”, que ele construiu inteiramente seu texto a partir de colagens de
trabalho existentes – os quais ele toma o cuidado de indicar precisamente as fontes
(COUSTILLE, 2011).
O plágio e o copiar-colar têm em comum a cópia. No entanto, se concordamos
que o primeiro designa “não a cópia, mas a intenção de dissimular” (WEISSBERG,
2002) e se reservamos, então, os debates jurídicos e morais à questão do plágio, como
considerar a prática do copiar-colar fora do paradigma do proibido? O copiar-colar
não implica, ao menos a priori, a intenção de ludibriar o leitor8 e está na base de
competências centrais nos letramentos universitários, em particular, a citação e a
tomada de notas. Seu uso entre as gerações jovens tanto pode ser compreendido como
uma estratégia de escrita como o sinal das diiculdades frente à exigência de escrever a
partir de fontes.
A história da escrita nos ensina que é resultado muito recente que ajamos como
se copiar tivesse que ser proibido, pois os autores foram, primeiramente, copistas, e os
textos, retomadas e montagens de traços existentes – senão cópias conformes. Como
explica L. Canfora (2009), que põe à luz o trabalho dos copistas na história, a cópia
é uma prática de letramento fundamental e representa uma forma de apropriação
7
Ver, por exemplo, a relação da Comissão de Ética da ciência e da tecnologia do governo de Québec sobre o plágio (2005).
8
Sobre a questão da intencionalidade nos descumprimentos a respeito das indicações da fonte, poderíamos nos referir à
tipologia de empréstimos propostos por Maurel-Indart, 2011, ou à tipologia dos gravadores estabelecida em função dos graus
de fraude, por Bergadaa, 2006. Destacamos que a assimilação entre o copiar-colar e o plágio ignora, de fato, essa diversidade
dos modos de empréstimo.

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efetiva de um texto: pela cópia projeta-se a entrada do leitor no texto e seu desejo de
intervir. Ela está, portanto, no centro do desenvolvimento do letramento na escala
ilogenética e na escala ontogenética, como, por exemplo, em estudantes que, entre
as práticas extraescolares da escrita, recolhem pedaços escolhidos em um poema ou
canção qualquer (PENLOUP, 1999).
É no domínio das obras literárias, das pesquisas em literatura e dos ateliers de
escrita criativa que encontramos vozes a considerar – e a reabilitar – a cópia como
sendo um trabalho central da produção escrita (por exemplo, HENNIG, 1997). Não
se trata, que ique bem claro, de limitá-la a uma reduplicação ao ininito, mas de
entender a cópia em relação com as noções de empréstimo e de intertexto. Nesse
contexto, são questionadas como não sendo lineares à criação verbal (GOLDSMITH,
2011) e a autoria (JEANDILLOU, 2001) e encontra-se estabelecida a constatação
segundo a qual “escrever é reescrever”.
Esta fórmula serve, atualmente, de adágio no campo da didática da escrita
(ver BORE e DOQUET, 2004). Em sala, trata-se de propor atividades consistindo
em reescrever a partir de seus próprios textos (questões de rascunho e de tomada
de notas), em escrever a partir de extratos de texto tomados aqui e ali, ou ainda, de
associar a prática da cópia a uma prática de imitação, escrevendo “à maneira de”, como
treinamos a pintura ou a escultura, copiando, inicialmente, os grandes mestres. Estes
dois procedimentos, da cópia e da imitação, mobilizam e favorecem uma impregnação
com os textos e não há razão de reservá-los às escritas literárias. Assim, no caso da escrita
acadêmica, dizemos que esse domínio repousa, em particular, no uso ritualizado e até
mesmo rotineiro de moldes retóricos e fraseológicos característicos, e a esse título, a
cópia e a imitação podem tornar-se ferramentas de formação (por exemplo, EISNER
et. al., 2008; PENNINGTON, 2010).
Por outro lado, o copiar-colar representa uma entrada interessante no campo
dos letramentos universitários tendo em vista, particularmente, os saberes herdados
e a relação ao saber; ele permite abordá-los em sua dimensão cultural, em termos de
gerações e de um letramento renovado pelo digital.
Se as questões de autor e de fontes existem de longa data, elas se colocam de
maneira central nos usos da informação na Internet e nos modelos de cooperação e
colaboração que se desenvolvem, por exemplo, em torno de um projeto enciclopédico
como a Wikipédia, ou de um ou outro web site dedicado a questões médicas.
Uma formação nessas questões é importante para o êxito universitário, pois é
reconhecido, atualmente, que o ler-escrever e o domínio informacional são como
molas. Esta formação é igualmente importante em vista dos letramentos proissionais,
campo no qual o autor e as fontes são igualmente identiicados como questões centrais
(ver PENE, 1993); é o caso, por exemplo, para os aprendizes-pesquisadores (RINCK
e BOCH, 2012) ou os web jornalistas e redatores, mas também para todo domínio
exigente da vigília informacional e/ou da produção de conteúdos.
O copiar-colar poderia, então, servir de ponto de partida não somente para que
os estudantes tenham consciência dos códigos de propriedade intelectual, mas como

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uma maneira de se interrogar sobre o ler-escrever no momento digital e de explorar


as possibilidades em termos de uso da informação e da escrita a partir de fontes. Essa
proposta une-se àquelas em favor de formações documentares que não se limitam ao
acesso à informação, mas visam ferramentas adaptadas aos usos espontâneos e uma
abordagem crítica da informação (SERRES, 2007), em uma perspectiva de formação
universitária, proissional e cidadã 9.
Deinimos, pois, o copiar-colar dos estudantes no cruzamento do campo
dos letramentos universitários (“academic literacy”), do letramento informacional
(“information literacy) e do letramento crítico (“critical literacy”). Para além do
“simples clique”, o copiar-colar representa uma prática de letramento na interface
entre leitura e escrita, e que solicita competências diversiicadas, ainda que em seus
dois termos (copiar no sentido material para recolher uma citação, fabricar um texto
patchwork feito de colagens de outros textos). O copiar-colar pode encontrar seu
lugar no contexto da formação universitária, ao mesmo tempo para a formação na
escrita e para a formação na informação na era digital. Isso supõe tentar compreender
melhor o copiar-colar, muito mais do que proibi-lo. No que se segue, mostraremos
de que modo o copiar-colar está ligado à cultura da internet e representa uma prática
espontânea que não tem lugar reservado no mundo extraescolar.

PRÁTICA DO COPIAR-COLAR E CULTURA DE INTERNET


Esta segunda parte quer explorar os eventuais laços que podem ligar a prática
do copiar-colar com aquilo que os pesquisadores chamam, entre outras expressões,
cultura da internet. Assim, falamos aqui de um copiar-colar generalizado sob o efeito do
digital, em referência aos novos usos do letramento da “geração Y” e das comunidades
de internautas que Dagnaud estuda:

[...] para pesquisar a informação, eles [da geração Y] recorrem mais à internet do que
a imprensa escrita, manifestando mais coniança nos sites de informação online do
que nas categorias mais antigas (DAGNAUD, 2011, p.119).

Nossa hipótese repousa na ideia de que o sentido dado no copiar-colar sofre um


deslizamento em direção a novas considerações sob o efeito da cultura da internet. Em
particular, as noções de abertura e partilha impõem uma distinção entre o copiar-colar
e o plágio e uma concepção da cópia que não tem nada de roubo. Esse deslocamento
do sentido do plágio e do copiar-colar é sugerido pela fala dos próprios estudantes, que
a esse respeito, declaram:
O proprietário da informação a publicou na Internet, portanto, é uma maneira de
autorizar seu uso por todo mundo, senão, ele teria guardado para si (Falas de estudantes
citados por ABOUFIRRASS; ABOUFIRRASS; BENNAMARA; TALBI, 2006).

9
Quer seja questão de sociedade do conhecimento, de democracia participativa ou de emancipação, como nos programas
educativos inspirados, em especial, o de J. Dewey (1966 [1916]).

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Partindo, assim, desse deslizamento de sentido, descrevemos aquilo que


entendemos por “cultura da internet” antes de nos determos nos modos de
funcionamento da internet, para, então, revelar o seu impacto nas práticas redacionais
e nas pesquisas de informação dos estudantes.

CULTURA DE INTERNET: TENTATIVA DE DEFINIÇÃO


Não é fácil deinir essa “cultura” da internet, “cultura digital” ou “cultura da
web”, chamada também web colaborativa, tanto é verdade que as deinições variam
segundo as abordagens e as disciplinas. Estudar a evolução técnica e as ferramentas
da Web enquadra-se melhor do lado da engenharia, enquanto observar o impacto e a
inluência da internet sobre os utilizadores provém de uma problemática frequentemente
tratada pelos sociólogos da informação e da comunicação. Apesar dessa diiculdade de
deinição sublinhada por H. Guillaud em seu artigo “o que é a web 2.0?” (2005), a
ênfase é colocada nos usos, dito de outro modo, “uma variedade de utilizadores que
entre si fazem a internet” (GUICHARD, 2009).

Tecnologicamente, nada de essencial mudou na internet desde 10 anos. A essência


da “nova web” reside naquilo que fazem as pessoas atualmente. [...] A web 2.0 é a
partilha da informação, fundamentada em bases de dados abertas que permitem aos
outros utilizadores empregá-las” (PORTER, 2005).

Destinada aos “utilizadores”, a Internet caracteriza-se pela “partilha” da informação


e pela “abertura”. Precisamente, sob o título “A abertura. Partilhar não é roubar”, em seus
10 mandamentos da era digital, RushKof desenvolve estas duas características:

Quer seja a cópia segura de um arquivo que enviamos ao servidor que gerencia
nossos e-mails ou a criação de um web site, sempre terminamos por utilizar fontes
informáticas que não possuímos por nós mesmos. E, como consequência, alguém
ou alguma coisa sempre acabará por utilizar as nossas. É a inclinação natural da
tecnologia digital em direção àquilo que bem poderia ser sua principal característica:
a partilha (RUSHKOFF, 2012, p.136).

Partindo dessa constatação, “as mesmas normas sociais não se aplicam sobre a Net,
onde partilhar, emprestar, roubar e recondicionar ampliam-se” (2012, p.143). O autor
desenvolve o sentido de partilha, não sem mencionar os usos distorcidos desta partilha:

As passagens de livros são copiadas em extenso ou em pedaços tirados de seu contexto


para serem integrados na prosa de um terceiro, e canções inteiras são reutilizadas como
fundo sonoro de novas canções. E quase nenhum dos criadores originais da obra – se
isso ainda tem sentido – é creditado por seu trabalho (2012, p. 141, grifo nosso).

A partilha da informação e as ideias dos outros fariam, assim, parte de um


“processo de aprendizagem” baseado em uma “liberdade digital”, repousando em
códigos próprios em que partilhar não é roubar. A questão da propriedade intelectual

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 21


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coloca-se novamente, o que se traduz, em especial, pelo desenvolvimento, em nível


jurídico, de licenças baseadas nos direitos de partilha10. No mesmo sentido, a cultura
da Internet convida a repensar diferentes clivagens que podem ajudar a compreender
a prática do copiar-colar e o sentido que lhe é dado pelos estudantes.

ALGUNS MODOS DE FUNCIONAMENTO DA INTERNET


Os trabalhos dos sociólogos da informação e da comunicação, assim como dos
pedagogos, analisam os modos de apropriação da internet e explicam porque se põe
em jogo uma nova “visão de mundo”, rompendo as clivagens entre espaço público/
privado, intimidade/extimidade, legalidade/ilegalidade e convidando a repensá-las.
Uma das temáticas estudadas na literatura consagrada à cultura digital é
aquela da exposição da personalidade dos internautas: o limiar entre espaço privado
e espaço público parece ultrapassado, o que é instaurado pela lógica racional da web
2.0. Denouël indica esta lógica racional falando da noção de “identidade” (2011, p.
75-82). Efetivamente, como analisa Cardon em seu design da visibilidade, os usuários
correm cada vez mais o risco de expor sua identidade (2008, p. 93-134). Em outro
aspecto, essa clivagem rompida entre público/privado permitiu a Tisseron forjar a
noção de extimidade (termo emprestado de Lacan) em contraste com a intimidade,
uma extimidade que não é sinônimo de exibicionismo, mas de “fragmentos da
personalidade íntima apresentados ao olhar do outro a im de serem validados” (2011,
p.84). Desse modo, essa exposição da personalidade está em interação com os outros,
que a validam e a reconhecem.
Não é o caso, aqui, de reletir sobre a noção de identidade digital e suas
fronteiras entre visibilidade e invisibilidade, mas é importante observar que a cultura
da internet tende a dar um novo sentido ao privado e ao público, por meio de fóruns,
blogs, redes sociais e wikis. A fronteira entre produção pessoal e coletiva apaga-se nos
espaços colaborativos.
Além disso, o binário legal/ilegal é também repensado, em especial, sob o efeito
do “tudo gratuito” característico da web, hoje em dia (RUSHKOFF, 2012, p.144):
funciona como um “hábito” que governa a internet e que “é difícil de erradicar”
(DAGNAUD, 2011, p.140).

Milhares de pessoas utilizam Wikipédia quotidianamente para seu trabalho e suas


pesquisas, em virtude de um privilégio que lhes foi oferecido por milhares de autores e
editores que contribuem com isso de maneira benévola. O tráfego do site é considerável,
mas poucas pessoas estimam dever pagar por isso (RUSHKOFF, 2012, p.148).

Assim, essas fontes são assimiladas aos bens públicos, e tanto sua cópia como
sua utilização pessoal resultam do fato de sua simples existência on-line. “Ainal, se
está lá, é por que isso pertence a todo mundo” (RUSHKOFF, 2012, p.141). Esta
constatação faz eco às falas dos estudantes, citados anteriormente, que justiicam
10
Citamos as licenças “creative commons” que se aplicam às condições de reutilização e de distribuição das obras.

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seu copiar-colar pela simples existência on-line das fontes. Não se pode, entretanto,
confundir a gratuidade presumida e a cultura do “livre” (SOUFRON, 2009), e se os
dois não são claramente distinguidos nos espíritos, é fundamentalmente a segunda,
com a noção de “fontes abertas” ou “obras abertas”, que tende a “enfraquecer” o sentido
da propriedade, de acordo com Dagnaud (2011, p.85), e traduz-se pela invenção de
pistas alternativas ao regime da propriedade e de formas de trocas culturais que se
caracterizam pela cooperação (por exemplo, PROUX & GOLDENBERG, 2010;
ROCHELANDET, 2011).
Os usos da internet confundem, pois, a visão que podemos ter das produções
culturais e de sua circulação no espaço público. Qual é o estatuto do próprio internauta,
nos blogs, fóruns e outros wikis, um destinatário e/ou um emissor?

Organizando a permutabilidade entre produtores e consumidores, ela [a internet]


abole a sacralidade da obra e sua imutabilidade. Fazendo isso, ela canoniza o herói
desta revolução cultural: o amador11 (DAGNAUD, 2011, p. 44).

Estamos, pois, em relação a uma cultura dita da “partilha” (senão da “pirataria”),


em que são redeinidos os laços entre privado e público, legal e ilegal, amador e
proissional, e em que cada um é convidado a tornar-se “autor” ou “informante”.
Visualizada nesse contexto, a prática do copiar-colar não representa tanto um roubo, do
ponto de vista daquele que copia bem como do ponto de vista daquele que é copiado,
mas um elo na cadeia de circulação da informação e uma “reorientação dos trabalhos
do outro” (RUSHKOFF, 2012). K. Goldsmith (2011) fala, no mesmo sentido, de
“reutilização”: estamos diante de um novo ato de enunciação, pela deinição singular e
única, baseada no empréstimo e tendo seu próprio objetivo.

LETRAMENTO DIGITAL E FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA


O copiar-colar na era digital é assimilado ao “uso desviado” da informação,
especialmente, o chamado “cyberplágio”, a indiferença às fontes e os problemas de
avaliação da informação. Ater-se a esse lamentação é, no entanto, sintomático das
diiculdades em pensar as evoluções do letramento (STREET, 1993), concebido
como conjunto de práticas do ler-escrever e universo cultural e cognitivo. Em uma
perspectiva pedagógica, a formação na informação torna-se um desaio central12.
Agora que os alunos podem encontrar tudo on-line, o papel do professor
deve evoluir na direção de um guia ou de um treinador, isto é, um parceiro da
aprendizagem, que ajuda os alunos a avaliarem e a sintetizarem os dados que eles
encontram (RUSHKOFF, 2012, p.139).
A universidade, semelhante à escola, não pode continuar a colocar de lado os
usos efetivos da internet entre as jovens gerações, com o risco que “um fosso se cave
11
Para saber mais sobre o papel do amador, ver Allard (1999)
12
Não é insigniicante saber que uma das competências exigidas pelo quadro de referências sobre as competências chave para
a aprendizagem ao longo de toda a vida é, entre outras, a competência digital (GERBAULT, 2012). Grifos das autoras.

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na utilização da internet, entre a esfera privada e o mundo escolar, e que os jovens


sejam, assim, deixados, de certa maneira, ‘sós face à Internet’” (SERRES, 2007). O
copiar- colar, como prática espontânea de tratamento da informação, pode integrar-
se, desse modo, a uma formação universitária em letramentos informacionais, levando
em conta os novos ambientes digitais como os motores de busca, os blogs, os wikis, os
fóruns e as redes sociais, enquanto ferramentas, para um uso controlado, e enquanto
objetos de questionamento, para favorecer uma relexão crítica.
Apesar de o desenvolvimento crítico dos conhecimentos ser um traço central
da formação na universidade, o copiar-colar faz-se, aí, o objeto de uma abordagem
dogmática e a proposição de integrá-lo à formação está longe de ser natural. Esta
abordagem apresenta-se em desalinhamento com as expectativas universitárias em
termos de letramento e de relação ao saber, tanto que é conveniente interrogá-la
novamente em relação ao letramento digital, informacional e crítico.

EXPECTATIVAS NA UNIVERSIDADE
A prática do copiar-colar e a maneira pela qual esta prática é percebida, se julgamos
o discurso que circula a seu propósito, torna vazia a questão das expectativas do ensino
superior em relação aos estudantes. Para além da proibição da cópia e da exigência de citar
suas fontes, de quais regras do mundo acadêmico os estudantes devem apropriar-se, no
que diz respeito aos tipos de escritas, às fontes e ao estatuto do autor, à relação ao saber?
Apoiamo-nos, aqui, em trabalhos anteriores conduzidos sobre as escritas dos pesquisadores,
sobre as escritas dos estudantes e sobre enquetes realizadas junto a eles, somando, assim,
vários ângulos de visão que permitem melhor compreender as expectativas acadêmicas em
matéria de letramento e as diiculdades que se colocam aos estudantes.

DE UM PONTO DE VISTA EPISTÊMICO


As expectativas acadêmicas são tomadas entre dois modelos: de um lado, aquele
que consiste em situar o indivíduo no centro do processo educativo, quer seja em
termos de desenvolvimento ou de emancipação; de outro lado, aquele que coloca
ênfase nos saberes e na tradição recebida por herança e sua transmissão13. O ensino
da escrita, é, a esse respeito, revelador: é tanto uma questão de favorecer a expressão
dos indivíduos quanto uma construção dos saberes via escrita14. Assim, as produções
escritas esperadas em contexto acadêmico têm que se posicionar em relação a esses dois
modelos, aquele de uma criação singular e de um pensamento original do aluno ou
estudante e aquele que impõe documentar e remeter-se aos saberes existentes.
13
Essa bipartição une-se à proposição feita por Latour e Fabbri (1977, p.82) a respeito da ciência: eles destacam que, con-
siderada enquanto prática, ela recobre dois aspectos, aquele dos indivíduos e aquele dos saberes produzidos.
14
Observaremos, a esse respeito, a existência de diferenças culturais: a corrente expressivista (DONAHUE, 2007) é muito
persistente nos Centros de Escrita americanos, enquanto no espaço europeu francófono, o campo de didática da escrita no
ensino superior é constituído em referência àquilo que entra em jogo por meio da leitura e da escrita em termos de saberes.
Outro fato notório, na França, o desenvolvimento de ateliers de escrita nos anos 1970-1980 vem preencher um nicho deixado
vazio pela escrita escolar e acadêmica, aquele da criatividade dos indivíduos.

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Convém, a esse respeito, sublinhar que as expectativas no ensino superior


caracterizam-se por um salto qualitativo. Os estudos existentes sobre o letramento
universitário mostram que se se trata de restituir os saberes, nas provas de exame,
especialmente, as diiculdades dos estudantes que entram na universidade estão
relacionadas ao fato de que isso não é suiciente e que é esperado que eles sejam capazes
de “pensar via escrita” ou de “pensar criticamente por meio da escrita” (BIZZELL,
1992). As práticas acadêmicas instituem, assim, a leitura e a escrita como instrumentos
cognitivos compensadores em suas dimensões epistêmica e heurística: ler e escrever
permitem apropriar-se dos saberes e fazer avançar a relexão.
A relexão pessoal supostamente esperada apresenta, entretanto, um estatuto
ambivalente em contexto escolar e universitário, já que se trata de desenvolver
uma relexão pessoal, certamente, mas que seja, em primeiro lugar, uma relexão
fundamentada. Se a ênfase é colocada na importância de “pensar via escrita”, é ao
leitor-avaliador que caberá dizer, no inal, se o texto faz sentido e se vê emergir ali um
pensamento digno deste nome. Ainda é necessário que o texto responda às convenções
que constroem a consideração do leitor, dito de outro modo, que satisfaça às expectativas
da comunidade acadêmica. A escrita acadêmica caracteriza-se fundamentalmente pelo
uso de uma terminologia especializada e por modos de raciocínio disciplinares; ela
combina restituição de saberes (dimensão expositiva) e construção de um ponto de
vista (dimensão argumentativa), e os tipos de escritas distinguem-se entre eles segundo
estejam mais para o lado do saber como produto ou do lado da pesquisa como modo
de produção do saber.
Uma prova escrita pode exigir apenas exposição de saberes adquiridos, e, nesse
caso, convenhamos que a prática esperada do estudante assimila-se sensivelmente
à da cópia: pede-se a ele que rediga, senão com as mesmas palavras e frases, pelo
menos com os mesmos conceitos e os mesmos meios linguísticos (aqueles da esfera
acadêmica), aquilo que o professor disse em seu curso ou aquilo que determinado
autor escreveu sobre uma determinada questão. Por meio da tomada de notas, ou,
para os mais jovens, do ditado dos conteúdos do curso, a cópia funciona como
modelo de transmissão dos conhecimentos no mundo escolar e remete ao papel da
imitação no aprendizado (ARON, 2009). Ela é, portanto, ao mesmo tempo solicitada
e recriminada, central, mas insuiciente, até mesmo desprezível se a expectativa situa-
se do lado da originalidade e de uma postura de autor.
De um ponto de vista epistêmico, a questão prioritária para a formação
universitária, sem dúvida, não é tanto a necessidade de citar suas fontes, mas de referir-
se a fontes legítimas: o que está em jogo para os estudantes é apropriarem-se dos
saberes disciplinares na escrita e serem capazes de uma distância crítica em relação aos
saberes. Isso explica o fato de que, nas representações associadas ao copiar-colar, as
fontes consultadas pelos alunos do ensino médio e pelos universitários sejam objeto de
suspeitas, em primeiro lugar, a enciclopédia Wikipédia.
O ensino superior deve contentar-se em rejeitar tais fontes, ao pretexto de que
elas são do “público em geral”? Sabemos que não há ruptura, mas uma continuidade

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entre vulgarização e pesquisa (JACOBI, 1999) e poderíamos, portanto, considerar a


sensibilização dos alunos do ensino médio e universitários a essas questões ligadas às
fontes do saber e aos seus modos de construção e de validação15. A prática espontânea
que eles têm do copiar-colar pode, então, evoluir em direção a uma prática mais
controlada: quais extratos selecionar em uma massa de informação? O que faz com
que uma airmação seja trivial ou forte, pertinente ou infundada? Como construir um
propósito coerente, articulando fontes diversas?

DE UM PONTO DE VISTA LINGUAGEIRO


A proibição do copiar-colar e a obrigação de indicar suas fontes impõem-se
pela força das evidências, mas se chocam com a complexidade daquilo que entra em
jogo na interface entre leitura e escrita: a atividade de documentação, a tomada de
notas, o ato de enunciação ou a série de reescritas que caracterizam a produção de todo
texto, a heterogeneidade enunciativa do texto e seu intertexto.
Os trabalhos sobre os letramentos universitários são, a esse respeito, preciosos.
Eles permitem descrever as práticas de escrita efetivas, muito mais do que levar em conta
a norma prescritiva, valorizada, tal como podemos encontrá-la em uma injunção como
“é preciso citar suas fontes” e no discurso que apela à tradição cientíica e ao rigor. Os
textos produzidos pelos pesquisadores atestam, certamente, uma gestão rigorosa das
fontes – como parodia U. Eco16, ao multiplicar os parênteses preenchidos com nomes de
autores e datas das obras – mas também procedimentos que permitem fazer economia
(GROSSMAN & RINCK, 2004; RINCK & BOCH, 2012). A rastreabilidade das
fontes e seu esgotamento são um erro: como, inalmente, determinar tudo aquilo
que inspira um pesquisador, de onde vem a terminologia que ele emprega, e onde
podemos encontrar ideias próximas ou similares em relação àquelas que ele enuncia?
Para os estudantes, as expectativas são confusas, pois ao mesmo tempo,
solicitamos a eles “citar as fontes”, no sentido de que é preciso relacionar os saberes aos
textos e a seus autores, mas também “não mais citar”, no sentido de que não é preciso
se contentar em fazer citações. A reformulação é valorizada (em relação à citação), pois
ela permite indicar as fontes em seu próprio nome, sem se contentar, portanto, em
copiar. No entanto, como nos mostrou uma investigação sobre suas representações
(RINCK, 2004), os estudantes destacam que “aquilo que está dito está bem dito”,
e “muito melhor dito”. Estes sentimentos enfatizam a diiculdade em se posicionar
como autor face aos autores lidos e sugerem o interesse pedagógico em trabalhar com
a escrita acadêmica, dissociando diferentes competências, como a seleção de fontes
pertinentes e a reformulação.
15
As suspeitas em relação à Wikipédia dizem respeito, em particular, a iabilidade dos conteúdos, porque o projeto enciclo-
pédico coloca em questão um modelo mais tradicional de autoria, mas também o fato de que, enquanto enciclopédia, ela
apresenta, pelas deinições, saberes enrijecidos e não pesquisas. Notemos que isso não a distingue quase nada dos discursos
didáticos com tendência dogmática, em que os saberes são apresentados de maneira informativa e factual. Uma epistemologia
social, fundamentada na ideia de que a legitimidade dos saberes depende das estruturas sociais que os produzem é chamada
a intervir em uma análise das relações entre saberes escolares, universitários, cientíico e do público geral.
16
In: Comment voyager avec un saumon , 1997, p. 117-118.

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Escrever a partir de fontes está longe de ser óbvio; como mostram numerosos
trabalhos sobre essas questões. As diiculdades dos estudantes dizem respeito,
indissociavelmente, ao controle do domínio de conhecimentos e o controle do ler-
escrever. Inserir uma citação, comentá-la, reformulá-la de maneira pertinente, e, nos
memoriais, em especial, discutir os autores lidos e se posicionar em um campo são
competências complexas (por exemplo, BOCH & GROSSMAN, 2001, HYLAND,
2002; KARA, 2004; RINCK & BOCH, 2012).
Se a cópia de um website sob a forma de um “simples clique” não permite,
nela mesma, apropriar-se de conhecimentos, isso não exclui considerar, no quadro
da formação na escrita, uma prática do copiar-colar fundamentada na exigência
de ler, de confrontar textos, de selecionar excertos, de agenciá-los, introduzi-los,
comentá-los à maneira como se faz na esfera literária, em que tais atividades de
escrita são julgadas criativas.

EXPECTATIVAS EMBARALHADAS
As diiculdades dos estudantes frente às fontes estão em compreendê-las em ligação
com suas representações confusas das expectativas universitárias, quanto aos aspectos
já evocados de restituição de saberes, de distância crítica, de relexão pessoal. Citaremos
aqui uma estudante que intervém em um fórum de discussão a propósito de uma
questão que fez algum barulho nas mídias, em torno da presença de “passagens inteiras”
de Wikipédia em uma obra recente de M. Houellebecq (2010). Como veremos, esta
estudante exprime, de maneira talvez desajeitada, como o foco na exigência de citar
suas fontes pode conduzir a um impasse.

De minha parte, iz meus estudos na Inglaterra. Durante meus estudos, e meu


memorial, era proibido utilizar a menor fonte sem citar em referência, sob pena
de plágio e de sanções ainda muito mais pesadas. E muito pior, era simplesmente
proibido pensar por si mesmo. Toda ideia que pudéssemos ter por nós próprios, se
era boa, necessariamente já tinha sido utilizada por um autor. Era preciso, então,
procurar um autor que tivesse pensado uma ideia similar, ou abrir um bom livro
aleatoriamente e tomar uma citação que se parecesse com a ideia que tínhamos por
nós mesmos. Penso que Houelbecq jamais sairia ileso na Inglaterra [...]17

A dimensão supostamente formadora do trabalho de escrita a partir de


fontes encontra-se, assim, comprometida pelas injunções consideradas uma a uma.
As expectativas universitárias, em torno especialmente da questão do copiar-colar,
chamam a atenção para a exigência de citar suas fontes e escondem o conjunto de
questões que isso coloca, e principalmente, as prioridades: a importância de se referir a
17
Fonte: blog Florent Gallaire. “Pour ma part qui est fait mes études en Angleterre. Lors de mes études et de mon mémoire,
il était interdit d’utiliser la moindre source sans la citer en référence, sous peine de plagiat et de sanctions bien plus lourdes
encore. Et même pire il était tout simplement interdit de penser par soi-même. Tout idée qu’on pouvait avoir soit même, si
elle était bonne était nécessairement déjà utilisé par un auteur. Il fallait alors chercher un auteur qui avait pensé à une idée
similaire, ou ouvrir un bouquin au pif et prendre une citation qui ressemble à l’idée qu’on avait soi même. Je pense que
Houelbecq ne s’en serait jamais sorti indemne en Angleterre”. […] Disponível em: <http://fgallaire.lrxt.nrt/goncourt-2010-
-creative-commons/> Acesso em: 20/02/2014.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 27


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fontes de qualidade e aos saberes existentes para desenvolver uma relexão aprofundada.
A observação da estudante aponta, além disso, a complexidade da questão das fontes,
que não são tanto fontes, mas “ideias” disponíveis no intertexto: “toda ideia que
pudéssemos ter por nós próprios [...] já foi necessariamente utilizada”.
Os estudantes encontram-se, assim, confrontados com uma expectativa
paradoxal da instituição, tomada entre a importância do saber disciplinar e aquela da
relexão pessoal e da construção de uma postura de autor. Finalmente, como resume
um deles: “solicitam-nos nosso ponto de vista, mas nosso ponto de vista não importa”.

CONCLUSÃO: QUAIS IMPLICAÇÕES PARA A


FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA?
O copiar-colar permite questionar a maneira pela qual uma geração se desenvolve,
herdando ferramentas materiais e intelectuais criadas por gerações anteriores, segundo
uma abordagem ao mesmo tempo cultural e cognitiva (TOMASELLO, 1999) e
sobre a apropriação dessa herança por meio de práticas de letramento “errantes”, na
“invenção do quotidiano”, para retomar os termos de M. de Certeau (1990) em sua
abordagem antropológica.
A universidade, como esfera de referência do campo dos letramentos ditos
universitários, renegocia permanentemente as práticas de letramento que ela institui
e constrói como ferramenta de formação intelectual – e de formação proissional,
atualmente. Ultrapassando a exigência de esclarecer as expectativas do lado dos
estudantes, podemos supor que as expectativas não são predeinidas e evoluem sob o
efeito, em especial, de objetos tal qual o copiar-colar, que é emblemático dos fenômenos
de aculturação no contexto do letramento avançado na era digital.
Se o fato de levantar o tabu do plágio, de denunciá-lo, detectá-lo, de sancioná-
lo, de atribuí-lo ao progresso tecnológico, julgado às vezes nefasto, está no centro
das preocupações, o copiar-colar merece ser considerado pelo que é, uma prática de
letramento das jovens gerações, na interface da leitura e da escrita. Seu interesse está
em ixar questões culturais ligadas à autoria e às fontes, em um contexto de profusão
da informação, sua circulação de um site para outro sob forma de cópias múltiplas, o
desenvolvimento de práticas de escrita colaborativas, interrogações sobre a iabilidade do
saber e sobre os riscos do relativismo. Nesse contexto, propor ultrapassar a lamentação
para ir em direção a uma relexão pedagógica sobre o copiar-colar é também interrogar
sobre o papel da universidade na sociedade do conhecimento.
No quadro de uma formação em letramento na universidade, o copiar-colar
pode permitir considerar, em suas relações, a formação na escrita e a formação na
informação, assim como um trabalho sobre objetos ligados à cultura digital, por
exemplo, os gêneros em uso na Web (o que escrever em uma página pessoal ou em
um wiki, ou formular uma opinião sobre um site de consumo, sob que forma se
apresentam os debates em fóruns de discussão, etc.?).

28 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Concretamente, nossas proposições pedagógicas são, de um lado, mobilizar o


copiar-colar como uma atividade que permite trabalhar sobre a leitura, a seleção de
fontes e a escrita a partir de fontes e favorecer a apropriação dos saberes. De outro,
o copiar colar não representa apenas um exercício de escrita; ele é também um bom
ponto de partida para favorecer o questionamento dos estudantes sobre aquilo que
entra em jogo por meio do ler-escrever e sobre os modos de produção e validação dos
saberes – a mesma questão chave para o estudante, o futuro proissional e o cidadão
na era do digital.

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32 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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O “RESUMO DE COMUNICAÇÃO” COMO OBJETO


DE ENSINO

“ABSTRACTS FOR SCIENTIFIC EVENTS” AS TEACHING OBJECT


Florencia Miranda1*

RESUMO: Este artigo se situa na linha do Interacionismo Sociodiscursivo (BRON-


CKART, 1997 e 2008, entre outros) e se debruça sobre um gênero acadêmico com
escassa trajetória de estudo: o “resumo de comunicação” para evento científico. O
objetivo principal do trabalho é observar aspectos relevantes desse gênero, a fim de
propor a sua introdução como objeto de ensino no âmbito universitário. Em pri-
meiro lugar, se apresentam algumas características fundamentais do gênero, organi-
zadas de acordo com a estrutura de um “modelo didático” preliminar (DE PIETRO
e SCHNEUWLY, 2003). Em segundo lugar, o ensino desse gênero é justificado e
problematizado a partir da observação de textos produzidos por alunos dos Cursos
de Português da Universidade Nacional de Rosario (Argentina). Finalmente, são
propostas algumas pistas de abordagem e estudo do gênero em questão, com o in-
tuito de identificar os eixos centrais para um possível planejamento de “sequências
didáticas” (SCHNEUWLY e DOLZ 2004).
Palavras-chave: resumo de comunicação; modelo didático de gênero; interacio-
nismo sociodiscursivo.
ABSTRACT: The theorical frame of this paper is the socio-discursive interactionism
(Bronckart, 1997 and 2008, among others), and it focuses on an academic genre with
sparse study: “abstract” presented to scientific meetings. The main objective is to ob-
serve relevant aspects of this genre, in order to propose its introduction as an object
of education at university level. Firstly, we present some basic characteristics of the
genre, organized in accordance with a preliminary “didactic model” structure (DE
PIETRO & SCHNEUWLY, 2003). Secondly, we defend and question the teaching
of this genre from the observation of texts produced by students of Portuguese courses
at the Universidad Nacional de Rosario (Argentina). Finally, some approach clues of
the genre in question are presented, in order to identify significant axis for a possible
“didactic sequences” planning (SCHNEUWLY & DOLZ 2004).
Keywords: abstract for scientific events ; didactic model of genre ; socio-discur-
sive interactionism.

1 *
Universidad Nacional de Rosario, Argentina. Doutora em Linguística (especialidade Teoria do Texto). Professora Titular
e Coordenadora da Licenciatura em Português. E-mail: lorenciamiranda71@gmail.com

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 33


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INTRODUÇÃO
No presente trabalho, proponho observar o “resumo de comunicação” como ob-
jeto de ensino-aprendizagem em contexto universitário. Vale notar que esse gênero
textual não recebe uma designação estável, sendo chamado também de “resumo de
trabalho para congresso”, “resumo de comunicação científica”, “resumo para eventos
científicos” ou, ainda, “abstract”, entre outras denominações (ver, por exemplo, Bo-
livar 1999a; Bolivar 1999b, Behling 2008 e Mendonça 2013). Mas a variedade de
nomes – que, contudo, sempre mantém a ideia de “resumo” – designa um gênero com
bastante estabilidade semiolinguística e com muita presença social, mesmo que em
âmbito limitado.
O resumo de comunicação se vincula plena e exclusivamente à atividade acadêmi-
ca. De modo que se trata de um gênero que apenas é conhecido e experimentado por
quem tem alguma relação próxima com as práticas desse âmbito (como membro ativo
ou observador: estudante, professor, pesquisador, cientista, etc.). Produzir tal espécie
de resumos é uma prática de linguagem que atravessa a vida de todos os “acadêmicos”
– inclusive, em certos casos, desde muito cedo na carreira (ainda como estudantes da
graduação). Todavia, o “resumo de comunicação” é o gênero acadêmico menos estu-
dado e, por isso, menos conhecido. Ao mesmo tempo, é um gênero que quase nunca
é escolhido como objeto de ensino nos cursos universitários – onde se preferem outros
como a resenha ou o artigo científico.
Neste trabalho, defendo a necessidade de tomar o “resumo de comunicação”
como objeto de ensino nos cursos universitários, porque, embora aparente simplicida-
de (por causa da extensão, por exemplo), é um gênero que envolve procedimentos de
produção e mecanismos linguístico-discursivos complexos. Nas páginas que se seguem
apresentarei algumas das características próprias do gênero que podem constituir di-
mensões relevantes para o ensino e apontarei possíveis linhas de exploração didática.
Em termos teóricos, situo minha reflexão no quadro do Interacionismo Socio-
discursivo (BRONCKART, 1997, 2008, entre outros) e em termos empíricos – ou
de intervenção – me baseio em ações realizadas na Universidad Nacional de Rosario
(UNR), Argentina. Especificamente, a caracterização do gênero que mostrarei a seguir
se fundamenta em dados de uma pesquisa desenvolvida entre 2009 e 2012. Tratou-se
de um estudo comparativo do gênero resumo de comunicação produzido em quatro
línguas diferentes (espanhol, inglês, francês e português). Os dados que aproveitarei
no presente artigo são os que correspondem à análise do subcorpus de textos em por-
tuguês brasileiro. Convém esclarecer que tomarei especificamente o caso dos resumos
vinculados à área das ciências da linguagem e ensino de línguas2. No que diz respeito
ao ensino do gênero, e com o objetivo de problematizar, retomo aqui alguns exemplos
de textos produzidos por estudantes da Licenciatura em Português (língua estrangeira)
2
Essa observação é importante porque os resumos apresentam diferenças signiicativas em função das áreas acadêmicas e
cientíicas (sobre essas diferenças ver Bolívar, 1999a).

34 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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e do Curso de Tradução (português/espanhol) da mesma Universidade, onde se propõe


abordar o estudo do gênero em questão na disciplina “Língua e Gramática Portuguesa
IV”, correspondente ao último ano dos cursos. Apesar da singularidade da situação
de ensino observada, acredito que as considerações apresentadas quanto à didatização
do gênero poderão ser reutilizadas também para outras situações de ensino diferentes.

UM MODELO DIDÁTICO DO “RESUMO DE


COMUNICAÇÃO”: CARACTERÍSTICAS GLOBAIS
Tal como se assume na vertente didática do Interacionismo Sociodiscursivo, para
iniciar qualquer abordagem didática de determinado gênero textual, é preciso partir
de um “modelo didático” (DE PIETRO e SCHNEUWLY, 2003). Os “modelos di-
dáticos” são descrições ou caracterizações dos gêneros elaboradas especificamente para
subsidiar a produção de atividades de ensino. De modo que se trata de uma enumera-
ção (sempre incompleta e aproximativa) de traços próprios do gênero proposto como
objeto de ensino3.
Para a elaboração dos modelos, são consideradas quatro fontes: 1) as práticas so-
ciais de referência; 2) os estudos teóricos e descritivos existentes sobre o gênero; 3) as
práticas de linguagem dos alunos; 4) as práticas escolares. Como indicam De Pietro e
Schneuwly (2003, p. 39), “as duas primeiras fontes asseguram a legitimidade do mo-
delo, enquanto as duas últimas garantem sua pertinência”.
Dado que o resumo de comunicação é um gênero com escassa trajetória de estudo
e ensino, qualquer modelo será, por enquanto, aproximativo e provisório. Em traba-
lhos anteriores (por exemplo, Miranda, 2013, 2014b e 2014c) mostrei algumas das
características mais significativas até agora identificadas. No presente artigo, mais cen-
trado na questão do ensino do que na construção do modelo, retomo apenas aspectos
que constituem eixos incontornáveis de qualquer trabalho didático com os resumos.
De acordo com De Pietro e Schneuwly (2003), e na base do modelo de produ-
ção de linguagem desenvolvido no Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART
et al. 1985, BRONCKART 1997 e 2008, entre outros), o “modelo didático” tem
uma estrutura com cinco componentes: 1) Definição geral do gênero; 2) Parâmetros
do contexto comunicativo; 3) Conteúdos específicos; 4) Estrutura textual global; 5)
Operações de linguagem e suas marcas linguísticas. A seguir, sintetizo alguns aspectos
centrais de cada componente4.

3
Sobre o problema da elaboração dos modelos, ver Miranda (2014a) e para uma apresentação em português da teoria dos
modelos didáticos, Miranda (2014b).
4
Para uma apresentação mais detalhada em português, ver Miranda (2014b).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 35


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1. Definição geral do gênero


Um “resumo de comunicação” é um texto associado à atividade acadêmica e tem
duas funções principais, temporalmente sucessivas: primeiro, submeter uma proposta
para avaliação de um comitê, a fim de participar em evento científico (congresso, jor-
nada, encontro, etc.) e depois, se aprovado, informar aos assistentes do evento sobre o
conteúdo da comunicação que será apresentada.
2. Parâmetros do contexto comunicativo
A produção do texto se caracteriza por partir de um vínculo intertextual consti-
tutivo com um texto anterior chamado de “convocatória” ou “circular”5. Esse texto
anterior define toda a estruturação do texto.
O resumo pode ser produzido individualmente ou em coautoria (sendo que a quan-
tidade limite de coautores poderá estar definida na “circular”). É um texto dirigido a dois
destinatários: avaliadores, primeiro, e público assistente ao evento, depois. Quem escreve
assume um papel enunciativo específico (professor, pesquisador, estudante de graduação
ou de pós-graduação, especialista em uma área de conhecimento, etc. Ou uma combi-
nação de vários papéis: professor-pesquisador, estudante de pos-graduação e professor
de ensino fundamental, pesquisador-especialista, etc.). O objetivo de escrita é ser aceito
para participar do evento e apresentar uma proposta de comunicação que deve ser com-
preensível para leitores especializados ou não no tema particular da comunicação.
Para a produção do texto, o conhecimento da circular é fundamental, porque ela
define parâmetros básicos do resumo que poderão ser considerados na seleção/avalia-
ção dos textos. Vejamos o seguinte exemplo:

MODALIDADES DE INSCRIÇÃO
Simpósios temáticos
• A coordenação de Simpósios Temáticos ica restrita a no máximo três professores
doutores ou a um professor mestre em parceria com outros professores doutores,
preferencialmente de diferentes IES.
• A apresentação de comunicação oral em Simpósios Temáticos destina-se a doutores,
mestres e alunos de pós-graduação (stricto sensu).
• […]
• Para a aprovação dos Simpósios Temáticos, os professores coordenadores deverão
submeter um resumo da proposta pelo formulário de inscrição no site seguindo os
critérios abaixo:
• O resumo apresentado deve deixar claros os objetivos do Simpósio Temático no sentido
de apresentar seu quadro teórico-metodológico e/ou seu objeto de estudo;
• […]
• O resumo deve ter no mínimo 200 e no máximo 400 palavras e até 5 palavras–chave.
• Os Simpósios Temáticos propostos serão avaliados pela Comissão Cientíica do IV CIELLA
e, uma vez aprovados, integrarão a programação do evento.

5
Sobre a noção de “intertextualidade constitutiva”, ver Miranda (2006) e (2010).

36 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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• Uma vez aceita a proposta, serão abertas as inscrições de comunicações orais nos
• Simpósios Temáticos.
• Cabe aos coordenadores dos Simpósios Temáticos:
• A seleção dos trabalhos submetidos aos Simpósios Temáticos;
• A distribuição das comunicações orais (…)
• As apresentações das comunicações serão de 20 minutos e haverá, ao inal da sessão, 30
minutos para discussão.
• Os resumos das comunicações deverão conter de 150 a 300 palavras com 3 palavras-chave.
Relato de experiência
• Destina-se a pesquisadores, proissionais de diversas áreas e educadores do Ensino
Básico. Cada trabalho poderá ser proposto por no máximo três autores;
• Esses proissionais poderão apresentar Relatos de Experiências de trabalho em torno
das temáticas do Congresso. O objetivo dessas sessões é o de discutir problemas no
andamento de pesquisas ou no encaminhamento de propostas de intervenção e de
partilhar soluções experimentadas ou sucessos obtidos. Cada relator terá 10 minutos
para apresentar sua experiência e haverá 10 minutos para discussão.
• […]
• Os resumos dos relatos de experiência deverão conter de 150 a 300 palavras e 3
palavras-chave;
Pôster/Painel
• Destina-se exclusivamente a alunos de graduação formalmente vinculados a projetos de
pesquisa, ensino e extensão (bolsistas ou voluntários), com plano de trabalho em execução.
• Tamanho do pôster: largura: 80 cm, altura: 120 cm.
• O título do trabalho no pôster deve ser idêntico ao título do resumo submetido. Os
resumos dos pôsteres deverão conter de 150 a 300 palavras e 3 palavras-chave;
• No corpo do texto deverão constar, obrigatoriamente, objetivos, fundamentação teórica
e metodológica, resultados e referências bibliográicas.
• […]
Exemplo (1) – Fonte: < http://www.4ciella.com.br/index.php#modalidades>.

Neste caso, o interessante é que se diferenciam modalidades de participação no


evento associadas a papéis sócio-subjetivos distintos e, ainda, a conteúdos diversifica-
dos em cada classe de resumo (resumo para simpósio, resumo para comunicação em
simpósio, resumo de relato de experiência e resumo de pôster), apesar de todos os re-
sumos deverem ter o mesmo tamanho (entre 150 e 300 palavras e três palavras-chave).

CONTEÚDOS ESPECÍFICOS
O conteúdo do resumo é definido pela temática geral do evento e, se houver, pe-
los eixos temáticos mencionados na circular. Esse conteúdo deve ter ligação com o(s)
tema(s) do evento, mas ao mesmo tempo, deve ser suficientemente singular e original
para resultar interessante e pertinente para os avaliadores.
Os resumos são geralmente explícitos, evitando ambiguidades e formulações de-
masiadamente gerais. As afirmações devem ser demonstráveis (ou poder ser demons-

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 37


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tradas) mediante procedimentos próprios da linguagem acadêmica (citações de au-


tores reconhecidos, breves exemplificações, referências a estudos prévios próprios e
alheios, etc.).

ESTRUTURA TEXTUAL GLOBAL


A estrutura global ou “plano de texto” (ADAM, 1999, 2004, 2008) do resumo
tem convencionalmente, e, em geral, as seguintes seções:
• título
• nome do autor
• instituição
• endereço eletrônico
• palavras-chave
• corpo do texto

Algumas das seções são opcionais e dependem das instruções que a comissão or-
ganizadora do evento coloca na circular. Por exemplo, as palavras-chave podem não ser
solicitadas. Também há eventos que pedem outros elementos menos frequentes, tais
como referências bibliográficas.
Vale mencionar que os títulos dos resumos têm como principal objetivo apresen-
tar, identificar e sintetizar claramente o conteúdo temático global da comunicação.
Aliás, se as propostas forem aceitas, estes serão os títulos das comunicações posteriores.
Nesse sentido, o título do resumo tem grande importância porque, uma vez colocado
na programação, funcionará como elemento de captação dos possíveis interessados
em assistir à comunicação. Por isso, os títulos costumam ser descritivos e denotativos,
evitando o emprego de metáforas ou expressões ambíguas. Vejamos os seguintes exem-
plos, que são títulos de um mesmo evento sobre o estudo de gêneros textuais:
• “A contribuição da teoria da atividade de Leontiev para a apropriação de gê-
neros textuais nas séries iniciais”
• “O uso do gênero depoimento oral no processo de formação de professores”
• “Sobre os saberes dos manos e minas: analisando produtos midiáticos da cul-
tura hip hop e discutindo sua possível incorporação como objetos de ensino
na escola”
• “A modalização no gênero “manual de aviação”: considerações para elabora-
ção de material instrucional”
• “Ensino de língua portuguesa na universidade: o uso de contos populares
para a prática do gênero petição inicial”

É verdade que alguns títulos podem ser mais amplos, ambíguos ou até certo ponto

38 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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“misteriosos”, mas nos títulos há sempre algum indício temático ou problemático que
situa o eixo de estudo ou reflexão proposto no trabalho. Vejamos os seguintes exemplos:
• “Cartas que ensinam a ler”
• “Imagens que inventam o gênero poesia”
• “Pôster acadêmico ou comunicação oral?”

Nos exemplos não se sintetiza completamente o foco dos trabalhos e, por isso,
criam certo “mistério”. Porém, em cada caso, conseguimos situar com bastante expli-
citação o gênero (objeto temático do evento) sobre o qual cada trabalho se debruça:
cartas, poesia, pôster acadêmico/comunicação oral. Mais ainda, no primeiro caso, po-
demos inferir que se trata de um trabalho acerca do emprego de cartas para o ensino
da leitura e, no último exemplo, podemos reconhecer uma intencionalidade proble-
matizante ou questionadora, por causa do emprego da frase optativa e interrogativa.
Já no corpo do texto a estruturação interna pode variar, dependendo do grau de
explicitação que se verifique na circular. Vejamos a seguir duas circulares e resumos de
dois eventos diferentes:

Instruções para resumos

• O texto do resumo, com o mínimo de 300 (trezentas) e o máximo de 400 (quatrocentas)


palavras, deverá conter, pelo menos, objetivos e quadro teórico-metodológico do
trabalho.
• NÃO colocar o título do trabalho nem nome(s) de autor(es) no campo destinado ao texto
do resumo. Há campo apropriado para cada um desses itens.
• Redigir os títulos e os resumos somente em língua portuguesa.
• NÃO utilizar no título e no texto do resumo fonte fonética de qualquer origem;
• NÃO serão submetidos à avaliação resumos fora das normas.
• Preencher com atenção os campos ÁREA DO TRABALHO e PALAVRAS-CHAVE. Essas são
informações importantes que orientam o envio de resumos para os pareceristas do
Comitê Cientíico e a distribuição dos trabalhos na programação do evento.
• Menção a apoio de agência de fomento, quando for o caso, deve vir ao inal do resumo,
entre parênteses, sem referência ao(s) nome(s) do(s) autor(es). Exemplo: (Apoio: FAPESP
- Processo 0000-000000-0).
Exemplo (2) – Fonte: http://www.gel.org.br/instrucoesParaResumos.php

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 39


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Título Construindo sentidos sobre a rede eletrônica e livro didático

Nome do autor Jacqueline Meireles Ronconi

Corpo do texto
O objetivo dessa pesquisa é investigar como está sendo
construído o ensino de língua portuguesa nos livros
didáticos, considerando a recorrência dos textos da rede
Objetivo eletrônica, neste material, ou seja, buscamos investigar, quais
são os desdobramentos discursivos e interdiscursivos que
permeiam os livros didáticos ao citar um sítio da internet
como referência ou fonte de pesquisa para o ensino da língua.
Nesta pesquisa, fundamentamo-nos nos postulados teórico-
metodológicos da Análise de Discurso pecheutiana e nos
estudos sobre o discurso na rede eletrônica segundo Romão
(2006, 2005) e Dias (2008, 2010). O caminho metodológico
percorrido envolveu uma pesquisa de campo que foi
realizada em quatro escolas diferentes, com dez diferentes
Quadro teórico-
livros didáticos de Língua Portuguesa, usados nos cinco
metodológico do trabalho. primeiros anos do ensino fundamental. É válido dizer que
estas escolas são duas estaduais e duas municipais, que
compreendem o Ensino Fundamental I. Diante de alguns
resultados que colhemos deste trabalho destacamos que
os livros didáticos pouco utilizam do discurso polêmico para
realizar seu trabalho de interpretação.
Percebemos que na rede eletrônica o discurso produzido
fornece ao sujeito a ilusão do tudo poder dizer, sentidos
contrários aos do livro didático, no qual os sentidos
produzidos circulam como se pudessem ser duros, lineares,
únicos e transparentes. É importante destacar que existe, na
instituição e nos LD, o ato de interdição, uma vez que não
é permitido aos sujeitos-escolares (que ocupam a posição
de aluno e de professor) questionar, duvidar do que lêem,
tampouco, atribuírem sentidos sobre os discursos presentes
Considerações a partir dos em seu cotidiano escolar, assim, o LD representa a legitimação
resultados obtidos do saber (Pacífico, 2007), e trabalha segundo uma concepção
positivista de que a língua (falada e escrita, especialmente
esta modalidade) tem sentido único e verdadeiro. Desta
maneira, entendemos que como professores-pesquisadores
precisamos ocupar a posição de um sujeito capaz de
estranhar o que o LD muitas vezes coloca, como certo
definitivo e inquestionável. Afinal a linguagem não é única
e definitiva, ela está sujeita a falhas e entender isso é um
movimento importante para interpretar e enxergar outras
possibilidades no âmbito social e escolar.
Exemplo (3) – Fonte: http://www.gel.org.br/ProgramacaoFinal2014.php

40 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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No exemplo (3), que se produz respondendo às instruções do exemplo (2), o texto


explicita o objetivo geral, o quadro teórico e metodológico (que são os dados mínimos
solicitados) e inclui algumas considerações elaboradas a partir dos resultados obtidos
no estudo.
Nos seguintes exemplos, por sua vez, veremos uma circular – texto (4) – que
inclui maior grau de detalhamento do conteúdo previsto no corpo do texto e uma
realização desses elementos – exemplo (5).

Normas para Elaboração e Submissão de Resumos - IV CLAFPL:

a. Os resumos deverão conter no mínimo 200 palavras e, no máximo, 300 palavras.


b. Os autores não deverão se identiicar no corpo do texto para que o processo de avaliação
não seja comprometido. Incluir até três palavras-chave.
c. Os resumos devem conter as seguintes partes:
• contextualização
• objetivos
• revisão da literatura
• metodologia
• resultados
• conclusão
Exemplo (4) – Fonte: http://pgla.unb.br/ivclafpl/images/programacao/1a%20circularclafpl2012janversaoinal.pdf

AUTOBIOGRAFIAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE


Título
LÍNGUA ESTRANGEIRA: UMA ANÁLISE DE TRANSITIVIDADE

Dados do autor Cristiane Rosa Lopes (Universidade Estadual de Goiás)

Corpo do texto:
Como orientadora de estágio supervisionado de língua
inglesa numa universidade pública no estado de Goiás, tenho
constatado que muitos/as alunos/as-professores/as têm
Contextualização dificuldade no desenvolvimento de reflexões críticas durante
atividades propostas por esse componente curricular. Falta-
lhes uma compreensão mais ampla de conceitos teóricos que
fundamentam o processo de ensino-aprendizagem de uma LE.
Segundo Vieira Abrahão (2004), muitos/as alunos/as interpretam
esses conceitos à luz de crenças sobre o ensino-aprendizagem
Revisão da literatura (1)
de LE, algumas vezes equivocadas, que trouxeram para a
(problema) licenciatura em Letras. Essas crenças operam como filtros de
insumo, que influenciam a construção da prática docente.
Neste contexto, este trabalho teve por objetivo analisar o
uso da transitividade de narrativas autobiográficas como
Objetivos
uma estratégia para ajudar os/as alunos/as-professores/as na
identificação de suas próprias crenças.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 41


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Para o embasamento, são utilizados os seguintes suportes


teóricos: pesquisa narrativa no ensino-aprendizagem e na
formação do/a professor/a de LE (PAIVA, 2007; BARCELOS e
PAIVA, 2008; ROMERO, 2010; SILVA, 2010 etc); crenças sobre
Revisão da literatura (2)
aprendizagem de línguas de alunos/as e professores/as de LE
(BARCELOS, 2004; 2006; VIEIRA ABRAHÃO, 2006 etc); o sistema
de transitividade da Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY,
1994; EGGINS, 2004; HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004 etc).
É um relato de uma experiência, que foi realizada com 17 alunos/
as-professores/as, que consistiu na análise linguística de suas
próprias autobiografias, e também de atividades e discussões
realizadas nas aulas de orientação para o estágio de língua
inglesa. A análise da transitividade possibilitou o mapeamento
Metodologia do modo como os/as alunos/as-professores/as representaram
discursivamente suas experiências de aprendizagem de LE. Ou
seja, quais foram os/as participantes e os papéis atribuídos a
eles/elas, quais processos foram escolhidos para representar
os acontecimentos da sala de aula de LE e quais circunstâncias
foram vinculadas a esses processos.
Os resultados indicam que a análise da transitividade de
autobiografias pode ajudar alunos/as-professores/as na
Resultados / Conclusão identificação de suas próprias crenças, o que favorece o
desenvolvimento de reflexões críticas.
Palavras-chave: transitividade; autobiografias; crenças
Exemplo (5). Fonte: http://pgla.unb.br/ivclafpl/images/programacao/1a%20
circularclafpl2012janversaoinal.pdf

5. Operações de linguagem e suas marcas linguísticas


Os resumos podem recorrer a diferentes “formatos discursivos”: a exposição, o
relato e o (micro) projeto (MIRANDA, 2014b). Cada um dos “formatos” se iden-
tifica principalmente pelo emprego dos tempos verbais: na exposição, predomina o
presente; no relato, o pretérito; no microprojeto, o futuro. É evidente que um mesmo
resumo pode apresentar apenas um desses formatos ou combinar dois (ou até os três)
formatos. Assim, no exemplo (3), domina a exposição, enquanto no caso (5) o texto
oscila entre a exposição e o relato. Já o exemplo (6), apresentado abaixo, mostra uma
organização que começa com a exposição, passa para o relato e fecha com uma micro-
projeto sobre o que se prevê realizar na comunicação.

42 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Uso dos gêneros textuais no ensino fundamental: ainda um desafio para os professores
Erivaldo Pereira do Nascimento - UFPB
O presente trabalho se propõe relatar e analisar uma experiência de formação continuada,
fundamentada em seqüência didática com gêneros textuais, para professores de Língua
Portuguesa, do Ensino Fundamental, no Município de João Pessoa-PB. O projeto de formação
tinha como metas apresentar os fundamentos da concepção sociointeracionista da
linguagem, estabelecendo uma correlação com as diretrizes educacionais propostas pelos
PCN, orientar e elaborar cooperativamente procedimentos metodológicos em conformidade
com a nova orientação, sobretudo no trabalho com gêneros textuais. O projeto teve como
embasamento a Teoria Enunciativo-Discursiva de Bakhtin (1992) e as orientações teóricas
do grupo de Genebra (Bronckart (1999), Schneuwly (1994, 1997), Schneuwly e Dolz (2001,
2004)). O grupo defende que o gênero apresenta-se como um elemento de ligação entre as
práticas sociais e os objetos escolares, especialmente no domínio do ensino da produção
de textos orais e escritos. A experiência foi realizada durante todo o ano de 2008, aten-
dendo a aproximadamente 150 professores da rede municipal, assistidos por 10 professores
da UFPB, UEPB e CEFET-PB. O trabalho foi operacionalizado por meio de formação teórica,
elaboração e análise de recursos didáticos como planos de aula e seqüências didáticas por
cada professor e sua devida aplicação em sala de aula. Nesta comunicação, apresentaremos
uma análise do trabalho desenvolvido, sobretudo das principais dificuldades apresentadas
pelos professores em formação no trabalho com os gêneros textuais, na perspectiva adotada,
utilizando como corpus os relatórios de acompanhamento dos professores formadores.
Exemplo (6). Fonte:Caderno de Resumos do V SIGET (Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais)

É extremamente interessante notar que para a publicação do trabalho nos Anais


do evento6 (o que se realiza depois de o congresso terminar), este resumo reproduzido
no exemplo (6) foi alterado ligeiramente no segmento de “microprojeto” (“Nesta co-
municação, apresentaremos uma análise…”). Vejamos a retextualização do último seg-
mento, que inclui substituições importantes, tais como o emprego do tempo presente
no lugar do futuro:
“(…) Neste trabalho, apresentamos uma análise da experiência realizada, sobretudo
das principais diiculdades apresentadas pelos professores em formação no trabalho
com os gêneros textuais, na perspectiva adotada, utilizando como corpus os relatórios
de acompanhamento dos professores formadores.”

Por outro lado, importa observar que os resumos recorrem ao emprego de léxico
especializado e de terminologia específica (situada em um quadro teórico e/ou clara-
mente definida no próprio resumo).
Além dos elementos da organização linguístico-discursiva (verbos e léxico), obser-
va-se o emprego recorrente de diversos organizadores textuais para sinalizar as partes
do corpo do texto. Só para oferecer exemplo rápido, cabe notar que a expressão “para
tanto” ocorre com muita frequência com o papel de segmentação/ligação de diversas
6
Texto disponível em: <http://www.ucs.br/ucs/tplSiget/extensao/agenda/eventos/ vsiget/ portugues/anais/textos_autor/
arquivos/uso_dos_generos_textuais_no_ensino_fundamental_ainda_um_desaio_para_os_professores.pdf. >.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 43


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seções do corpo do texto. Igualmente se recorre a elementos de natureza não verbal,


tal como a numeração (1, 2, 3…).

O ENSINO DOS “RESUMOS”: EXPLORANDO


RAZÕES E PROBLEMAS
A exigência de concisão é uma dificuldade na escrita. Os estudantes costumam
dizer que consideram difícil escrever trabalhos extensos, mas nos trabalhos que exi-
gem capacidade de síntese, verificam-se frequentemente grandes inconsistências. Com
pouco espaço disponível para a escrita, é preciso selecionar os conteúdos com extremo
cuidado, hierarquizar claramente a informação, evitar redundâncias desnecessárias ou
lacunas excessivas, dominar procedimentos de síntese e mecanismos de retomada de
informação, etc.
Em tamanho, o resumo de comunicação é o “menor” gênero acadêmico autôno-
mo . De fato, embora o nome “resumo” possa levar a pensar que se trata de um texto
7

que deriva necessariamente de um texto anterior, o “resumo de comunicação” não


depende da existência prévia de uma comunicação ou artigo (como acontece, sim,
com o abstract ou os resumos de dissertações e teses, por exemplo). Nesse sentido, a
produção de resumos de comunicação é mais próxima da elaboração de projetos e de
relatórios de pesquisa.
Mas além da dificuldade que implica construir o breve projeto, exposição ou re-
lato em termos de organização dos conteúdos, a produção do gênero é extremamente
complexa porque exige, também, – e como qualquer gênero submetido à avaliação
– demonstrar conhecimentos. Concisão e demonstração constituem, portanto, dois
traços particulares que fazem deste gênero um objeto de ensino de grande interesse
para o contexto universitário.
Como já mencionei, a produção dos resumos faz parte da vida acadêmica desde
muito cedo e acompanha grande parte das atividades de divulgação/socialização dos
pesquisadores, professores e outros profissionais. Todavia, esse gênero é absolutamente
desconhecido para quem vai chegando ao âmbito acadêmico. Assim, confrontados
pela primeira vez com um resumo de comunicação, os estudantes universitários não
conseguem identificar o gênero do texto em questão8. Além disso, quando se propõe
uma primeira produção de um resumo, os problemas que surgem em primeiro plano
têm a ver com o desconhecimento da própria prática acadêmica dos eventos (a organi-
zação, as comissões, etc.) e a função ou papel dos resumos nessa prática.
7
Outro gênero acadêmico “pequeno” é o resumo de artigo (ou abstract), mas é dependente de outro gênero maior (o artigo)
ao qual se integra. Por outro lado, é verdade que há outro gênero que é efetivamente autônomo e faz parte da vida acadêmica:
a biodata, mas sua produção implica problemas de escrita diferentes aos tratados no presente artigo, por causa do tipo de
conteúdo (de caráter descritivo rudimentar e limitado à área semântica dos dados pessoais/proissionais) e das particulares
condições de produção/circulação.
8
Baseio esta airmação em testes realizados com estudantes da Licenciatura em Português (língua estrangeira) da Universidad
Nacional de Rosario, Argentina.

44 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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A seguir, apresento quatro resumos produzidos por estudantes da Universidad


Nacional de Rosario – dois da Licenciatura em Português e dois do Curso de Tradu-
ção (português/espanhol) –, na disciplina “Língua e gramática portuguesa IV”. Nos
quatro casos, o conteúdo temático é ficcional – já que não se trata de pesquisas reais
–, porém, nos últimos dois exemplos os estudantes concretizaram as “comunicações”
(realizando antes disso os estudos que propunham) em situação simulada durante uma
avaliação parcial da disciplina.
Igualmente, é importante mencionar que estas produções foram realizadas depois
de o aluno ter algum contato com textos do gênero resumo. De maneira que não se
trata de um grau de produção “zero”, mas de uma “produção inicial”, que conta com
algumas reflexões prévias sobre o gênero.
Embora, como se verá, em todos os textos possamos encontrar erros daqueles
tradicionalmente considerados “de língua” (ortográficos, de concordância, de escolha
lexical, de interferência com a língua espanhola, etc.), o que me interessa observar no
âmbito do presente artigo são algumas fragilidades dos textos em relação ao domínio
do gênero9 e apenas mencionarei poucos problemas de escrita gerais ou transversais.

Cultura portuguesa desde o berço


Nossa proposta é trabalhar a cultura em língua portuguesa gerada através do ensino-
aprendizagem de português como língua estrangeira com crianças a partir do nascimento
até os 5 anos de idade. Acreditamos poder falar numa subcultura na infância dos indivíduos
onde o mundo é visto desde outro lugar e a interação com esse mundo se da através de
uma língua – diferente, na igualdade – da dos adultos. Sabemos que há narrativas infantis
dedicadas a este público – as crianças – muitas vezes deixado de lado, ou que gera pouco
interesse geral e o que nos propomos é trabalhar sobre este assunto e deslindar dele,
possíveis hipótese que detalhamos no desenvolvimento desta proposta.
Trabalharemos com a teoria da Gramática Universal de Chomsky, principalmente, mas
também abordaremos teorias de estimulação precoce, teorias da mente e intersubjetividade,
teorias de filiação, teorias sobre o amor, etc. como fatores importantíssimos que influem
sobre a vida das crianças.
Sabemos que antes do primeiro ano de vida, as crianças começam com as suas primeiras
palavras. Acreditamos que, no mesmo momento onde se inicia este processo de produção
na língua materna, pode se iniciar complementariamente um segundo processo de
produção de língua estrangeira.
Nosso objetivo será tentar analisar em que momento se realiza a aprendizagem da segunda
língua, como é captada, como é reelaborada, reproduzida, como é compreendida, falada,
em que situações, diante de que fatos, etc.
A metodologia do trabalho será abordada através da experiência pessoal dos autores no
ensino de português como língua estrangeira.
Exemplo (7) – Texto de estudante A (Curso formação de professores PLE)

9
Mantenho a redação original dos textos (sem correções). Só eliminei os nomes de autores, e-mail e dados institucionais
que faziam parte das produções dos estudantes e alterei a tipograia (para uniformizar, no contexto do presente trabalho).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 45


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Dentre os vários problemas que se podem identificar no exemplo (7), há difi-


culdades específicas da escrita de um resumo, outras que são de desconhecimento da
prática de apresentação de trabalhos em congressos ou da realização de estudos cien-
tíficos e, também, como mencionei, alguns problemas gerais de escrita (que não são
exclusivos do desconhecimento desse gênero em particular). Eis as questões principais:
a. Problemas especíicos de escrita do resumo:
• Proposta de um título demasiado amplo e, portanto, vago e impreciso;
• Formulação confusa do objeto de estudo (“Nossa proposta é trabalhar a cultura
em língua portuguesa…”);
• Formulação do objetivo como “tentativa” (“Nosso objetivo será tentar analisar…”);
• Presença abundante de afirmações sem sustento ou demonstração. Por exem-
plo: “Acreditamos poder falar numa subcultura na infância dos indivíduos”;“…
este público – as crianças – muitas vezes deixado de lado, ou que gera pouco inte-
resse geral…”; “antes do primeiro ano de vida, as crianças começam com as suas
primeiras palavras”;
• Emprego inadequado de termos próprios do campo acadêmico (como “tra-
balhar” ou “abordar” nas seguintes frases: “Trabalharemos com a teoria…”;
“também abordaremos teorias de…”);
• Pouca transparência em relação ao enunciador que escreve: um pesquisador?
Um professor-pesquisador? Um estudante?... Ocorrem expressões que, apa-
rentando assumir um papel enunciativo singular, reforçam a confusão de pa-
péis: “experiência pessoal dos autores” (de que autores se fala?) e “os colegas
da área pedagógica” (esses colegas estariam no mesmo plano que o enunciador
ou ele se distancia como pesquisador que fornece dados para “colegas” de uma
outra área?);

b. Problemas de desconhecimento da prática de apresentação de trabalhos em


congressos ou da realização de estudos:
• Proposta de um objetivo demasiado ambicioso e irrealizável;
• Ausência de explicitação de uma metodologia de trabalho (já que o que se
menciona como “metodologia” não corresponde a procedimentos de estudo);
• Inadequação ou imprecisão do quadro teórico selecionado (“Trabalharemos
com a teoria da Gramática Universal de Chomsky, principalmente, mas também
abordaremos teorias de estimulação precoce, teorias da mente e intersubjetividade,
teorias de filiação, teorias sobre o amor, etc.”).

c. Problemas gerais de escrita (não exclusivos do desconhecimento do gênero):


• Redundâncias (“há narrativas infantis dedicadas a este público – as crianças...”)
e reiterações (“sabemos que”, “acreditamos que”…);
• Erros na cadeia referencial (por exemplo, em “a verificação desta hipótese”,
sendo que a hipótese de trabalho se encontra três parágrafos acima. Ou o

46 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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emprego incorreto do locativo “onde” em: “no mesmo momento onde se inicia
este processo”);
• Emprego excessivo das construções subordinadas.

Sendo resumos simulados e ficcionais, não estranha a presença abundante de ex-


pressões de caráter geral e referência ambígua. Neste sentido, uma estratégia interes-
sante é a que se emprega no exemplo (8), em que aparece uma referência bibliográfica
ficcional: “a teoria de Mollinari (1998 e 2000)”. Mas o problema, no exemplo, é a
escolha do termo “empregar” em relação ao quadro teórico: “a teoria de Mollinari
(1998 e 2000) foi empregada para…”. Esse não seria um termo adequado, já que uma
teoria não se “emprega” (se retoma, se aplica, se assume…), o que isso demonstra é
simplesmente a falta de experiência da estudante em relação à prática de pesquisa e de
escrita acadêmica.

Tradução Humana vs. Tradução Automática


O objetivo do presente trabalho consiste em analisar o papel da língua durante o processo
de tradução a partir de traduções feitas por meio de software de tradução automática ou
MT (Machine Translation). No âmbito de trabalho, muitos são os tradutores que rejeitam
trabalhar com ferramentas de tradução automática, já que desmerecem ou substituem o
trabalho do tradutor. Contudo, existe uma considerável maioria de pessoas que defendem
o uso dessas ferramentas, pois incrementam notavelmente a produção de trabalho por dia.
Apesar dessas duas irreconciliáveis posições, esta pesquisa feita durante três anos tenta
demonstrar que os textos traduzidos por ferramentas de tradução automática não
incrementam a produtividade nem a qualidade de uma tradução, como é considerado
pelas grandes empresas.
A pesquisa feita em Brasil, Argentina, Alemanha, EUA e Irlanda entre 2010 e 2012 consistiu
em cotejar traduções realizadas por humanos com traduções feitas com as melhores
ferramentas automáticas de tradução. Os textos escolhidos foram textos técnicos e de
marketing, e a extensão de cada texto foi entre 10 000 e 50 000 palavras. Com respeito
aos elementos analisados nos textos, a teoria de Mollinari (1998 e 2000) foi empregada
para salientar os traços semelhantes e divergentes entre uma tradução automática e uma
tradução humana.
Paralelamente, o resultado deste trabalho vai permitir refletir sobre o mito da alta
produtividade a partir de traduções feitas automaticamente, o que abrirá novos debates
sobre o assunto.
Exemplo (8) – Texto de estudante B (Curso de formação de tradutores português/espanhol)

Neste segundo exemplo de estudantes há também a escolha de um título dema-


siado amplo, embora a apresentação confrontativa (mediante o emprego da forma
versus) permita criar um determinado recorte. De qualquer maneira, a introdução de
um subtítulo seria recomendável.
Por outro lado, em (8), verifica-se certa discrepância entre o objetivo formulado
logo no início (“analisar o papel da língua durante o processo de tradução”) e o objeto

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 47


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de estudo (a produtividade e/ou a qualidade da tradução automática em comparação


com a tradução humana).
O recurso a dados de uma pesquisa inventada ad hoc era uma possibilidade que
os estudantes podiam utilizar. Neste caso, onde se emprega o recurso da ficcionaliza-
ção, o problema está na apresentação dos dados. Em primeiro lugar, a menção inicial
do estudo ocorre com uma construção demonstrativa10 no segundo parágrafo (“esta
pesquisa feita durante três anos tenta demonstrar que…”), no qual também se introduz a
hipótese de trabalho e um argumento contrário vagamente referido e sem demonstra-
ção (“como é considerado pelas grandes empresas”). Em segundo lugar, em se tratando de
uma pesquisa seria preciso situar com maior grau de explicitação o contexto de realiza-
ção do estudo (um projeto de uma instituição, uma pesquisa de pós-graduação, etc.).
Tal como acontece no exemplo (7), falta aqui especificar o papel social e
subjetivo do autor do texto: ele faz a proposta na qualidade de quê? Especialista?
Pesquisador? Estudante?...
Finalmente, o último parágrafo do mesmo exemplo apresenta outros elementos
problemáticos: o emprego confuso do organizador “paralelamente” (o que é que se
está colocando em paralelo?), a menção da existência de um “mito” acerca da supre-
macia da tradução automática (Quem afirma isso? Em que contexto isso é assumido
de tal forma?...) e o fato de se dizer que os resultados vão permitir refletir sobre alguma
coisa (o que é evidente!), mas sem antecipar de que resultados se trata.
Mais uma vez encontramos fragilidades que dizem respeito, sobretudo, ao desco-
nhecimento da própria prática acadêmica de elaboração de resumos e, portanto, à falta
de experiência real da escrita desse gênero de texto. De maneira que o estudante está
precisando repensar nem tanto o emprego geral da língua – mesmo ocorrendo alguns
erros “de língua portuguesa” – mas especificamente:
1. qual seria a situação de escrita em que se produz o texto (quem escreve
para quem?)
2. quais são os elementos próprios do resumo que mostram problemas? (a coe-
rência na relação entre objetivo / tema / metodologia da pesquisa, como citar
os dados de uma pesquisa, como referir argumentos contrários e argumentos
próprios, como apresentar resultados de forma sintética e geral, etc.)

O exemplo (9) e o exemplo (10) apresentam um aspecto comum muito impor-


tante: ambos os estudantes fizeram o resumo como parte de uma atividade mais ampla
que incluía a elaboração e apresentação oral do trabalho proposto no resumo em si-
tuação de exame (um teste oral de avaliação parcial da disciplina). Isto teve, como era
de se esperar, implicações diretas na produção do resumo. Em concreto, os estudan-
10
Vale mencionar que esse tipo de construção com demonstrativo é muito frequente nos resumos, mas importa observar a
ambiguidade do antecedente: qual seria mesmo “esta pesquisa”?... Uma interpretação possível seria que se refere ao próprio
título do trabalho ou, então, que ica subentendida a ideia de que o trabalho proposto se baseia em uma pesquisa prévia. Para
um estudo desse tipo de expressões referenciais, ver Miranda (2014c).

48 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

tes escolheram temas do seu interesse (nos dois exemplos, coincidindo a questão do
“registro coloquial”) e possibilidades de estudo que consideraram realizáveis (analisar
manuais de português como língua estrangeira, em um caso, e analisar textos de bate-
-papo que o estudante podia conseguir no seu próprio local de trabalho, uma empresa
de tradução).
Se observados em conjunto, os dois últimos resumos (9 e 10) incluem algumas
seções coincidentes: uma contextualização ou problematização do assunto, o objetivo
do trabalho, o objeto em análise e a metodologia. Contudo, nenhum dos resumos
menciona trabalhos anteriores a respeito do tema (próprios ou alheios), nem o refe-
rencial teórico a partir do qual os autores se propõem trabalhar. Nesse sentido, os dois
últimos resumos mostram – mesmo com falências – um funcionamento mais “real”
(ou situado) do que os dois casos anteriores, já que se trata das propostas efetivas das
comunicações orais que os estudantes iriam apresentar: trabalhos “escolares”, explora-
tórios, sem uma pesquisa teórica prévia.

Uso de algumas marcas próprias do registro coloquial em livros de ensino de


português como língua estrangeira
No que respeita ao ensino de português como língua estrangeira (PLE), nos últimos anos
na Argentina, tem se utilizado o Método comunicativo, que visa desenvolver as habilidades
comunicativas dos alunos, possibilitando seu desempenho em qualquer tipo de interação
comunicativa real. Por outro lado, a língua portuguesa no Brasil comporta uma multiplicidade
de registros discursivos, entre eles o registro coloquial. Este não possui o prestigio atribuído
a outros registros, como acontece com aqueles utilizados em âmbitos acadêmicos. Porém,
o registro coloquial forma parte do cotidiano brasileiro e, em consequência, de muitas
situações de comunicação real. Partindo dessa premissa, no presente trabalho, tenta-
se analisar como é abordada essa problemática nos livros de ensino de PLE presentes na
Argentina. Para tal fim, se analisam cinco livros e se observa o tratamento que os mesmos
dão a certas marcas próprias do registro coloquial e a relação que essas têm com os gêneros
no qual se encontram inseridas. Os gêneros correspondem tanto a representações escritas
da oralidade quanto a formas próprias da escrita. E as marcas abarcam formas sincopadas,
substituição do imperativo pelo presente do subjuntivo e substituição do pronome lhe pelo
te. Na maioria dos casos, ditas marcas são utilizadas nos textos sem esclarecimento para o
estudante nem diferenciação de registros, deixando essa tarefa para o professor.
Exemplo (9) – Texto de estudante C (Curso formação de professores PLE)

Tal qual o caso (7), as fragilidades relativas à seleção e explicitação do quadro te-
órico estão ligadas ao desconhecimento das práticas de pesquisa e de participação em
eventos científicos. Sendo assim, é preciso compreender que a ausência de menção de
quadro teórico no resumo é uma falha da atividade “escolar” ou didática (e não real-
mente uma fragilidade do resumo produzido pelos estudantes). Os alunos desconhe-
cem a prática real de realização de estudos científicos e de participação em eventos; em
consequência, é preciso trabalhar explicitamente tais aspectos para os alunos poderem
realizar resumos. É verdade que um resumo de comunicação para congresso ganha

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 49


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qualidade – e possibilidade de avaliação positiva – se conseguir explicitar o máximo


dos elementos próprios de uma pesquisa e, nesse sentido, o referencial teórico – em
disciplinas vinculadas às ciências da linguagem, como nos exemplos – é um dos ele-
mentos que os avaliadores esperam encontrar. Contudo, não é só por isso que deve
ser incluído, mas pelo fato de toda pesquisa ou reflexão científico-acadêmica se situar
sempre em relação a um referencial teórico, de modo que isso não pode ser desconsi-
derado na abordagem didática dos gêneros acadêmicos.
No caso particular do texto (9), há os seguintes problemas gerais de escrita:
• Emprego excessivo e, em certos casos, deficiente de construções com valor
anafórico em casos como “essa problemática”… “Para tal fim, se analisam cinco
livros e se observa o tratamento que os mesmos dão a certas marcas próprias do
registro coloquial e a relação que essas têm com os gêneros no qual se encontram
inseridas”.
• Emprego inadequado de certos organizadores textuais: a expressão “No que
respeita ao” como início do corpo do texto – sendo que se trata de um mar-
cador que exprime mudança de tópico (ADAM 2008) e precisaria de um
segmento anterior – e a expressão “Por outro lado” para indicar uma situação
em paralelo (o que cria um efeito de salto temático, que não seria pretendido).
• Formulações confusas como, por exemplo, em “como acontece com aqueles
utilizados em âmbitos acadêmicos”. Quais seriam “aqueles”?
• No mesmo exemplo (9), os problemas próprios da escrita do gênero resumo são:
• Não são esclarecidos (nem situados em tradições teóricas ou de estudo) os
conceitos principais do trabalho, tais como “gênero”, “marcas” ou mesmo
“registro coloquial”.
• A explicitação de cada objeto de análise (marcas e gênero) se realiza de forma
pouco clara e só se compreende com uma leitura retroativa (ou seja, depois de
ler todo o resumo): “Os gêneros correspondem tanto a representações escritas
da oralidade quanto a formas próprias da escrita. E as marcas abarcam formas
sincopadas, substituição do imperativo pelo presente do subjuntivo e substi-
tuição do pronome lhe pelo te.”
• O objetivo é mencionado como tentativa: “tenta-se analisar”
• A apresentação global de “resultados” se realiza sem nenhuma explicitação de
que se trata de resultados: “Na maioria dos casos, ditas marcas são utilizadas
nos textos sem esclarecimento para o estudante nem diferenciação de regis-
tros, deixando essa tarefa para o professor.”

50 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

Análise de interjeições no gênero bate-papo online no âmbito de trabalho


A incorporação de vocabulário e estruturas sintáticas da língua coloquial ao próprio discurso
apresenta-se como uma grande dificuldade para os falantes não nativos, especialmente para
aqueles com um grau baixo de vinculação com a cultura da língua alheia. O registro informal
é cada vez mais utilizado em conversas mantidas entre colegas de uma mesma empresa,
ramo ou profissão. Partindo dessa situação, objetiva-se neste trabalho analisar o uso de
interjeições no gênero bate-papo online no âmbito de trabalho. Mais especificamente, os
propósitos são, por um lado, identificar interjeições comumente utilizadas em bate-papos
online no âmbito de trabalho, e por outro, caracterizar ditas interjeições utilizando fichas
terminológicas que permitam ter um conhecimento mais sólido do seu uso. Tendo como
base esses objetivos, foi utilizada a seguinte metodologia: 1) Levantamento de exemplos de
uso espontâneo durante os diálogos estabelecidos diariamente entre colegas argentinos
e brasileiros; 2) Seleção das interjeições a serem objeto de estudo; 3) Confecção de fichas
terminológicas. Após a elaboração de ditas fichas, foi possível frisar a importância de analisar
interjeições num contexto real de uso. Esse trabalho permitiu, também, reflexionar sobre
quais os usos das interjeições para poder incorporá-las no próprio discurso e torná-lo, dessa
forma, mais natural e próximo do nível de um falante nativo de português.
Exemplo (10) – Texto de estudante D (Curso de formação de tradutores português/espanhol)

No caso (10), os problemas de escrita que predominam estão relacionados à ela-


boração de resumos, mesmo que certos fenômenos possam ser considerados parcial-
mente transversais à escrita de outros gêneros. Tal é o caso das ambiguidades, como no
emprego da expressão “ao próprio discurso”, que ocorre duas vezes no corpo do texto,
sendo confusa em termos referenciais: está falando do discurso de quem? Do próprio
autor/enunciador? De qualquer sujeito?
Outros problemas da escrita do último texto são claramente mais circunscritos ao
gênero resumo:
• Não se explica o que são “fichas terminológicas” ou, pelo menos, a que cam-
po ou tradição de estudos o conceito está filiado. Isso corresponde a um uso
inadequado de terminologia específica.
• Há uma mudança do presente (forma de exposição) para o pretérito (a forma
do relato), no momento em que se apresenta a “metodologia”, sem explicação
de que a pesquisa já foi realizada11. O salto da exposição para o relato deveria
ser articulado através de algum enunciado explícito sobre a realização prévia
do estudo.
• A “metodologia” não explica como se seleciona o corpus, nem como se pensa
demonstrar a estatística de uso (colocada no objetivo de “identificar inter-
jeições comumente utilizadas”), nem a vantagem (ou as razões) de se fazer
“fichas terminológicas”.
11
Essa mudança de “formato discursivo” – como estou aqui chamando esse aspecto – ou mesmo de “tipo de discurso”,
no sentido que se dá a essa expressão no Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART 1997; MIRANDA 2008, entre
outros), seria possível no resumo, mas é necessário explicitar de alguma maneira que a pesquisa já foi realizada e concluída.
Caso contrário, é preferível manter o emprego do presente, mesmo com valor de pretérito.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 51


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• As consequências (ou resultados) do trabalho são colocadas em termos de


benefícios pessoais: “Esse trabalho permitiu, também, reflexionar sobre quais os
usos das interjeições para poder incorporá-las no próprio discurso e torná-lo, dessa
forma, mais natural e próximo do nível de um falante nativo de português.” Isto
não seria adequado para um trabalho de caráter científico-acadêmico, domí-
nio em que se pretende conseguir o avanço, o desenvolvimento ou o benefício
coletivo (de um grupo ou de uma área).
• Ocorrência de afirmações sem sustentação clara (ou sustentadas no mero sen-
so comum ou nos pressupostos do autor): “O registro informal é cada vez mais
utilizado em conversas mantidas entre colegas de uma mesma empresa, ramo ou
profissão”. Como é que isso se sabe?
• Presença de justificação ou explicações vagas ou confusas: “que permitam ter
um conhecimento mais sólido do seu uso” (Por que o emprego do comparativo
em “mais sólido”? Em que sentido seria “mais sólido” e com relação a que
coisa?) . “Após a elaboração de ditas fichas, foi possível frisar a importância de
analisar interjeições num contexto real de uso” (emprego inadequado de “frisar”
e pouco evidente relação lógica entre “elaborar as fichas” e ver a “importância
de analisar as interjeições em contexto”).

POSSÍVEIS EXPLORAÇÕES DIDÁTICAS


Em trabalhos anteriores (Miranda, 2014b), propus que o ensino dos resumos de
comunicação levasse em conta determinados aspectos da prática de escrita e só depois
a organização interna dos textos. Isso significa trabalhar com os estudantes questões
situacionais de extrema relevância para se compreender a singularidade da produção
de resumos.
Dentre esses aspectos, cabe salientar os seguintes:
1. O estudo da relação intertextual entre a circular e o resumo. Isto é, compreender
que a produção dos textos deve ser adequada a uma série de condições prévias
ou parâmetros de produção. Como as condições mudam permanentemente,
é fundamental que os produtores de resumos sejam capazes de redigir textos
apropriados para as condições particulares de cada nova situação comunicativa
em que se encontram. Não se trata de aprender a produzir um gênero estável e
rígido (porque isso, simplesmente, não existe!), mas de aprender a “fluir com o
gênero”. De maneira que em uma sequência didática12 para aprender a escrever
resumos não deveria faltar um módulo específico para exercitar a relação entre
a circular e o resumo.
2. Exploração dos “lugares de fala” ou “papéis sócio-subjetivos”. A escrita de resumos
de comunicação implica assumir um determinado papel enunciativo (profes-
12
A expressão “sequência didática” remete para o procedimento de ensino de gêneros desenvolvido no quadro do Interacio-
nismo Sociodiscursivo. Para uma apresentação desse procedimento, ver Schneuwly e Dolz (2004).

52 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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sor, pesquisador, estudante de graduação ou pós-graduação, especialista em


uma área ou assunto, etc.). Por isso, uma atividade “escolar” produtiva seria
explorar diferentes papéis, recorrendo a expressões que permitam demonstrar
tais lugares (aludindo a trabalhos anteriores próprios, situando o trabalho em
uma pesquisa ou em uma situação de ensino, etc.).
Quanto ao estudo da organização interna dos textos, é importante compreender
que podem ser mobilizados diferentes formatos discursivos (que, por sua vez, podem
ocorrer de maneira articulada): a exposição, o relato e o (micro)projeto. Estas possi-
bilidades de escrita também podem ser exercitadas de forma específica, testando as
possibilidades e as implicações da mudança de formato.
A partir da análise dos exemplos de produções dos estudantes se verifica que exis-
te um desconhecimento profundo da prática de pesquisa ou de reflexão que precede
a participação em eventos científicos ou acadêmicos. Por isso, resulta fundamental
conhecer mais de perto essa prática, para compreender melhor os componentes que
ocorrem de forma frequente nos resumos: objetivo(s), quadro teórico, objeto/corpus
de análise, metodologia, resultados (obtidos ou esperados). De fato, se não existir
compreensão profunda do que tais elementos implicam para o autor do resumo, difi-
cilmente o estudante poderá simular/exercitar a produção desse gênero de textos.
Para desenvolver tal capacidade, será preciso, então, criar condições para a ela-
boração de resumos em contextos autênticos, o que implica, por um lado, partici-
par em eventos internos (da própria instituição) ou externos (pois há eventos que
aceitam a participação de estudantes da graduação) e, por outro lado, trabalhar de
forma interdisciplinar com outras cadeiras que possam fornecer conteúdos para a
realização de trabalhos.
Além desses aspectos, resulta fundamental os estudantes terem contato direto
com textos autênticos variados (e de qualidade), já que uma maior observação de
exemplares permite uma melhor compreensão da diversidade de realizações possíveis,
evitando, assim, a visão estática, rígida e artificial do gênero em estudo.
A observação de textos autênticos diversos possibilita, também, explorar de forma
indutiva (analisando, identificando recorrências e, finalmente, codificando as regulari-
dades) o emprego de expressões que se utilizam para: falar sobre os diferentes compo-
nentes de uma pesquisa ou estudo, assumir um papel enunciativo particular, explicitar
que o estudo já foi realizado (ou que está sendo realizado), apresentar os resultados de
forma sintética e geral (mas com contundência), situar o estudo face a outros traba-
lhos próprios ou alheios, em um determinado quadro teórico e/ou em um campo de
estudo ou debate, etc.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 53


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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste artigo, mostrei que existe necessidade de trabalho explícito com
o gênero, dado que uma primeira produção dos estudantes realizada em situação de
ensino dá como resultado um texto com fragilidades notáveis. Portanto, o domínio
desse objeto se beneficia com uma abordagem orientada. O estudo acompanhado deve
partir da identificação e classificação dos problemas reais de escrita dos alunos. Assim,
é possível ver que existem dificuldades gerais (ou tranversais a diferentes gêneros) e
outras específicas da produção de textos desse gênero (por desconhecimento da prática
ou por falta de experiência, ou ainda por descohecimento do próprio gênero).
As simulações globais – ou as situações que mais se aproximam da realidade – per-
mitem explorar melhor as características do gênero (como no caso em que realmente
os estudantes fariam a comunicação em situação de exame, por exemplo). Mas resulta
melhor ainda a experiência de os estudantes tentarem participar de eventos científicos
reais. Nesse caso, produzem os textos que enviarão de fato para a comissão avaliadora
do evento. De modo que já não se trata apenas do olhar do próprio professor, mas de
uma soma de olhares que, sem dúvida, implicarão critérios de avaliação diversos. Isso
é o que, de fato, acontece na produção autêntica dos textos e, por isso, vale a pena
aproveitar a possibilidade de se fazer pelo menos uma primeira atuação “profissional”
com o acompanhamento do professor.
Em todos os casos, pode ser de grande contribuição realizar estas abordagens uti-
lizando o instrumento denominado “sequência didática” já mencionado. Trata-se de
um procedimento de ensino que leva em consideração o nível de partida dos alunos e
as necessidades concretas de estudo da língua.

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Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 55


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DA PALAVRA NEUTRA À PALAVRA PRÓPRIA:


FORMAS DE CONCEBER A PALAVRA NA ESCRITA
ACADÊMICO-CIENTÍFICA

FROM THE NEUTRAL WORD TO THE OWN WORD: THE WAYS OF


CONCEIVING THE WORD IN ACADEMIC SCIENTIFIC WRITING
Poliana Dayse Vasconcelos Leitão *
Regina Celi Mendes Pereira * *

RESUMO: Nossa experiência discursiva individual constrói-se e desenvolve-se a


partir da apreensão da palavra de outrem. Nesse processo dialógico, concebemos a
palavra de diversas formas, impregnando-a de diferentes graus de subjetividade e de
diferentes níveis de responsabilidade enunciativa. Contudo, no âmbito acadêmico-
-científico, a neutralidade é concebida como critério de cientificidade e frequente-
mente almejada pelos pesquisadores. Essa habitualidade é fruto da recomendação
– e, em alguns casos, da imposição – de alguns manuais de Metodologia Científica,
bem como da NBR 6028:2003 da ABNT. Considerando esse antagonismo, em nos-
so trabalho, investigamos os modos de conceber a palavra em elementos pré-textuais
de monografias de concluintes de Licenciatura em Letras, centrando-nos nas mar-
cas de subjetividade. Para consecução de nosso objetivo, fundamentamo-nos nos
estudos acerca do dialogismo (BAKHTIN, 1993 [1920], 2003 [1952-1953]) e nos
pressupostos teórico-metodológicos do Interacionismo Sociodiscursivo (BRON-
CKART, 1999, 2006).
Palavras-chave: Palavra Neutra; Palavra Própria; Subjetividade; Responsabilidade
Enunciativa; Monografia.
ABSTRACT: Our individual discursive experience builds and develops itself from
the apprehension of the word of others. In this dialogical process, we conceive the
word in different ways, infusing it of varying degrees of subjectivity and different
levels of enunciative responsibility. However, on the academic-scientific context,
neutrality is conceived as a criterion of scientific and often sought by researchers.
This habitualness is the fruit of the recommendation - and in some cases, from
the imposition – of some manuals for Scientific Methodology and the NBR 6028:
2003 from ABNT. Considering this antagonism, in our paper, we investigate ways
of conceiving the word in pre-textual elements of monographs of the Licentiate in
Literature graduates, focusing on the marks of subjectivity. In order to achieve our
goal, we base ourselves on the studies about dialogism (BAKHTIN, 1993 [1920],
*
Doutora em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING/UFPB), bolsista de pós-doc no
PNPD Institucional e membro integrante do grupo de Estudos em Letramentos, Interação e Trabalho (GELIT/CNPq/
UFPB). polianadayse@hotmail.com
**
Professsora do Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING) e do Departamento de Letras Clássicas e Verná-
cula (DLCV), Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Líder do grupo de Estudos em Letramentos, Interação e Trabalho
(GELIT/CNPq/UFPB). E-mail: reginacmps@gmail.com

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 57


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2003 [1952-1953]) and the theoretical and methodological assumptions of Socio-


discursive Interactionism (BRONCKART, 1999, 2006).
Keywords: Neutral Word; Own Word. Subjectivity; Enunciative Responsibility; Monograph.

INTRODUÇÃO
Nosso trabalho é resultado de dados gerados no Projeto de Pesquisa Ateliê de
Textos Acadêmicos (ATA - UFPB), que tem como objetivo geral criar um espaço
de oficinas para elaboração e análise de textos acadêmicos, acessíveis a graduandos
de variadas áreas de conhecimento, viabilizando a investigação das distintas nuances
que envolvem a elaboração desses textos em sua interface com diferentes formas de
construir conhecimentos. Constitui-se ainda como um pequeno recorte das pesquisas
desenvolvidas pelo Grupo de Estudos em Letramento, Interação e Trabalhos (GELIT
- UFPB), que adota o Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) como aparato teórico-
-metodológico de base, aliando-o, sempre que necessário, a outros referenciais teórico-
-metodológicos para melhor compreensão do objeto a ser estudado.
No processo de elaboração de textos acadêmico-científicos, conceber a palavra
como neutra, não pertencente a ninguém, ainda é uma constante, apesar de inúmeros
estudos evidenciarem que é impossível construirmos um enunciado completamente
destituído de apreciação. A simples escolha do objeto de estudo já revela as preferên-
cias do enunciador, refletindo a subjetividade presente, em maior ou menor grau, em
todos os gêneros textuais.
A construção da aparente neutralidade é resultado da recomendação – e, em alguns
casos, da imposição – de alguns manuais de Metodologia Científica. Também é decor-
rente das Normas da ABNT, particularmente, da NBR 6028:2003, que, ao enumerar
as regras gerais do resumo, prescreve o uso do verbo na voz ativa e na terceira pessoa do
singular. Embora a recomendação refira-se ao resumo, é aplicada na elaboração dos de-
mais gêneros textuais regidos pela ABNT, dentre eles, a monografia. A extensibilidade
das regras expressas, provavelmente, é motivada pelo fato de, na maioria dos gêneros
produzidos na esfera acadêmico-científica, o resumo aparecer como um dos elementos
que os formatam, e não como um gênero textual autônomo, gerando a necessidade
de o enunciador manter o paralelismo em relação ao foco enunciativo para cumprir as
exigências do “escrever bem”. É o que acontece, por exemplo, com a monografia.
Diante das considerações elencadas, nosso objetivo, neste artigo, é investigar as
formas de conceber a palavra em elementos pré-textuais de monografias de concluin-
tes de Licenciatura em Letras, atentando, especialmente, para as marcas de subjetivi-
dade, para as nuances que tais marcas impregnam os diferentes modos de empregar
a palavra, sobretudo, à forma palavra neutra, e para os possíveis influenciadores do
comportamento enunciativo dos formandos no processo de elaboração do gênero em

58 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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análise, dentre eles, os elementos constitutivos da monografia. Deter-nos-emos aos


elementos pré-textuais devido à amplitude do gênero examinado. Acreditamos que,
neles, as marcas de subjetividade são menos explícitas, por estarem sujeitos a regras
mais “rigorosas” de padronização.
Nossa pesquisa documental, de caráter qualitativo, foi realizada no final de 2011,
em uma faculdade particular de pequeno porte localizada em Paulo Afonso – BA. O
corpus que construímos compõe-se de oito (08) monografias cujos projetos foram co-
orientados pelas pesquisadoras no período de 2006 a 2008. O processo de produção
dos projetos de pesquisa foi realizado, em sua integridade, em sala de aula, durante o
curso da disciplina Oficina de Redação, através de atividades coletivas e individuais,
além de orientações individuais extraclasse. O de elaboração das monografias deu-se
por meio de discussões teóricas em sala de aula e da produção individual monitorada
via encontros semanais com os orientadores e mensais com o professor da disciplina
de Metodologia Científica.
As monografias selecionadas foram adquiridas a partir da xerocópia dos originais,
com a devida autorização dos autores e da instituição, no acervo da biblioteca da re-
ferida faculdade. Para constituição do corpus, consideramos duas variáveis, o tipo de
pesquisa e o tema abordado, de modo a contemplar diferentes modalidades de inves-
tigação e diversas linhas de pesquisa dentro das áreas de Língua/Linguística, Literatura
e Pedagogia, esta quando em interseção com as duas primeiras. Seguindo os critérios
enumerados, o corpus pode ser descrito da seguinte forma: a) duas monografias (02)
constituem-se como pesquisa-ação, a primeira possui um teor pedagógico, Contos de
Fada: um recurso motivador para sala de aula (M1)3, e a segunda, linguístico, Contos
Populares: o resgate através da leitura (M7); b) uma (01) trata-se de pesquisa de campo,
de cunho linguístico, Projetos Escolares: fonte de pesquisa e motivação na prática da
leitura no ensino fundamental da Escola [...]4 (M6); c) duas (02) caracterizam-se como
pesquisa bibliográfica, a primeira em língua inglesa, A teoria das inteligências múltiplas
e o ensino-aprendizagem de língua inglesa: o audiolingualismo como método cola-
borativo (M4), e a segunda em “pedagogia”, A literatura infanto-juvenil com o apoio
de imagens como estímulo da leitura e escrita para alunos com necessidades especiais
auditivas (M5); e d) três (03) delimitam-se como pesquisa bibliográfica em literatura,
A denúncia social atrás das cortinas lúdicas de Hoje é dia de Maria (M2), Mimese e
sociedade nos versos de Manuel Bandeira (M3) e A condição feminina na obra Senhora
de José de Alencar (M8). A construção do corpus é sistematizada no Quadro 01:

3
Por preceitos éticos, identiicamos os professores concluintes pela sigla PCLL (Professores Concluintes de Licenciatura em
Letras) seguida de numerais de 01 a 09, de acordo com a ordem de organização dos dados, e as suas monograias pela letra
M seguida dos numerais atribuídos a cada colaborador.
4
Seguindo ainda as prescrições éticas, omitimos todos os nomes próprios que fazem referência, direta ou indireta, aos
participantes e às instituições envolvidas na nossa pesquisa e nas dos colaboradores.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 59


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Quadro 01: Constituição do Corpus

TIPO DE PESQUISA
ÁREA DE
PESQUISA PESQUISA PESQUISA DE
PESQUISA - AÇAO
BIBLIOGRÁFICA CAMPO
A teoria das inteligên-
cias múltiplas e o en-
LÍNGUA/ sino-aprendizagem de Contos Populares: o resga-
LINGUÍSTICA língua inglesa: o audio- te através da leitura (M8)
lingualismo como mé-
todo colaborativo (M4)
A denúncia social atrás
das cortinas lúdicas de
Hoje é dia de Maria (M2),
Mimese e sociedade
LITERATURA nos versos de Manuel
Bandeira (M3)
A condição feminina na
obra Senhora de José
de Alencar (M9)
A literatura infanto-juve- Projetos Escolares:
nil com o apoio de ima- fonte de pesquisa e
Contos de Fada: um re-
gens como estímulo da motivação na prática
PEDAGOGIA curso motivador para
leitura e escrita para alu- da leitura no ensino
sala de aula (M1)
nos com necessidades fundamental da Esco-
especiais auditivas (M6) la [...] (M7)

Para delinearmos as categorias de análise, recorremos a Bakhtin (1993 [1920],


2003[1952-1953) e a Bronckart (1999, p. 2006). Introduzimos nas duas primeiras se-
ções seguintes uma breve exposição dos pressupostos teórico-metodológicos adotados.

FORMAS DE CONCEBER A PALAVRA


Como advoga Bakhtin (2003 [1952-1953], p. 294), “a experiência discursiva in-
dividual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interação constante e
contínua com os enunciados individuais dos outros”. Nessa perspectiva, a língua, em
situações concretas de uso, torna-se constitutivamente dialógica, pois “cada enunciado
é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” (BAKHTIN,
2003[1952-1953], p. 272). Desse modo, todo enunciado ecoa e evoca outros enun-
ciados, especialmente, as obras especializadas do domínio discursivo científico e as do
domínio artístico:

60 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Complexas por sua construção, as obras especializadas dos diferentes gêneros


cientíicos e artísticos [...] também estão nitidamente delimitadas pela alternância
dos sujeitos do discurso, cabendo observar que essas fronteiras, ao conservarem a
sua precisão externa, adquirem um caráter interno graças ao fato de que o sujeito
do discurso – neste caso o autor da obra – aí revela a sua individualidade no
estilo, na visão de mundo, em todos os elementos de sua obra [grifos em itálico
do autor e em negrito nossos] (BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p. 279).

Na citação de Bakhtin, evidenciamos que a individualidade faz parte do processo


de produção textual. As escolhas realizadas pelo autor, no entanto, estão sempre sujei-
tas a aspectos de ordem contextual (sociais, ideológicos, históricas) e individual (emo-
cionais, valorativos, expressivos), que “são estranhos à palavra e surgem unicamente
no processo do seu emprego vivo em um enunciado concreto” (BAKHTIN, 2003
[1952-1953], p. 292). Consequentemente, conforme o autor, mesmo a opção pela
entonação expressiva objetivo-neutra é estabelecida visando à compreensão responsiva
do enunciatário.
Destaca Bakhtin (2003 [1952-1953], p. 281) que, em qualquer enunciado, desde
a réplica cotidiana constituída de uma única palavra até as grandes e complexas obras
científicas ou literárias, buscamos absorver, compreender, interpretar, sentir “a inten-
ção discursiva de discurso (sic) ou a vontade discursiva do falante, que determina o todo
do enunciado: seu volume [amplitude], suas fronteiras” (grifos do autor). É a posição
discursiva do enunciador que nos permite assumir uma posição responsiva frente ao
enunciado alheio e ao nosso próprio enunciado.
Vislumbrando a dialogicidade constitutiva da língua, Bakhtin (2003[1952-
1953], p. 281) argumenta que, para realizarmos a análise de um enunciado, além de
considerarmos todos os aspectos do estilo (sistema da língua, objeto do discurso e a
relação valorativa do enunciador com o objeto), precisamos considerar suas tonalida-
des dialógicas, isto é, os ecos e ressonâncias que o enunciado analisado estabelece com
outros enunciados na cadeia da comunicação. Essas tonalidades podem expressar-se
por meio de três formas básicas de conceber a palavra: 1) palavra neutra da língua5:
o enunciado é apresentado como pertencente à língua, destituído, portanto, de um
autor explicitamente demarcado; 2) palavra do outro: o enunciado é concebido como
pertencente a outrem; e 3) minha palavra: o enunciado é delimitado, explicitamente,
como propriedade do (s) autor (es).
Nos dados analisados, constatamos que a “escolha” das formas de conceber a pa-
lavra sofre variações decorrentes, dentre outros fatores, dos elementos composicionais
da monografia, da área de pesquisa contemplada e do nível de envolvimento do autor
com o objeto de estudo. Para refletirmos sobre as modificações realizadas, nos apoia-
mos nos princípios teórico-metodológicos do ISD.

5
Convém reiterarmos que o termo palavra neutra da língua não implica ausência de subjetividade, signiica uma opção
linguístico-discursiva que apresenta o enunciado destituindo-o de demarcação da autoria, tornando-o impessoal.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 61


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INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO:
BREVE PANORAMA
O ISD nasceu da preocupação didática de um grupo de pesquisadores da Uni-
dade de Didática de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da
Universidade de Genebra de adaptar os modelos teóricos e os resultados das pesquisas
empíricas sobre o ensino e a aprendizagem de línguas à realidade das salas de aula e
à do trabalho do professor (BRONCKART, 2006, p. 13), contemplando a criação
de um construto não apenas teórico, mas, sobretudo, metodológico. Procurando al-
cançar as metas supracitadas, Jean-Paul Bronckart, o coordenador do grupo, Auguste
Pasquier, Bernard Schneuwly, Clairette Davaud, Daniel Bain, Joaquim Dolz, Itzair
Plazaola, Marie-Josèphe Besson, e outros estudiosos, começaram a esboçar, na década
de 1980, os parâmetros norteadores do ISD. Os conceitos gerais do arcabouço teóri-
co-metodológico projetado, em virtude de seu caráter constitutivamente transdiscipli-
nar, permitiram o surgimento de encaminhamentos específicos, os quais se encontram
em constante processo de (re) construção e aprofundamento com o intuito de atender
às especificidades do extenso campo de aplicação que lhe é próprio.
O ISD pauta-se em abordagens teóricas que consideram as dimensões psicos-
sociais do desenvolvimento e investiga, dentre outros temas, o papel exercido pelos
instrumentos, pela linguagem e pela cooperação social na construção da consciência,
considerando a articulação entre as representações coletivas, sociais e individuais na
análise das estruturas e dos modos de funcionamento sociais (BRONCKART, 1999,
p. 23). E defende a indissolubilidade da interligação entre os aspectos linguísticos,
psicológicos e sociais, como também a sua evidenciação nas práticas linguageiras si-
tuadas (ou nos textos-discursos). Sustenta ainda que essas práticas são as principais
responsáveis pelo desenvolvimento humano, em toda sua amplitude, tanto no que se
refere aos conhecimentos, aos saberes e às capacidades do agir, no que diz respeito à
identidade das pessoas.
Na organização analítica, pautamo-nos na proposição de Machado e Bronckart
(2009), que compreende quatro níveis de análise constituídos por diferentes catego-
rias, as quais se interligam e se complementam:

62 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Quadro 02– Níveis de Análise Propostos pelo ISD

Análise do contexto de produção Análise do tipo organizacional


• Contexto sócio-histórico mais amplo • Plano geral do texto;
(contexto de produção, circulação e uso • Tipos de discurso predominantes, por
do texto); meio do levantamento da ocorrência e
• Suporte em que o texto é veiculado; da frequência das unidades que indicam
• Contexto linguageiro imediato (textos as relações de implicação ou autonomia
que acompanham o texto em um do texto, tais como: dêiticos de pessoa,
mesmo suporte); de espaço e de tempo e as relações de
• Intertexto (texto(s) com o(s) qual(is) conjunção ou disjunção, tais como os
o texto mantém relações facilmente tempos verbais e os tipos de frase;
identiicáveis antes mesmo da análise); • Tipos de sequência predominantes
• Identiicação da situação de produção e fase(s) típica(s) da(s) sequência(s)
(representações do agente produtor por meio do reconhecimento da
referentes aos parâmetros: enunciador, organização do conteúdo e sua função;
enunciatário, local, tempo, papel • Ocorrência de unidades linguísticas
social do enunciador, papel social do que indicam conexão, coesão nominal
enunciatário, instituição social e objetivo e coesão verbal, tal como elencadas
da produção). abaixo, por exemplo:
• Mecanismos de conexão: organizadores
lógico-semânticos e organizadores
temporais;
• Mecanismos de coesão nominal:
anáforas nominais (por substituição ou
repetição) e pronominais (pronomes
pessoais, relativos, possessivos,
demonstrativos e relexivos);
• Mecanismos de coesão verbal: a
densidade verbal (calculada pela divisão
do número de verbos e pelo número de
palavras).

Análise do tipo enunciativo Avaliação do tipo semântico


Verificação das ocorrências dos tipos de mo- • O cruzamento e a interpretação dos
dalizações com suas unidades típicas e de res- resultados de análise possibilitam a
ponsabilidade enunciativa, tal como segue: análise semântica cuja contribuição
Marcas de pessoa; para o reconhecimento das atividades
(de caráter eminentemente coletivo) e
Índices de inserção de vozes; das ações (eminentemente individuais)
Modalizações: lógica, deôntica, pragmática se dá pela identiicação: a) das iguras
ou apreciativa; de ação que são construídas no texto e
sua relação com a situação de interação
Outras marcas de subjetividade. e com as condições sócio-históricas de
produção; b) da intencionalidade; c) da
motivação; d) dos recursos mobilizados
para agir;
• Tipos de agir.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 63


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Pensando nos objetivos que propusemos, aprofundaremos a exposição apenas do


terceiro nível de análise, o Enunciativo, que evidencia mais explicitamente as marcas
de subjetividade.

ANÁLISE DO TIPO ENUNCIATIVO


O nível enunciativo diz respeito à coerência pragmática. É estabelecido pe-
los mecanismos enunciativos, que explicitam as diferentes avaliações (julgamentos,
opiniões, sentimentos) elaboradas a respeito de aspectos do conteúdo temático e as
fontes dessas avaliações (BRONCKART, 1999, p. 264). Portanto, a coerência prag-
mática define o tipo de engajamento enunciativo assumido pelo agente-produtor
no texto e confere a este coerência interativa. De acordo com Machado e Bronckart
(2009, p. 58), o grau de responsabilização enunciativa é marcado por um grande
número de unidades linguísticas, dentre elas, as marcas de pessoa, os dêiticos de
lugar e de espaço, as marcas de inserção de vozes, modalizadores e outras marcas de
subjetividade, por exemplo, os adjetivos.
As marcas de pessoa dizem respeito às diferentes formas (pronomes, conjugação
verbal, construção oracional) de expressar a responsabilidade enunciativa (impessoal,
primeira, segunda ou terceira pessoas do singular ou do plural) em relação ao conteú-
do. Segundo Machado e Bronckart (2009, p. 59), a análise dos valores dessas marcas
é importante por possibilitar a verificação de sua manutenção ou transformação “na
progressão textual ou o modo como o texto representa o enunciador no agir represen-
tado” – relevância que constatamos nos dados analisados.
As vozes são definidas “como as entidades que assumem (ou às quais são atri-
buídas) a responsabilidade do que é enunciado” (dito, visto, pensado) em um texto
(BRONCKART, 2009, p. 326 - 327). Expressas, de forma direta e/ou indireta, dis-
tribuem-se em três grupos: 1) Vozes dos Personagens: são as que procedem de seres
humanos, ou de identidades humanizadas, que participam, na qualidade de agente,
dos acontecimentos ou ações constitutivas do conteúdo temático ou de um seguimen-
to de texto; 2) Vozes Sociais: são provenientes de personagens, grupos ou instituições
sociais que são apresentados como instâncias externas de avaliação de algum aspecto
do conteúdo temático, mas que não interferem como agentes no desenvolvimento te-
mático de um segmento de texto; e 3) Vozes do Autor: provêm diretamente da pessoa
que produz o texto e, como tal, interferem no processo de produção, comentando ou
avaliando aspectos do que é enunciado. As vozes podem ser identificadas através de
diferentes marcas, por exemplo: discurso direto, discurso indireto, uso de aspas, for-
matação, emprego de jargões.

64 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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As modalizações possuem como finalidade geral “traduzir, a partir de qualquer


voz enunciativa, os diversos comentários ou avaliações formulados a respeito de alguns
elementos do conteúdo temático” (BRONCKART, 1999, p. 330). Essas modalizações
organizam-se em quatro categorias: 1) Lógicas: referem-se às avaliações realizadas a
partir de critérios do mundo objetivo, apresentando os elementos do conteúdo temá-
tico sob a ótica da condição de verdade, julgando-os, dentre outras inúmeras possibi-
lidades, como fatos atestados, possíveis, necessários; 2) Deônticas: são concernentes
às avaliações orientadas por valores, opiniões e regras do mundo social e delineadas
pela exposição dos elementos do conteúdo temático como pertencentes ao domínio
direto, ao campo da obrigação social e/ou da conformidade com as normas em uso;
3) Apreciativas: revelam as avaliações originadas no mundo subjetivo da voz que é
a fonte do julgamento. Apresenta, pois, ângulos do conteúdo temático, através de
julgamentos de valor, dentre outras possíveis avaliações, como sendo benéficos, malé-
ficos, felizes, infelizes, estranhos etc.; e 4) Pragmáticas: encarregam-se da explicitação
de alguns aspectos da responsabilidade de um personagem, um grupo ou instituição
social relativas às ações em que é agente. Além disso, atribuem ao agente produtor pos-
síveis intenções, razões e capacidades de ação (BRONCKART, 1999, p. 332). Ressalta
Bronckart (1999, p. 332) que, dependendo do gênero materializado no texto, este
pode apresentar diversas unidades de modalização, mas também raras ou nenhuma
unidade de modalização.
Explicitados os postulados teórico-metodológicos propostos, passemos ao estudo
dos dados.

DA PALAVRA NEUTRA À MINHA PALAVRA6


Nos elementos pré-textuais Capa, Folha de Rosto e Folha de Aprovação, que
exigem uma série de informações comuns a vários gêneros acadêmico-científicos, de-
tectamos o predomínio da forma palavra neutra. Nos elementos citados, algumas in-
formações, além de se repetirem, aparecem inalteradas, tanto em relação às palavras
empregadas quanto à ordem em que são utilizadas. São elas: o nome da instituição, o
curso, a habilitação e o local de entrega da monografia. Embora não exista nenhuma
referência explícita, sabemos que o teor e a disposição delas nos elementos menciona-
dos são pautados nas prescrições da ABNT e do Manual de Normalização da institui-
ção pesquisada.
Das nove monografias analisadas, três apresentam capa artística, M1, M2 e M8.
Todas abordam temas relacionados à literatura. PCLL 01 e PCLL 08 apenas acres-
centam imagens como plano de fundo para as informações solicitadas. Ilustremos
com a capa de M8, que traz, em forma de quebra-cabeça, a imagem de uma mulher.
A opção relativa à forma dialoga com o tema abordado na monografia, A condição
6
Optamos por deixar o adjetivo posposto para, propositadamente, gerar dois sentidos possíveis: palavra pertencente ao autor
e palavra adequada, por acreditamos na necessidade de, eticamente, construirmos conhecimentos, e não apenas reproduzi-los.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 65


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feminina na obra Senhora de José de Alencar, e revela o conteúdo da análise, a sub-


jugação feminina no século XIX e sua superação pela personagem principal da obra,

Aurélia.

• Exemplo 01: M8 – Capa – PCLL 08


PCLL 02 foge ao padrão estabelecido para o elemento Capa de Trabalho Aca-
dêmico e, inspirada na Capa do DVD da minissérie Hoje é dia de Maria, resgata
marcas linguístico-discursivas pertencentes ao domínio discursivo cinematográfico e
emprega-as na Capa de sua monografia. Comprovemos:

• Exemplo 02: M2 – Capa – PCLL 02


No exemplo 02, em um processo dialógico, PCLL 02 recupera a imagem e a dis-
tribuição gráfica das informações contidas na Capa do DVD e apaga o nome Roteiros
da 1ª e 2ª Jornadas, que aparece no canto direito da imagem. Para apresentar o título

66 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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de sua monografia, acrescenta, ao título da obra, a expressão A denúncia social escon-


dida atrás das cortinas lúdicas de. Outra estratégia utilizada é a substituição do termo
“da obra de” por dirigido por e a do nome do inspirador da obra pelo nome de sua
orientadora, bem como a manutenção da expressão “escrita por” e a substituição dos
nomes dos autores da obra por seu nome. E ainda a substituição do nome da Editora
do DVD pelo nome da instituição, nome do curso, habilitação, local e data. Além de
evidenciar a dialogicidade, o comportamento enunciativo da PCLL 02 expressa seu
envolvimento com a obra lida, assistida e, inúmeras vezes, comentada em sala de aula
com bastante entusiasmo e encantamento.
Ainda com relação aos elementos Capa, Folha de Rosto e Folha de Aprovação,
outras informações se repetem, porém sofrem variações de uma monografia para ou-
tra. São elas: o título, o nome do autor, o mês e o ano de entrega da monografia, a
caracterização do trabalho, o nome do orientador e o nome dos integrantes da banca.
No caso dos dados analisados, acreditamos que os títulos, caso não existisse a identi-
ficação do autor, poderiam ser caracterizados como palavras neutras da língua, devido
ao fato de a função autor não ser marcada pela utilização de recursos linguísticos, e
sim depreendida pela interligação nome próprio/monografia, diferentemente do que
acontece com o orientador e os membros da comissão examinadora, funções que são
linguisticamente delimitadas. Entretanto, considerando a relação implícita, constata-
mos a presença da forma minha palavra, que, no caso dos exemplos 01 e, sobretudo,
02 contêm, relativamente, elevado grau de subjetividade.
Contudo, as palavras componentes das monografias pertencem ao autor e ao
orientador, que participa, direta ou indiretamente, do processo de criação e que não
consta explicitamente como coautor. PCLL 07 traz o nome de seu orientador na Folha
de Rosto, na Folha de Aprovação e, fugindo à prescrição, na Capa, provavelmente,
com o intuito de frisar a participação significativa de seu orientador no processo de
elaboração da monografia, participação que, como veremos, será explicitada nos Agra-
decimentos.
Na Dedicatória e nos Agradecimentos, encontramos a forma minha palavra,
que aparece quase exclusivamente. No primeiro elemento, caracteriza-se pela nomi-
nalização do elemento Dedicatória, pela conjugação do verbo dedicar na primeira
pessoa do singular (dedico) – apenas em M5 o verbo é omitido – e pela utilização de
pronomes pessoais oblíquos e de pronomes possessivos, ambos de primeira pessoa do
singular, demarcando, de forma direta, a “exclusividade” das palavras apresentadas,
expressas como voz do autor, e as avaliações de quem as enunciam.
Ao meu marido [...], dádiva de Deus em minha vida, uma pessoa que esteve sempre
presente em todos os dias de minha constante busca de conhecimento, compreendendo
a minha ausência, e me apoiando durante a realização deste trabalho e em todos os
momentos importantes em minha vida.
Em especial, (in memória) ao meu grande amigo [...], por sua amizade durante nossa
convivência. Amigo, gratidão eterna! [grifos nossos]

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 67


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• Exemplo 03: M5 – Dedicatória – PCLL 04


No exemplo 03, a subjetividade da colaboradora é demarcada pela presença de
expressões qualificadoras (dádiva de Deus em minha vida, constante busca de conheci-
mento, grande amigo, momentos importantes em minha vida) e intensificadoras (sem-
pre presente, em todos os dias, todos os momentos), que revelam os julgamentos valo-
rativos do agente-produtor em relação a pessoas de seu convívio pessoal. E também
pela presença de modalizações pragmáticas, que destacam as ações do esposo da cola-
boradora (esteve sempre presente [...] compreendendo [...] apoiando). A presença do
esposo é intensificada pelo advérbio sempre e pela expressão todos os dias, que também
aparece intensificando a compreensão e apoio do cônjuge. O emprego dessas estraté-
gias linguístico-discursivas é encontrado em outras Dedicatórias.
Os Agradecimentos apresentam, praticamente, as mesmas características da De-
dicatória: 1) nominalização do elemento Agradecimentos; 2) verbo conjugado na pri-
meira pessoa do singular, nesse caso, agradecer/agradeço; 3) emprego de pronomes
pessoais de caso reto e/ou oblíquo e de pronomes possessivos, de primeira pessoa; 4)
emprego de expressões adjetivas e de expressão intensificadoras, empregadas como
modalizações apreciativas; 5) construção de modalizações pragmáticas. Apenas duas
monografias não apresentam o verbo agradeço, a de PCLL 05 (M5), que traz o título
Agradecimentos, e a de PCLL 04 (M4), que traz a oração Desejo registrar meus sinceros
agradecimentos, na qual a autora explicita sua intenção, modalizando pragmaticamente
e qualificando os agradecimentos, com o uso do adjetivo sinceros. Outra peculiaridade
dos Agradecimentos de PCLL 04 é que eles são organizados em um texto constituído
de dois parágrafos, e não em tópicos:
A realização desta monograia não seria possível principalmente sem a compreensão de
meu marido [...], que foi paciente e companheiro o tempo todo, demonstrando sempre
interesse e entusiasmo pela minha atividade.
Outras pessoas colaboraram de alguma forma para o meu trabalho. Essas pessoas foram:
[...], que me proporcionou as primeiras fontes de pesquisa que contribuíram na escolha do
meu tema, [...], que prolongou o prazo da entrega no momento em que mais precisei e,
sobretudo, ao orientador [...] que dedicou seu precioso tempo a ler os originais e sugerir
modiicações que ajudaram o embasamento do tema. A este último desejo registrar os
meus sinceros agradecimentos [grifos nossos].

• Exemplo 04: M4 – Agradecimentos – PCLL 04


Observamos que a professora concluinte destaca a participação do orientador
no processo de construção de sua monografia, através de modalizações pragmáticas:
dedicou seu precioso tempo a ler os originais e sugerir modificações que ajudaram o
embasamento do tema. Por isso, as ações por ele realizadas atribuem à monografia, em
sua inteireza, a forma palavra nossa, que, defendemos, difere da configuração palavra
minha, uma vez que, nesta modalidade, a coautoria é explicitamente circunscrita e,

68 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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naquela, sugerida implicitamente. No caso da monografia, o enunciador implícito é


o professor orientador. PCLL 04 também faz referência à professora que propiciou as
primeiras fontes de pesquisa que contribuíram para a escolha do tema e, portanto, tam-
bém participou, indiretamente, do processo de produção do gênero.
A integração palavras do professor concluinte/palavras do orientador também é
destacada pelo PCLL 07, que o faz de forma mais enfática e emotiva ao defini-lo
como grande guia durante o processo de criação da monografia. O coautor implícito é
concebido como meu professor e orientador, funções, conquanto interligadas, apresen-
tadas como distintas, destacando a função professor como primeira, como essencial.
A estratégia linguístico-discursiva utilizada incumbe ao professor e orientador a cor-
responsabilidade pelo processo de criação da monografia e pela formação acadêmica,
construída pelo compartilhamento de conhecimentos do professor orientador e de
todos os professores que fizeram parte da carreira estudantil de PCLL 07, em especial, da
professora mencionada no início dos agradecimentos, por causa da contribuição biblio-
gráfica e intelectual oferecida, que o ajudou no trabalho monográfico:
À professora [...], pela contribuição bibliográica e intelectual dada, ajudando-me no
trabalho monográico.
Ao meu professor e orientador, [...], por todos os conhecimentos compartilhados e pelo
grande guia que foi durante o processo de criação da monograia.
A todos os professores que izeram parte de minha carreira estudantil, compartilhando
comigo de alguma forma, com um pouco de seu conhecimento.
Espero, agora, como professor, contribuir para a transformação da sociedade,
fazendo com que esta seja mais justa. Dessa forma, minha carreira estudantil e
proissional será marcada por um trabalho de todos por um e um por todos, ou seja,
muitas pessoas ajudaram-me nesta caminhada e, agora, espero, retribuir para
com outros indivíduos ajudando em sua formação enquanto cidadão. [grifos nossos].

• Exemplo 05: M7 – Agradecimentos – PCLL 07


No parágrafo final dos Agradecimentos, PCLL 07, como uma forma de retribuir
a ajuda recebida durante a sua caminhada estudantil e profissional, o professor con-
cluinte, por meio de modalizações pragmáticas, expressa o desejo de, como professor,
contribuir para a transformação da sociedade, fazendo com que esta seja mais justa [...]
retribuir para com outros indivíduos ajudando em sua formação enquanto cidadão.
Uma expressão máxima da subjetividade desse docente.
A participação de outros professores, além do professor orientador, no processo
de elaboração da monografia é evidenciada também por PCLL 05, que revela uma
relação de carinho, apoio, orientação e confiança, e por PCLL 08, que enfatiza a paci-
ência e a cooperação do orientador no que diz respeito a ultrapassar todos os obstáculos
encontrados no caminho da conclusão do trabalho e o enriquecimento pessoal gerado
pela sabedoria dos professores da faculdade e pela ajuda desses no processo de aquisição
do conhecimento:

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 69


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A minha orientadora [...], pelo carinho, apoio, orientação e coniança demonstrada


durante a organização deste trabalho. A todos os mestres, pela contribuição dentro de
suas áreas, e, principalmente pela dedicação e empenho que demonstraram no decorrer
de suas atividades para com o grupo, especialmente as professoras [...] e [...] pela
inspiração para realização desta monograia [grifos nossos].

• Exemplo 06: M5 – Agradecimentos – PCLL 05


Ao professor [...] por ter paciência e por me ajudar a ultrapassar todos os obstáculos
encontrados no caminho da conclusão desse trabalho, minha gratidão ilimitada.
A todos os professores da Faculdade [...], que me enriqueceram com sua sabedoria e
me ajudaram na aquisição do conhecimento.

• Exemplo 07: M8 – Agradecimentos – PCLL 08


A partir dos Agradecimentos ilustrados, comprovamos a intervenção dos profes-
sores no processo de formação acadêmica dos alunos de Licenciatura em Letras, bem
como a do professor orientador nesse processo mais amplo e no processo de elaboração
da monografia, momento em que os estudantes têm a oportunidade de resgatar os
conhecimentos construídos e (re)construí-los e/ou ampliá-los.
Ainda com relação aos Agradecimentos, encontramos alguns dados peculiares
quanto à forma de conceber a palavra. O primeiro é a utilização da palavra do outro,
expressa sob a forma discurso direto. Esse discurso é empregado por PCLL 01 para
transcrever as palavras encorajadoras de sua mãe, que aparecem antecedidas do verbo
discendi em sua forma nominal gerúndio (“dizendo”): “minha filha não se preocupe você
vai conseguir, Mãe Rainha vai te ajudar”:
Agradeço a minha família, em especial minha mãe [...], que sempre me deu força em
tudo, dizendo: minha ilha não se preocupe você vai conseguir, Mãe Rainha vai te
ajudar, ao meu pai [...], ao meu marido [...], ao meu ilho [...].

• Exemplo 08: M1 – Agradecimentos – PCLL 01

O segundo é a presença da palavra do outro nos Agradecimentos de PCLL 06,


de modo não referenciado, porém facilmente perceptível por tratar-se de parte de um
trecho bíblico amplamente divulgado que nos remete a termos pronunciados por Jesus
Cristo. Eles aparecem quando a professora concluinte afirma que Deus foi o caminho,
a verdade e a vida de suas oportunidades. Outro dado particular é o emprego de letras
maiúsculas e de negrito nos nomes DEUS e PRESENTES, no primeiro caso, dando
ênfase ao nosso Criador e, no segundo, ocasionando dois sentidos possíveis: constân-
cia da presença e/ou prenda, lembrança.
Agradeço a DEUS primeiramente, pois ele foi o caminho, a verdade e a vida das
minhas oportunidades, e uma delas estou realizando hoje, assim, levando-me a
desenvolver sabedoria e permitindo-me a concluir este trabalho.
[...]
E não podendo jamais deixar de agradecer aos meus amigos PRESENTES que estiveram

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a todo momento da minha vida [...] me incentivando.

• Exemplo 09: M6 – Agradecimentos – PCLL 06


No que concerne ao elemento pré-textual Epígrafe, detectamos a presença da pa-
lavra do outro, expressa de modo explícito pelo uso de aspas e da indicação do nome do
autor. Segundo o Manual de Orientação e Normalização de Trabalhos Científicos da
instituição, “trata-se de uma frase, seguida da indicação da autoria, relacionada com
o assunto pesquisado no corpo do trabalho” [grifos nossos]. Diante da conceituação
transcrita, constatamos que, nesse elemento, a opção pela forma palavra do outro é uma
prescrição. Entretanto, é importante ressaltarmos que, do ponto de vista enunciativo,
a Epígrafe é marcada pela subjetividade dos agentes-produtores, uma vez que, dentre
as inúmeras frases relacionadas ao tema, escolhem a que julgam ser a mais significativa.
Nas monografias analisadas, verificamos que as Epígrafes selecionadas, além de
reportarem-se ao tema, retomam pontos circundantes nelas explorados. Logo, os pro-
fessores concluintes atribuem certa pessoalidade à palavra do outro e, implícita e in-
diretamente, instituem uma postura de concordância, que confere à palavra citada,
direta ou indiretamente, a nuance de palavra alheia/própria. Isto é, o autor expressa,
de forma explícita ou implícita, a identificação com a palavra de outrem. Acreditamos,
pois, que a palavra alheia-própria distingue-se, linguístico-discursivamente, da palavra
de outrem, que seria destituída de marcas de compartilhamento, podendo ser refutada
ou utilizada, somente, para sinalizar diferentes posicionamentos teóricos e/ou meto-
dológicos. A monografia de PCLL 01, por exemplo, tem como título “Conto de fadas:
um recurso motivador para a leitura em sala de aula nas séries iniciais”. E sua Epígrafe
destaca o fato de o conto ter nascido do “povo e para” o povo, bem como o de ser “um
documento vivo”. Enfatiza ainda que o conto “é o primeiro leite intelectual” “para todos
nós”, afirmação que realça a presença da palavra alheia-própria. A expressão “todos nós”
estende os benefícios propiciados pelo conto a todos que se deleitam em sua fonte:
Câmara Cascudo, PCLL 01, os leitores da monografia, o povo.
“O conto nasceu do povo e foi para ele. É um documento vivo, enunciando costumes, ideias,
mentalidades, decisões e julgamentos. Para todos nós é o primeiro leite intelectual.”
(Câmara Cascudo, 2003)

• Exemplo 10: M1 – Epígrafe - PCLL 01


PCLL 07, semelhantemente a PCLL 01, pesquisa um tema relacionado a contos. O
título de sua monografia é “Contos populares: o resgate através da escrita”; e sua Epígrafe,
apoiando-se em um “depoimento” de Guimarães Rosa, ressalta o intenso amor desperta-
do pelas “estórias de fadas e de vacas, de bois e reis” narradas pelas “contadeiras de estórias”.
A Epígrafe selecionada é elaborada na primeira pessoa do singular, evidenciando mais for-
temente a relação alheio/próprio, visto que as palavras de Guimarães Rosa não são, sim-
plesmente, recuperadas, mas compartilhadas e também incorporadas pelo colaborador.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 71


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“Quando menino, no sertão de Minas, onde nasci e me criei, meus pais costumavam
pagar a velhas contadeiras de estórias. Elas iam à minha casa só para contar casos. E
as velhas, nas puras misturas, me contavam estórias de fadas e de vacas, de bois e reis.
Adorava escutá-las.”
Guimarães Rosa

• Exemplo 11: M7 – Epígrafe - PCLL 07


Com relação ao Resumo, constatamos a predominância de unidades linguístico-
-discursivas delineadoras de impessoalidade e, portanto, indicadoras da falsa neutrali-
dade apregoada pelos seguidores mais ortodoxos da Metodologia Científica. O cará-
ter impessoal, geralmente, é construído pela indeterminação do sujeito, que pode ser
realizada de três formas: 1) pela justaposição do pronome se cumprindo a função de
índice de indeterminação do sujeito ao verbo na terceira pessoa do singular; 2) pela
utilização do verbo na terceira pessoa do plural ou do singular – caso mais raro – sem
a explicitação do sujeito; e 3) pelo emprego de uma forma infinitiva do verbo, sem
fazer referência a pessoas determinadas. Entretanto, a impessoalidade também pode
ser demarcada por outras formas linguístico-discursivas. Dentre elas: 4) pela utilização
de verbos impessoais; 5) pelo emprego de substantivos (ou orações) denominadores
de seres inanimados, com ou sem determinantes, os quais, seguidos de verbos na ter-
ceira pessoa, geralmente, ocupam a função sintática de sujeito, a função semântica de
agente e, portanto, o papel de protagonistas das ações; e 6) pela utilização de orações
na voz passiva sem a indicação do agente da passiva, que, na voz ativa, seria o sujeito
da oração.
Em nenhum dos Resumos estudados, localizamos a segunda e a terceira formas
de demarcar a impessoalidade, respectivamente, o emprego do verbo na terceira pessoa
do plural ou do singular sem presença explícita do sujeito, a recorrência a uma forma
infinitiva do verbo destituída de referência a pessoas determinadas. Porém, evidencia-
mos que as marcas linguístico-discursivas mais recorrentes enquadram-se na quinta
estratégia, a de personificação de seres inanimados ocupando o lugar de protagonistas
– papel que, na maioria dos casos, poderia – e deveria – ser assumido pelo agente-
-produtor. A personificação é utilizada por sete concluintes: “Este trabalho será de
grande relevância e serve de inspiração, como fonte de pesquisa, para os educadores da Lín-
gua Portuguesa e para o uso especial da Literatura Infantil” (M1); “O presente trabalho
tem por objetivo expor a denúncia social embutida na obra em análise, a qual conforme
o tema [...] prenuncia, esconde-se na ilusória ingenuidade da produção que se desenvolve
em meio a um jogo lúdico” (M2); “Este trabalho tem como objetivo mostrar que [...] é
possível escolher métodos e técnicas ou abordagens que proporcionem o aprendizado eficaz
de línguas estrangeiras” (M4); “Este trabalho monográfico tem como principal objetivo
estudar a importância e compreender o poder que a literatura infanto-juvenil [...]l” (M5);
“Este trabalho irá abordar a prática pedagógica buscando melhorar o hábito da leitura
dos alunos através dos projetos escolares no ensino fundamental” (M6); “A proposta de-
senvolvida neste trabalho monográfico buscou atender a necessidade de três vertentes: a

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cultural, a educacional e a social” (M7); “O presente trabalho mostrará uma análise do


aspecto social, focalizando a condição feminina na obra Senhora de José de Alencar” (M8).
Nos exemplos destacados, além de constatarmos a presença do caráter impessoal,
deparamo-nos com a repetição do vocábulo “trabalho”, que aparece acompanhado
do determinante Este, em quatro dos sete eventos, bem como dos determinantes “O
presente”, em duas das sete circunstâncias. Essas repetições ressaltam a tonalidade apa-
rentemente neutra presente no elemento Resumo, contudo dotadas de subjetividade.
Até mesmo a construção singular destacada na sexta ocorrência, na qual a palavra
trabalho aparece precedida da expressão A proposta desenvolvida neste e qualificada pelo
adjetivo monográfico e, temos o intuito da construção da “neutralidade”, empregando
as palavras como não pertencentes a ninguém, apenas à língua.
Depois da personificação, a estratégia mais recorrente foi o emprego do prono-
me se junto a um verbo na terceira pessoa do singular: “Para realização deste estudo,
utilizou-se material bibliográfico” (M4); “Dessa forma, através da escrita dos contos po-
pulares, teve-se como meta resgatar alguns destes e, simultaneamente, oportunizar o aluno
ao conhecimento (sic) de mais um gênero, o conto” (M7); “Verificou-se com análise que,
na obra Senhora, a sociedade da época discrimina as mulheres de acordo com a sua classe
social” (M8). Em seguida, a construção da voz passiva com a omissão do agente da
passiva: “A pesquisa foi feita na Escola Casa da Criança II, com os alunos das 3ª e 4ª
séries” (M1); “Um desses métodos é o audiolingual, que pode ser utilizado também em
conjunto com outros métodos” (M4). E a utilização de verbos impessoais, a quarta e
última posição: “A educação no Brasil está caminhando a passos lentos, a (sic) [há] de se
concordar que ela está melhor do que há dez anos, mas está longe da perfeição” (M6);
“Há uma transformação no modo de pensar da mulher do século XIX” (M8).
O exame dos exemplos apresentados e do elemento analisado na íntegra leva-nos
a concluir que a palavra neutra expressa sob a forma impessoal predomina em todos os
Resumos, apesar de ser utilizada concomitantemente com outras formas de conceber
a palavra. Essa simultaneidade demonstra que alguns professores concluintes desejam
se libertar das amarras das prescrições metodológicas acadêmico-científicas e assumir
a palavra como minha palavra ou como palavra nossa.
PCLL 07, por exemplo, deixa subentendido o desejo de revelar sua participação
ao fazer uso do vocábulo “inquietações” em “Essas inquietações implicaram o surgimen-
to de um trabalho monográfico apresentado em quatro capítulos”, pois o termo destacado
é um substantivo abstrato, classe gramatical conceituada como um “ser” de existência
dependente. Logo, as inquietações só são possíveis, porque o pesquisador propicia-lhes
a existência. Ao fazer isso, propaga um posicionamento apreciativo e a aspiração de
assumir a responsabilidade enunciativa.
PCLL 05 faz uso da mesma estratégia linguístico-discursiva de PPLL 08 em “A
iniciativa de realizar este trabalho veio da necessidade de aumentar o interesse dos alunos

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 73


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surdos pelo processo da leitura e da escrita”. A professora concluinte utiliza o substan-


tivo iniciativa, que implica a ação de iniciar algo, no caso em análise, a realização da
pesquisa, que exige um agente que a execute, a professora pesquisadora, demarcando
a presença implícita do enunciador, que é reforçada pela apresentação da justificativa
para realização do trabalho, a necessidade de aumentar o interesse dos alunos surdos pelo
processo da leitura e da escrita.
No Resumo de PCLL 07, detectamos a existência da palavra nossa, forma deli-
mitada pelas marcas de primeira pessoa do plural. Sabemos que a primeira pessoa do
plural pode ser concebida como minha palavra, que caracteriza o enunciado produ-
zido por um único autor ou por dois ou mais autores, designados, explicitamente,
assim. Entretanto, considerando as colocações destacadas nos Agradecimentos, o
processo de coautoria é revelado implicitamente, logo, não temos a minha palavra,
e sim a palavra nossa:
Nesse trabalho encontramos as respostas para as metas traçadas: Registrar contos
populares, mediante a escrita destes; identiicar os tipos de contos populares mais
produzidos; despertar no aluno o prazer pela escrita, além do aperfeiçoamento da
competência linguística do aluno.

• Exemplo 12: M7 – Resumo - PCLL 07

A forma palavra nossa também é empregada por PCLL 05, PCLL 02 e PCLL
06. Em M5, a palavra nossa é utilizada com a finalidade de explicitar o objetivo do
trabalho de pesquisa realizado: temos o intuito de oferecer subsídios para os professores
de língua portuguesa, e a forma como fará isso, a partir de uma visão esclarecedora a
respeito da exclusão social. Dessa maneira, assume e atribui a responsabilidade enuncia-
tiva pelo conteúdo que será abordado e define a tonalidade expressiva que empregará.
Com este trabalho, temos o intuito de oferecer subsídios para os professores de língua
portuguesa, a partir de uma visão esclarecedora a respeito da exclusão social que é dita
como um processo sócio-histórico caracterizado pela reação de grupos sociais, referente aos
interesses da vida social, sem possibilidade de participação.
• Exemplo 13: M5 – Resumo - PCLL 05

Em M2, essa forma se apresenta em dois objetivos diferentes: expressar as percep-


ções da professora concluinte relativas à temática abordada na obra estudada, Hoje é
dia de Maria, mais especificamente as referentes às representações simbólicas, sociais e
culturais da narrativa; e revelar a conclusão da autora quanto ao processo de conscien-
tização que permite aos leitores da obra, grupo no qual se encaixa, revitalizar o nosso
inconsciente folclórico e contemplar os caminhos trilhados pela nossa história no decorrer
dos tempos:

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[...] Desta forma percebemos que as representações simbólicas, sociais e culturais da


narrativa têm – em sua maioria – as raízes incadas nas histórias da mitologia greco-
romana da qual somos legatários. Esta consciência nos permite revitalizar o nosso
inconsciente folclórico e contemplar os caminhos trilhados pela nossa história no decorrer
dos tempos. [...].

• Exemplo 14: M2 – Resumo - PCLL 02

A primeira pessoa do plural sob a tipificação palavra nossa é uma constante na


monografia de PCLL 06. Em seu Resumo, é empregada para destacar que, através da
leitura, podemos nos tornar leitores mais críticos (modalização lógica) e que Nós, como
educadores, devemos sempre mostrar métodos e caminhos [... ] e refletir no (modalização
deôntica) que façam o aluno perceber a sua importância no meio social, assim, acredi-
tando (modalização pragmática):
Este trabalho irá abordar a prática pedagógica [...] E através da leitura podemos
nos tornar leitores mais críticos, argumentativos e capazes de contribuir no ato cidadão,
buscando despertar o lúdico e fazer desses momentos uma divertida descontração. Nós (sic)
como educadores, devemos sempre mostrar métodos e caminhos que faça (sic) o aluno per-
ceber a sua importância no meio social, assim, acreditando o (sic) quanto são capazes, e
refletir no discente a importância de ser mas (sic) audacioso, curioso, desafiador e objetivo.
• Exemplo 15: M6 – Resumo - PCLL 06

Nas Listas de Ilustrações, de Abreviaturas e Siglas e de Símbolos, a presença


da palavra neutra é constante. Essa “neutralidade” é ampliada quando o autor adota
termos genéricos para denominar as informações que as compõe, por exemplo, Figura
01. É o que acontece com a Lista de Figuras de PCLL 01, que nomeia as cinco figuras
utilizadas com o nome genérico Figura, seguido da numeração de 01 a 05.
No Sumário, último elemento pré-textual, as palavras utilizadas na denominação
dos elementos Introdução, Considerações Finais, Referências, Apêndices e Anexos,
embora nos remetam ao domínio discursivo acadêmico-científico, aparecem como
unidades da língua que não pertencem a ninguém, porém, insistimos, não isentas de
marcas de subjetividade, desde que são enunciadas por um agente-produtor específi-
co, em um contexto situado. Independentemente do tema discutido, as três primeiras
são encontradas não apenas em todas as monografias estudadas, mas na maioria dos
gêneros acadêmico-científicos. O tema abordado, por sua vez, norteia a indicação dos
capítulos teóricos, bem como dos analíticos. Os títulos atribuídos aos capítulos figu-
ram no Sumário e encaixam-se no mesmo grupo das informações anteriores, isto é,
no das palavras neutras. Além disso, quando são intitulados Fundamentação Teórica e
Análise de Dados, têm a inexpressividade ampliada.
Nos dados analisados, não encontramos nenhuma monografia cujos capítulos
teóricos fossem designados pelo título genérico Fundamentação Teórica. Contudo,

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 75


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mesmo fugindo a essa denominação generalizadora, nas designações dos capítulos e


subcapítulos teóricos, geralmente não destacam o agente produtor que as enuncia.
No Sumário de PCLL 04, observamos a repetição de algumas palavras que colocam
em evidência o tema da monografia e são empregadas no tom “neutro”. Esse tom é in-
tensificado pelo fato de a significação dos títulos e subtítulos ser depreendida da relação
imediata com os demais títulos e subtítulos presentes no Sumário, e não da relação com
os capítulos e subcapítulos propriamente ditos. Diríamos que a principal marca de sub-
jetividade revela-se na opção do método a ser aplicado, o audiolingual. Verifiquemos:
1 AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 10
1.1 A TEORIA--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 12
1.2 AS INTELIGENCIAS -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 12
2 AS INTELIGÊNCIAS E O APRENDIZ DE UMA SEGUNDA LÍNGUA --------------------------------------------------------------- 17
2.1 OS HEMISFÉRIOS CEREBRAIS E O ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA ---------------------------------------- 18
3 AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS E AS METODOLOGIAS DE ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS ------------------ 21
3.1 DESENVOLVENDO AS INTELIGÊNCIAS EM SALA DE AULA ------------------------------------------------------- 22
3.2 AS METODOLOGIAS DE ENSINO DE LÍNGUAS E AS POTENCIALIDADES DE CADA INTELIGENCIA ----- 23
4 O MÉTODO AUDIOLINGUAL E AS INTELIGÊNCIAS MULTIPLAS NO APRENDIZADO DE LÍNGUA INGLESA -------- 27

• Exemplo 16: M4 - Sumário - PCLL 04

2. A LEITURA LITERÁRIA EM SÉRIES INICIAIS E A PROPOSTA DOS PCN -------------------------------------------17


2.1 A IMPORTÂNCIA DAS LEITURAS NOS TEXTOS literários ---------------------------------------------------17
2.2 A PRÁTICA DA LEITURA LITERÁRIA E OS PCN ----------------------------------------------------------------------- 23

• Exemplo 17: M6 – Sumário - PCLL 06

No exemplo 17, verificamos também que a colaboradora emprega a palavra im-


portância, que é semanticamente qualificativa e, portanto, demarcadora dos valores
atribuídos ao tema abordado. Em “A importância das leituras nos (sic) textos literários”,
essa importância é colocada como uma ideia reconhecida não apenas pela colaborado-
ra, mas também por outros agentes-produtores, assim, poderíamos afirmar que exis-
tem traços muitos sutis do que classificamos palavra própria/alheia, pois a concluinte
constrói sua afirmação sob a perspectiva de uma ideia inquestionavelmente comparti-
lhada pelos leitores. Definimos a palavra própria/alheia como palavra concebida pelo
autor sob a perspectiva de compartilhamento com o (s) enunciatário (s), ou seja, o
autor assume a responsabilidade enunciativa do que assevera e, ao mesmo tempo, situa
os interlocutores na posição de concordância com a asserção.
Não obstante a predominância da aparente neutralidade, podemos encontrar tí-
tulos e subtítulos marcados mais intensamente pelo estilo pessoal de seus autores.
Detectamos um exemplo dessa ocorrência no Sumário de PCLL 02, cuja monografia
centra-se na análise da obra Hoje é dia de Maria e une teoria e análise em todos os ca-
pítulos. Os títulos dos capítulos e subcapítulos são impregnados do tom poético, que
permeia não apenas o Sumário, mas a monografia em toda sua integralidade. Apesar

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de o tom assinalado não nos permitir detectar o responsável pelas palavras enunciadas,
demarca a presença de sua subjetividade, de sua expressividade. Outra peculiaridade
do Sumário de PCLL 02, precisamente no subitem 1.2 é o resgate, não sinalizado, de
uma frase de Simónides de Ceos:
1 O ENCANTAMENTO DO TEXTO LITERÁRIO------------------------------------------------------------------------------------------- 10
1.1 NOS TRILHOS DA HISTÓRIA --------------------------------------------------------------------------------------------- 10
1.2 PINTURA É POESIA MUDA E POESIA PINTURA QUE FALA -------------------------------------------------------- 13
1.3 A BELEZA DOS SIGNOS --------------------------------------------------------------------------------------------------- 17
2 A LUZ DO MARAVILHOSO ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 20
2.1 O NÉCTAR DOS DEUSES -------------------------------------------------------------------------------------------------- 20
2.2 O REFLEXO DAS ESCRITURAS SAGRADAS --------------------------------------------------------------------------- 23
2.3 A MAGIA LENDÁRIA ------------------------------------------------------------------------------------------------------- 27
2.4 ERA UMA VEZ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 29
3 A SECA COMO INSTRUMENTO DE PODER -------------------------------------------------------------------------------------------- 36
3.1 REPRESENTAÇÕES DO REAL -------------------------------------------------------------------------------------------- 36

• Exemplo 18: M2 – Sumário – PCLL 02

Com relação aos capítulos e subcapítulos exclusivamente de análise, encontramos


a utilização da expressão generalizante Análise de Dados em duas monografias, na
de PCLL 03 e na de PCLL 07, que subdividem o capítulo em seis subcapítulos inti-
tulados com denominações praticamente idênticas. Os cinco primeiros subtítulos são
diferenciados apenas pela indicação numérica dos contos analisados (Análise do conto
01) e o último pela especificação do instrumento utilizado (Análise dos questionários).
Desse modo, as unidades linguístico-discursivas selecionadas pelo professor concluin-
te, tanto no título como nos subtítulos, não revelam, explicitamente, seu posiciona-
mento em relação aos dados investigados.
PCLL 01, PCLL 05 e PCLL 08, que também separam os capítulos teóricos dos
analíticos, fazem uso títulos menos genéricos para denominar o capítulo de análise.
São eles, respectivamente: Espaço pedagógico para abordagem da pesquisa de campo; A
música e os temas transversais; e A condição feminina na obra “Senhora”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na maioria dos elementos pré-textuais das monografias analisadas, percebemos a
predominância da forma palavra neutra da língua, porém dotada de diferentes níveis
de subjetividade. Contudo, algumas monografias da área de literatura quebram essa
“neutralidade” através da inserção de capas artísticas. Fogem ao predomínio da aparen-
te neutralidade os elementos Epígrafe, Dedicatória e Agradecimentos. No primeiro,
predomina a forma palavra de outrem, mas é, subjetivamente, assumida como alheia-
-própria. Quando a Epígrafe selecionada é elaborada na primeira pessoa do plural e,
principalmente, na primeira pessoa do singular, a relação de compartilhamento inten-
sifica-se. No segundo, Dedicatória, a minha palavra é empregada com exclusividade.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 77


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E, no terceiro, Agradecimentos, a forma minha palavra é intensamente predominan-


te, todavia outros modos de conceber a palavra aparecem. Nos dados investigados,
deparamo-nos com a forma palavra de outrem, revelada de forma direta ou indireta.
Apesar de a palavra neutra predominar, as marcas de subjetividade estão presen-
tes, em maior ou menor grau, em todos os elementos pré-textuais. Na Capa, Folha
de Rosto e Folha de Aprovação, revelam-se, dentre outros, nos aspectos gráficos, na
inclusão e/ou na ordem de alguma informação. Na Dedicatória e nos Agradecimentos,
as marcas de subjetividade declaram-se nas escolhas lexicais, na utilização de expres-
sões valorativas, no emprego de modalizações. No resumo, as marcas de subjetivida-
de denunciam-se na alternância das formas de conceber a palavra, nas modalizações
empregadas, nas inferências geradas pelas escolhas realizadas quanto aos objetivos,
metodologia e referencial teórico. Nas Listas de Ilustrações, Abreviaturas e Símbolos,
manifestam-se no teor do conteúdo expresso. E, finalmente, no Sumário, as marcas de
subjetividade anunciam-se nas escolhas teórico-metodológicos e nas lexicais.
Nas monografias analisadas, as marcas de subjetividade delimitam diferentes níveis
de distanciamento e de aproximação, que oscilam não apenas em virtude dos elementos
textuais que compõem o gênero textual em análise, mas também em decorrência da re-
lação que o professor concluinte de Letras estabelece com o objeto de estudo investigado
e, no caso das pesquisas relacionadas, direta ou indiretamente, ao processo ensino-apren-
dizagem, com a profissão professor. Distribuindo dentro de um contínuo de um menor
a um maior nível de subjetividade, teríamos a seguinte ordem: palavra neutra, palavra de
outrem, palavra alheia/própria, palavra própria/alheia e palavra minha.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1952-1953].
––––––––––. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão
Tezza da edição americana Toward a philosophy of the act. Austin: University of Texas
Press, 1993 [1920]. (Tradução realizada para uso didático e acadêmico).
BRONCKART, J-P. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo
sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999.
––––––––––. Os gêneros de textos e os tipos de discurso como formatos das intera-
ções propiciadoras de desenvolvimento. In.: MACHADO, A. R. e MATENCIO, M.
de L. M.. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas, SP:
Mercado das Letras, 2006.
MACHADO, A. R.; BRONCKART, J-P. (Re-)configurações do trabalho do professor cons-
truídas nos e pelos textos: a perspectiva metodológica do Grupo ALTER-LAEL. In.: ABREU-
-TARDELLI, L. S. ; CRISTOVÃO, V. L. L. (Orgs.). Linguagem e Educação: o trabalho do
professor em uma nova perspectiva. Campinas: Mercado de Letras, 2009, pp. 31-77.

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PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA EM CONTEXTO


ACADÊMICO: RELAÇÕES (HIPER)TEXTUAIS SINGULARES

WRITING AND READING PRACTICES IN AN ACADEMIC


CONTEXT (HYPER) TEXTUAL SINGULAR RELATIONS
Fabiana Komesu*
Fernanda Correa Silveira Galli**

RESUMO: No presente artigo, temos como objetivo refletir sobre as práticas discur-
sivas de leitura e de escrita em/na rede, mais especificamente, sobre os percursos de
leitura/escrita realizados por professores em formação e já formados, com base num
motor de busca da internet. Interessa-nos, de maneira particularizada, investigar: i)
as relações (hiper)textuais estabelecidas no enredamento entendido como viabilizado
por recursos eletrônicos; ii) as marcas discursivas que (se) fazem emergir (n)um modo
singular de ler (e de escrever). O conjunto do material foi produzido num curso de
extensão universitário sobre leitura e ciberespaço, cuja proposta consistia na produção
de um desenho do percurso de leitura num motor de busca da internet, a partir do
significante “maçã”. Inscritas no referencial teórico da Análise do Discurso francesa e
em pressupostos advindos dos Novos Estudos de Letramento (New Literacy Studies),
procuramos discutir o funcionamento de mecanismos de busca da internet e os efeitos
de sentidos produzidos pelo sujeito em seu trajeto de leitura/escrita.
Palavras-chave: Letramento Acadêmico; Leitura; Escrita; (Hiper)texto; Rede.
ABSTRACT: The present article aims at reflecting about the discursive practices of
writing and reading on the net, more specifically about the writing and reading meth-
ods used by the undergraduate and graduated teachers, based on an internet search
engine. It’s of interest to investigate: i) the (hyper) textual relations established in the
context thought as permitted by the electronic resources; ii) the discursive marks that
arise (are arisen) in a singular way of reading (and/or writing). The set of material was
produced during a university extension course about reading and cyberspace, whose
context consisted of a drawing production of the reading process on an internet search
engine, on the basis of the signifier “apple”. Based on the French Discourse Analysis
and assumptions from the New Literacy Studies, we intended to discuss the operating
procedures of the internet search and the effects of meanings produced by the subject
during his/her reading/writing process.
keywords: Academic Literacy; Reading; Writing; (Hyper)Text; Net.

*
Universidade Estadual Paulista (UNESP), São José do Rio Preto (SP), Doutora em Linguística, Professora Assistente
Doutora, e-mail: komesu@ibilce.unesp.br
**
Universidade Estadual Paulista (UNESP), São José do Rio Preto (SP), Doutora em Linguística Aplicada, Pesquisadora no
Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da UNESP/SJRP, Bolsista PNPD/CAPES, e-mail: fcsgalli@hotmail.com

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 79


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LEITURA E ESCRITA: A FORMAÇÃO ACADÊMICA NO


CONTEXTO DIGITAL
Contraparte constitutiva da atividade de escrita, a atividade de leitura pode ser
concebida de diferentes perspectivas teóricas. No campo dos estudos da linguagem,
pode-se destacar, por exemplo, as abordagens estruturalista, cognitivista, interacionis-
ta, discursiva, as quais têm pontos de aproximação e de distanciamento no que se re-
fere ao tratamento dado à temática (cf. MARCUSCHI, 1984; KATO, 1985; KOCH,
1993; KLEIMAN, 1999; ORLANDI, 2000; POSSENTI, 2001; CORACINI, 2002;
KOCH; ELIAS, 2006; de PIETRI, 2007, por critério de ano de publicação), também,
por outras disciplinas – como educação, psicologia, história, filosofia, sociologia, para
citar apenas algumas. As diferentes abordagens sobre a questão da leitura – de interesse
para os estudos de letramento, de modo geral, e para os estudos de letramento acadê-
mico, de modo específico – vêm sendo cada vez mais requisitadas, dada a emergência
incessante de tecnologias de informação e comunicação (doravante TIC) nas instân-
cias sociais, a exemplo da educacional. Considerando-se que há, potencialmente, pos-
sibilidade de acesso a arquivos em rede, em quaisquer línguas, independentemente do
lugar geográfico no qual o sujeito se encontra, poder-se-ia, pois, projetar uma noção
de “super-leitor” com potencial poder de ler e produzir quaisquer textos? É possível
considerar o surgimento de novas práticas discursivas de leitura, segundo novas for-
mas textuais materializadas em novos suportes, enfim, segundo novos leitores? De
que maneira a instituição acadêmica pode auxiliar no entendimento de novas práticas
discursivas de leitura e escrita, considerando-se seu papel explícito na formação do
professor e do aluno? Essas são questões que ocupam o horizonte de nossos interesses,
em especial porque presenciamos, não somente no contexto acadêmico, a circulação
de discursividades que retomam memória histórica sobre leitura e escrita, as quais, no
entanto, parecem não se inscrever como inovadoras, como pretendem os adeptos mais
entusiastas dos usos de tecnologias, defensores de visão determinista segundo a qual
diferentes tecnologias seriam “capazes de formatar grandes mudanças nas estruturas
e processos macrossociais bem como nas capacidades cognitivas individuais dos se-
res humanos”, nas críticas, dentre outros, de Warschauer (2003 apud Buzato, 2006),
Lankshear e Knobel (2011), Kalantzis e Cope (2012).
Em tempos de novas ordens sociais, o uso das TIC parece se consagrar per se, como
se a instrumentalização, por meio do acesso a ferramentas tecnológicas, fosse condição
suficiente para o pretenso sucesso na formação acadêmica (do universitário, professor
em formação; do (futuro) aluno desse (futuro) professor; do professor já formado) e na
prática profissional. Desse modo, nos parece que refletir sobre práticas discursivas de
leitura e escrita em/na rede tem relevância na medida em que se trata de proposta que
permite, ainda, a problematização dos efeitos das tecnologias no imaginário social. A
hipótese de partida é a de que, embora um motor de busca, como o mundialmente co-
nhecido Google, ofereça indexação de trilhões de páginas web para que usuários da rede

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possam, sob a aparente impressão de terem liberdade irrestrita, pesquisar as informa-


ções que quiser (KOMESU, 2010), por meio do uso de palavras-chave e operadores
– ignorando, portanto, que essa trilha de leitura é criada com informações “filtradas”
por critérios “invisíveis” (inacessíveis) ao usuário (PARISER, 2012) –, os percursos re-
alizados pelo sujeito-leitor rompem com a tentativa de estabilização do próprio motor
de busca. De uma perspectiva etnográfico-discursiva (CORRÊA, 2011), marcamos
que o sujeito-leitor, inscrito em/na rede, promove sentidos segundo modo singular
(não individual, mas histórico) de ler, de maneira que um significante num texto é
interpretado na relação com outros, na relação entre dito e não-dito, “no entrecruza-
mento da linguagem e da história.” (PÊCHEUX, 2002, p.44).
Elegemos para esta reflexão duas produções textuais verbo-visuais resultantes de
atividade realizada por professores em formação e já formados,3 regularmente inscritos
num curso de extensão4 sobre leitura e ciberespaço. A proposta5 era a de que executassem
produção textual verbo-visual (um desenho) do percurso de leitura num motor de busca
da internet, a partir do significante “maçã”, ou seja, com base no enunciado que consistia
da seguinte instrução: “Com base em Xavier (2004) e tendo como ‘fio condutor’ a re-
flexão sobre LEITURA - CIBERESPAÇO - HIPERTEXTO, faça um desenho que re-
presente seu percurso de leitura numa ferramenta de busca de sua escolha, a partir da
pesquisa de MAÇÔ. Destacamos que o site do Google foi utilizado por 100% dos parti-
cipantes, embora não tenha sido apresentada instrução prévia alguma sobre qual motor
de busca deveria ser utilizado na realização da atividade. O fato de esse motor de busca
ter sido o mobilizado (e nenhum outro) pode ser entendido, de um lado, como reconhe-
cimento explícito da eficiência do serviço; de outro, como imposição de (único) modo
de leitura da rede (eletrônica, de sentidos). Não por acaso, no ano de 2012, a Academia
Sueca, ao tentar incluir numa lista de neologismos o termo ogooglebar – “ingugável”, em
sueco –, referente a algo que o usuário não pode encontrar na web por meio de motor
de busca, foi impedida judicialmente, por ação da empresa norte-americana, a qual ava-
liou que não existe o que não pode ser encontrado na rede por meio de um motor de busca
como, por exemplo, o Google. Com base, pois, em pressupostos advindos da Análise do
Discurso de linha francesa e dos Novos Estudos de Letramento (New Literacy Studies),
procuramos discutir o funcionamento de motores de busca na internet – especialmente
o do Google – e os efeitos de sentidos produzidos pelo sujeito (professor em formação,
professor já formado) em seu trajeto de leitor e escrevente. Interessa-nos, sobretudo, in-
vestigar: i) as relações (hiper)textuais estabelecidas no enredamento viabilizado tanto por
recursos eletrônicos quanto por práticas discursivas, e ii) as marcas discursivas que (se)
fazem emergir (n)um modo singular de ler (e de escrever).
3
“Professor já formado” é uma convenção utilizada para fazer menção àquele que já se graduou pelo menos uma vez no
ensino superior. Acreditamos que, em nível proissional, o professor está em constante (trans-)formação, considerando-se a
dinâmica de um trabalho orientado por saberes e produção de conhecimento.
4
Curso presencial de extensão universitária intitulado “Leitura – sentidos do/no ciberespaço”, com duração de 16 horas,
oferecido a alunos regularmente inscritos nos Cursos de Licenciatura em Letras e em Pedagogia e aos inscritos no Curso de Pós-
-Graduação em Estudos Linguísticos da UNESP, campus de São José do Rio Preto (SP), nos meses de março e abril de 2014.
5
A proposta foi apresentada depois de leitura e discussão desse e de outros artigos em encontros presenciais.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 81


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DAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO: A REDE DAS REDES


A aprovação do Marco Civil da internet no Brasil, em 23 de abril de 2014,
assinala, de maneira concreta, mais um ponto no que se refere às transformações da
rede mundial de computadores, datada de 1969 como programa que propunha nova
forma de comunicação entre bases militares e departamentos de pesquisa dos Esta-
dos Unidos. Essa proposta, que se configurava em torno de elementos relacionados
a “alternativas de segurança e garantias de comunicação estratégica num mundo di-
vidido e imantado pela Guerra Fria” (VOGT, 2014), teve seus desdobramentos nas
últimas décadas, contribuindo, segundo Vogt, “institucionalmente, para a sua viabi-
lização”, e para o que a internet representa na atualidade. O projeto de lei nomeado
“constituição da internet” no Brasil coloca em evidência questões que envolvem
o uso da rede – como privacidade, liberdade de expressão, guarda e uso de dados,
neutralidade (SANTOS, 2014) –, as quais, de nosso ponto de vista, já estavam, de
algum modo, colocadas em circulação quando da criação da ARPANet (Advanced
Research Projects Agency Network).
Diante do crescimento da internet e das possibilidades de transformação – com-
portamental, comercial, jurídica, educacional, dentre outras –, incitadas pelo funcio-
namento da rede, parece que a criação de um documento de lei se estabelece como
tentativa de (re) organização política. Nesse âmbito, destacamos o conceito de “neu-
tralidade” que integra o referido projeto, tal como abordado por Santos (2014), por
considerar sua relevância para nossa discussão no que diz respeito a sua circulação:
primeiro, porque a ideia de neutralidade está (ou deveria estar) no cerne do funciona-
mento da rede, em especial na chamada “gestão dos conteúdos”; segundo, porque é
(ou deveria ser) um dos princípios fundadores da internet, especificamente no que se
refere a um “controle da rede”, supondo que fosse possível. Com base no pesquisador
norte-americano Tim Wu, que cunhou o termo “neutralidade da rede” – em inglês,
net(work) neutrality – em 2003, com foco nos aspectos econômico e comercial, Santos
(2014) destaca que o valor singular da rede depende da característica de “ser neutra”
e que, segundo Wu, neutralidade tem relação com políticas de inovação. No texto
aprovado no Brasil, a neutralidade de rede obriga provedores de acesso a dar tratamen-
to equânime a toda informação que trafega na internet. Não é permitida distinção
em função do tipo, da origem ou do destino dos pacotes de dados, com privilégio
de certos serviços do próprio provedor de acesso ou de terceiros ou, ainda, dos que
possam pagar mais, o que prejudicaria “a concorrência e a inovação com uma espécie
de pedágio discriminatório. É a neutralidade, portanto, que pode assegurar que novos
produtos briguem com gigantes digitais estabelecidos sem serem prejudicados na linha
de largada.” (MATTOS, 2014). É facultada a venda de diferentes velocidades de aces-
so, mas sem discriminação de conteúdo, portanto, segundo princípio de neutralidade.
Se a internet é uma rede de comunicações e informações que se constitui como
uma arena de competição por visibilidade nesse “mercado”, cujo interesse maior é o

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usuário, tal como coloca Wu (2003 apud Santos, 2014), a ideia de neutralidade pa-
rece ficar comprometida, em especial, se associada à proposta do “end-to-end, que diz
que o controle da rede deve estar nas pontas, ou seja, os intermediários (provedores
de acesso) devem abster-se de tomar decisões que cabem apenas aos usuários finais”
(SANTOS, 2014). A noção de neutralidade da rede fica também comprometida se se
pensar a oferta de conteúdos personalizados para cada usuário, conforme discute Pari-
ser (2012) em O filtro invisível. Para o autor, toda busca funciona de modo a filtrar as
informações da rede, oferecendo como resultado aquilo que “o algoritmo do Google
sugere ser melhor para cada usuário específico” (PARISER, 2012, p.8), a partir de téc-
nicas – como IP, cookies, histórico (ver nota de rodapé n.. 4) – que possibilitam o acesso
a conteúdo “perfeito” e, ao mesmo tempo, privilegiem o “indispensável” e omitam o
“irrelevante” para o usuário. Do ponto de vista da chamada inteligência artificial, tra-
ta-se de algoritmos capazes de estabelecer correspondência entre usuário (consumidor)
e hábitos (de consumo) registrados em seu histórico como navegador na internet; do
ponto de vista etnográfico-discursivo, trata-se do mapeamento de práticas de leitura e
escrita, as quais colocam em evidência práticas discursivas do sujeito segundo memória
discursiva da linguagem.
A ideia de que existiria “filtro invisível” que regeria o funcionamento de motores
de busca na internet – não havendo, portanto, princípio de neutralidade de acesso
à informação, bem maior em sociedades ditas democráticas – se aproxima, de certa
maneira, da consideração de aspectos “ocultos” que regem práticas letradas, de modo
geral, e práticas letradas acadêmicas, de maneira específica, na reflexão promovida,
dentre outros, por Lea e Street (2006), Street (2009) e Corrêa (2011). Segundo Street
(2009), aspectos “ocultos” são colocados em evidência quando, por exemplo, da ava-
liação de produções textuais acadêmicas, uma vez que existiriam aspectos cobrados na
avaliação feita por supervisores, assessores e editores de revista, os quais não são expli-
citados nem discutidos no processo de ensino. Em Lea e Street (2006), Corrêa (2011)
observa que, embora o tema dos aspectos “ocultos” do letramento não seja central
naquele trabalho, há momentos em que a questão do letramento “oculto” reaparece,
a exemplo, ainda segundo esse autor, do chamado modelo de letramentos acadêmicos
que, ao destacar relações entre pessoas, instituições e identidades, “ocultaria” “contra-
dições que definem, em termos de linguagem, as pessoas, as instituições e as próprias
identidades sociais”.
De nosso ponto de vista, essa aproximação entre “filtro invisível” e “aspectos
‘ocultos’ dos letramentos acadêmicos” permite pensar questões relacionadas ao profes-
sor em formação e ao já formado num contexto sócio-histórico que, inegavelmente,
privilegia o uso de tecnologias de informação e comunicação, tanto da perspectiva
do profissional em formação quanto da perspectiva do aluno (de uma sociedade) que
poderá formar. Trata-se da passagem de uma concepção de sujeito empírico para uma
concepção de sujeito do discurso (CORRÊA, 2011) constituído num processo discur-
sivo que é lhe mais amplo. Para o que nos interessa, trata-se da passagem de uma con-

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cepção de usuário das tecnologias para sujeito da linguagem constituído em meio a pro-
cedimentos nem sempre evidentes (visíveis, aparentes), não porque sejam da ordem
da censura ou da violência, mas porque são da ordem do(s) discurso(s) (FOUCAULT,
1996; PÊCHEUX, 2002; 2009), do que pode ser lido/visto e escrito/dito em função
de já-ditos os quais, situados no processo discursivo, historicizam a condição de sujeito
da linguagem (CORRÊA, 2011).
Se, da perspectiva da técnica, há potencial de acesso a tudo que está em rede, da
perspectiva do discurso há procedimentos que constrangem a emergência de um “su-
per-leitor” (o que poderia ler e produzir quaisquer textos), ainda que seja esse, certa-
mente, um dos objetivos de professores em formação e dos já formados. Interessa-nos,
pois, “observar as implicações discursivas dessas técnicas” (FARIA, 2014, p.15) quanto
a percursos de leitura/escrita na/em rede, a partir de um motor de busca da internet, o
que nos encaminha para uma reflexão sobre o funcionamento da linguagem na relação
com a história e com a ideologia, e nos faz problematizar: i) as relações (hiper)textuais
estabelecidas no enredamento entendido como viabilizado por recursos eletrônicos; ii)
as marcas discursivas que (se) fazem emergir (n)um modo singular de ler (e de escre-
ver). Considerar que um motor de busca como o Google pode mostrar ou ocultar in-
formações, ou, ainda, “adivinhar” aquilo que o usuário vai escrever para, então, filtrar
e moldar fluxo dos conteúdos, significa assumir que a técnica pode controlar o que é
da ordem dos discursos. No âmbito da linguagem, é sabido que, mesmo diante de re-
sultados semelhantes, a repetição emerge estruturalmente e, no plano da significação,
“desliza” na produção e disseminação dos sentidos.
FIGURA 1 – Resultados para pesquisa de “maçã” no motor de busca Google

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Na Figura 1,6 vemos o modo como a técnica funciona na tentativa de moldar os


fluxos de informação para personalizar as ofertas, o que, segundo Pariser (2012, p.14),
acontece a partir de algoritmos que orquestram os produtos e, consequentemente, a
vida do usuário. Em termos estruturais, ao escrever “maçã” o usuário chega, pelo mo-
tor de busca, a uma representação tomada como comum, a esperada no senso comum
– fruto pomáceo da macieira, significado que aparece estabilizado tanto nos resultados
exibidos por meio de links que indicam páginas eletrônicas na rede quanto nas ima-
gens dispostas à direita da página de pesquisa. Destaca-se, nessa incursão pelo motor
de busca, a oferta de páginas eletrônicas associadas a benefícios da fruta “maçã” para a
saúde dos (usuários) consumidores; destaca-se também, no último link visualizado na
parte inferior da Figura 1, como determinadas propriedades da fruta estariam associa-
das a um “Projeto Emagrecer”. Quais seriam, pois, os efeitos discursivos dos recursos
de personalização no processo de busca? De nossa perspectiva, entender, por meio da
tecnologia, a busca como processo parece ser um modo de eleger nesta reflexão não
somente o que é “dito”, o que está disposto no “conteúdo” nos links do resultado, mas
considerar também o que é da ordem do “não-dito”, o que não aparece, o indizível
que, na relação com o dizível, produz efeitos no discurso – entendido, aqui, como
efeito de sentidos entre interloculores (PÊCHEUX, 2009). Os resultados para pesqui-
sa do significante “maçã” num motor de busca como o Google colocam em evidência,
para o usuário das tecnologias, vínculo com saúde física (consumo da fruta e seus
benefícios) e com aparência física (emagrecimento, nem sempre justificado pelo fator
“saúde”), modo de ser sujeito na/da linguagem. Nessa visada, o “dito” faz laço com as
redes do “não dito”, de maneira que há um deslizamento do campo da técnica para o
campo das discurvisidades possíveis (GALLI e SOUSA, 2013), das leituras possíveis
singularizadas (não individualizadas) por sujeitos sócio-históricos.
Desse modo, procuramos, em percurso de análise de duas produções, investigar
os percursos de leitura num motor de busca da internet, observando relações (hiper)
textuais singulares que os constituem e marcas discursivas que (se) fazem emergir (n)
um modo singular de ler (e de escrever).

DAS LEITURAS: RELAÇÕES (HIPER)


TEXTUAIS SINGULARES
Considerando a relevância da descrição da materialidade analisada para o pro-
cesso de interpretação, mencionamos que o conjunto do material coletado na já refe-
rida atividade do curso de extensão é formado por 17 (dezessete) produções textuais
verbo-visuais que atenderam às orientações propostas – a saber: “Com base em Xavier
6
Essa foi a página a que quase todos os universitários participantes do curso de extensão tiveram acesso no início da ativi-
dade. Houve alterações pontuais de sequência dos links exibidos em cada máquina, o que é justiicado em função de técnicas
como IP (Internet Protocol ou Protocolo de Internet, identiicação do dispositivo em rede local ou pública), cookies (grupo
de dados trocados entre navegador e servidor de páginas e colocado em arquivo de texto criado no computador do usuário,
quando da primeira conexão) e histórico de navegação de sites visitados.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 85


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(2004) e tendo como ‘fio condutor’ a reflexão sobre LEITURA - CIBERESPAÇO


- HIPERTEXTO, faça um desenho que represente seu percurso de leitura numa fer-
ramenta de busca de sua escolha, a partir da pesquisa de MAÇÔ. De modo geral, os
participantes, professores em formação e os já formados, realizaram a proposta com
base em linguagem não verbal (a chamada “imagem”) e linguagem verbo-visual escrita
(as chamadas “palavras escritas” ou ainda “palavras”) para representar graficamente
o (seu) percurso de leitura com base no motor de busca Google, eleito por todos os
participantes dessa atividade de leitura/escrita. Embora imagem e palavra sejam en-
tendidos por estudiosos, a exemplo dos da Semiótica Social, como modos distintos de
representação da linguagem, conforme discute Komesu (2013), marcamos que ambas
representações são mobilizadas na prática da proposta de leitura/escrita do percurso
no buscador, de maneira que o processo de produção de sentidos se dá nesse entrecru-
zamento. Além da representação do percurso por meio da disposição de imagens e de
palavras “isoladas” graficamente, a maioria dos participantes apresentou uma descri-
ção em forma de texto, aqui caracterizado por palavras escritas organizadas em forma
de parágrafos.
Da maçã, fruto da macieira, escolhida no supermercado numa manhã de outono,
às maçãs da arte surrealista de Magritte: eis o ponto de partida para o desenvolvimento
da atividade sobre o percurso de leitura num motor de busca na internet, com base no
significante “maçã”. A hipótese de partida, explicitada, é a de que os percursos de leitu-
ra realizados pelo sujeito da linguagem, com base na prática letrada de escrever “maçã”
no motor de busca, rompem com a tentativa de estabilização do próprio buscador,
das informações “filtradas” e dos conteúdos estabelecidos como “pertinentes” para o
usuário das tecnologias. Da perspectiva teórica a que nos filiamos, pensar em práticas
de leitura/escrita implica considerar sentidos que não necessariamente estão em links,
imagens, palavras escritas, mas que são produzidos pelo sujeito em (suas) relações (hi-
per) textuais singulares. Adotamos, assim, a noção de (hiper) texto como não exclusiva
do ambiente da internet por concebermos que sua natureza heterogênea e não-linear
pode se aplicar a textos que circulam, também, em outros espaços.
Com base em Cavalcante (2004, p.163), que reflete sobre os links como “aquilo
que torna um texto hiper” e, ainda, como relevantes na construção dos sentidos em
produções textuais em contexto digital, propomos pensar que certas marcas discursi-
vas funcionam, também, como (hiper)textuais, dadas as redes de sentidos que fazem
emergir. Para Cavalcante (2004, p.166), os links podem funcionar como as já conheci-
das notas de rodapé dos textos impressos, e promover “ligações entre blocos informa-
cionais (outros textos; fragmentos de informação: palavra; parágrafo; endereçamento,
etc.) conhecidos como nós”; entretanto, destaca a autora, a abertura não compreende
toda e qualquer conexão, uma vez que há coerções advindas de formações discursivas
as quais “limitam” – não por censura ou violência, mas por procedimentos de exclusão
característicos dos discursos – o que pode e deve ser lido, visto, escrito (PÊCHEUX,
2009). De modo semelhante, sugerimos que os percursos de leitura realizados pelos

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sujeitos no buscador Google, embora tenham o mesmo ponto de partida – o signi-


ficante “maçã” escrito/inscrito no motor de busca –, são representados de maneiras
diferentes. De nosso ponto de vista, não se trata de personalização gerada pela técnica,
a qual produz resultados diferentes para cada usuário, mas de constituição histórica e
ideológica dos sujeitos da linguagem, o que “desliza” para os textos e para os sentidos,
conforme problematizamos a seguir.
FIGURA 2 – Produção textual A5_37

7
A codiicação é referente a: número da atividade em projeto de pesquisa mais amplo (Atividade 5, portanto, A5); número
aleatoriamente atribuído ao participante da pesquisa.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 87


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FIGURA 3 – Produção textual A5_2

O fundamental, nos parece, na interpretação dessas produções que representam


percursos de leitura dos leitores/escreventes participantes é considerar as relações (hiper)
textuais singulares, seja por repetição ou por deslizamento, pois, do contrário, teríamos
os resultados dados pelo mecanismo e não os efeitos de sentido produzidos por sujeito
sócio-historicamente constituído. A produção apresentada na Figura 2 procura repro-
duzir resultados a que se pode chegar por meio de um motor de busca como o Google.
O “desenho” feito pelo universitário coloca em destaque, na parte superior esquerda
da página “eletrônica”, a logomarca da empresa, em estilo de fonte e cores próximos
aos encontrados no site oficial; campo para preenchimento de “palavras-chave” a serem
pesquisadas com auxílio da ferramenta (no caso, “maça”, sem til); ícone, em destaque

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em branco num fundo azul, de “lupa” para indicação de busca/pesquisa. O texto verbal
escrito seguinte indica, a exemplo do que apareceria numa página eletrônica, quanti-
dade aproximada de páginas on-line em que aquela palavra-chave aparece; comentário
parentético no qual aparece o tempo cronológico transcorrido para a execução da pes-
quisa; “chamadas” de páginas eletrônicas em que “maçã” é destaque. A imagem de uma
maçã aparece desenhada na parte central ao final da página de papel; a “tela do compu-
tador” é encerrada com um “botão” de “desligar” na parte inferior à direita.
O que poderia ser entendido como repetição da técnica, de resultados oferecidos
pela ferramenta, é, de nosso ponto de vista, (re)afirmação de discursos que se cons-
tituem “no entrecruzamento da linguagem e da história”, na legitimação de práticas
sociais relacionadas a, por exemplo, saúde (benefícios de uma alimentação saudável),
ciência (necessidade de ingestão de vitaminas), acesso a conhecimento (utilização de
enciclopédia livre) num tempo histórico caracterizado e reconhecido por tecnologias
de informação e comunicação. Podemos dizer, pois, com Street (2007), que ler/escre-
ver são práticas sociais que envolvem poder e autoridade, segundo modelo ideológi-
co de leitura/escrita. Esse “modelo ideológico” proposto pelo autor busca reconhecer
multiplicidade de letramentos, já que o “significado e os usos das práticas de letra-
mento estão relacionados com contextos culturais específicos”, e, portanto, se estão
associadas a relações de poder e ideologia, “não são simplesmente tecnologias neutras”
(STREET, 2007, p.466).
A “reprodução” da tela do computador configura ainda resposta dada pelo pro-
fessor em formação ou pelo já formado à instituição: há o cumprimento da tarefa
acadêmica solicitada num diálogo formal: o que é pedido (pela instituição) é feito (pelo
sujeito), em (suas) relações (hiper)textuais singulares (não porque sejam individuais,
mas porque expõem, por presença ou por ausência, constituição sócio-histórica da sub-
jetividade). Essa talvez fosse uma tarefa feita por aluno desse (futuro) professor numa
escola tradicional. É como se o professor em formação não conseguisse projetar uma
imagem de si distante da imagem de aluno que tem obrigação de cumprir a tarefa da
escola, na (re)produção de sentidos sócio-historicamente estabelecidos para o posicio-
namento “aluno”.
A produção textual apresentada na Figura 3, por sua vez, “desliza” para sentidos
outros. O ponto de partida é o motor de busca Google, mas a descrição do percurso
de leitura a partir de “maçã”, embora indique pontos de semelhança com a produção
textual vista na Figura 2 (“maçã” > “saúde” > “dieta”), indica outras possibilidades
de leitura relacionadas a paladar (“suculenta”) e à alimentação (“maçã do amor”); à
colheita como cultura (da agricultura ao Halloween e à brincadeira em que crianças
têm de pegar, com a boca, maçãs que flutuam numa bacia com água); à religião (na
menção ao Livro do Gênesis em que Eva teria comido o “fruto proibido” da árvore da
ciência, condenando a humanidade à privação da perfeição e de uma vida infindável).
De nosso ponto de vista, esse “desenho” de percurso de leitura também expõe (por

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 89


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presença e por ausência) relações (hiper)textuais estabelecidas num enredamento en-


tendido como facultado por recursos eletrônicos, os quais são materializados numa
rede de sentidos sócio-historicamente estabelecidos por práticas discursivas. Da legiti-
midade dos dizeres sobre saúde/dieta à legitimidade (valoração) de brincadeiras numa
determinada cultura (anglófona), de dizeres sobre prazer (saciedade, satisfação) e dor
(pecado), as marcas discursivas fazem emergir modo singular (não individual, mas
histórico) de ler e escrever, produzir sentidos na/da linguagem.

DAS CONCLUSÕES
Para o que interessa ao professor em formação e/ou ao já formado, os chamados
motores de busca da internet têm se configurado como ferramenta indispensável na
própria formação acadêmica e na formação acadêmica dos (futuros) alunos. Benefícios
são entendidos como de forte impacto na produção de conhecimento: acesso à infor-
mação facilitado, considerando-se que não há necessidade de deslocamento físico para
lugares como, por exemplo, bibliotecas; acesso facilitado a obras em língua estrangeira,
mediante auxílio de tradutores automáticos; acesso, enfim, a qualquer texto disponível
em rede, levando-se em conta que o buscador poderá recuperá-lo on-line.
Da perspectiva do professor em formação e/ou do já formado e também da de seu
aluno, parece haver pouca ou nenhuma percepção de “filtros invisíveis” que consti-
tuem o modo de acesso a e a produção de conhecimento na rede. Não se trata de algo a
desvelar ou, ainda, de controle, censura, violência ao dizer, mas de procedimentos que
permitem acesso a conteúdo “perfeito”, àquilo que o usuário gostaria (ou se imagina
que ele gostaria), de fato, de encontrar numa pesquisa eletrônica. Vimos, com Pariser
(2012), como esses procedimentos privilegiam traço associado, em geral, a práticas de
consumo, no estabelecimento de correspondência entre “produção do conhecimento”
e “consumo” (de informação, de bens materiais). Esta seria uma primeira contribuição
deste trabalho no que se refere à proposta de formação no contexto acadêmico: o en-
tendimento de que a neutralidade da rede é frágil tanto do ponto de vista da técnica
quanto do ponto de vista do discurso, uma vez que a memória discursiva que envolve,
que constitui a rede (mas não somente) tem o poder de legitimar determinadas práticas
de leitura e escrita (não quaisquer umas), em geral, as privilegiadas por grupos sociais
que detêm poder e autoridade políticos, culturais, econômicos. Ao mesmo tempo,
é possível discutir como a rede permite a emergência de grupos menos prestigiados,
ainda que não tenham a mesma visibilidade seja por meio da técnica, seja pela consti-
tuição dos discursos.
Da perspectiva dos estudos de letramento acadêmico, avaliamos ser possível a
aproximação entre o conceito de “filtro invisível” (de práticas dos usuários da tecnolo-
gias) e o conceito de aspectos “ocultos” dos letramentos acadêmicos, considerando-se,
com Corrêa (2011), que ao destacar relações entre pessoas, instituições e identidades

90 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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o modelo de letramentos acadêmicos acabaria por “ocultar” as “contradições que defi-


nem, em termos de linguagem, as pessoas, as instituições e as próprias identidades so-
ciais”. Acreditamos que uma dessas contradições estaria numa compreensão da noção
de sujeito. Apresentamos, pois, uma segunda contribuição deste trabalho no que se
refere à proposta de formação no contexto acadêmico: o entendimento de que usuário
das tecnologias é distinto de sujeito da linguagem. Ao primeiro tudo é permitido: o li-
mite seria o acesso e o domínio de técnicas; ao segundo, as possibilidades emergem em
meio a coerções sócio-históricas que são igualmente constitutivas do ler, ver, escrever,
dizer. A exemplo do que diz Corrêa (2011) na reflexão sobre as perspectivas etnográfi-
ca e discursiva, a relação entre professor e aluno, entendidos como sujeitos do discur-
so, deixa, assim, de ser vista apenas como objeto de uma ação pedagógica pontual – no
nosso caso, mediada por novas tecnologias de informação e comunicação – para ser
tomada também “como uma relação de produção da linguagem, organizada em certos
gêneros do discurso e em certas conformações do texto, segundo discursos caracteri-
zados por diferentes graus de estabilização institucional” (CORRÊA, 2011, p.335).
Por fim, o trabalho de leitura de páginas eletrônicas indicadas pelo motor de
busca da internet pode auxiliar o professor em formação e o já formado, ambos pre-
ocupados com a formação acadêmica do aluno. Na produção textual apresentada na
Figura 3, o escrevente comenta, na sequência do “desenho”, a propósito dos links, que
“a partir de um objeto/assunto se ligam vários outros, abrindo várias possibilidades de
pesquisa na rede de dados”. São, como ele diz, “várias formas de leitura”. Diríamos:
trata-se de modo de refletir sobre o processo de constituição dos sujeitos da lingua-
gem, considerando-se a interdiscursividade de que são feitos. Este seria um modo de
conceber o “super-leitor” em práticas letradas contemporâneas: não como aquele que
a tudo tem acesso na rede, mas como aquele que sabe se posicionar diante de um as-
sunto, no reconhecimento de problemas, na colocação de questões, na associação, por
aproximação ou por distanciamento, de discurso a outro.

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A (RE) ESCRITA NA FORMAÇÃO DOCENTE: AÇÕES E


INTERVENÇÕES COM O USO DE MÍDIA DIGITAL

RE) WRITING IN THE TEACHER TRAINING: ACTIONS AND


INTERVENTIONS WITH THE USE OF DIGITAL MEDIA
Kleber Ferreira da Silva*
Adair Vieira Gonçalves**

RESUMO: Os resultados apresentados neste artigo decorrem de pesquisa realizada no


campo da Linguística Aplicada, mais particularmente na formação inicial de professo-
res, na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) com alunos do 4º ano do
Curso de Letras. Embasada teoricamente em estudos de reescrita do contexto tradicio-
nal e digital, procura-se: i) verificar o impacto das ferramentas tecnológicas em con-
textos assíncronos, com enfoque especial para a plataforma Moodle e o e-mail como
instrumento de envio de mensagens, na revisão de textos; ii) investigar se os procedi-
mentos de reescrita do contexto escolar tradicional, estabelecidos na área, emergem
nos contextos mediados por ferramentas digitais; iii) verificar como as intervenções
feitas pelo professor na revisão do texto são incorporadas na reescrita do aluno. Com
base nos resultados alcançados, pode-se afirmar que a reescrita mediada em platafor-
mas digitais se constitui de sobreposições e complementaridades em relação às práticas
de uso da (re) escrita tradicional evidenciando práticas sociais que, materializadas em
ações humanas, replicam, na esfera digital, o que já é consolidado no tradicional.
Palavras-chave: formação de professores, reescrita, plataformas digitais.
ABSTRACT: The results presented in this paper came from a research conducted in
the field of Applied Linguistics, particular in the initial teacher training at the Univer-
sidade Federal da Grande Dourados (UFGD) with students from 4th year of Letras
Course. Theoretically based on the studies of rewriting of the traditional and digital
context it seeks to: i) investigate the impact of technological tools in asynchronous
contexts with special focus on the Moodle platform and the e-mail as instrument for
sending messages in the review of texts; ii) investigate if the procedures for rewriting
the traditional school context established in the area emerge in the contexts mediated
by digital tools; iii) verify how the interventions made by the teacher when revising
the text are incorporated into the student’s rewriting. Based on the achieved results,
it can be stated that the rewriting mediated on digital platforms constitutes itself of
*
Sugestões e apontamentos dos professores doutores Manoel Luiz Gonçalves Corrêa (USP) e Renílson Menegassi
(UEM) se fazem presentes em vários momentos deste texto. Agradecemos pela possibilidade de interlocução e apren-
dizado. Este artigo é resultado do projeto de pesquisa A reescrita mediada pela web na formação de professores e das
relexões do Grupo de Pesquisa Práticas de Escrita e de relexão sobre a escrita em diferentes mídias. Acesso ao site do
grupo de pesquisa: www.lingualinguagens.iel.unicamp.br
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Mestre em Linguística e Transculturalidade.
E-mail: klebersilvams@gmail.com
**
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Doutor em Linguística e Língua Portuguesa, Professor Adjunto.
E-mail: adairgoncalves@uol.com.br

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 95


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overlaps and complementarities with respect to the use practices of the traditional (re)
writing evidencing social practices which materialized in human actions, replicate in
the digital sphere what is already established in the traditional.
Keywords: teacher training, rewriting, digital plataforms.

INTRODUÇÃO
A escola contemporânea, na denominada “era da informação”, tem como uma
das atribuições fundamentais capacitar os alunos para “o acesso ao conhecimento e
exercício da cidadania” (Lei nº 9.394/96), bem como proporcionar que as práticas de
leitura e de escrita de variados textos sejam constantes. As tecnologias da informação
e comunicação (daqui em diante apenas TIC) criaram novos espaços e ferramentas
comunicativas que transcendem os limites físicos e temporais, caracterizando um am-
biente de natureza essencialmente virtual denominado de ciberespaço, definido por
Levy (1999, p.92) “como o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial
dos computadores e das memórias dos computadores” (Ibid., p.92). Ele afirma que
hoje existe no mundo uma profusão de correntes literárias, musicais, artísticas, e talvez
até políticas que se dizem parte da “cibercultura”. Nesse ambiente, há as comunidades
virtuais que se configuram pelo agrupamento de pessoas com interesses afins, seja no
campo artístico-cultural, mercadológico-industrial, acadêmico-educacional, militar,
político, humorístico ou de entretenimento, dentre outros. Segundo Sartori e Roesler
(2003, p. 3), “seu funcionamento está diretamente ligado, num primeiro momento,
às redes de conexões proporcionadas pelas tecnologias de informação e comunicação
e, num segundo momento, à possibilidade de, neste espaço, pessoas com objetivos co-
muns, se encontrarem, estabelecerem relações, e desenvolverem novas subjetividades”.
Atento a isso, Marcuschi (2004), ao enfocar a natureza das novas tecnologias,
defende que o surgimento da internet e a consequente criação da rede social (virtual)
estabelecem uma nova noção de interação social que favorece a criação de verdadeiras
redes de interesse: as “comunidades virtuais” em que os membros interagem de modo
rápido e eficaz. Entendemos comunidades de práticas de aprendizado como comuni-
dades virtuais de aprendizagem que se empenham para determinado objetivo comum,
compartilhado, interconectado na web. No contexto educacional, o propósito princi-
pal pode e deve ser o ensino-aprendizagem. Conforme Sartori e Roesler (2003), “Den-
tre as comunidades virtuais, encontramos comunidades voltadas para a educação, para
a formação on-line, ou seja, as comunidades virtuais de aprendizagem [...]” em que
são estabelecidas relações com o objetivo comum de aprender. Em estudo recente,
Costa (2010, p. 24) pontua que, na aprendizagem em ambiente digital, é essencial
a formação de comunidades de práticas de aprendizado. Segundo a autora, “[...] a
constituição de comunidades virtuais de aprendizagem guia a realização e, por vezes, o
envolvimento dos alunos com a tarefa [...]”. Para concluir, acrescenta “[...] Nesse caso,

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há uma mudança de paradigma voltada à percepção de alunos e professores como


agentes cooperativos no processo de ensino de aprendizagem, de modo a ressaltar
a posição do aprendiz como um sujeito responsável por seu aprendizado” Costa
(Ibid., p. 72, grifo nosso).
O presente artigo busca, como objetivo geral, contribuir para a reflexão sobre a
práxis do uso das TIC no ensino da escrita/reescrita textual, abarcando os impactos
da interação professor-aluno/acadêmico em Ambiente Virtual de Aprendizagem e/
ou e-mail 3. O enfoque da pesquisa recai na abordagem de ensino de um dos gêneros
discursivos mais frequentes nos processos seletivos das universidades no Brasil, o artigo
de opinião. Assim, ao enfocar a reescrita de “texto” no processo de formação docente,
propusemo-nos verificar o impacto das ferramentas tecnológicas em contextos assín-
cronos, focalizando o artigo de opinião, a partir da aplicação de uma Sequência Di-
dática (BARBOSA, 2006), aqui, concebida como gênero catalisador para a formação
docente. Para Signorini (2006, p.8), um gênero catalisador emerge no processo de
“enfrentamento e ressignificação de conflitos e contradições com vistas a uma recon-
figuração necessária do espaço discursivo e interacional da sala de aula, no qual vão se
constituindo os papéis sociais de formador e de formando, os papéis institucionais de
professor e aluno, bem como as identidades individuais e de grupo”.
Como desdobramentos daquele objetivo mais geral, preocupamo-nos mais espe-
cificamente em: a) verificar se os procedimentos ou intervenções adotadas pelo pro-
fessor-pesquisador nas interações assíncronas (utilizando o e-mail como tecnologia de
envio de arquivos) são aceitos e incorporados à reescrita; b) investigar a possibilidade de
ocorrência de procedimentos de revisão do contexto escolar tradicional estabelecidos
na área, quais sejam: correção indicativa, resolutiva, classificatória (SERAFINI, 1995)
e correção textual-interativa (RUIZ, 2001) nos contextos mediados por ferramentas
digitais; c) investigar o surgimento de expansões reflexivas de informações apresenta-
das (SILVA, SANTOS e MENDES, 2014) e autocorreções autoiniciadas (PEREIRA,
2010) no contexto de revisão com o uso das TIC; d) saber se a reescrita do texto igno-
ra o diálogo/sugestão do professor-leitor (PENTEADO e MESKO, 2006); e) observar
se ocorre o processo de especularização do bilhete orientador do professor-pesquisador
na reescrita do texto do acadêmico (BAZARIM, 2013); e, finalmente, f ) analisar a
existência e a incidência de procedimentos de reescrita supratextuais, entendidos aqui
como aqueles que designam elementos “de formatação de página (títulos, subtítulos,
paragrafação) e de relevo (sublinhados, itálicos, negritos, etc.) que traduzem alguns
aspectos dos procedimentos de planificação e/ou deslocamento dos procedimentos
enunciativos” (BRONCKART, 2009, p.81) das interações (as)síncronas.

3
É importante esclarecer que, embora tentássemos limitar as interações apenas ao AVA Moodle, com o uso do “quickmail”
ou “mensagens”, notamos que o uso do endereço eletrônico convencional (e-mail) foi o mais recorrente, com a turma de
graduandos em Letras, prevalecendo sobre aquela plataforma.

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A NOÇÃO DE REESCRITA
No processo de produção textual, sabemos que o planejamento, a produção efeti-
va do texto, a leitura pelo sujeito autorizado – normalmente o professor – e a reescrita
são, do ponto de vista didático, fases que envolvem a produção escrita. Essa perspec-
tiva didática é tanto mais importante quanto mais se considere que, do ponto de vista
da construção do enunciado e do texto, não há escrita sem reescrita. Pelo menos no
sentido de que, no ato de produção do enunciado e do texto (isto é, na produção de
linguagem), planejamento e execução não se traduzem em etapas separadas que corres-
pondessem a um momento “t” para o pensamento e outro “t1” para a linguagem. Pelo
contrário, por serem processos intimamente relacionados, não raro se apresentam,
tanto na fala quanto na escrita, como vozes que se replicam ao dividirem o mesmo
tempo. De difícil separação, portanto, do ponto de vista da construção do enunciado
e do texto, podem produtivamente configurar, porém, do ponto de vista didático,
diferentes momentos da produção do texto. Por isso, visando a um ensino da escrita,
trabalhar com reescrita de textos pode servir para exercitar o distanciamento do autor
em relação ao seu próprio texto. Ao focalizar a escrita como uma atividade, um pro-
cesso contínuo, sistemático, alguns estudiosos têm evidenciado, dentre as suas etapas
de realização, a reescrita, defendendo-a como um objeto de ensino-aprendizagem a ser
contemplado por currículos escolares/acadêmicos.
Nessa direção, a noção de reescrita adotada neste artigo alinha-se ao que propõem
Fiad e Barros (2003, p.10), a saber, uma ação sobre a textualidade e sobre a discursivida-
de, “[...] uma atividade metaenunciativa que constitui um retorno sobre o dizer [...]” de
própria autoria ou de outrem. Compreendemos a reescrita como uma ação de distan-
ciamento enunciativo (crítico, pode-se dizer) delineada pela constante tentativa de se
expressar ou expressar algo do modo mais adequado à situação comunicativa subjacen-
te. A reescrita, objeto deste trabalho, implica revisitar o próprio texto4 ou o texto alheio
com vistas a adequá-lo, em termos linguísticos e discursivos. No entanto, um fator con-
siderado imprescindível neste aprimoramento é a intervenção didática do leitor (neste
caso, representado pelo professor-pesquisador) que, por meio do bilhete-interativo e de
outros gêneros catalisadores (apontamentos, comentários nas margens do texto), guia
dialogicamente as ações a serem implementadas ou não pelos estudantes.
Nessa mediação, o professor deixa de ser um mero espectador ou avaliador do
produto “texto” e, evidenciando o processo de produção textual por meio do uso das
TIC, assume ora o lugar de escrevente, ora de coescrevente, ora de destinatário, tra-
balhando, nos dois casos, de modo colaborativo com o seu aluno. Assim construída
a reescrita como objeto de investigação, cabe-nos apresentar o panorama no qual esta
atividade é (ou não) praticada, de modo sistemático. Abordaremos esta questão ao
dialogarmos com alguns teóricos na seção subsequente.
4
Nas atividades de reescrita, trabalhamos exclusivamente com reescritas de textos de autoria própria. Os sujeitos da pesquisa
intervieram, com o auxílio do pesquisador, em suas próprias produções. Em se tratando de um trabalho gerador de uma nova
versão textual, a reescrita demanda naturalmente a reescrita textual.

98 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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A REESCRITA NO CONTEXTO TRADICIONAL E DIGITAL


A prática de reescrita em contextos de ensino-aprendizagem de línguas, ignorada
ainda por muitos formadores de professores, não é novidade no ensino da produção
escrita na Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD, estando presente, por
exemplo, em disciplinas como: Estágio supervisionado, Laboratório de textos científi-
cos e Escrita e ensino, dentre outras. Esse procedimento tem sido objeto de estudos de
vários pesquisadores, dentre eles, Serafini (1995), Ruiz (2001), Fiad e Barros (2003),
Buin (2006), Bazarim (2013), Nascimento (2013), os quais têm se aplicado a inves-
tigar este tema. Ao debruçarmos sobre a literatura, buscamos selecionar os aspectos
teóricos orientadores desta pesquisa.

O LEGADO TRADICIONAL
Ao debruçarmos sobre a literatura e selecionarmos os aspectos teóricos que emba-
sam esta pesquisa constatamos, por exemplo, que Serafini (1995) defende a ocorrência
de três tipos de correção que regulam o processo de reescrita de alunos em um contex-
to tradicional5 (correção indicativa, resolutiva e classificatória). A Indicativa consiste
no apontamento, junto à margem ou no corpo do texto, de palavras, orações que
apresentam desvios para a norma padrão da língua. Nesta modalidade, o aluno é quem
deve “descobrir” a que tipo de erro se refere seu interlocutor. A segunda modalidade,
chamada de Resolutiva, consiste na reescrita de palavras, frases e períodos. Resta, neste
tipo de revisão, muito pouco ao aluno, já que as intervenções são reelaboradas pelo
professor. A terceira modalidade, conhecida como Classificatória, consiste na anota-
ção, normalmente ao lado dos desvios de norma, um código que determina a inade-
quação cometida. Por exemplo, se o código é M de maiúscula, significa que o registro
de determinada palavra deveria ser grafada com letra maiúscula e não minúscula.
Ruiz (2001) defende o tipo textual-interativo pautado no uso do bilhete intera-
tivo pós-textual. Esse tipo de intervenção materializa-se na inserção de comentários
mais extensos, geralmente escritos, “em sequência ao texto do aluno”, no “pós-texto”.
Ruiz observa que sequencialmente esse bilhete pode refletir distintos momentos da in-
teração professor-aluno, ou seja, a troca de turnos empreendida na interlocução “alu-
no-produtor, professor-corretor, aluno-revisor”. O conteúdo desse bilhete abordaria
aspectos não contemplados pelas demais tipologias de correção propostas por Serafini
(2001), em geral, relacionadas com a função de “falar acerca da tarefa de revisão pelo
aluno” (problemas do texto) ou falar, “metadiscursivamente, acerca da própria tarefa
de correção pelo professor”.

5
Adotamos a terminologia “tradicional” para designar o contexto da escrita convencional, ou seja, onde prevalecem em detrimento
da fala, as graias, as letras, sobretudo, manuscritas. Por outro viés, o contexto digital denota o ambiente no qual a linguagem é
híbrida, contemplada não somente por letras editadas eletronicamente, mas por multissemioses agregadoras de imagens, sons, ícones,
iguras, cores, realces, etc. Portanto, entendemos que o contexto digital não exclui a graia, reforça-a em nuances.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 99


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Nascimento (2013) analisa como o bilhete orientador pode funcionar como um


andaime na aprendizagem de práticas de escrita em um contexto de educação básica. O
estudo realizado revela que os bilhetes orientadores aliados a sequências didáticas possi-
bilitam refinar a compreensão a respeito da produção de um gênero discursivo, no caso
específico de sua pesquisa, como produzir relatórios de experiência. Segundo a pesqui-
sadora (2013, p. 66), por intermédio do bilhete, “é possível também abordar aspectos
mais amplos relacionados à macroestrutura textual e aos modos de circulação do gênero
[...]” dificilmente contemplados por meio de “marcações e símbolos”. Nascimento des-
taca ainda que, nos bilhetes, a ênfase está em aspectos mais amplos (funcionais, socio-
pragmáticos e esferas de circulação do gênero), mesmo reconhecendo que os aspectos
notacionais, como (pontuação, uso de maiúsculas e acentuação) também carecem de
aprimoramento. Alerta, no entanto, que apenas os módulos da SD não ensinam tudo
a respeito de como escrever determinado gênero, tampouco o bilhete orientador por si
só. Segundo a pesquisadora, é preciso intervir proporcionando momentos orientadores
de reescrita que provocaram, naquele contexto de estudo descrito por ela, além de mo-
dificações sugeridas pelos bilhetes, as modificações “automotivadas”.
Procedimentos lisonjeiros e motivacionais provenientes dos professores/mediado-
res compõem as práticas interativas no processo de reescrita. Bazarim (2013, p. 233)
identificou esse procedimento denominado de “avaliação positiva da produção”, na
interação “um-para-um” concretizada por meio de bilhetes orientadores, recados no
caderno e cartas pessoais. A essa categorias de intervenção no texto, efetuada por meio
de bilhete ou comentário, denominamos de “Reforço positivo/motivação”, como, por
exemplo, as partes introdutórias dos e-mails e bilhetes pós-textuais produzidos nesta
pesquisa eram constituídas por esse tipo de ação discursiva.
Podemos dizer, em síntese, que a reescrita no contexto tradicional tem instigado
pesquisadores contemporâneos a estudá-la de uma perspectiva fenomenológica e com
abordagens qualitativas que enfatizam a eficácia da correção interativa proporcionada
por bilhetes orientadores/interativos.

“NOVAS” TRILHAS NO CONTEXTO DIGITAL


A literatura que aborda a reescrita em ambientes mediados por tecnologias di-
gitais é menos abundante e centra-se em investigações voltadas para processos de
ensino-aprendizagem de segunda língua e outros contextos6. Em um contexto de
ensino-aprendizagem de língua inglesa, como segunda língua, Song e Usaha (2009)
apresentam um estudo de reescrita em que alunos universitários, após uma fase de
treinamento, intervêm nos textos de seus pares de dois modos: 1) formando um grupo
“face-to-face peer response – FPR” que faz intervenções escritas e por intermédio de
conversas face a face em uma classe tradicional; 2) formando um grupo “electronic
6
Conira uma das fontes que reúne algumas pesquisas por nós parafraseadas: Computers and Composition, 2012. Disponível
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100 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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peer response - EPR” que contribui com os textos dos colegas por meio do uso de um
fórum no Moodle. Esses pesquisadores, com o objetivo de capacitar os participantes da
pesquisa a serem eficazes em suas intervenções ou feedback ofertaram uma sessão de
treinamento, ministrada para todos os 20 participantes, dividida em duas fases, com
duração de 6 horas: a) na primeira fase, com duração de 2 horas semanais e totalizando
quatro horas em sala de aula, os alunos foram ensinados a: onde deveriam procurar/
intervir, quais perguntas deveriam fazer, como os comentários deveriam ser gerados
em termos de conteúdo, organização e uso da linguagem (incluindo gramática, vo-
cabulário e operações); b) na segunda fase, com duração de 2 horas no laboratório
de informática, o propósito foi ajudar os alunos a transporem problemas técnicos e a
se familiarizarem com os recursos do Moodle, mostrando e instruindo-os sobre boas
amostras de comentários. Os estudiosos chineses concluem que, em termos qualita-
tivos, os textos revisados e reescritos pelos usuários da plataforma on-line atingiram
um nível de textualidade mais elevado, em virtude de considerarem e utilizarem os
apontamentos ou comentários recebidos dos pares.
Noutro contexto de uso das tecnologias no ensino de Inglês, Chang (2012) relata
um estudo que investiga como uma combinação de três modos de interação “face a
face, síncrona e assíncrona” influencia e pode favorecer a revisão de textos realizada
por pares dos alunos. Os resultados da pesquisa, segundo o autor, indicam que o ajuste
dos três modos de interação propicia o engajamento na tarefa de revisão textual, além
de permitir o estabelecimento de categorias de comentários e a percepção/aceitação de
sugestões proveniente da revisão feita pelos pares.
No contexto de formação inicial do professor, na disciplina Estágio Supervisio-
nado de Língua Portuguesa, Silva, Santos e Mendes (2014) focalizaram o letramento
acadêmico do professor por meio de relatórios produzidos por alunos-mestre. Segun-
do os autores, estes relatórios, que deveriam contemplar análises críticas das atividades
de observação e regência de aulas ministradas na Educação Básica, à medida que foram
reescritos, após a intervenção do professor-formador, além de momentos da prática
nas escolas-campo, viabilizaram a conscientização do processo de avaliação formati-
va e o aprimoramento da escrita e do letramento dos acadêmicos. Nessa abordagem
da reescrita com o uso da ferramenta de revisão textual do Word e o e-mail servindo
como tecnologia de envio da mensagem Silva, Santos e Mendes (2014) identificaram
a existência de três categorias de atividades linguísticas que informavam o processo de
reescrita do gênero relatório de estágio supervisionado: a) apagamento da informação
apresentada (a omissão de passagem/trecho que outrora constava na primeira versão);
b) fuga da informação solicitada (aparente não compreensão da intervenção/questio-
namento ou ignorância/indiferença quanto à proposta ou à orientação realizadas pelo
professor); c) expansão reflexiva da informação apresentada (atendimento à indicação
de reescrita em conformidade com as solicitações do professor-formador, resultando
explicações adicionais com mais criticidade e produtividade). Os autores defendem
que, mesmo com algumas limitações, em virtude dos desencontros entre sentidos pre-

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 101


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tendidos e efetivados, a abordagem da reescrita é eficaz para o aprimoramento linguís-


tico e para a vivência e apropriação de “modos pedagógicos de agir”.
Silva (2013) investigou, por sua vez, o processo de reescrita em fóruns on-line em
quatro comunidades virtuais da rede social Orkut, objetivando analisar as práticas de
letramento no meio digital e suas relações com contextos off-line. Conclui que os gêne-
ros discursivos (re) escritos na web e os critérios de avaliação dos textos publicados eram
semelhantes aos praticados nas escolas de Ensino Médio a que pertenciam, além de os
estudantes poderem contar com uma gama maior de leitores para os textos produzidos.
As pesquisas mencionadas representam uma pequena amostra do papel das TIC
no ensino da escrita, na produção textual e na aquisição de língua estrangeira no ce-
nário nacional e internacional. Na seção seguinte, apresentamos a plataforma virtual
por meio da qual interagimos com os acadêmicos, mormente de modo assíncrono,
delineando mediações em etapas distintas da pesquisa.

DAS MÍDIAS E DA GERAÇÃO DE DADOS


Nas diversas instâncias de atuação humana, o uso das TIC deixou de ser um fenô-
meno em latência e, nas últimas décadas, está cada vez mais presente nas instituições
educacionais internacionais e no Brasil. Dentre as mídias presentes, destacam-se, no
Brasil, o TelEduc e o Moodle como ambientes virtuais de aprendizagem em pleno uso
por várias escolas e universidades.
O Moodle (Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment) é um Sis-
tema de Gerenciamento de Cursos “Course Management System” (CMS), também co-
nhecido como Learning Management System (LMS) ou Ambiente Virtual de Apren-
dizagem (AVA), que objetiva disponibilizar ferramentas com vistas ao gerenciamento
e à promoção da aprendizagem on-line. É um aplicativo web que pode ser utilizado
gratuitamente por professores e educadores para a criação de sites educativos. Confor-
me apresentado por seus idealizadores, o funcionamento do Moodle exige a instalação
em um computador vinculado a um servidor web ou a uma empresa de hospedagem.
Em parceria com a Universidade Aberta do Brasil - UAB, a UFGD implementou
um projeto de Educação a Distância que proporciona a oferta e o funcionamento de
diversos cursos de graduação e pós-graduação na modalidade a distância por intermé-
dio do AVA Moodle.
Salientamos que um fator decisivo para a escolha do Moodle como plataforma
de ensino-aprendizagem foi o fato de, Silva, nesta pesquisa, ter a oportunidade de
participar de um programa de capacitação “Plano Anual de Capacitação Continuada
da EAD/UFGD/UAB” no ano de 2012 e atuar em tutoria a distância de disciplinas
da Graduação na parceria UFGD/UAB. Isso viabilizou experiências no/com o AVA
Moodle e o estabelecimento de parâmetros que permitiram compará-lo a outras mídias

102 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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úteis e eficazes às atividades educacionais. A inserção dos acadêmicos no ambiente


ocorreu de modo rápido, em virtude de eles terem e apresentarem, com presteza, os
dados para cadastro e já conhecerem e terem atuado neste ambiente em semestres
anteriores, no decorrer do curso de graduação. As salas configuradas tinham um perfil
típico das utilizadas pela EAD/UFGD, providas por alguns recursos e/ou ferramentas
que foram apresentados aos alunos, a saber: (a) espaço de interação: um fórum de
discussão destinado à interação assíncrona entre os membros (professor, alunos) que
permite o anexo de arquivos; (b) chat: ferramenta destinada à interação síncrona; (c)
mensagem: ferramenta de uso síncrono e assíncrono; e (d) quickmail: ferramenta simi-
lar ao e-mail de uso assíncrono que permite também a anexação de arquivos.
Iniciadas as atividades, o papel de Silva, neste momento, concentrou-se no aten-
dimento on-line dos acadêmicos via Moodle, em interações que tinham como propósi-
to sanar dúvidas relacionadas ao AVA Moodle, realizar as correções dos artigos de opi-
nião produzidos em parceria com o docente da disciplina “Escrita e Ensino” e fornecer
“feedback”, ou seja, por intermédio de e-mail, como tecnologia de envio de arquivos
eletrônicos, esclarecer aspectos contemplados pela correção interativa. As interações
realizadas entre pesquisador e alunos se concretizaram quase exclusivamente por in-
termédio da web, em trocas de e-mails, quickmails e no chat. Levando-se em conta os
alunos cadastrados e frequentes no AVA Moodle, 19 acadêmicos participantes da dis-
ciplina Escrita e Ensino e um dos autores deste artigo participaram da pesquisa, sendo
atuantes e frequentes às aulas presenciais. Estrategicamente, o pesquisador fez uso do
e-mail/quickmail como ferramenta complementar ao bilhete interativo inserindo nele
aspectos motivacionais e instrucionais a respeito das produções de texto dos alunos.
Apresentamos, no quadro 1, um resumo, em termos quantitativos, do número de
acadêmicos que entregaram cada versão textual:
Quadro 1 – Quantidade de textos entregues por versão

Quantidade de acadêmicos que entregaram os textos por versão


Turma
1ª versão 2ª versão 3ª versão

4º ano Letras 16 14 11

Total 16 14 11

A tarefa primordial proposta no AVA Moodle consistia na elaboração de um artigo


de opinião que discorresse sobre a homossexualidade na sociedade atual7. A aplicação
da SD subsidiou os alunos a respeito do processo de produção do gênero discursivo
em pauta. Nos momentos de interação presencial, segundo as observações realizadas
7
Remetemos o leitor à proposta de redação da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP que, juntamente com a
SD, serviu de base para a escolha do gênero e tema da atividade de (re) escrita desenvolvida nesta pesquisa. Disponível
em: <http://vestibular.unifesp.br/index.php?option=com_phocadownload&view=category&id=16:provas-e-gabaritos-
-2004&Itemid=112>. Acesso em: 21 abr. 2013.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 103


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pelo pesquisador (Silva) e observações do docente da disciplina, a turma de graduan-


dos interagiu em um nível considerável; no entanto, por intermédio do AVA, as inte-
rações limitaram-se, mormente, às orientações pontuais a respeito do acesso ao AVA,
prazos de encaminhamento de atividades (produções textuais, questionário aplicado).
A presente pesquisa é de cunho qualitativo, do tipo pesquisa-ação, de natureza
sistemática e intervencionista, seja no campo educativo (na formação de professores,
por exemplo), seja no campo social, abarcando em seu desenvolvimento, métodos
de retroação ou de revisão (MORIN, 2004). A pesquisa-ação favorece ao pesquisa-
dor incluir-se como um sujeito partícipe da investigação, complementando o grupo
composto pelos membros das comunidades educacionais nas quais esteve presente e
compartilhou vivências sejam presenciais, sejam por intermédio das mídias e-mail/
AVA Moodle. A modalidade pesquisa-ação caracteriza-se por ser flexível em que o
pesquisador e demais participantes envidam esforços para ajustar, refletir, reorientar
e replanejar ações resolutivas que se articulem às situações concretas em andamento.
Cabe ao pesquisador, concomitantemente, o papel de analista e mediador das ações
entre os diversos sujeitos parceiros envolvidos no trabalho de investigação e possível
transformação da realidade. Por vezes, transpomos obstáculos e reorientamos as tarefas
com a finalidade de não engessar os procedimentos de geração de dados, mas de traba-
lhar em busca de soluções geradoras de conhecimento entre os atores envolvidos. Esse
tipo de pesquisa nos proporciona rever trajetórias e reconfigurar ações planejadas. É
oportuno mencionar que o pouco volume de interação no AVA Moodle redirecionou
nossa atenção para as versões textuais trocadas por intermédio de e-mails/quickmails,
limitando o leque de recursos tecnológicos diretamente contidos na geração dos dados
analisados. Assim sendo, o aplicativo Office Word tornou-se a mídia protagonista no
processo de análise.
A análise dos dados está centrada na descrição dos tipos de revisão realizada pelo
mediador e nas respostas dadas pelos acadêmicos. Nosso objetivo consistiu em ana-
lisar a natureza dialógica das interações estabelecidas entre os sujeitos da pesquisa,
evidenciando, sobretudo, as regularidades, as incidências mais comuns. Nessa tarefa,
deparamo-nos com casos excepcionais, como a existência de intervenções híbridas em
que uma categoria se sobrepunha a outra, além da ocorrência de alguns desencontros
semânticos. Aqui, remetemos o leitor para o “exemplo 2 do sujeito J3” do Quadro 4,
no qual percebemos que há coexistência de intervenções “Correção indicativa/altera-
ção sintático-semântica, ortográfica” e “reforço positivo” com a predominância desta.
Neste caso, alertamos que, na tentativa de responder a primeira natureza da interven-
ção, o aluno perdeu um complemento de seu período.

104 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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ANÁLISE QUANTITATIVA E QUALITATIVA DAS


CATEGORIAS DE PRÁTICAS INTERATIVAS QUE
EMERGEM NO PROCESSO DE REESCRITA
Nesta seção, apresentamos as categorias observadas no processo de interação/me-
diação efetivado por intermédio da revisão interativa das produções textuais de acadê-
micos. Com essa divisão, buscamos evidenciar: uma análise quantitativa e qualitativa
das categorias de práticas interativas que emergiram no processo de reescrita. Neste
caso, o enfoque recai nas modalidades e nos números de incidências das categorias de
intervenção do professor-pesquisador, verificando como e quantas vezes intervêm na
totalidade de versões. Consideram-se, neste caso, a totalidade ou conjunto das versões
de textos representativos dos sujeitos da pesquisa (Sujeitos “A1, “J”, “J3”, “L” e “V”).
A seguir, apresentamos o Quadro 2, sintetizador das categorias de intervenções que
emergiram no processo de reescrita.
Quadro 2- Quantiicação das categorias de intervenções/mediações por versões textuais

Categorias 1ª versão 2ª versão 3ª

1 Provocação de expansão/desenvolvimento da informação 18 5 0

2 Reforço positivo/motivação 4 2 0

Correção indicativa/alteração sintático-semântica, ortográ-


fica *considerando realces amarelos e/ou balão de comen-
3 82 78 0
tário que materializam essa intervenção que, a nosso ver, é
bem similar à “correção indicativa” (SERAFINI, 1995)

4 Correção Resolutiva 1 1 0

Total de intervenções 105 86 0

Focalizamos as modalidades e número de incidências das categorias de interven-


ções do professor-pesquisador em textos de cinco sujeitos participantes da pesquisa. A
análise permite identificar no objeto analisado (três versões textuais) quatro categorias
(fundamentadas em nosso referencial teórico) que, em sua maioria, foram se tornando
menos frequentes à medida que as reescritas eram realizadas. Identificamos um grau
elevado de atenção às intervenções/mediações e comprometimento por parte dos aca-
dêmicos no momento de redigir uma nova versão8.
A experiência em campo concentrou-se no período de 05/06/2013 a 03/07/2013,
no qual o comprometimento dos alunos no que diz respeito à intensidade de intera-
ção on-line foi fraco, sobretudo, limitado às trocas de versões textuais por intermédio
8
Esclarecemos que as intervenções nas terceiras versões não foram efetuadas, não pelo motivo de os textos estarem num
nível de excelência, mas por não haver mais tempo no calendário universitário para continuar o trabalho de reescrita.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 105


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de e-mails e quickmails. A aplicação da SD ocorreu em período regular do calendário


acadêmico. Os encontros presenciais, com duração de aproximadamente 3 horas e
15 minutos, ocorriam às quartas-feiras; neste caso, sob a ministração do docente da
disciplina “Escrita e Ensino”. Paralelamente às aulas, sob a tutoria do primeiro pes-
quisador, tentamos instigar outras formas de interações por meio de ferramentas (chat
e fórum) que acabaram sendo pouco frequentadas no AVA Moodle.
Nesse sentido, considerando a inibida exploração das ferramentas digitais dispo-
níveis, percebemos que não houve a formação de uma efetiva comunidade virtual de
aprendizagem; contudo, os dados revelam que a autonomia em relação à atuação dos
universitários participantes da pesquisa é algo diretamente relacionado com a forma-
ção de um ethos de aprendiz autônomo que, por sua vez, implica a conscientização de
seu posicionamento dialógico como cidadão e sujeito crítico em situações acadêmicas
e naquelas que extrapolam este universo. Verificamos que os textos dos estudantes
revelam indícios dessa autonomia à medida que apresentam opiniões fundamentadas
em leituras prévias e em materiais inclusive buscados e selecionados pelos próprios
acadêmicos por intermédio da web ou de modo tradicional.

CATEGORIAS DE INTERVENÇÕES
DO PROFESSOR-PESQUISADOR
Nesta seção, primeiramente, realçamos as seguintes observações a serem constata-
das nos quadros apresentados ao longo do trabalho (por exemplo, Quadro 4 adiante):
1. O grifo com a cor da fonte vermelha indica o local exato onde foi materializada a
intervenção numa das três modalidades: a) inserção de comentário em um “balão” de
revisão textual do aplicativo Office Word; b) apontando a inadequação com o realce em
amarelo ou c) resolvendo a inadequação com o uso da ferramenta de revisão “controlar
alterações”9; 2. Os trechos na segunda ou terceira versões, com cor da fonte azul indi-
cam as alterações efetuadas pelo acadêmico na reescrita10.
Esclarecemos que os grifos nos quadros se atêm à categoria em pauta, ou seja, a
transcrição dos exemplos/excertos leva em consideração o grifo pertinente à categoria
que se quer evidenciar e não a todas as intervenções presentes em determinado trecho
textual. Portanto, uma inadequação aparentemente não “tratada” em um quadro, possi-
velmente aparece em outro vinculado a (ou que ilustra) outra categoria de intervenção.
Observe-se que leitura e reescrita fazem parte do “caráter responsivo ativo”
(BAKHTIN, 2003 [1952-1953]) assumido pelos enunciados dos agentes em intera-
ção, responsividade que, no caso, ganha contornos institucionais explícitos em virtude

9
Na impossibilidade de trazer ao trabalho o “suporte”, ou seja, a mídia em que as reescritas ocorreram, ilustramos parte do
processo e dos resultados com produções escritas apresentadas no apêndice deste artigo.
10
É importante enfatizar que o conteúdo dos excertos foi transcrito ipsis litteris apresentando, naturalmente, desvios ou
inadequações à norma culta/padrão da língua portuguesa (alguns abarcados pelo processo de intervenção, outros não).

106 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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dos papéis de aluno e professor a serem assumidos por eles.


As ilustrações apresentadas proporcionam a identificação de categorias de inter-
venções do professor- leitor/pesquisador em três versões dos textos de autoria de cinco
acadêmicos(as), ou seja, centramo-nos em exemplos que demonstram a natureza das
intervenções realizadas. Neste artigo, por questões de espaço, trazemos principalmente
excertos provenientes de intervenções realizadas entre a 1ª para a 2ª versões e algumas
realizadas entre as 2ª e 3ª versões dos textos de cada sujeito envolvido. De acordo
com o tipo de intervenção realizada, há considerável mudança no texto reescrito. Nos
exemplos do Quadro 3, as questões postas pelo professor ganham, na réplica do tex-
to reescrito, o efeito de clarificação do posicionamento assumido pelo aluno sobre o
assunto discutido. Com essa alteração, o texto apresenta significativo aprimoramento
da argumentação.
Quadro 3 - Provocação de expansão/desenvolvimento da informação

Intervenção /
Exemplo 1ª versão 2ª versão
mediação
A Palavra Bíblia que é defi- A palavra bíblia é definida pelo
nida pelo dicionário Aurélio dicionário Aurélio como:[...] en-
como: [...] entretanto no dis- tretanto, no discurso religioso,
curso religioso, ao tecerem ao tecerem definições sobre a
definições sobre a homos- homossexualidade usam expres-
sexualidade expressões tais sões tais como: “A bíblia condena”,
como: “A Bíblia condena”, “A bíblia denuncia”. Essas expres-
“A Bíblia denuncia”, são fre- sões são frequentemente usadas
quentemente usadas com com o intuito de persuadir alguns
o intuito de persuadir o fiel fiéis – que possuem uma visão de
Exemplo 1 – que possui uma visão de De quem? mundo restrita – de que a homos-
Sujeito A1 mundo restrita – de que a Dos fiéis? sexualidade é abominável. Porém
homossexualidade é abo- tais expressões devem soar aos
minável e errado, entretanto ouvidos de pessoas informadas
tais expressões devem soar sobre a condição homossexual
aos ouvidos como algo do ponto de vista genético, psi-
capicioso, haja vista que a cológico e social como algo capi-
Bíblia é um conjunto de li- cioso, haja vista que a bíblia é um
vros, e que foram escritos conjunto de livros e que foram
por diferentes sociedades, escritos por diferentes socieda-
ao longo de anos, conforme des, ao longo de anos, conforme
defende o Catecismo. assegura o Catecismo.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 107


Universidade Federal da Grande Dourados

Intervenção /
Exemplo 1ª versão 2ª versão
mediação
O que se faz necessário é tentar
O que se faz necessário é
compreender os dois lados da
tentar compreender os dois
moeda, pois, assim como ho-
lados da moeda, pois, assim
mossexuais defendem o direito
como homossexuais defen-
do reconhecimento legal de suas
dem o direito do reconheci-
uniões civis, a igreja vem para
mento legal de suas uniões Crenças e
defender a instituição do matri-
Exemplo 3 civis, a igreja vem para de- costumes com
mônio como sendo um ato úni-
Sujeito J fender a instituição do ma- base em que?
co e exclusivo por ela realizado,
trimônio como sendo um Deixe claro.
e quando realizado, é por um
ato único e exclusivo por ela
sacerdote que carrega consigo
realizada, e quando realiza-
crenças e costumes, sendo a
da, é por um sacerdote, que
união do homem à mulher uma
carrega consigo crenças e
das crenças fundamentais para
costumes . [...]
realizar o casamento cristão.

No primeiro recorte/categoria, evidenciamos que, a partir da intervenção reali-


zada pelo professor, ocorreram desenvolvimentos no texto. Depreendemos que, nos
exemplos (exemplos/excertos do Quadro 3), as provocações e questionamentos do
professor resultaram no desenvolvimento ou expansão da informação apresentada.
Há a “expansão reflexiva da informação apresentada”, conforme categorizam noutro
estudo, Silva, Santos e Mendes (2014). Fica evidente que as intervenções visam jus-
tamente instigar o aluno a rever/esclarecer algo, expandindo a informação inicial e
posicionando-se mais incisivamente. O destaque azulado aponta os resultados ou efei-
tos gerados pela intervenção do professor no texto analisado. O exemplo 1 do sujeito
A1 amplia o questionamento do professor inicialmente de “aos ouvido...” (1ª versão)
“... para aos ouvidos de pessoas informadas sobre a condição homossexual do ponto
de vista genético, psicológico e social”. O recorte evidencia a “expansão ou o desenvol-
vimento da(s) informação(ões) realizadas pelo escrevente, ao levar em consideração as
provocações e apontamentos.
No Quadro 4, mostramos que as mediações feitas pelo professor configuram-se
como reconhecimento da qualidade da produção do aluno. Trata-se de um reforço
positivo à ação do aluno. Constatamos que estas intervenções visam aprovar, as opções
feitas pelo sujeito, mostrando a ele que “o caminho” está correto e deve ser mantido.
Ainda assim, no exemplo 1 do sujeito A1, o escrevente responde ao bilhete motivador
fazendo uma ou outra alteração de natureza formal.

Quadro 4 - Reforço positivo/motivação

108 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Intervenção
Exemplo 1a versão 2a versão
/mediação
[…] Discursos esses per- Discursos esses, que norteiam
meiam a vida do sujeito, que esse artigo, pois permeiam a
por sua vez haverá de definir vida do sujeito, que por sua vez,
quando solicitado um posi- haverá de definir quando solici-
cionamento que pode não tado, um posicionamento que
corresponder com as expec- pode não corresponder com as
tativas da religião/ bíblia. Em expectativas da religião/ bíblia.
Exemplo 1 meio a tais questões cabe-nos Boa Em meio a tais questões cabe a
Sujeito A1 uma questão: o que a união observação! nós uma questão: o que a união
civil de duas pessoas de orien- civil de duas pessoas de orien-
tação sexual pode interferir na tação sexual homossexual pode
vida do indivíduo ou socieda- interferir na vida do indivíduo ou
de? Tendo em vista, que essa sociedade? Tendo em vista, que
resposta é subjetiva, tentarei essa resposta é subjetiva, tenta-
não respondê-la, mas ampliar rei não respondê-la, mas ampliar
as possibilidades de resposta. as possibilidades de resposta.
Pontuo o fato, de que, tanto a
Pontuo o fato, de que, tanto a
igreja não tem o direito de in-
igreja não tem o direito de inter-
terferir nas decisões civis rela-
ferir nas decisões civis relaciona-
cionadas as questões homos-
das às questões homossexuais,
sexuais, já que tais decisões
já que tais decisões passaram do
Exemplo 1 passaram do âmbito de serem Bom posicio-
âmbito de serem julgadas pura
Sujeito J julgadas pura e simplesmen- namento!
e simplesmente como atos imo-
te como atos imorais, quanto
rais, quanto casais homossexuais
casais homossexuais de exigir
de exigir que se possam casar na
que se possam casar na igreja,
igreja, pois tal ato é inaceitável
pois tal ato é inaceitável para
para doutrina cristã.
doutrina cristã.
É importante ressaltar que a
intolerância homossexual é
É importante ressaltar que a into-
caracterizada como homo-
lerância homossexual é caracteri-
fobia sendo considerado um
zada como um crime. A Constitui-
crime. A Constituição Federal Feche aspas
ção Federal brasileira define como
Exemplo 2 brasileira define como “objeti- Bom argu-
“objetivo fundamental da repúbli-
Sujeito J3 vo fundamental da república” mento!
ca” (art. 3º, IV) o de “promover o
(art. 3º, IV) o de “promover o
bem de todos, sem preconceitos
bem de todos, sem preconcei-
de origem, raça, sexo, cor, idade
tos de origem, raça, sexo, cor,
ou quaisquer outras formas”.
idade ou quaisquer outras for-
mas de discriminação.

No quadro 5, evidenciamos um tipo de correção que denominamos de “correção


indicativa/alteração sintático-semântica, ortográfica” que se caracteriza por indicar de
diversas formas alternadas (ora com realce colorido “legendado” no bilhete pós-textual,
ora com apontamento específico em balão de comentário) as alterações a serem realiza-
das pelo escrevente. A intervenção pode, neste caso, também ser considerada resolutiva,

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 109


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na medida em que a mediação é diretiva, ao utilizar o imperativo exclua/realce. Em


ambas as possibilidades, os exemplos do Quadro 5 enfatizam aspectos formais que vão
do emprego de aspas e da correção ortográfica até a articulação formal do texto.
Quadro 5 – Correção indicativa/alteração sintático-semântica, ortográica

Intervenção /
Exemplo 1a versão 2a versão
mediação
[…] Já o casamento homos-
Já o casamento homossexual,
sexual, como afirma o do-
Exclua a vírgula como afirma o documento da
cumento da igreja, o Cate-
após o termo igreja “o Catecismo”, fere o di-
Exemplo 3 cismo , lesiona o direito da
igreja. Coloque reito da criança de nascer de
Sujeito L criança de nascer de um pai
(O Catecismo) um pai e de uma mãe conheci-
e de uma mãe conhecidos
entre aspas. dos dela e ligados entre si pelo
dela e ligados entre si pelo
matrimônio […]
matrimônio. […]
Se eu fosse responder dire-
Respondendo essa questão de
tamente à pergunta anterior,
modo objetivo, poderia fazer
poderia fazer uso dos posi-
uso dos posicionamentos de
cionamentos de Foucault,
Foucault que nos faz pensar
Exemplo 4 que nos faz pensar sobre o
Realce amarelo sobre o interesse da sociedade
Sujeito A1 interesse da sociedade sobre
sobre a sexualidade humana,
a sexualidade humana, ou
ou quem sabe usaria os pontos
quem sabe usaria os pontos
de vista de Marx sobre a relação:
de vista de Marx sobre a rela-
homem-religião.
ção: homem-religião. [...]
[...] É direito de casais homo [...] É direito de casais homo
afetivos a oficialização da afetivo a oficialização da união
união civil, em muitos paí- civil, por isso, em muitos países
ses eles são amparados pela eles são amparados pela lei,
lei, em outros, lutam para em outros, lutam para que isso
que isso se torne uma rea- se torne uma realidade, mas o
lidade, mas o que é impor- que é importante ressaltar aqui
Exemplo 3 Coloque um
tante ressaltar aqui é que é que merecem respeito como
Sujeito J conectivo
merecem respeito como qualquer outro casal, pois como
qualquer outro casal, pois indivíduo pertencente a uma
como individuo pertencen- sociedade, tem deveres a serem
te a uma sociedade, tem de- cumpridos, e assim sendo, tem
veres a serem cumpridos, e de desfrutar de seus direitos
assim sendo, tem de desfru- como qualquer outro individuo
tar de seus direitos também. heterossexual.
Hoje se formos pensar na
Hoje se formos pensar na ques-
questão do homossexua-
tão do homossexualismo, este
lismo, este não precisa da
Exemplo 4 Quando não precisa da aprovação da
aprovação da igreja para ser
Sujeito J ou porquanto? igreja para ser aceito, porquan-
aceito, quando está con-
to está conquistando seu espa-
quistando seu espaço e di-
ço e direitos na legislação, […]
reitos na legislação, […]

110 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Todas as intervenções na produção anterior foram acatadas. Houve a supressão da


vírgula após a palavra igreja pelo sujeito L, no exemplo 3; no exemplo 4, o Sujeito A1
também suprimiu a vírgula. No exemplo 3 do sujeito J há o acréscimo do conectivo
“por isso”; por fim, no exemplo 4 do Sujeito J, ocorreu alteração do conectivo “quan-
do” para “porquanto”. Isto é, o ambiente virtual replica o que é comum no ambiente
tradicional de ensino de Língua Portuguesa: as marcações de natureza formal.
Os excertos presentes no Quadro 6 revelam a presença da correção resolutiva no
contexto digital. Destacamos, neste caso, que entre a primeira e a segunda versão, a
correção resolutiva não teve eficácia, sendo ignorada pelo acadêmico que “não a acei-
tou”, por intermédio da ferramenta de controle de alterações/revisão textual no Word
ou por deslize, equívoco em sua utilização. A inadequação foi sanada na reescrita entre
a segunda e a terceira versões.
Quadro 6 - Correção Resolutiva

Exemplo 1a versão intervenção/ mediação 2a versão


Muito discute discute- Muito discute-se sobre
-se sobre a questão dos a questão dos homos-
Resolutiva11: exclusão da
homossexuais, principal- sexuais, principalmente
palavra repetida com o
Exemplo 1 mente quando se trata da quando se trata da legali-
uso da ferramenta de re-
Sujeito V legalização do casamen- zação do casamento civil
visão do Word -"contro-
to civil igualitário e da igualitário e da adoção
lar alterações"
adoção de crianças pelos de crianças pelos casais
casais homossexuais. homossexuais.
*resolutiva1: o professor- […] Na verdade eles que-
Na verdade, eles querem -leitor faz a inserção da rem é banir o matrimônio
Exemplo 1
é banir o matrimônio mo- vírgula com o uso da ferra- entre um homem e uma
Sujeito L
nólogo e por toda a vida. menta de revisão do Word mulher “por toda a vida”.
-"controlar alterações" […]

Quadro 7 – Correção indicativa (demonstração avulsa)

intervenção/
2a versão 3a versão
mediação
[…] Na verdade eles querem
[…] Na verdade, eles querem é banir o
é banir o matrimônio entre
pontue matrimônio entre um homem e uma
um homem e uma mulher
mulher “por toda a vida”.[…]
“por toda a vida”. […]

11
O acadêmico não se atenta para a primeira intervenção resolutiva. A adequação só ocorre após outro tipo de intervenção
(indicativa), dessa vez, realizada entre a 2ª e 3ª versão (conira quadro 7).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 111


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TIPOLOGIAS DE MANOBRAS DO INTERLOCUTOR/


ALUNO-ESCRITOR ANTE AS INTERVENÇÕES DO
PROFESSOR-PESQUISADOR NA REESCRITA
Nesta seção, centramo-nos nos tipos de manobras que o acadêmico realizou na
reescrita considerando as intervenções do professor-pesquisador.
Quadro 8 - Expansão da informação automotivada

Intervenção
Exemplo 1a versão 2a versão
/mediação
[...] Dessa forma, o puritanismo acaba
[...] Dessa forma, o pu- sendo dilacerado pela consciência.
ritanismo acaba sendo Afastando-se dos argumentos bíblicos
dilacerado pela cons- e do posicionamento do Vaticano que
ciência. Afastado dos em 2003 lançou uma: “(...) campanha
argumentos bíblicos, mundial contra a legalização da união
devemos compreen- civil homossexual e pediu aos políti-
Exemplo 1
der que a diferença é ___ cos católicos de todo o mundo que se
Sujeito A1
elemento constituinte pronunciem de forma "clara e incisiva"
do ser humano e que contra as leis que favorecem casamen-
a forma que eu olho e tos gays.”Devemos ter em mente que
interpreto o “Outro”, de- a diferença é elemento constituinte
pende do ponto de vis- do ser humano e que a forma que eu
ta que eu adoto. olho e interpreto o “Outro”, depende
do ponto de vista que eu adoto.
[…] Isto é, para a igreja Isto é, para a igreja o matrimônio está
Exemplo 1
o matrimônio está a fa- ___ a favor da vida gerada pela fecundida-
Sujeito L
vor da vida […] de entre um homem e uma mulher.

O Quadro 8 também se volta à “expansão ou desenvolvimento pontual (e por


consequência global) da(s) informação(ões)” apresentadas. Neste caso, a expansão é pro-
vocada por iniciativa do próprio autor do texto. Há uma expansão automotivada que
Pereira (2010) denominaria de autocorreção autoiniciada. No ponto em que ocorre a
primeira autocorreção, no exemplo 1 do sujeito A1, caberia uma intervenção do profes-
sor numa segunda devolutiva. Na 3a versão, haveria a possibilidade de lidar, ao mesmo
tempo, com o reconhecimento da qualidade da autocorreção e com o esquecimento pro-
duzido por ela, a saber, o enunciado é preparado por uma circunstancialização que, no
entanto, não encontra uma ação que lhe corresponda (ou, em termos sintáticos, a oração
circunstancial se apresenta órfã, isto é, desligada de qualquer oração matriz).
No quadro 9, há a identificação de um tipo de digressão realizado pelo autor do
texto quando interpelado pelo professor.

112 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Quadro 9 - Fuga da informação/sugestão proposta

Intervenção
Exemplo 1a versão 2a versão
/mediação
[…] Historicamente falando […] Historicamente falando,
acredita-se que este precon- acredita-se que este preconcei-
ceito tem origem na idade to tem origem na idade média,
Exemplo 1 média, onde com a expansão em que, com a crescente expansão do
Sujeito J3 do monoteísmo cristão, reli- na qual monoteísmo cristão, religiosos
giosos pregavam tal condição pregavam o homossexualismo
como uma perversão, perse- como uma perversão, perse-
guindo os e matando. guindo os e matando. […]
Não podemos continuar cegos Não podemos continuar cegos
diante desta triste realidade, diante desta triste realidade,
onde pessoas são excluídas de Por parte de em que pessoas são excluídas
direitos sociais e com medo quem? Há de direitos sociais e com medo
Exemplo 2 de expor sua identidade por informes? de expor sua identidade por
Sujeito J3 conta da represália. Somos se- O que fazer conta da represália. Somos se-
res racionais dotados de livre para mudar res racionais dotados de livre
arbitrio e ser homossexual de esse quadro? arbítrio e ser homossexual de
maneira alguma infringe o di- maneira alguma infringe o di-
reito do outro. [...] reito do outro. [...]

É possível verificar que, ao ser questionado ou provocado a fazer alterações em


seu texto, o autor (a) não responde, tampouco faz as alterações propostas. Há fuga da
informação solicitada (SILVA; SANTOS; MENDES, 2013) ou não consideração da
sugestão proposta pelo mediador. (PENTEADO e MESKO, 2006) denominariam
esta categoria de “escamoteamento ou não consideração das indagações do bilhete”.
No quadro 9, exemplo 1 do sujeito J3, a solução adotada pelo escrevente não
é efeito propriamente de escamoteamento, mas de polêmica com a sugestão dada
pelo professor. Na impossibilidade alegada de retomar uma expressão de tempo com
“onde”, o escrevente prefere uma solução por justaposição à solução oferecida a ele,
por conexão. Já o exemplo, exemplo 2 sujeito J3, o mesmo escrevente parece pressu-
por que a represália é sempre coletiva, social e, com base nisso, desconsidera e, desse
modo, contorna a interessante sugestão do professor que, por sua vez, parecia querer
provocar no aluno uma autorreflexão sobre o próprio papel na “represália” aos homos-
sexuais que se assumem como tais publicamente. Para contornar essa solicitação, a so-
lução do escrevente parece ter sido, portanto, a de manter a atribuição da “represália”
apenas ao outro (a sociedade). A categoria apresentada no Quadro 10 revela que há
a “incorporação de parte do enunciado do professor-leitor” no processo de reescrita.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 113


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Quadro 10 - Incorporação de parte do enunciado do professor-leitor

Intervenção /
Exemplo 1a versão 2a versão
mediação
[…] A tarefa principal Qual indivíduo? A tarefa principal dessas discus-
disso e dessas questões O fiel, o cidadão sões deve ser fazer o homem
é fazer o Homem pensar, que não deixam pensar. O homem como sujeito
pois esse exercício, deve- de ser sujeitos autônomo, autor de sua própria
Exemplo 1 -se tornar hábitos para ou assujeitados história e responsável pelas cren-
Sujeito A1 que o indivíduo não se em sociedade? ças que adere
torne uma marionete de Como eles de-
terceiros e reproduza o vem se posicio-
que os outros pensam e nar, pensando e
querem o indivíduo faça. ... fazendo o quê?
[…] Enfim, a igreja apenas E você? […] Enfim, a igreja apenas luta
luta pela permanência de Como se posicio- pela permanência de um mo-
um modelo de matrimô- na ante a união delo de matrimônio que tem
nio que tem provado na homoafetiva? provado na sociedade sua efi-
sociedade sua eficiência Como propõe ciência ao longo do tempo
ao longo do tempo para uma convivência para aqueles que acreditam.
aqueles que acreditam. pacífica entre os Acredito que não há acordo entre
militantes ho- a igreja e os militantes homosse-
mossexuais e os xuais, mas se faz possível a pro-
fiéis? É possível? moção de um diálogo permeado
Exemplo 1
pela paz, respeito e por uma con-
Sujeito D1
vivência harmoniosa, pois apesar
de não concordarmos com esse
tipo de condição de vida, pre-
cisamos amar o próximo, sem
julgamentos, uma vez que Jesus
afirmou: “Não é o que entra pela
boca que causa o mal e sim o que
sai da boca” (Mt 15:11), pois ‘to-
dos’ nós somos filhos de Deus e
temos o direito de recomeçar. [...]

Neste caso, o escrevente se apropria de parte “do texto” que compõe a intervenção
do professor. Observamos que pode haver reflexos de palavras ou orações que revelam
a especularização (BAZARIM, 2013) proposta na mediação do professor.
No exemplo 1 do sujeito A1, no quadro 10, nota-se que, apesar da incorporação
de parte do enunciado do professor, o escrevente não responde à tentativa do professor
de levá-lo à reflexão sobre o seu próprio papel quanto ao tema. Pelo contrário, essa
incorporação é, num primeiro momento, atribuída ao ser humano em geral (mesmo
falando de sujeito autônomo e alterando a grafia da palavra “homem”, na primeira
versão escrita com “h” maiúsculo). Essa atribuição generalizante, ao mesmo tempo
em que parece buscar evitar a exposição pessoal, incorpora, formalmente, o dizer do
professor num encadeamento de clichês sobre o papel do sujeito: “autor de sua própria

114 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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história”, “responsável pelas crenças que adere”. Esse encadeamento põe esse dizer em
circulação assumindo, uma vez mais, uma voz coletiva, a do senso comum.
A generalização para o ser humano também ocorre no segundo exemplo do mes-
mo quadro, exemplo 1 do sujeito D1, mas de um modo um tanto diferente. Desta vez,
é o homem segundo a fé cristã que entra em cena, a igualdade é um direito por força da
noção de perdão (e de sua contraparte, isto é, a de se reconhecer no erro, no pecado),
pois todo homem teria, segundo o escrevente, “o direito de recomeçar”. Neste caso,
o escrevente incorpora, de fato, a solicitação do professor e responde a ela na segunda
versão ao esclarecer a posição que ocuparia na primeira formulação apresentada.

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS E


APONTAMENTOS (QUASE) FINAIS
No que diz respeito ao objetivo geral desta investigação, averiguamos que as prá-
ticas docentes/discentes no uso de ferramentas tecnológicas em contextos assíncronos,
especificamente, dos recursos do aplicativo Word, geraram impactos na reescrita de
textos de graduandos em contexto de formação inicial na UFGD no 4º ano do Curso
de Letras, no sentido de que resultou textos-resposta mais densos e providos de mais
clareza e relativo posicionamento do sujeito. Além disso, as práticas interativas com o
uso de novas mídias fortalecem o processo de mediação professor-acadêmico, fomen-
tando e reforçando a produção escrita dialógica em diferentes contextos.
Voltando-nos para o nosso objeto, verificamos que, dentre as categorias de in-
tervenções provenientes das mediações correção indicativa, resolutiva, classificatória
(SERAFINI, 1995), correção textual-interativa (RUIZ, 2001), há aquelas tradicionais
(correção indicativa, correção resolutiva, por exemplo) transmutadas por um novo
“layout” e/ou “Know-how” viabilizados por intermédio do uso de mídias mais avança-
das. Dentre essas intervenções emergiram algumas “híbridas” providas da dupla fun-
cionalidade na qual uma delas prevalecia. É o que ocorre no exemplo 2 do sujeito J3,
presente no Quadro 4. No contexto digital, a aparente maior facilidade de manipu-
lação de porções do texto, de alteração de posição, de inserção de trechos, pode ser
um dos estímulos que encorajam as alterações, tomadas também como parte de uma
atividade quase lúdica e de curta duração.
Ao analisarmos os procedimentos responsivos dos graduandos ante as interven-
ções do mediador, constatamos a ocorrência de expansões reflexivas de informações
apresentadas (SILVA; SANTOS; MENDES, 2014), autocorreções autoiniciadas (PE-
REIRA, 2010) emergentes no contexto de correção dos artigos de opiniões com o uso
das TIC. Enfatizamos, no entanto, que diferentemente das autocorreções autoinicia-
das apontadas no contexto de pesquisa de Pereira (2010), estas surgiram materializadas
nas versões “secundárias” dos textos e desprovidas de justificativas e/ou interpelações
corretivas metaenunciativas. Pode-se, pois, aventar a hipótese de que as autocorreções

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 115


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autoiniciadas retomam o caráter relacional intrínseco entre escrita e reescrita a que


nos referimos no início. Do ponto de vista da produção do enunciado e do texto (da
produção de linguagem) um texto dificilmente se realiza numa única direção. Sua es-
crita experimenta, sempre, as retomadas que nunca se caracterizam pela univocidade e
unidirecionalidade. Do mesmo modo, a retomada de um texto num enquadramento
didático de ensino de escrita, dificilmente se limita a uma cópia fiel de sua primeira
versão, pois as vozes representadas (contemporâneas à escrita) normalmente produzem
réplicas por parte das vozes em representação (contemporâneas à reescrita). É o que
parece ocorrer nas chamadas autocorreções autoiniciadas.
Os procedimentos interpelativos ou intervenções adotadas pelo professor-pesqui-
sador nas interações assíncronas (e-mail, comentários no corpo textual), na maioria dos
casos, foram aceitos e incorporados à reescrita do gênero artigo de opinião. Várias são
as hipóteses sobre a aceitação e incorporação por parte dos alunos. A primeira e, talvez,
mais óbvia, é a da autoridade do professor. Não é uma simples intervenção aquela que
o aluno recebe, é uma intervenção de seu professor, cuja representação dominante é
a de ser aquele que sabe. Outra, talvez menos natural, é a do recorte temático. O fato
de lidar com um tema polêmico, sobre o qual as posições que se antagonizam são
fortemente estigmatizadas de lado a lado põe o aluno no intervalo dessa polêmica.
Pode-se, pois, pensar numa tendência do aluno acatar o ponto de vista da instituição
que propôs o tema, o que, uma vez mais, faz a figura do professor predominar, agora
sobre o próprio tema. Por fim, a terceira hipótese é a do caráter responsivo ativo do
sujeito. Desse ponto de vista, a incorporação da intervenção pode se dar pela aceitação
da direção argumentativa nela proposta ou por sua negação. Em ambos os casos, é o
próprio escrevente que se marca na relação com o interlocutor (o professor que inter-
veio em seu texto), ora incorporando (replicando a) essa intervenção por aproximação,
ora incorporando-a (replicando a ela) por distanciamento.
Nas interações (as) síncronas, percebemos poucas incidências de procedimentos
de reescrita supratextuais, ou seja, manobras “de formatação de página (títulos, subtí-
tulos, paragrafação) e de relevo (sublinhados, itálicos, negritos, etc.) traduzindo alguns
aspectos dos “procedimentos de planificação e/ou deslocamento dos procedimentos
enunciativos” (BRONCKART, 2009, p.81). Tais manobras, quando ocorrentes, de-
rivavam de correções que denominamos de “Correção indicativa/alteração sintático-
-semântica, ortográfica”.
Os procedimentos de mediação consagrados no contexto tradicional emergem
no contexto de uso das mídias com novas roupagens ou designers proporcionados
pelos suportes agregados a essas mídias. Contudo, sem necessariamente radicalizar os
paradigmas de correção textual que têm o agente humano como mentor, o uso das tec-
nologias, a nosso ver, considerando a troca de versões, a troca de bilhetes, mensagens,
e-mails/quickmails, a formatação de páginas, a estruturação textual, por ora, imprime
um caráter mais célere, dinâmico e “sistematizado” ao processo de correção, nem por

116 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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isso, plenamente livre de lacunas, rupturas, inconsistências, desvios e desencontros no


que diz respeito à interação.
Concluímos que a reescrita mediada por plataformas digitais se constitui de rup-
turas e complementaridades em relação às práticas de uso da escrita (SIGNORINI,
2013). Em outras palavras, a escrita/reescrita “hipermidiática” se assemelha e, ao mes-
mo tempo, se diferencia da reescrita que ocorre nos suportes tradicionais, não per-
mitindo um delineamento explícito de fronteiras entre uma prática e a outra. Os
encontros entre escrita hipermidiática e tradição podem ser vistos também à luz dos
encontros que a escrita mantém com o falado, suportes indubitavelmente tradicionais.
No entanto, no caso da relação entre fala e escrita, está fartamente comprovado o ca-
ráter heterogêneo desses dois modos de enunciação. Nesse caso, não faz sentido falar
em tradição grafocêntrica, mas em caráter intrínseco da heterogeneidade, caráter que
não é privilégio, portanto, da escrita hipermidiática.
Os procedimentos de reescrita do contexto digital (CHANG, 2012), num plano
orientado para as regularidades obtidas nas interações típicas das TIC e nas relações mo-
ventes entre professor-pesquisador e professores em formação inicial numa instituição
pública federal, permitem-nos vislumbrar bordas que permeiam a relação da escrita tra-
dicional com a escrita no contexto digital. Nesse sentido, alertamos que a possibilidade
do estabelecimento de um novo “ethos” (ROJO, 2013) deve considerar a capacitação
dos agentes humanos e a inserção de novas práticas, a serem ainda testadas, validadas (ou
não), a partir de novas possibilidades de ensino da escrita com o uso das TIC.
Pela análise efetivada a partir de uma produção escrita e das respectivas solicita-
ções de reescrita por meio de plataformas digitais, pudemos perceber que, em contex-
tos formais de ensino – especificamente, no caso, a (re) escrita na universidade –, ocor-
rem intersecções e amálgamas de procedimentos de reescrita do contexto tradicional e
procedimentos do contexto digital (SIGNORINI, 2013). As intervenções indicativas,
resolutivas de Serafini, aliadas às textual-interativas retornam, reconfiguradas, nas pla-
taformas digitais. Reconfiguradas porque acrescentam-se-lhes grifos, sublinhados que
facilitam a identificação do problema a ser sanado. A intervenção textual-interativa
nas plataformas digitais aqui investigadas ocorre, em termos quantitativos, em núme-
ro mais substancial que as mesmas intervenções em contexto tradicional de ensino.
Uma variedade substancial de estratégias foi incorporada pelos docentes em formação
inicial: a partir de estratégias de sedução e/ou manipulação (BAZARIM, 2013) (tam-
bém frequentes no contexto tradicional) os estudantes sentem-se impelidos e/ou en-
corajados a fazer alterações em sua produção. Nesse sentido, observamos que, muitas
vezes, o graduando se utiliza do bilhete interativo do formador para expandir seu texto
significativamente; outras vezes expande seu texto de forma automotivada.
A presente pesquisa evidenciou práticas sociais, materializadas por intermédio das
ações humanas, que replicam na esfera digital o que já é consolidado na escrita tra-
dicional, ou seja, uma observação mais refinada comprova que nem tudo é novidade

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 117


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quando analisamos o universo cibernético. O nosso propósito consistiu em identificar,


por uma necessidade de natureza empírica, as categorias ou tipologias de intervenções/
mediações interativas e, concomitantemente, o grau de incidências e seus efeitos em
textos mediados com o uso de ferramentas no contexto digital.
As etapas trilhadas até o momento nos permitem vislumbrar a abordagem da re-
escrita não apenas como objeto de pesquisa. A reescrita representa um processo indis-
pensável no ensino da produção textual que vem ganhando espaço, em maior propor-
ção, no meio acadêmico e, paulatinamente no âmbito da Educação Básica no Brasil e
no exterior.
No que diz respeito ao contexto tradicional, temos dados que revelam a coexis-
tência (de complementaridades) de métodos incitadores da reescrita. Há evidências
de que o método mais eficaz de correção é a correção textual-interativa/correção inte-
rativa (SERAFINI, 1995; RUIZ, 2001). A identificação de excepcionalidades como
as intervenções “híbridas” e alguns desencontros na interação entre aluno e professor
mais comprovam do que negam o processo de correção textual-interativa que, so-
bretudo, mesmo viabilizado por meio de ferramentas tecnológicas, requer empenho,
responsabilidade e compromisso mútuo com vistas a tornar o processo de reescrita o
mais eficiente possível.
A inserção das TIC, a partir de meados da década de 90, em contextos educacio-
nais, no Brasil, especificamente o microcomputador conectado à internet, colocou em
xeque as noções de limites espaciotemporais. Assim, a contínua evolução tecnológica
tem reconfigurado as relações sociais e práticas decorrentes delas em diversas instân-
cias, entretanto, cabe-nos alertar que nem tudo é novo no contexto digital, pois a es-
crita tradicional possibilitou, há muito tempo, a fixação da memória no texto escrito,
o que sempre a caracterizou como um instrumento para vencer o tempo e ultrapassar
as limitações dos espaços.

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120 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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APÊNDICE
AS TRÊS VERSÕES DO TEXTO DO(A) ACADÊMICO(A) SUJEITO “J3”
1ª versão

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 121


Universidade Federal da Grande Dourados

2ª versão

122 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

3ª versão

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 123


Universidade Federal da Grande Dourados

124 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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CONCEPÇÕES SOBRE A ESCRITA ACADÉMICA DE


ESTUDANTES DO ENSINO SUPERIOR1

CONCEPTIONS ON ACADEMIC WRITING


OF UNIVERSITY STUDENTS
Luísa Álvares Pereira2*
Luciana Graça*3*

RESUMO: Em Portugal, começa a surgir, muito lentamente, uma preocupação com


um ensino explícito da escrita, também na universidade. Ora, o presente estudo, re-
conhecendo a importância das concepções, apresenta resultados de um questionário
aplicado a estudantes universitários portugueses, precisamente, sobre as concepções
que eles têm sobre a escrita, solicitada e (não) trabalhada, na universidade. A análise
não encontrou diferenças significativas entre os estudantes de diferentes áreas, relativa-
mente à ativação das operações do processo de escrita. Porém, este estudo demonstrou
a existência de diferenças importantes, relativamente ao acompanhamento institucio-
nal da atividade de escrita dos estudantes.
Palavras-chave: literacia universitária; escrita académica; conceções dos estudantes.
ABSTRACT: In Portugal, begins to emerge very slowly, a concern with an explicit
teaching of writing, also at the university. However, this study, recognizing the im-
portance of conceptions, presents the results of a questionnaire applied to Portuguese
university students on precisely the conceptions they have about writing, requested
and (not) worked in university. The analysis found no significant differences between
students from different fields concerning the activation of operations of the writing
process. However, this study demonstrated the existence of significant differences re-
lating to institutional monitoring the activity of writing students.
Keywords: academic literacy; academic writing; conceptions of students.
«Nous savons que la relation entre l’écrit et les savoirs et savoir-faire disciplinaires
est complexe. Russell introduit la notion de «l’essence des jeux de ballon» (ball-ness)
pour clarifier le problème: apprendre à écrire, à part dans son aspect mécanique, n’est
pas comme apprendre à faire du vélo – une fois appris, on s’en sert partout – mais
plutôt comme apprendre des jeux de ballon : un cours concernant l’essence du ballon
ne développera pas beaucoup les capacités nécessaires pour jouer au golf, au foot, au
baseball.». (DONAHUE, 2010, p. 47)
1
Este texto foi produzido no âmbito do grupo de investigação PROTEXTOS – Grupo de pesquisa na produção de textos,
coordenado por Luísa Álvares Pereira e Luciana Graça (CIDTFF – Departamento de Educação da Universidade de Avei-
ro), e do projeto de pós-doutoramento de Luciana Graça, inanciado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/
BPD/75952/2011) e com supervisão cientíica de Luísa Álvares Pereira e Joaquim Dolz.
2 *
Universidade de Aveiro. Portugal. Doutorada em Didática do Português. Docente do Departamento de Educação e
Coordenadora do Mestrado em promoção da leitura e Bibliotecas Escolares. E-Mail: lpereira@ua.pt
3 **
Universidade de Aveiro. Portugal. Doutorada em Didática de Línguas. E-mail: lucianagraca@ua.pt

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 125


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INTRODUÇÃO
O ensino superior configura um espaço em que se multiplicam as escritas e os es-
critos. Multiplicidade esta que é não só abundante como também heterogénea, como
nos é assinalado logo na apresentação de Littéracies universitaires: nouvelles perspectives,
nas palavras de Isabelle Delcambre e Dominique Lahanier-Reuter (2012). E com a
introdução do chamado Processo de Bolonha,4 criado numa tentativa de harmoniza-
ção do ensino superior dos diversos países europeus, assistiu-se: em primeiro, a uma
multiplicação de unidades curriculares, sem uma prévia transformação dos currículos;
e, em segundo, a uma colocação do enfoque no estudante, negligenciando-se a pró-
pria relevância dos dispositivos de ensino que suportam qualquer aprendizagem que
se queira efetiva. Situações estas que conduziram a uma (ainda) maior proliferação de
tarefas de avaliação por escrito, sem que a tal correspondesse um ensino preciso e siste-
mático de tal capacidade, o que contraria, indiscutivelmente, os pressupostos em que
se funda a própria Declaração de Bolonha, que previam uma mudança em termos das
metodologias didáticas e das práticas educativas no sentido de uma ativa construção
do conhecimento. E, com efeito, a escrita pode aqui assumir, precisamente, um papel
central, enquanto ferramenta da própria aprendizagem, que a investigação científica
tem vindo a demonstrar cada vez mais recorrentemente.
Nesta nossa contribuição, o enfoque será colocado nas concepções dos estudantes
sobre a escrita académica, ultrapassando-se, assim, uma focalização mais recorrente
sobre dimensões estritamente linguísticas e que tem dominado, nos últimos anos,
as pesquisas nesta área da escrita no ensino superior (BOCH, LABORDE-MILAA
& REUTER, 2004; LONKA, CHOW, KESKINEN, HAKKARAINEN, SANDS-
TRÖM, & PYHÄLTÖ, 2014). Com efeito, uma mudança a nível das práticas será
tão mais efetiva, quanto mais profunda puder ser. E, nesse sentido, um prévio conhe-
cimento das concepções dos sujeitos afigura-se essencial em tal processo de transfor-
mação. Mais especificamente, o objetivo primeiro deste texto consiste em contribuir
para um conhecimento mais aprofundado sobre os usos da escrita em diferentes áreas
curriculares, no ensino superior português, assim como como sobre as percepções dos
estudantes sobre o seu próprio processo de escrita e a implicação desta mesma capaci-
dade de linguagem no seu trabalho na universidade.

4
O Processo de Bolonha deve o seu nome à chamada Declaração de Bolonha, assinada no dia 19 de Junho de 1999, na
cidade de Bolonha (Itália), pelos ministros responsáveis pelo ensino superior de 29 países europeus, entre os quais Portugal.
Trata-se de um processo de reforma intergovernamental, a nível europeu, inscrito nos objetivos da Estratégia de Lisboa,
visando concretizar o Espaço Europeu de Ensino Superior.

126 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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ESCRITA ACADÉMICA, EM PORTUGAL:


ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA
A evidência de que a escrita académica e/ou científica (RUSSELL & CORTES,
2012) está no centro da vida social no ensino superior é facilmente constatável5. Em
Portugal, com Bolonha, sobretudo, o Ensino Superior tem assumido, pelo menos
tacitamente, dois pressupostos: i) a redução da capacidade de escrita a um veículo de
transmissão de conteúdos científicos, na suposição de que a posse de conhecimentos
é suficiente para o seu registo escrito com sucesso; ii) a consideração de que o ensino
da escrita é tão-só da responsabilidade dos próprios estudantes (CARVALHO, 2008;
PEREIRA e LOUREIRO, 2010; PEREIRA e CORREIA, no prelo; BARBEIRO, PE-
REIRA e CARVALHO, no prelo). Ora, estes pressupostos em nada têm contribuído
para colocar na ordem do dia a discussão em torno da problemática do ensino da
escrita nas instituições de ensino superior em Portugal.
Em outros países, porém, já há muito que tem vindo a ser organizados cursos em
que a tónica reside no ensino de estratégias de aprendizagem da escrita e da oralida-
de (CARLINO, 2005; MONSERRAT e DONAHUE, 2012). No entanto, também
não deixa de ser verdade que tais trabalhos têm igualmente sido objeto de críticas,
designadamente, devido ao facto de as atividades de compreensão e produção textual
ensinadas nesses cursos não estarem em íntima conexão com o próprio conteúdo das
matérias científicas específicas de cada unidade curricular particular (DELCAMBRE
e LAHANIER-REUTER, 2010; DELCAMBRE e LAHANIER-REUTER, 2012;
DONAHUE, 2008). Outros países, na realidade, alcançaram já outra etapa deste pro-
cesso de construção de uma didática da escrita académica (RODRIGUES e PEREI-
RA, 2008), ensinando estratégias de aprendizagem intimamente conexionadas com a
especificidade do conteúdo científico abordado.
Quanto a estudos empíricos que possam ser destacados, por abordarem esta ques-
tão, pelo menos mais ou menos diretamente, anotamos, em primeiro lugar, os estudos
de natureza psicossociológica, já realizados desde há muito tempo, que têm demons-
trado as enormes dificuldades de adaptação de muitos alunos ao Ensino Superior,
devido a uma difícil passagem de uma lógica de socialização escolar (própria do en-
sino secundário) a uma lógica de socialização académica (como o ensino superior).
A concetualização das práticas de escrita tem vindo, contudo, a evoluir no sentido
da sua consideração como uma atividade social, culturalmente situada. Na realidade,
aprender a escrever textos académicos pressupõe entrar em uma nova linguagem, a
linguagem do discurso académico e, em certa perspetiva, tornar-se bilíngue. Daí que
certos autores acentuem a relevância do “desenvolvimento do letramento académico
por engajamento em práticas sociais” (MOTTA-ROTH, 2010) e que sustentem que
escrever na academia pressupõe, por isso, realizar uma ação com sentido e com apoio
dos outros membros da comunidade de práticas.
5
A propósito da diferença entre escrita académica e escrita cientíica, consultar o texto “Academic and Scientiic Texts: he
Same or Diferent Communities?”, da autoria de Russell e Cortes (2012).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 127


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Assim, desde há alguns anos, tem-se vindo a problematizar as dificuldades de


escrita dos alunos à luz das próprias dificuldades geradas pelo contexto de escrita e
pelos escritos solicitados na instituição de ensino superior. Para estas dificuldades con-
correm, sem dúvida as próprias características discursivas (complexas) dos textos aca-
démicos (TEBEROSKY, 2007) e a não imediata transposição do conhecimento de
outros discursos para esta escrita.
Os poucos estudos que têm vindo então a ser conduzidos, em Portugal, têm ido
ao encontro de conclusões de investigações realizadas em outros países (HASWELL,
2008), demonstrando, sobretudo, e designadamente: i) dificuldades dos estudantes,
em termos do processamento da informação (PINHO, 2008); ii) a nível da organiza-
ção textual (PINHO, 2008); iii) em termos da própria produção propriamente dita
do texto (LOUREIRO, 2007); iv) e da capacidade de sintetizar informação a partir de
vários textos (PINHO, 2008 ; RODRIGUES, 2009). Outro grupo de estudos ainda
realizados entre nós tem investigado, por sua vez, as representações e práticas de escrita
na universidade (CABRAL, 2005; RODRIGUES, 2009;).
Ora, esta nossa contribuição inscreve-se, precisamente, nesta última linha de pes-
quisa referida, em que, mais concretamente, daremos a conhecer concepções de escrita
na universidade, através das respostas a um questionário dadas por alunos universi-
tários. No entanto, também não queremos deixar de aduzir que nos interessa, mor-
mente, vir a conduzir estudos mais longitudinais, e em que o ensino e a aprendizagem
da escrita académica, explícitos e sistemáticos, possam ser o centro. E só então, acre-
ditamos, será possível contribuir para colmatar o enorme fosso em termos da escrita
exigida e praticada nos ensinos secundário e superior (PEREIRA et al., 2005).

ESTUDO EMPÍRICO
QUESTIONÁRIO: OBJETIVO E CONSTITUIÇÃO
O estudo que aqui apresentamos foi realizado no âmbito geral do projeto COST
e, mais especificamente, no seio do Grupo de Trabalho 2, coordenado por Otto Kruse,
cujo objetivo genérico consistia na melhoria da comunicação escrita. Para, mais espe-
cificamente, conhecer e compreender os fatores suscetíveis de favorecer o desenvolvi-
mento do domínio da escrita, no ensino superior, foi, nomeadamente, aplicado um
questionário distribuído junto de alunos dos diferentes países europeus envolvidos,
naturalmente adaptado ao contexto específico de cada país, em particular.
O questionário encontra-se organizado em diversas partes, compreendendo dife-
rentes aspetos: i) recolha de informação pessoal (com exceção da identificação, por se
tratar de um questionário foi anónimo); ii) presença da escrita no programa de estudos
do estudante; iii) processo de escrita e feedback; iv) tipos de texto e práticas de escrita;
v) autoavaliação de competências de escrita académica; vi) conceções de “boa escrita”
dos estudantes; vii) autoavaliação em relação a competências de estudo; viii) perspetiva

128 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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dos estudantes em relação a estratégias institucionais para a melhoria da sua compe-


tência de escrita académica.

APLICAÇÃO
Tratando-se de um questionário a que os alunos deveriam responder eletronica-
mente, foi enviada uma mensagem de correio eletrónico às instituições de ensino su-
perior portuguesas – universidades e politécnicos; instituições públicas e privadas – a
solicitar o apoio na divulgação do questionário, para um seu preenchimento pelos seus
alunos. Este pedido, enviado, numa primeira etapa, em junho de 2011, voltou a ser
reenviado no início do novo ano letivo de 2011/2012.
1151 estudantes responderam ao questionário, sendo que 519 responderam à to-
talidade das questões. Ainda que se tenha tratado de um questionário eletrónico e de a
amostra também não ter sido estratificada, de molde a poder ser representativa de toda
a população estudantil do ensino superior português (nos seus diferentes graus, áreas
científicas e instituições), consideramos que o número de respostas obtido permite
tomar os resultados como uma base importante para estimular a reflexão em termos
da presença da escrita nas instituições de ensino superior, em Portugal.
PARTICIPANTES
A Tabela caracteriza, brevemente, os participantes do estudo descrito.

Masculino Feminino Sem resposta


Género do aluno 285 (24.8%) do sexo masculino 820 (71.2%) 44 casos

Licenciatura Mestrado
Nível de estudo em que o
573 (49.8%) 415 (36.1%)
aluno está matriculado
Doutoramento Pós-doutoramento Outro (CET e pós-graduações)
98 (8.5%) 5 (0.4%) 5 (0.4%)

Ciências sociais
Engenharia
(incluindo economia)
Áreas de estudo pelas quais
244 (21.2%) 181 (16.7%)
se distribuem os estudantes
Ciências naturais Saúde Formação de professores
119 (10.3%) 111 (9.6%) 99 (8.6%)
Humanidades Arte, design e arquitetura Direito
85 (7.4%) 80 (7.0%) 66 (5.7%)

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 129


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Outras
114 (9.9%)

A inclusão de dados referentes às áreas de estudo, que compreendem na verdade


diferentes domínios, permite-nos estudar a possível existência de diferentes perspetivas
em estreita relação com tais áreas.

ANÁLISE
A análise foi realizada tomando como indicador as frequências de cada categoria
de respostas. Foram aplicados testes estatísticos, com o recurso ao software de análise
estatística SPSS, sobretudo, de molde a procurar a existência (ou não) de diferenças
significativas em termos da distribuição das respostas pelos participantes dos diferentes
grupos e pelas próprias categorias de resposta. Para encontrar diferenças de distribui-
ção das respostas entre os grupos, lançou-se mão do Teste do Qui-Quadrado de inde-
pendência. Quando as condições de aproximação à distribuição do Qui-quadrado não
foram identificadas, foi aplicado o teste com Simulação de Monte-Carlo. Por outro
lado, recorreu-se, igualmente, à aplicação de um modelo ANOVA one-way e a testes de
comparações múltiplas (LSD), com vista à deteção de diferenças consideráveis entre os
valores revelados pelos diferentes grupos. Para a aplicação do modelo ANOVA, foi ne-
cessário verificar as condições da sua aplicabilidade, em termos da distribuição normal
(através do teste de Kolmogorov-Sminorv) e da própria homogeneidade de variância
(com o recurso ao teste de Levene). Sempre que tais condições não foram detetadas,
foram utilizados o teste não paramétrico de Kruskall-Wallis e a comparação múltipla
das ordens (MAROCO, 2007).

RESULTADOS DIMENSÃO INDIVIDUAL


A Tabela 1 dá conta dos resultados obtidos no teste de Qui Quadrado, com vista
a determinar a associação das variáveis atinentes ao processo de escrita com a variável
referente à área de estudos. Mais especificamente, são então tidas em conta as variáveis
sobre a prática que o estudante considera ter, quanto às operações do processo escritu-
ral propriamente dito.
Tabela 1 – Dimensão individual: associação à variável “Área de estudo”

Variáveis (questões) χ2 N p
Planifico sempre antes de começar a escrever
χ2(32)=33.885 846 0.377
trabalhos escritos/ artigos/ teses/ papers

130 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Variáveis (questões) χ2 N p
Começo sempre imediatamente a escrever para
χ2(32)=37.955 838 0.216
ver até onde consigo chegar
Faço todas as leituras antes de começar a escrever χ2(32)=29.767 844 0.580
As minhas ideias mudam durante o processo de
χ2(32)=22.385 846 0.897
escrita de trabalhos escritos/ artigos/ teses/ papers
Reservo uma parte razoável do tempo total do
χ2(32)=31.069 845 0.514
trabalho para a revisão
Peço sempre feedback a alguém para melhorar o
χ2(32)=43.868 838 0.079
meu trabalho

A inexistência de uma relação significativa entre os resultados a esta questão e a


área de estudo – como demonstrado pelos valores de p inscritos no quadro 1 – con-
duziu-nos então a apresentar, agora na Tabela 2, os resultados globais para as variáveis
em causa, de modo a aceder às representações dos respondentes quanto à sua própria
prática do processo de escrita.
Tabela 2 – Dimensão individual do processo de escrita
(1: Discordo totalmente; 2: Discordo; 3: Indiferente; 4: Concordo; 5: Concordo totalmente)

Variáveis (questões) 1 2 3 4 5

No. No. No. No. No.


(%) (%) (%) (%) (%)
1. Planifico sempre antes de começar 9 50 119 425 247
a escrever trabalhos escritos/ artigos/
teses/ papers (1.1) (5.9) (14.0) (50.0) (29.1)

2. Começo sempre imediatamente a 75 314 223 213 17


escrever para ver até onde consigo chegar (8.9) (37.3) (26.5) (25.3) (2.0)

3. Faço todas as leituras antes de 7 154 195 376 116


começar a escrever (0.8) (18.2) (23.0) (44.3) (13.7)
4. As minhas ideias mudam durante 8 60 142 520 120
o processo de escrita de trabalhos
escritos/ artigos/ teses/ papers (0.9) (7.1) (16.7) (61.2) (14.1)

5. Reservo uma parte razoável do tempo 6 82 133 488 140


total do trabalho para a revisão (0.7) (9.7) (15.7) (57.5) (16.5)

6. Peço sempre feedback a alguém para 25 95 193 397 132


melhorar o meu trabalho (3.0) (11.3) (22.9) (47.1) (15.7)

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 131


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Os valores da Tabela 2 evidenciam que os alunos estão conscientes: i) da importân-


cia da planificação (variáveis 1, 2 e 3), ii) da própria relevância do contributo da ativida-
de de escrita propriamente dita para a construção do conhecimento (variável 4); iii) da
importância da operação de revisão (variável 5); iv) da relevância do feedback (variável 6).

DIMENSÃO INSTITUCIONAL
Uma significativa associação entre as respostas dadas pelos alunos e as respetivas
áreas de estudo verifica-se no caso das variáveis relativas à ação dos professores e da
própria instituição de ensino superior, como é visível através da observação dos valores
do teste de Qui Quadrado, apresentados na Tabela 3, com valores p inferiores a 0.05.
Tabela 3 – Dimensão institucional: associação à variável “Área de estudo”

Variáveis (questões) χ2 N p
Os meus professores ajudam-me a estruturar a
χ2(32)=58.543 844 0.003
minha escrita
Recebo feedback suficiente sobre os meus textos
ou trabalhos escritos/ artigos/ teses/ papers da χ2(32)=51.240 841 0.017
parte dos meus professores
O feedback dos meus professores ajuda-me a
χ2(32)=82.615 863 0.001
melhorar a minha escrita
Penso que a minha universidade contribui para
χ2(32)=95.118 845 0.001
um bom desenvolvimento da minha escrita
A escrita é um assunto largamente discutido na
χ2(32)=138.831 845 0.001
minha universidade
Frequência no último ano de:
… instruções por escrito para orientar na χ2(32)=46.546 844 0.047
realização de uma tarefa de escrita
… instruções orais para orientar na realização de
χ2(32)=38.392 841 0.202
uma tarefa de escrita
… discutir com o(s) professor(es) os trabalhos
χ2(32)=88.199 842 0.001
escritos
… começar um trabalho escrito na aula, fazendo,
por exemplo, a planificação, ou começando a χ2(32)=87.036 841 0.001
redação do trabalho
Frequência de…
Feedback sobre a estruturação de trabalho
χ2(32)=63.328 813 0.001
escrito/ artigo/ tese/ paper
Feedback sobre o primeiro rascunho de trabalho
χ2(32)=51.812 812 0.015
escrito/ artigo/ tese/ paper
Feedback sobre a versão final de trabalho escrito/
χ2(32)=35.160 805 0.321
artigo/ tese/ paper

132 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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De um conjunto de doze variáveis aqui consideradas, apenas não existe uma as-
sociação com a respetiva área de estudos em três delas – a saber: as instruções sobre
a tarefa, apresentadas por escrito ou dadas de forma oral (variáveis 6 e 7) e o próprio
feedback relativo à versão final do texto escrito (variável 12).
Quanto ao acompanhamento e ao apoio dados pelos professores, em etapas mais
precoces do processo escritural (variáveis 1, 3, 8, 9, 10, 11), os valores demonstram
a existência, com efeito, de uma importante dependência da área de estudos em que
se encontrem os alunos. E o mesmo acontece com a variável relativa à emergência da
escrita enquanto objeto de discussão na instituição de ensino superior (variável 5).
Em síntese, há, na verdade, e na grande maioria dos casos, uma nítida relação
entre as respostas dos alunos em termos das suas perceções quanto ao contributo dos
professores e da universidade para o desenvolvimento da sua escrita (variáveis 3 e 4) e
a sua área de estudos.
No que diz ainda respeito ao próprio feedback recebido pelos alunos, os valores
da Tabela 4 demonstram serem mais frequentes as instruções orais do que as instru-
ções facultadas por escrito. Ainda assim, trata-se de um importante campo em que
uma maior progressão pode existir, já que as respostas “Frequentemente” e “Sempre”
equivalem tão-só a um terço. Além disso, o próprio feedback dado sobre a versão final
também não se encontra generalizado, ao não alcançarem as respostas dadas metade
da totalidade das respostas obtidas.
Tabela 4 – Dimensão institucional: indicadores transversais as diferentes áreas
(1: Nunca; 2: Raramente; 3: Por vezes; 4: Frequentemente; 5: Sempre)

Variáveis (questões) 1 2 3 4 5
No. No. No. No. No.
(%) (%) (%) (%) (%)
6. … instruções por escrito para orientar na 97 184 279 260 28
realização de uma tarefa de escrita (11.4) (21.7) (32.9) (30.7) (3.3)
7. … instruções orais para orientar na 40 101 302 351 51
realização de uma tarefa de escrita (4.7) (12.2) (35.7) (41.5) (6.0)
12. Feedback sobre a versão final de trabalho 41 141 265 254 107
escrito/ artigo/ tese/ paper (5.1) (17.5) (32.8) (31.4) (13.2)

Devido ao facto de a análise estatística ter então revelado a associação com as áreas
de estudos, os valores da Tabela 5 dão agora conta, por sua vez, das diferenças assinalá-
veis quanto a estas mesmas variáveis. A parte não sombreada, na célula correspondente
ao cruzamento das áreas, tem o registo das variáveis em relação às quais se observam
diferenças significativas entre as áreas em questão. A parte sombreada indica o número
total de variáveis em que se registam assinaláveis diferenças entre as áreas.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 133


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Tabela 5 – Dimensão institucional: variáveis e diferenças signiicativas entre as áreas

N.º de variáveis com diferenças significativas entre as áreas


C. Soc. Eng. C. Nat. Saúde

C. Soc. 2 3 8

Eng. 4,5 0 7

C. Nat. 4,5,9 7

Saúde 1,2,3,4,5,9, 10,11 1,2,3,4,5,9, 11 1,2,3,4,5,9, 11

F. prof. — 4,5,10 4,5 1,2,3,4,5,9, 10,11

Hum. — 5 5 1,2,3,4,5,9, 10,11

Arte… 1,3,4,5,9, 10,11 9 3,9 2

Direito 1,3,5,8,9 1,4,5,8,9 3,4,8,9 4,5,8

F. prof. Hum. Arte Direito


C. Soc. 0 0 7 5

Eng. 3 1 1 5

C. Nat. 2 1 2 4

Saúde 8 8 1 3

F. prof. 0 7 6

Hum. — 4 3

Arte… 1,3,4,5,9, 10,11 4,5,9,10 2

Direito 1,3,5,8,9, 11 5,8,9 4,8

Variáveis com diferenças significativas entre as áreas (cf. quadro 3)

A observação dos valores da Tabela 5 permite-nos destacar os aspetos seguintes: i)


inexistência de diferenças significativas entre as áreas de Ciências Sociais, Formação de
professores e Humanidades e, por outro lado, entre Engenharia e Ciências Naturais;
ii) existência de assinaláveis diferenças quanto a um considerável número de variáveis
entre a área de Saúde e outras áreas (Ciências Sociais, Engenharia, Ciências Naturais,

134 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Formação de professores, Humanidades); iii) a área de Saúde é a área mais contras-


tante; iv) a área de Direito, nomeadamente, em relação à Formação de professores, às
Ciências Sociais e à Engenharia, representa também uma área contrastante; v) a área
de Direito é o único campo científico a estabelecer assinaláveis contrastes, quanto à
variável 8 (discutir com o(s) professor(es) os trabalhos escritos).
Na impossibilidade de distinguir os resultados específicos para as variáveis em
questão, procuraremos apresentar, seguidamente, o sentido dos contrastes mais consi-
deráveis detetados.
As áreas de Saúde e de Direito apresentam uma distribuição com valores
Ajuda dos superiores ao esperado na parte inferior da escala de concordância e
valores inferiores na parte superior. Assim, o apoio reconhecido é mais
professores para
reduzido do que em outras áreas. Por sua vez, as áreas de Humanidades,
a estruturação Formação de Professores e Ciências Sociais encontram-se num polo
da escrita (V1) oposto, com valores da distribuição inferiores ao esperado na parte
inferior da escala e superiores ao esperado na parte superior.
Igual tipo de contraste entre a área de Saúde e quase todos os outros
Feedback
campos científicos (com exceção de Direito) surge neste caso. Importa
suficiente sobre
notar que, para esta variável, os contrastes existentes implicam tão-só a
os escritos (V2) área de Saúde.
No campo da Saúde, identifica-se o contraste já referido; nas áreas de Arte
e de Direito, surge ainda o avolumar de respostas na categoria intermédia
Ajuda por parte
(Indiferente), o que pode ser conexionado com o facto de um grande
do feedback (V3) número de estudantes considerar que não recebe apoio; e, daí, não tomar
posição em termos da avaliação da efetividade dessa mesma ajuda.
Esta variável dá conta da apreciação em termos do contributo institucional
Contributo dado para o desenvolvimento da escrita pelos alunos. Os resultados
das distribuições são concordantes com o já referido para as variáveis
por parte da
anteriores: valores superiores ao esperado estatisticamente para a parte
universidade
inferior da escala, nas áreas da Saúde; e/ou valores inferiores para a parte
para a melhoria superior da escala, nessa área e nas de Direito e Arte; por oposição, os
da escrita (V4) campos de Ciências Sociais e Formação de Professores evidenciam um
reforço dos valores na parte superior da escala.
A escrita, enquanto objeto de discussão na instituição de ensino
superior, surge, nas áreas de Humanidades, Ciências Sociais e Formação
A escrita como de Professores, com reforço da parte superior da escala; contrariamente,
objeto de nas áreas de Saúde, Engenharia, Ciências, Arte e Direito, a parte superior
discussão (V5) da escala apresenta valores abaixo do esperado, segundo a distribuição
do Qui-Quadrado, com reforço dos valores para a resposta “Indiferente”
ou de discordância.
A discussão dos trabalhos escritos com os docentes constitui-se como
Discussão com uma prática que surge nas diversas áreas; porém, enquanto, nas outras
os professores áreas, a diversidade de respostas não acentua uma tendência, há um
dos escritos (V8) reforço das respostas negativas - o que estabelece o contraste com as
restantes - no campo de Direito.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 135


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O começo do processo de escrita na aula é uma prática que ganha maior


relevo na área de Ciências Sociais, com reforço da parte superior da escala,
Começar o
por oposição, em relação a este aspeto, com diversas outras (Ciências
trabalho escrito
Naturais, Saúde, Arte e Direito). Prática esta que assume igualmente
na aula… (V9) alguma relevância, nas áreas de Engenharia, Humanidades e Formação
de Professores.
Feedback sobre A estratégia de dar feedback quanto à estruturação do trabalho escrito
a estruturação estabelece diferenças entre as áreas de Humanidades e Formação de
do trabalho professores, em que assoma com uma frequência reforçada, e também
escrito na aula… na área de Ciências Sociais, em que é menos esparsa, perante áreas como
(V10) a Saúde e a Engenharia.
A estratégia de fornecer feedback sobre um primeiro rascunho surge,
por sua vez, de maneira reforçada, nas áreas da Formação de professores;
Feedback sobre tem ainda uma presença digna de registo, ainda que menos relevante,
nas Ciências Sociais e Humanidades, por oposição com as áreas da Saúde,
o primeiro
Arte, Direito, Engenharia. Há, nesta matéria, um assinalável campo para
rascunho… progressão, já que apenas a área de Formação de professores apresenta
(V11) valores inferiores a 40% para as respostas “Nunca” ou “Raramente”,
juntando-se a esta área as de Ciências Sociais e de Humanidades para
valores inferiores a 50%.

DISCUSSÃO
Os resultados obtidos demonstraram não existir diferenças significativas em fun-
ção da área de estudo, nas respostas dos alunos referentes à dimensão de gestão in-
dividual do processo de escrita, em termos, mais especificamente, das operações de
planificação, de textualização e de revisão. A maioria dos alunos está assim consciente
de que a escrita se trata de um processo, em que várias e importantes etapas estão in-
cluídas. E, de facto, apesar de não serem as respostas uniformes, a divergência quanto à
valorização dessas mesmas operações é reduzida; e as respostas que não certificam esta
abordagem processual da escrita também não a negam.
Em relação, por exemplo, à afirmação de que é estabelecida a realização de todas
as leituras antes de se começar a escrever, é interessante verificar a atenuação da força
das respostas, sendo que há uma percentagem de discordância maior e a soma das res-
postas de concordância é menor do que em relação às perguntas que incidem sobre a
planificação e a revisão. Por outro lado, a afirmação referente à estratégia de se começar
imediatamente a escrever para ver o que se consegue fazer de imediato, sem procura
ou preparação adicionais, também recebe um volume de respostas discordantes menor
do que a concordância manifestada em relação à planificação prévia. Discordância
esta que pode reenviar para o reconhecimento da escrita imediata como uma estraté-
gia de ativação do conhecimento suscetível de ser posta em prática (e a não implicar,
necessariamente, que não se venha a ativar numa fase subsequente a componente de
planificação, com a realização de uma nova procura e reorganização, que também po-

136 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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derá compreender elementos já criados com recurso à estratégia de escrever de forma


imediata). Uma larga consciência do processo de escrita, enquanto processo dinâmico,
é evidenciada pelas respostas dos estudantes das diversas áreas. Além disso, a genera-
lidade dos alunos também reconhece a importância do contributo dos outros para a
melhoria dos seus textos.
No que à dimensão da ação institucional diz respeito, é notória a existência de di-
ferenças consideráveis, conforme as áreas de estudo. Os aspetos que atravessam trans-
versalmente as diferentes áreas, de forma equivalente, referem-se ao fornecimento de
indicações oralmente ou por escrito, para a realização da tarefa e ao fornecimento de
feedback sobre a versão final. E a convergência identificada é muito interessante, por
reenviar para uma abordagem muito tradicional da escrita, no contexto académico:
a conceção da escrita como surgindo em resposta a uma tarefa dada pelo docente,
cuja função exclusiva consiste em avaliar e/ou classificar o produto final entregue.
Por oposição, as diferenças mais assinaláveis são identificadas em termos das questões
sobre o acompanhamento dado pelo professor ao aluno, durante o processo de escrita
e à própria tomada da escrita como objeto de reflexão, discussão e promoção de ações
para o desenvolvimento desta competência pelos estudantes. A este respeito, destaca-
mos proximidades entre Ciências Sociais, Formação de Professores e Humanidades e,
por outro lado, entre Engenharia e Ciências Naturais; e encontramos também áreas
deveras contrastantes com as outras, como os campos de Saúde e de Direito. Natural-
mente, estas diferenças entre as áreas não deixam de colocar desafios vários e tanto a
nível de cada instituição de ensino superior, em geral, como no âmbito de cada unida-
de curricular, mais especificamente.

CONCLUSÃO
A introdução do Processo de Bolonha contribuiu para que a escrita adquirisse
uma maior relevância, quantitativa e qualitativa, nas instituições de ensino superior
em Portugal. Daí que seja cada vez mais urgente desenvolver ações que ajudem os alu-
nos a melhor dominar esta tão importante capacidade de linguagem.
E os resultados apresentados nesta nossa contribuição demonstraram, claramente,
as diferenças existentes em termos da ação que tem vindo a ser adotada nas diversas
instituições e nas distintas áreas científicas. Diferenças estas que não deixam de reen-
viar para a urgência de se investir numa maior problematização sobre o papel da escrita
em correlação com as diferentes áreas disciplinares, para que um cada vez maior núme-
ro de alunos possa ser ajudado, em termos do desenvolvimento da literacia académica

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 137


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Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 139


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TRACES DE LA FORMATION DES ENSEIGNANTS


SUR LA TRANSFORMATION DU RAPPORT À L’ÉCRIT
D’ÉTUDIANTS QUÉBÉCOIS

EVOLUTION OF RELATIONSHIP WITH WRITING OF


QUEBEC EDUCATION STUDENT TEACHERS: MARKS OF
UNIVERSITY TRAINING
Chantale Beaucher*
Christiane Blaser**
Olivier Dezutter***

RÉSUMÉ: L’écriture, grâce à sa fonction épistémique, joue un rôle essentiel dans


l’apprentissage: elle permet de mettre la pensée à distance pour mieux l’examiner,
l’élaborer, la structurer, la critiquer (GOODY, 1979), favorisant ainsi l’appropria-
tion de la connaissance et la construction des savoirs (BARRÉ-DE MINIAC et
REUTER, 2006; CHABANNE et BUCHETON, 2002; SCHNEUWLY, 1995,
2008). Cet article rend compte de la transformation du rapport à l’écrit de deux
groupes d’étudiants en formation des maitres de l’Université de Sherbrooke, aux
programmes d’enseignement professionnel et d’enseignement secondaire. Les don-
nées recueillies par entrevues semi-dirigées ont mis en évidence des éléments de leur
programme d’étude ayant joué un rôle dans cette transformation, mais également
des traces de leur histoire scolaire dans celle-ci, en particulier en ce qui concerne les
étudiants d’enseignement professionnel.
Mots-clés: Rapport à l’écrit; formation des maîtres; formation à l’enseignement pro-
fessionnel; formation à l’enseignement secondaire
ABSTRACT: Writing plays an essential role in learning. It allows individual to dis-
tance themselves from their thoughts in order to examine, develop, structure and criti-
cize them (GOODY, 1979). Such processes enhance the appropriation of knowledge
and its construction (Miniac and REUTER, 2006; CHABANNE and BUCHETON,
2002; SCHNEUWLY, 1995, 2008). This article describes the evolution of the rela-
tionship with writing of two groups of students in teacher education (high school and
vocational education programs) from University of Sherbrooke (Quebec, Canada). It
shows how their relationship with writing has evolved during their university train-
ing. Research data has been collected by semi-structured interviews about writings
students have produced during their university training. Results indicate that some
aspects of their curriculum have played a role in the evolution of their relationship
with writing. Also, some aspects of individuals’ previous school experiences have had
an impact, especially for the vocational education student teachers.
*
Uni versité de Sherbrooke, Québec, Canadá.
**
Uni versité de Sherbrooke, Québec, Canadá.
***
Uni versité de Sherbrooke, Québec, Canadá.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 141


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Keywords: Relationship with writing; Student teachers; High school teacher’s univer-
sity training; Vocationnal teacher’s university training

INTRODUCTION
En didactique du français, la compétence scripturale fait constamment l’objet
d’études qui tentent de mieux la comprendre dans le but, entre autres, de proposer
des modèles d’enseignement de l’écriture qui tiennent compte de la complexité de
son développement. L’apport de Michel Dabène, vers la fin des années 1980, a été
déterminant à cet égard, car il a montré que cette compétence ne se limitait pas à un
ensemble de savoirs et de savoir-faire, mais qu’elle était composée aussi de représenta-
tions (DABÈNE, 1991). La recherche que nous présentons ici s’inspire des travaux de
Michel Dabène et de ceux qui ont suivi sur le rapport à l’écriture. Elle vise précisément
à identifier et comparer le rapport à l’écrit chez des étudiants de deux programmes de
formation à l’enseignement – un programme de formation initiale et un programme
en cours d’emploi – (BLASER, BOUHON, SAUSSEZ, 2014)4. De plus, nous nous
sommes intéressés aux éléments qui contribuent à la transformation du rapport à
l’écrit de ces étudiants durant leur passage à l’université5.
Tout d’abord, une enquête par questionnaire nous a permis de documenter quels
sont les sentiments, les valeurs et les conceptions des étudiants vis-à-vis de l’écrit, ainsi
que leurs pratiques; puis une série d’entrevues nous a amené à saisir plus finement le
rapport à l’écrit d’un sous-groupe d’étudiants et à observer la transformation de ce
rapport à travers différents éléments liés à l’histoire de vie des individus, en particulier
aux différentes étapes de leur scolarité, dont le programme suivi au moment de notre
collecte de données. C’est sur ce dernier aspect précisément que porte cet article qui
suit la structure suivante: après avoir rappelé le rôle de l’écriture dans l’apprentissage,
nous définissons la notion de rapport à l’écrit et présentons des éléments de la métho-
dologie de notre recherche. Enfin, nous livrons des résultats qui nous éclairent sur la
transformation du rapport à l’écrit durant la formation à l’enseignement.

LE RÔLE DE L’ÉCRITURE DANS L’APPRENTISSAGE


L’écriture, grâce à sa fonction épistémique, joue un rôle essentiel dans
l’apprentissage: elle permet de mettre la pensée à distance pour mieux l’examiner,
l’élaborer, la structurer, la critiquer (GOODY, 1979), favorisant ainsi l’appropriation
de la connaissance et la construction des savoirs (BARRÉ-DE MINIAC et REU-
TER, 2006; CHABANNE et BUCHETON, 2002; SCHNEUWLY, 1995, 2008).
Le mouvement continu qui s’exerce pendant le processus d’écriture entre la pensée et
4
Recherche inancée par le Fonds de recherche québécois pour la société et la culture (FRQSC, 2011-2014). Chercheure
responsable: Christiane Blaser; cochercheurs: Chantale Beaucher, Mathieu Bouhon, Olivier Dezutter, Frédéric Saussez.
5
Les auteurs souhaitent souligner la remarquable contribution Roselyne Lampron et Érika Simard-Dupuis, assistantes de recherche.

142 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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sa réalisation matérielle sur le papier ou à l’écran contribue en effet au développement


psychocognitif des scripteurs: «en se transformant en langage, la pensée se réorganise
et se modifie» (VYGOTSKI, 1997 [1934], p. 430-431). À côté de ses fonctions com-
municative ou expressive, l’écriture a donc une fonction «épistémique» qui, dans le
contexte scolaire, joue un rôle déterminant dans l’apprentissage, quels que soient le
niveau d’enseignement et la matière ou le métier étudiés. Cependant, toutes les tâches
d’écriture n’ont pas la même efficacité, toutes les situations d’écriture ne favorisent
pas l’apprentissage ni la formalisation des savoirs (CHABANNE et BUCHETON,
2002); c’est pourquoi il est de la responsabilité des enseignants (OUELLON et BÉ-
DARD, 2008) et des formateurs universitaires de guider les élèves et les étudiants dans
l’utilisation de«l’écriture pour apprendre». Cela implique toutefois que les enseignants
saisissent bien la fonction épistémique de l’écrit (BLASER, 2007, 2009), ce qui relève
de leurs conceptions de l’écriture, lesquelles font partie de leur rapport à l’écrit, notion
au cœur de cette recherche.
Dans le cadre de notre recherche, nous avons cherché à savoir comment se trans-
forme le rapport à l’écrit des étudiants en formation à l’enseignement et quels sont
les facteurs qui participent à cette possible transformation. Cela dans le but ultime de
dégager des pistes d’intervention pour améliorer la formation des enseignants sur deux
plans: d’une part, le développement de leur rapport à l’écrit et, d’autre part, la prise de
conscience du rôle qu’ils ont à jouer auprès des élèves pour leur permettre d’exploiter
pleinement les ressources de l’écriture dans leurs activités d’apprentissage.

LE RAPPORT À L’ÉCRIT: UNE NOTION EN ÉVOLUTION


La notion de rapport à l’écrit (désormais RÉ) est utilisée en didactique depuis
plus d’une vingtaine d’années (BARRÉ-DE MINIAC, 2000, 2002, 2008, 2011;
CHARTRAND et BLASER, 2008; DEZUTTER et DORÉ, 2006; LAFONT-
-TERRANOVA, 2009). Définie par Barré-De Miniac comme «l’ensemble des sig-
nifications construites par le scripteur à propos de l’écriture, de son apprentissage
et de ses usages» (BARRÉ-DE MINIAC, 2002, p. 29), la notion de RÉ est un outil
heuristique qui a pris des formes variables selon les contextes de recherche. Dans cel-
le-ci, le RÉ concerne l’ensemble des sentiments, des valeurs et des conceptions d’un
individu à propos de l’écriture et de son apprentissage, lesquels le disposent – plus
ou moins selon les personnes et les contextes – à s’investir dans les tâches d’écriture
et à développer ses compétences de scripteur. Le RÉ est nourri par les pratiques
d’écriture de l’individu et ses actions pour améliorer sa compétence à écrire. Dans
notre vision, le RÉ est à la fois contextualisé et évolutif (Dezutter, Cansigno et Sylva,
2010); il peut en effet varier en partie selon le contexte d’écriture (par exemple selon
qu’il s’agit d’une activité d’écriture imposée dans le cadre scolaire ou de formation,
ou d’une activité libre d’écriture), mais aussi selon les différentes expériences vécues
au cours de la vie du scripteur.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 143


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Pour mieux comprendre les dimensions du RÉ et la dynamique qui en découle,


nous avons choisi deux groupes d’étudiants ayant des caractéristiques contrastées: les
étudiants inscrits au baccalauréat en enseignement secondaire (BES), tout profil con-
fondu6, et les étudiants du baccalauréat en enseignement professionnel (BEP), tout
métier confondu. Tous sont inscrits à l’Université de Sherbrooke. Nous les présentons
dans la section suivante.

CARACTÉRISTIQUES DES PUBLICS CIBLÉS


Les étudiants du BES sont généralement des jeunes gens – des femmes pour les
deux tiers – qui arrivent du cégep7; ils ont en moyenne 19 ans à leur entrée dans le pro-
gramme. La formation initiale en enseignement au secondaire, au Québec, dure quatre
ans et compte 120 crédits répartis en quatre types d’activités imbriquées les unes dans
les autres: des cours de formation générale (pédagogie, philosophie de l’éducation,
sociologie de l’éducation) suivis par l’ensemble des étudiants (33 crédits); des cours de
didactique et d’intégration spécifiques à chaque profil(21 crédits); des cours discipli-
naires spécifiques également à chaque profil (54 crédits) et enfin des stages en milieu
scolaire (21 crédits).
Les étudiants du BEP, de leur côté, sont d’abord des experts de métiers (méca-
nique, fleuristerie, hygiène dentaire, etc.) qui, après avoir exercé pendant plusieurs
années leur activité professionnelle, sont recrutés par les centres de formation (secteur
d’enseignement secondaire) pour enseigner leur métier. Ils ont en moyenne 45 ans.
Leur formation initiale remonte donc à plusieurs années, a souvent été de courte durée
et, dans de nombreux cas, marquée par les difficultés, entre autres, liées à la maîtrise
de l’écrit. Ce baccalauréat de 120 crédits se déroule à temps partiel parallèlement à
leur emploi dans un centre de formation sur une durée de 5 à 10 ans; il est divisé en
sixphases. Des stages en enseignement sont réalisés dans le milieu d’enseignement et
permettent également une démarche réflexive sur les apprentissages.
Que ce soit au BES ou au BEP, pour obtenir leur brevet d’enseignement, les étu-
diants doivent démontrer qu’ils ont suffisamment développé les douze compétences
jugées essentielles pour former un professionnel de l’enseignement par le ministère de
l’Éducation, du Loisir et du Sport (MEQ, 2001). Parmi les compétences, il en est une
qui concerne la langue: «Communiquer clairement et correctement dans la langue
d’enseignement, à l’oral et à l’écrit, dans les divers contextes liés à la profession enseig-
nante». Divers moyens sont mis en œuvre dans chacun des programmes pour aider
les étudiants à développer cette compétence, et un test de certification, le TECFÉE8,

6
À l’Université de Sherbrooke, les étudiants en formation à l’enseignement secondaire peuvent s’inscrire dans l’un des proils
suivants: français langue d’enseignement, mathématiques, univers social, sciences et technologies.
7
Cégep est l’acronyme de collège d’enseignement général et professionnel. Il désigne au Québec un ordre d’enseignement
qui suit le secondaire et précède l’université et ofrant une formation technique (3 ans) ou préuniversitaire (2 ans).
8
TECFEE: Test de certiication en français écrit pour l’enseignement.

144 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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leur est imposé. Au BES, deux cours (DFT 200: Communication écrite à l’école et
réussite scolaire et DFT 201: Communication orale et profession enseignante) visent
explicitement le développement de la compétence à communiquer chez tous les fu-
turs enseignants, quel que soit leur profil de formation. Les étudiants du BES-profil
français suivent aussi des cours d’approfondissement en langue et linguistique, mais
pas ceux des autres profils, à moins d’y être contraints après un échec au TECFÉE.
Au BEP, les trois cours de perfectionnement en langue sont clairement orientés vers la
préparation du TECFÉE, car la réussite de ce test représente pour de nombreux étu-
diants de ce programme un énorme défi et un stress important, l’obtention du brevet
d’enseignement et le maintien en emploi en dépendant.

ÉLÉMENTS DE MÉTHODOLOGIE
La recherche de laquelle découle cet article vise à vérifier l’hypothèse selon laquel-
le le rapport à l’écrit des étudiants en formation à l’enseignement secondaire (BES)
et des enseignants en formation professionnelle (BEP) se transforme pendant la for-
mation universitaire et qu’au nombre des facteurs de changement, certains relèvent
de la formation elle-même: contenus d’enseignement, pratiques scripturales, théories
sur l’écriture, etc. Deux démarches de collecte de données ont été réalisées: l’une,
quantitative, a rejoint 565 étudiants (278 au BES et 287 au BEP) par questionnaire
et l’autre, qualitative, a consisté à rencontrer 15 étudiants (8 du BES, 7 du BEP) dans
le cadre d’entrevues individuelles semi-dirigées. Les résultats présentés dans cet article
sont issus des entrevues. Les participants interviewés ont été choisis sur la base des
résultats d’une analyse discriminante conduite sur les données obtenues à l’aide du
questionnaire visant à identifier deux groupes contrastés d’étudiants au regard du rap-
port à l’écrit. Dans la mesure du possible, nous avons tenu compte, dans le processus
d’échantillonnage, de différentes variables telles que le sexe et la discipline ou le métier
enseigné (dans le cas des étudiants du BEP, dont les métiers enseignés sont très variés).
Dans une visée rétrospective, les participants ont été invités à fournir deux écrits
professionnels qu’ils jugeaient significatifs pour leur apprentissage – l’un ayant été réalisé
au début de la formation, l’autre, peu avant l’entrevue – et que nous qualifions d’écrits
authentiques au sens où ils ont été produits dans le cadre d’une activité de formation en
lien avec l’apprentissage de la profession d’enseignant. Chacun des participants a été in-
terviewé dans le cadre d’une entrevue semi-dirigée visant reconstruire le rapport à l’écrit
à l’œuvre au moment de la rédaction des deux productions. Pour ce faire, les étudiants
devaient d’abord, pour chacun des textes: décrire le contexte de réalisation et la situation
de communication; répondre à des questions concernant le processus de planification,
de mise en texte et de révision; parler des sentiments éprouvés pendant la rédaction, du
niveau de satisfaction vis-à-vis de chacun des textes et du rôle joué par l’écriture pendant
la rédaction. Ensuite, en comparant les deux écrits, les participants se prononçaient en
termes de ressemblances et de différences, puis de préférence pour l’un des écrits. Enfin,

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 145


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dans une dernière partie de l’entrevue, dont nous rendons compte dans cet article, ils
étaient interrogés sur les moments marquants de leur histoire de scripteur; sur la place
de l’université dans le développement de leur compétence à écrire; sur les éléments qui,
selon eux, avaient joué un rôle dans ce développement.

OBSERVATIONS DÉCOULANT DE L’ANALYSE


Dès les premières étapes de traitement des données quantitatives issues des questio-
nnaires, des différences ont été observées entre les deux groupes d’étudiants. Certaines
nous apparaissaient en cohérence avec les caractéristiques distinctes des deux groupes
alors que d’autres sont apparues sur des aspects inattendus. L’étonnement est particuliè-
rement venu du fait que nous avions imaginé que la conception autour de la fonction
épistémique de l’écriture serait plus prononcée chez les étudiants du BES que chez ceux
du BEP, les premiers ayant généralement un parcours scolaire moins chaotique que les
seconds et étant réputés plus à l’aise en français que leurs collègues de l’autre program-
me. Or, les analyses statistiques tendaient plutôt à révéler que la compréhension de la
fonction épistémique de l’écriture était plus développée chez les étudiants du BEP que
chez ceux du BES, ce que semblent confirmer les entrevues. De celles-ci se dégagent des
différences significatives quant à la manière dont chacun des groupes d’étudiants parle
de leur RÉ, en particulier de sa transformation au fil du temps et du rôle joué – ou non
– par leur programme de formation dans ces changements.
En cours de traitement et d’analyse des données, nous avons voulu explorer da-
vantage ces pistes qui nous semblaient porteuses de sens. Ce sont donc les aspects
particuliers liés à la transformation du RÉ chez les étudiants des deux programmes
interviewés qui sont présentés dans cet article.

TRAITEMENT ET ANALYSE DES DONNÉES


• Les données recueillies lors des entrevues constituent un corpus riche, qui
s’ajoute à celui formé des données recueillies par questionnaire à la première
étape de la recherche. L’analyse s’est déroulée en plusieurs étapesnon com-
plètement successives:

• Lectures répétées des entrevues transcrites dans une visée de familiarisation


avec le corpus de données.

• Constitution d’une grille d’analyse à partir de catégories préexistantes (issues


du cadre théorique et du canevas d’entrevue) et émergentes.

• Va-et-vient entre les verbatim et la grille afin d’assurer la validité des catégo-
ries et sous-catégories et la justesse de leurs descriptions.

146 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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• Validation inter juges de la grille d’analyse (deux chercheures et deux assistan-


tes de recherche).

• Catégorisation des verbatim.

• Constitution de profils individuels.

• Schématisation de l’évolution du parcours de chaque répondant.

Au moment de la construction de la grille d’analyse puis de la catégorisation


des verbatim (à l’aide du logiciel NVIVO), notre attention s’est portée sur certaines
catégories tournant autour de l’idée de transformation du RÉ, de changements et
d’évènements marquants vécus par les répondants. Il nous semblait que des différences
émergeaient progressivement entre les deux groupes d’étudiants. La piste d’une diffé-
rence d’appréhension du RÉ entre les deux groupes étant déjà apparue lors de l’analyse
des questionnaires, il nous semblait pertinent de l’explorer plus avant.

CONSTITUTION DE SCHÉMAS DE
L’ÉVOLUTION DES PARCOURS
Des tableaux synthèses des parcours de chacun des individus ont été dressés pour
en faciliter la visualisation. Puis, ces tableaux ont été traduits en schémas individuels
permettant le repérage rapide des éléments et une perception dynamique des parcours.
Au fil de la construction des schémas, les catégories se sont affinées et ont été réorgani-
sées, donnant ainsi lieu à de multiples versions, jusqu’à ce que nous parvenions à une
version finale satisfaisante et porteuse de sens. Les données ont été traitées de façon
visuelle, dans des schémas et à l’aide d’un logiciel de Mind Mapping, Mindjet. Dans
la section suivante, ce sont ces données schématisées qui sont décrites.

RÉSULTATS DESCRIPTION DES DONNÉES


À la lumière de la première étape de catégorisation des données tirées des entre-
vues avec les 15 étudiants du BEP et du BES, une schématisation des parcours a été
réalisée dans l’objectif de mettre en évidence des indices de la transformation de leur
rapport à l’écrit, d’une part, et d’établir des éléments particulièrement significatifs liés
à cette transformation, d’autre part. Dans le même temps, les aspects touchant les
effets perçus – ou l’absence d’effets perçus – de la formation sur leur rapport à l’écrit
et son évolution ont été relevés. Ce sont les éléments que nous décrivons dans cette
portion de l’article.

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TRANSFORMATION DU RAPPORT À L’ÉCRIT


Les éléments repérés dans les données analysées permettant de caractériser un
processus évolutif dans le parcours des étudiants sont au nombre de cinq: état anté-
rieur, état postérieur, point tournant, moments marquants, constantes (tableau I).
Ainsi, nous avons relevé toutes les références à des évènements liés au parcours sco-
laire, y compris ceux concernant le programme de formation à l’enseignement, puis
nous avons repéré parmi ces évocations les indices qui témoignent d’une permanence
ou d’une transformation. Ces éléments peuvent concerner le programme en général,
un cours en particulier et même un professeur. Ils sont parfois nommés comme point
tournant dans le parcours, mais peuvent également avoir simplement été mentionnés,
sans qu’une valeur aussi forte y soit accolée.

Éléments retenus Exemples d’indices recherchés


Les éléments suggérant un état antérieur dans le
Avant, j’étais...
parcours de l’étudiant
Les éléments suggérant un état postérieur Après, je suis devenu…
Le ou les points tournants dans le parcours Ça a changé quand…
Les moments marquants dans l’histoire Quand j’étais au primaire, il y a eu
de scripteur des étudiants cette enseignante…
Les éléments qui s’inscrivent dans la durée, qui J’ai toujours été comme ça…
constituent une constante dans l’histoire du répondant Là-dessus, c’est toujours pareil…

Les prochaines lignes décrivent les données recueillies pour chacune de ces catégories.

L’AVANT
Les répondants rendent compte d’un état «initial» en divers termes que l’on peut
découper, bien que de façon un peu artificielle, entre expérience positive et négative,
relevant donc d’une dimension affective. Ils portent ainsi un regard rétrospectif qui se
traduit par la difficulté à maîtriser certains aspects de la langue (grammaire, structure)
ou par un jugement sur leur compétence:«je n’étais pas bon en français».Le cas de fi-
gure inverse est également visible, soit celui où des répondants traduisent un jugement
positif sur leur compétence en langue. Soulignons en outre que leur jugement concer-
ne principalement l’écriture vue comme le respect d’une norme et de règles.

L’APRÈS
Les propos des répondants relatant un nouvel état se regroupent, grosso modo, en
deux grandes catégories: un état final et un état «en cours de déploiement». Les termes
utilisés pour refléter l’un et l’autre de ces états rendent compte de deux réalités distinctes.

148 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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D’abord, certains participants parlent des apprentissages réalisés, des nouvelles connais-
sances, des éléments maîtrisés en termes de produit fini. Ainsi, que ce soit au regard de
la grammaire, de la structure, du vocabulaire, ils sont abordés comme étant désormais
acquis: «Je fais des phrases plus claires et plus concises (Flora9, BES, profil français)»
Dans l’autre figure de cas, le déploiement des nouveaux apprentissages est encore
en cours. Les répondants parlent alors en des termes soulignant des progrès en train
de se réaliser: «Je commence à voir mes fautes (Patricia, BEP)». Dans cette situation se
retrouvent presque uniquement des étudiants du BEP.
Par ailleurs, quelques participants abordent leur situation actuelle en des mots qui
sont davantage de l’ordre de l’émotion, de l’affectif. Ils expliquent qu’ils se sont, par
exemple, débarrassés (du moins en partie) de leur honte, de leur gêne, qu’ils appré-
cient désormais l’écriture: «Si on m’avait dit que j’aimerais écrire un jour, je ne l’aurais
pas cru»(Paul, BEP). Ce sont dans la majorité des cas, des étudiants du BEP.

LE POINT TOURNANT ET LES MOMENTS MARQUANTS


Les éléments marquants relatés par les répondants concernent surtout des cours
suivis à l’université et dans une moindre mesure, au cégep. Certaines personnes, en
particulier au BEP, identifient précisément un enseignant comme ayant eu une in-
fluence majeure sur le développement de leur compétence de scripteur: «Line [chargée
de cours en français au BEP], elle est très inspirante, agréable. Ses deux cours, c’est
merveilleux! Ça secoue!» (Patricia, BEP). Les autres éléments relevés pour cette caté-
gorie ont trait à des échecs, des prises de conscience relatives aux exigences (répondre
à la consigne) ou à l’importance de la langue écrite pour eux-mêmes, leur carrière ou
aux yeux des autres.

LES CONSTANTES
Cette catégorie révèle les éléments suggérés par les répondants comme s’inscrivant
dans la durée ou dans l’habitude. Ils sont introduits par des mots comme «toujours,
jamais, souvent, c’est facile de…». Ainsi, certains étudiants rapportent des difficul-
tés récurrentes«Souvent, quand j’ai un travail à faire, je vais le retarder à cause du
français.» (Patricia, BEP) ou à l’inverse des aspects particulièrement faciles pour eux
«J’ai toujours eu un niveau de français plus élevé que la moyenne». (Pascale, BEP),
d’autres signalent des éléments de contexte ou des modalités qui facilitent «Je fais
souvent relire mes textes» (Anne, BES) ou rendent difficile l’écriture, de façon gé-
nérale et dans la durée: «Les conditions perdantes: du bruit, une limite de temps et
un manuscrit.» (Pierre, BEP)

9
Les prénoms sont ictifs.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 149


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L’état Y représenté dans le schéma pour les étudiants du BEP et du BES témoig-
ne d’un changement provoqué par un passage par le programme de formation. Des
variations sont visibles dans les propos des étudiants du BEP qui ciblent plus souvent
une personne en particulier plutôt qu’un sigle de cours («le cours de Line10»), mais
également, ils identifient plus souvent le programme ou l’université dans sa globalité
comme étant sources de changement :
«C’est l’université qui m’a permis de développer mes aptitudes en français (Paul, BEP)»

«L’université, c’est ce qui m’est arrivé de plus beau après mes enfants! (Pierre, BEP)»

Les étudiants du BES, de leur côté, vont plutôt désigner, pour rendre compte des
causes de leur progrès, des cours précis, par leur titre, leur sigle, le sujet traité et même
de façon plus étroite encore, une tâche d’écriture ou un travail particulier qu’ils ont eu
à réaliser: «Mon cours de rédaction, à la FLSH11», «INT 40112».
Cependant, ce qui est le plus significatif, nous semble-t-il, c’est que les propos
des uns et des autres témoignent de l’impression d’un nouvel état «final» «stable» ou
«encore en évolution». Ce sont les étudiants du BES qui s’expriment en des termes
sentiment de connaissances acquises au sens de quelque chose de «complété» alors que
leurs collègues du BEP semblent davantage encore en processus.
«Je suis capable de synthétiser mes propos.» (Flora, BES, proil français)

«Mes textes sont plus structurés et plus facilement accessibles.» (Hugo, BES, proil
univers social)

«J’essaie de m’améliorer.» (Patricia, BEP)

«Pis là, ça s’en vient mieux.» (Pierre, BEP)

10
Il s’agit d’une chargée de cours du BEP qui dispense les trois cours de perfectionnement en français du programme. Ces
cours permettent le développement des compétences en français et préparent au test de français obligatoire pour tous les
étudiants en enseignement du Québec.
11
Faculté des Lettres et sciences humaines.
12
INT401 : cours de dernière année qui consiste à produire un mémoire professionnel à partir d’une recherche-action
menée par les étudiants durant leur stage.

150 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Concrètement, les étudiants du BEP vont, à l’image des deux extraits présentés ci-
-haut, expliquer qu’ils «sont en train de…» ou qu’ils «commencent à…» alors que ceux
du BES vont dire «je suis capable de…» ou «mes textes sont plus structurés». Ceci est
cohérent avec le fait que les étudiants du BEP vivent un retour aux études après une sco-
larisation courte remontant à plusieurs années alors que leurs pairs du BES sont, pour la
plupart, en processus de formation ininterrompue depuis leur entrée au primaire.
Il faut ici référer au parcours professionnel et scolaire des deux groupes pour bien
éclairer cette particularité, avant d’en tirer quelques conclusions pour les programmes
de formation. En effet, les étudiants du BEP ont derrière eux en moyenne 13 ans
d’exercice d’un métier (BALLEUX et LOIGNON, 2004), ils ont pour la plupart fait
des études courtes. Leur expérience du français écrit, pour plusieurs, est loin d’être
facile et continue d’être éprouvante au baccalauréat :
«Souvent quand j’ai un travail à faire, c’est ça qui va faire que je vais le retarder [le
français]. Parce que ça me demande beaucoup d’eforts à ce niveau-là (Patricia, BEP)».

«J’étais le plus poche [faible] de ma classe de français.» (Pierre, BEP)

À l’inverse, les répondants du BES ont plutôt un parcours linéaire, c’est-à-dire


qu’ils sont arrivés à l’université en franchissant toutes les étapes de la scolarité – pri-
maire, secondaire, cégep, université – et cela, la plupart du temps, sans interruption. Ils
n’ont pour la majorité pas relaté de difficultés en français au cours de ce cheminement.
Il est ainsi plausible que les étudiants du BEP aient une impression d’avoir encore
du chemin à faire dans le développement de leur compétence en français alors que
leurs pairs du BES se sentent davantage en phase de «fignolage» de leur compétence.
Par ailleurs, le contexte des étudiants du BEP et celui des étudiants du BES se distin-
guent du fait que les premiers sont déjà enseignants. Ils sont donc continuellement
confrontés à «la vraie vie» de la profession enseignante et au regard des élèves sur leur
propre compétence de scripteur et des difficultés de leurs élèves.
«Au début, en enseignement, il y a eu une adaptation à faire. Faut que j’essaie de
ne pas faire de faute. Avant, c’était pas important, mais là, ça l’est devenu tout d’un
coup. Je m’en sors bien, je pense.» (Patrick, BEP)

«Je peux en faire bénéicier mes élèves, de mes apprentissages sur l’écriture.
Maintenant, je les fais écrire, ils apprennent en écrivant.» (Pétunia, BEP)

De leur côté, les étudiants du BES, s’ils font des stages régulièrement, ont d’abord
et avant tout un statut d’étudiant, et la confrontation quotidienne avec les élèves est
différée. Il est alors plausible que l’urgence d’une amélioration de sa compétence
de scripteur se fasse sentir davantage chez les étudiants du BEP. D’ailleurs, dans les
propos des répondants à l’entrevue, la préoccupation de sa compétence de scripteur
perçue par les élèves est évidente chez les étudiants du BEP alors que ceux du BES sont

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 151


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plus discrets à cet égard. Le discours de cette étudiante d’enseignement professionnel


est particulièrement significatif à cet égard :
«De plus en plus, j’écris au tableau. Mais encore là, je fais attention parce que j’aime
pas ça faire des fautes. Fait que là, j’essaie de me corriger ou j’écris des mots que je
connais vraiment. Mais je me suis aperçue que bon, avec les années, je vous dirais
que depuis deux ans peut-être, j’écris beaucoup plus au tableau. Je vais donner plus
de feuilles aussi plus de choses, là, des petites notes. Souvent je vais écrire des petites
notes. « (Patricia, BEP).

Il apparait donc que la transformation du rapport à l’écrit des étudiants des deux
groupes adopte des formes contrastées, comme le sont leurs caractéristiques. C’est
notamment au regard de la façon de décrire l’état postérieur à la formation qui diffère,
les uns annonçant une démarche de perfectionnement en cours, les autres un produit
fini. D’autre part, l’aspect affectif semble plus prégnant dans les propos des étudiants
du BEP que dans ceux des étudiants du BES.

CONCLUSION
Cet article découle d’une recherche sur le rapport à l’écrit de deux grou-
pes d’étudiants en enseignement de l’Université de Sherbrooke, aux programmes
d’enseignement secondaire et d’enseignement professionnel. Nous nous sommes at-
tardés à la transformation de ce rapport à l’écrit au fil de leur histoire de vie des répon-
dants, et plus particulièrement lors de leur passage dans leur programme de formation
à l’enseignement.
Les données de nature qualitative ont été recueillies au moyen d’entrevues semi-
-structurées auprès d’un sous-échantillon de 15 étudiants (8 du baccalauréat en en-
seignement secondaire et 7 du baccalauréat en enseignement professionnel). L’analyse
des données a permis de dégager cinq grandes catégories qui constituent autant de
jalons dans la transformation du rapport à l’écrit des étudiants rencontrés : une des-
cription d’un état antérieur dans le parcours de l’étudiant; une description d’un état
postérieur; un ou des points tournants dans le parcours; les moments jugés marquants
dans l’histoire de l’étudiant; les constantes dans l’histoire de l’individu.
L’analyse a mis en évidence une diversité d’expériences, lesquelles, toutefois, com-
portent des ressemblances dans leur trame. L’un des points communs les plus évidents
se situe dans la façon dont les étudiants de l’une et l’autre des programmes discutent
de leur compétence de scripteur. En effet, les étudiants du BEP abordent plus souvent
le sujet en des termes rappelant un processus, une démarche encore en cours alors que
chez leurs collègues du BES, les propos annoncent davantage une compétence «attein-
te», «complétée».

152 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Ce constat soulève des questions importantes, notamment pour les formateurs


universitaires qui accompagnent ces étudiants. L’une d’entre elles, au sujet des étu-
diants du BEP principalement, pourrait se formuler comme suit : «quel est l’impact
d’une perception de compétence «atteinte» chez de futurs enseignants sur leur engage-
ment dans leur formation?» Et dès lors, «comment attirer l’attention de ces étudiants
sur l’importance de la fonction épistémique de l’écriture pour eux-mêmes, mais sur-
tout pour leurs futurs élèves?»
D’autre part, les données analysées laissent apparaitre une transformation éviden-
te du rapport à l’écrit des enseignants du BEP. Leur histoire scolaire est pour plusieurs,
marquée de difficultés en français écrit et celles-ci ont des échos importants dans leur
parcours universitaire. Les progrès réalisés ne le sont pas sans douleur, mais également
de façon très significative, dans la fierté. En ce qui les concerne plus spécifiquement, les
questions qui restent en suspens au terme de cette analyse touchent le transfert possi-
ble –ou non- vers les élèves à qui ils enseignent. Si plusieurs des répondants expriment
d’une façon ou d’une autre que l’écriture leur permet d’apprendre, cette conception
a-t-elle au final des retombées dans la classe ou demeure-t-elle plutôt confinée au cadre
de leur apprentissage en contexte universitaire? Comment les formateurs universitaires
peuvent-ils les accompagner dans le transfert de cette conception en classe?
Cet article soulève donc d’autres pistes d’analyse et de recherche, mais a éga-
lement des retombées en formation à l’enseignement secondaire et en formation à
l’enseignement professionnel. Certaines avenues seront explorées dans la suite des
analyses du corpus de données recueillies dans le cadre de la recherche présentée ici,
alors que d’autres restent en suspens.

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PERSPECTIVAS DE ALFABETIZAÇÃO: LIÇÕES DA


PESQUISA E DA PRÁTICA PEDAGÓGICA

PERSPECTIVES ON LITERACY: LESSONS FROM RESEARCH AND


PEDAGOGICAL PRACTICES
Cecilia M. A. Goulart1*

Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar.


O pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro.
Mia Couto

RESUMO: A exclusão do sujeito e o treino de estruturas linguísticas continuam, em


geral, marcando o ensino da língua portuguesa desde o período de alfabetização. O
debate sobre o trabalho com a linguagem na escola, discutido de modo alvissareiro
desde a década de 1980, ainda não se generaliza pelas salas de aula brasileiras. No final
do século XX e início do XXI, as duplas de categorias teórico-metodológicas técnico/
social e fônico/discursivo ocupam espaço significativo no debate. O objetivo deste
artigo é contribuir para compreender e aprofundar este debate sobre aspectos do tra-
balho educativo na área de alfabetização. Discutimos, com base em resultados de pes-
quisa e na experiência de acompanhamento de professores dos anos iniciais do Ensino
Fundamental, contextualizados na teoria da enunciação de Bakhtin, alguns princípios
para ações de pesquisa e de prática pedagógica, voltadas para o estudo da linguagem
verbal. A alfabetização com base em textos se fortalece com a possibilidade de os alu-
nos mergulharem nos sentidos dos textos que leem e inventarem novos sentidos para
os textos que escrevem. Os princípios se organizam na perspectiva discursiva para o
trabalho alfabetizador, fazendo-se um contraponto a propostas de trabalho que priori-
zam a abordagem fônica do sistema alfabético de escrita, tomando como referência o
conceito de consciência fonológica.
Palavras-chave: Alfabetização; discurso; consciência fonológica; Bakhtin; prá-
tica pedagógica.
ABSTRACT: The exclusion of the subject as well as linguistic structures training has
marked the Portuguese language teaching since children’s early years of reading and
writing learning. The debate related to language learning at school has been produc-
tively established since 1980, but it has not fully involved Brazilian school classrooms
yet. At the end of the 20th century and the beginning of the 21th, the double theoreti-
cal and methodological categories, respectively technical/social and phonic/discursive,
occupies a significant space in that debate. The aim of this article is to contribute to
understand and deepen this debate focusing on aspects of the educational work in the
1 *
Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. Doutora em Letras, professora associada.
E-mail: goulartcecilia@uol.com.br

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 157


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literacy area. In order to achieve these aims the article uses both research results and
records of an experience involving teacher’s education and a follow up of the practices
of primary school teachers. This empirical material has been analyzed using not only
Bakhtin’s enunciation theory but also some guideline principles to research activities
and pedagogical practice related to verbal language. Using as reference the concept
of phonological awareness, such principles are organized under the perspective of the
discursive starting point to guide the writing and reading process in contrast with the
ones, which centralize the writing alphabetical system phonic approach.
Keywords: Literacy; discourse; phonological awareness; Bakhtin; pedagogical practices.

APRESENTAÇÃO
O desenvolvimento e a autonomia teórico-metodológica do campo da Linguísti-
ca, conquistados na virada do século XIX, permitiram o aparecimento de novas meto-
dologias para a abordagem de fenômenos da linguagem. Ao longo do século XX, novas
perspectivas de estudo se constituíram, mas, apesar deste desenvolvimento, o campo
apresenta dificuldades históricas para contribuir com propostas de trabalho pedagógi-
co formadoras de sujeitos educados criativa e criticamente.
Há 20 anos Abaurre (1994) sinalizava a influência do programa estruturalista nas
salas de aula, que considera o treino de estruturas da língua materna como garantia
de aprendizagem, desde as séries iniciais, na fala e na escrita (ABAURRE, 1994, p.
104). Conforme esclarece Salomão (2009), a marca do estruturalismo e dos avanços
alcançados nesse campo para o estudo de organizações fônicas, morfológicas, e, mais
limitadamente, sintáticas, é o foco no significante, segmentado até obter elementos
mínimos (fones, fonemas, traços fônicos, morfemas, lexemas, classes sintáticas), em
termos de suas propriedades combinatórias e distribucionais. E continua Salomão:
O custo da precisão assim conquistada é a exclusão do sujeito como usuário
“voluntarioso” da linguagem; na verdade, é parte do espólio interdisciplinar do
estruturalismo o orgulho intelectual de ter promovido a desconstrução do “sujeito”,
só reconhecível como dimensão inconsciente: na expressão lacaniana, o sujeito é um
“lugar” (...). (SALOMÃO, 2009, p. 63, grifo e aspas da autora).

O que mais se destaca, em geral, nos estudos gramaticais que vêm balizando o
ensino da língua portuguesa são a exclusão do sujeito e as categorias estruturais elen-
cadas para serem estudadas. Em cartilhas de alfabetização, estes aspectos são muito
flagrantes, os textos não são de ninguém, não têm autor, história. Categorias como
sílabas, vogais, consoantes, frases, letras e outras são o ponto de partida de métodos na
tradição de propostas e práticas de trabalho alfabetizador. Estudos gramaticais não são
relacionados ao aprofundamento do entendimento dos processos de produção e com-
preensão de textos; além disso, promovem tanto o esquecimento da oralidade quanto
o normativismo renitente, conforme Franchi (1987, p. 5): “as normas gramaticais são

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teimosamente o eixo do trabalho”. Isto pode ser explicado também por categorias e
conceitos herdados dos gregos e dos filósofos naturalizados como “os conhecimentos”
a serem ensinados/aprendidos, os conhecimentos “verdadeiros” a respeito da língua.
Embora ao longo do século tenhamos mudado algumas roupagens no ensino, conti-
nuamos a trabalhar com pressupostos behavioristas, estimulando a aprendizagem de
uma língua como que autônoma em relação a seus falantes - os diferentes usos sociais
não têm peso, somente o sistema abstrato.
A partir principalmente da metade do século XX, os estudos em teoria gerativa,
em teoria da variação e os estudos sobre o discurso trouxeram a possibilidade de se
repensar o estudo da linguagem nas suas interfaces com a Biologia, a Psicologia, a So-
ciologia, a História e outras ciências humanas. Estes estudos vêm-nos possibilitando
uma ampliação da compreensão da linguagem, no sentido do trabalho com unidades
dialéticas tais como: individual e universal, presença e história, natureza e cultura,
forma e função, texto e contexto, entre outras, elementos tradicionalmente encarados
de maneira dicotomizada.
Especialmente a partir da década de 1980, o trabalho com a linguagem na escola
vem sendo discutido de modo alvissareiro, no Brasil, associado ao processo de abertura
política e eleição de novos governadores. Secretarias de educação de todo Brasil se mo-
bilizaram para construir novas propostas político-pedagógicas na perspectiva da edu-
cação crítica, de qualidade. A área de linguagem recebeu ênfase em algumas propostas
(como, por exemplo, as dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo), evitando-se, e
mesmo superando-se, a separação entre o trabalho linguístico que se realiza nos pri-
meiros anos escolares, voltados para a alfabetização, e o trabalho realizado nos anos
escolares posteriores.
Buscou-se uma concepção de trabalho que considere a língua socialmente enga-
jada, garantindo o estudo da gramática não restritiva, limitativa ou empobrecedora do
saber dos sujeitos (como se tem mostrado tradicionalmente). De acordo com o que
postula Franchi (1987), a gramática se organiza como um conjunto de processos e
operações pelos quais o homem reflete e reproduz suas experiências no mundo e com
os outros, podendo inclusive viajar, por meio deles a universos inimagináveis. A gra-
mática é concebida como “um sistema aberto a uma multiplicidade de escolhas, que
permite não somente ajustar as expressões aos propósitos e intenções comunicativas do
locutor, mas ainda marcar cada texto com a marca de um estilo, não menos expressivo
por ser estilo” (FRANCHI, 1987, p. 43). Evidencia-se, assim, uma enorme distância
entre a gramática como normativismo renitente, com o sujeito excluído, e a gramática
como um sistema aberto a uma multiplicidade de escolhas dos sujeitos, no plural.
O objetivo deste artigo é contribuir para compreender e aprofundar o debate
teórico-metodológico atual sobre aspectos do trabalho educativo na área de alfabeti-
zação. Discutimos, a partir de resultados de pesquisa e da experiência de formação e
acompanhamento de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, contextu-

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alizados na teoria da enunciação de Bakhtin, alguns princípios para ações de pesquisa


e de prática pedagógica, voltadas para o estudo da linguagem verbal. Tais princípios se
organizam na perspectiva discursiva, fazendo-se um contraponto a propostas de traba-
lho alfabetizador que priorizam a abordagem fônica do sistema alfabético de escrita,
tomando como referência o conceito de consciência fonológica.
Soares (1985), em artigo que se tornou emblemático para a área de alfabetização,
destaca a multiplicidade de perspectivas da alfabetização, referindo-se à possibilidade
de organização de uma teoria da área:
(...) resultante da colaboração de diferentes áreas de conhecimento, e de uma
pluralidade de enfoques, exigida pela natureza do fenômeno, que envolve atores
(professores e alunos) e seus contextos culturais, métodos, materiais e meios.
Entretanto, essa multiplicidade de perspectivas e essa pluralidade de enfoques não
trarão colaboração realmente efetiva enquanto não se articularem em uma teoria
coerente da alfabetização, que concilie resultados apenas aparentemente incompatíveis,
que articule análises provenientes de diferentes áreas de conhecimento, que integre
estruturadamente estudos sobre cada um dos componentes do processo. (SOARES,
1985, p. 20, grifo meu).

De 1985 até os dias atuais, quase trinta anos depois, estudos sobre o tema se
avolumaram muito, entretanto continua havendo a linha divisória explicitada princi-
palmente por estudos sobre a história da alfabetização no Brasil (MORTATTI, 2000;
2011 e outros). Se ao longo do século XX a referida linha separa métodos de marcha
sintética de métodos de marcha analítica, ao final deste século outros tons do tema
aparecem, destacando-se as duplas técnico/social e fônico/discursivo. Naturezas di-
ferentes caracterizam as duplas: foco na abordagem do objeto de estudo e ponto de
partida do trabalho formal de alfabetizar, respectivamente. É interessante observar que
ao longo do século XX a marcha dos métodos se diferenciava pela unidade que era
tomada como base para dar início ao trabalho alfabetizador, a questão do sujeito não
se explicitava, a não ser em abordagens filosóficas do processo de alfabetização, como,
por exemplo, no estudo de Paulo Freire.
A linha divisória que aparece no final do século XX, contudo, concretizada aqui
em duas duplas de categorias, já traz embutida a presença do sujeito. Vale destacar que
o caráter do sujeito presente nas diferentes abordagens não é o mesmo: de um sujeito
produtor de linguagem, que vive em sociedade, a um sujeito engajado politicamente,
passando por um sujeito abstratamente psicológico. Considerando os limites deste
artigo e a complexidade conceitual que envolve a discussão sobre as duas duplas, por
uma questão de método, vou-me dedicar a explorar a segunda dupla apresentada:
fônico/discursivo. A primeira dupla, técnico/social, relacionada à entrada do conceito
de letramento nos estudos sobre alfabetização, embora não focalizada explicitamente,
está implicada, mas sem destaque, ao longo da exposição.

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ALFABETIZAR E ALFABETIZAR-SE: PONTOS DE PARTIDA


O sistema alfabético de escrita deu origem a diferentes sistemas ortográficos, o
que já aponta para sua maleabilidade e heterogeneidade. Estudos de Kato (1986) Cha-
con (1998), Miranda (2011) entre outros, apresentam expressiva contribuição para
a compreensão da escrita da língua na direção de seu ensino, foco de nosso trabalho.
Miranda destaca que a língua portuguesa escrita é, sobretudo a partir do século XX,
preponderantemente fonêmica, ou seja, a escrita procura representar o que é funcio-
nal no sistema de sons da língua, aquilo que possui valor contrastivo, os fonemas,
como unidades que contrastam funcionalmente com outras unidades e são, por isso,
capazes de distinguir significado (CRYSTAL, 1973). Miranda destaca que a natureza
fonêmica da ortografia portuguesa, assim como a dos sistemas ortográficos de outras
línguas, garante a unidade do sistema de escrita. As palavras podem ser pronunciadas
de formas diferentes, dependendo da região, classe social, idade, entre outros fatores,
dependendo, enfim, do dialeto do falante. As variedades linguísticas características da
língua falada são neutralizadas graças à natureza essencialmente fonêmica da ortografia
(MIRANDA, 2011). A palavra “mesmo”, por exemplo, pode ser verbalizada de várias
maneiras tanto do ponto de vista fonológico quanto do ponto de vista de sua inserção
em contextos enunciativos, cujos contornos prosódicos provocam mudanças nas pala-
vras. No momento da escrita, entretanto ela deve ser grafada com a sequência de cinco
letras MESMO (cf. MASSINI-CAGLIARI e CAGLIARI, 2005, entre outros estudos).
Kato (1986) destaca três motivações que organizam o sistema ortográfico: a mo-
tivação fonética, a motivação lexical e a motivação diacrônica. A motivação foné-
tica pode ser exemplificada pelo uso do ‘m’ antes de ‘p’ e ‘b’, decisão decorrente da
manutenção do traço bilabial dos fonemas que estas letras representam: [p], [b] e
[m] são classificados como fonemas bilabiais, considerando o ponto de articulação;
a motivação lexical diz respeito a formas que mantêm o mesmo grafema, ainda que
ocorra a mudança no som. Como exemplos a palavra ‘medicina’, escrita com ‘c’ por se
tratar de uma derivação da palavra primitiva ‘médico’; e a palavra ‘sal’ grafada com ‘l’
porque o ‘l’ pode ser encontrado nas palavras derivadas ‘saleiro’, ‘salgado’ e ‘salina’; e
na motivação diacrônica ou etimológica, a explicação para a grafia está na origem da
palavra. ‘Homem’ e ‘hoje’, por exemplo, são escritas com ‘h’ porque vêm das formas
latinas ‘homine’ e ‘hodie’, respectivamente. É, portanto, um equívoco considerar que a
grafia represente diretamente a pronúncia (FARACO, 1992, p. 11), há muitos fatores
interferindo nas relações entre o falado e o escrito. Existe, é verdade, uma proximidade
maior entre a grafia e algumas pronúncias, mas esta proximidade também é relativa,
em função de aspectos etimológicos e históricos (As pronúncias podem mudar ao lon-
go do tempo). (FARACO, 1992, p. 11-12).
As considerações de Monserrat (1986) são bastante pertinentes para pensarmos a
heterogeneidade da escrita alfabético-ortográfica. Segundo a linguista, a maioria dos al-
fabetos fonêmicos atuais – tanto os das línguas com longa tradição escrita, como aquelas

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com escrita recente – são uma mescla de símbolos fonêmicos, morfofonêmicos e até
logográficos. Em outras palavras, a essência atual da escrita no mundo tem caráter em
grande medida convencional, embora tenha origem na representação parcial da fala.
O estudo precursor de Chacon (1998) apresenta uma faceta linguística relevante
e pouco explorada em relação à produção escrita: o ritmo, concebido na perspectiva
da enunciação, lugar em que os fatos da linguagem se organizam. Tradicionalmente
associado à oralidade, o foco da pesquisa do autor é o ritmo da escrita operando na
atividade de produção textual. Para tanto, Chacon analisa a pontuação de textos es-
critos de vestibulandos. Um pressuposto importante é que os fatos rítmicos envolvem
toda a linguagem, com papel fortemente estruturador e organizador. Comentados por
Chacon, os estudos de Luria (1988), de Holden & MacGinitie (1972) e de Abaurre
(1989; 1991), a partir de perspectivas e experiências diferentes, são instigantes para a
reflexão sobre a importância do ritmo na constituição do processo de aprendizagem da
escrita de crianças. O autor destaca o caráter multidimensional da organização rítmica
da linguagem promovida pela enunciação.
Embora brevemente considerados, os estudos anteriores evidenciam que o des-
taque prioritário a aspectos fônicos da linguagem no processo inicial de alfabetização
pode mascarar os modos como as crianças se aproximam do conhecimento da escrita.
Pode obscurecer aspectos que são observados pelas crianças quando operam com a lín-
gua viva, com o discurso social. Os estudos sobre alfabetizar e alfabetizar-se têm muito
a ganhar com o reconhecimento do discurso como o espaço em que as dimensões da
linguagem se movimentam e produzem sentido. De acordo com a pesquisadora Ann
Peters (1983), no processo de aquisição da linguagem oral, há unidades de análise do
ponto de vista do adulto, do linguista e da criança, e nem sempre estes três prismas
são coincidentes.
A escrita alfabética tem origem como uma tecnologia de associação de fonemas
a letras. Na longa história do homem de utilização desta linguagem, a crescente com-
plexidade da linguagem a representar e o, também crescente, número de usuários,
demandaram novos caracteres e sinalizações, como sinais de pontuação, acentuação,
letras maiúsculas, normatizações gráficas e ortográficas, entre outros. A escrita se su-
pera como codificadora de conhecimento, passando ela mesma a conhecimento. Sua
organização, seus modos de significar e interagir com conhecimentos de diferentes
campos tornaram-na um modo de saber e de conhecer. A dimensão fonológica da es-
crita, embora necessária, está longe de ser suficiente para alfabetizar crianças e adultos.
Em face do exposto, entendemos que o ponto de partida da criança em processo
de alfabetização não é, necessariamente, a chamada “consciência fonológica”, denomi-
nação imprópria para conhecimentos complexos relacionados às relações entre o que
se fala e o que se escreve. Expressão que se formou no contexto de estudos taxionômi-
cos da língua, associados a perspectivas comportamentalistas de ensino-aprendizagem.
Este é um ponto de partida circunstancial. Nesta perspectiva estaríamos considerando

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uma concepção de trabalho com a língua que fragmenta para ensinar, subordina o
sentido da língua ao sistema, como apontamos no início do artigo. Compreendemos
que a aprendizagem da escrita se realiza através de processos de análise da língua, em
que se buscam elementos para entender como se produz sentido por escrito. Estas
análises, entretanto, podem ter outros aspectos e relações linguísticos como partida. Se
aceitarmos a ideia de consciência, quantas consciências e de que natureza serão necessá-
rias para que as crianças se alfabetizem, participem do mundo da escrita? Consciência
fonológica? Sintática? Morfológica? E o que mais? No sentido que vem sendo explo-
rado há décadas, o conceito de consciência é polêmico e não tem suporte linguístico.
Na perspectiva filosófica bakhtiniana, a constituição da consciência é relacionada à
constituição do sujeito histórica e socialmente marcado, do seu discurso e à constituição
da própria sociedade, da história e da cultura, enfim à constituição de um éthos político
que pode ser encarado tanto do ponto de vista micro quanto do ponto de vista macro,
nunca os dissociando. É deste modo que encaramos o sentido de consciência, instância
interior semiotizada e ideologizada, socialmente constituída, que garante a renovação, a
perspectiva de ação e transformação política, discursiva e cognitiva do sujeito.
O que se discute aqui não é se o conhecimento das relações entre fonemas e gra-
femas e o conhecimento do nome das letras são importantes no processo de alfabeti-
zação. Com certeza são conhecimentos importantes. A questão que se coloca é como
e com que sentido as crianças deles se apropriam. A escansão de unidades linguísticas
para compreender a formação e composição da língua por um estudioso é diferente
do trabalho pedagógico de desmontar a língua para ensinar a escrever e a ler. Crianças
não são pequenos linguistas ou pequenos epistemólogos. Não temos dúvida de que
a aprendizagem envolve análises, a questão é: quem faz a análise? Qual é o ponto de
partida? Questões educacionais e didáticas se interpõem.
O ideário educacional ainda hoje aponta para uma noção de aprendizagem cujas
principais características a relacionam a um processo previsível e controlável (e são
testemunho disso os currículos e programas escolares que supõem um tempo métrico
rigorosamente regulado); que avança passo-a-passo, de modo linear e cumulativo; e
passível de medição/avaliação, sendo o resultado geralmente aferido de modo dicotô-
mico: o aluno aprendeu, ou não. Traços recorrentes destas ideias são sintetizados em
princípios tais como: a aprendizagem deve ir do concreto ao abstrato; do mais simples
ao mais complexo; e do particular ao geral. É o que nos diz Colinvaux (2005, p. 4),
lembrando-nos que estes pressupostos vêm sendo questionados pela psicologia do de-
senvolvimento deste os anos 1920, há quase cem anos, portanto.
Sinclair (1990, p.17) destaca que uma longa tradição associacionista confunde
métodos de ensino com processos de aprendizagem da criança, e confunde também
técnicas e hábitos perceptivo-motores com compreensão ou competência. Este desta-
que continua muito relevante ainda hoje. Propostas e práticas pedagógicas permane-
cem reféns de atividades repetitivas, acreditando que para aprender é preciso repetir,

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 163


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repetir e repetir, gerando subterraneamente pouco espaço para a criação e transforma-


ção, para a construção de pessoas críticas, já que a crítica nasce do conhecimento de
pensamentos divergentes e dissonantes. Modos de ensinar e modos de aprender estão
intimamente relacionados.
Nas propostas de trabalho para alfabetizar na escola, de acordo com Goulart
(2013), a litania de textos, a litania de tudo - a repetição para ordenar, catequizar
-, no interior de uma sociedade pensada unidiscursivamente, persiste em prevalecer.
Apesar de propostas e parâmetros aparentemente inovadores, a concepção de unidade
na diversidade, que se mantém, e o deslocamento das práticas para a ênfase em novas
categorias, como gêneros do discurso, por exemplo, continuam a agir para a submissão
dos sujeitos pela negação do plurilinguismo de suas falas.
Smolka (2010) em estudo que discute as relações de ensino na escola, focalizando
as relações entre significar e ensinar, afirma que, na construção histórica da sociedade,
aprendemos a privilegiar a constância, a unicidade, a homogeneidade, a exatidão, a
completude. A autora destaca estes parâmetros como o que define a norma, o norma-
tivo, a normalidade, enfatizando que aquilo “que não coincide, o que desregula, tem
um valor marginal, desviante, anormal, patológico. Isso, mesmo e apesar dos discursos
pós-modernos da pluralidade e da diversidade”. Os destaques de Smolka se conectam
com a marca da repetição e da reprodução na escola. Não surpreende que somente
62% das pessoas com ensino superior e 35% das pessoas com ensino médio com-
pleto sejam classificadas como alfabetizados em nível pleno (INAF, 2011-2012). Ou
seja, pessoas que compreendem e interpretam textos em situações usuais: leem textos
mais longos, analisando e relacionando suas partes, comparam e avaliam informações,
distinguem fato de opinião, realizam inferências e sínteses. Como explicar estes resul-
tados depois de os alunos terem passado tantos anos na escola, aprendendo a língua
portuguesa de várias maneiras e por meio de diferentes disciplinas?
O conhecimento das características dos objetos de ensino, no caso aqui da escrita
para aprender a escrever, se mostra importante para o planejamento do trabalho peda-
gógico e para guiar intervenções, de modo a provocar as crianças para a aprendizagem
da escrita, pela curiosidade de descobrir como se organiza o sistema para poderem ler
e escrever, de modo a analisarem o discurso escrito para aprender. No movimento de
aprendizagem, desvela-se o saber construído pela criança com base na sua experiência
linguística. A aquisição do conhecimento da língua pela criança revela a plasticidade
de um processo que pode ser observado nos sinais de estruturação e de reestruturação
das produções, à medida que as crianças adicionam e descartam regras às suas gramá-
ticas ainda em construção. O ensino da leitura e da escrita na escola não pode limitar
a compreensão das crianças, jovens e adultos sobre esse saber a seus aspectos técnicos,
se tem como objetivo formar leitores e escritores críticos.
Como fonte de reflexão sobre aspectos que destacamos nesta seção e ao longo do
artigo, apresentamos abaixo, em sequência cronológica, três textos produzidos por

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uma menina de seis anos, Camila, no primeiro semestre do 1º ano do Ensino Funda-
mental de escola pública estadual do Rio de Janeiro. Quando Camila começou o 1º
ano, ainda não havia percebido a relação entre a camada sonora da fala e a escrita. A
prática pedagógica cotidiana da professora contemplava ações orais, leituras e ações de
produção de textos. As crianças eram motivadas a falar e ler e escrever como pudes-
sem/soubessem, tudo em torno de temas da atualidade ou ficcionais, encontrados em
suportes de escrita variados.
Texto 1

Texto 2

Texto 3

Os conhecimentos que Camila levou para a escola pública somados ao trabalho


da professora fizeram com que, aparentemente de forma rápida, a menina escrevesse
como se pode ver/ler no texto 1. A proposta da professora neste momento foi que as
crianças escrevessem a parte da história Os três porquinhos de que mais haviam gostado.
Essa história foi lida para elas e, depois, tomada como objeto de animada conversa. E
Camila leu para nós o que escreveu: Quando ele estava fazendo a casa de tijolo. A escrita
da menina traz evidências de que ela já percebeu aproximações entre a fala e a escrita.
De modo heterogêneo, Camila mostra conhecimentos importantes, além dos que já
possuía: usa letras para escrever, escreve de cima para baixo e da esquerda para a direita
explicitamente. A formação (palavra?) inicial Cado parece representar a palavra quan-
do; vemos a formação Tavo precedida de Ni parecendo representar a palavra estava.
A letra N, parecendo entrar como um coringa para solucionar possíveis impasses, é
encontrada em três momentos.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 165


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O texto 2 está vinculado à história Dona galinha e o ovo de Páscoa (de Eliana
Sá, Editora Scipione, 1993), título que foi escrito no quadro de giz e a maioria das
crianças da turma copiou para dar conta da proposta da professora de que a turma
reproduzisse a história que havia sido lida e comentada. É possível observar indícios
de partes da história na produção de Camila, para além do título copiado. Na ter-
ceira linha, a menina procura reproduzir o modo como a história se inicia: Está um
lindo dia para ciscar!/Seta BOM DIA cisca. Na quarta linha, as andanças da galinha
para arranjar um lugar para chocar o ovo especial que havia encontrado parecem ter
dificultado a organização da construção sintática, com repetições da palavra OVO
e, ao final está a palavra CHOCA escrita como OH A. Na quinta linha, consta
“levou para o ninho/Levou para o NiHO”. Na última parte aparece a escrita do
nome de PEDRO, o menino que encontra o seu ovo de Páscoa deixado pelo coelho,
e que a galinha havia pensado ser um ovo de ave especial! E aparece também parte
da palavra COELHO. Chamo atenção que Camila não está escrevendo palavras,
está compondo um texto, muitos conhecimentos estão envolvidos aí além de letras,
é preciso não perder de vista. O discurso escrito vai desabrochando instigado por
propostas envolventes e intervenções desafiadoras.
O texto 3 foi produzido a partir de longas atividades com embalagens de arroz,
levadas pelas crianças, conforme combinado anteriormente. Estas embalagens moti-
varam muitas conversas e mobilizaram muitas informações das crianças sobre hábitos
alimentícios das famílias, entre outros. As embalagens foram classificadas de vários
modos: peso, marca do arroz, local de produção, etc. Neste movimento a professora
também começou a trabalhar com os alunos sobre o gênero classificados, discutindo
suas funções sociais e características. Em determinado momento, a professora propôs
que as crianças produzissem anúncios classificados para vender o arroz que eles haviam
levado para a escola. O texto de Camila nos dá a dimensão do entendimento dela
sobre como aquele gênero agia: Aros (ou Arois?) Ti João Eli (meio apagado) DURa
MuTo/Leva 2 (invertido) i paque 1. As estratégias de persuasão se destacam de forma
apropriada no texto, da mesma forma que dúvidas sobre a melhor maneira de redigir
o texto. Problemas de uma escriba iniciante, problemas de escritores proficientes. O
importante é que Camila com 6 anos parece já ter compreendido que as escolhas de
recursos expressivos modificam os sentidos dos textos. Ela não está somente preocu-
pada com a escrita do texto, ela está aprendendo que o texto tem muitas dimensões,
muitas entradas, pode ter muitos sentidos.
Analisando brevemente o percurso de Camila, podemos observar aspectos de seu
processo que encontram eco no que está sendo estudado e destacado no artigo. Se
formos nos ater a categorias linguísticas consagradas, vamos negar o conhecimento
que a menina apresenta e a progressiva aprendizagem da linguagem escrita. O processo
evidencia caminhos que vão sendo buscados para dar conta das necessidades que os
textos apresentam. Ainda no 1º ano, a produção de Camila já aponta sua competência
discursiva para lidar com diferenças de gêneros. As questões observadas nas produ-

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ções das crianças associadas aos conhecimentos linguísticos (aqui incluída a dimensão
discursiva) e pedagógicos, juntamente com o compromisso político de formação de
sujeitos cidadãos, nos dão as balizas para modos de atuar para a ampliação de conhe-
cimentos sobre a escrita e, sobretudo, sobre o mundo da escrita.

POR UMA TEORIA DE ALFABETIZAÇÃO


Discutir teorias de alfabetização é discutir projetos de sociedade. E como compre-
endemos uma teoria? Como um modo de explicação para a análise e avaliação de uma
realidade concreta, um fenômeno ou conjunto de fenômenos. Uma teoria se constitui
numa síntese de um vasto campo de conhecimentos, implicando princípios, concei-
tos e valores. Inclui também provisoriedade e história, entendendo a partir de Chauí
(1997) que, na atitude crítica, a verdade nasce da decisão e da deliberação de encon-
trá-la, do espanto, do estranhamento e do desejo de saber. Assim, definir princípios
teóricos implica selecioná-los com base em valores humanos, sociais, políticos. Nas
Ciências Humanas, como nos aponta Saviani (2003), modelos teóricos de campos de
conhecimento se produzem na tensão do processo e da prática político-social: prática
educativa como modalidade específica da prática social, relacionada à concepção de
sujeito, a teorias de conhecimento e a projetos de sociedade. Este então é um ponto de
partida politicamente significativo para refletirmos sobre os processos de alfabetização.
Na direção apontada, e considerando a perspectiva da teoria da enunciação de
Bakhtin, as relações da língua com os sujeitos e com a sociedade, e vice-versa, pensar a
língua como sistema de formas que remetem a uma norma, não passa de uma abstra-
ção. O sistema de formas, segundo o autor (BAKHTIN, 1988 [1934-1935], p. 108),
não pode servir de base para a compreensão e explicação dos fatos linguísticos enquan-
to fatos vivos e em evolução. Ao contrário, ele nos distancia da realidade evolutiva e
viva da língua e de suas funções sociais. A língua não se transmite; ela dura e perdura
sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Não recebemos a língua pronta para
ser usada, mas penetramos na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente
quando mergulhamos nessa corrente é que a consciência desperta e começa a operar.
Na escola, no processo de aprendizagem da escrita e de aprofundamento da com-
preensão do mundo social da escrita, há um processo de luta entre as palavras de
autoridade e as palavras que conhecemos e valorizamos. A aprendizagem da escrita,
do discurso escrito, implica mudanças e transformações na estrutura sintática e léxico-
-semântica das linguagens sociais que constituem as crianças como sujeitos do discur-
so, que constituem seus conhecimentos, seus modos de entender o mundo, a cultura
letrada e seus valores. É por isso que a dimensão discursiva compreende relações com
as experiências de vida dos sujeitos, com seus valores.
A palavra de autoridade na escola envolve indubitabilidade, incondicionalidade,
irrestritividade, com possibilidades limitadas de contatos e limitações, o que pode ini-

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 167


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bir o pensamento dos alunos (a partir de BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p. 367). A


escola imbuída da vontade política de educar precisa ter clareza das distâncias entre os
conhecimentos que propõe e os conhecimentos variados que lá chegam por meio dos
alunos. Precisa entender que o processo de ensino-aprendizagem se assemelha ao pro-
cesso que Bakhtin aborda de formação de novas línguas. Ficam as cicatrizes das fron-
teiras da palavra do outro, seus vestígios podem aparecer mesmo na estrutura sintática.
A índole e as peculiaridades da palavra autoritária não são determinações linguísticas
do discurso, mas metalinguísticas, envolvendo diferentes tipos e graus de alteridade da
palavra alheia e as diferentes formas de relação com ela (estilização, paródia, polêmica,
etc), os diversos meios de sua exclusão da vida do discurso. Todos esses fenômenos e
processos, entretanto, têm seus reflexos (resíduos) no aspecto linguístico da língua,
“em especial na estrutura sintática e léxico-semântica das novas línguas”, como nos
ensina o autor (BAKHTIN, 2003 [1952-1953], p. 368). Isso tudo também faz parte
dos processos de alfabetização de diferentes modos.
O estudo de Bakhtin (2004) nos ajuda a entender como essa tensão das estruturas
sintáticas aparece e pode ser trabalhada. O autor aponta modos de trabalhar a estilís-
tica das formas gramaticais, defendendo que a questão da escolha de modos de dizer
não é determinada gramaticalmente, mas por considerações estilísticas relacionadas à
expressiva eficácia destas formas. O autor critica a linguagem formalmente correta dos
alunos, pela despersonalização, falta de cor e de brilho. Chama atenção para o tom
livresco dessa linguagem e para a falta de semelhança com a linguagem oral animada
e irrestrita, embora isto seja valorizado pelos alunos como algo positivo (Frases feitas,
lugares comuns e frases de efeito são exemplos desse tipo de linguagem, como: “A
democracia é um sistema de governo de todos para todos.”). A exploração de modos
de expressão está ligada ao sentido dos textos produzidos/em produção e logo ao fato
de se ter conhecimento de que a utilização de formas composicionais diferentes leva a
ênfases e a valores diferentes no discurso.
Possenti (2001) articula os conceitos de enunciação, autoria e estilo, para conce-
ber o estilo na construção de enunciados: “(...) certo modo de organizar uma sequência
(de qualquer extensão), focando-se como fundamental a relação entre essa organização
e um determinado efeito de sentido (...)” (POSSENTI, 2001, p. 19). A escolha de re-
cursos expressivos é uma categoria constitutiva do estilo, de acordo com o autor. Dizer
de determinado modo implica não dizer de outro, a escolha é, assim, uma necessidade
estrutural como efeito de condicionantes específicos. É um efeito da multiplicidade
dos recursos, que competem entre si a todo instante, não como um ato de liberdade,
mas como o efeito de uma inscrição, seja genérica, social, discursiva. São efeitos de
exigências enunciativas, e não de personalidade ou de caracterologia, como demonstra
Granger (1974, apud POSSENTI, 2001, p. 17).
É plausível associar a proposta de Possenti ao que Bakhtin define como peculia-
ridades básicas do enunciado em que se destacam a organização deste como gênero

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discursivo e, nesta perspectiva, suas características constitutivas: o tema, a construção


composicional e o estilo.
Os estudos que realizamos e o acompanhamento do trabalho de professores têm-
-nos ensinado muito sobre os processos de aprendizagem da escrita pelas crianças.
Dentro deste universo, temos investigado prioritariamente aspectos da apropriação
do sistema alfabético na dimensão da produção do discurso escrito, entendendo que
as questões que se colocam na escrita de palavras, de frases e de textos são diferentes.
Temos como pressuposto o fato de que estar na escola envolve conhecer diferentes di-
mensões da produção do discurso verbal para que os sujeitos aprendizes se confirmem
socialmente como pessoas capazes de refletir e criar e, não, de repetir e reproduzir, ain-
da que isso possa acontecer, especialmente em algumas situações sociais e com alguns
gêneros. Os métodos de ensino, neste sentido, fazem grande diferença na constituição
de subjetividades, já que neles se estabelecem relações de poder – quem pode e quem
sabe escrever na escola? Quem ocupa o lugar de enunciador? O que as atividades pro-
postas às crianças, jovens e adultos fortalecem? Quem propõe, como propõe, por que
e para que propõe?
Conceber o discurso escrito legitimado socialmente como ponto de partida e de
chegada para o processo de alfabetização nos direciona para um conjunto de conhe-
cimentos. A construção do sentido dos textos exige atenção à evolução do tema, à
manutenção e mudança de referências, à coesão local e contextual, às intenções discur-
sivas, ao leitor, além de atenção à organização espacial do texto no papel, a compreen-
são dos conceitos de palavra, sílaba e letra e suas especificidades, à seleção de recursos
expressivos e construções sintáticas, à separação entre palavras e à escrita propriamente
das palavras, entre outros conhecimentos. Fica muito difícil neste caminho escolhido
dissociar atividades orais, atividades de leitura, atividades de produção escrita e ativi-
dades de análise linguística, dimensões do trabalho com a linguagem, definidas com
base em Geraldi (1991).
No âmbito do conjunto de conhecimentos apresentado, é muito simplificador
considerar as letras, por exemplo, que são a matéria prima da escrita, como unidades
para dar início ao trabalho alfabetizador. Ou a relação entre fonemas e grafemas, já que
esta relação está na base do sistema alfabético. Em busca da construção do sentido dos
textos, as crianças se valem de muitos e variados conhecimentos que possuem para ler
e para escrever, surpreendendo-nos às vezes com suas explicações e mesmo com suas
elaborações escritas.
O texto é a unidade de sentido básica do trabalho pedagógico, por sua concretu-
de social e histórica, sendo as práticas orais entre crianças e professores geradoras das
primeiras fornadas de textos a povoar a sala de aula. Neste importante movimento
discursivo oral, textos escritos de variados gêneros vão sendo significados, por meio de
conversas em que se discutem compreensões, se comparam ideias e posições, se esta-
belecem relações com outros textos e situações. E neste movimento, como em todos

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 169


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os outros, se fazem escolhas sobre o que dizer e como dizer. A escola, de um modo
geral, é um dos primeiros espaços públicos frequentado pelas crianças, o que a leva a
observar e vivenciar diferenças de valores, comportamentos e de uso da linguagem, no
espaço público e privado.
Em dado momento as crianças começam a manifestar o desejo e a necessidade de
escrever (VYGOTSKY, 1999), e precisamos ser sensíveis ao seu esforço para significar
em língua escrita, desde a mais tenra idade. Os entendimentos das crianças, conforme
já mencionado, se originam em diversos tipos de conhecimentos, não necessária e ex-
clusivamente da linguagem verbal. Há crianças que, para compor a sua escrita, levam
desenhos, numerais e símbolos de outras naturezas, valendo-se do valor sonoro destes
símbolos, e também do valor do significado, um valor ideográfico. Outras crianças,
junto a suas sequências de letras (aparentemente aleatórias), lidas por elas com sentido
de um texto, mas sem valor convencional, inserem nos textos a cópia de palavras ou
frases, ou as escrevem de memória, procurando dar legitimidade ao que produzem
(PACHECO, 1997). Estas escritas representam suas tentativas complexas de interação
com o mundo.

DISCUSSÃO FINAL
Na escola, em classes de alfabetização, há conhecimentos a aprender, do ponto
de vista da criança, do aluno, e há conhecimentos a ensinar, do ponto de vista da pro-
fessora. É pela palavra, no tenso processo social de interação com a palavra do outro,
que continua acontecendo a formação da consciência, sendo a palavra “o meio no qual
se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram
tempo de adquirir uma nova realidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de
engendrar uma forma ideológica nova e acabada” (BAKHTIN, 1988 [1934-1935]).
Os processos que as crianças vivem para compreender como se organiza e se realiza a
linguagem escrita, tanto do ponto de vista formal quanto de sua dimensão político-
-social, envolvem uma grande complexidade de conhecimentos, se considerarmos a
fase inicial de sua aquisição na perspectiva da produção do discurso escrito por escrito.
Na dinâmica da sala de aula, as crianças, se sentindo confirmadas como pessoas,
afirmam-se, dizendo as suas palavras, falando sobre o que sabem, evidenciam os gêneros
do discurso que conhecem, se abrindo para novas apropriações. Com boas intervenções
de professores, e também de colegas de classe, vão ampliando conhecimentos e ao mes-
mo tempo aprendendo o funcionamento da escrita, discriminando e manipulando a
relação entre sons e letras, entre outras discriminações (GOULART et al, 2005).
Seguindo a perspectiva indicada por Ponzio (2012, p. 133-134) para a análise dos
discursos e dos textos, é importante nas experiências pedagógicas de sala de aula, ou
relativas a ela, explorar a análise dos discursos, mas também a dialética e a dialógica,
para colher a dialogicidade específica de cada discurso. Neste movimento, conhece-

170 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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mos melhor nossos alunos e abrimos espaços para que eles também se conheçam e am-
pliem seus conhecimentos. Evidenciamos e reforçamos o caráter dialógico interno dos
nossos próprios pontos de vista, mostrando a ambiguidade nos significados em que
repousamos nossas certezas, fazendo resultar a dialogicidade interna de nossas próprias
palavras. A afirmação de Ponzio é fundamental: “O diálogo não é uma iniciativa de su-
jeitos separados, mas é a própria condição do sujeito, porque é estrutural ao discurso,
fato que nenhuma ideologia homologante poderá anular.” (PONZIO, 2012, p. 134).
O sistema alfabético é aprendido em contexto enunciativo, não se constituindo
este contexto numa moldura para o ensino. O trabalho educativo deve ser contextua-
lizado no horizonte de diferentes linguagens/conhecimentos sociais, logo também no
horizonte da cultura escrita, com seus produtos e práticas. Retirar a cultura escrita do
cotidiano de crianças pequenas é sonegar informações que são fundamentais para a
compreensão da vida e das possibilidades de vida na sociedade letrada, e também para
a compreensão do valor social do sistema alfabético de escrita: o que podemos fazer
com ele e o que ele pode fazer conosco. A fixação da escola com aspectos gráficos e or-
tográficos funciona produzindo submissão: é o lugar da lei. Por que este lugar ganhou
tanta proeminência nas atividades escolares?
O chamado aspecto fônico da escrita não pode ser ensinado de forma isolada de
outras dimensões do processo de alfabetização. O foco do trabalho pedagógico está no
acompanhamento dos processos de aprendizagem e de suas produções, compreenden-
do o que as crianças sabem. A “consciência” linguística não é uma pré-condição para
a leitura e a escrita. Esta “consciência”, em suas diferentes modalidades, se desenvolve
por meio de atividades significativas, com textos, destaques e intervenções da professo-
ra e dos próprios alunos. Aqui a perspectiva da criança é assumida nas práticas pedagó-
gicas, e não a do adulto. Essa mudança de perspectiva tem expandido a compreensão
de como o princípio alfabético e outros conhecimentos relativos à escrita vêm a ser
conhecidos e usados pelas crianças, atentando para o que as crianças podem e sabem
fazer, ao contrário do que elas não podem e não sabem fazer. Atentar para quem elas são,
e não para quem elas poderiam ou deveriam ser.
Devemos assumir o nosso papel de ensinar a escrita, de propor questões, revisões,
reescritas, de discutir limites e possibilidades para as produções infantis. Não devemos
temer as escritas estranhas que muitas vezes as crianças produzem; ou interpretações e
leituras bizarras que, às vezes, propõem. É importante olharmos para as crianças como
leitoras e produtoras de textos. Olhar para elas na perspectiva do que já são e do poten-
cial que têm. Leitoras e produtoras de textos não só em linguagem verbal, oral e escrita,
mas em outras formas de expressão, como a pintura, visitando as obras de grandes pinto-
res; a escultura; o cinema; o teatro; a música; a dança; entre outras (GOULART, 2005).
Há uma importância enorme em afirmar os cidadãos que, desde muito pequenas,
as crianças são, os conhecimentos que têm. Fazê-las sentir que podem, que devem ou-
sar, correr riscos, para que se confirmem como pessoas capazes e se disponham a trocar

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 171


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de lugar conosco, falando, expondo seus saberes, discutindo. Nesse movimento em


direção ao outro, afirmamo-nos e confirmamo-nos como educadores comprometidos
com o sentido ético, humano, de nossa profissão.
Uma escola preocupada com o pragmatismo de resultados imediatos nega os
processos de aprendizagem dos sujeitos, suas histórias e experiências. Deixa de per-
ceber a inteligência das crianças e seus pensamentos complexos. No processo de
viver e aprender, as crianças articulam a imaginação, a realidade, a casa, a escola, a
rua, o medo, a coragem, com os conhecimentos, transitando livremente entre sabe-
res, sentimentos e sensações.
Não se podem mais conceber trabalhos na perspectiva do ensino da língua por-
tuguesa em que a linguagem seja analisada sem o sujeito que a produz e afastada das
condições em que é produzida, desvinculada da história. Os aspectos internos às estru-
turas e sistemas linguísticos devem ser vistos em relação dinâmica e complexa com os
aspectos que os caracterizam externamente. Os processos de aprendizagem e de ensino
necessitam de amplos espaços dialógicos e dialogizados para que argumentos de vários
tipos possam florescer, como: o indutivo, do tipo simbólico, que se baseia em hábitos,
não havendo relação de constrição entre premissa e conclusão, e caracterizando-se
por repetição e identidade; o dedutivo, do tipo indicial, em que a conclusão deriva
das premissas; e o abdutivo, do tipo icônico, altamente dialógico, implicando amplo
espaço para invenção e grande margem de erro. Os encaminhamentos que organizo
na parte final deste parágrafo são muito iniciais e tomam como base Ponzio (2012,
especialmente, p. 139-150). Apresento-os aqui por senti-los muito promissores para
dar continuidade aos estudos.
Pelo caráter de formação da escola, e considerando a importância do desafio à
criação e à aprendizagem crítica, as práticas pedagógicas alfabetizadoras devem abrir
janelas para argumentos e pensamentos de todos os tipos, especialmente para os ab-
dutivos. Ligados à proposta de atividades em que os alunos possam viver experiências
de conhecer a escrita como uma nova linguagem, refletir sobre ela e reinventá-la,
podemos conceber as salas de aula como espaços que se caracterizem por procedimen-
tos heurísticos, em que professores e alunos jamais parem de buscar novas formas de
conhecimento e ação. A aprendizagem da leitura e da escrita a partir e com base em
textos se fortalece com a possibilidade de os alunos mergulharem nos sentidos dos
textos que leem e inventarem novos sentidos para os textos que escrevem, por meio de
atividades heurísticas, como movimentos intelectuais para lidar com as demandas que
as situações objetivas de aprendizagem implicam. A gramática da língua desse modo
pode ser entendida como um sistema aberto a uma multiplicidade de escolhas dos
sujeitos, no plural.

172 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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ENTRE FAZER E DIZER: ATIVIDADE DOCENTE E


PRÁTICAS PEDAGÓGICAS ESCOLARES, NOS ATOS DE
ESCRITA NA FORMAÇÃO

DOING OR SAYING: TEACHERS`ACTIVITY AND PEDAGOGICAL


PRACTICES AT SCHOOL, BROUGHT TO THE ACTS OF WRITING
IN THE CONTEXT OF TEACHERS’TRAINNING
Ludmila homé de Andrade (UFRJ)

RESUMO: A discussão metodológica para questões do campo da educação busca


aparatos teórico-metodológicos com categorias de teorias linguísticas, numa perspec-
tiva enunciativa. Para além da dimensão macro, articulada a dimensões meso e micro, a
análise do discurso aqui proposta quer ressaltar a dimensão meta, que permite pensar
a própria escrita de pesquisa, em relações com as políticas públicas e com as ações de
formação docente. Inscrevemo-nos nos estudos de letramento, situando especifica-
mente como nosso objeto o letramento profissional do professor alfabetizador, que se
relaciona ao letramento acadêmico, no discurso de formadores e docentes (STREET,
2014; LILLIS, 2009). Buscamos interrelacionar identidade docente e o fazer docente,
propondo as bases para uma análise do discurso docente, de textos produzidos no âm-
bito da formação profissional. O objetivo deste artigo resume-se à problematização do
fazer de pesquisadores que buscam analisar discursos docentes como palavras próprias,
autoralmente construídos, na relação interdiscursiva com as produções acadêmicas
que chegam pelas ações formadoras. Os fazeres docentes são descritos a partir de três
dimensões: como atividade, num plano prático, de um agir automatizado, constituin-
do os gestos escolares; como habitus profissional, ou prática social inscrita nos modos
de fazer institucionais, ou como ato, de acordo com a definição filosófica de Bakhtin
(2010[1920]). Apontamos a concepção de Professor Autor como a mais pertinente,
destacando-se de diversas outras presentes no campo, tais como: Professor-Pesquisa-
dor, Professor-Reflexivo, Professor-Narrador (que prioriza autobiografias). Os signi-
ficados produzidos por cada uma destas três últimas, situam em negativo o professor
como objeto de discurso, efeito da saturação de discursos que é imposta. Exige-se o
cumprimento de funções, sem exigir compreensão, por parte de quem “age”, causando
silêncio de discursos próprios. Por último, descrevemos alguns dos gêneros discursivos
orais e escritos, produzidos no contexto de formação continuada desta pesquisa e apre-
sentamos propostas de continuações a longo prazo para a pesquisa descrita.
Palavras-chave: Letramento Profissional Docente; Formação continuada de professo-
res; Gêneros discursivos.
ABSTRACT: The methodological discussion for questions from the field of educa-
tion seeks theoretical and methodological apparatuses with categories of linguistic
theories, in an enunciative perspective. Beyond the macro dimension, articulated to

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 177


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meso and micro dimensions, the discourse analysis proposed here wants to emphasize
the meta dimension, which allows us to think the own writing of research, in relations
with public policies and with the actions of teacher training. We subscribed our-
selves in studies of literacy, situating specifically as our object the teacher’s professional
literacy, which relates to academic literacy, in the discourse of trainers and teachers
(STREET, 2014; LILLIS, 2009). We seek to interrelate teacher identity and teacher
activity, proposing the basis for an analysis of the teacher’s discourse, of texts produced
in the scope of professional training. The aim of this paper boils down to the ques-
tioning of the researchers’ making seek to analyze teacher’s discourses as own words,
authorially built, in the interdiscursive relationship with academic productions that
by forming actions. The teachers makings are described from three dimensions: as
an activity, on a practical plan, of an automated acting, constituting the school ges-
tures; as a professional habitus, or social practice which is inscribed in the institutional
ways of doing, or as an act, according to the philosophical definition from Bakhtin
(2010[1920]). We point out the conception of Teacher Author as the most pertinent,
highlighting itself from several others present in the field, such as: Teacher-Researcher,
Teacher-Reflective Teacher-Storyteller (which prioritizes autobiographies). The mean-
ings produced by each one of these latter three, locate in negative the teacher as object
of discourse, effect from the discourses’ saturation that is imposed. It requires the ful-
fillment of duties, without demanding comprehension, from those who “act”, causing
silence of own speeches. At last, we describe some of the oral and written discourse
genres, produced in the context of continuing education of this research and we dis-
play proposals of long-term sequels for the described research.
Keywords: Teachers` Professional Literacy, Continuing education for teachers; Dis-
cursive genres.

PRIMEIRAS PALAVRAS: ENTRE OS CAMPOS DA


LINGUAGEM E DA EDUCAÇÃO
Os estudos sobre o discurso têm me mobilizado como perspectiva teórico-meto-
dológica mais fértil, mesmo sendo uma pesquisadora do campo da Educação, distinto
dos estudos linguísticos. Este tem sido o prisma escolhido para enfrentar os desafios
de compreensão das questões educacionais e de proposição de possibilidades de ação,
inovação e transformação no campo1. Inscrevo-me no campo de pesquisas da Educa-
ção, no qual abraço o tema específico da formação de alfabetizadores, que engloba a
formação de professores e a alfabetização na Educação Básica brasileira. Estes temas

1
A discussão trazida neste texto é impulsionada justamente a partir de uma “dupla nacionalidade” epistemológica, que
assemelha-se por vezes a uma falsa cidadania, quando me identiico como migrante, entre campos de pesquisa que guardam
suas formas próprias de funcionar, de valorar, de fazer e de dizer, tão distintas, a educação e a linguística.

178 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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representam-se distintamente em dois GTs da ANPEd2, com histórias e configurações


bem distintas, não interrelacionadas3.
No presente trabalho, busco dar significado a questões presentes do campo da
educação, recorrendo a construtos das teorias linguísticas, especificamente daquelas
que assumem a língua como discurso, numa perspectiva enunciativa. São estas que
trazem abrangência e profundidade e permitem uma visão sobre nosso objeto de estu-
do, trazendo-lhe uma relevância que nenhuma abordagem traria, estando situada em
domínios da educação, estritamente. De fato, vimos considerando o objeto formação
de professores a partir de uma concepção discursiva4, prisma para refletir sobre as ques-
tões inscritas no campo da educação, por diversas razões. Dentre elas, ressaltamos a
possibilidade de articular dados situados em diferentes níveis contextuais, em processos
já designados como de recontextualização: desde as interações mais cotidianas, que
consideramos o nível micro, alçando-se às interações e regulações institucionais, consi-
deradas meso, como a escolar ou a de formação profissional docente, chegando ainda
até um ponto de observação mais amplo, que é o das políticas educacionais, nas quais
têm tido grande relevo as políticas de formação, um nivel macro de ações e observação5.
A abrangência de diferentes contextos ganha sentido quando, à ideia de recon-
textualização que articula os diferentes níveis de análise (macro, meso e micro), acres-
centa-se o conceito de interdiscursividade, para assumir uma posição ético-política
como pesquisadora em educação, que exige de sua conduta que possa resultar em
contribuições às transformações tão recorrentemente constatadas como necessárias.
Pela coerência que este prisma teórico possa produzir entre os diferentes contextos (em
níveis macro, meso e micro), posso considerar a própria escrita de pesquisa como ato
responsável, na perspectiva dialógica bakhtiniana (BAKHTIN, 2010[1920]), o que
implica considerar a retomada de vozes alheias, de textos anteriores à enunciação e de
discursos, de formações discursivas distintas.
Para além das dimensões macro, meso e micro, anteriormente mencionadas, há
ainda a dimensão meta, que permite pensar a própria escrita de pesquisa. O objetivo
mais amplo de pesquisa em ciências humanas deveria ser a ação de enunciar novas
formulações para objetos explorados e, por isso, a formulação de novas compreensões
exige que sejam retomadas as palavras de pesquisa já ditas, sob modalizações que se
anunciem como propostas de compreensão que não se produziram antes. Apoiamo-
2
Na Associação Nacional de Pesquisa em Educação, encontram-se o GT 10 Alfabetização, Leitura e Escrita, e o GT 8,
Formação de Professores
3
Há muitos anos participante da Anped, já marquei minha presença nos dois GTs, de alfabetização e de formação, com
publicações e outras formas de colaboração. Na IES onde atuo, dou aulas de Didática da Língua Portuguesa no Curso de
Pedagogia, mas sou concursada professora titular da vaga criada intitulada Formação de Professores. O tom memorialístico
inicial deste texto assume um estilo típico de pesquisas produzidas pela área da educação, talvez não tão familiar a outras
áreas de pesquisa.
4
Alguns autores são exponenciais, deinidores da concepção de discurso com a qual vimos trabalhando: Dominique Main-
gueneau, Mikhail Bakhtin, Sirio Possenti, Manoel Corrêa, Marilia Amorim, Adail Sobral, João Wanderlei Geraldi, dentre
outros. Eles serão citados ao longo deste artigo.
5
Esta articulação e coerência tem sua fonte inspiradora em Stephen Ball, em cuja obra encontramos por sua vez a inspiração
em Michel Foucault (BALL, 2012 , 2013).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 179


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-nos nas ideias de Jaqueline Authier-Revuz e retomadas em certos momentos da obra


de João Wanderley Geraldi, sobre a função meta expressa nos enunciados epilinguísti-
cos (GERALDI, 1991; AUTHIER-REVUZ, 2011). Esta dimensão meta exige que se
olhe para as formas assumidas pela escrita de pesquisa, que se representam por outras
formas de entonação na pauta estilística dos gêneros discursivos relacionados a esferas
de letramento profissional. A crença é que observar contornos destas formas discursi-
vas permitirá que se articule às relações que estas possam talvez vir a estabelecer com
as políticas públicas implementadas, o que seria a ideal culminância de uma pesquisa
em ciências humanas. Nossos modos de escrever pesquisa interferem, a longo prazo,
em modos de se implementar políticas.
O que deveria nos mover a escrever textos, como pesquisadores? Inspira-nos a
citação de Bakhtin, assumindo-nos um pouco como poetas-pesquisadores, que escre-
vemos sobre os homens comuns:
A vida e a arte não devem só arcar com a responsabilidade mútua mas também com a
culpa mútua. O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial
da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de
severidade das suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte. (BAKHTIN,
2003[1952-1953], p. XXXIV - Arte e responsabilidade -).

Pode-se deslocar para o campo da atividade científica em ciências humanas e


se conceber que o pesquisador deve compreender que a sua pesquisa tem culpa pela
prosa trivial da vida (dos docentes, no nosso caso), se sua escrita finalmente não tem
efeitos de alteração sobre seu objeto. Mas é bom que o homem da vida, o professor,
por exemplo, saiba que a sua falta de exigência e a falta de severidade das suas questões
vitais respondem pela esterilidade da pesquisa.
Apostamos que o ato de escrever textos de pesquisa sobre formação docente en-
cerra possibilidades de transformação do objeto que descrevemos, analisamos, critica-
mos, isto é, da própria formação de professores. Desta forma aparentemente indireta,
ao tratarmos de formação de professores em nossas pesquisas, produzimos (discursiva-
mente) a formação de professores, pois nos inscrevemos em uma formação discursiva
que será dele constitutiva.

AINDA ABRINDO O ASSUNTO: COLOCANDO OUTRAS


LENHAS NA FOGUEIRA
A busca por melhores paradigmas em pesquisa depende de uma postura ético-
-política, que permita pensar a relação entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados e
almejar provocar efeitos sobre a realidade analisada, a partir dos resultados de pesquisa
que se possam vir a produzir. Depende antes de tudo da escolha por uma atitude de
pesquisador, dentre certas posições éticas no campo, entre pesquisadores. Não pre-

180 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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tendo me deter mais do que algumas linhas e observar a título de “parênteses”, para
não incorrer em erro semelhante ao que queremos apontar, mas apenas pontuar epi-
sódios recentes, presentes vivamente na vida acadêmica, nos quais ao preocuparem-se
pesquisadores com seus próprios posicionamentos, assumem uma dimensão meta da
pesquisa, acabam por provocar o efeito contrário à transformação do campo, pois ge-
ram tópicos temáticos que impedem a atitude de renovação. Para afirmar a sua escolha
teórica, tais trabalhos dispendem munição uns contra os outros, numa atitude que
busca rebaixar a que considera discordante, apontando outras modalidades de se fazer
pesquisa instauradas no campo como concorrentes.
Nos processos de produção de conhecimento da universidade brasileira, depa-
ramo-nos constantemente com atitudes de escrita de pesquisa que representam os
autores em seu esforço por se situar no campo, distanciando-se de posições de dizer
que poderiam estar supostas como sendo suas próximas. Seu gesto de enunciadores
aponta para seu dizer antes de enunciar. Os autores ocupam-se com colocações que
funcionam como uma construção lateral, explicitando uma direção de sentido (uma
metaenunciação) que querem marcar para seus trabalhos principais. Constróem assim
sua imagem de autor. Na próxima seção, destacamos dois exemplos que nos chamam
atenção, um mais ligado à área dos estudos linguísticos e outro ligado à educação.

EMBATES SEM DEBATES DOS PESQUISADORES ENTRE SI


Tornou-se rapidamente conhecido o aparecimento de um livro com título pro-
vocador, Bakhtin desmascarado, história de um mentiroso, de uma fraude e de um delírio
coletivo, traduzido rapidamente no Brasil6. É espantoso que o renomado autor do
campo da linguística tenha almejado um investimento desta grandeza como pesquisa-
dor, pela empreitada e dedicação.... Felizmente, muitas reações já foram produzidas,
expressando o desconforto com uma atitude tão adversa em relação a um teórico que
tem sido subsídio importante para um conjunto importante de autores do campo da
linguística e da educação. O tempo e trabalho de pesquisa dispensado para se produzir
tal ataque ostensivo a um autor que já tem seu nome conquistado na área de estudos
das ciências humanas poderia ser focalizado sobre outros objetivos. A motivação para
este ato fica obscura para muitos outros pesquisadores.
No momento em que os novos estudos de letramento (New Literacy Studies,
N.L.S.) passam a ser conhecidos no Brasil, estes foram diretamente conectados às
questões de alfabetização, que se situam mais especialmente no campo da educação.
Nomes já consagrados interessados em se pensar processos de ensino da língua escrita
e especialmente da alfabetização foram responsáveis por este gesto, de indicação da
abertura de possibilidades teóricas que aqueles estudos poderiam trazer. Os N.L.S.
fazem sua história brasileira com esta passagem pelo campo da educação. Àquele mo-

6
BRONCKART, J.-P. ; BOTA, C., 2012, 2013.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 181


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mento, foram supostamente considerados como uma nova plataforma, um horizonte


a mais para se ampliar a visão sobre alfabetização, como havia acontecido em época
anterior, com a apropriação do construtivismo, por exemplo, revolucionário no cam-
po de estudos de alfabetização. Alguns grupos de pesquisa de muita relevância na
pesquisa do campo, entretanto, passaram a marcar uma interdição da apropriação
de um domínio de estudos sobre a língua escrita na cultura, o campo do letramento.
Embora se toquem por vezes em questões muito próximas (e o argumento é que seria
exatamente por esta razão, redundâncias científicas), não se permitem enveredar por
leituras e racionalidades teóricas demarcadas como inadequadas, mesmo que estas se-
jam reconhecidas por diversos autores como relevantes e pertinentes para se ampliar a
perspectiva sobre a alfabetização.
A lenha de combustão deveria ser de outra natureza. Que energia move a pesquisa?
O que produzimos para transformar o campo em que estamos? Talvez valesse marcar
nossos textos de pesquisa com algumas reflexões autodefinidoras, exigir sermos críticos
sobre nossos modos de escrita. Que textos escrevemos, para responder a que demandas,
para densificar as lutas de que formações discursivas? Que relações tangenciais criamos
ao dispender nossa munição de pesquisa com que setores da vida em sociedade?

COMO OS PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO E


LINGUISTAS TRATAM OS PROFESSORES?
No caso desta pesquisa, cujo objeto é o professor da educação básica, impõe-se o
debate prévio com paradigmas experimentados, para observar os modos historicamen-
te postos de representar esse profissional em modos de se fazer pesquisa. Porém, tanto
em textos de pesquisa produzidos no campo da educação como em outros campos,
nos quais se inclui o da linguística, temos visto resvalarem desavisadamente em dis-
cursos calcados num senso comum, posicionamentos sobre: o professor, as políticas de
educação, a necessária influência da universidade sobre a escola básica. Nestes textos,
por alguns momentos, escapa-se ao registro teórico conceitual metodológico rigoroso
inerente à escrita do texto de pesquisa. Como somos todos professores, da Educação
Infantil ao Ensino Superior, parece haver uma comunhão pressuposta, a partir de uma
simetria imaginada, como se estivéssemos dirigindo-nos a nossos pares e se comparti-
lhassem posições justificadas por alguma cumplicidade, que permite produzir um dis-
curso em identificação com a figura docente. Demagogicamente, a (suposta) simetria
joga um manto de contiguidade sobre o que se enuncia no texto de pesquisa e o que
é objeto de discurso do texto em questão. Entretanto esta falsa contiguidade apenas
revela a ambiguidade inerente a qualquer discurso, as assimetrias (ou dissimetrias,
segundo Sobral, 2014).

182 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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FAZER PESQUISA SOBRE O PROFESSOR:


DIZER SOBRE FAZER
Nossas ações de pesquisa se ancoram nos estudos de letramento e, mais especifi-
camente, temos estudado o letramento profissional do professor alfabetizador. Como as
ações da Universidade têm sido frequentemente voltadas responsavelmente para a for-
mação de professores da Educação Básica, este letramento profissional docente se rela-
ciona fortemente ao letramento acadêmico, inevitavelmente presente no discurso dos
formadores universitários. As relações entre estas duas esferas ou campos universitário
e escolar têm sido fonte de muitas pesquisas com as quais entramos em debate. Nosso
enfoque sobre as formas de existir de um letramento sempre em situação de fragilida-
de, como é o caso do letramento docente, atem-se inicialmente à identidade docente.
É com esta que encontramos, nas interações da formação de professores, das quais
participamos como formadores e/ou observamos como pesquisadores. Consideramos
esta identidade como nosso objeto de pesquisa, procuramos nos ater menos a descre-
ver seu núcleo duro, suas fixações, e, mais principalmente suas transformações, que
se possam operar a partir de deslocamentos subjetivos que os participantes possam
reconhecer7. Em que uma primeira constituição identitária se transforma, como resul-
tado dos processos formadores? Nós a constituímos, ao tratar do professor, durante o
tempo-espaço da pesquisa-formação8.
Neste ponto, torna-se interessante considerar a riqueza semântica do verbo tra-
tar. A dupla possibilidade semântica parece traduzir a importância do que estamos
querendo pontuar sobre nossa posição como autores de pesquisa, carregar valores que
constituem os indivíduos atuantes no campo estudado, alterando-os identitariamente.
Tratamos do professor como nosso objeto (embora tratando-o como sujeito de discur-
so), mas temos a consciência de que nossas palavras de pesquisa serão retomadas em
discursos indiretos e acabarão por constituí-lo, identitariamente, um tratamento te-
rapêutico proposto. Colocamo-nos duplamente no lugar de especialistas, escolhendo
os pronomes de tratamento, para nos dirigir aos docentes. O modo como lhes vamos
constitundo, como personagens de nossos textos, equaciona fórmulas, de efeitos pre-
tendidos, que lhes tornem a vida profissional mais viva. O modo como lhes caracteri-
zamos dá-nos um perfil de autores.
Nossa pesquisa interfere no trabalho docente, na sua prática escolar, que se traduz
no fazer pedagógico, na didática planejada e realizada por cada professor. Por isto, o
cuidado com a identidade docente em jogo nas representações produzidas por nosso
discurso de pesquisa serve à nossa decisão metodológica de buscar a melhor formula-

7
“Como um nó, amarrado pelas tensões de homólogos nós, que lhe sustentam, a identidade é um núcleo duro de signii-
cação, refere o indivíduo a uma representação social com contornos razoavelmente delimitados, compartilhados, que lhe dão
esteio para agir (DUBAR, 2009; DUBET, 2008)” (ANDRADE, 2011).
8
Este artigo retrata resultados parciais da pesquisa formação As Impossíveis Alfabetizações de alunos de classe popular pela
visão do professor da escola pública, inanciada pela CAPES OBEDUC, 2011-1014.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 183


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ção para abordar o fazer docente. Torna-se imprescindível uma ideia clara a respeito da
identidade do professor que produzirá discursos sobre o seu próprio fazer pedagógico.
O discurso de pesquisa, que contribui para a formação acontecer, subsidiando-a
com reflexões produzidas, depara-se antes, em seu próprio fazer, com a difícil questão
metodológica (e discussões se impõem) sobre os meios mais propícios para tocar a rea-
lidade profissional docente, para dar conta de seus meandros e nuances e compreendê-
-la a ponto de até propor sua transformação. O objeto de discurso de toda formação
de professores é o fazer docente. A atividade docente equivale aos gestos profissionais,
traz à cena a máxima realidade da profissão, sua vida, sua experiência, aquilo de que
vale a pena se tratar e por isso também de que é tão difícil falar.
Os fazeres docentes podem ser vistos como atividade, se tomamos apenas seu pla-
no de desenvolvimento mais pragmático, em que se age por automatização, de certos
gestos escolares. São gestos profissionais típicos em eventos pedagógicos. Os professo-
res então atuam como atores, desempenham seu papel, enunciam seu “texto”, do qual
estão cientes, em seu fazer profissional.
Pode-se conceber passar do plano das interações entre atores para o das práticas
sociais dos professores, se inscrevermos tais atividades em um plano menos individual,
tomando os gestos, o seu desempenho, como inscritos em formas institucionais de lidar
com as situações. A (mesma) atividade docente ganha densidade, se a concebemos como
habitus profissional, como prática social, inscrita nos modos de fazer institucionais. Ain-
da se pode ampliar o zoom, enquadrando estes dois planos de compreensão para a ação
docente como condição para que as produções discursivas dos professores sejam atos.
É nesta terceira dimensão que buscamos ancorar os discursos docentes. Ato im-
plica responsabilidade, bem como um engajamento no que se diz, que vá além do
automatismo do primeiro nível descrito acima, das atividades, e das obrigações legi-
timadas que se impõem sem autoria, como ocorre também no segundo nível, o das
práticas. Em nossa pesquisa, almejamos que a formação docente implementada pela
Universidade (por nós pesquisadores) fosse um espaço de produção discursiva de um
sujeito professor, produtor de conhecimentos. A formação que implementamos trata
de temas pertinentes ao fazer pedagógico escolar, ao trabalho docente, de modo a que
o mesmo professor veja se abrirem diante de si possibilidades de sua visão sobre seu
trabalho, que lhe permitam comunicar a seus pares seus modos de ver transformados,
ou seja, apropriados em suas palavras (sua voz), aprofundados por estudos feitos, argu-
mentados por uma compreensão que lhe permita uma posição metaenunciativa. Não
se espera que ele diga o que faz, apenas, descritivamente, relatos de seu fazer, mas os
porquês de seu fazer, para que possa defender o teor deste fazer. Somente neste prisma
é que nós, como pesquisadores formadores, desejamos como produto de nossa forma-
ção implementada, formar professores autores.

184 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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NEM PESQUISADOR, NEM REFLEXIVO OU


NARRADOR: O PROFESSOR AUTOR
Investimos na noção de professor-autor, com base em parâmetros da teoria do
discurso de uma linguística da enunciação. No campo da formação de professores,
este termo se distingue de outros, que vêm se anunciando e se consolidando, sucessiva-
mente, como lemas de pesquisa: Professor-Pesquisador, Professor-Reflexivo, Professor-
-Narrador (priorizando autobiografias). Significamos cada um deles, situando-os a
partir da teoria discursiva que nos embasa.
Tem sido exatamente os agentes que carregam tais identidades os que se esmeram
em afirmar que os professores deveriam ser reflexivos, intelectuais ou pesquisadores. O
professor pesquisador deve se alçar a uma posição distinta daquela que o termo “pesqui-
sador”, quando empregado pela universidade. “(...) se desprende que a investigar se
aprende investigando, que la educación en investigación debe atravesar todo el diseño
curricular de la formación docente y que la formación es en investigación no para ser
investigadores” (CARDELLI, 2009, p. 11)
Uma nova pesquisa docente deve ainda ser inventada. Estamos buscando encon-
trar outros Outros, uma alteridade docente para nosso diálogo de pesquisadores, e não
insistir em torná-los nossos pares, imaginariamente, numa suposta relação de igual
para igual, sem assimetrias que impõem uma hierarquização, mas assumindo a dis-
tância entre os interlocutores, suas dissimetrias, como diferenças interessantes, que
nos movem em direção à leitura do outro. Além de compreendê-los como interessan-
tes Outros, leitores para quem apostamos poder criar novos textos, seria importante
projetar, com este discurso, uma imagem de professor na qual os professores leitores
possam buscar se identificar, na qual se projetariam também. De que vale lançar-se a
outras posições, a outras esferas, se não for para produzir comunicação de sentidos que
possam ser proveitosas para a esfera original, profissional docente?
Especificamente quanto à noção de professor reflexivo, há muitas críticas que se
podem traçar, as quais não caberia nos estender aqui. Dentre estas, aderimos àquelas que
refutam a ideia de reflexividade docente como um reflexo, que buscaria simetrias, na for-
mação, ou espelhamentos, equivalentes. Pela noção de homologias de processos, que temos
explorado, incluímos a ideia de Bakhtin de reflexão e de refração para compreender a
dinâmica constitutiva da linguagem. Para este autor, há reflexos, que são a retomada da
palavra alheia, tal e qual, mas estes serão sempre refrações, pois ao se espelhar, parear duas
imagens entre si, almeja-se a produção do novo, de alguma novidade no seu dizer, que
rompe com o modelo original, e não a sua reprodução, que almeje a regular continuidade.
Refletimos todos dentre os paradigmas mencionados, professor pesquisador, pro-
fessor reflexivo, professor narrador e professor autor. Interessa-nos o ato docente e
nosso propósito maior com a pesquisa formação é a escrita de autores professores em
textos “autenticamente docentes”.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 185


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(...) E desejo apenas que o resultado destas pesquisas e das formações que decorram
coerentemente deste grande texto de pesquisa reletido sobre o campo da formação
seja o de construir uma leitura universitária de escritas docentes. Que eu cite
professores sendo citados por professores, que os diálogos entre os pares sejam meu
objeto de leitura. “Apud Professores et allii”, quero assim citá-los, o seu coletivo de
docentes, não apenas como meus sujeitos de pesquisa, mas como autores de suas
escritas em um discurso proissional. Meu desejo é lê-los e faço disso hoje, em minha
atual pesquisa, um objetivo proclamado. Ler um discurso não escrito, sonhar com ele.
Querer um discurso deste outro, um discurso que só ele poderá inventar, desde que
autorizado por leitores interessados. Quero textos docentes, proissionais, que tratem
de uma proissionalidade que não é a minha e, por isso, são organizações discursivas
que não sou capaz de realizar, que ainda estão por se produzir, dependendo apenas
da continuação de minha ação de formadora, pesquisadora, orientadora, leitora e
escritora de textos de pesquisa. (ANDRADE, 2011, s/p.)

COMPREENDER OS FAZERES DOCENTES


PELA VIA DOS DIZERES
Temos pontuado a falta de um espaço para o professor da educação básica se ex-
pressar por escrito, de modo que a voz docente nunca é verdadeiramente enunciada.
Em alguns espaços de formação, concede-se ao professor e se pode encontrar a voz
de professores que se formam. Porém, esta não é necessariamente escutada, isto é,
não se busca compreendê-la, analisá-la qualitativamente, observar de que (materiais
discursivos) ela vem sendo feita. Parece que a constatação da presença da voz docente
seria por si uma verdade, que seu teor ao ser enunciada necessariamente proporciona-
ria que ela pudesse ser escutada, de forma “inteira”. Afirma-se que as formações são
positivas e bem sucedidas porque nestas se produziu a voz docente. Considerado que
este tratamento à voz docente seja ainda insuficiente para que se produzam efeitos de
formação mais significativos, caberia perguntar, numa análise qualitativa: De que esta
voz é feita? Há imbricações de vozes de outros âmbitos? Em que dosagens?
Antes de chegarmos a poder solicitar ao professor que escreva, em espaços de for-
mação, textos em que sua expressão pudesse comunicar seus saberes, suas defesas mais
particulares do que ele quisesse mostrar de seu fazer, tivemos que estimular momentos
mais fortes de oralidade. Encontramos, nos primeiros momentos da pesquisa forma-
ção, poucas possibilidades de escutar a voz docente, na verdade deparamo-nos com
um professor silencioso, e vale a pena pensar nesse silêncio.
Para que chegássemos a conceber o professor como sujeito de pesquisa, que fosse
um sujeito de discurso, pressupondo-o como apto a assumir uma posição ativa frente
às discussões e proposições dos atuais resultados de pesquisa, inclusive a nossa, tínha-
mos que deslocar este sujeito professor da posição em que lhe encontramos. Compre-
endemos àquele momento tal posição discursiva como decorrente de tão frequente-
mente ser-lhe imputada uma certa expectativa, que acaba lhe marcando como leitor,

186 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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estudioso de teorias, adulto profissional em formação. Imputam-se sobre este profis-


sional as marcas de um sujeito sempre responsabilizado, que deve se sentir o “culpado”
pelos fracassos dos processos escolares, e assume sua responsabilidade pelo sucesso
ou pelo fracasso do seu próprio trabalho com os alunos. Era nossa tarefa fazê-lo sair
desta inércia, que lhe criava obstáculos para discutir, para defender suas posições, para
defender-se de quaisquer ideias exteriores. Um dos objetivos da pesquisa era conhecer
o interlocutor professor, no sentido de criar estratégias de formação que pudessem ser
de seu interesse, que o auxiliassem a se posicionar. Refutamos um modelo de formação
de professores para lhe imprimir uma identidade profissional que lhe estaria “faltan-
do”, que a pesquisa permitiria saber qual seja.
Outra razão para termos encontrado o professor num lugar discursivo em ne-
gativo, numa posição inerte, pode ser representada pela carga, extrema saturação de
discursos, que é imposta, afirmados com veemência e determinação no espaço escolar.
Nestes discursos, defendem-se certas posições com tanta ênfase e se exigem o cumpri-
mento de funções sem nenhuma compreensão, causando nos docentes receptores um
silêncio de discursos próprios. Chegam ao campo da educação, diretamente pela via
das políticas educacionais, afirmando-se como científicos, como os mais modernos,
“vendendo” uma ou outra concepção de língua e de ensino de língua como o último
grito, a tendência da atualidade a ser incorporada pelos professores.
Paradoxalmente, o abandono em que se veem as escolas que não têm sucesso em
seus resultados é causado por formas de agir das políticas educacionais, cujas formas
utilizadas para atacar o fracasso escolar traduzem-se em uma abundância de projetos,
de ações, intensas tentativas que têm se revelado inócuas. Neste caso, vemos a satura-
ção causar o vazio. Com efeito, é inversamente proporcional a relação entre os resulta-
dos de avaliações sobre uma escola e as ações que esta recebe das políticas educacionais.
Quanto piores seus resultados, mais projetos são recebidos e a conclusão que se pode
supor é que tantos projetos produzem apenas a redundância do fracasso. Esta abun-
dância causa uma saturação, que revela-se finalmente nociva em termos de produção
discursiva. Em contraponto, o docente escuda-se contra as formas como é tratado
nestas medidas impostas, pois não é identificado com nenhuma destas políticas, exi-
gências, avaliações feitas a sua revelia, alheiamente assume as formas de ser orientado
às quais não quer ceder, ser conduzido. Por força destas intermitentes imposições que
saturam o ambiente escolar de medidas que são vazias de um sentido concordante, ne-
nhuma delas sintonizada na identidade docente, o professor se encontra anestesiado a
qualquer interação formadora que lhe pudesse provocar alguma alteração, encontra-se
impermeabilizado a este tipo de discurso.
Decididos a tocar o professor, nosso primeiro trabalho durante o tempo da pesqui-
sa foi atravessar essas diferentes capas protetoras, os escudos com os quais o docente tem
se protegido, de discursos sobre o professor, deveriam ser baixados, por meio de estratégias
de formação que pudéssemos criar àquele momento. Nossa tarefa significaria um tra-

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 187


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balho de re-sensibilização subjetiva, cognitiva, intelectual e profissional, que precederia


ainda o investimento sobre a compreensão da identidade do professor, como produtor
de discursos profissionais, para só então buscar a produção de sua escrita.
O silenciamento do professor, do ponto de vista gráfico, de sua escrita, antecedia-
-se de um do ponto de vista oral. Cabe conjecturar a propósito de um silenciamento
no seu dia a dia, presente constantemente em seu trabalho docente, nas interações,
quando os alunos não se engajam nas propostas e dominam a situação, desvirtuando
as organizações necessárias para a realização de trabalhos planejados. Nestas situações
correntes, os docentes não conseguem chamar atenção dos alunos, sequer conseguem
ter este espaço de dizer dentro da sala de aula. Momentos em que os alunos não dão
importância a seu interlocutor professor produzem um silenciamento, que começa já
dentro da sala de aula, quando o docente não tem o que dizer para o aluno. Entre o
silenciamento macro inscrito ideologicamente nas políticas, marcando a identidade
docente historicamente e o silenciamento micro, que se revela cotidianamente, que
mais o marca, encontramos um profissional que não fala tampouco em situações de
formação. Se ele não chega a ter este primeiro espaço, não consegue conquistar este
espaço, como interlocutor de seus alunos, não chega a ter uma experiência de gêneros
primários em sua profissão.
As experiências de letramento são interferentes mutuamente, multiplicando-se
em possibilidades as relações intergenéricas. Durante o projeto, em sua duração longi-
tudinal, convivemos também com este outro silenciamento da escrita, relacionado ao
primeiro, em uma relação de mútua constituição. O professor que não se dispunha a
falar nas discussões sobre os temas de sua profissão (e tinha razões para esse silêncio) se
disporia ainda menos a se arriscar em textos escritos, nos quais os gêneros são menos
fluidos e abertos a tentativas livres. Mesmo assim, com o trabalho que desenvolve-
mos de formação, chegamos quase ao final do projeto tendo conseguido recolher arti-
gos docentes sobre suas experiências práticas que reunidos constituiem um livro a ser
publicado. O produto almejado de experiências com a escrita docente em formação
continuada é bem sucedido, foi obtido com muito esforço e trabalho, que passamos
a descrever.
Um dos recursos utilizados para desencadear a vontade de dizer, nos debates ini-
ciais, consistiu em solicitar a escrita de textos menores em extensão, mais pontuais, em
termos de abordagem de certos temas. Os textos produzidos respondendo a esta soli-
citação eram enviados por internet por cada docente participante da formação e eram
organizados pelos formadores, em formas impressas ou em slides, para, no encontro
seguinte, ser material principal de exibição em projetor datashow para discussão do
coletivo. Tal procedimento revelou-se uma fórmula bem sucedida, que estimulava a
própria escrita, validada pelos significados produzidos coletivamente, bem como a
oralidade, pela argumentação suscitada, marcando suas posições pessoais nem sempre
concordantes por todos os pares. Por esta estratégia, estimulavam-se as relações entre

188 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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gêneros, primários e secundários, orais e escritos e entre gêneros escritos. Situados


proximamente, motivavam as discussões, o espírito argumentativo e desencadeavam a
produção discursiva de profissionais anteriormente silenciosos.
Entremeava-se à leitura e discussão dos textos docentes de pequena extensão, pro-
duzidos no contexto de formação, também muitos textos de autores de pesquisa, in-
dicados por nós. Estes foram distribuídos em forma impressa, enviados por internet
ou ainda em outras vezes fizemos a compra coletiva de livros pelo grupo. Textos desta
natureza também foram objeto de leitura, porém a forma de discussão sobre estes
dava-se de maneira mais tímida. Discutir a palavra de pesquisadores autores legitima-
dos simbolicamente torna-se mais difícil aos docentes do que discutir a própria palavra
docente, especialmente dos que convivem no mesmo grupo de formação.
Enquanto os processos de leitura e escrita eram constantemente solicitados e dis-
cutidos, a oralidade e a metalinguagem pedagógica da alfabetização estavam também
em pleno desenvolvimento. A certa altura, em início de 2013, passamos a discutir a
escrita de seus artigos e a manter os textos docentes a serem publicados sempre no
horizonte, embora tenhamos tido que agir com cautela, sempre detalhando os mean-
dros da tarefa de escrita para motivar sua realização9. Almejávamos que os docentes
assumissem a tarefa de escrita de um texto maior, um relato de prática que tivesse
também algum lastro teórico. Para que chegassem a esta empreitada mais ampla, de
escrita de um texto sobre sua prática, que tecesse considerações teóricas, a estratégia
foi estimulá-los a falar ou escrever sobre suas práticas em pequenos exemplos. Elas
eram analisadas coletivamente e debatidas. Quando as práticas descritas trazidas pelos
docentes eram “colocadas na roda”, passavam-se a discutir pontos de vista, a se debater
discordâncias, marcando-se posições, esforçando-se para se “dar nomes aos bois” (das
práticas), investimos em conceituar o que já estava posto (“déjà-là”) na escola, trazido
pelo professor, em seu discurso, a seus pares. Esse foi efetivamente um trabalho de
produção de conhecimento.
O estímulo à produção de discursos docentes neste espaço acabou produzindo
um gênero discursivo que foi gradativamente ganhando consistência que passou a
ser designado de “Apresentação de Prática”. Este gênero foi internamente instituído,
endógeno ao contexto dos Encontros de Professores para Estudos de Letramento,
Leitura e Escrita (EPELLE), mas hoje pode-se propô-lo como um carro-chefe em
processos de formação de professores. A partir da necessidade de se quebrar o silên-
cio docente, foi proposto por nós formadores, dentro destas condições de produção.
Passou a se constituir como rica fonte de observação das imbricações que o discur-
so docente produz, entretecendo à sua voz (palavra própria), a voz alteritária mais
próxima nas interações, a dos formadores que geralmente encaixam-se no registro
teórico-acadêmico. Uma das conquistas importantes do processo de formação que
9
Em outros textos que vêm sendo produzidos em 2014, relatamos a construção de alguns procedimentos didáticos imple-
mentados na formação continuada que realizamos (por exemplo, cf. ANDRADE e DONDA, 2014, a ser apresentado no
Colóquio de Letramento CEALE/ UFMG, agosto 2014).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 189


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implementávamos, o gênero discursivo Apresentação de Práticas foi sendo apropriado


de forma qualitativa pelos professores, durante o processo de sua formação. Criamos
um gênero propício aos objetivos de uma formação, dialogicamente com as condi-
ções de produção encontradas neste contexto.
Inicialmente, os professores participantes integrantes do grupo de formação fo-
ram expostos a este gênero, através de apresentações feitas por docentes externos ao
grupo, convidados por nós formadores. Suas identidades eram próximas, semelhantes
aos participantes do EPELLE, embora fossem professores que não participavam do
processo de formação em questão. Aceitaram ir àquele espaço, para falar a colegas de
alguma prática considerada por eles importante. Essas experiências profissionais rela-
tadas nas apresentações de práticas iniciais eram fruto de suas monografias em cursos de
extensão ou pós-graduação, ou de apresentações feitas em outros âmbitos de formação
(seus locais de trabalho, secretarias de educação).
Os gêneros discursivos docentes deveriam se produzir a partir de processos indi-
viduais, subjetivos, isto é, em que os sujeitos pudessem perceber em seus textos o seu
trabalho com a linguagem, não se atendo a modelos, acadêmicos, por exemplo, que
os afastariam de uma postura de novidade. Buscávamos a reflexividade, e não a repro-
dução. Inicialmente, as apresentações de práticas tomaram por modelos as de colegas
que não pertenciam ao grupo, mas com este espelhamento, vendo colegas como eles
apresentando-se e fazendo representar a voz docente, pouco a pouco, os membros
internos foram se encorajando a agendar suas apresentações e tivemos um total de 26
apresentações, em 88 encontros (o que representaria uma proporção da presença deste
gênero em 30 % dos encontros, aproximadamente). Estes textos (simultaneamen-
te orais, escritos, sonoros, imagéticos etc.10) representaram uma possibilidade da voz
docente imbricando-se à acadêmica, por ser um espaço formador dentro da Univer-
sidade, em interlocução com formadores. Os artigos escritos ao longo do processo e
terminados ao final dos três anos e meio decorrem da elaboração de pequenos textos
solicitados, mas sobretudo da apresentação de prática de cada autor, pois assim como
as apresentações culminaram nos artigos, outros textos menores e a forma como foram
reapresentados, ao grupo, para debate e discussão produziu referências internas ao
grupo, criou espaços discursivos para as afirmações docentes.
Com estas apresentações, a cena da formação é assumida de modo cada vez mais
predominante pela voz docente, para relatar um trecho de algum momento de seu dia a
dia escolar, recortando de sua temporalidade profissional um pouco de vida e expondo
aos pares do grupo nos encontros em moldes que foram se reconfigurando a cada apre-
sentação, de acordo com os estilos dos diferentes autores professores apresentando-se.
10
Um último trabalho que acaba de ser produzido por Bruna Molisani Alves analisa a presença importante da fotograia
nos PPT de algumas das professoras tomadas como sujeitos de sua pesquisa de doutorado (ALVES, 2014). No movimento
formador de difícil aproximação com o texto escrito, a autora mostra como outras semioses utilizadas lado a lado com a
escrita podem ser consideradas positivamente, não em substituição à primeira, apagando sua função, mas como amparo para
seus autores, que lançam mão de um recurso de linguagem mais naturalizado (tanto na vida cotidiana quanto na própria
proissão) para fazerem, ainda que timidamente, um voo em que se utilizem da escrita de forma autoral.

190 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Os movimentos discursivos repertoriados têm sido muito diversos. Estamos ex-


plorando estas diferenças como resultados positivos. Elas são o testemunho do dia-
logismo efetivo que desejamos implementar nos encontros de formação, escapando
a processos propostos de modelizações, em que prevaleceriam a reprodução, refle-
xos simétricos de textos aos quais se expõem os professores em formação, mas antes
buscando as modalizações, que preveem o trabalho de sujeitos ativos, ajustando sua
linguagem a registros de produção de linguagem que se aproximem inicialmente ao
máximo de seus idioletos, a idiossincrasia é o primeiro estágio da autoria.
As apresentações de práticas devem ser analisadas como um produto do trabalho
formador. São a principal produção desta pesquisa-formação justamente porque elas
entram como um crescimento discursivo, os professores passaram a poder se apresentar,
representando seu fazer pela sua própria voz, diante de seus pares, dialogando e receben-
do respostas, sob forma de observações compreensivas dos demais. Para essa análise, três
possibilidades teóricas são perseguidas hoje nos textos de análise que produzimos.
1. Análise do discurso observando a teoria presente nos textos docentes e re-
traçar a sua visão sobre o mundo, sobre a linguagem, sobre o sujeito, em
afirmações colocadas naquela prática apresentada, tem nos feito chegar a
algumas regularidades. Identificar e refletir sobre as razões que fazem com
que algumas teorias implícitas de fato orientem esta prática docente de
modo mais importante. A imbricação da teoria na prática é nesses casos
uma escolha de cada sujeito. Observar recorrências do tipo de texto teórico
considerado interessante para embasar ou enquadrar os relatos de suas prá-
ticas, por exemplo, possibilita tocar na validade de teorias em sua eficácia
junto ao público docente.
2. Observar as apresentações de prática pelo prisma da teoria genética do tex-
to, observando os textos como uma sequência de atos, que recuperam a sua
história do texto (LILLIS, 2003, 2012; PINO e ZALUAR, 2007). A teoria
genética do texto vem se voltando sobre os manuscritos de textos de au-
tores consagrados da literatura de teóricos da linguagem e de crianças em
processos escolares, por exemplo. Para compreender um texto produzido,
volta-se sobre etapas anteriores de seu processo. Porém, assim como muitos
estudos de Análise do Discurso, é bem vinda a contribuição de Foucault,
para compreender o sentido histórico das análises a serem propostas. “A
descontinuidade, para Foucault, (...) uma vez encontrada, (...) servirá de
instrumento para delimitar outro obeto: o enunciado. A única forma de
defini-lo seria por suas bordas, ou seja, por suas rupturas com outros enun-
ciados.” (PINO e ZALUAR, 2007, p.28).
O trabalho de análise dos textos docentes considera os bastidores (metaforica-
mente, nos dois sentidos da palavra: o de instrumento de artesanato e o de espaço da
cena teatral) de sua realização, alguns momentos do processo de sua elaboração podem
ser imprescindíveis para uma contextualização discursivo-subjetiva. Esta decisão pode

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 191


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incorrer em alguns equívocos, dos quais tentaremos escapar. Pois quando se procura
a gênese, encontram-se os hiatos, e exigem-se então saltos a fazer, dos analistas do
discurso. que não encontram linearidade ou continuidade. Não buscar a gênese no
sentido de sua continuidade, mas justamente tratar analiticamente as descontinuida-
des. Pensar o caráter histórico do discurso como contínuo, mas com rupturas, com
descontinuidades em sua coesão, é compreender a ideia de estabilidade relativa de
Bakhtin, que encerra esta descontinuidade. Se a teoria genética é tomada como uma
sequência quase cronológica, torna-se difícil marcar o aprendizado de alguém, o seu
esforço de escrita, para explicar o desenvolvimento de suas práticas, numa sequência
que seja precisa.
3. O terceiro eixo funda-se na ideia de fazer e dizer, que autores pesquisadores
inseridos nos estudos da Análise do Discurso mostram que quando se diz,
se faz. São apontados como fonte deste pressuposto do dizer como fazer
estudiosos da linguagem tais como Austin, por exemplo, que desenvolveu
os primeiros estudos pragmáticos que indicam que dizer é primeiramente
fazer, e quem diz está fazendo. Temos investido no dizer do professor para
nos aproximar de seu fazer, não deixar esta sua prática profissional “muda”,
sem palavras, mas que ela ganhe discursos das quais seja um tema afirmado,
organizado discursivamente pelos docentes, para comunicação, irradiação
de enunciados, em formas de publicização em que possamos investir.
O caráter etnográfico desta pesquisa representa-se pelos encontros de formação:
no face a face com os sujeitos, em tempo longitudinal, sensível a acontecimentos/
eventos em que se veja a produção dos sujeitos quando agem. O objetivo é produzir
uma descrição culturalmente sensível que proponha transformações da realidade dos
sujeitos estudados.
As apresentações de práticas produziram-se como um gênero endógeno ao EPEL-
LE. Representam a produção discursiva dos gêneros orais e escritos do grupo de pro-
fessores, que os tornam uma comunidade de Práticas. Os 77 professores participantes
ao longo do período não estiveram presentes permanentemente. Sua permanência
pode ser considerada pela “unidade” semestre, de tempo de frequência aos encontros.
Durante um semestre, grupos em torno de 20 professores frequentavam com regulari-
dade. Com este rodízio, formavam-se configurações distintas a cada semestre.
Os diálogos entre os grupos foram sempre muito mobilizadores. As discussões
situavam posicionamentos muito singulares, diferentes. As características destes pro-
fessores, como grupo, era bem variada, em termos de sua formação (inicial e continu-
ada), das escolas em que trabalham, do tempo de profissão, da experiência com anos
iniciais de escolaridade (E.I., E.F.) e do pertencimento exclusivo à escola pública ou
ainda trabalhando em escolas públicas de perfil mais elistista (com limitação de vagas
para entrada dos alunos, por exemplo). O tema da escola pública e as questões que
permeiam a sua realidade mais comum sustenta toda a produção discursiva de forma-

192 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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dores e professores em formação com mais consistência, neste processo. Consideramos


em positivo as tensões geradas na relação entre pares e também entre formadores e
professores que ocupam posições distintas em relação ao conhecimento sobre a língua,
a partir de objetivos distantes. Os malentendidos ocorridos nesse contexto tornam
mais rico o trabalho de ajuste de comunicação pois revelam as defasagens entre lógicas
muito distantes (SIGNORINI, 2000BAUTIER & RAYOU, 2013; KLEIMAN) e o
trabalho do sujeito para adequar-se à situação comum de formação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, buscamos apresentar avanços de uma pesquisa que se propõe a con-
tribuir com a abertura de possibilidades do próprio contexto estudado. Nossa própria
condição de produtores de pesquisa no campo da educação nos convoca a responder
por esta responsabilidade. Em nossa história de professora numa Universidade pública,
há tempos vimos sendo interpelados pelas políticas e participamos de situações de for-
mação continuada de professores alfabetizadores. Como pesquisadores, inscrevemo-nos
em longa experiência de formação em políticas de formação de professores das quais
participamos pela Universidade, em ações de colaboração com o Governo Federal, tais
como: Programa Nacional do Livro Didático (PNLD); Pró-Letramento R.J. (PL); ações
da Rede Nacional de Formação de Professores (RNFP); Programa/Pacto Nacional de
Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Não tivemos experiência com o programa de
iniciação à docência (PIBID), mas acompanhamos os colegas de nossa unidade que
têm feito este trabalho. O próprio edital do Observatório da Educação (OBEDUC)
da CAPES, no qual está inscrita esta pesquisa, traz um formato específico de relação
com a escola, apostando numa proximidade entre escola e Universidade, que inclui,
por exemplo, bolsas para professores da educação básica, além de outras peculiaridades.
Nestes processos vividos por nós, imprimimos formatações institucionais às for-
mações, o que se traduz em programas nacionalmente propostos ganharem contornos
muito subjetivos, em cada estado do país, em cada grupo coordenador das formações,
o que vai nos constituindo como autores. Partimos de ações com viés extensionista,
mas trata-se da constituição do pesquisador em educação que, ao agir como formador,
aprende sobre este objeto de pesquisa de forma encarnada. Além destas chamadas
pelo MEC, há também as demandas internas à IES em que trabalhamos, com a qual
temos contribuído, com coordenação de cursos de especialização, cursos de extensão
voltados aos professores, eventos de pesquisa abertos ao professor de redes públicas.
Nesta pesquisa, podemos enumerar brevemente os diversos acontecimentos da
pesquisa, avanços obtidos que equivalem a nossos resultados:
• O próprio evento instituído por quatro anos, designado pela sigla EPELLE, e
seu formato particular, artesanal, de formação, que nos possibilita a liberdade
para agir em relação aos moldes institucionais frequentemente impostos;

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 193


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• Todo o material de registros de discursos de formação, de professores e de


formadores, decorrente do trabalho empírico de pesquisa;

• As estratégias metodológicas de formação propostas, experimentadas e apro-


vadas, que podem ser propostas a novos contextos de formação;

• O grupo EPELLE criado no Facebook, tem revelado espontaneamente mu-


danças nas formas de seus usos, apropriados por este grupo de professores;

• Uma professora individualmente criou uma Funpage onde insere suas experiên-
cias pedagógicas como autora; ou seja, criou um modo de publicação autoral;

• Produção de textos pelos autores docentes: os artigos/capítulos do livro a ser


publicado, apresentações de trabalhos em eventos científicos (inclusive o da
própria pesquisa, em setembro de 2014) e a procura por Pós-Graduações (es-
pecialização e mestrado).

Como continuação, em escrita de um projeto a se iniciar em 2015, assumimos


quatro eixos de ação que permitirão aprofundar e intensificar as conclusões que vêm
sendo avançadas neste último ano. São eles: a) abertura de um curso de Mestrado Pro-
fissional; b) investimento no objeto de estudos Formação de Formadores, c) criação
de uma linha editorial docente e d) integrando os eixos anteriores, colaboração com
ações dos PIBIDs de nossa IES.
Assumimos que as práticas de uso da escrita docente e discente, no âmbito da
formação continuada de professores alfabetizadores, são diferentes. Concebemos os
múltiplos letramentos, que dependerão das esferas das quais têm participação e dos
grupos sociais. Nosso estudo do letramento profissional docente produz compreensões
sobre o letramento acadêmico, pois os situa em relações de alteridade, de distâncias,
de intertextualidade. Há usos específicos da escrita em qualquer contexto, como os de
formação docente e o contexto acadêmico, que diferem de outros contextos. Contra-
riamente ao que afirmam muitos pesquisadores formadores universitários em relação à
escrita docente, pode-se dizer que esses profissionais são letrados e, através justamente
de nossa ação formadora cuidadosa, de um ponto de vista teórico-conceitual e de um
ponto de vista metodológico (e didático) podem incrementar sua experiência com a
língua escrita.

REFERÊNCIAS
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de educação infantil. Texto apresentado no III Seminário Escrita Docente e Discente,
LEDUC Faculdade de Educação UFRJ, 2014.

194 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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versitários constitutivas de discursos docentes. (Conferência proferida para o concurso
de Professor Titular de Formação de Professores), Faculdade de Educação da UFRJ,
setembro 2011.
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196 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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O SISTEMA SEMÂNTICO DE PROJEÇÃO EM CITAÇÕES


NA ESCRITA ACADÊMICA DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIOS

THE SEMANTIC SYSTEM OF PROJECTION IN CITATIONS IN


ACADEMIC WRITING PRACTICUM REPORTS
Lívia Chaves de Melo*
Elaine Espindola**

RESUMO: No presente trabalho, consideramos os pressupostos teórico-metodológicos da


Linguística Sistêmico-Funcional para investigarmos o Sistema semântico de projeção.
O Sistema semântico de projeção sinaliza a transmissão das enunciações próprias e
alheias. Estas construções são realizadas por meio de recursos léxico-gramaticais, os
quais são mobilizados na escrita reflexiva profissional de relatórios de estágios super-
visionados. Os relatórios investigados são produzidos por professores em formação
inicial, em disciplinas de estágio em Língua Portuguesa e em Língua Inglesa de uma
Licenciatura em Letras, pertencente a uma universidade pública brasileira. No registro
focalizado, analisamos as várias seções que compõem a produção escrita em que as
práticas de citação de literaturas científicas e literaturas não científicas são empregadas.
O objetivo deste trabalho é o de: investigar as contribuições dos recursos de projeção
utilizados na escrita de relatórios da Licenciatura em evidência. A investigação nos
mostra que os recursos de projeção são empregados nos dados analisados principal-
mente para relatar e sugerir propostas de atividades utilizadas na educação básica;
fundamentar pontos de vista dos atores sociais; relacionar e arquitetar ideias.
Palavras-chave: Linguística Sistêmico-Funcional; Formação docente; Escrita; Letramento.
ABSTRACT: In this present paper, we make use of the theoretical and methodologi-
cal apparatus of Systemic Functional Linguistics to investigate the semantic system
of projection. The semantic system of projection which signals the transmission of
one own’s enunciations and that of others. These constructions are realized by lexi-
cogrammar resources, which are mobilized in professional reflective writing of super-
vised pre-service training reports and produced by pre-service teachers enrolled in the
mandatory pre-service training subject of Portuguese Language Teaching and English
Language Teaching, at an Undergraduate Language Teaching Degree at a public Uni-
versity in Brazil. In such register, we focused on the sections that are composed by cita-
tions practices from scientific literature and non-scientific literature. The objective of
the present paper is to investigate the contributions of projection resources used in the
written reports of the Undergraduate Degree under investigation. The analysis points
that the resources of projection are realized for reporting and suggesting proposed
*
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras: Ensino de Língua e Literatura, Universidade Federal do Tocantins
– UFT, Araguaína, Tocantins. Brasil. Bolsista CAPES. liviachavesmelo@hotmail.com
**
Professora e Pesquisadora na he Hong Kong Polytechnic University (PolyU), Hong Kong/China. Doutora em Letras pela
UFSC. E-mail: egelaine@polyu.edu.hk

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activities used in basic education; supporting points of view of the social actors; relat-
ing and architecting ideas.
Keywords: Systemic Functional Linguistics; Teacher training; Writing; Literacy.

INTRODUÇÃO
E Deus disse… Com um enunciado, o mundo veio a sua existência. A origem oracio-
nal do universo, conforme citado em Gênesis, espelha o nosso próprio uso da língua
para construir realidade e transformar experiência em significado. Tamanho é o po-
der generativo de realidade da gramática que ela nos possibilita definir ‘a experiência
básica do ser humano (HALLIDAY, 2004, p. vii – tradução nossa)3’.

Neste artigo, considerando os pressupostos teórico-metodológicos da Linguística


Sistêmico-Funcional (doravante LSF), realizamos um estudo investigativo do Sistema
semântico de projeção realizado pelos recursos da léxico-gramática e sua implicação
discursiva ao marcar a transmissão das enunciações próprias e alheias, mobilizados nos
parágrafos que compõem as várias seções dos relatórios de estágios supervisionados em
Língua Portuguesa e em Língua Inglesa. Os relatórios investigados foram elaborados
na Licenciatura em Letras, pertencente à Universidade Federal do Tocantins, Campus
Universitário de Araguaína. Nestas produções escritas, focamos os momentos em que
as práticas de citação são empregadas pelos enunciadores dos documentos.
O Sistema semântico de projeção, realizado por recursos léxico-gramaticais, mar-
cam, principalmente, o que as pessoas dizem, apresentam, pensam e sentem; são ti-
pos especiais de processos de citar e reportar (cf. HALLIDAY, 2004; HALLIDAY &
MATTHIESSEN, 2004) que se constituem prática bastante comum nas produções
acadêmicas. Em uma orientação mais discursiva, esse sistema é utilizado para avaliar o
conteúdo da mensagem enunciada, podendo-se dar maior prestígio e credibilidade aos
significados projetados dependendo da fonte que serve de base à citação ou ao relato
(MARTIN & ROSE, 2010; MARTIN & WHITE, 2005). O Sistema de projeção
envolve o estrato semântico da linguagem e o estrato da léxico-gramática.
Neste trabalho, focalizamos mais diretamente os usos dos recursos de projeção
empregados na escrita reflexiva profissional dos relatórios de estágios, nas seções em
que se manifestam as práticas de citação da literatura científica e da literatura não
científica. Examinamos as contribuições desses recursos para o desenvolvimento da
escrita reflexiva profissional do professor em formação. Concentramos nossa atenção na
construção do letramento acadêmico, no trabalho de formação inicial de professores,
desenvolvido no contexto das disciplinas de estágio supervisionado.
3
And God said... With an utterance, the world came into existence. he clausal origin of the universe, as told in Genesis,
mirrors our own use of language to construe reality, and transform experience into meaning. Such is the reality-generating
power of grammar, that it enables us to deine ‘the basic experience of being human’ (HALLIDAY, 2004, p. vii).

198 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Por literatura científica compreendemos os enunciados responsáveis pela divulga-


ção de saberes acadêmicos originários de pesquisas científicas. A literatura científica é
mobilizada nos documentos por meio de diversos registros acadêmicos, como disserta-
ção de mestrado, tese de doutorado, artigo científico, livro, capítulo de livro, enciclo-
pédia, verbete científico, por meio de leituras de revisões teóricas integrantes de dire-
trizes curriculares ou projetos pedagógicos, leis que regem o estágio supervisionado e a
educação básica, Proposta e Normativa do Estágio Supervisionado do Curso de Letras
da universidade focalizada. Por literatura não científica, compreendemos os saberes
de diferente natureza, propagados em enunciados originários de registros diversos
de fácil leitura, fácil compreensão, provocadores de distração, esperança, otimismo e
aconselhamento, os quais aparecem nos relatórios por meio de textos literários, textos
pedagógicos, textos de autoajuda, registros discursivos pertencentes à cultura popular,
como provérbios, adágio, e, ainda, por meio de fragmentos bíblicos, dentre outros (cf.
MELO e SILVA, MELO, 2011;2014; MELO, GONÇALVES e SILVA, 2013).
Os relatórios de estágios são produções escritas elaboradas como trabalho escrito final
das disciplinas de estágios. Nessas produções, os enunciadores, aqui denominados de alu-
nos-mestre, expõem, descrevem, narram e argumentam sobre as atividades experienciadas
nos períodos de observação, planejamento e regência nas escolas de educação básica.
Esse registro, apesar de ser elaborado na situação formal da academia, manifesta-
-se por meio de uma escrita “renovada”, mais espontânea, e subjetiva, podendo desen-
cadear e potencializar a prática da escrita reflexiva, “escapando” um pouco da escrita
técnico-científica, pois nesta escrita reflexiva, emoções, angústias, tensões, pressões,
desabafos e conflitos são expressos. Os enunciadores dos relatórios são instruídos pelos
professores-formadores4, a articularem as experiências vivenciadas nas escolas de edu-
cação básica à leitura teórica realizada nas disciplinas.
Os indícios das leituras teóricas nos relatórios ocorrem de maneira explícita, ou
mesmo de forma implícita. Neste trabalho, sinalizamos mais diretamente as estruturas
semântico-discursivas e léxico-gramaticais da língua, responsáveis pela semiotização
das apropriações dos textos lidos (vozes alheias) pelos alunos-mestre, divulgados por
meio das práticas de citação.
Os relatórios5 de estágios apresentam-se em uma escrita líquida em conflito, em
tensão entre o acadêmico e o profissional, em diálogo com outros registros que circu-
4
Neste trabalho fazemos uso da denominação professor-formador para nos referirmos ao proissional docente, responsáveis
pela disciplina de estágio no contexto universitário.
5
Os relatórios de estágios não possuem uma formatação padronizada na organização da estrutura composicional. As partes
que compõem esses documentos são diversiicadas, como: capa, contracapa, agradecimentos, epígrafes, índice/sumário,
resumo, abstract, apresentação/introdução, fundamentação teórica, corpo do relatório ou texto principal, justiicativa, obje-
tivos, metodologia, formulação do problema, conclusão, referências bibliográicas, anexos (fotos, ichas do estágio, atividades
didáticas), dentre outros. No corpo do relatório, geralmente os alunos-mestres apresentam a caracterização da instituição
onde ocorreu o estágio; discutem o planejamento pedagógico do professor; relatam as diiculdades apresentadas pelo professor
colaborador do estágio, responsável pelas disciplinas no âmbito da educação básica; descrevem as aulas observadas e regidas.
Alguns relatórios não possuem divisões na estrutura esquemática do gênero, apenas um texto corrido sem marcação explícita
das seguintes subdivisões: introdução, corpo ou texto principal e conclusões.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 199


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lam no contexto acadêmico, aos quais os alunos-mestre estão familiarizados. Nesses


documentos, encontramos relatos de histórias de vida que envolvem o percurso pro-
fissional do professor no magistério, e, discursos sobre a ação docente.
Os relatórios se aproximam de alguns registros da esfera acadêmica, como projeto
de pesquisa, artigo acadêmico, ensaio, resenha, mas, ao mesmo tempo, se assemelham
a registros profissionais, utilizados para rememorar trajetórias de vida, como diários
pessoais, portfólios, autobiografias, fotobiografias, memorial, relatos reflexivos den-
tre outros, empregados para o fortalecimento do letramento do professor6. Em vista
disso, para nomear esta escrita, utilizamos a denominação escrita reflexiva profissional
(MELO, GONÇALVES e SILVA, 2013).
A escrita reflexiva profissional dos relatórios de estágios é utilizada nos contextos de
formação de professores para potencializar reflexões críticas sobre ações relacionadas às prá-
ticas e experiências vivenciadas no exercício das atividades do magistério. Nesta escrita, os
atores sociais estabelecem um diálogo consigo mesmo, orientados por saberes acadêmicos
de referência estudados durante a formação inicial, ou mesmo em outras esferas sociais.
Diferentemente da escrita acadêmica que é tida como crítica, objetiva, impes-
soal e rigorosa, a escrita reflexiva profissional dos relatórios configura-se como menos
rigorosa, narrativa, com aspecto pessoal e íntimo cuja principal referência é o próprio
autor, com suas percepções dos fatos, suas experiências e formas de (re)significações
(cf. FIAD e SILVA, 2009; SILVA e PEREIRA, 2013).
Na LSF, a escrita renovada, mais espontânea e líquida dos relatórios de estágios
(escrita reflexiva profissional), pode ser representada no modelo “tipológico textual
baseado em contexto” sistematizado por Matthiessen, Teruya & Lam (2010, p. 221)
em forma de diagrama, como um processo sócio-semiótico de expor, explorar, reportar,
recriar e compartilhar sendo que os três últimos processos são mais predominantes.
Além desta introdução, algumas palavras finais e as referências bibliográficas, este
artigo está organizado em quatro principais seções. Na primeira seção, Princípios nor-
teadores da Linguística Sistêmico-Funcional, apresentamos os principais recursos da LSF
utilizados para descrever, interpretar e realizar significados da linguagem no sistema
de comunicação humana. Na segunda seção, intitulada Dispersão funcional do Sistema
semântico de projeção e também na terceira seção, intitulada O Sistema semântico de
projeção no Sistema de Avaliatividade discutimos sobre os recursos de projeção, uti-
6
Compreendemos letramento como atividades sociais de uso/aquisição da leitura e da escrita construídas nas interações da
vida cotidiana (cf. STREET & LEFSTEIN, 2010). Para os estudos do letramento, a escrita é considerada essencial para com-
preendermos a vida e as instituições contemporâneas. É uma prática sociocultural usada na maioria das atividades do cotidiano
(cf. DAVID BARTON & UTA PAPEN, 2010). Interessa-nos as práticas de letramento acadêmico e letramento do professor,
envolvidas na elaboração dos relatórios de estágios, as quais estão diretamente relacionadas à formação inicial docente. As práticas
de escrita orientada pelos relatórios de estágios potencializa o desenvolvimento do letramento do professor, pois as imagens que
os enunciadores projetam nesta escrita relexiva proissional, principalmente ao mobilizar/apropriar as vozes alheias por meio da
prática de citação, o recuperar/reconstruir experiências vivenciadas no passado, são elementos que cooperam para a construção
dessa escrita como elemento constitutivo de identidade para a atuação proissional. As atividades de produção dos relatórios são
práticas de eventos de letramento (HEATH, 1983), ou seja, são situações sociais interativas mediadas por meio de textos escritos
que potencializam o aprimoramento da escrita acadêmica, a qual ainda tem recebido pouca relevância na Licenciatura focalizada.

200 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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lizados para introduzir vozes adicionais no discurso presentes nas três metafunções
da linguagem. Na quarta seção, Projeção de citações na escrita reflexiva profissional de
relatórios, está organizada nas seguintes subseções Projeção de citação da literatura cien-
tífica e Projeção de citação da literatura não científica. Nestas subseções, descrevemos a
projeção como um recurso intensificador de ponto de vista, utilizado para informar
fonte de origem de estratégias didáticas empregadas no estágio.

PRINCÍPIOS NORTEADORES DA LINGUÍSTICA


SISTÊMICO-FUNCIONAL
A Linguística Sistêmico-Funcional é uma teoria social e semiótica do funciona-
mento da linguagem humana que se preocupa com o papel da língua em diversas
manifestações efetivas de uso. É um modelo de análise textual que utiliza métodos
detalhados de análise de texto indissociável do contexto real de uso, na tentativa de
esclarecer a maneira como os indivíduos usam a língua e a linguagem enquanto ativi-
dade social, para produzir significados, nas situações cotidianas de interação. É uma
teoria de descrição gramatical que se propõe a compreender como escolhas linguísticas
feitas por indivíduos estão relacionadas às suas intenções comunicativas (cf. BARBA-
RA, 2009; GOUVEIA, 2009).
Nesta teoria, compreendemos a gramática da língua com os usos estruturais de sig-
nificado de mundo, e os elementos do léxico da língua e sua regra de colocação, como re-
cursos unificados, em um estrato de organização global da linguagem léxico-gramatical,
como uma rede de sistemas em conjunto, em que a unidade básica de análise é a oração.
A léxico-gramática é um subsistema constituinte do sistema linguístico composto
pela gramática e pelo vocabulário. Nesse subsistema, materializam-se as escolhas lin-
guísticas realizadas na língua, ou seja, como a língua é organizada para criar e expressar
significados. Se olharmos para a gramática dessa forma, sistemicamente somos capazes
de transformar nossas experiências em significados e realizarmos relações sociais (cf.
HALLIDAY, 2004, p. 182; HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004, p. 43).
Trazendo à baila o excerto em epígrafe de Halliday (2004), reproduzido logo no
início deste trabalho, destacamos que o emprego do processo verbal disse na cons-
trução E disse Deus marca uma voz alheia projetada em uma nova situação de intera-
ção, articulada à voz discursiva do enunciador. O uso do elemento metaenunciativo
reticências refere-se à omissão de alguma informação, ou seja, ao contexto bíblico
do livro de Gênesis7. A informação omitida, na epígrafe mencionada, possivelmente

7
No livro de Genesis é relatado a forma como Deus criou o céu e a terra e, tudo que neles há, como: a criação da luz e das
trevas; a separação entre águas e terra; a produção de ervas e árvores frutíferas; os luminares na expansão dos céus; a criação
dos animais e do homem e demais seres viventes, que surgiram por meio de uma simples oração: E disse Deus: haja X. E
houve X. Nesta oração, o processo existencial haja representa algo que foi construído com apenas um participante: Deus.
(cf. Gênesis capítulo 1: 1- 31. In: João Ferreira de Almeida (Tradutor). Bíblia Sagrada e Harpa Cristã. Casa publicadora das
Assembleias de Deus (CPAD): Bueri, São Paulo, 2010).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 201


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justifica-se por fazer parte da memória discursiva e cultural dos leitores idealizados
pelo autor da citação.
Neste excerto em epígrafe, Halliday esclarece que assim como o universo surgiu
por meio do pronunciamento de um enunciado, como dito em Gênesis, ao usarmos
a linguagem, temos o poder de construirmos realidades e dar sentido a nossas experi-
ências para realizarmos interações/relações sociais. Neste sentido, o autor assume que
a gramática, isto é, o sistema léxico-gramatical de toda e qualquer língua natural é um
sistema semiótico da experiência humana no contexto social da vida diária. Portanto,
com a gramática, o cientista pode transformar o mundo, ou até mesmo (re)criar novas
realidades virtuais.
Na abordagem teórica da LSF, a linguagem é representada para efeito de análise
da seguinte forma: contexto de cultura8 (gênero), contexto de situação (variáveis de regis-
tro), e gramática do sistema linguístico (metafunções da linguagem).
Na figura reproduzida adiante, apresentamos a representação da linguagem sob a
perspectiva da LSF.
Figura 1: Representação da organização da Linguagem para a LSF (adaptação de MARTIN,1997, apud
SILVA e ESPINDOLA, 2013, p. 273).

Nos parâmetros da LSF, Silva e Espindola (2013), ao tentarem esclarecer como


o contexto de cultura pode ser compreendido afirmam que tal contexto encontra-se
num nível abstrato, mais geral, e é informado por textos que são produtos dos sistemas
linguísticos, utilizados em diferentes situações interativas.
8
Como ainda não temos uma Gramática Sistêmico-Funcional da Língua Portuguesa, estamos lidando com uma teoria
elaborada em Língua Inglesa. A maioria dos termos por nós utilizados neste trabalho, encontram-se traduzidos para o Portu-
guês Brasileiro no dicionário de Termos de Sistêmica, disponível no seguinte endereço eletrônico: <http://www2.lael.pucsp.
br/~tony/sistemica/termos/db.cgi?db=default&uid=default&view_records=1&ID=%2a&sb=2Acesso em 23/04/2013

202 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Para os autores, o termo gênero é utilizado como sinônimo de contexto cultural,


responsável por estabelecer as construções produzidas nos contextos sociais mais am-
plos, envolvendo grande conjunto de gêneros potencialmente caracterizáveis, os quais
são reconhecíveis pelos seus membros.
Na presente pesquisa, por exemplo, os relatórios de estágios fazem parte do con-
texto do estágio supervisionado e realizam funções textuais bem específicas, algumas
das quais já foram apontadas logo na introdução deste trabalho, quando descrevemos
os relatórios.
O conceito de gênero não se restringe apenas a formas, estruturas linguísticas
e textos. Na abordagem dialógica de gênero, fundamentada no conjunto das obras
de Bakhtin e dos membros de seu Círculo, o conceito de gênero está articulado ao
discurso e as práticas sociais, compreendido como tipos de enunciados concretos re-
lativamente estáveis, constituído por elementos linguísticos, socialmente situados em
determinado tempo, espaço, constituído de ideologias em um processo sócio-cultural
que permite a sociedade organizar sua comunicação (cf. BAKHTIN, 2000 [1952-
1953]; 2002[1934-1935]; BRAIT e PISTORI, 2012).
Essa abordagem, complementada com as categorias de análise textual da LSF,
auxilia-nos a compreendermos de forma significativa os diversos discursos que perpas-
sam a escrita reflexiva profissional dos relatórios investigados.
Para caracterizar o contexto de situação, a LSF utiliza as variáveis de registro, com-
preendendo três aspectos: Campo, Relação e Modo.
O Campo identifica o que está acontecendo no contexto, refere-se à prática
social efetuada pelos participantes no contexto. No Campo é possível identificar o
conteúdo da ação social. A Relação refere-se à natureza dos envolvidos nas relações
sociais contextualizadas. O Modo refere-se ao meio de transmissão da mensagem; o
tipo de linguagem e o papel por ela exercido no contexto; e a forma de organização
da linguagem.
Tomando os relatórios de estágio em Língua Inglesa como objetos de investigação
científica, Silva e Fajardo-Turbin (2011) consideram os pressupostos teóricos da LSF
ao focalizarem os elementos textuais que exercem a função de Tema, nas orações com-
ponentes das introduções de relatórios.
Os autores apresentam um quadro expositivo sobre a estrutura esquemática desse
registro, elaborados na Licenciatura em Letras da mesma universidade focalizada neste
trabalho. Para visualizarmos as questões teóricas aqui elencadas, reproduzimos adiante
uma adaptação do quadro mencionado.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 203


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Quadro 1: Variáveis de registro do relatório de estágio (adaptado a partir de SILVA e FAJARDO TURBIN,
2011, p. 113).

VARIAVÉIS DE REGISTRO DO
ANÁLISE
RELATÓRIO DE ESTÁGIO
Escrita reflexiva profissional utilizada para relatar experiências
vivenciadas em disciplinas de estágio supervisionado,
CAMPO envolvendo os espaços universitário e escolar, elaborada a
partir de diferentes processos sócio semióticos (exposição,
descrição, narração e argumentação).
Produtores: alunos-mestre matriculados em disciplinas
de estágio, cumprindo uma atividade acadêmica. Leitores
imediatos: docentes responsáveis pelas disciplinas de
estágio, os quais avaliam imediatamente o mérito do
trabalho. Leitores potenciais: outros alunos-mestre dos
RELAÇÃO
estágios ou quaisquer interessados nos documentos,
inclusive para serem usados como objeto de pesquisas
científicas, os quais têm acesso aos documentos no CIMES;
professores colaborados das disciplinas de estágio no
contexto da educação básica.

Documento impresso e digitalizado com predominância da


língua escrita formal, produzido a partir da observação que
MODO se deseja crítica da experiência vivenciada em disciplinas
de estágio, podendo ser utilizados textos pertencentes a
diferentes registros, realizados a partir de diversas linguagens.

Para a LSF, as variáveis de registro estão relacionadas às metafunções da lingua-


gem. As escolhas linguísticas realizadas no sistema da língua desdobram-se em três
funções que constituem os propósitos principais da linguagem, decorrente dos con-
textos social e cultural de interação, denominadas metafunções léxico-gramaticais, as
quais são chamadas de: ideacional, interpessoal e textual.
A metafunção ideacional está relacionada à variável de Campo e representa os sig-
nificados de nossas experiências para os outros, construídas no mundo exterior (social)
e o mundo interior (psicológico). A metafunção interpessoal está relacionada à variá-
vel de Relação e representa as interações estabelecidas entre falante/escritor, ouvinte/
leitor. Nesta metafunção efetuamos nossos relacionamentos sociais. Já a metafunção
textual está relacionada à variável de Modo, e é responsável pela organização do texto
e suas relações semânticas coesas e coesivas, responsáveis pela tessitura do texto dentro
de um contexto. Organiza nossas relações e representações em um texto significativo.
Estas são conhecidas como as metafunções da língua em atividade social (cf. HALLI-
DAY & MATTHIESSEN, 2004, p. 29-30).

204 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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A metafunção ideacional subdivide-se em dois componentes: experiencial e lógico.


O componente experiencial trata do conteúdo interno da oração, ou seja, sua
estrutura, que é realizado pelo Sistema de Transitividade.
O Sistema de Transitividade tem sido compreendido pela LSF como a organiza-
ção semântica do mundo da experiência e do mundo da consciência humana, organi-
zado por um conjunto de processos de percepções, emoções, imaginações, aconteci-
mentos, ações, dizeres, dentre outros. É a gramática da oração uma unidade estrutural
que serve para expressar significados ideacionais ou cognitivos.
A Transitividade permite identificar as ações e atividades humanas que são expres-
sas no discurso, permitindo analisar quem faz o quê (Processos - sintagmas verbais),
a quem (Participantes – substantivos/sintagmas nominais) e em que circunstâncias
(Circunstâncias – advérbios/sintagmas adverbiais). Os tipos de processos9 da Transi-
tividade pelos quais o ser humano representa suas experiências são: material, mental
(subtipos de processos mentais: cognitivo, desiderativo, perceptivo e emotivo), rela-
cional, verbal, comportamental e existencial. Cada um desses processos expressam
domínios particulares da experiência, ou seja, os tipos de representações linguísticas de
atividades e ações que se desenrolam e acontecem no mundo e, estados (HALLIDAY
& MATTHIESSEN, 2004, p. 170; CUNHA e SOUZA, 2011, p. 68).
No Sistema de Transitividade, os recursos do Sistema de projeção são sinalizados tanto
na Língua Inglesa como no na Língua Portuguesa prototipicamente por meio dos proces-
sos mentais de cognição, nos processos mentais desiderativos e nos processos verbais.
O componente lógico encontra-se no estrato da léxico-gramática e no estrato
semântico-discursivo. Este componente organiza a experiência, a partir do Sistema
gramatical da Transitividade. Neste componente, os recursos de projeção utilizados
para citar as palavras exatas que alguém disse, ou reportar e representar o sentido geral
do que foi dito, ou pensado, ocorre no estrato semântico de forma mais abstrata por
meio dos recursos da léxico-gramática. Tais recursos organizam Figuras da Experiência
em sequências de eventos, no desenvolvimento do texto.
A função interpessoal representa a relação entre os participantes, suas intenções e
interações com a sociedade. As mensagens transmitidas e seus significados se materiali-
zam através das escolhas linguísticas realizadas pelos Sistemas de Modo e Modalidade.
O Sistema de Modo realiza-se na relação entre Sujeito e Finito, indicando a função da
mensagem nas trocas e demandas de informação, ou trocas e demandas de bens e ser-
viços. O Sistema de Modalidade indica, por meio de seus subsistemas de Modalização
e Modulação, as atitudes do falante em relação à mensagem.
9
Na LSF, processo é compreendido como evento, ação, etc. que se desenrola/desenvolve no tempo, o qual pode envolver
participante e/ou circunstância. Em uma oração, quando temos um verbo com o potencial de ser um processo, e a função
de realizar uma oração, mas não lhe é dado um participante, ou mesmo uma circunstância, este passa por uma mudança de
nível (rank shift), e pode ser entendido como um grupo nominal ou frase, uma palavra. Sobre mudança de nível conferir
Halliday e Matthissen (2004, p. 09). No Português Brasileiro, o processo geralmente ocorre por meio de verbos lexionados
ou formas nominais e em certas formas simples ou compostas.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 205


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Uma área da metafunção interpessoal de grande relação à projeção é o Sistema


de Avaliatividade. A Avaliatividade apresenta diversos recursos semântico-discursivos,
realizados léxico-gramaticalmente, que nos permitem identificar atitudes e posiciona-
mentos avaliativos, nos textos inseridos nos contextos sociais (cf. MARTIN & WHI-
TE, 2005; VIAN JR, 2009, 2012), como o Sistema semântico de projeção, o qual
focamos mais adiante.
Por fim, a metafunção textual é responsável pela organização e construção da in-
formação no texto. Em termos estruturais, nesta metafunção, o Sistema de Tema, nas
funções Tema + Rema posiciona a informação e orienta sua proeminência no fluxo do
texto. Já o Sistema de Informação é organizado estruturalmente por meio das funções
Dado + Novo.
Na LSF, o Tema é o elemento linguístico que serve de ponto de partida da men-
sagem, permitindo ao leitor identificar mensagens familiares no texto. Representa as
funções gramaticais que consente a localização e orientação das orações dentro do seu
contexto, podendo manifestar-se por meio de grupos nominais, locuções prepositivas,
ou outras classes e grupos ou frases. O Tema para ser identificado dependerá da cons-
trução de Modo. E ao mesmo tempo, o Tema vai e encerra-se no primeiro elemento
experiencial da oração. Enquanto que o Rema é caracterizado como o remanescente
da oração (HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004).
Na metafunção textual, no estrato semântico de organização da linguagem, en-
contramos o Sistema de Coesão que é uma condição necessária, mas não uma condição
suficiente para a criação do texto. Refere-se a um conjunto de recursos responsáveis
por ligar algum elemento no discurso que é dependente de outro e construir relações
de sentido dentro do texto, definindo-o como tal (HALLIDAY e HASAN, 2007).
No quadro abaixo, estão sintetizadas a relação entre as variáveis de registro, as
metafunções e as realizações linguísticas.
Quadro 2: Variáveis de registro, metafunções e sistema

Variáveis de registro Metafunções Sistema


Campo Ideacional TRANSITIVIDADE
Relação Interpessoal MODO
Modo Textual TEMA

Nesta seção, apresentamos uma visão geral dos princípios norteadores da LSF, uti-
lizados como recursos para descrever, interpretar e realizar significados da linguagem
no sistema de comunicação humana. Nas seções seguintes, focamos mais detalhada-
mente os recursos do Sistema de projeção, derivados na metafunção ideacional, inter-
pessoal, e suas incursões na metafunção textual, utilizados na LSF para fazer referência
ao discurso próprio e ao discurso alheio.

206 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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DISPERSÃO FUNCIONAL DO SISTEMA


SEMÂNTICO DE PROJEÇÃO
A projeção é um Sistema lógico-semântico disperso no estrato da léxico-gramáti-
ca. Esse Sistema é organizado na metafunção ideacional, no componente experiencial
e lógico, na metafunção interpessoal, com algumas incursões na metafunção textual
(HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004, p. 369, 443, 445, 593, 603, 606).
O Sistema de projeção é formado no nível dos complexos oracionais e organiza a
experiência humana, em uma sequência contínua de eventos. Esse sistema pode ser en-
contrado em diversos registros, tornando-se mais representativo nos domínios científico,
jornalístico e literário. Neste trabalho, focamos os usos dos recursos do Sistema de pro-
jeção no domínio do registro relatórios de estágios, um registro elaborado na academia,
por meio de uma escrita diferenciada, aqui denominada escrita reflexiva profissional.
Conforme Halliday & Matthiessen (2004, p. 443), o Sistema de projeção é re-
presentado essencialmente por meio dos processos mentais de cognição (pensar, saber,
compreender, perceber, imaginar, dentre outros), por meio dos processos mentais desi-
derativos (querer, desejar, dentre outros) e nos processos verbais (acreditar, concordar,
confirmar, declarar, dizer, enfatizar, frisar, lembrar, relatar, reiterar, sugerir, dentre ou-
tros). Esse sistema é utilizado para representar o que as pessoas dizem, apresentam,
pensam e sentem, por meio de formas especiais de processos de citar e relatar as enun-
ciações próprias e alheias.
Para os autores, os subtipos dos processos mentais cognitivo e desiderativo proje-
tam metafenomenos de segunda ordem. Enquanto que os subtipos emotivo e percepti-
vo não projetam ideias existentes, mas acomodam projeções pré-existentes como fatos.
O Sistema de projeção pode ser realizado também através de metáforas que en-
volvem os usos dos processos comportamentais e materiais mediante nominalizações
de processos verbais e mentais.
Halliday & Matthiessen (2004, p. 443, 444; 2014, p. 509) esclarecem que existem
três sistemas envolvidos nos tipos de projeção, os quais são: o nível de projeção (locução
vs. ideia), o modo de projeção (parataxe que caracteriza a citação vs. hipotaxe que carac-
teriza o relato), e a função de fala (proposição projetada vs. proposta projetada).
Nesse sentido, na metafunção ideacional, o Sistema de projeção ocorre no estrato
da léxico-gramática, no componente Experiencial, por meio do Sistema de Transi-
tividade, através dos processos mentais (o que é pensado – projeções de ideias), nos
processos verbais (o que é dito – projeção de enunciados: locuções), ou mesmo através
de outros recursos.
No componente Lógico, localizado no estrato léxico-gramatical e semântico-
-discursivo, a projeção é entendida como Sistema Lógico-semântico por organizar a

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 207


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experiência, a partir do Sistema gramatical da Transitividade, e é realizada na ordem


dos complexos oracionais (parataxi – citar e hipotaxi - reportar).
Na citação, sinaliza-se a (re)utilização, mais ou menos exata, das formas linguís-
ticas do pensamento/dizer alheio em evento original da comunicação. No relato, se
projeta não apenas formas linguísticas (pensamentos/dizer) do outro, mas significados
de eventos originais.
Na metafunção interpessoal, o Sistema de projeção ocorre no nível da léxico-
-gramática, no Sistema de Modo, na ordem da oração em uma proposição, nos casos de
oferta ou demanda de informações; ou como proposta, nos casos de oferta ou demanda
de bens e serviços. Pode ocorrer também em metáforas interpessoais. Por meio de uma
orientação mais semântica e discursiva, o Sistema de projeção ocorre no Sistema de
Avaliatividade, no subsistema de engajamento, o qual tratamos na seção seguinte.
Em termos de metafunção textual, no estrato da léxico-gramática, o Sistema de
Tema e o Sistema de Informação podem contribuir para identificar os recursos do Siste-
ma de projeção, podendo ocorrer, por exemplo, nos adjuntos modais, nas aspas duplas,
nos apóstrofos, nas metáforas interpessoais (cf. THOMPSON, 2014, p. 163, 167, 168).
No nível semântico, a projeção é mais abstrata; no entanto, pode ser presumida
no Sistema de Coesão que é responsável por estabelecer significação à mensagem, por
meio dos recursos da elipse, da substituição e referenciação. Nesta metafunção, a pro-
jeção faz algumas incursões concernentes aos significados ideacionais e interpessoais.
Os discursos comuns, como a redação científica, a biografia, dentre outros, usam
o Sistema semântico de projeção para atribuir ao novo discurso tecido, um caráter de
escrita científica (HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004, p. 443; 2014, p. 509, 512).
O mesmo ocorre também na escrita reflexiva profissional dos relatórios de estágios,
quando os enunciadores dos documentos realizam as práticas de citação, tanto da li-
teratura científica, quanto da literatura não científica para sustentar a manutenção de
pontos de vista.

O SISTEMA SEMÂNTICO DE PROJEÇÃO


NO SISTEMA DE AVALIATIVIDADE
Uma subárea da metafunção interpessoal de grande relação para os estudos sistê-
micos em que o Sistema de projeção vem sido tratado por um grupo de pesquisadores,
numa orientação mais discursiva, é a Avaliatividade, no subsistema de engajamento.
Fundamentado nos preceitos teóricos formulados pela LSF, o termo que está sen-
do utilizado pelos estudiosos da LSF como possível correspondente em Língua Portu-
guesa para appraisal é Avaliatividade (cf. VIAN JR, 2009, 2012).

208 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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A Avaliatividade é um sistema realizado na metafunção interpessoal que constrói


significados ao nível semântico do discurso, instanciado e realizado nos textos por
recursos da léxico-gramática. Esse sistema é proposto por Martin e seus colaboradores
e é responsável por identificar, nos textos, a presença de elementos significativos por
meio dos quais escritores/falantes posicionam-se diante do leitor para expressar avalia-
ções que permeiam os discursos através de crenças, julgamentos, experiências de mun-
do, afeto, dentre outros elementos contextuais e individuais mobilizados na escrita ou
na fala (cf. MARTIN & WHITE, 2005; MARTIN & ROSE, 2010).
O Sistema de Avaliatividade interessa-se pelo modo como escritores/falantes ne-
gociam e partilham na comunidade discursiva as atitudes de aprovação e desaprovação;
entusiasmo e abominação; aplausos e críticas do mundo concebido no texto, sinalizan-
do para o leitor a graduação da força ou do foco do que é enunciado, negociando a in-
tersubjetividade em relação ao que é expresso sobre pessoas, objetos e demais aspectos
das relações sociais. Neste sistema, focam-se os usos dos recursos linguísticos emprega-
dos para partilhar emoções, negociações, envolvimentos, dentre outros (MARTIN &
WHITE, 2005; MARTIN & ROSE, 2010).
Esse sistema é formado por três subsistemas: atitude, gradação e engajamento. A
atitude refere-se à avaliação de coisas, o caráter das pessoas e seus sentimentos e subdi-
vide-se em três campos semânticos: afeto; julgamento e apreciação10. A gradação11 é um
recurso de amplificação do que é avaliado. Diz respeito ao modo como escritores/falan-
tes avaliam em termos de força e foco as atitudes expressas em relação a pessoas e coisas.
O subsistema de engajamento refere-se aos recursos linguísticos pelos quais es-
critores/falantes introduzem vozes adicionais em um discurso. Esses recursos são a
modalidade (recurso que cria um espaço semântico entre o sim e o não, uma incli-
nação que corre entre o polo positive e negativo), a concessão (ajusta expectativas)
e projeção. Tanto o subsistema de engajamento, quanto a gradação são influencia-
dos pelo princípio dialógico/heteroglóssico da teoria bakhtiniana12 (cf. MARTIN &
WHITE, 2005).
Ou seja, acredita-se que todo discurso é constituído e atravessado por outros dis-
cursos, por diversas vozes sociais. Neste sentido, toda interação verbal é dialógica,
jamais podemos desconsiderar as palavras do outro em nossos enunciados, pois os
enunciados são constituídos pelo entrelaçamento de discursos diversos. Nesse sentido,
10
O afeto é um recurso utilizado para expressar emoção. O julgamento é um recurso utilizado para avaliar as atitudes do compor-
tamento e caráter de pessoas. A apreciação é um recurso que engloba avaliação de valor às coisas (cf. MARTIN & ROSE, 2010).
11
Os recursos mais utilizados para graduar a força avaliada são os elementos de intensiicação; quantiicação; mecanismos
de repetição; preixos e suixos; metáforas; léxico atitudinal, dentre outros. No foco, geralmente, acentua-se ou ameniza
determinada perspectiva; há o ajuste de volume de itens graduais (recurso utilizado para fazer algo intrinsecamente não
agradável, agradável), suaviza as fronteiras entre as coisas, como uma reação emocional, ou julgamento.
12
Martin & White (2005, p. 92), ao tratarem dos subsistemas da avaliatividade (engajamento e gradação) airmam: “Mais
especiicamente, nossa perspectiva é informada pelas noções amplamente inluentes de dialogismo e heteroglossia de Bakhtin/
Voloshinov a qual diz que toda comunicação verbal, seja ela escrita ou falada, é ‘dialógica’, sendo que para falar ou escrever
sempre necessita-se revelar a inluência de, ou referência a, ou levar-se em conta de alguma forma, o que foi dito antes, e
simultaneamente antecipar as respostas dos leitores/ouvintes reais, potenciais ou imaginários”. (tradução nossa).

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 209


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ao nos referirmos aos recursos de projeção, no Sistema de Avaliatividade, o dialogismo


torna-se o ponto de partida.
A projeção, foco deste trabalho, é um sistema que ocorre no estrato da léxico-
-gramática e também no estrato semântico, conforme apontado na seção anterior,
podendo acontecer em completas unidades semânticas de significados da linguagem,
sendo isso que é denominado na LSF de texto.
A função da projeção é compartilhar valores, crenças e posicionamentos dialó-
gicos, associadas às posições do conteúdo da mensagem enunciada. Por meio desse
recurso, pode-se dar maior prestígio e credibilidade aos significados projetados depen-
dendo da fonte que serve de base à citação ou ao relato.
Os escritores e falantes ao anunciarem suas atitudes posicionais nos diversos regis-
tros estes não só se autoexpressam, mas dialogicamente convidam, convocam, procla-
mam outras vozes consideradas como corretas, válidas, incontestáveis e legítimas para
compartilhar seus pensamentos, gostos, avaliações e pontos de vista13. Na LSF, essas
outras vozes são comumente marcadas por meio dos recursos de projeção, os quais no
subsistema de Engajamento, em termos de alinhamento e desalinhamento, enunciador
e enunciatário indicam seus pontos de vista.
Esses pontos de vista podem ser sinalizados léxico-gramaticalmente em certas
formulações de grupos metaforicamente nominais, que envolvem os processos ver-
bais e os processos mentais, como: adjuntos adverbiais que marcam circunstâncias de
ângulo indicando fonte (de acordo com X; nas palavras de X; segundo X; conforme X),
circunstância de ângulo indicando ponto de vista (na opinião de X; na visão de X; para
X; no pensamento de X; X achar que; X acreditar que), circunstância de assunto (X tem
vontade de; X deseja), verbos modais (parece ser; poder; dever; querer; ter que; haver),
adjuntos modais (talvez; provavelmente; definitivamente; certamente; supostamente; evi-
dentemente), atributos modais (é possível que; é provável que), ênfase autoral explícita
(Eu afirmo...; Os fatos em questão são...; A verdade é que...), concordância (com certeza;
naturalmente; certamente), endosso (voz não autoral correta, válida e confiável – mostra
que; demonstra que; comprova; confirma), pronunciamento (intervenção autoral ex-
plícita – Eu defendo...; Os fatos em questão são...; Podemos concluir que), dentre várias
outras possibilidades.
No quadro adiante, ensaiamos uma representação do Sistema semântico de pro-
jeção, considerando as três metafunções da linguagem apresentadas.

13
Sobre esta questão, vejamos também o que dizem Martin & White (2005, p. 95.): “(…) Observamos, nesse aspecto,
que quando falantes/escritores anunciam suas próprias posições atitudinais, eles não somente se auto-expressam ‘falam suas
próprias mentes’, mas eles simultaneamente convidam outros para endossar e compartilhar com eles seus sentimentos, gostos
e avaliações normativas que eles estão anunciando. Portanto, declarações de atitudes são dialogicamente orientadas a alinhar
o interlocutor com uma comunidade de valores e crenças em comum”.

210 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Quadro 2: Dispersão funcional do Sistema semântico de projeção

SISTEMA SEMÂNTICO DE PROJEÇÃO


IDEACIONAL INTERPESSOAL TEXTUAL
• Na léxico-gramática a pro- • O Sistema de projeção • Na léxico-gramática o Sis-
jeção é encontrada no ocorre no nível da léxico- tema de Tema e o Sistema
componente Experiencial -gramática no Sistema de de Informação podem
no Sistema de Transiti- Modo, na ordem da ora- contribuir para identiicar
vidade – nos processos ção em uma proposição, os recursos de projeção
mentais (representa o que nos casos de oferta ou de- – adjuntos modais; aspas
é pensado); nos processos manda de informações; ou duplas, apóstrofos; em
verbais (representa o que como proposta, nos casos metáforas interpessoais.
é dito); ou nas metáforas de oferta ou demanda de • No nível semântico, a pro-
que envolvem os usos dos bens e serviços; em metá- jeção é mais abstrata, no
processos materiais e com- foras interpessoais. entanto, pode ser presu-
portamentais, nominaliza- • Numa orientação mais mida no Sistema de Coe-
dos em processos mentais semântica e discursiva, são que estabelece signi-
e verbais. no Sistema de Avaliativi- icação a mensagem, por
• No componente Lógico, dade, no subsistema de meio de elipse, da substi-
localizado no estrato léxi- engajamento, a projeção tuição e referenciação.
co-gramatical e semânti- manifesta-se nos tex- • Na metafunção textual, a
co, a projeção é entendida tos para marcar atitude projeção faz algumas in-
como Sistema LÓGICO- de quem cita ou relata e cursões concernentes aos
-SEMÂNTICO por organi- também avaliar o valor da signiicados ideacionais e
zar a experiência, a partir informação enunciada, interpessoais.
do Sistema gramatical da dando-se maior ou me-
Transitividade; acontece nor credibilidade aos sig-
na ordem dos complexos niicados projetados.
oracionais – hipotaxi - re-
portar e parataxi – citar).

PROJEÇÃO DE CITAÇÕES NA ESCRITA REFLEXIVA


PROFISSIONAL DE RELATÓRIOS
Os documentos investigados neste trabalho fazem parte do banco de dados do
Centro Interdisciplinar de Memória dos Estágios Supervisionados das Licenciaturas
(CIMES), localizado no Campus Universitário de Araguaína, pertencente à Universi-
dade Federal do Tocantins (UFT), norte do território brasileiro.
Investigamos diretamente 40 (quarenta) relatórios, elaborados para as disciplinas
de Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa:
Língua e Literatura e Investigação da Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado em Lín-
gua Inglesa: Língua e Literatura, vinculadas à licenciatura em Letras. Devido à extensão
deste trabalho, apenas dois fragmentos dos relatórios foram selecionados nas análises
reproduzidas. Os documentos investigados foram selecionados aleatoriamente entre
os arquivos organizados e digitalizados no ano de 2011.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 211


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Nas subseções seguintes, reproduzimos os dois fragmentos dos relatórios de está-


gios em que as práticas de citação da literatura científica e da literatura não científica
são realizadas. Para identificarmos os fragmentos selecionados, utilizamos as seguintes
informações: informante, semestre letivo, ano letivo, estágio em Língua Portuguesa
(LP), ou estágio em Língua Inglesa (LI), e a seção do relatório em que o fragmento
reproduzido foi retirado (Informante 01, Estágio I, 2011.1 - LP, corpo do relatório,
por exemplo).
Nos exemplos reproduzidos, os recursos que expressam projeção que marcam vo-
zes alheias e próprias presentes nos fragmentos analisados foram sublinhadas com li-
nha ondulada. Para evitarmos certas digressões, destacamos em sublinhado com linha
reta alguns elementos metaenunciativos, como aspas, parênteses, número de capítulo,
título de capítulo, seção e página em que a procedência da voz alheia é sinalizada.
As passagens textuais selecionadas para investigação neste trabalho foram trans-
critas conforme os originais. Não realizamos qualquer correção linguística, até porque
esse pode ser dado relevante para a pesquisa.

PROJEÇÃO DE CITAÇÃO DA LITERATURA CIENTÍFICA


Ao analisarmos o fragmento reproduzido adiante, retirado de um dos relatórios,
verificamos que o enunciador destaca a importância da utilização do dicionário no
contexto escolar, como um instrumento didático potencializador do processo de ensi-
no e aprendizagem dos alunos, e a articulação desse instrumento como uma ferramen-
ta que auxilia o estudo do conteúdo gramatical.
• Fragmento 01:

A utilização do dicionário escolar como instrumento de ensino, pode ser uma


forma inovadora de auxiliar o livro didático, e prender a atenção dos alunos no
ensino da gramática, já que os mesmos sofrem diiculdades na leitura e sinônimos
de inúmeras palavras. (...)

De acordo com Francisco Borba (2001, p. 148),


O dicionário é a documentação mais importante que nós temos no léxico da lín-
gua portuguesa. É o repositório da língua como um todo, que documenta todos14 os
tempos e a forma como o português chega até nós. Reflete a língua tal qual ela é, ao
contrário da gramática, que explica como a língua deve ser.
Com isso vemos que há sim uma ligação entre o uso do dicionário em sala de
aula e o ensino da gramática, pois um pode auxiliar o outro, facilitando o processo
14
Apesar de não ser nosso interesse aqui, destacamos que, para facilitar nossa compreensão, reproduzimos os
elementos omitidos na citação pelo aluno-mestre em negrito (que documenta todos; o), os quais possivelmente
não foram mencionados por descuidos do enunciador na digitalização da produção escrita.

212 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

de ensino aprendizagem que o professor se dispõe a percorrer durante toda sua vida
profissional. Desse modo, como o responsável em grande parte pela construção do
conhecimento, cabe ao docente buscar formas inovadoras de ensino, trazendo para si
a responsabilidade mútua de fazer com que seus alunos aprendam e não apenas decore
as normas gramaticais sempre tão necessárias na vida escolar. (Informante 01, Estágio
III, 2011.2 – LP – Corpo do relatório).
No fragmento mencionado, observamos logo na primeira oração que o aluno-
-mestre introduz seus pontos de vista e atenua o grau de compromisso com suas afir-
mações, ao utilizar o atributo modal de probabilidade pode ser. Esse atributo modal
é uma construção interpessoal, empregada pelo enunciador para estabelecer com o
leitor um diálogo. Neste diálogo, negociam-se os possíveis contra-argumentos, consi-
derando que existem posicionamentos alternativos contrários. Por meio deste recur-
so, diminui-se o grau de comprometimento e certeza com o conteúdo declarado e
produz-se um efeito de suposição. É uma estratégia para evitar imposição de pontos de
vista. O mesmo ocorre no terceiro parágrafo, reproduzido no fragmento, na seguinte
construção: pois um pode auxiliar o outro.
Uma voz de autoria da literatura científica é trazida na passagem, alinhada ao
ponto de vista do aluno-mestre, enunciador do trecho exibido, de forma que as enun-
ciações reproduzidas acabam sendo fundamentadas no dizer do outro. Nesse sentido,
a responsabilidade do dizer do aluno-mestre não é somente sua, mas do outro que o
compõe, que o entreglosa.
Conforme depreendemos a partir da leitura do fragmento exibido, o instrumento
de ensino mencionado, no ponto de vista do enunciador, deve ser aplicado nas aulas
na educação básica, por ser avaliado no subsistema de apreciação como inovador, assim
como revela o atributo forma inovadora. Esse mesmo instrumento permite prender a
atenção dos estudantes no ensino dos conteúdos gramaticais. O uso do processo mate-
rial sofrem (os mesmos sofrem dificuldades na leitura e sinônimos de inúmeras palavras) en-
fatiza como é sensível para os participantes alunos lerem e tomarem conhecimento dos
sentidos das inúmeras palavras, por eles desconhecidas, presentes nos livros didáticos.
Acreditamos que o processo sofrer é mais um recurso empregado para intensificar
o próprio ponto de vista do enunciador, fortalecendo assim sua voz. Ao mesmo tem-
po, a oração em que esse processo é utilizado pode revelar as experiências vivenciadas
na prática do estágio, já que a escrita do relatório é resultado final de situações peda-
gógicas experienciadas. Nesse caso, o aluno-mestre informa ao seu leitor que utilizou
o dicionário em suas aulas para auxiliar os conteúdos do livro didático, e que essa
estratégia foi bem sucedida, pois possivelmente foi uma forma inovadora de ensino,
uma forma de manter os estudantes atentos às aulas.
Para confirmar e fundamentar as argumentações enunciadas, o autor do fragmen-
to reproduz uma citação direta da literatura científica. Tal citação permite-nos reco-

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 213


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nhecer a voz alheia que é divulgada no excerto, como também por meio da circunstân-
cia de ângulo indicando ponto de vista de acordo com Francisco Borba, e os elementos
metaenunciativos destacados em sublinhado.
Neste fragmento, a circunstância de ângulo indicando ponto de vista destacada é
um recurso de projeção com função de citação que nominaliza implicitamente o uso
do processo mental cognitivo pensar. Esse recurso constrói importância e valor aos sig-
nificados enunciados e a fonte de referência, servindo para ligar/arquitetar as ideias do
aluno-mestre, mostradas nos parágrafos anteriores, com as ideias legitimadas da voz de
autoria. O recuo textual é outra forma metaenunciativa para intensificar a voz alheia
proclamada através da citação direta. Tanto o recuo textual, como a citação direta, são
recursos do Sistema de projeção.
A citação reproduzida no fragmento introduz o discurso de que o dicionário é um
artefato de grande valor cultural, pois, conforme enunciado pelo autor Francisco Bor-
ba, este artefato é um tipo de repositório, de documento onde encontramos o registro
lexical da língua, vigente na sociedade, diferentemente da gramática normativa que
apresenta as prescrições e regras de funcionamento estrutural de uso da língua.
O autor citado aprecia e supervaloriza o documento de registro lexical da língua,
ao graduar a força avaliada, por meio do elemento de intensificação mais importante,
na oração, O dicionário é a documentação mais importante que nós temos no léxico da
língua portuguesa.
O enunciador do fragmento exibido também utiliza o Sistema de Avaliatividade
no início do trecho destacado, acentuando o valor do instrumento didático de ensino
por ele proposto, por meio da oração [o dicionário é] um importante instrumento no
processo ensino aprendizagem. Nessa situação, percebemos um alinhamento entre a voz
de autoria e a voz do próprio estagiário. No primeiro caso, a voz de autoria refere-se ao
instrumento mencionado como uma riqueza social; no segundo caso, no contexto que
a citação é empregada, este recurso é utilizado para potencializar o ensino.
Na citação direta da voz de autoria, chamamos a atenção para o uso do processo
mental de cognição refletir, em: Reflete a língua tal qual ela é; e, o processo verbal expli-
car, em: gramática que explica como a língua deve ser. Nessas orações, apesar de ambos
os processos não possuírem um participante experienciador do fenômeno projetado,
nem mesmo um dizente realizando a projeção, os fatos projetados ocorrem impessoal-
mente. Portanto, nessas orações temos uma projeção por meio de um processo mental
cognitivo impessoal e uma projeção verbal, por meio de um processo dizente impesso-
al. Ambas as projeções possuem função de relato e mostram como Borba compreende
a função do dicionário e da gramática.
Após a reprodução da voz alheia, a voz do autor do fragmento é novamente per-
cebida no enunciado de forma explícita, por meio de outra oração (Com isso vemos que
há sim uma ligação entre o uso do dicionário em sala de aula e o ensino da gramática),

214 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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que utiliza o processo mental de percepção vemos (com isso vemos que). Neste caso, o
processo mental de percepção destacado é entendido como um recurso do Sistema
de projeção de fatos que acomoda uma projeçao pré-existente, indicando eu (aluno-
-mestre) entendo Y, ou compreendo Y. Esta projeção possui função de relato.
Esse exemplo nos mostra que não existem padrões definidos de ocorrências do
Sistema de projeção no Português Brasileiro. O Sistema de projeção para ser identifi-
cado depende do contexto de análise do registro. Inúmeras possibilidades que adotem
os subsídios da LSF são aceitáveis, já que esse sistema é disperso na léxico-gramática.
O grupo nominal há sim, nominalizado pelo processo existencial haver, mostrado
na oração reproduzida no parágrafo anterior, contradiz as vozes que dizem que a arti-
culação proposta pelo acadêmico (dicionário x gramática x livro didático) não é possí-
vel. Destacamos, ainda que, a construção com isso vemos que, em que temos uma pro-
jeção mental de percepção, também possui a finalidade de proporcionar a produção
escrita, à progressão do fluxo informacional. Essa construção orienta as argumentações
tecidas e convoca o locutor à concordância diante do pronunciamento de que a citação
exibida comprova que o ponto de vista inicial defendido pelo aluno-mestre é mesmo
verdadeiro. Ou seja, é possível usar o dicionário para subsidiar o ensino da gramática
e os conteúdos do livro didático.
Com a finalidade de retomar e prosseguir as discussões tecidas, o enunciador do
fragmento emprega o Tema textual desse modo, no mesmo parágrafo que segue a cita-
ção direta apresentada, presente no Tema oracional Desse modo, como o responsável em
grande parte pela construção do conhecimento, cabe ao docente. Esse Tema textual serve
para retomar o ponto de partida da mensagem exibida na oração anterior e nos pará-
grafos anteriores, estabelecendo a mensagem uma função coesa e um efeito retórico
de background.
Nesta oração, compreendemos o uso do modalizador cabe ao docente como uma
forma de suavizar os deveres do profissional do ensino. Para não dizer diretamente o
professor deve, ou o professor tem que, o aluno-mestre prefere empregar a escolha lexical
cabe ao docente. Esta escolha permite-nos caracterizar a escrita reflexiva profissional
como uma escrita construída com enunciados modalizados, especialmente para indi-
car deveres, obrigações e permissões docentes.
Numa nova unidade de informação, presente neste mesmo parágrafo, o aluno-
-mestre sinaliza algumas responsabilidades e obrigações do professor-colaborador,
como: promover a aprendizagem dos estudantes e usar estratégias inovadoras de ensi-
no. Essas obrigações são perceptíveis no fragmento através das escolhas indicadoras de
ações e acontecimentos, nos processos materiais buscar (participante: professor - meta
a ser alcançada pelo participante: formas inovadoras de ensino), fazer (função do profes-
sor - por em prática a meta: com que seus alunos aprendam e não apenas decore normas
gramaticais), e na nominalização trazendo.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 215


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A meta apontada por meio dos processos materiais e da nominalização destacada


apontam indiretamente para o discurso acadêmico de que a gramática normativa deve
ser ensinada a partir do uso, no trabalho com gêneros autênticos, contribuindo para o
desenvolvimento do letramento do aprendiz. No entanto, na oração seguinte, as nor-
mas gramaticais sempre tão necessárias na vida escolar, observamos que a própria voz do
acadêmico, aparece desencontrada e desalinhada, com a voz por ele manifestada ante-
riormente, revelando-nos certo conflito entre as vozes do próprio autor do fragmento.
Esse conflito, também é uma marca comum da escrita reflexiva profissional. Ou seja,
uma escrita elaborada com poucos critérios e propósitos no contexto investigado.
No fragmento exibido, entendemos os recursos de projeção destacados como prá-
tica acadêmica comum na escrita reflexiva profissional dos relatórios. Esses recursos
nos permitem identificar vozes de autoria e as próprias vozes dos enunciadores.
São estratégias utilizadas em função de intensificar, fortalecer e legitimar ponto de
vista; formas de relacionar e arquitetar ideias, proporcionando o fluxo informacional
da mensagem; oferecer e sugerir métodos de ensino; meios empregados para apontar
tipos de saberes acadêmicos orientadores das estratégias didáticas de ensino, utilizadas
nas aulas práticas da disciplina de estágio.
Na escrita reflexiva profissional dos relatórios, os recursos de projeção são acom-
panhados por diversas outras escolhas léxico-gramaticais, muitas das quais caracteri-
zam está escrita, como mais agradável, principalmente ao indicar, ou sugerir deveres e
obrigações docentes. É um tipo de escrita que contribui para a construção da identi-
dade profissional do aluno-mestre.

PROJEÇÃO DE CITAÇÃO DA
LITERATURA NÃO CIENTÍFICA
Apresentamos outro fragmento retirado da introdução de um dos relatórios inves-
tigados, aonde o sujeito-enunciador entreglosa sua voz, com a voz de um enunciado
indireto da literatura não científica, pertencente à obra Pais Brilhantes professores Fas-
cinantes, autoria de Augusto Cury.
• Fragmento 02:

Trabalhamos com uma técnica sugerida por Augusto Cury, em “Pais Brilhantes
Professores Fascinantes”, no capitulo cinco, sub. item quatro, pagina 129 onde ele
chama de: A Escola Dos Nossos Sonhos, que consiste na Exposição dialogada: a arte da
pergunta. O objetivo desta técnica: desenvolver a consciência critica promovendo o
debate de ideias, estimulando a educação participativa, com a tentativa de superar
a insegurança, debelarem a timidez e melhorar a concentração. (Informante 02,
Estágio III, 2011.2 – LP – Introdução do relatório).

216 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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No fragmento reproduzido, destacamos o uso do recurso de projeção por meio


da circunstância de ângulo indicando fonte que envolve um processo verbal sugerida
por Augusto Cury. Esta projeção possui função de relato e é antecedida pelo processo
material trabalhamos presente na oração Trabalhamos com uma técnica sugerida por
Augusto Cury.
Nesta oração, o participante envolvido (participante: aluno-mestre) informa a
fonte de origem de uma proposta de atividade por ele utilizada nas aulas de estágio,
aplicadas com os seus beneficiários (beneficiários do processo material trabalhar: estu-
dantes da educação básica), no contexto da educação básica.
Ao empregar a circunstância de ângulo apontada, além de informar a proposta de
atividade utilizada no ensino, inconscientemente o aluno-mestre se exime dos erros
cometidos na prática do estágio, já que ao utilizar uma proposta de trabalho indicado
por uma voz de autoria da literatura não científica, ou seja, um saber experiencial
alheio, os erros, falhas e benefícios devem ser do outro, e não de mim mesmo (aluno-
-mestre) que as apliquei, reduzindo a possibilidade de contestação, ou mesmo de uma
avaliação negativa.
Mesmo não sendo nosso propósito, destacamos no fragmento o uso de um encai-
xamento que pode ser encontrado no processo relacional é, que aparece numa oração
elíptica, recuperada por meio dos dois pontos, na seguinte oração: O objetivo desta
técnica: [é] desenvolver a consciência critica. Aqui o encaixamento mencionado possui
função de adicionar informações ao assunto dado.
Após informar a fonte da atividade utilizada nas aulas de estágio, o enunciador do
fragmento tenta parafrasear o objetivo da proposta sugerida por Cury, no entanto, a
tentativa de construir uma paráfrase apresenta-se com alguns problemas de construção
textual, os quais foram por nós destacados no excerto exibido em negrito.
Reproduzimos adiante a citação literal do discurso direto alheio da literatura não
científica. Em sublinhado destacamos alguns elementos eliminados pelo aluno-mestre
no fragmento anteriormente reproduzido.
Objetivos desta técnica: desenvolver a consciência crítica, promover o debate de idéias,
estimular a educação participativa, superar a insegurança, debelar a timidez, melhorar a
concentração. (Citação direta de CURY, 2008, p. 129).

Na citação reproduzida anteriormente de autoria de Augusto Cury, observamos a


presença do paralelismo sintático, recurso coesivo de repetição, com os seguintes proces-
sos: desenvolver, promover, estimular, superar, debelar e melhorar. A carga semântica desses
processos revela as etapas que devem ser seguidas na aplicação da técnica proposta.
Na tentativa de paráfrase elaborada pelo aluno-mestre, esse mesmo recurso de
coesão não ocorre; no entanto, alguns elementos para estabelecer a conexão entre as
orações (Trabalhamos com uma técnica sugerida por Augusto Cury; onde ele chama de;

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 217


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que consiste na; o; com a tentativa de; e) foram utilizados como sutis alterações em rela-
ção ao dizer da fonte, revelando os poucos momentos em que a voz do aluno-mestre
se faz presente no trecho selecionado.
Na citação literal da literatura não científica reproduzida, os processos verbais
apontados como possíveis ações que devem ser seguidas pelo profissional do ensino,
ao serem retomadas pelo aluno-mestre na produção escrita do relatório, em forma de
paráfrase, alguns modalizadores foram por ele empregados para suavizar os compro-
missos e obrigações docentes, como estimulando e promovendo. Os usos dos modali-
zadores, como os exemplificados, são comuns nesses documentos e característicos da
escrita reflexiva profissional, assim como já apontado no fragmento 01, analisado na
seção anterior.
Destacamos ainda a realização do processo verbal chama de antecedido pelo par-
ticipante ele (Augusto Cury), o qual constrói a projeção para o discurso de outrem de
forma explicita, revelando certa exaltação da voz propagada no enunciado. Neste caso,
a projeção destacada possui função de relato.
A voz alheia da literatura não científica mostrada no fragmento, possivelmente
revela que quando o aluno-mestre utilizou em suas aulas a ferramenta de ensino Expo-
sição dialogada: a arte da pergunta, inconscientemente este constrói uma imagem de si
como ‘bom professor’, aquele que investe na promoção de ideias e relações dialógicas
entre professor e aluno; desenvolve a consciência crítica do aprendiz; colabora para a
superação de inseguranças, timidez e favorece a concentração.
Esta imagem pode até mesmo ser uma estratégia para prestar contas ao leitor do
relatório, principalmente ao professor-formador da disciplina de estágio, que as ações
desenvolvidas na prática pedagógica foram cumpridas satisfatoriamente, já que este
documento é o principal instrumento avaliador.
No fragmento exibido, identificamos que o enunciador do fragmento, ao reportar
a voz do discurso da literatura não científica, realizou apenas algumas modificações
estruturais linguístico-discursivas citadas ipsis verbis, tentando reformular e recriar o
discurso alheio.
Observamos que a voz do enunciador aparece na passagem em poucos momen-
tos, principalmente por meio dos recursos de projeção usados para informar origem
das estratégias didáticas empregadas no estágio e nas modalizações apontadas que su-
avizam os deveres e obrigações docentes.
Diante dos fragmentos exibidos, e dos demais dados de pesquisa, constatamos que
uma das características da escrita reflexiva profissional dos relatórios de estágios é o
emprego de literatura não científica para fundamentar as argumentações dos enuncia-
dores. No entanto, esse tipo de literatura, mesmo sendo elaborado numa comunidade
acadêmica, e fazendo parte das práticas socioculturais, na área de Letras/Linguística,

218 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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não é considerado saber legitimado.


No quadro abaixo, estão resumidos os recursos do Sistema de projeção, identifi-
cados nos dois trechos analisados:
Quadro 3: Tipos de projeção identiicado no registro relatório de estágio

Tipos de projeção identificado no


Exemplos
registro relatório de estágio
Projeção de ideias por meio de uma circunstância de ângulo
De acordo com Francisco Borba
indicando ponto de vista, nominalizada implicitamente
(...)
em um processo mental cognitivo (pensar)
Projeção de ideias por meio de um processo mental (....) Reflete a língua tal qual ela é
cognitivo impessoal (Reflete) (...)
Projeção de locução por meio de um processo verbal (...) gramática que explica como a
dizente impessoal (Explica) língua deve ser.
Com isso vemos que há sim uma
Projeção de fatos por meio de um processo mental de ligação entre o uso do dicionário
percepção (vemos) em sala de aula e o ensino da
gramática (...)
Projeção de locução por meio de circunstância de ângulo
(...) sugerida por Augusto Cury
indicando fonte que envolve o uso de um processo
(...)
verbal (sugerir)
Projeção de locução por meio de um processo verbal (chamar) (...) ele chama de (...)

ALGUMAS PALAVRAS FINAIS


Diante das discussões apresentadas, considerando a visão Sistêmico-Funcional da
linguagem, neste trabalho foi possível observar que a projeção é um Sistema semânti-
co disperso gramaticalmente, operado em mais de um lugar na gramática Sistêmico-
-Funcional, tanto na Língua Inglesa, como também no Português Brasileiro.
Esse sistema realiza-se simultaneamente num nível mais léxico-gramatical através
da metafunção ideacional por meio de Processos, Circunstâncias e Participantes, e
interconectadamente num nível mais discursivo através da metafunção interpessoal
no Sistema de Avaliatividade, no subsistema de engajamento. A projeção também
faz algumas incursões no nível da metafunção textual, concernentes aos significados
ideacionais e interpessoais. Portanto, não existem modelos definidos de realizações de
projeção. Este recurso pode ocorrer numa variedade de ambientes gramaticais.
A partir das leituras e reflexões empreendidas, questionamo-nos: (a) Qual a fun-
ção do Sistema semântico de projeção, utilizados na escrita reflexiva profissional de
relatórios de estágios supervisionados na Licenciatura em Letras em evidência? (b)
Quais as contribuições e relevância da escrita reflexiva profissional para a formação
do letramento acadêmico do professor em formação? Como este trabalho faz parte

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 219


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de uma pesquisa inicial de doutorado, para os questionamentos apontados que nos


inquietam, ainda não temos respostas precisas, no entanto, ao longo deste trabalho
apontamos algumas possíveis respostas para essas questões.
Para as atividades futuras, comporemos categorias analíticas para nomear as
estratégias utilizadas pelos alunos-mestre no trabalho de citação, tomando como
referência o letramento acadêmico, o letramento do professor em função de uma
escrita reflexiva profissional.
Por fim, ao construirmos nossas argumentações e reflexões, utilizamos as práticas
de citação para entreglosarmos “nossas vozes alheias” com vários ecos dialógicos de
outros enunciados, através de diversas formas linguísticas de citar e reportar o discurso
do outro, inclusive por meio de várias ocorrências léxico-gramaticais do Sistema se-
mântico de projeção, na tentativa de interagirmos com os pensamentos alheios para
sustentar teoricamente algumas definições apresentadas, fundamentar as afirmações
tecidas e introduzir nossos pontos de vista.
Assim também como os alunos-mestre, autores dos fragmentos apresentados ten-
tam realizar na escrita reflexiva profissional dos relatórios, ao empregarem citações
renomadas da literatura científica e também de vozes que não são consideradas legiti-
madas na academia, por meio da literatura não científica.
Na escrita dos relatórios, as práticas de citação dessas literaturas apresentam-se de
forma híbrida, constituída pelo entrelaçamento do discurso teórico-interativo dos sabe-
res sábios, e os saberes didatizados rememorados na elaboração dessa produção escrita.

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PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL NA ESCRITA


REFLEXIVA PROFISSIONAL: ABORDAGEM SISTÊMICO-
FUNCIONAL NA LINGUÍSTICA APLICADA

PRE-SERVICE TEACHERS IN THE REFLEXIVE PROFESSIONAL


WRITING: SYSTEMIC FUNCTIONAL APPROACH IN APPLIED
LINGUISTICS
Bruno Gomes Pereira*
Wagner Rodrigues Silva**

RESUMO: Neste artigo, realizamos uma articulação teórica entre pressupostos da


Linguística Aplicada e da Linguística Sistêmico-Funcional, sendo esta última nossa
principal teoria linguística para microanálise dos dados: relatórios escritos de estágio
supervisionado obrigatório, produzidos por professores em formação inicial. Inves-
tigamos como esse professor, aqui denominado de aluno-mestre, autorrepresenta-se
por meio da escrita reflexiva profissional dos referidos relatórios em uma Licenciatura
Plena em Matemática. A metodologia investigativa é caracterizada pela abordagem
qualitativa e pela pesquisa documental. Os resultados mostram que a escrita reflexi-
va profissional do gênero focalizado é pouco aproveitada para o empoderamento do
aluno-mestre, no contexto da licenciatura. Apesar de os alunos-mestre conhecerem
os mecanismos linguísticos indicadores de reflexão no texto, o contexto acadêmico
não proporciona situações que os levem a desenvolver um olhar mais crítico sobre sua
própria atuação em sala de aula da Educação Básica.
Palavras-chave: letramento do professor; escrita acadêmica; gênero textual.
ABSTRACT: In this paper a theoretical articulation between assumptions from
Applied Linguistics and Systemic Functional Linguistics have been made. The lat-
ter is our main linguistic theoretical support regarding data microanalysis: written
reports of mandatory teaching practice course produced by pre-service teachers. We
investigated how the pre-service teacher represents him/herself through the reflexive
professional writing of the above mentioned reports in a Mathematic Teaching Un-
dergraduate Program. The investigative methodology is characterized by the qua-
litative approach and the documental research. The results show that the use of
professional reflexive writing is taken for granted in the context of teaching under-
graduate programs. Although pre-service teachers are acquainted with the linguistic
mechanisms responsible by the reflection in the text, the academic context does not
provide situations that enhance a more critical view about their own performance
in the Basic Education classroom.
*
Universidade Federal do Tocantins (UFT), Araguaína, Mestre em Letras: Ensino de Língua e Literatura, Professor substituto.
E-mail: brunogomespereira_30@hotmail.com.
**
Universidade Federal do Tocantins (UFT), Araguaína, Professor Associado I no Programa de Pós-graduação em Letras:
Ensino de Língua e Literatura. E-mail: wagnersilva@uft.edu.br.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 223


Universidade Federal da Grande Dourados

Keywords: teacher education; academic writing; textual genre.


[...] como podemos criar inteligibilidades sobre a vida contemporânea ao produzir
conhecimento e, ao mesmo tempo, colaborar para que se abram alternativas sociais
com base nas e com as vozes dos que estão à margem: os pobres, os favelados, os
negros, os indígenas, os homens e mulheres homoeróticos, homens e mulheres em
situação de diiculdades sociais e outros, ainda que eu os entenda como amálgamas
identitários e não de forma essencializada. (MOITA LOPES, 2006, p. 86).

INTRODUÇÃO
De acordo com os dizeres da epígrafe deste artigo, a vida contemporânea produz
diferentes conhecimentos, que colaboram para múltiplas leituras a respeito dos fenô-
menos no mundo. Nesse sentido, consideramos que a linguagem seja perpassada por
diferentes ideologias capazes de construir identidades plurais3.
No cenário típico de um mundo pós-moderno, é necessário levarmos em conta
o que Moita Lopes (2006) chama de vozes do sul. Recentes pesquisas da área da lin-
guagem procuram vozear atores sociais que estão situados em contextos periferizados
socialmente. O propósito é compreender o que estas vozes suleadas4 produzem em seus
respectivos contextos de uso linguístico e refletir como tais vozes se despontam em um
mundo globalizado, influenciando pessoas de todas as esferas sociais.
Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla desenvolvida no Mestrado em
Letras: Ensino de Língua e Literatura, da Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Na ocasião, focalizamos as Licenciaturas paraenses em Letras, Pedagogia e Matemá-
tica, então consideradas como grupos periféricos ao tomarmos como referência o pró-
prio contexto social brasileiro (PEREIRA, 2014). Neste artigo, focalizamos apenas
a Licenciatura em Matemática, mais precisamente, algumas autorrepresentações dos
professores em formação inicial, construídas nos relatórios de estágio obrigatório dessa
licenciatura, realizados numa escrita reflexiva profissional pouco desenvolvida.
Dois pressupostos guiam nossas reflexões ao considerarmos como grupo periféri-
co a licenciatura a que se vincula o corpus aqui investigado. O primeiro relaciona-se à
realidade do contexto acadêmico paraense comparado ao meio universitário de outras
Regiões brasileiras. Ou seja, torna-se periférico pela própria ideia de marginalização
que é conferida ao Estado do Pará em relação a outros Estados brasileiros. O segundo
relaciona-se à ideia de periferização das próprias licenciaturas, quando comparadas a
cursos de bacharelado na mesma região paraense.

3
Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito das atividades cientíicas dos grupos de pesquisa Práticas de Linguagens em
Estágios Supervisionados – PLES (UFT/CNPq) e Sistêmica Através das Línguas – SAL (PUC-SP/CNPq). Contribui para
o projeto de pesquisa “Escrita relexiva proissional nas licenciaturas: da gramática o discurso” (CNPq nº 407572/2013-9;
PROPESQ/UFT nº AG#001/2014).
4
A forma verbal sulear é utilizada por Kleiman (2013), que faz referência à concepção de vozes do sul tratada por Moita
Lopes (2006) em sua obra Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar.

224 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

Para darmos vozes aos atores da pesquisa, situamos nosso trabalho no campo
interdisciplinar da Linguística Aplicada (LA), considerando, precisamente, os estudos
do letramento do professor (KLEIMAN, 2008; 2007), bem como os estudos a res-
peito da própria abordagem não disciplinar da LA (MOITA LOPES, 2006; SIGNO-
RINI, 1998). A LA apresenta um perfil essencialmente social, o que converge com o
objetivo buscado neste artigo.
Para microanálise dos dados, mobilizamos pressupostos da Linguística Sistêmico-
-Funcional (LSF). Na LSF, o texto é considerado como célula central de análise, onde
ocorre a materialização das ideologias do contexto social em que é produzido. Para
isso, nos estudos sistêmico-funcionais, compreendem-se as padronizações gramaticais
como escolhas léxico-gramaticais motivadas por fatores extralinguísticos (cf. HALLI-
DAY & HASAN, 1989; HALLIDAY, 1994; EGGINS, 2004; GOUVEIA, 2009; SIL-
VA e ESPINDOLA, 2013; HALLIDAY & MATHIESSEN, 2014; THOMPSON,
2014; só para citar alguns), permitindo-nos articular texto/linguagem/sociedade.
A interface proposta entre LA e LSF, objetivando a microanálise dos relatórios de
estágio supervisionado, é constituída por dois contrapontos entre essas vertentes de
estudos: o fato de ambas serem, por excelência, abordagens sociais e interdisciplinares
(SILVA e ESPINDOLA, 2013).
Além desta Introdução, Considerações finais e Referências, este artigo está organizado
em cinco principais seções: 1. Interface entre LA e LSF, estabelecemos um diálogo entre
as duas abordagens, partindo do pressuposto de que ambas nutrem um olhar social a
respeito dos estudos da linguagem; 2. Conhecendo um pouco da LSF, apresentamos algu-
mas noções teóricas da abordagem sistêmico-funcional; 3, Contexto de Coleta dos Dados,
apresentamos o contexto acadêmico onde os dados deste artigo foram produzidos e
coletados; 4. Metodologia para Análise dos Dados, discorremos a respeito da metodologia
de pesquisa adotada para o tratamento dos dados; e 5. Autorrepresentações de Alunos-
-Mestre, realizamos a microanálise dos relatórios de estágio. Essa última seção, por sua
vez, está organizada conforme três categorias de autorrepresentações dos alunos-mestre
identificadas na pesquisa: Ressignificação da sala de aula pelo aluno-mestre; Concepção da
escolha metodológica; e Autoavaliação do aluno-mestre no Estágio Supervisionado.

INTERFACE ENTRE LA E LSF


O mundo contemporâneo se desenvolve em meio a instabilidades sociais que
configuram seres humanos igualmente fluidos. Logo, essa realidade dita líquida é re-
sultado de uma sociedade pós-moderna, caracterizada por relações pessoais cada vez
mais frágeis (cf. BAUMAN, 2004).
Em meio a tantos questionamentos, a língua é adequada às novas demandas so-
ciais, convergindo com as transformações do ser humano e da sociedade. Portanto, é

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 225


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impossível separarmos língua e sociedade, tendo em vista que uma sobrevive na outra,
pois ambas são dinâmicas por natureza.
Os estudos da linguagem estão cada vez mais abertos às contribuições de outros
campos do conhecimento humano, com o objetivo de compreender fenômenos da
língua por ângulos diferentes, complexificando-os consequentemente.
Em outras palavras, as ramificações mais contemporâneas das Ciências Humanas
procuram perceber a linguagem como elo entre diferentes domínios sociais, estando
sujeita a múltiplas funções no momento da interação. Portanto, faz-se necessário con-
siderar a linguagem como elemento essencialmente discursivo, o que implica dizer
que, para a entendermos, é necessário mobilizarmos teorias não apenas linguísticas,
mas também psicológicas, sociológicas, filosóficas, etc.
Nesse contexto, surge a LA que, concebida como inter/trans/indisciplinar, com-
preende os fenômenos linguísticos a partir de situações sociais concretas. Para tanto, os
linguistas aplicados mobilizam diferentes teorias do saber humano com o propósito de
analisar o objeto de estudo sob diferentes pontos de vista. A LA distancia-se cada vez
mais da Linguística Teórica, aproximando-se de outras disciplinas, como a Sociologia
e Educação, por exemplo.
Não estamos propondo aqui uma visão disciplinar da LA. Partimos da premissa
de que a LA é, na verdade, uma nova perspectiva de se fazer ciência, quando o objeto
de investigação é a própria linguagem. Concordamos com Signorini (1998, p. 100)
ao afirmar que a LA é “uma espécie de interface que avança por zonas fronteiriças de
diferentes disciplinas”. Ainda a respeito do diálogo da LA com outras disciplinas ou
campos do conhecimento, compreendemos que:
Está ocorrendo na produção do conhecimento a compreensão de que uma única
disciplina ou área de investigação não pode dar conta de um mundo luido e globalizado
para alguns, localizado para outros, e contingente, complexo e contraditório para
todos (MOITA LOPES, 2006, p. 99).

A literatura até aqui revisada ilustra o ponto-chave da pesquisa apresentada neste


artigo: o diálogo entre a LA e outras áreas do conhecimento humano é algo que retrata
a real complexidade do homem expressa por meio da língua, que é, nesse sentido, um
instrumento semiótico. Nessa perspectiva, compreendemos ter “a concepção de língua
na LSF como apenas um dentre os diversos sistemas semióticos existentes. Um aspecto
diferencial da língua, no entanto, é que ela é o único dentre os sistemas semióticos
capaz de descrever a si mesma” (VIAN JR, 2013, p. 126).
A partir do caráter semiótico da língua, procuramos estabelecer uma interface
entre a LA e a LSF. A preocupação com o contexto de uso da linguagem parece ser o
ponto de intersecção de ambas. Portanto, são teorias sociais por excelência.

226 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


Universidade Federal da Grande Dourados

A LSF é uma abordagem social, porque não desvincula a língua de seu contexto
situacional e cultural. O texto é resultado de uma série de escolhas léxico-gramaticais,
motivadas pelo meio extralinguístico. Portanto, é uma representação do contexto em
que opera (cf. EGGINS, 2004; HALLIDAY e MATHIESSEN, 2004; GOUVEIA,
2009; SILVA e ESPINDOLA, 2013THOMPSON, 2014; HALLIDAY e MATHIES-
SEN, 2014; só para citar alguns). Assim, a interface entre LA e LSF emerge justamente
do diálogo que ambas mantém com a sociedade contemporânea.
Outro contraponto importante na relação LA/LSF é o fato de ambas terem cará-
ter eminentemente interdisciplinar. As pesquisas que compartilham essa abordagem
não disciplinar, ao produzir ciência, valorizam diversas maneiras de estudar os aspectos
da linguagem, podendo contribuir para a descrição tipológica dos usos das formas
linguísticas.
Como a intenção desta pesquisa é justamente analisar a escrita reflexiva profissio-
nal, em relatórios de estágio supervisionado, a partir da descrição de autorrepresenta-
ções de alunos-mestre, a metodologia de análise textual oferecida pela LSF nos ajuda
a entender o contexto maior de produção dos relatórios.
Dessa forma, a reflexão sobre as escolhas léxico-gramaticais do aluno-mestre pode
contribuir para a formação de profissionais mais conscientes dos usos linguísticos e
gramaticais na modalidade escrita da língua, especialmente no que se refere à escrita
reflexiva profissional na licenciatura.

CONHECENDO UM POUCO DA LSF


Não pretendemos apresentar aqui um aporte teórico exaustivo da LSF. A aborda-
gem sistêmico-funcional da linguagem concebe o texto como unidade central do pro-
cesso interacional, sendo constituído por escolhas léxico-gramaticais motivadas por fa-
tores pragmáticos. Para mais informações, consultar Eggins (2004), Halliday (1994),
Halliday & Mathiessen (2004; 2014), Gouveia (2009); Silva e Espindola (2013) e
Thompson (2014); só para citar alguns.
A língua é sistêmica, pois pode ser expressa de várias maneiras, e é funcional, tendo
em vista que desempenha uma dada função social, de acordo com o contexto de uso. Na
LSF, a língua é um instrumento sociossemiótico devido aos sentidos construídos a partir
dela serem de ordem estritamente social (cf. HALLIDAY & HASAN, 1989).
Partindo desse pressuposto, a língua é apenas um instrumento sociossemiótico
em meio a tantos outros disponíveis socialmente. O que a diferencia em relação aos
demais é sua natureza metalinguística, ou seja, a língua é o único instrumento socios-
semiótico capaz de se autodescrever.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 227


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A LSF é uma abordagem de caráter pragmático, a qual propõe o contexto como


motivador das escolhas léxico-gramaticais no momento da produção textual. Estamos
nos referindo ao que se convencionou chamar de contexto de cultura e contexto de situação.
As noções de contexto de cultura são motivadas pelas teorias do antropólogo
Malinowski, que compreende a cultura do ponto de vista macro analítico. O autor
acreditava abarcar questões sociais, políticas, ideológicas e econômicas por meio da
noção de cultura (MALINOWSKI, 1935; SILVA, 2014a). Trata-se de um contexto
maior, responsável pela configuração do gênero textual, o que determina a “natureza
do código” (HALLIDAY, 1994, p. 14). Na pesquisa apresentada neste artigo, enten-
demos o contexto de cultura como o próprio cenário logístico, econômico e social do
Estado do Pará, constituído por diferentes culturas.
Já o contexto de situação é um contexto menor, em relação ao de cultura, em
que ocorre a materialização linguística do gênero textual por meio do registro. É neste
contexto que, efetivamente, ocorrem as escolhas léxico-gramaticais por intermédio das
metafunções da linguagem. Entendemos o contexto de situação dos dados investiga-
dos como as próprias licenciaturas focalizadas, onde ocorre, de fato, a produção dos
relatórios de estágio supervisionado5.
As metafunções da linguagem agem conjuntamente no momento da materialização
do texto. Conforme Halliday (1994) e Halliday e Mathiessen (2004; 2014), elas são
componentes funcionais da linguagem que atuam na língua como redes, uma vez que
ocorrem simultaneamente. As metafunções estão diretamente relacionas às variantes de
registro: campo, relação e modo. Cada variante está pontualmente articulada a uma dada
Metafunção da Linguagem: ideacional, interpessoal e textual, respectivamente.
Devido às análises desenvolvidas do corpus da pesquisa, focalizamos mais precisa-
mente duas das metafunções da linguagem apresentadas: a ideacional e a textual. Na
primeira, a oração funciona como elemento de representação do mundo. Por meio
dessa metafunção, o usuário da língua exprime sentidos e caracteriza o contexto de
cultura e de situação. Trata-se de uma metafunção que se relaciona diretamente ao
Sistema de TRANSITIVIDADE, que atua na organização do complexo oracional. Este,
por sua vez, se estrutura em Processos, Participantes e Circunstâncias, conforme mostra
o Quadro 1. Esse sistema se desenvolve por meio da relação entre grupos oracionais
verbais, nominais, adverbiais, preposicionais e conjuntivos.

5
É importante considerarmos que as delimitações que apresentamos aos contextos de cultura e de situação são apenas de
natureza metodológica. É impossível demarcar com exatidão o alcance de ambos os contextos, uma vez que estes apresentam
fronteiras instáveis.

228 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Quadro 1: Sistema de Transitividade/Metafunção Ideacional

CATEGORIA LÉXICO-GRAMATICAL RELAÇÃO NO NÍVEL ORACIONAL


Processos Grupo verbal da oração
Participantes Grupos nominais
Grupos adverbiais, frases
Circunstâncias
preposicionais ou conjuntivas.

Nas análises apresentadas adiante, a ênfase recai nos Processos que apontam o
aluno-mestre como sujeito do complexo oracional. Em LSF, entendemos o termo
Processo como a categoria gramatical que designa a ideia de ação ou estado. Dizemos,
então, que tais Processos são classificados em 6 (seis) diferentes tipos. São eles: Mate-
rial, Mental e Relacional – ditos processos principais –, e Comportamental, Verbal e
Existencial – considerados processos intermediários, tendo em vista que sua condição
semântica encontra-se entre os processos principais (cf. HALLIDAY, 1994; HALLI-
DAY & MATHIESSEN, 2004; HALLIDAY & MATHIESSEN, 2014; EGGINS,
2004; THOMPSON, 2014; só para citar alguns).
Na segunda metafunção a ser aqui considerada, a Metafunção Textual, a oração
é vista como mensagem, sendo construída a partir da estrutura Tema e Rema. Esta
metafunção engloba as demais, além de considerar também a textura das produções
linguísticas. Para a metafunção focalizada, compreendemos por textura o resultado da
interação entre as propriedades textuais de coerência e coesão.
A relação Tema/Rema opera no nível da coesão e, até mesmo, coerência, pois estabe-
lece significados no texto entre termos anafóricos e catafóricos (EGGINS, 2004). Devido
à incidência de escolhas temáticas marcadas nas análises dos dados investigados, nossa ên-
fase recai sobre o Tema, elemento que inicia a oração, compreende até o uso do primeiro
elemento de valor experiencial6. O Tema é compreendido como “o elemento que serve
como ponto de partida da mensagem; ele localiza e orienta a oração no seu contexto. O
usuário escolhe o Tema como seu ponto de partida para guiar o interlocutor a desenvolver
uma interpretação da mensagem” (HALLIDAY & MATHIESSEN, 2014, p. 89).
Dentre os vários tipos de Tema, citamos o simples, o complexo, o múltiplo, o
marcado, o não marcado e, quando ocorrem em estruturas temáticas especiais, podem
ser equativos, tematizados e predicados (cf. HALLIDAY & MATHIESSEN, 2004;
HALLIDAY & MATHIESSEN, 2014; THOMPSON, 2014; só para citar alguns).
Como nossa intenção principal é refletir a respeito do caráter semântico da es-
trutura temática da mensagem, não apresentaremos explanações exaustivas dos tipos
de Tema. Nas análises dos dados, atentamo-nos às possibilidades de sentido que o seu
uso causa na oração.
6
De acordo com “o princípio orientador da estrutura temática”, proposto por Halliday e Matthiessen (2014, p. 105),
“o Tema de uma oração termina com o primeiro constituinte que pode ser o participante, circunstância ou processo. Nós
referimos a este constituinte, em sua função textual, como Tema tópico”.

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 229


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CONTEXTO DE COLETA DOS DADOS


Os relatórios que compõem o corpus desta pesquisa foram produzidos em uma
Licenciatura em Matemática, ofertada pela Universidade do Estado do Pará (UEPA),
mais precisamente no campus universitário de Conceição do Araguaia, localizado ao
sudeste do Estado. Analisamos 13 (treze) relatórios de estágio supervisionado produ-
zidos ao final da disciplina Prática de Ensino II. Tais produções foram elaboradas por
duplas de alunos-mestre. Essa disciplina caracteriza o contexto de situação focalizado
na seção anterior deste artigo.
O mapa abaixo mostra o fluxo migratório para Conceição do Araguaia, contri-
buindo para caracterizar o contexto de cultura da região:
Figura 1: Fluxo migratório para Conceição do Araguaia

Fonte: Pereira (2014, p. 28)

230 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Conceição do Araguaia é um município desenvolvido às margens do Rio Ara-


guaia, tendo o turismo como uma das principais atividades econômicas da região.
O intenso fluxo migratório, mostrado na Figura 1, faz de Conceição do Araguaia o
maior campus interiorano de licenciaturas da UEPA, ofertando regularmente cerca de
7 (sete) diferentes licenciaturas. O campus central da instituição está localizado em
Belém, capital do Estado do Pará. Na Figura 1, as linhas vermelhas, direcionadas para
o município de Conceição do Araguaia, indicam o fluxo migratório mencionado.
Na licenciatura focalizada, o estágio supervisionado onde os dados foram pro-
duzidos corresponde ao período de regência de aulas pelo aluno-mestre, na Educação
Básica. Devido à especificidade deste estágio, são recorrentes as autorrepresentações
dos alunos-mestre nos dados investigados, tendo em vista que são relatadas situações
em que o próprio aluno-mestre é o centro da ação.
As disciplinas de estágio supervisionado obrigatório somam um total de 400 (qua-
trocentas) horas, sendo divididas em duas disciplinas anuais de 200 (duzentas) horas
cada, ofertadas nos dois últimos anos da referida licenciatura. O Quadro 2 ilustra a
distribuição da carga horária no contexto das disciplinas de estágio supervisionado na
Licenciaturas em Matemática:
Quadro 2: Carga Horária nas Disciplinas de Estágio

CARGA HORÁRIA PARCIAL


CH
LICENCIA-TURA DISCIPLINA
TOTAL CH 1ª PARTE DO CH 2ª PARTE DO
(3º ANO) ESTÁGIO (4ºANO) ESTÁGIO
Observação Regências
de aulas de aulas
Prática de 200h 200h
Matemática 400h no Ensino no Ensino
Ensino I e II Semestrais Semestrais
Fundamen- Fundamen-tal
tal 2 e Médio II e Médio.

Conforme o Quadro 2, na Licenciatura em Matemática, as atividades de estágio


supervisionado obrigatório são desenvolvidas em 400 (quatrocentas) horas, durante as
disciplinas Prática de Ensino I (ofertada no 3º ano desta licenciatura, quando o aluno-
-mestre apenas observa aulas) e Prática de Ensino II (período de regência de aulas do
aluno-mestre na Educação Básica). Cada disciplina de estágio é ofertada com carga
horária de 200 (duzentas) horas.
Outro ponto importante que contribui para a compreensão do contexto de situa-
ção de produção dos dados analisados é o fato de a licenciatura focalizada ser ofertada
em regime modular. Logo, as disciplinas de estágio supervisionado não se estendem
durante todo o semestre letivo, e sim durante poucos dias úteis. Essa situação faz com
que as práticas do estágio sejam condensadas em razão do curto prazo para desenvolvi-
mento das atividades, devido à própria logística de trabalho da instituição. Conforme

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 231


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mostramos adiante, essa logística afeta diretamente a concepção de escrita orientadora


da produção dos relatórios.
Comumente, a universidade em questão faz lotação de professores substitutos
para ministrarem o estágio supervisionado, o que é justificado pelo número expressivo
de docentes contratados na instituição. Na ocasião da produção dos dados analisados,
as atividades de estágio supervisionado obrigatório foram ministradas por uma profes-
sora substituta com título de especialização. Entretanto, tal situação apresentava um
agravante: a formadora, além de substituta, era também itinerante, ou seja, residia na
capital do Estado do Pará e havia se deslocado para o campus de Conceição do Ara-
guaia apenas para ministrar a disciplina de estágio.
Por isso, o estágio foi ministrado em um tempo ainda menor que o previsto,
devido à formadora já ter compromissos profissionais em outras cidades em datas
próximas ao andamento da disciplina ministrada. Esse contexto descrito não é algo
positivo para o letramento do aluno-mestre, tendo em vista que as condições de oferta
do estágio não oferecem subsídios para o aproveitamento mais significativo da escri-
ta reflexiva profissional. A universidade acaba proporcionando poucos momentos de
reflexão e troca de experiências sobre a prática pedagógica, entre os atores sociais que
participam diretamente do estágio supervisionado obrigatório da licenciatura: aluno-
-mestre, professor-formador e professor-colaborador.
Além disso, o curto espaço de tempo do estágio não permite ao aluno-mestre
desenvolver o processo de reescrita de seus textos. Ao final da disciplina de estágio,
ocorre a entrega do relatório. Este gênero textual, por sua vez, fica indisponível para
consultas posteriores, tanto pelo aluno-mestre que o produziu, quanto por quaisquer
outros membros da comunidade acadêmica. A comunidade acadêmica parece ignorar
o valor dos relatórios de estágio na formação inicial do professor. Essa situação resulta
na construção de um currículo ou, até mesmo, de um letramento oculto, onde, por
exemplo, ensina-se ao profissional em formação que a escrita é produto, diferentemen-
te de um processo de contínuas reformulações e interações, conforme demonstraram
Silva, Santos e Mendes (2014).
Pensamos que isso seja uma problemática bastante preocupante, tendo em vista que
o procedimento de reescrita garante ao texto o aprimoramento tanto do ponto de vista
linguístico, quanto do ponto de vista de desenvolvimento do caráter reflexivo que se es-
pera desses textos (cf. SILVA e MENDES, 2012; SILVA, SANTOS e MENDES, 2014).
O relatório de estágio acaba sendo visto como um mero produto da burocrati-
zação da instituição, produzido apenas para resultar em uma avaliação ao final das
disciplinas de estágio supervisionado obrigatório. A escrita reflexiva profissional desse
gênero textual torna-se algo periferizado pelo meio acadêmico, tendo em vista que pa-
rece não ter participação significativa na formação do aluno-mestre que a produz (cf.
SILVA, 2012; PEREIRA e SILVA, 2013; PEREIRA, 2014; SILVA, 2014b).

232 Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014


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Quando bem aproveitado, o relatório de estágio supervisionado é instrumento de


mediação para a formação de um professor mais crítico e reflexivo sobre sua própria
prática pedagógica. Partindo do princípio de que os dados foram gerados no contexto
acadêmico das licenciaturas, este gênero tem um papel importante, visto que pode in-
terferir diretamente no desenvolvimento das práticas de letramento acadêmico do pro-
fessor (cf. KLEIMAN, 2007; KLEIMAN, 2008; SILVA 2012; só para citar alguns).

METODOLOGIA PARA ANÁLISE DOS DADOS


A abordagem metodológica desta pesquisa é de natureza qualitativa. Orientamo-
-nos a partir da abordagem interpretativista de análise dos dados. Logo, a interpre-
tação realizada do corpus, em nossas análises, é conduzida pela visão de mundo dos
pesquisadores, o que auxilia na retomada do contexto situacional de produção dos
dados (cf. BORTONI-RICARDO, 2008).
O tipo de pesquisa adotado na investigação é o documental. Esta metodologia
é pertinente partindo do pressuposto de que os relatórios de estágio são textos que
podem desempenhar papel de instrumento de mediação no desenvolvimento crítico-
-reflexivo dos alunos-mestre. Além disso, documentam a relação assimétrica entre es-
cola de Educação Básica e universidade.
A perspectiva interpretativista dos documentos converge com a proposta social da
LA, pois entendemos que a leitura feita do objeto de investigação depende da relação
que é construída entre pesquisador e objeto pesquisado. Nesse sentido, a LA procura
considerar fatores extralinguísticos que ajudam a tornar mais complexa a visão do pes-
quisador sobre o objeto analisado. No nosso caso, fazemos referência à escrita reflexiva
profissional nos relatórios de estágio supervisionado.
A análise dos dados foi desenvolvida em duas etapas distintas. A primeira etapa
corresponde aos procedimentos de escolha do corpus. Frente a uma incidência bastante
expressiva de relatos em que o aluno-mestre se coloca como principal sujeito das ações
relatadas por ele. Essas autorrepresentações nos ajudam a entender a escrita reflexiva
profissional dos relatórios.
Definido o foco das análises, na segunda etapa da pesquisa, propomos três cate-
gorias de análise, que foram motivadas por escolhas léxico-gramaticais encontradas
nos relatórios de estágio. As escolhas formam padrões gramaticais responsáveis por
representar o próprio aluno-mestre no texto produzido.
No Quadro 3, apresentamos as categorias analíticas mobilizadas, bem como os
discursos materializados por escolhas léxico-gramaticais do aluno-mestre a partir do
contexto social de referência. As fronteiras entre as categorias não são delimitadas
rigidamente, mas, para fins metodológicos, optamos pelas três diferenciações. Essas
categorias orientam as análises apresentadas na próxima seção deste artigo

Raído, Dourados, MS, v.8 , n.16, jul./dez. 2014 233


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Quadro 3: Categorias Analítica e seus Discursos

CATEGORIAS DE ANÁLISE DISCURSOS


Aluno-mestre como transformador das habilidades
Ressignificação da sala de aula pelo
dos alunos da educação básica e das práticas
aluno-mestre
pedagógicas da escola campo de estágio.
Avaliação do aluno-mestre sobre a metodologia que
Concepção da escolha metodológica
utilizou em sala de aula durante sua regência.
Autoavaliação do aluno-mestre no Avaliação geral que o aluno-mestre faz sobre sua
Estágio Supervisionado própria atuação no estágio.

Na categoria Ressignificação da sala de aula pelo aluno-mestre, trabalhamos com au-


torrepresentações do aluno-mestre como principal ator social para o desenvolvimento
das habilidades do aluno da escola básica. Portanto, é uma categoria analítica pela qual
o professor em formação “se coloca como transformador da prática pedagógica” (PE-
REIRA, 2014, p. 96). Já na categoria Concepção da escolha metodológica, há considera-
ções a respeito da metodologia que o aluno-mestre adotou durante sua regência. Neste
caso, as autorrepresentações diagnosticadas, geralmente, desfavorecem a metodologia
utilizada pelo professor colaborador da escola básica, mesmo que implicitamente, não
representado o referido profissional como um interlocutor nos estágios. Por fim, a
categoria Autoavaliação do aluno-mestre no Estágio Supervisionado consiste em uma
avaliação geral sobre a atuação do aluno-mestre nas atividades de estágio. Trata-se,
portanto, da exposição panorâmica acerca de sua regência. Na maioria dos casos, essa
última autorrepresentação é localizada nos últimos parágrafos dos relatórios de estágio.
Para criação das categorias analíticas, partimos da premissa de que o aluno-mestre
está inserido em um contexto acadêmico de assimetria entre universidade e escola bá-
sica. Nessa perspectiva, existem forças ideológicas, culturais e sociais que motivam as
escolhas léxico-gramaticais dos enunciados pelos alunos-mestre. Nesse sentido, a LA
converge com os pressupostos da LSF, ajuda-nos a compreender como o social inter-
fere no linguístico, complexificando-o.
Nas análises desenvolvidas, criamos rótulos funcionais para identificar as seções dos
relatórios de estágio investigados. Os rótulos ou títulos são eficazes para um entendimen-
to funcional das seções dos relatórios. Os relatos semiotizados nos rótulos contribuem
diretamente para construção de sentido do texto. Nos excertos analisados na seção se-
guinte, além do rótulo funcional, em caixa alta, disponibilizamos também, na parte infe-
rior do quadro expositivo, o próprio título da seção de onde foram extraídos e o ano em
que o relatório fora produzido. Os processos a partir dos quais o aluno-mestre se coloca
como sujeito do complexo oracional foram sublinhados com ondulado.

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AUTORREPRESENTAÇÕES DE ALUNOS-MESTRE
Nesta seção, apresentamos o percurso de análise das autorrepresentações dos alu-
nos-mestre. Propusemo-nos a utilizar a LSF como aporte teórico-metodológico para
realização dessas microanálises devido à grande relação entre seus princípios teóricos
e os da LA (cf. SILVA e ESPINDOLA, 2013). Em outras palavras, a LSF nos ajuda a
chegar à materialidade de um texto produzido por atores sociais fluidos e heterogêne-
os, conforme nos apresenta a LA.

RESSIGNIFICAÇÃO DA SALA DE
AULA PELO ALUNO-MESTRE
No Excerto 1, os alunos-mestre ressaltam um ponto positivo, conforme suas con-
cepções das aulas ministradas. De acordo com eles, após sua interferência na rotina da
sala de aula por meio da regência, um aluno da Escola Básica, que não costumava par-
ticipar das aulas, passou a se comunicar expressivamente durante a regência, tornando-
-se um bom aluno. Vale ressaltar que os alunos-mestre não explicam o que entendem
como bom aluno.

EXCERTO 1

O TEXTO EM SUA ÍNTEGRA


Uma observação interessante, a qual não podemos deixar de relatar, foi o fato de um aluno,
desta turma, que não participava das aulas e com a nossa chegada passou a participar e por
fim é um bom aluno que aprende com muita facilidade, esta foi uma das nossas conquistas
durante este estágio.
Relatório de Estágio, 2010.

Na íntegra do relatório, o excerto acima é precedido por relatos do aluno-mestre a


respeito de sua atuação em uma turma de 6º Ano. Os relatos são de natureza negativa
no que se refere à atuação pouco expressiva do professor da Escola Básica. O mesmo
discurso se repetiu na sequência do relatório, especialmente no Excerto 1 analisado.
Na Posição Temática, o grupo nominal (Uma observação interessante) é a maneira
que os alunos-mestre encontraram para chamar a atenção para um aspecto positivo
da regência. O grupo nominal aponta para uma tentativa argumentativa, voltada à
Atividade Sociosemiótica do Explorar, mas sem muito sucesso, tendo em vista que o
grupo está relacionado, na continuidade da oração, a construções textuais descritivas.
A tentativa de chamar atenção para algo considerado significativo continua pelo
uso do Modalizador (não), que atribui uma Circunstância de Negação ao grupo verbal
(podemos deixar), seguido do grupo preposicional (de relatar). A organização da tran-
sitividade, por meio da oração expansiva por elaboração (a qual não podemos deixar de

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relatar), sugere que os fatos relatados a partir de então sejam vistos como motivadores
para uma ressignificação em sala de aula.
O Modalizador (não) atribui uma Circunstância de Negação ao Processo Ma-
terial (participava). Com as escolhas linguísticas, o aluno-mestre reconhece que a
não participação nas aulas é um ponto ruim para o processo de aprendizagem. En-
tretanto, mais adiante, o uso da Circunstância na posição do Tema Marcado (com a
nossa chegada) funciona como uma espécie de “divisor de águas”. Os alunos-mestre
se autorrepresentam como essenciais para a postura assumida pelo aluno da escola
básica. A chegada dos alunos-mestre é representada como fator responsável pelo
melhor desempenho do aluno.
O Processo Material (passou a participar), pelo qual o aluno-mestre faz referência
ao aluno da escola básica como Ator, coloca os professores em formação inicial na po-
sição de ‘redentores’. Eles acreditam que, após intervenção no estágio, o discente pode
se caracterizado como um bom aluno. Essa ideia é reforçada pelo uso da Circunstância
de Modo (com muita facilidade) e de seu Processo Material (aprende).
No Excerto 1, os alunos-mestre sugerem que, para diagnosticar um aluno como
bom, é necessário apenas que ele tenha facilidade em entender o conteúdo trabalhado
em sala de aula. Funcionalmente, isso é comprovado pelo Atributo (uma das nossas
conquistas), ao final do excerto. Essa crença pode não levar em conta outros fatores
que influenciam na aprendizagem de um aluno ou que, mesmo, caracterizam o de-
senvolvimento das habilidades deste público. Logo, não considera os desafios mais
recentes pelos quais a escola básica passa. Tem-se, assim, um olhar simplificado do
aluno-mestre sobre a situação de ensino experienciada.

CONCEPÇÕES SOBRE A ESCOLHA METODOLÓGICA


No Excerto 2, o aluno-mestre relata suas experiências vividas durante o estágio.
Ao mesmo tempo, ele deveria expor opiniões a respeito de sua inserção no contexto
da regência de aulas de Matemática, na Educação Básica. Apresenta algumas conside-
rações a respeito da metodologia aplicada nas aulas ministradas na escola básica, elen-
cando alguns materiais pedagógicos que contribuíram para sua prática metodológica.

EXCERTO 2

PANORAMA DA PRÁTICA DO ALUNO-MESTRE EM CONTRAPOSIÇÃO À PRÁTICA DO


PROFESSOR DA ESCOLA BÁSICA.
Na maior parte das aulas ministradas adotamos como metodologia o método tradicional de
ensino através de aulas expositivas, também realizamos trabalho em grupos, e fizemos uso
de material concreto, utilizamos um jogo envolvendo múltiplos e divisores.
Intervenções Didático-Pedagógicas, 2010.

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O Excerto 2 é iniciado pelo Tema Marcado (Na maior parte das aulas ministradas).
O aluno-mestre afirma que não usou a mesma metodologia em todas as aulas por ele
ministradas. Entretanto, trata-se da metodologia predominante em sua postura pe-
dagógica, pois confessa ter sido a utilizada na maioria das aulas. Isso é importante no
processo de autorrepresentação, pois sugere um aluno-mestre que optou por metodo-
logias diferentes em situações de ensino.
Posteriormente, confessa-se tradicional. Por outro lado, admite que realizou tra-
balhos em grupos. Essa ‘contradição’ configura-se pelo alcance oracional dos Processos
Materiais (adotamos e realizamos). Ainda sobre o Processo Material (adotamos), per-
cebemos que a Meta (o método tradicional de ensino através de aulas expositivas) parece
expressar gramaticalmente o que acabamos de mencionar. Da perspectiva sistêmico-
-funcional, notamos que a Meta é constituída por um grupo nominal extenso. O alu-
no-mestre sente a necessidade de explicar como este método tradicional se fez presente
em suas aulas, no caso, por meio de aulas expositivas. Isso atribui uma caraterística um
tanto descritiva, fazendo com que predomine a Atividade Sociossemiótica do Reportar.
O fato de simplesmente recontar os fatos caracteriza um aluno-mestre pouco reflexivo
em sua escrita.
A dimensão do Reportar estende-se durante todo o Excerto 2, por intermédio
das escolhas léxico-gramaticais, com destaque para o elemento adverbial (também),
que introduz uma justificativa pela escolha metodológica, porém apresentando apenas
outro fato, ou seja, somente recontando.
O Processo Material (realizamos) e a Meta (trabalhos em grupo) reforçam a ideia
do recontar e compartilhar experiências vividas. Nesse caso, é um fato relatado que
serve para justificar o primeiro, no caso, a escolha metodológica pelo método tradi-
cional. No plano semântico-discursivo, entendemos essas escolhas gramaticais como
tentativa de reflexão, voltada à Atividade Sociossemiótica do Explorar. O aluno-mestre
procura relacionar a ideia de tradicionalismo à possiblidade de se fazer intervenções
em grupo. Entretanto, dizemos que este momento argumentativo não predomina no
excerto, posto que o aluno-mestre acaba não desenvolvendo, nem justificando, esta
relação, que foi apenas sugerida.
Mais adiante, por meio do grupo verbal (fizemos uso), que tem alcance de Processo
Material, o aluno-mestre afirma ter feito uso de um material concreto, no caso, a Meta
do processo ora referido. Todavia, não explica o que seria este material, nem esclarece
também se esta ‘concretude’ está diretamente associada ao livro didático ou a qualquer
outro aporte metodológico.
Outro Processo Material (utilizamos) usado ao final do Excerto 2 introduz a Meta
(um jogo envolvendo múltiplos e divisores). Assim como ocorreu em excertos anteriores,
o aluno-mestre utiliza grupos nominais extensos para enumerar conteúdos ministra-
dos, sem muita articulação entre tais conteúdos e a maneira como foram, de fato,

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trabalhados em sala. Essa realização linguística não é algo produtivo para o letramento
linguístico, tendo em vista que o aluno-mestre não reflete, em sua escrita, a respeito
da sua metodologia e das condições propiciadas na situação de estágio obrigatório.
Partimos do princípio de que a construção das autorrepresentações acontece pela in-
teração, o que solicita do aluno-mestre entender como a sala de aula e outros fatores
contribuem para o andamento de sua prática pedagógica (KLEIMAN, 2005, p. 207).
Entretanto, nesse último caso em especial, a Meta mencionada estabelece, se-
manticamente, uma relação de causa e consequência. Em outras palavras, é como se o
aluno-mestre não relacionasse tradicionalismo e movimento crítico de ação e reflexão
de uma prática docente metodológica (LÜDKE e BOING, 2012).

AUTOAVALIAÇÃO DO ALUNO-MESTRE NO ESTÁGIO


SUPERVISIONADO
O Excerto 3 corresponde ao momento em que o aluno-mestre faz menção à me-
todologia que adotou em sala de aula, consequentemente autorrepresentando-se. Na
íntegra do texto, este excerto é precedido por julgamentos autoavaliativos do aluno-
-mestre a respeito da regência desenvolvida. O trecho que analisamos é sucedido por
breves informações sobre o fim do estágio, tais como a data do término e uma breve
opinião, de apenas uma linha, sobre as atividades que foram desenvolvidas:

EXCERTO 3

O TEXTO EM SUA ÍNTEGRA


As nossas aulas, a maioria, foram realizadas do modo tradicional, porém com êxito. E as
que realizamos com dinâmica foram bem aceitas. Dessa forma, em nenhum momento não
perdemos o controle da turma. Além disso, o respeito pelos alunos foi algo primordial em
nossas atuações como docente. Por fim, não foi algo novo em nossas vidas, pois já tínhamos
lecionado anteriormente.
Relatório de Estágio, 2010.

O Tema (As nossas aulas, a maioria) causa um efeito de sentido semelhante ao do


Tema do excerto anteriormente analisado. Previamente, o aluno-mestre sugere que
não utilizou uma única metodologia em suas aulas. Entretanto, adianta que a meto-
dologia que ora relata foi a que predominou durante sua regência, tendo sido utilizada
na maioria das vezes.
O grupo verbal, de alcance Material (foram realizadas) relaciona-se à Circunstân-
cia de Modo (do modo tradicional), com a qual, explicitamente, o aluno-mestre admite
ter feito uso de uma metodologia tradicionalista. Entretanto, o elemento conjuntivo
(porém) causa uma ideia de contrajunção. Logo, o aluno-mestre admite que o tradicio-
nalismo seja algo que não caracterize necessariamente uma boa escolha metodológica.
No entanto, na sequência, usa outra Circunstância de Modo (com êxito). Nesse mo-

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mento, o aluno-mestre procura justapor a ideia de tradicionalismo e êxito em sala de


aula, no sentido de que essa relação é, de fato, possível.
O Processo Material (realizamos), que tem como Ator a elipse da primeira pessoa
do plural, apresenta a Meta (as nossas aulas), no início do excerto, e é modalizado pelo
grupo adverbial (bem aceitas). Essa Circunstância confirma o êxito das aulas. De algu-
ma maneira, o aluno-mestre lança mão de um discurso que se perpetua durante todo o
relatório a que pertence o Excerto 3. Até o momento, as escolhas gramaticais parecem
induzir à Atividade Sociossemiótica do Reportar, posto que o aluno-mestre, até então,
apenas justapõe os fatos linearmente.
Entretanto, a partir da escolha do Tema Textual (Dessa forma), o texto parece
enveredar-se pelo teor mais reflexivo. Em outras palavras, a escolha do marcador dis-
cursivo sinaliza o início de uma Atividade Sociossemiótica do Explorar, que conduz o
restante do complexo oracional, predominando no excerto ora referido. Por meio des-
se elemento conjuntivo, o aluno-mestre passa a argumentar e demonstra querer justi-
ficar/explicar que é possível ser metodologicamente tradicional e obter êxito nas aulas.
A escolha pelo Tema Marcado (em nenhum momento), somada à escolha da Cir-
cunstância de Negação (não) causam um efeito de sentido no Processo Material (perde-
mos) e em sua Meta (o controle da turma). Logo, a estrutura oracional (Tema Marcado
+ Circunstância de Negação + Processo Material + Meta) materializa gramaticalmente
a ideia de ser metodologicamente tradicional para não perder o controle da turma.
Talvez esteja justamente na ideia de ‘controle’ a justificativa do êxito alcançado, men-
cionado pelo aluno-mestre.
O aluno-mestre se mostra conivente com o discurso pré-estipulado de que ‘o
professor que alcança êxito’ é justamente aquele que consegue dominar a indisciplina
de uma turma. Trata-se de um senso comum que parece povoar o imaginário de uma
cultura escolar (SILVA, 2011). Mais uma vez, reportamos a ideia de sala de aula como
espaço de poder, onde o aluno-mestre, no exercício da docência, é quem emite as or-
dens de comando.
O Tema Textual (Por fim) marca a conclusão do pensamento do aluno-mestre.
A Circunstância de Negação (não) contribui no sentido do Processo Relacional (foi)
para argumentar que a experiência vivida durante a regência que relatou não se tratava,
propriamente, de uma novidade. O Processo Material (tínhamos lecionado), seguido
pela Circunstância de Modo (anteriormente) remetem o leitor a ocasiões anteriores às
relatadas pelo aluno-mestre. Ele se autorrepresenta como profissional seguro da meto-
dologia que escolheu, pois parte do princípio de que já atuou outras vezes, logo tem
experiência como regente em sala de aula.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com as análises realizadas, os relatórios de estágio supervisionado ana-
lisados apresentam uma escrita ainda bem incipiente quando nos referimos ao teor
reflexivo. Partindo do princípio de que o relatório de estágio supervisionado é um
gênero textual que demanda do aluno-mestre um poder de crítica e reflexão sobre a
prática pedagógica, esperamos que essa produção seja mais bem elaborada, de maneira
a contribuir com as práticas de letramento do professor em formação inicial.
Entretanto, frisamos que os alunos-mestre, responsáveis pela elaboração dos relató-
rios, corpus de nossa pesquisa, parecem conhecer os mecanismos linguísticos que apon-
tam para uma escrita reflexiva profissional. Todavia, as problemáticas que identificamos,
no contexto acadêmico de produção do relatório, não propiciam situações que levem o
aluno-mestre a reflexões produtivas. A ausência de incentivo à reflexão afeta diretamente
a escrita do relatório, tornando a escrita dos textos algo puramente burocrático.
A Licenciatura em Matemática apresenta problemáticas advindas da logística do
próprio contexto universitário em que as disciplinas de estágio supervisionado são
ofertadas. Por isso, acreditamos que tais relatórios refletem a formação do aluno-mes-
tre produtor desses textos, uma vez que a ausência de reflexão nos textos analisados
representa justamente a falta desta habilidade no meio acadêmico em questão.
Esperamos contribuir com os estudos do letramento do professor em formação
inicial. Os resultados revelaram que a escrita reflexiva profissional precisa receber a
devida atenção do meio universitário. Entendemos que esse tipo de escrita, peculiar
das licenciaturas, ajuda a formar profissionais mais críticos e pensantes a respeito de
sua própria prática pedagógica.
A ausência de incentivo à prática da escrita reflexiva do aluno-mestre não corres-
ponde apenas a um problema envolvendo estratégias didáticas utilizadas na formação
inicial do professor ou, até mesmo, à demanda por aprofundamento dos estudos apli-
cados envolvendo o uso do gênero relatório ou do registro reflexivo profissional nos es-
tágios. Apenas a melhor compreensão linguística desse registro acadêmico, emergente
nas licenciaturas, não proporciona uma resposta desencadeadora do empoderamento
do letramento do professor. Existem problemas de política educacional, compreen-
dendo a operacionalização da própria licenciatura, que afetam o trabalho acadêmico
com a escrita nas disciplinas de estágio supervisionado. Esses problemas estão atrela-
dos a demandas socioeconômicas e características culturais da região
Em síntese, destacamos que, ao investigar autorrepresentações dos alunos-mestre
nos relatórios, ficou mais evidente a complexidade da problemática que envolve a for-
mação de professores, a exemplo da Licenciatura em Matemática focalizada neste artigo.
Portanto, do ponto de vista da pesquisa científica, o diálogo entre diferentes disciplinas
do conhecimento é o percurso científico promissor para a proposição de respostas a de-

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mandas da formação inicial docente. Em contextos sociais complexos, as manifestações


linguísticas, por sua vez, configuram-se como um nicho significativo para diagnóstico
das demandas e, consequentemente, para a produção de encaminhamentos desejados.

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