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v.8, n.16
UNIVERSIDADE FEDERAL
DA GRANDE DOURADOS
Coordenadoria Editorial
Semestral
ISSN 1984-4018
UNIVERSIDADE FEDERAL
DA GRANDE DOURADOS
Coordenadoria Editorial
Editores
Adair Vieira Gonçalves (UFGD)
Manoel Luiz Gonçalves Corrêa (USP)
Revisão
A revisão gramatical é de responsabilidade dos(as) autores(as).
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................7
LETRAMENTO NA ERA DIGITAL: O COPIAR-COLAR DOS ESTUDANTES / LITTÉ-
RATIE A L’ÈRE DU NUMÉRIQUE: LE COPIER-COLLER CHEZ LES ÉTUDIANTS.........15
Fanny Rinck
Leda Mansour
O “RESUMO DE COMUNICAÇÃO” COMO OBJETO DE ENSINO / “ABSTRACTS
FOR SCIENTIFIC EVENTS” AS TEACHING OBJECT ................................................33
Florencia Miranda
DA PALAVRA NEUTRA À PALAVRA PRÓPRIA: FORMAS DE CONCEBER A
PALAVRA NA ESCRITA ACADÊMICO-CIENTÍFICA / FROM THE NEUTRAL WORD
TO THE OWN WORD: THE WAYS OF CONCEIVING THE WORD IN ACADEMIC
SCIENTIFIC WRITING .............................................................................................57
Poliana Dayse Vasconcelos Leitão
Regina Celi Mendes Pereira
PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA EM CONTEXTO ACADÊMICO: RELAÇÕES
(HIPER)TEXTUAIS SINGULARES / WRITING AND READING PRACTICES IN AN
ACADEMIC CONTEXT (HYPER) TEXTUAL SINGULAR RELATIONS....................79
Fabiana Komesu
Fernanda Correa Silveira Galli
A (RE) ESCRITA NA FORMAÇÃO DOCENTE: AÇÕES E INTERVENÇÕES COM O
USO DE MÍDIA DIGITAL / (RE) WRITING IN THE TEACHER TRAINING: ACTIONS
AND INTERVENTIONS WITH THE USE OF DIGITAL MEDIA ................................95
Kleber Ferreira da Silva
Adair Vieira Gonçalves
CONCEPÇÕES SOBRE A ESCRITA ACADÉMICA DE ESTUDANTES DO
ENSINO SUPERIOR / CONCEPTIONS ON ACADEMIC WRITING OF UNIVERSITY
STUDENTS ..............................................................................................................125
Luísa Álvares Pereira
Luciana Graça
TRACES DE LA FORMATION DES ENSEIGNANTS SUR LA TRANSFORMATION
DU RAPPORT À L’ÉCRIT D’ÉTUDIANTS QUÉBÉCOIS / EVOLUTION OF
RELATIONSHIP WITH WRITING OF QUEBEC EDUCATION STUDENT TEACHERS:
MARKS OF UNIVERSITY TRAINING ......................................................................141
Chantale Beaucher
Christiane Blaser
Olivier Dezutter
PERSPECTIVAS DE ALFABETIZAÇÃO: LIÇÕES DA PESQUISA E DA PRÁTICA
PEDAGÓGICA / PERSPECTIVES ON LITERACY: LESSONS FROM RESEARCH AND
PEDAGOGICAL PRACTICES ...................................................................................157
Cecilia M. A. Goulart
ENTRE FAZER E DIZER: ATIVIDADE DOCENTE E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
ESCOLARES, NOS ATOS DE ESCRITA NA FORMAÇÃO / DOING OR SAYING:
TEACHERS`ACTIVITY AND PEDAGOGICAL PRACTICES AT SCHOOL, BROUGHT
TO THE ACTS OF WRITING IN THE CONTEXT OF TEACHERS’TRAINNING .....177
Ludmila homé de Andrade (UFRJ)
O SISTEMA SEMÂNTICO DE PROJEÇÃO EM CITAÇÕES NA ESCRITA ACADÊMICA
DE RELATÓRIOS DE ESTÁGIOS / THE SEMANTIC SYSTEM OF PROJECTION IN
CITATIONS IN ACADEMIC WRITING PRACTICUM REPORTS..................................197
Lívia Chaves de Melo
Elaine Espindola
PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL NA ESCRITA REFLEXIVA PROFISSIONAL:
ABORDAGEM SISTÊMICO-FUNCIONAL NA LINGUÍSTICA APLICADA / PRE-
SERVICE TEACHERS IN THE REFLEXIVE PROFESSIONAL WRITING: SYSTEMIC
FUNCTIONAL APPROACH IN APPLIED LINGUISTICS .......................................... 223
Bruno Gomes Pereira
Wagner Rodrigues Silva
Universidade Federal da Grande Dourados
APRESENTAÇÃO
EM TORNO DA VARIEDADE DE LETRAMENTOS
REFERÊNCIAS
CORRÊA, M.L.G. Letramento e heterogeneidade da escrita no ensino de Português.
In: Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas (SP) :
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tempo e no espaço. (em elaboração).
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v.28, n.2, p.541-567, 2010.
TFOUNI, L.V. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988.
______. Perspectivas históricas e a-históricas do letramento. Cadernos de Estudos Lin-
güísticos. Campinas (SP), v. 26, p. 49-62, 1994.
______ . Letramento e Alfabetização. 9ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2010.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é abordar elementos de compreensão da prática do
copiar-colar dos estudantes: como podemos passar da lamentação a uma relexão
pedagógica sobre o copiar-colar?
Tomamos como contexto os letramentos universitários e os trabalhos realizados
sobre os gêneros em uso na esfera acadêmica, sobre as diiculdades dos estudantes e
sobre a maneira de melhor formá-los. Em um contexto de interrogações renovadas
sobre a cultura da escrita na era digital, a prática do copiar-colar parece-nos ser uma
entrada interessante para tratar das práticas de letramento como fundamento do
domínio da informação e da construção das chamadas sociedades do conhecimento,
segundo a deinição de letramento4 dada pela UNESCO – dito de outro modo, em
referência a uma antropologia dos saberes.
A noção de letramento diz respeito, em primeiro lugar, à diversidade das práticas
de leitura e de escrita e às competências que elas mobilizam, mas também àquilo que se
põe em jogo, por meio do ler-escrever, em termos de uso da informação e de construção
de saberes. Ela permite visualizar, para além da alfabetização, uma aprendizagem que
repousa sobre “continuidades e rupturas entre esfera escolar e doméstica” (LE DEUFF,
2011, p.69), se perseguida “ao longo de toda vida” e representa “um meio de formar
os espíritos” (LE DEUFF, 2011, p.72). Os Novos Estudos de Letramento (STREET,
1993; FRAENKEL e MBODJ, 2010) colocam ênfase, em particular, na competência
digital e na necessidade não somente de dar acesso a todas essas ferramentas, mas
também desenvolver seu uso crítico.
A hipótese de trabalho que serve de ponto de partida à relexão que propomos
aqui é que o copiar-colar permite interrogar sobre o desenvolvimento das competências
de letramento em termos de aculturação. Ele representa uma prática espontânea das
gerações jovens, mas que não é admitida como uma prática de letramento legítima em
relação a questões ligadas à noção de autor e de trabalho pessoal bem como às fontes
de nossos escritos e de nossos saberes.
Em uma primeira parte, mostramos como o copiar-colar é percebido e o
deinimos como prática de letramento no contexto dos letramentos universitários.
Questionamos então, face a face, de um lado, a cultura dos “nativos digitais” e as
implicações das tecnologias digitais no tratamento da informação, o acesso ao
conhecimento e a relação ao saber dos estudantes; de outro lado, as expectativas
acadêmicas e as diiculdades dos estudantes confrontadas à exigência de dever remeter-
se às fontes e de produzir uma relexão pessoal – senão original.
4
“É chave para comunicação e aprendizado de todos os tipos e uma condição fundamental de acesso às sociedades
de conhecimento atuais”, Unesco (2008). he global literacy challenge, Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/
images/0016/001631/163170e.pdf>.
UM OBJETO ESTIGMATIZADO
Nesses últimos anos vimos multiplicarem-se os discursos, na universidade e na
imprensa, sobre a prática do copiar-colar dos estudantes. Designando, inicialmente,
uma função informática, o termo generalizou-se e seu uso alega a facilidade do
procedimento. O termo copiar-colar intervém de maneira recorrente na expressão
“um simples copiar-colar”. É questão de “simples clique”, “simples como um jogo de
criança”, ou, “em um mínimo de esforço”, “basta...” (“contentar-se de...”). Partindo
daí, o copiar-colar na universidade é considerado por alguns como prova manifesta
da “preguiça intelectual” e da “falta de limite” das gerações jovens. Copiar-colar
seria “ceder à tentação”, e até mesmo “sem escrúpulo” e “sem vergonha”, “trapacear”,
“saquear”, “furtar” e “violar o direito do autor”. Prática “selvagem”, “novo pesadelo”,
“verdadeiro lagelo”, o copiar-colar pede por ser detectado, perseguido, denunciado.
Trata-se de “quebrar o tabu” e de se engajar numa “luta” contra esse fenômeno5.
O copiar-colar liga-se a numerosos fenômenos da trapaça na escola ou em
situações de concurso: do mesmo modo que copiar do seu vizinho ou utilizar colas,
ele seria signo de uma incapacidade ou de uma desonestidade. Mas ele aparece como
um fenômeno “novo”, já que fundado nas possibilidades oferecidas na era digital6. A
amplidão do fenômeno faz com que ele seja mesmo questão da “indústria da trapaça”,
para designar ora as práticas dos estudantes, ora aquelas, lucrativas, dos sites fornecedores
de trabalhos prontos, que às vezes (em nome talvez de uma responsabilidade ética dos
empreendimentos) vão até recomendar aos seus compradores que os utilizem apenas
como fonte e, em nenhum caso, a título de trabalho pessoal.
A resposta institucional nos estabelecimentos de ensino superior contribui
com a não menos lucrativa indústria da antitrapaça, com o recurso aos programas
(softwares) de detecção do plágio. Estes programas baseiam-se no procedimento
espontaneamente utilizado pelos professores que se dedicam a uma pesquisa no Google
para determinar se uma ou outra passagem é um feito do estudante ou de um copiar-
colar: do mesmo modo, os programas comparam o texto com uma base de dados e
indicam uma porcentagem de empréstimos. Ao professor cabe veriicar, em seguida,
se os empréstimos são assinalados como tais no texto ou se, na falta de sê-lo, eles são
considerados como plágio (HARRIS, 2001).
A detecção da fraude está de acordo com o desenvolvimento de sanções e de
um arsenal regulamentário, em particular atestados de não plágio que os estudantes
devem fornecer no início de seus documentos. Estas práticas suscitam debates de
ordem ética sobre a questão de saber se é legítimo suspeitar a priori dos estudantes,
5
Referimo-nos, neste parágrafo, a diversos artigos on-line, especialmente artigos da imprensa e de blogs como aquele de
J.-N. Darde, “Arqueologia do copiar-colar”, disponível em: < http://archeologie-copier-coller.com>.
6
Com o uso, por exemplo, de smartphones em situação de exame.
efetiva de um texto: pela cópia projeta-se a entrada do leitor no texto e seu desejo de
intervir. Ela está, portanto, no centro do desenvolvimento do letramento na escala
ilogenética e na escala ontogenética, como, por exemplo, em estudantes que, entre
as práticas extraescolares da escrita, recolhem pedaços escolhidos em um poema ou
canção qualquer (PENLOUP, 1999).
É no domínio das obras literárias, das pesquisas em literatura e dos ateliers de
escrita criativa que encontramos vozes a considerar – e a reabilitar – a cópia como
sendo um trabalho central da produção escrita (por exemplo, HENNIG, 1997). Não
se trata, que ique bem claro, de limitá-la a uma reduplicação ao ininito, mas de
entender a cópia em relação com as noções de empréstimo e de intertexto. Nesse
contexto, são questionadas como não sendo lineares à criação verbal (GOLDSMITH,
2011) e a autoria (JEANDILLOU, 2001) e encontra-se estabelecida a constatação
segundo a qual “escrever é reescrever”.
Esta fórmula serve, atualmente, de adágio no campo da didática da escrita
(ver BORE e DOQUET, 2004). Em sala, trata-se de propor atividades consistindo
em reescrever a partir de seus próprios textos (questões de rascunho e de tomada
de notas), em escrever a partir de extratos de texto tomados aqui e ali, ou ainda, de
associar a prática da cópia a uma prática de imitação, escrevendo “à maneira de”, como
treinamos a pintura ou a escultura, copiando, inicialmente, os grandes mestres. Estes
dois procedimentos, da cópia e da imitação, mobilizam e favorecem uma impregnação
com os textos e não há razão de reservá-los às escritas literárias. Assim, no caso da escrita
acadêmica, dizemos que esse domínio repousa, em particular, no uso ritualizado e até
mesmo rotineiro de moldes retóricos e fraseológicos característicos, e a esse título, a
cópia e a imitação podem tornar-se ferramentas de formação (por exemplo, EISNER
et. al., 2008; PENNINGTON, 2010).
Por outro lado, o copiar-colar representa uma entrada interessante no campo
dos letramentos universitários tendo em vista, particularmente, os saberes herdados
e a relação ao saber; ele permite abordá-los em sua dimensão cultural, em termos de
gerações e de um letramento renovado pelo digital.
Se as questões de autor e de fontes existem de longa data, elas se colocam de
maneira central nos usos da informação na Internet e nos modelos de cooperação e
colaboração que se desenvolvem, por exemplo, em torno de um projeto enciclopédico
como a Wikipédia, ou de um ou outro web site dedicado a questões médicas.
Uma formação nessas questões é importante para o êxito universitário, pois é
reconhecido, atualmente, que o ler-escrever e o domínio informacional são como
molas. Esta formação é igualmente importante em vista dos letramentos proissionais,
campo no qual o autor e as fontes são igualmente identiicados como questões centrais
(ver PENE, 1993); é o caso, por exemplo, para os aprendizes-pesquisadores (RINCK
e BOCH, 2012) ou os web jornalistas e redatores, mas também para todo domínio
exigente da vigília informacional e/ou da produção de conteúdos.
O copiar-colar poderia, então, servir de ponto de partida não somente para que
os estudantes tenham consciência dos códigos de propriedade intelectual, mas como
[...] para pesquisar a informação, eles [da geração Y] recorrem mais à internet do que
a imprensa escrita, manifestando mais coniança nos sites de informação online do
que nas categorias mais antigas (DAGNAUD, 2011, p.119).
9
Quer seja questão de sociedade do conhecimento, de democracia participativa ou de emancipação, como nos programas
educativos inspirados, em especial, o de J. Dewey (1966 [1916]).
Quer seja a cópia segura de um arquivo que enviamos ao servidor que gerencia
nossos e-mails ou a criação de um web site, sempre terminamos por utilizar fontes
informáticas que não possuímos por nós mesmos. E, como consequência, alguém
ou alguma coisa sempre acabará por utilizar as nossas. É a inclinação natural da
tecnologia digital em direção àquilo que bem poderia ser sua principal característica:
a partilha (RUSHKOFF, 2012, p.136).
Partindo dessa constatação, “as mesmas normas sociais não se aplicam sobre a Net,
onde partilhar, emprestar, roubar e recondicionar ampliam-se” (2012, p.143). O autor
desenvolve o sentido de partilha, não sem mencionar os usos distorcidos desta partilha:
Assim, essas fontes são assimiladas aos bens públicos, e tanto sua cópia como
sua utilização pessoal resultam do fato de sua simples existência on-line. “Ainal, se
está lá, é por que isso pertence a todo mundo” (RUSHKOFF, 2012, p.141). Esta
constatação faz eco às falas dos estudantes, citados anteriormente, que justiicam
10
Citamos as licenças “creative commons” que se aplicam às condições de reutilização e de distribuição das obras.
seu copiar-colar pela simples existência on-line das fontes. Não se pode, entretanto,
confundir a gratuidade presumida e a cultura do “livre” (SOUFRON, 2009), e se os
dois não são claramente distinguidos nos espíritos, é fundamentalmente a segunda,
com a noção de “fontes abertas” ou “obras abertas”, que tende a “enfraquecer” o sentido
da propriedade, de acordo com Dagnaud (2011, p.85), e traduz-se pela invenção de
pistas alternativas ao regime da propriedade e de formas de trocas culturais que se
caracterizam pela cooperação (por exemplo, PROUX & GOLDENBERG, 2010;
ROCHELANDET, 2011).
Os usos da internet confundem, pois, a visão que podemos ter das produções
culturais e de sua circulação no espaço público. Qual é o estatuto do próprio internauta,
nos blogs, fóruns e outros wikis, um destinatário e/ou um emissor?
EXPECTATIVAS NA UNIVERSIDADE
A prática do copiar-colar e a maneira pela qual esta prática é percebida, se julgamos
o discurso que circula a seu propósito, torna vazia a questão das expectativas do ensino
superior em relação aos estudantes. Para além da proibição da cópia e da exigência de citar
suas fontes, de quais regras do mundo acadêmico os estudantes devem apropriar-se, no
que diz respeito aos tipos de escritas, às fontes e ao estatuto do autor, à relação ao saber?
Apoiamo-nos, aqui, em trabalhos anteriores conduzidos sobre as escritas dos pesquisadores,
sobre as escritas dos estudantes e sobre enquetes realizadas junto a eles, somando, assim,
vários ângulos de visão que permitem melhor compreender as expectativas acadêmicas em
matéria de letramento e as diiculdades que se colocam aos estudantes.
Escrever a partir de fontes está longe de ser óbvio; como mostram numerosos
trabalhos sobre essas questões. As diiculdades dos estudantes dizem respeito,
indissociavelmente, ao controle do domínio de conhecimentos e o controle do ler-
escrever. Inserir uma citação, comentá-la, reformulá-la de maneira pertinente, e, nos
memoriais, em especial, discutir os autores lidos e se posicionar em um campo são
competências complexas (por exemplo, BOCH & GROSSMAN, 2001, HYLAND,
2002; KARA, 2004; RINCK & BOCH, 2012).
Se a cópia de um website sob a forma de um “simples clique” não permite,
nela mesma, apropriar-se de conhecimentos, isso não exclui considerar, no quadro
da formação na escrita, uma prática do copiar-colar fundamentada na exigência
de ler, de confrontar textos, de selecionar excertos, de agenciá-los, introduzi-los,
comentá-los à maneira como se faz na esfera literária, em que tais atividades de
escrita são julgadas criativas.
EXPECTATIVAS EMBARALHADAS
As diiculdades dos estudantes frente às fontes estão em compreendê-las em ligação
com suas representações confusas das expectativas universitárias, quanto aos aspectos
já evocados de restituição de saberes, de distância crítica, de relexão pessoal. Citaremos
aqui uma estudante que intervém em um fórum de discussão a propósito de uma
questão que fez algum barulho nas mídias, em torno da presença de “passagens inteiras”
de Wikipédia em uma obra recente de M. Houellebecq (2010). Como veremos, esta
estudante exprime, de maneira talvez desajeitada, como o foco na exigência de citar
suas fontes pode conduzir a um impasse.
fontes de qualidade e aos saberes existentes para desenvolver uma relexão aprofundada.
A observação da estudante aponta, além disso, a complexidade da questão das fontes,
que não são tanto fontes, mas “ideias” disponíveis no intertexto: “toda ideia que
pudéssemos ter por nós próprios [...] já foi necessariamente utilizada”.
Os estudantes encontram-se, assim, confrontados com uma expectativa
paradoxal da instituição, tomada entre a importância do saber disciplinar e aquela da
relexão pessoal e da construção de uma postura de autor. Finalmente, como resume
um deles: “solicitam-nos nosso ponto de vista, mas nosso ponto de vista não importa”.
REFERÊNCIAS
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BORE, C. ; DOQUET-LACOSTE C. La réécriture: questions théoriques. Le français
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sur: <http://www.ecrirepourleweb.com/redaction-web/typologie-des-contenus-web>.
CERTEAU, M. de. L’Invention du quotidien 1. Arts de faire. Paris: Gallimard, 1990.
Commission de l’éthique de la science et de la technologie. Le plagiat électronique dans
les travaux scolaires. Pour une réflexion éthique. Québec, 2005. En ligne sur: <http://
www.ethique.gouv.qc.ca>.
COUSTILLE, C. Une histoire du plagiat universitaire. Fabula, 2011. En ligne sur:
<http://www.fabula.org/atelier.php?Histoire_du_plagiat_universitaire>.
1 *
Universidad Nacional de Rosario, Argentina. Doutora em Linguística (especialidade Teoria do Texto). Professora Titular
e Coordenadora da Licenciatura em Português. E-mail: lorenciamiranda71@gmail.com
INTRODUÇÃO
No presente trabalho, proponho observar o “resumo de comunicação” como ob-
jeto de ensino-aprendizagem em contexto universitário. Vale notar que esse gênero
textual não recebe uma designação estável, sendo chamado também de “resumo de
trabalho para congresso”, “resumo de comunicação científica”, “resumo para eventos
científicos” ou, ainda, “abstract”, entre outras denominações (ver, por exemplo, Bo-
livar 1999a; Bolivar 1999b, Behling 2008 e Mendonça 2013). Mas a variedade de
nomes – que, contudo, sempre mantém a ideia de “resumo” – designa um gênero com
bastante estabilidade semiolinguística e com muita presença social, mesmo que em
âmbito limitado.
O resumo de comunicação se vincula plena e exclusivamente à atividade acadêmi-
ca. De modo que se trata de um gênero que apenas é conhecido e experimentado por
quem tem alguma relação próxima com as práticas desse âmbito (como membro ativo
ou observador: estudante, professor, pesquisador, cientista, etc.). Produzir tal espécie
de resumos é uma prática de linguagem que atravessa a vida de todos os “acadêmicos”
– inclusive, em certos casos, desde muito cedo na carreira (ainda como estudantes da
graduação). Todavia, o “resumo de comunicação” é o gênero acadêmico menos estu-
dado e, por isso, menos conhecido. Ao mesmo tempo, é um gênero que quase nunca
é escolhido como objeto de ensino nos cursos universitários – onde se preferem outros
como a resenha ou o artigo científico.
Neste trabalho, defendo a necessidade de tomar o “resumo de comunicação”
como objeto de ensino nos cursos universitários, porque, embora aparente simplicida-
de (por causa da extensão, por exemplo), é um gênero que envolve procedimentos de
produção e mecanismos linguístico-discursivos complexos. Nas páginas que se seguem
apresentarei algumas das características próprias do gênero que podem constituir di-
mensões relevantes para o ensino e apontarei possíveis linhas de exploração didática.
Em termos teóricos, situo minha reflexão no quadro do Interacionismo Socio-
discursivo (BRONCKART, 1997, 2008, entre outros) e em termos empíricos – ou
de intervenção – me baseio em ações realizadas na Universidad Nacional de Rosario
(UNR), Argentina. Especificamente, a caracterização do gênero que mostrarei a seguir
se fundamenta em dados de uma pesquisa desenvolvida entre 2009 e 2012. Tratou-se
de um estudo comparativo do gênero resumo de comunicação produzido em quatro
línguas diferentes (espanhol, inglês, francês e português). Os dados que aproveitarei
no presente artigo são os que correspondem à análise do subcorpus de textos em por-
tuguês brasileiro. Convém esclarecer que tomarei especificamente o caso dos resumos
vinculados à área das ciências da linguagem e ensino de línguas2. No que diz respeito
ao ensino do gênero, e com o objetivo de problematizar, retomo aqui alguns exemplos
de textos produzidos por estudantes da Licenciatura em Português (língua estrangeira)
2
Essa observação é importante porque os resumos apresentam diferenças signiicativas em função das áreas acadêmicas e
cientíicas (sobre essas diferenças ver Bolívar, 1999a).
3
Sobre o problema da elaboração dos modelos, ver Miranda (2014a) e para uma apresentação em português da teoria dos
modelos didáticos, Miranda (2014b).
4
Para uma apresentação mais detalhada em português, ver Miranda (2014b).
MODALIDADES DE INSCRIÇÃO
Simpósios temáticos
• A coordenação de Simpósios Temáticos ica restrita a no máximo três professores
doutores ou a um professor mestre em parceria com outros professores doutores,
preferencialmente de diferentes IES.
• A apresentação de comunicação oral em Simpósios Temáticos destina-se a doutores,
mestres e alunos de pós-graduação (stricto sensu).
• […]
• Para a aprovação dos Simpósios Temáticos, os professores coordenadores deverão
submeter um resumo da proposta pelo formulário de inscrição no site seguindo os
critérios abaixo:
• O resumo apresentado deve deixar claros os objetivos do Simpósio Temático no sentido
de apresentar seu quadro teórico-metodológico e/ou seu objeto de estudo;
• […]
• O resumo deve ter no mínimo 200 e no máximo 400 palavras e até 5 palavras–chave.
• Os Simpósios Temáticos propostos serão avaliados pela Comissão Cientíica do IV CIELLA
e, uma vez aprovados, integrarão a programação do evento.
5
Sobre a noção de “intertextualidade constitutiva”, ver Miranda (2006) e (2010).
• Uma vez aceita a proposta, serão abertas as inscrições de comunicações orais nos
• Simpósios Temáticos.
• Cabe aos coordenadores dos Simpósios Temáticos:
• A seleção dos trabalhos submetidos aos Simpósios Temáticos;
• A distribuição das comunicações orais (…)
• As apresentações das comunicações serão de 20 minutos e haverá, ao inal da sessão, 30
minutos para discussão.
• Os resumos das comunicações deverão conter de 150 a 300 palavras com 3 palavras-chave.
Relato de experiência
• Destina-se a pesquisadores, proissionais de diversas áreas e educadores do Ensino
Básico. Cada trabalho poderá ser proposto por no máximo três autores;
• Esses proissionais poderão apresentar Relatos de Experiências de trabalho em torno
das temáticas do Congresso. O objetivo dessas sessões é o de discutir problemas no
andamento de pesquisas ou no encaminhamento de propostas de intervenção e de
partilhar soluções experimentadas ou sucessos obtidos. Cada relator terá 10 minutos
para apresentar sua experiência e haverá 10 minutos para discussão.
• […]
• Os resumos dos relatos de experiência deverão conter de 150 a 300 palavras e 3
palavras-chave;
Pôster/Painel
• Destina-se exclusivamente a alunos de graduação formalmente vinculados a projetos de
pesquisa, ensino e extensão (bolsistas ou voluntários), com plano de trabalho em execução.
• Tamanho do pôster: largura: 80 cm, altura: 120 cm.
• O título do trabalho no pôster deve ser idêntico ao título do resumo submetido. Os
resumos dos pôsteres deverão conter de 150 a 300 palavras e 3 palavras-chave;
• No corpo do texto deverão constar, obrigatoriamente, objetivos, fundamentação teórica
e metodológica, resultados e referências bibliográicas.
• […]
Exemplo (1) – Fonte: < http://www.4ciella.com.br/index.php#modalidades>.
CONTEÚDOS ESPECÍFICOS
O conteúdo do resumo é definido pela temática geral do evento e, se houver, pe-
los eixos temáticos mencionados na circular. Esse conteúdo deve ter ligação com o(s)
tema(s) do evento, mas ao mesmo tempo, deve ser suficientemente singular e original
para resultar interessante e pertinente para os avaliadores.
Os resumos são geralmente explícitos, evitando ambiguidades e formulações de-
masiadamente gerais. As afirmações devem ser demonstráveis (ou poder ser demons-
Algumas das seções são opcionais e dependem das instruções que a comissão or-
ganizadora do evento coloca na circular. Por exemplo, as palavras-chave podem não ser
solicitadas. Também há eventos que pedem outros elementos menos frequentes, tais
como referências bibliográficas.
Vale mencionar que os títulos dos resumos têm como principal objetivo apresen-
tar, identificar e sintetizar claramente o conteúdo temático global da comunicação.
Aliás, se as propostas forem aceitas, estes serão os títulos das comunicações posteriores.
Nesse sentido, o título do resumo tem grande importância porque, uma vez colocado
na programação, funcionará como elemento de captação dos possíveis interessados
em assistir à comunicação. Por isso, os títulos costumam ser descritivos e denotativos,
evitando o emprego de metáforas ou expressões ambíguas. Vejamos os seguintes exem-
plos, que são títulos de um mesmo evento sobre o estudo de gêneros textuais:
• “A contribuição da teoria da atividade de Leontiev para a apropriação de gê-
neros textuais nas séries iniciais”
• “O uso do gênero depoimento oral no processo de formação de professores”
• “Sobre os saberes dos manos e minas: analisando produtos midiáticos da cul-
tura hip hop e discutindo sua possível incorporação como objetos de ensino
na escola”
• “A modalização no gênero “manual de aviação”: considerações para elabora-
ção de material instrucional”
• “Ensino de língua portuguesa na universidade: o uso de contos populares
para a prática do gênero petição inicial”
É verdade que alguns títulos podem ser mais amplos, ambíguos ou até certo ponto
“misteriosos”, mas nos títulos há sempre algum indício temático ou problemático que
situa o eixo de estudo ou reflexão proposto no trabalho. Vejamos os seguintes exemplos:
• “Cartas que ensinam a ler”
• “Imagens que inventam o gênero poesia”
• “Pôster acadêmico ou comunicação oral?”
Nos exemplos não se sintetiza completamente o foco dos trabalhos e, por isso,
criam certo “mistério”. Porém, em cada caso, conseguimos situar com bastante expli-
citação o gênero (objeto temático do evento) sobre o qual cada trabalho se debruça:
cartas, poesia, pôster acadêmico/comunicação oral. Mais ainda, no primeiro caso, po-
demos inferir que se trata de um trabalho acerca do emprego de cartas para o ensino
da leitura e, no último exemplo, podemos reconhecer uma intencionalidade proble-
matizante ou questionadora, por causa do emprego da frase optativa e interrogativa.
Já no corpo do texto a estruturação interna pode variar, dependendo do grau de
explicitação que se verifique na circular. Vejamos a seguir duas circulares e resumos de
dois eventos diferentes:
Corpo do texto
O objetivo dessa pesquisa é investigar como está sendo
construído o ensino de língua portuguesa nos livros
didáticos, considerando a recorrência dos textos da rede
Objetivo eletrônica, neste material, ou seja, buscamos investigar, quais
são os desdobramentos discursivos e interdiscursivos que
permeiam os livros didáticos ao citar um sítio da internet
como referência ou fonte de pesquisa para o ensino da língua.
Nesta pesquisa, fundamentamo-nos nos postulados teórico-
metodológicos da Análise de Discurso pecheutiana e nos
estudos sobre o discurso na rede eletrônica segundo Romão
(2006, 2005) e Dias (2008, 2010). O caminho metodológico
percorrido envolveu uma pesquisa de campo que foi
realizada em quatro escolas diferentes, com dez diferentes
Quadro teórico-
livros didáticos de Língua Portuguesa, usados nos cinco
metodológico do trabalho. primeiros anos do ensino fundamental. É válido dizer que
estas escolas são duas estaduais e duas municipais, que
compreendem o Ensino Fundamental I. Diante de alguns
resultados que colhemos deste trabalho destacamos que
os livros didáticos pouco utilizam do discurso polêmico para
realizar seu trabalho de interpretação.
Percebemos que na rede eletrônica o discurso produzido
fornece ao sujeito a ilusão do tudo poder dizer, sentidos
contrários aos do livro didático, no qual os sentidos
produzidos circulam como se pudessem ser duros, lineares,
únicos e transparentes. É importante destacar que existe, na
instituição e nos LD, o ato de interdição, uma vez que não
é permitido aos sujeitos-escolares (que ocupam a posição
de aluno e de professor) questionar, duvidar do que lêem,
tampouco, atribuírem sentidos sobre os discursos presentes
Considerações a partir dos em seu cotidiano escolar, assim, o LD representa a legitimação
resultados obtidos do saber (Pacífico, 2007), e trabalha segundo uma concepção
positivista de que a língua (falada e escrita, especialmente
esta modalidade) tem sentido único e verdadeiro. Desta
maneira, entendemos que como professores-pesquisadores
precisamos ocupar a posição de um sujeito capaz de
estranhar o que o LD muitas vezes coloca, como certo
definitivo e inquestionável. Afinal a linguagem não é única
e definitiva, ela está sujeita a falhas e entender isso é um
movimento importante para interpretar e enxergar outras
possibilidades no âmbito social e escolar.
Exemplo (3) – Fonte: http://www.gel.org.br/ProgramacaoFinal2014.php
Corpo do texto:
Como orientadora de estágio supervisionado de língua
inglesa numa universidade pública no estado de Goiás, tenho
constatado que muitos/as alunos/as-professores/as têm
Contextualização dificuldade no desenvolvimento de reflexões críticas durante
atividades propostas por esse componente curricular. Falta-
lhes uma compreensão mais ampla de conceitos teóricos que
fundamentam o processo de ensino-aprendizagem de uma LE.
Segundo Vieira Abrahão (2004), muitos/as alunos/as interpretam
esses conceitos à luz de crenças sobre o ensino-aprendizagem
Revisão da literatura (1)
de LE, algumas vezes equivocadas, que trouxeram para a
(problema) licenciatura em Letras. Essas crenças operam como filtros de
insumo, que influenciam a construção da prática docente.
Neste contexto, este trabalho teve por objetivo analisar o
uso da transitividade de narrativas autobiográficas como
Objetivos
uma estratégia para ajudar os/as alunos/as-professores/as na
identificação de suas próprias crenças.
Uso dos gêneros textuais no ensino fundamental: ainda um desafio para os professores
Erivaldo Pereira do Nascimento - UFPB
O presente trabalho se propõe relatar e analisar uma experiência de formação continuada,
fundamentada em seqüência didática com gêneros textuais, para professores de Língua
Portuguesa, do Ensino Fundamental, no Município de João Pessoa-PB. O projeto de formação
tinha como metas apresentar os fundamentos da concepção sociointeracionista da
linguagem, estabelecendo uma correlação com as diretrizes educacionais propostas pelos
PCN, orientar e elaborar cooperativamente procedimentos metodológicos em conformidade
com a nova orientação, sobretudo no trabalho com gêneros textuais. O projeto teve como
embasamento a Teoria Enunciativo-Discursiva de Bakhtin (1992) e as orientações teóricas
do grupo de Genebra (Bronckart (1999), Schneuwly (1994, 1997), Schneuwly e Dolz (2001,
2004)). O grupo defende que o gênero apresenta-se como um elemento de ligação entre as
práticas sociais e os objetos escolares, especialmente no domínio do ensino da produção
de textos orais e escritos. A experiência foi realizada durante todo o ano de 2008, aten-
dendo a aproximadamente 150 professores da rede municipal, assistidos por 10 professores
da UFPB, UEPB e CEFET-PB. O trabalho foi operacionalizado por meio de formação teórica,
elaboração e análise de recursos didáticos como planos de aula e seqüências didáticas por
cada professor e sua devida aplicação em sala de aula. Nesta comunicação, apresentaremos
uma análise do trabalho desenvolvido, sobretudo das principais dificuldades apresentadas
pelos professores em formação no trabalho com os gêneros textuais, na perspectiva adotada,
utilizando como corpus os relatórios de acompanhamento dos professores formadores.
Exemplo (6). Fonte:Caderno de Resumos do V SIGET (Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais)
Por outro lado, importa observar que os resumos recorrem ao emprego de léxico
especializado e de terminologia específica (situada em um quadro teórico e/ou clara-
mente definida no próprio resumo).
Além dos elementos da organização linguístico-discursiva (verbos e léxico), obser-
va-se o emprego recorrente de diversos organizadores textuais para sinalizar as partes
do corpo do texto. Só para oferecer exemplo rápido, cabe notar que a expressão “para
tanto” ocorre com muita frequência com o papel de segmentação/ligação de diversas
6
Texto disponível em: <http://www.ucs.br/ucs/tplSiget/extensao/agenda/eventos/ vsiget/ portugues/anais/textos_autor/
arquivos/uso_dos_generos_textuais_no_ensino_fundamental_ainda_um_desaio_para_os_professores.pdf. >.
9
Mantenho a redação original dos textos (sem correções). Só eliminei os nomes de autores, e-mail e dados institucionais
que faziam parte das produções dos estudantes e alterei a tipograia (para uniformizar, no contexto do presente trabalho).
emprego incorreto do locativo “onde” em: “no mesmo momento onde se inicia
este processo”);
• Emprego excessivo das construções subordinadas.
tes escolheram temas do seu interesse (nos dois exemplos, coincidindo a questão do
“registro coloquial”) e possibilidades de estudo que consideraram realizáveis (analisar
manuais de português como língua estrangeira, em um caso, e analisar textos de bate-
-papo que o estudante podia conseguir no seu próprio local de trabalho, uma empresa
de tradução).
Se observados em conjunto, os dois últimos resumos (9 e 10) incluem algumas
seções coincidentes: uma contextualização ou problematização do assunto, o objetivo
do trabalho, o objeto em análise e a metodologia. Contudo, nenhum dos resumos
menciona trabalhos anteriores a respeito do tema (próprios ou alheios), nem o refe-
rencial teórico a partir do qual os autores se propõem trabalhar. Nesse sentido, os dois
últimos resumos mostram – mesmo com falências – um funcionamento mais “real”
(ou situado) do que os dois casos anteriores, já que se trata das propostas efetivas das
comunicações orais que os estudantes iriam apresentar: trabalhos “escolares”, explora-
tórios, sem uma pesquisa teórica prévia.
Tal qual o caso (7), as fragilidades relativas à seleção e explicitação do quadro te-
órico estão ligadas ao desconhecimento das práticas de pesquisa e de participação em
eventos científicos. Sendo assim, é preciso compreender que a ausência de menção de
quadro teórico no resumo é uma falha da atividade “escolar” ou didática (e não real-
mente uma fragilidade do resumo produzido pelos estudantes). Os alunos desconhe-
cem a prática real de realização de estudos científicos e de participação em eventos; em
consequência, é preciso trabalhar explicitamente tais aspectos para os alunos poderem
realizar resumos. É verdade que um resumo de comunicação para congresso ganha
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste artigo, mostrei que existe necessidade de trabalho explícito com
o gênero, dado que uma primeira produção dos estudantes realizada em situação de
ensino dá como resultado um texto com fragilidades notáveis. Portanto, o domínio
desse objeto se beneficia com uma abordagem orientada. O estudo acompanhado deve
partir da identificação e classificação dos problemas reais de escrita dos alunos. Assim,
é possível ver que existem dificuldades gerais (ou tranversais a diferentes gêneros) e
outras específicas da produção de textos desse gênero (por desconhecimento da prática
ou por falta de experiência, ou ainda por descohecimento do próprio gênero).
As simulações globais – ou as situações que mais se aproximam da realidade – per-
mitem explorar melhor as características do gênero (como no caso em que realmente
os estudantes fariam a comunicação em situação de exame, por exemplo). Mas resulta
melhor ainda a experiência de os estudantes tentarem participar de eventos científicos
reais. Nesse caso, produzem os textos que enviarão de fato para a comissão avaliadora
do evento. De modo que já não se trata apenas do olhar do próprio professor, mas de
uma soma de olhares que, sem dúvida, implicarão critérios de avaliação diversos. Isso
é o que, de fato, acontece na produção autêntica dos textos e, por isso, vale a pena
aproveitar a possibilidade de se fazer pelo menos uma primeira atuação “profissional”
com o acompanhamento do professor.
Em todos os casos, pode ser de grande contribuição realizar estas abordagens uti-
lizando o instrumento denominado “sequência didática” já mencionado. Trata-se de
um procedimento de ensino que leva em consideração o nível de partida dos alunos e
as necessidades concretas de estudo da língua.
REFERÊNCIAS
ADAM, J.-M. Linguistique textuelle: Des genres de discours aux textes. Paris: Na-
than, 1999.
______. Plano de texto. In.: CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. (Orgs.).
Dicionário da Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
______. A lingüística textual. Introdução à análise textual dos discursos. São Paulo:
Cortez, 2008.
BEHLING, J. Resumos de comunicação e o agenciamento da escrita científica. 2008.
127f. Dissertação. (Mestrado em Linguística Aplicada) - Instituto dos Estudos da Lin-
guagem, Universidade Estadual de Campinas, 2008.
BOLÍVAR, A. Homogeneidad versus variedad en la estructura de los resúmenes de
investigación para congresos. Akademos, v. 2, p. 121-138, 1999a.
INTRODUÇÃO
Nosso trabalho é resultado de dados gerados no Projeto de Pesquisa Ateliê de
Textos Acadêmicos (ATA - UFPB), que tem como objetivo geral criar um espaço
de oficinas para elaboração e análise de textos acadêmicos, acessíveis a graduandos
de variadas áreas de conhecimento, viabilizando a investigação das distintas nuances
que envolvem a elaboração desses textos em sua interface com diferentes formas de
construir conhecimentos. Constitui-se ainda como um pequeno recorte das pesquisas
desenvolvidas pelo Grupo de Estudos em Letramento, Interação e Trabalhos (GELIT
- UFPB), que adota o Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) como aparato teórico-
-metodológico de base, aliando-o, sempre que necessário, a outros referenciais teórico-
-metodológicos para melhor compreensão do objeto a ser estudado.
No processo de elaboração de textos acadêmico-científicos, conceber a palavra
como neutra, não pertencente a ninguém, ainda é uma constante, apesar de inúmeros
estudos evidenciarem que é impossível construirmos um enunciado completamente
destituído de apreciação. A simples escolha do objeto de estudo já revela as preferên-
cias do enunciador, refletindo a subjetividade presente, em maior ou menor grau, em
todos os gêneros textuais.
A construção da aparente neutralidade é resultado da recomendação – e, em alguns
casos, da imposição – de alguns manuais de Metodologia Científica. Também é decor-
rente das Normas da ABNT, particularmente, da NBR 6028:2003, que, ao enumerar
as regras gerais do resumo, prescreve o uso do verbo na voz ativa e na terceira pessoa do
singular. Embora a recomendação refira-se ao resumo, é aplicada na elaboração dos de-
mais gêneros textuais regidos pela ABNT, dentre eles, a monografia. A extensibilidade
das regras expressas, provavelmente, é motivada pelo fato de, na maioria dos gêneros
produzidos na esfera acadêmico-científica, o resumo aparecer como um dos elementos
que os formatam, e não como um gênero textual autônomo, gerando a necessidade
de o enunciador manter o paralelismo em relação ao foco enunciativo para cumprir as
exigências do “escrever bem”. É o que acontece, por exemplo, com a monografia.
Diante das considerações elencadas, nosso objetivo, neste artigo, é investigar as
formas de conceber a palavra em elementos pré-textuais de monografias de concluin-
tes de Licenciatura em Letras, atentando, especialmente, para as marcas de subjetivi-
dade, para as nuances que tais marcas impregnam os diferentes modos de empregar
a palavra, sobretudo, à forma palavra neutra, e para os possíveis influenciadores do
comportamento enunciativo dos formandos no processo de elaboração do gênero em
3
Por preceitos éticos, identiicamos os professores concluintes pela sigla PCLL (Professores Concluintes de Licenciatura em
Letras) seguida de numerais de 01 a 09, de acordo com a ordem de organização dos dados, e as suas monograias pela letra
M seguida dos numerais atribuídos a cada colaborador.
4
Seguindo ainda as prescrições éticas, omitimos todos os nomes próprios que fazem referência, direta ou indireta, aos
participantes e às instituições envolvidas na nossa pesquisa e nas dos colaboradores.
TIPO DE PESQUISA
ÁREA DE
PESQUISA PESQUISA PESQUISA DE
PESQUISA - AÇAO
BIBLIOGRÁFICA CAMPO
A teoria das inteligên-
cias múltiplas e o en-
LÍNGUA/ sino-aprendizagem de Contos Populares: o resga-
LINGUÍSTICA língua inglesa: o audio- te através da leitura (M8)
lingualismo como mé-
todo colaborativo (M4)
A denúncia social atrás
das cortinas lúdicas de
Hoje é dia de Maria (M2),
Mimese e sociedade
LITERATURA nos versos de Manuel
Bandeira (M3)
A condição feminina na
obra Senhora de José
de Alencar (M9)
A literatura infanto-juve- Projetos Escolares:
nil com o apoio de ima- fonte de pesquisa e
Contos de Fada: um re-
gens como estímulo da motivação na prática
PEDAGOGIA curso motivador para
leitura e escrita para alu- da leitura no ensino
sala de aula (M1)
nos com necessidades fundamental da Esco-
especiais auditivas (M6) la [...] (M7)
5
Convém reiterarmos que o termo palavra neutra da língua não implica ausência de subjetividade, signiica uma opção
linguístico-discursiva que apresenta o enunciado destituindo-o de demarcação da autoria, tornando-o impessoal.
INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO:
BREVE PANORAMA
O ISD nasceu da preocupação didática de um grupo de pesquisadores da Uni-
dade de Didática de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da
Universidade de Genebra de adaptar os modelos teóricos e os resultados das pesquisas
empíricas sobre o ensino e a aprendizagem de línguas à realidade das salas de aula e
à do trabalho do professor (BRONCKART, 2006, p. 13), contemplando a criação
de um construto não apenas teórico, mas, sobretudo, metodológico. Procurando al-
cançar as metas supracitadas, Jean-Paul Bronckart, o coordenador do grupo, Auguste
Pasquier, Bernard Schneuwly, Clairette Davaud, Daniel Bain, Joaquim Dolz, Itzair
Plazaola, Marie-Josèphe Besson, e outros estudiosos, começaram a esboçar, na década
de 1980, os parâmetros norteadores do ISD. Os conceitos gerais do arcabouço teóri-
co-metodológico projetado, em virtude de seu caráter constitutivamente transdiscipli-
nar, permitiram o surgimento de encaminhamentos específicos, os quais se encontram
em constante processo de (re) construção e aprofundamento com o intuito de atender
às especificidades do extenso campo de aplicação que lhe é próprio.
O ISD pauta-se em abordagens teóricas que consideram as dimensões psicos-
sociais do desenvolvimento e investiga, dentre outros temas, o papel exercido pelos
instrumentos, pela linguagem e pela cooperação social na construção da consciência,
considerando a articulação entre as representações coletivas, sociais e individuais na
análise das estruturas e dos modos de funcionamento sociais (BRONCKART, 1999,
p. 23). E defende a indissolubilidade da interligação entre os aspectos linguísticos,
psicológicos e sociais, como também a sua evidenciação nas práticas linguageiras si-
tuadas (ou nos textos-discursos). Sustenta ainda que essas práticas são as principais
responsáveis pelo desenvolvimento humano, em toda sua amplitude, tanto no que se
refere aos conhecimentos, aos saberes e às capacidades do agir, no que diz respeito à
identidade das pessoas.
Na organização analítica, pautamo-nos na proposição de Machado e Bronckart
(2009), que compreende quatro níveis de análise constituídos por diferentes catego-
rias, as quais se interligam e se complementam:
Aurélia.
“Quando menino, no sertão de Minas, onde nasci e me criei, meus pais costumavam
pagar a velhas contadeiras de estórias. Elas iam à minha casa só para contar casos. E
as velhas, nas puras misturas, me contavam estórias de fadas e de vacas, de bois e reis.
Adorava escutá-las.”
Guimarães Rosa
A forma palavra nossa também é empregada por PCLL 05, PCLL 02 e PCLL
06. Em M5, a palavra nossa é utilizada com a finalidade de explicitar o objetivo do
trabalho de pesquisa realizado: temos o intuito de oferecer subsídios para os professores
de língua portuguesa, e a forma como fará isso, a partir de uma visão esclarecedora a
respeito da exclusão social. Dessa maneira, assume e atribui a responsabilidade enuncia-
tiva pelo conteúdo que será abordado e define a tonalidade expressiva que empregará.
Com este trabalho, temos o intuito de oferecer subsídios para os professores de língua
portuguesa, a partir de uma visão esclarecedora a respeito da exclusão social que é dita
como um processo sócio-histórico caracterizado pela reação de grupos sociais, referente aos
interesses da vida social, sem possibilidade de participação.
• Exemplo 13: M5 – Resumo - PCLL 05
de o tom assinalado não nos permitir detectar o responsável pelas palavras enunciadas,
demarca a presença de sua subjetividade, de sua expressividade. Outra peculiaridade
do Sumário de PCLL 02, precisamente no subitem 1.2 é o resgate, não sinalizado, de
uma frase de Simónides de Ceos:
1 O ENCANTAMENTO DO TEXTO LITERÁRIO------------------------------------------------------------------------------------------- 10
1.1 NOS TRILHOS DA HISTÓRIA --------------------------------------------------------------------------------------------- 10
1.2 PINTURA É POESIA MUDA E POESIA PINTURA QUE FALA -------------------------------------------------------- 13
1.3 A BELEZA DOS SIGNOS --------------------------------------------------------------------------------------------------- 17
2 A LUZ DO MARAVILHOSO ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 20
2.1 O NÉCTAR DOS DEUSES -------------------------------------------------------------------------------------------------- 20
2.2 O REFLEXO DAS ESCRITURAS SAGRADAS --------------------------------------------------------------------------- 23
2.3 A MAGIA LENDÁRIA ------------------------------------------------------------------------------------------------------- 27
2.4 ERA UMA VEZ --------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 29
3 A SECA COMO INSTRUMENTO DE PODER -------------------------------------------------------------------------------------------- 36
3.1 REPRESENTAÇÕES DO REAL -------------------------------------------------------------------------------------------- 36
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na maioria dos elementos pré-textuais das monografias analisadas, percebemos a
predominância da forma palavra neutra da língua, porém dotada de diferentes níveis
de subjetividade. Contudo, algumas monografias da área de literatura quebram essa
“neutralidade” através da inserção de capas artísticas. Fogem ao predomínio da aparen-
te neutralidade os elementos Epígrafe, Dedicatória e Agradecimentos. No primeiro,
predomina a forma palavra de outrem, mas é, subjetivamente, assumida como alheia-
-própria. Quando a Epígrafe selecionada é elaborada na primeira pessoa do plural e,
principalmente, na primeira pessoa do singular, a relação de compartilhamento inten-
sifica-se. No segundo, Dedicatória, a minha palavra é empregada com exclusividade.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1952-1953].
––––––––––. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão
Tezza da edição americana Toward a philosophy of the act. Austin: University of Texas
Press, 1993 [1920]. (Tradução realizada para uso didático e acadêmico).
BRONCKART, J-P. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo
sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999.
––––––––––. Os gêneros de textos e os tipos de discurso como formatos das intera-
ções propiciadoras de desenvolvimento. In.: MACHADO, A. R. e MATENCIO, M.
de L. M.. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas, SP:
Mercado das Letras, 2006.
MACHADO, A. R.; BRONCKART, J-P. (Re-)configurações do trabalho do professor cons-
truídas nos e pelos textos: a perspectiva metodológica do Grupo ALTER-LAEL. In.: ABREU-
-TARDELLI, L. S. ; CRISTOVÃO, V. L. L. (Orgs.). Linguagem e Educação: o trabalho do
professor em uma nova perspectiva. Campinas: Mercado de Letras, 2009, pp. 31-77.
RESUMO: No presente artigo, temos como objetivo refletir sobre as práticas discur-
sivas de leitura e de escrita em/na rede, mais especificamente, sobre os percursos de
leitura/escrita realizados por professores em formação e já formados, com base num
motor de busca da internet. Interessa-nos, de maneira particularizada, investigar: i)
as relações (hiper)textuais estabelecidas no enredamento entendido como viabilizado
por recursos eletrônicos; ii) as marcas discursivas que (se) fazem emergir (n)um modo
singular de ler (e de escrever). O conjunto do material foi produzido num curso de
extensão universitário sobre leitura e ciberespaço, cuja proposta consistia na produção
de um desenho do percurso de leitura num motor de busca da internet, a partir do
significante “maçã”. Inscritas no referencial teórico da Análise do Discurso francesa e
em pressupostos advindos dos Novos Estudos de Letramento (New Literacy Studies),
procuramos discutir o funcionamento de mecanismos de busca da internet e os efeitos
de sentidos produzidos pelo sujeito em seu trajeto de leitura/escrita.
Palavras-chave: Letramento Acadêmico; Leitura; Escrita; (Hiper)texto; Rede.
ABSTRACT: The present article aims at reflecting about the discursive practices of
writing and reading on the net, more specifically about the writing and reading meth-
ods used by the undergraduate and graduated teachers, based on an internet search
engine. It’s of interest to investigate: i) the (hyper) textual relations established in the
context thought as permitted by the electronic resources; ii) the discursive marks that
arise (are arisen) in a singular way of reading (and/or writing). The set of material was
produced during a university extension course about reading and cyberspace, whose
context consisted of a drawing production of the reading process on an internet search
engine, on the basis of the signifier “apple”. Based on the French Discourse Analysis
and assumptions from the New Literacy Studies, we intended to discuss the operating
procedures of the internet search and the effects of meanings produced by the subject
during his/her reading/writing process.
keywords: Academic Literacy; Reading; Writing; (Hyper)Text; Net.
*
Universidade Estadual Paulista (UNESP), São José do Rio Preto (SP), Doutora em Linguística, Professora Assistente
Doutora, e-mail: komesu@ibilce.unesp.br
**
Universidade Estadual Paulista (UNESP), São José do Rio Preto (SP), Doutora em Linguística Aplicada, Pesquisadora no
Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da UNESP/SJRP, Bolsista PNPD/CAPES, e-mail: fcsgalli@hotmail.com
usuário, tal como coloca Wu (2003 apud Santos, 2014), a ideia de neutralidade pa-
rece ficar comprometida, em especial, se associada à proposta do “end-to-end, que diz
que o controle da rede deve estar nas pontas, ou seja, os intermediários (provedores
de acesso) devem abster-se de tomar decisões que cabem apenas aos usuários finais”
(SANTOS, 2014). A noção de neutralidade da rede fica também comprometida se se
pensar a oferta de conteúdos personalizados para cada usuário, conforme discute Pari-
ser (2012) em O filtro invisível. Para o autor, toda busca funciona de modo a filtrar as
informações da rede, oferecendo como resultado aquilo que “o algoritmo do Google
sugere ser melhor para cada usuário específico” (PARISER, 2012, p.8), a partir de téc-
nicas – como IP, cookies, histórico (ver nota de rodapé n.. 4) – que possibilitam o acesso
a conteúdo “perfeito” e, ao mesmo tempo, privilegiem o “indispensável” e omitam o
“irrelevante” para o usuário. Do ponto de vista da chamada inteligência artificial, tra-
ta-se de algoritmos capazes de estabelecer correspondência entre usuário (consumidor)
e hábitos (de consumo) registrados em seu histórico como navegador na internet; do
ponto de vista etnográfico-discursivo, trata-se do mapeamento de práticas de leitura e
escrita, as quais colocam em evidência práticas discursivas do sujeito segundo memória
discursiva da linguagem.
A ideia de que existiria “filtro invisível” que regeria o funcionamento de motores
de busca na internet – não havendo, portanto, princípio de neutralidade de acesso
à informação, bem maior em sociedades ditas democráticas – se aproxima, de certa
maneira, da consideração de aspectos “ocultos” que regem práticas letradas, de modo
geral, e práticas letradas acadêmicas, de maneira específica, na reflexão promovida,
dentre outros, por Lea e Street (2006), Street (2009) e Corrêa (2011). Segundo Street
(2009), aspectos “ocultos” são colocados em evidência quando, por exemplo, da ava-
liação de produções textuais acadêmicas, uma vez que existiriam aspectos cobrados na
avaliação feita por supervisores, assessores e editores de revista, os quais não são expli-
citados nem discutidos no processo de ensino. Em Lea e Street (2006), Corrêa (2011)
observa que, embora o tema dos aspectos “ocultos” do letramento não seja central
naquele trabalho, há momentos em que a questão do letramento “oculto” reaparece,
a exemplo, ainda segundo esse autor, do chamado modelo de letramentos acadêmicos
que, ao destacar relações entre pessoas, instituições e identidades, “ocultaria” “contra-
dições que definem, em termos de linguagem, as pessoas, as instituições e as próprias
identidades sociais”.
De nosso ponto de vista, essa aproximação entre “filtro invisível” e “aspectos
‘ocultos’ dos letramentos acadêmicos” permite pensar questões relacionadas ao profes-
sor em formação e ao já formado num contexto sócio-histórico que, inegavelmente,
privilegia o uso de tecnologias de informação e comunicação, tanto da perspectiva
do profissional em formação quanto da perspectiva do aluno (de uma sociedade) que
poderá formar. Trata-se da passagem de uma concepção de sujeito empírico para uma
concepção de sujeito do discurso (CORRÊA, 2011) constituído num processo discur-
sivo que é lhe mais amplo. Para o que nos interessa, trata-se da passagem de uma con-
cepção de usuário das tecnologias para sujeito da linguagem constituído em meio a pro-
cedimentos nem sempre evidentes (visíveis, aparentes), não porque sejam da ordem
da censura ou da violência, mas porque são da ordem do(s) discurso(s) (FOUCAULT,
1996; PÊCHEUX, 2002; 2009), do que pode ser lido/visto e escrito/dito em função
de já-ditos os quais, situados no processo discursivo, historicizam a condição de sujeito
da linguagem (CORRÊA, 2011).
Se, da perspectiva da técnica, há potencial de acesso a tudo que está em rede, da
perspectiva do discurso há procedimentos que constrangem a emergência de um “su-
per-leitor” (o que poderia ler e produzir quaisquer textos), ainda que seja esse, certa-
mente, um dos objetivos de professores em formação e dos já formados. Interessa-nos,
pois, “observar as implicações discursivas dessas técnicas” (FARIA, 2014, p.15) quanto
a percursos de leitura/escrita na/em rede, a partir de um motor de busca da internet, o
que nos encaminha para uma reflexão sobre o funcionamento da linguagem na relação
com a história e com a ideologia, e nos faz problematizar: i) as relações (hiper)textuais
estabelecidas no enredamento entendido como viabilizado por recursos eletrônicos; ii)
as marcas discursivas que (se) fazem emergir (n)um modo singular de ler (e de escre-
ver). Considerar que um motor de busca como o Google pode mostrar ou ocultar in-
formações, ou, ainda, “adivinhar” aquilo que o usuário vai escrever para, então, filtrar
e moldar fluxo dos conteúdos, significa assumir que a técnica pode controlar o que é
da ordem dos discursos. No âmbito da linguagem, é sabido que, mesmo diante de re-
sultados semelhantes, a repetição emerge estruturalmente e, no plano da significação,
“desliza” na produção e disseminação dos sentidos.
FIGURA 1 – Resultados para pesquisa de “maçã” no motor de busca Google
7
A codiicação é referente a: número da atividade em projeto de pesquisa mais amplo (Atividade 5, portanto, A5); número
aleatoriamente atribuído ao participante da pesquisa.
em branco num fundo azul, de “lupa” para indicação de busca/pesquisa. O texto verbal
escrito seguinte indica, a exemplo do que apareceria numa página eletrônica, quanti-
dade aproximada de páginas on-line em que aquela palavra-chave aparece; comentário
parentético no qual aparece o tempo cronológico transcorrido para a execução da pes-
quisa; “chamadas” de páginas eletrônicas em que “maçã” é destaque. A imagem de uma
maçã aparece desenhada na parte central ao final da página de papel; a “tela do compu-
tador” é encerrada com um “botão” de “desligar” na parte inferior à direita.
O que poderia ser entendido como repetição da técnica, de resultados oferecidos
pela ferramenta, é, de nosso ponto de vista, (re)afirmação de discursos que se cons-
tituem “no entrecruzamento da linguagem e da história”, na legitimação de práticas
sociais relacionadas a, por exemplo, saúde (benefícios de uma alimentação saudável),
ciência (necessidade de ingestão de vitaminas), acesso a conhecimento (utilização de
enciclopédia livre) num tempo histórico caracterizado e reconhecido por tecnologias
de informação e comunicação. Podemos dizer, pois, com Street (2007), que ler/escre-
ver são práticas sociais que envolvem poder e autoridade, segundo modelo ideológi-
co de leitura/escrita. Esse “modelo ideológico” proposto pelo autor busca reconhecer
multiplicidade de letramentos, já que o “significado e os usos das práticas de letra-
mento estão relacionados com contextos culturais específicos”, e, portanto, se estão
associadas a relações de poder e ideologia, “não são simplesmente tecnologias neutras”
(STREET, 2007, p.466).
A “reprodução” da tela do computador configura ainda resposta dada pelo pro-
fessor em formação ou pelo já formado à instituição: há o cumprimento da tarefa
acadêmica solicitada num diálogo formal: o que é pedido (pela instituição) é feito (pelo
sujeito), em (suas) relações (hiper)textuais singulares (não porque sejam individuais,
mas porque expõem, por presença ou por ausência, constituição sócio-histórica da sub-
jetividade). Essa talvez fosse uma tarefa feita por aluno desse (futuro) professor numa
escola tradicional. É como se o professor em formação não conseguisse projetar uma
imagem de si distante da imagem de aluno que tem obrigação de cumprir a tarefa da
escola, na (re)produção de sentidos sócio-historicamente estabelecidos para o posicio-
namento “aluno”.
A produção textual apresentada na Figura 3, por sua vez, “desliza” para sentidos
outros. O ponto de partida é o motor de busca Google, mas a descrição do percurso
de leitura a partir de “maçã”, embora indique pontos de semelhança com a produção
textual vista na Figura 2 (“maçã” > “saúde” > “dieta”), indica outras possibilidades
de leitura relacionadas a paladar (“suculenta”) e à alimentação (“maçã do amor”); à
colheita como cultura (da agricultura ao Halloween e à brincadeira em que crianças
têm de pegar, com a boca, maçãs que flutuam numa bacia com água); à religião (na
menção ao Livro do Gênesis em que Eva teria comido o “fruto proibido” da árvore da
ciência, condenando a humanidade à privação da perfeição e de uma vida infindável).
De nosso ponto de vista, esse “desenho” de percurso de leitura também expõe (por
DAS CONCLUSÕES
Para o que interessa ao professor em formação e/ou ao já formado, os chamados
motores de busca da internet têm se configurado como ferramenta indispensável na
própria formação acadêmica e na formação acadêmica dos (futuros) alunos. Benefícios
são entendidos como de forte impacto na produção de conhecimento: acesso à infor-
mação facilitado, considerando-se que não há necessidade de deslocamento físico para
lugares como, por exemplo, bibliotecas; acesso facilitado a obras em língua estrangeira,
mediante auxílio de tradutores automáticos; acesso, enfim, a qualquer texto disponível
em rede, levando-se em conta que o buscador poderá recuperá-lo on-line.
Da perspectiva do professor em formação e/ou do já formado e também da de seu
aluno, parece haver pouca ou nenhuma percepção de “filtros invisíveis” que consti-
tuem o modo de acesso a e a produção de conhecimento na rede. Não se trata de algo a
desvelar ou, ainda, de controle, censura, violência ao dizer, mas de procedimentos que
permitem acesso a conteúdo “perfeito”, àquilo que o usuário gostaria (ou se imagina
que ele gostaria), de fato, de encontrar numa pesquisa eletrônica. Vimos, com Pariser
(2012), como esses procedimentos privilegiam traço associado, em geral, a práticas de
consumo, no estabelecimento de correspondência entre “produção do conhecimento”
e “consumo” (de informação, de bens materiais). Esta seria uma primeira contribuição
deste trabalho no que se refere à proposta de formação no contexto acadêmico: o en-
tendimento de que a neutralidade da rede é frágil tanto do ponto de vista da técnica
quanto do ponto de vista do discurso, uma vez que a memória discursiva que envolve,
que constitui a rede (mas não somente) tem o poder de legitimar determinadas práticas
de leitura e escrita (não quaisquer umas), em geral, as privilegiadas por grupos sociais
que detêm poder e autoridade políticos, culturais, econômicos. Ao mesmo tempo,
é possível discutir como a rede permite a emergência de grupos menos prestigiados,
ainda que não tenham a mesma visibilidade seja por meio da técnica, seja pela consti-
tuição dos discursos.
Da perspectiva dos estudos de letramento acadêmico, avaliamos ser possível a
aproximação entre o conceito de “filtro invisível” (de práticas dos usuários da tecnolo-
gias) e o conceito de aspectos “ocultos” dos letramentos acadêmicos, considerando-se,
com Corrêa (2011), que ao destacar relações entre pessoas, instituições e identidades
REFERÊNCIAS
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GRESSO IBERO-AMERICANO EDUCAREDE, 2006, São Paulo. Anais do III
Congresso Ibero-Americano EducaRede. São Paulo: CENPEC, 2006, p.81-86.
CAVALCANTE, M. C. B. Mapeamento e produção de sentido: os links no hiper-
texto. In.: MARCUSCHI, L. A.; XAVIER, A. C. (Org.). Hipertexto e gêneros digitais:
novas formas de construção do sentido. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004, p.163-169.
CORACINI, M. J.R. F. Leitura: decodificação, processo discursivo...? In.: ______.
(Org.). O jogo discursivo na aula de leitura: língua materna e língua estrangeira. 2ª ed.
Campinas: Pontes, 2002, p.13-20.
overlaps and complementarities with respect to the use practices of the traditional (re)
writing evidencing social practices which materialized in human actions, replicate in
the digital sphere what is already established in the traditional.
Keywords: teacher training, rewriting, digital plataforms.
INTRODUÇÃO
A escola contemporânea, na denominada “era da informação”, tem como uma
das atribuições fundamentais capacitar os alunos para “o acesso ao conhecimento e
exercício da cidadania” (Lei nº 9.394/96), bem como proporcionar que as práticas de
leitura e de escrita de variados textos sejam constantes. As tecnologias da informação
e comunicação (daqui em diante apenas TIC) criaram novos espaços e ferramentas
comunicativas que transcendem os limites físicos e temporais, caracterizando um am-
biente de natureza essencialmente virtual denominado de ciberespaço, definido por
Levy (1999, p.92) “como o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial
dos computadores e das memórias dos computadores” (Ibid., p.92). Ele afirma que
hoje existe no mundo uma profusão de correntes literárias, musicais, artísticas, e talvez
até políticas que se dizem parte da “cibercultura”. Nesse ambiente, há as comunidades
virtuais que se configuram pelo agrupamento de pessoas com interesses afins, seja no
campo artístico-cultural, mercadológico-industrial, acadêmico-educacional, militar,
político, humorístico ou de entretenimento, dentre outros. Segundo Sartori e Roesler
(2003, p. 3), “seu funcionamento está diretamente ligado, num primeiro momento,
às redes de conexões proporcionadas pelas tecnologias de informação e comunicação
e, num segundo momento, à possibilidade de, neste espaço, pessoas com objetivos co-
muns, se encontrarem, estabelecerem relações, e desenvolverem novas subjetividades”.
Atento a isso, Marcuschi (2004), ao enfocar a natureza das novas tecnologias,
defende que o surgimento da internet e a consequente criação da rede social (virtual)
estabelecem uma nova noção de interação social que favorece a criação de verdadeiras
redes de interesse: as “comunidades virtuais” em que os membros interagem de modo
rápido e eficaz. Entendemos comunidades de práticas de aprendizado como comuni-
dades virtuais de aprendizagem que se empenham para determinado objetivo comum,
compartilhado, interconectado na web. No contexto educacional, o propósito princi-
pal pode e deve ser o ensino-aprendizagem. Conforme Sartori e Roesler (2003), “Den-
tre as comunidades virtuais, encontramos comunidades voltadas para a educação, para
a formação on-line, ou seja, as comunidades virtuais de aprendizagem [...]” em que
são estabelecidas relações com o objetivo comum de aprender. Em estudo recente,
Costa (2010, p. 24) pontua que, na aprendizagem em ambiente digital, é essencial
a formação de comunidades de práticas de aprendizado. Segundo a autora, “[...] a
constituição de comunidades virtuais de aprendizagem guia a realização e, por vezes, o
envolvimento dos alunos com a tarefa [...]”. Para concluir, acrescenta “[...] Nesse caso,
3
É importante esclarecer que, embora tentássemos limitar as interações apenas ao AVA Moodle, com o uso do “quickmail”
ou “mensagens”, notamos que o uso do endereço eletrônico convencional (e-mail) foi o mais recorrente, com a turma de
graduandos em Letras, prevalecendo sobre aquela plataforma.
A NOÇÃO DE REESCRITA
No processo de produção textual, sabemos que o planejamento, a produção efeti-
va do texto, a leitura pelo sujeito autorizado – normalmente o professor – e a reescrita
são, do ponto de vista didático, fases que envolvem a produção escrita. Essa perspec-
tiva didática é tanto mais importante quanto mais se considere que, do ponto de vista
da construção do enunciado e do texto, não há escrita sem reescrita. Pelo menos no
sentido de que, no ato de produção do enunciado e do texto (isto é, na produção de
linguagem), planejamento e execução não se traduzem em etapas separadas que corres-
pondessem a um momento “t” para o pensamento e outro “t1” para a linguagem. Pelo
contrário, por serem processos intimamente relacionados, não raro se apresentam,
tanto na fala quanto na escrita, como vozes que se replicam ao dividirem o mesmo
tempo. De difícil separação, portanto, do ponto de vista da construção do enunciado
e do texto, podem produtivamente configurar, porém, do ponto de vista didático,
diferentes momentos da produção do texto. Por isso, visando a um ensino da escrita,
trabalhar com reescrita de textos pode servir para exercitar o distanciamento do autor
em relação ao seu próprio texto. Ao focalizar a escrita como uma atividade, um pro-
cesso contínuo, sistemático, alguns estudiosos têm evidenciado, dentre as suas etapas
de realização, a reescrita, defendendo-a como um objeto de ensino-aprendizagem a ser
contemplado por currículos escolares/acadêmicos.
Nessa direção, a noção de reescrita adotada neste artigo alinha-se ao que propõem
Fiad e Barros (2003, p.10), a saber, uma ação sobre a textualidade e sobre a discursivida-
de, “[...] uma atividade metaenunciativa que constitui um retorno sobre o dizer [...]” de
própria autoria ou de outrem. Compreendemos a reescrita como uma ação de distan-
ciamento enunciativo (crítico, pode-se dizer) delineada pela constante tentativa de se
expressar ou expressar algo do modo mais adequado à situação comunicativa subjacen-
te. A reescrita, objeto deste trabalho, implica revisitar o próprio texto4 ou o texto alheio
com vistas a adequá-lo, em termos linguísticos e discursivos. No entanto, um fator con-
siderado imprescindível neste aprimoramento é a intervenção didática do leitor (neste
caso, representado pelo professor-pesquisador) que, por meio do bilhete-interativo e de
outros gêneros catalisadores (apontamentos, comentários nas margens do texto), guia
dialogicamente as ações a serem implementadas ou não pelos estudantes.
Nessa mediação, o professor deixa de ser um mero espectador ou avaliador do
produto “texto” e, evidenciando o processo de produção textual por meio do uso das
TIC, assume ora o lugar de escrevente, ora de coescrevente, ora de destinatário, tra-
balhando, nos dois casos, de modo colaborativo com o seu aluno. Assim construída
a reescrita como objeto de investigação, cabe-nos apresentar o panorama no qual esta
atividade é (ou não) praticada, de modo sistemático. Abordaremos esta questão ao
dialogarmos com alguns teóricos na seção subsequente.
4
Nas atividades de reescrita, trabalhamos exclusivamente com reescritas de textos de autoria própria. Os sujeitos da pesquisa
intervieram, com o auxílio do pesquisador, em suas próprias produções. Em se tratando de um trabalho gerador de uma nova
versão textual, a reescrita demanda naturalmente a reescrita textual.
O LEGADO TRADICIONAL
Ao debruçarmos sobre a literatura e selecionarmos os aspectos teóricos que emba-
sam esta pesquisa constatamos, por exemplo, que Serafini (1995) defende a ocorrência
de três tipos de correção que regulam o processo de reescrita de alunos em um contex-
to tradicional5 (correção indicativa, resolutiva e classificatória). A Indicativa consiste
no apontamento, junto à margem ou no corpo do texto, de palavras, orações que
apresentam desvios para a norma padrão da língua. Nesta modalidade, o aluno é quem
deve “descobrir” a que tipo de erro se refere seu interlocutor. A segunda modalidade,
chamada de Resolutiva, consiste na reescrita de palavras, frases e períodos. Resta, neste
tipo de revisão, muito pouco ao aluno, já que as intervenções são reelaboradas pelo
professor. A terceira modalidade, conhecida como Classificatória, consiste na anota-
ção, normalmente ao lado dos desvios de norma, um código que determina a inade-
quação cometida. Por exemplo, se o código é M de maiúscula, significa que o registro
de determinada palavra deveria ser grafada com letra maiúscula e não minúscula.
Ruiz (2001) defende o tipo textual-interativo pautado no uso do bilhete intera-
tivo pós-textual. Esse tipo de intervenção materializa-se na inserção de comentários
mais extensos, geralmente escritos, “em sequência ao texto do aluno”, no “pós-texto”.
Ruiz observa que sequencialmente esse bilhete pode refletir distintos momentos da in-
teração professor-aluno, ou seja, a troca de turnos empreendida na interlocução “alu-
no-produtor, professor-corretor, aluno-revisor”. O conteúdo desse bilhete abordaria
aspectos não contemplados pelas demais tipologias de correção propostas por Serafini
(2001), em geral, relacionadas com a função de “falar acerca da tarefa de revisão pelo
aluno” (problemas do texto) ou falar, “metadiscursivamente, acerca da própria tarefa
de correção pelo professor”.
5
Adotamos a terminologia “tradicional” para designar o contexto da escrita convencional, ou seja, onde prevalecem em detrimento
da fala, as graias, as letras, sobretudo, manuscritas. Por outro viés, o contexto digital denota o ambiente no qual a linguagem é
híbrida, contemplada não somente por letras editadas eletronicamente, mas por multissemioses agregadoras de imagens, sons, ícones,
iguras, cores, realces, etc. Portanto, entendemos que o contexto digital não exclui a graia, reforça-a em nuances.
peer response - EPR” que contribui com os textos dos colegas por meio do uso de um
fórum no Moodle. Esses pesquisadores, com o objetivo de capacitar os participantes da
pesquisa a serem eficazes em suas intervenções ou feedback ofertaram uma sessão de
treinamento, ministrada para todos os 20 participantes, dividida em duas fases, com
duração de 6 horas: a) na primeira fase, com duração de 2 horas semanais e totalizando
quatro horas em sala de aula, os alunos foram ensinados a: onde deveriam procurar/
intervir, quais perguntas deveriam fazer, como os comentários deveriam ser gerados
em termos de conteúdo, organização e uso da linguagem (incluindo gramática, vo-
cabulário e operações); b) na segunda fase, com duração de 2 horas no laboratório
de informática, o propósito foi ajudar os alunos a transporem problemas técnicos e a
se familiarizarem com os recursos do Moodle, mostrando e instruindo-os sobre boas
amostras de comentários. Os estudiosos chineses concluem que, em termos qualita-
tivos, os textos revisados e reescritos pelos usuários da plataforma on-line atingiram
um nível de textualidade mais elevado, em virtude de considerarem e utilizarem os
apontamentos ou comentários recebidos dos pares.
Noutro contexto de uso das tecnologias no ensino de Inglês, Chang (2012) relata
um estudo que investiga como uma combinação de três modos de interação “face a
face, síncrona e assíncrona” influencia e pode favorecer a revisão de textos realizada
por pares dos alunos. Os resultados da pesquisa, segundo o autor, indicam que o ajuste
dos três modos de interação propicia o engajamento na tarefa de revisão textual, além
de permitir o estabelecimento de categorias de comentários e a percepção/aceitação de
sugestões proveniente da revisão feita pelos pares.
No contexto de formação inicial do professor, na disciplina Estágio Supervisio-
nado de Língua Portuguesa, Silva, Santos e Mendes (2014) focalizaram o letramento
acadêmico do professor por meio de relatórios produzidos por alunos-mestre. Segun-
do os autores, estes relatórios, que deveriam contemplar análises críticas das atividades
de observação e regência de aulas ministradas na Educação Básica, à medida que foram
reescritos, após a intervenção do professor-formador, além de momentos da prática
nas escolas-campo, viabilizaram a conscientização do processo de avaliação formati-
va e o aprimoramento da escrita e do letramento dos acadêmicos. Nessa abordagem
da reescrita com o uso da ferramenta de revisão textual do Word e o e-mail servindo
como tecnologia de envio da mensagem Silva, Santos e Mendes (2014) identificaram
a existência de três categorias de atividades linguísticas que informavam o processo de
reescrita do gênero relatório de estágio supervisionado: a) apagamento da informação
apresentada (a omissão de passagem/trecho que outrora constava na primeira versão);
b) fuga da informação solicitada (aparente não compreensão da intervenção/questio-
namento ou ignorância/indiferença quanto à proposta ou à orientação realizadas pelo
professor); c) expansão reflexiva da informação apresentada (atendimento à indicação
de reescrita em conformidade com as solicitações do professor-formador, resultando
explicações adicionais com mais criticidade e produtividade). Os autores defendem
que, mesmo com algumas limitações, em virtude dos desencontros entre sentidos pre-
4º ano Letras 16 14 11
Total 16 14 11
2 Reforço positivo/motivação 4 2 0
4 Correção Resolutiva 1 1 0
CATEGORIAS DE INTERVENÇÕES
DO PROFESSOR-PESQUISADOR
Nesta seção, primeiramente, realçamos as seguintes observações a serem constata-
das nos quadros apresentados ao longo do trabalho (por exemplo, Quadro 4 adiante):
1. O grifo com a cor da fonte vermelha indica o local exato onde foi materializada a
intervenção numa das três modalidades: a) inserção de comentário em um “balão” de
revisão textual do aplicativo Office Word; b) apontando a inadequação com o realce em
amarelo ou c) resolvendo a inadequação com o uso da ferramenta de revisão “controlar
alterações”9; 2. Os trechos na segunda ou terceira versões, com cor da fonte azul indi-
cam as alterações efetuadas pelo acadêmico na reescrita10.
Esclarecemos que os grifos nos quadros se atêm à categoria em pauta, ou seja, a
transcrição dos exemplos/excertos leva em consideração o grifo pertinente à categoria
que se quer evidenciar e não a todas as intervenções presentes em determinado trecho
textual. Portanto, uma inadequação aparentemente não “tratada” em um quadro, possi-
velmente aparece em outro vinculado a (ou que ilustra) outra categoria de intervenção.
Observe-se que leitura e reescrita fazem parte do “caráter responsivo ativo”
(BAKHTIN, 2003 [1952-1953]) assumido pelos enunciados dos agentes em intera-
ção, responsividade que, no caso, ganha contornos institucionais explícitos em virtude
9
Na impossibilidade de trazer ao trabalho o “suporte”, ou seja, a mídia em que as reescritas ocorreram, ilustramos parte do
processo e dos resultados com produções escritas apresentadas no apêndice deste artigo.
10
É importante enfatizar que o conteúdo dos excertos foi transcrito ipsis litteris apresentando, naturalmente, desvios ou
inadequações à norma culta/padrão da língua portuguesa (alguns abarcados pelo processo de intervenção, outros não).
Intervenção /
Exemplo 1ª versão 2ª versão
mediação
A Palavra Bíblia que é defi- A palavra bíblia é definida pelo
nida pelo dicionário Aurélio dicionário Aurélio como:[...] en-
como: [...] entretanto no dis- tretanto, no discurso religioso,
curso religioso, ao tecerem ao tecerem definições sobre a
definições sobre a homos- homossexualidade usam expres-
sexualidade expressões tais sões tais como: “A bíblia condena”,
como: “A Bíblia condena”, “A bíblia denuncia”. Essas expres-
“A Bíblia denuncia”, são fre- sões são frequentemente usadas
quentemente usadas com com o intuito de persuadir alguns
o intuito de persuadir o fiel fiéis – que possuem uma visão de
Exemplo 1 – que possui uma visão de De quem? mundo restrita – de que a homos-
Sujeito A1 mundo restrita – de que a Dos fiéis? sexualidade é abominável. Porém
homossexualidade é abo- tais expressões devem soar aos
minável e errado, entretanto ouvidos de pessoas informadas
tais expressões devem soar sobre a condição homossexual
aos ouvidos como algo do ponto de vista genético, psi-
capicioso, haja vista que a cológico e social como algo capi-
Bíblia é um conjunto de li- cioso, haja vista que a bíblia é um
vros, e que foram escritos conjunto de livros e que foram
por diferentes sociedades, escritos por diferentes socieda-
ao longo de anos, conforme des, ao longo de anos, conforme
defende o Catecismo. assegura o Catecismo.
Intervenção /
Exemplo 1ª versão 2ª versão
mediação
O que se faz necessário é tentar
O que se faz necessário é
compreender os dois lados da
tentar compreender os dois
moeda, pois, assim como ho-
lados da moeda, pois, assim
mossexuais defendem o direito
como homossexuais defen-
do reconhecimento legal de suas
dem o direito do reconheci-
uniões civis, a igreja vem para
mento legal de suas uniões Crenças e
defender a instituição do matri-
Exemplo 3 civis, a igreja vem para de- costumes com
mônio como sendo um ato úni-
Sujeito J fender a instituição do ma- base em que?
co e exclusivo por ela realizado,
trimônio como sendo um Deixe claro.
e quando realizado, é por um
ato único e exclusivo por ela
sacerdote que carrega consigo
realizada, e quando realiza-
crenças e costumes, sendo a
da, é por um sacerdote, que
união do homem à mulher uma
carrega consigo crenças e
das crenças fundamentais para
costumes . [...]
realizar o casamento cristão.
Intervenção
Exemplo 1a versão 2a versão
/mediação
[…] Discursos esses per- Discursos esses, que norteiam
meiam a vida do sujeito, que esse artigo, pois permeiam a
por sua vez haverá de definir vida do sujeito, que por sua vez,
quando solicitado um posi- haverá de definir quando solici-
cionamento que pode não tado, um posicionamento que
corresponder com as expec- pode não corresponder com as
tativas da religião/ bíblia. Em expectativas da religião/ bíblia.
Exemplo 1 meio a tais questões cabe-nos Boa Em meio a tais questões cabe a
Sujeito A1 uma questão: o que a união observação! nós uma questão: o que a união
civil de duas pessoas de orien- civil de duas pessoas de orien-
tação sexual pode interferir na tação sexual homossexual pode
vida do indivíduo ou socieda- interferir na vida do indivíduo ou
de? Tendo em vista, que essa sociedade? Tendo em vista, que
resposta é subjetiva, tentarei essa resposta é subjetiva, tenta-
não respondê-la, mas ampliar rei não respondê-la, mas ampliar
as possibilidades de resposta. as possibilidades de resposta.
Pontuo o fato, de que, tanto a
Pontuo o fato, de que, tanto a
igreja não tem o direito de in-
igreja não tem o direito de inter-
terferir nas decisões civis rela-
ferir nas decisões civis relaciona-
cionadas as questões homos-
das às questões homossexuais,
sexuais, já que tais decisões
já que tais decisões passaram do
Exemplo 1 passaram do âmbito de serem Bom posicio-
âmbito de serem julgadas pura
Sujeito J julgadas pura e simplesmen- namento!
e simplesmente como atos imo-
te como atos imorais, quanto
rais, quanto casais homossexuais
casais homossexuais de exigir
de exigir que se possam casar na
que se possam casar na igreja,
igreja, pois tal ato é inaceitável
pois tal ato é inaceitável para
para doutrina cristã.
doutrina cristã.
É importante ressaltar que a
intolerância homossexual é
É importante ressaltar que a into-
caracterizada como homo-
lerância homossexual é caracteri-
fobia sendo considerado um
zada como um crime. A Constitui-
crime. A Constituição Federal Feche aspas
ção Federal brasileira define como
Exemplo 2 brasileira define como “objeti- Bom argu-
“objetivo fundamental da repúbli-
Sujeito J3 vo fundamental da república” mento!
ca” (art. 3º, IV) o de “promover o
(art. 3º, IV) o de “promover o
bem de todos, sem preconceitos
bem de todos, sem preconcei-
de origem, raça, sexo, cor, idade
tos de origem, raça, sexo, cor,
ou quaisquer outras formas”.
idade ou quaisquer outras for-
mas de discriminação.
Intervenção /
Exemplo 1a versão 2a versão
mediação
[…] Já o casamento homos-
Já o casamento homossexual,
sexual, como afirma o do-
Exclua a vírgula como afirma o documento da
cumento da igreja, o Cate-
após o termo igreja “o Catecismo”, fere o di-
Exemplo 3 cismo , lesiona o direito da
igreja. Coloque reito da criança de nascer de
Sujeito L criança de nascer de um pai
(O Catecismo) um pai e de uma mãe conheci-
e de uma mãe conhecidos
entre aspas. dos dela e ligados entre si pelo
dela e ligados entre si pelo
matrimônio […]
matrimônio. […]
Se eu fosse responder dire-
Respondendo essa questão de
tamente à pergunta anterior,
modo objetivo, poderia fazer
poderia fazer uso dos posi-
uso dos posicionamentos de
cionamentos de Foucault,
Foucault que nos faz pensar
Exemplo 4 que nos faz pensar sobre o
Realce amarelo sobre o interesse da sociedade
Sujeito A1 interesse da sociedade sobre
sobre a sexualidade humana,
a sexualidade humana, ou
ou quem sabe usaria os pontos
quem sabe usaria os pontos
de vista de Marx sobre a relação:
de vista de Marx sobre a rela-
homem-religião.
ção: homem-religião. [...]
[...] É direito de casais homo [...] É direito de casais homo
afetivos a oficialização da afetivo a oficialização da união
união civil, em muitos paí- civil, por isso, em muitos países
ses eles são amparados pela eles são amparados pela lei,
lei, em outros, lutam para em outros, lutam para que isso
que isso se torne uma rea- se torne uma realidade, mas o
lidade, mas o que é impor- que é importante ressaltar aqui
Exemplo 3 Coloque um
tante ressaltar aqui é que é que merecem respeito como
Sujeito J conectivo
merecem respeito como qualquer outro casal, pois como
qualquer outro casal, pois indivíduo pertencente a uma
como individuo pertencen- sociedade, tem deveres a serem
te a uma sociedade, tem de- cumpridos, e assim sendo, tem
veres a serem cumpridos, e de desfrutar de seus direitos
assim sendo, tem de desfru- como qualquer outro individuo
tar de seus direitos também. heterossexual.
Hoje se formos pensar na
Hoje se formos pensar na ques-
questão do homossexua-
tão do homossexualismo, este
lismo, este não precisa da
Exemplo 4 Quando não precisa da aprovação da
aprovação da igreja para ser
Sujeito J ou porquanto? igreja para ser aceito, porquan-
aceito, quando está con-
to está conquistando seu espa-
quistando seu espaço e di-
ço e direitos na legislação, […]
reitos na legislação, […]
intervenção/
2a versão 3a versão
mediação
[…] Na verdade eles querem
[…] Na verdade, eles querem é banir o
é banir o matrimônio entre
pontue matrimônio entre um homem e uma
um homem e uma mulher
mulher “por toda a vida”.[…]
“por toda a vida”. […]
11
O acadêmico não se atenta para a primeira intervenção resolutiva. A adequação só ocorre após outro tipo de intervenção
(indicativa), dessa vez, realizada entre a 2ª e 3ª versão (conira quadro 7).
Intervenção
Exemplo 1a versão 2a versão
/mediação
[...] Dessa forma, o puritanismo acaba
[...] Dessa forma, o pu- sendo dilacerado pela consciência.
ritanismo acaba sendo Afastando-se dos argumentos bíblicos
dilacerado pela cons- e do posicionamento do Vaticano que
ciência. Afastado dos em 2003 lançou uma: “(...) campanha
argumentos bíblicos, mundial contra a legalização da união
devemos compreen- civil homossexual e pediu aos políti-
Exemplo 1
der que a diferença é ___ cos católicos de todo o mundo que se
Sujeito A1
elemento constituinte pronunciem de forma "clara e incisiva"
do ser humano e que contra as leis que favorecem casamen-
a forma que eu olho e tos gays.”Devemos ter em mente que
interpreto o “Outro”, de- a diferença é elemento constituinte
pende do ponto de vis- do ser humano e que a forma que eu
ta que eu adoto. olho e interpreto o “Outro”, depende
do ponto de vista que eu adoto.
[…] Isto é, para a igreja Isto é, para a igreja o matrimônio está
Exemplo 1
o matrimônio está a fa- ___ a favor da vida gerada pela fecundida-
Sujeito L
vor da vida […] de entre um homem e uma mulher.
Intervenção
Exemplo 1a versão 2a versão
/mediação
[…] Historicamente falando […] Historicamente falando,
acredita-se que este precon- acredita-se que este preconcei-
ceito tem origem na idade to tem origem na idade média,
Exemplo 1 média, onde com a expansão em que, com a crescente expansão do
Sujeito J3 do monoteísmo cristão, reli- na qual monoteísmo cristão, religiosos
giosos pregavam tal condição pregavam o homossexualismo
como uma perversão, perse- como uma perversão, perse-
guindo os e matando. guindo os e matando. […]
Não podemos continuar cegos Não podemos continuar cegos
diante desta triste realidade, diante desta triste realidade,
onde pessoas são excluídas de Por parte de em que pessoas são excluídas
direitos sociais e com medo quem? Há de direitos sociais e com medo
Exemplo 2 de expor sua identidade por informes? de expor sua identidade por
Sujeito J3 conta da represália. Somos se- O que fazer conta da represália. Somos se-
res racionais dotados de livre para mudar res racionais dotados de livre
arbitrio e ser homossexual de esse quadro? arbítrio e ser homossexual de
maneira alguma infringe o di- maneira alguma infringe o di-
reito do outro. [...] reito do outro. [...]
Intervenção /
Exemplo 1a versão 2a versão
mediação
[…] A tarefa principal Qual indivíduo? A tarefa principal dessas discus-
disso e dessas questões O fiel, o cidadão sões deve ser fazer o homem
é fazer o Homem pensar, que não deixam pensar. O homem como sujeito
pois esse exercício, deve- de ser sujeitos autônomo, autor de sua própria
Exemplo 1 -se tornar hábitos para ou assujeitados história e responsável pelas cren-
Sujeito A1 que o indivíduo não se em sociedade? ças que adere
torne uma marionete de Como eles de-
terceiros e reproduza o vem se posicio-
que os outros pensam e nar, pensando e
querem o indivíduo faça. ... fazendo o quê?
[…] Enfim, a igreja apenas E você? […] Enfim, a igreja apenas luta
luta pela permanência de Como se posicio- pela permanência de um mo-
um modelo de matrimô- na ante a união delo de matrimônio que tem
nio que tem provado na homoafetiva? provado na sociedade sua efi-
sociedade sua eficiência Como propõe ciência ao longo do tempo
ao longo do tempo para uma convivência para aqueles que acreditam.
aqueles que acreditam. pacífica entre os Acredito que não há acordo entre
militantes ho- a igreja e os militantes homosse-
mossexuais e os xuais, mas se faz possível a pro-
fiéis? É possível? moção de um diálogo permeado
Exemplo 1
pela paz, respeito e por uma con-
Sujeito D1
vivência harmoniosa, pois apesar
de não concordarmos com esse
tipo de condição de vida, pre-
cisamos amar o próximo, sem
julgamentos, uma vez que Jesus
afirmou: “Não é o que entra pela
boca que causa o mal e sim o que
sai da boca” (Mt 15:11), pois ‘to-
dos’ nós somos filhos de Deus e
temos o direito de recomeçar. [...]
Neste caso, o escrevente se apropria de parte “do texto” que compõe a intervenção
do professor. Observamos que pode haver reflexos de palavras ou orações que revelam
a especularização (BAZARIM, 2013) proposta na mediação do professor.
No exemplo 1 do sujeito A1, no quadro 10, nota-se que, apesar da incorporação
de parte do enunciado do professor, o escrevente não responde à tentativa do professor
de levá-lo à reflexão sobre o seu próprio papel quanto ao tema. Pelo contrário, essa
incorporação é, num primeiro momento, atribuída ao ser humano em geral (mesmo
falando de sujeito autônomo e alterando a grafia da palavra “homem”, na primeira
versão escrita com “h” maiúsculo). Essa atribuição generalizante, ao mesmo tempo
em que parece buscar evitar a exposição pessoal, incorpora, formalmente, o dizer do
professor num encadeamento de clichês sobre o papel do sujeito: “autor de sua própria
história”, “responsável pelas crenças que adere”. Esse encadeamento põe esse dizer em
circulação assumindo, uma vez mais, uma voz coletiva, a do senso comum.
A generalização para o ser humano também ocorre no segundo exemplo do mes-
mo quadro, exemplo 1 do sujeito D1, mas de um modo um tanto diferente. Desta vez,
é o homem segundo a fé cristã que entra em cena, a igualdade é um direito por força da
noção de perdão (e de sua contraparte, isto é, a de se reconhecer no erro, no pecado),
pois todo homem teria, segundo o escrevente, “o direito de recomeçar”. Neste caso,
o escrevente incorpora, de fato, a solicitação do professor e responde a ela na segunda
versão ao esclarecer a posição que ocuparia na primeira formulação apresentada.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução do francês por Maria Erman-
tina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2000 [1952-1953].
BARBOSA, J. P. Sequência Didática Artigo de Opinião. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.
BAZARIM, M. Os Gêneros na construção da interação entre professora e aluno(s) e
os impactos no processo de ensino-aprendizagem da escrita. In.: GONÇALVES, A.
V.; BAZARIM, M. Interação, Gêneros e Letramento: A (re)escrita em foco. 2ª ed. São
Paulo: Pontes Editores, 2013.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
MEC, 1996.
APÊNDICE
AS TRÊS VERSÕES DO TEXTO DO(A) ACADÊMICO(A) SUJEITO “J3”
1ª versão
2ª versão
3ª versão
INTRODUÇÃO
O ensino superior configura um espaço em que se multiplicam as escritas e os es-
critos. Multiplicidade esta que é não só abundante como também heterogénea, como
nos é assinalado logo na apresentação de Littéracies universitaires: nouvelles perspectives,
nas palavras de Isabelle Delcambre e Dominique Lahanier-Reuter (2012). E com a
introdução do chamado Processo de Bolonha,4 criado numa tentativa de harmoniza-
ção do ensino superior dos diversos países europeus, assistiu-se: em primeiro, a uma
multiplicação de unidades curriculares, sem uma prévia transformação dos currículos;
e, em segundo, a uma colocação do enfoque no estudante, negligenciando-se a pró-
pria relevância dos dispositivos de ensino que suportam qualquer aprendizagem que
se queira efetiva. Situações estas que conduziram a uma (ainda) maior proliferação de
tarefas de avaliação por escrito, sem que a tal correspondesse um ensino preciso e siste-
mático de tal capacidade, o que contraria, indiscutivelmente, os pressupostos em que
se funda a própria Declaração de Bolonha, que previam uma mudança em termos das
metodologias didáticas e das práticas educativas no sentido de uma ativa construção
do conhecimento. E, com efeito, a escrita pode aqui assumir, precisamente, um papel
central, enquanto ferramenta da própria aprendizagem, que a investigação científica
tem vindo a demonstrar cada vez mais recorrentemente.
Nesta nossa contribuição, o enfoque será colocado nas concepções dos estudantes
sobre a escrita académica, ultrapassando-se, assim, uma focalização mais recorrente
sobre dimensões estritamente linguísticas e que tem dominado, nos últimos anos,
as pesquisas nesta área da escrita no ensino superior (BOCH, LABORDE-MILAA
& REUTER, 2004; LONKA, CHOW, KESKINEN, HAKKARAINEN, SANDS-
TRÖM, & PYHÄLTÖ, 2014). Com efeito, uma mudança a nível das práticas será
tão mais efetiva, quanto mais profunda puder ser. E, nesse sentido, um prévio conhe-
cimento das concepções dos sujeitos afigura-se essencial em tal processo de transfor-
mação. Mais especificamente, o objetivo primeiro deste texto consiste em contribuir
para um conhecimento mais aprofundado sobre os usos da escrita em diferentes áreas
curriculares, no ensino superior português, assim como como sobre as percepções dos
estudantes sobre o seu próprio processo de escrita e a implicação desta mesma capaci-
dade de linguagem no seu trabalho na universidade.
4
O Processo de Bolonha deve o seu nome à chamada Declaração de Bolonha, assinada no dia 19 de Junho de 1999, na
cidade de Bolonha (Itália), pelos ministros responsáveis pelo ensino superior de 29 países europeus, entre os quais Portugal.
Trata-se de um processo de reforma intergovernamental, a nível europeu, inscrito nos objetivos da Estratégia de Lisboa,
visando concretizar o Espaço Europeu de Ensino Superior.
ESTUDO EMPÍRICO
QUESTIONÁRIO: OBJETIVO E CONSTITUIÇÃO
O estudo que aqui apresentamos foi realizado no âmbito geral do projeto COST
e, mais especificamente, no seio do Grupo de Trabalho 2, coordenado por Otto Kruse,
cujo objetivo genérico consistia na melhoria da comunicação escrita. Para, mais espe-
cificamente, conhecer e compreender os fatores suscetíveis de favorecer o desenvolvi-
mento do domínio da escrita, no ensino superior, foi, nomeadamente, aplicado um
questionário distribuído junto de alunos dos diferentes países europeus envolvidos,
naturalmente adaptado ao contexto específico de cada país, em particular.
O questionário encontra-se organizado em diversas partes, compreendendo dife-
rentes aspetos: i) recolha de informação pessoal (com exceção da identificação, por se
tratar de um questionário foi anónimo); ii) presença da escrita no programa de estudos
do estudante; iii) processo de escrita e feedback; iv) tipos de texto e práticas de escrita;
v) autoavaliação de competências de escrita académica; vi) conceções de “boa escrita”
dos estudantes; vii) autoavaliação em relação a competências de estudo; viii) perspetiva
APLICAÇÃO
Tratando-se de um questionário a que os alunos deveriam responder eletronica-
mente, foi enviada uma mensagem de correio eletrónico às instituições de ensino su-
perior portuguesas – universidades e politécnicos; instituições públicas e privadas – a
solicitar o apoio na divulgação do questionário, para um seu preenchimento pelos seus
alunos. Este pedido, enviado, numa primeira etapa, em junho de 2011, voltou a ser
reenviado no início do novo ano letivo de 2011/2012.
1151 estudantes responderam ao questionário, sendo que 519 responderam à to-
talidade das questões. Ainda que se tenha tratado de um questionário eletrónico e de a
amostra também não ter sido estratificada, de molde a poder ser representativa de toda
a população estudantil do ensino superior português (nos seus diferentes graus, áreas
científicas e instituições), consideramos que o número de respostas obtido permite
tomar os resultados como uma base importante para estimular a reflexão em termos
da presença da escrita nas instituições de ensino superior, em Portugal.
PARTICIPANTES
A Tabela caracteriza, brevemente, os participantes do estudo descrito.
Licenciatura Mestrado
Nível de estudo em que o
573 (49.8%) 415 (36.1%)
aluno está matriculado
Doutoramento Pós-doutoramento Outro (CET e pós-graduações)
98 (8.5%) 5 (0.4%) 5 (0.4%)
Ciências sociais
Engenharia
(incluindo economia)
Áreas de estudo pelas quais
244 (21.2%) 181 (16.7%)
se distribuem os estudantes
Ciências naturais Saúde Formação de professores
119 (10.3%) 111 (9.6%) 99 (8.6%)
Humanidades Arte, design e arquitetura Direito
85 (7.4%) 80 (7.0%) 66 (5.7%)
Outras
114 (9.9%)
ANÁLISE
A análise foi realizada tomando como indicador as frequências de cada categoria
de respostas. Foram aplicados testes estatísticos, com o recurso ao software de análise
estatística SPSS, sobretudo, de molde a procurar a existência (ou não) de diferenças
significativas em termos da distribuição das respostas pelos participantes dos diferentes
grupos e pelas próprias categorias de resposta. Para encontrar diferenças de distribui-
ção das respostas entre os grupos, lançou-se mão do Teste do Qui-Quadrado de inde-
pendência. Quando as condições de aproximação à distribuição do Qui-quadrado não
foram identificadas, foi aplicado o teste com Simulação de Monte-Carlo. Por outro
lado, recorreu-se, igualmente, à aplicação de um modelo ANOVA one-way e a testes de
comparações múltiplas (LSD), com vista à deteção de diferenças consideráveis entre os
valores revelados pelos diferentes grupos. Para a aplicação do modelo ANOVA, foi ne-
cessário verificar as condições da sua aplicabilidade, em termos da distribuição normal
(através do teste de Kolmogorov-Sminorv) e da própria homogeneidade de variância
(com o recurso ao teste de Levene). Sempre que tais condições não foram detetadas,
foram utilizados o teste não paramétrico de Kruskall-Wallis e a comparação múltipla
das ordens (MAROCO, 2007).
Variáveis (questões) χ2 N p
Planifico sempre antes de começar a escrever
χ2(32)=33.885 846 0.377
trabalhos escritos/ artigos/ teses/ papers
Variáveis (questões) χ2 N p
Começo sempre imediatamente a escrever para
χ2(32)=37.955 838 0.216
ver até onde consigo chegar
Faço todas as leituras antes de começar a escrever χ2(32)=29.767 844 0.580
As minhas ideias mudam durante o processo de
χ2(32)=22.385 846 0.897
escrita de trabalhos escritos/ artigos/ teses/ papers
Reservo uma parte razoável do tempo total do
χ2(32)=31.069 845 0.514
trabalho para a revisão
Peço sempre feedback a alguém para melhorar o
χ2(32)=43.868 838 0.079
meu trabalho
Variáveis (questões) 1 2 3 4 5
DIMENSÃO INSTITUCIONAL
Uma significativa associação entre as respostas dadas pelos alunos e as respetivas
áreas de estudo verifica-se no caso das variáveis relativas à ação dos professores e da
própria instituição de ensino superior, como é visível através da observação dos valores
do teste de Qui Quadrado, apresentados na Tabela 3, com valores p inferiores a 0.05.
Tabela 3 – Dimensão institucional: associação à variável “Área de estudo”
Variáveis (questões) χ2 N p
Os meus professores ajudam-me a estruturar a
χ2(32)=58.543 844 0.003
minha escrita
Recebo feedback suficiente sobre os meus textos
ou trabalhos escritos/ artigos/ teses/ papers da χ2(32)=51.240 841 0.017
parte dos meus professores
O feedback dos meus professores ajuda-me a
χ2(32)=82.615 863 0.001
melhorar a minha escrita
Penso que a minha universidade contribui para
χ2(32)=95.118 845 0.001
um bom desenvolvimento da minha escrita
A escrita é um assunto largamente discutido na
χ2(32)=138.831 845 0.001
minha universidade
Frequência no último ano de:
… instruções por escrito para orientar na χ2(32)=46.546 844 0.047
realização de uma tarefa de escrita
… instruções orais para orientar na realização de
χ2(32)=38.392 841 0.202
uma tarefa de escrita
… discutir com o(s) professor(es) os trabalhos
χ2(32)=88.199 842 0.001
escritos
… começar um trabalho escrito na aula, fazendo,
por exemplo, a planificação, ou começando a χ2(32)=87.036 841 0.001
redação do trabalho
Frequência de…
Feedback sobre a estruturação de trabalho
χ2(32)=63.328 813 0.001
escrito/ artigo/ tese/ paper
Feedback sobre o primeiro rascunho de trabalho
χ2(32)=51.812 812 0.015
escrito/ artigo/ tese/ paper
Feedback sobre a versão final de trabalho escrito/
χ2(32)=35.160 805 0.321
artigo/ tese/ paper
De um conjunto de doze variáveis aqui consideradas, apenas não existe uma as-
sociação com a respetiva área de estudos em três delas – a saber: as instruções sobre
a tarefa, apresentadas por escrito ou dadas de forma oral (variáveis 6 e 7) e o próprio
feedback relativo à versão final do texto escrito (variável 12).
Quanto ao acompanhamento e ao apoio dados pelos professores, em etapas mais
precoces do processo escritural (variáveis 1, 3, 8, 9, 10, 11), os valores demonstram
a existência, com efeito, de uma importante dependência da área de estudos em que
se encontrem os alunos. E o mesmo acontece com a variável relativa à emergência da
escrita enquanto objeto de discussão na instituição de ensino superior (variável 5).
Em síntese, há, na verdade, e na grande maioria dos casos, uma nítida relação
entre as respostas dos alunos em termos das suas perceções quanto ao contributo dos
professores e da universidade para o desenvolvimento da sua escrita (variáveis 3 e 4) e
a sua área de estudos.
No que diz ainda respeito ao próprio feedback recebido pelos alunos, os valores
da Tabela 4 demonstram serem mais frequentes as instruções orais do que as instru-
ções facultadas por escrito. Ainda assim, trata-se de um importante campo em que
uma maior progressão pode existir, já que as respostas “Frequentemente” e “Sempre”
equivalem tão-só a um terço. Além disso, o próprio feedback dado sobre a versão final
também não se encontra generalizado, ao não alcançarem as respostas dadas metade
da totalidade das respostas obtidas.
Tabela 4 – Dimensão institucional: indicadores transversais as diferentes áreas
(1: Nunca; 2: Raramente; 3: Por vezes; 4: Frequentemente; 5: Sempre)
Variáveis (questões) 1 2 3 4 5
No. No. No. No. No.
(%) (%) (%) (%) (%)
6. … instruções por escrito para orientar na 97 184 279 260 28
realização de uma tarefa de escrita (11.4) (21.7) (32.9) (30.7) (3.3)
7. … instruções orais para orientar na 40 101 302 351 51
realização de uma tarefa de escrita (4.7) (12.2) (35.7) (41.5) (6.0)
12. Feedback sobre a versão final de trabalho 41 141 265 254 107
escrito/ artigo/ tese/ paper (5.1) (17.5) (32.8) (31.4) (13.2)
Devido ao facto de a análise estatística ter então revelado a associação com as áreas
de estudos, os valores da Tabela 5 dão agora conta, por sua vez, das diferenças assinalá-
veis quanto a estas mesmas variáveis. A parte não sombreada, na célula correspondente
ao cruzamento das áreas, tem o registo das variáveis em relação às quais se observam
diferenças significativas entre as áreas em questão. A parte sombreada indica o número
total de variáveis em que se registam assinaláveis diferenças entre as áreas.
C. Soc. 2 3 8
Eng. 4,5 0 7
C. Nat. 4,5,9 7
Eng. 3 1 1 5
C. Nat. 2 1 2 4
Saúde 8 8 1 3
F. prof. 0 7 6
Hum. — 4 3
DISCUSSÃO
Os resultados obtidos demonstraram não existir diferenças significativas em fun-
ção da área de estudo, nas respostas dos alunos referentes à dimensão de gestão in-
dividual do processo de escrita, em termos, mais especificamente, das operações de
planificação, de textualização e de revisão. A maioria dos alunos está assim consciente
de que a escrita se trata de um processo, em que várias e importantes etapas estão in-
cluídas. E, de facto, apesar de não serem as respostas uniformes, a divergência quanto à
valorização dessas mesmas operações é reduzida; e as respostas que não certificam esta
abordagem processual da escrita também não a negam.
Em relação, por exemplo, à afirmação de que é estabelecida a realização de todas
as leituras antes de se começar a escrever, é interessante verificar a atenuação da força
das respostas, sendo que há uma percentagem de discordância maior e a soma das res-
postas de concordância é menor do que em relação às perguntas que incidem sobre a
planificação e a revisão. Por outro lado, a afirmação referente à estratégia de se começar
imediatamente a escrever para ver o que se consegue fazer de imediato, sem procura
ou preparação adicionais, também recebe um volume de respostas discordantes menor
do que a concordância manifestada em relação à planificação prévia. Discordância
esta que pode reenviar para o reconhecimento da escrita imediata como uma estraté-
gia de ativação do conhecimento suscetível de ser posta em prática (e a não implicar,
necessariamente, que não se venha a ativar numa fase subsequente a componente de
planificação, com a realização de uma nova procura e reorganização, que também po-
CONCLUSÃO
A introdução do Processo de Bolonha contribuiu para que a escrita adquirisse
uma maior relevância, quantitativa e qualitativa, nas instituições de ensino superior
em Portugal. Daí que seja cada vez mais urgente desenvolver ações que ajudem os alu-
nos a melhor dominar esta tão importante capacidade de linguagem.
E os resultados apresentados nesta nossa contribuição demonstraram, claramente,
as diferenças existentes em termos da ação que tem vindo a ser adotada nas diversas
instituições e nas distintas áreas científicas. Diferenças estas que não deixam de reen-
viar para a urgência de se investir numa maior problematização sobre o papel da escrita
em correlação com as diferentes áreas disciplinares, para que um cada vez maior núme-
ro de alunos possa ser ajudado, em termos do desenvolvimento da literacia académica
REFERÊNCIAS
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versities: students perceptions and practices. Journal of Academic Writing. (no prelo).
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MAROCO, J. Análise estatística com a utilização do SPSS. Lisboa: Sílabo, 2007.
MONSERRAT, C. ; DONAHUE, C. Introduction. In.: Monserrat, C., Donahue, C.
(Ed.). University Writing. Selves and Texts Academic Societies. Emerald Group (Studies
in Writing), 2012.
Keywords: Relationship with writing; Student teachers; High school teacher’s univer-
sity training; Vocationnal teacher’s university training
INTRODUCTION
En didactique du français, la compétence scripturale fait constamment l’objet
d’études qui tentent de mieux la comprendre dans le but, entre autres, de proposer
des modèles d’enseignement de l’écriture qui tiennent compte de la complexité de
son développement. L’apport de Michel Dabène, vers la fin des années 1980, a été
déterminant à cet égard, car il a montré que cette compétence ne se limitait pas à un
ensemble de savoirs et de savoir-faire, mais qu’elle était composée aussi de représenta-
tions (DABÈNE, 1991). La recherche que nous présentons ici s’inspire des travaux de
Michel Dabène et de ceux qui ont suivi sur le rapport à l’écriture. Elle vise précisément
à identifier et comparer le rapport à l’écrit chez des étudiants de deux programmes de
formation à l’enseignement – un programme de formation initiale et un programme
en cours d’emploi – (BLASER, BOUHON, SAUSSEZ, 2014)4. De plus, nous nous
sommes intéressés aux éléments qui contribuent à la transformation du rapport à
l’écrit de ces étudiants durant leur passage à l’université5.
Tout d’abord, une enquête par questionnaire nous a permis de documenter quels
sont les sentiments, les valeurs et les conceptions des étudiants vis-à-vis de l’écrit, ainsi
que leurs pratiques; puis une série d’entrevues nous a amené à saisir plus finement le
rapport à l’écrit d’un sous-groupe d’étudiants et à observer la transformation de ce
rapport à travers différents éléments liés à l’histoire de vie des individus, en particulier
aux différentes étapes de leur scolarité, dont le programme suivi au moment de notre
collecte de données. C’est sur ce dernier aspect précisément que porte cet article qui
suit la structure suivante: après avoir rappelé le rôle de l’écriture dans l’apprentissage,
nous définissons la notion de rapport à l’écrit et présentons des éléments de la métho-
dologie de notre recherche. Enfin, nous livrons des résultats qui nous éclairent sur la
transformation du rapport à l’écrit durant la formation à l’enseignement.
6
À l’Université de Sherbrooke, les étudiants en formation à l’enseignement secondaire peuvent s’inscrire dans l’un des proils
suivants: français langue d’enseignement, mathématiques, univers social, sciences et technologies.
7
Cégep est l’acronyme de collège d’enseignement général et professionnel. Il désigne au Québec un ordre d’enseignement
qui suit le secondaire et précède l’université et ofrant une formation technique (3 ans) ou préuniversitaire (2 ans).
8
TECFEE: Test de certiication en français écrit pour l’enseignement.
leur est imposé. Au BES, deux cours (DFT 200: Communication écrite à l’école et
réussite scolaire et DFT 201: Communication orale et profession enseignante) visent
explicitement le développement de la compétence à communiquer chez tous les fu-
turs enseignants, quel que soit leur profil de formation. Les étudiants du BES-profil
français suivent aussi des cours d’approfondissement en langue et linguistique, mais
pas ceux des autres profils, à moins d’y être contraints après un échec au TECFÉE.
Au BEP, les trois cours de perfectionnement en langue sont clairement orientés vers la
préparation du TECFÉE, car la réussite de ce test représente pour de nombreux étu-
diants de ce programme un énorme défi et un stress important, l’obtention du brevet
d’enseignement et le maintien en emploi en dépendant.
ÉLÉMENTS DE MÉTHODOLOGIE
La recherche de laquelle découle cet article vise à vérifier l’hypothèse selon laquel-
le le rapport à l’écrit des étudiants en formation à l’enseignement secondaire (BES)
et des enseignants en formation professionnelle (BEP) se transforme pendant la for-
mation universitaire et qu’au nombre des facteurs de changement, certains relèvent
de la formation elle-même: contenus d’enseignement, pratiques scripturales, théories
sur l’écriture, etc. Deux démarches de collecte de données ont été réalisées: l’une,
quantitative, a rejoint 565 étudiants (278 au BES et 287 au BEP) par questionnaire
et l’autre, qualitative, a consisté à rencontrer 15 étudiants (8 du BES, 7 du BEP) dans
le cadre d’entrevues individuelles semi-dirigées. Les résultats présentés dans cet article
sont issus des entrevues. Les participants interviewés ont été choisis sur la base des
résultats d’une analyse discriminante conduite sur les données obtenues à l’aide du
questionnaire visant à identifier deux groupes contrastés d’étudiants au regard du rap-
port à l’écrit. Dans la mesure du possible, nous avons tenu compte, dans le processus
d’échantillonnage, de différentes variables telles que le sexe et la discipline ou le métier
enseigné (dans le cas des étudiants du BEP, dont les métiers enseignés sont très variés).
Dans une visée rétrospective, les participants ont été invités à fournir deux écrits
professionnels qu’ils jugeaient significatifs pour leur apprentissage – l’un ayant été réalisé
au début de la formation, l’autre, peu avant l’entrevue – et que nous qualifions d’écrits
authentiques au sens où ils ont été produits dans le cadre d’une activité de formation en
lien avec l’apprentissage de la profession d’enseignant. Chacun des participants a été in-
terviewé dans le cadre d’une entrevue semi-dirigée visant reconstruire le rapport à l’écrit
à l’œuvre au moment de la rédaction des deux productions. Pour ce faire, les étudiants
devaient d’abord, pour chacun des textes: décrire le contexte de réalisation et la situation
de communication; répondre à des questions concernant le processus de planification,
de mise en texte et de révision; parler des sentiments éprouvés pendant la rédaction, du
niveau de satisfaction vis-à-vis de chacun des textes et du rôle joué par l’écriture pendant
la rédaction. Ensuite, en comparant les deux écrits, les participants se prononçaient en
termes de ressemblances et de différences, puis de préférence pour l’un des écrits. Enfin,
dans une dernière partie de l’entrevue, dont nous rendons compte dans cet article, ils
étaient interrogés sur les moments marquants de leur histoire de scripteur; sur la place
de l’université dans le développement de leur compétence à écrire; sur les éléments qui,
selon eux, avaient joué un rôle dans ce développement.
• Va-et-vient entre les verbatim et la grille afin d’assurer la validité des catégo-
ries et sous-catégories et la justesse de leurs descriptions.
CONSTITUTION DE SCHÉMAS DE
L’ÉVOLUTION DES PARCOURS
Des tableaux synthèses des parcours de chacun des individus ont été dressés pour
en faciliter la visualisation. Puis, ces tableaux ont été traduits en schémas individuels
permettant le repérage rapide des éléments et une perception dynamique des parcours.
Au fil de la construction des schémas, les catégories se sont affinées et ont été réorgani-
sées, donnant ainsi lieu à de multiples versions, jusqu’à ce que nous parvenions à une
version finale satisfaisante et porteuse de sens. Les données ont été traitées de façon
visuelle, dans des schémas et à l’aide d’un logiciel de Mind Mapping, Mindjet. Dans
la section suivante, ce sont ces données schématisées qui sont décrites.
Les prochaines lignes décrivent les données recueillies pour chacune de ces catégories.
L’AVANT
Les répondants rendent compte d’un état «initial» en divers termes que l’on peut
découper, bien que de façon un peu artificielle, entre expérience positive et négative,
relevant donc d’une dimension affective. Ils portent ainsi un regard rétrospectif qui se
traduit par la difficulté à maîtriser certains aspects de la langue (grammaire, structure)
ou par un jugement sur leur compétence:«je n’étais pas bon en français».Le cas de fi-
gure inverse est également visible, soit celui où des répondants traduisent un jugement
positif sur leur compétence en langue. Soulignons en outre que leur jugement concer-
ne principalement l’écriture vue comme le respect d’une norme et de règles.
L’APRÈS
Les propos des répondants relatant un nouvel état se regroupent, grosso modo, en
deux grandes catégories: un état final et un état «en cours de déploiement». Les termes
utilisés pour refléter l’un et l’autre de ces états rendent compte de deux réalités distinctes.
D’abord, certains participants parlent des apprentissages réalisés, des nouvelles connais-
sances, des éléments maîtrisés en termes de produit fini. Ainsi, que ce soit au regard de
la grammaire, de la structure, du vocabulaire, ils sont abordés comme étant désormais
acquis: «Je fais des phrases plus claires et plus concises (Flora9, BES, profil français)»
Dans l’autre figure de cas, le déploiement des nouveaux apprentissages est encore
en cours. Les répondants parlent alors en des termes soulignant des progrès en train
de se réaliser: «Je commence à voir mes fautes (Patricia, BEP)». Dans cette situation se
retrouvent presque uniquement des étudiants du BEP.
Par ailleurs, quelques participants abordent leur situation actuelle en des mots qui
sont davantage de l’ordre de l’émotion, de l’affectif. Ils expliquent qu’ils se sont, par
exemple, débarrassés (du moins en partie) de leur honte, de leur gêne, qu’ils appré-
cient désormais l’écriture: «Si on m’avait dit que j’aimerais écrire un jour, je ne l’aurais
pas cru»(Paul, BEP). Ce sont dans la majorité des cas, des étudiants du BEP.
LES CONSTANTES
Cette catégorie révèle les éléments suggérés par les répondants comme s’inscrivant
dans la durée ou dans l’habitude. Ils sont introduits par des mots comme «toujours,
jamais, souvent, c’est facile de…». Ainsi, certains étudiants rapportent des difficul-
tés récurrentes«Souvent, quand j’ai un travail à faire, je vais le retarder à cause du
français.» (Patricia, BEP) ou à l’inverse des aspects particulièrement faciles pour eux
«J’ai toujours eu un niveau de français plus élevé que la moyenne». (Pascale, BEP),
d’autres signalent des éléments de contexte ou des modalités qui facilitent «Je fais
souvent relire mes textes» (Anne, BES) ou rendent difficile l’écriture, de façon gé-
nérale et dans la durée: «Les conditions perdantes: du bruit, une limite de temps et
un manuscrit.» (Pierre, BEP)
9
Les prénoms sont ictifs.
L’état Y représenté dans le schéma pour les étudiants du BEP et du BES témoig-
ne d’un changement provoqué par un passage par le programme de formation. Des
variations sont visibles dans les propos des étudiants du BEP qui ciblent plus souvent
une personne en particulier plutôt qu’un sigle de cours («le cours de Line10»), mais
également, ils identifient plus souvent le programme ou l’université dans sa globalité
comme étant sources de changement :
«C’est l’université qui m’a permis de développer mes aptitudes en français (Paul, BEP)»
«L’université, c’est ce qui m’est arrivé de plus beau après mes enfants! (Pierre, BEP)»
Les étudiants du BES, de leur côté, vont plutôt désigner, pour rendre compte des
causes de leur progrès, des cours précis, par leur titre, leur sigle, le sujet traité et même
de façon plus étroite encore, une tâche d’écriture ou un travail particulier qu’ils ont eu
à réaliser: «Mon cours de rédaction, à la FLSH11», «INT 40112».
Cependant, ce qui est le plus significatif, nous semble-t-il, c’est que les propos
des uns et des autres témoignent de l’impression d’un nouvel état «final» «stable» ou
«encore en évolution». Ce sont les étudiants du BES qui s’expriment en des termes
sentiment de connaissances acquises au sens de quelque chose de «complété» alors que
leurs collègues du BEP semblent davantage encore en processus.
«Je suis capable de synthétiser mes propos.» (Flora, BES, proil français)
«Mes textes sont plus structurés et plus facilement accessibles.» (Hugo, BES, proil
univers social)
10
Il s’agit d’une chargée de cours du BEP qui dispense les trois cours de perfectionnement en français du programme. Ces
cours permettent le développement des compétences en français et préparent au test de français obligatoire pour tous les
étudiants en enseignement du Québec.
11
Faculté des Lettres et sciences humaines.
12
INT401 : cours de dernière année qui consiste à produire un mémoire professionnel à partir d’une recherche-action
menée par les étudiants durant leur stage.
Concrètement, les étudiants du BEP vont, à l’image des deux extraits présentés ci-
-haut, expliquer qu’ils «sont en train de…» ou qu’ils «commencent à…» alors que ceux
du BES vont dire «je suis capable de…» ou «mes textes sont plus structurés». Ceci est
cohérent avec le fait que les étudiants du BEP vivent un retour aux études après une sco-
larisation courte remontant à plusieurs années alors que leurs pairs du BES sont, pour la
plupart, en processus de formation ininterrompue depuis leur entrée au primaire.
Il faut ici référer au parcours professionnel et scolaire des deux groupes pour bien
éclairer cette particularité, avant d’en tirer quelques conclusions pour les programmes
de formation. En effet, les étudiants du BEP ont derrière eux en moyenne 13 ans
d’exercice d’un métier (BALLEUX et LOIGNON, 2004), ils ont pour la plupart fait
des études courtes. Leur expérience du français écrit, pour plusieurs, est loin d’être
facile et continue d’être éprouvante au baccalauréat :
«Souvent quand j’ai un travail à faire, c’est ça qui va faire que je vais le retarder [le
français]. Parce que ça me demande beaucoup d’eforts à ce niveau-là (Patricia, BEP)».
«Je peux en faire bénéicier mes élèves, de mes apprentissages sur l’écriture.
Maintenant, je les fais écrire, ils apprennent en écrivant.» (Pétunia, BEP)
De leur côté, les étudiants du BES, s’ils font des stages régulièrement, ont d’abord
et avant tout un statut d’étudiant, et la confrontation quotidienne avec les élèves est
différée. Il est alors plausible que l’urgence d’une amélioration de sa compétence
de scripteur se fasse sentir davantage chez les étudiants du BEP. D’ailleurs, dans les
propos des répondants à l’entrevue, la préoccupation de sa compétence de scripteur
perçue par les élèves est évidente chez les étudiants du BEP alors que ceux du BES sont
Il apparait donc que la transformation du rapport à l’écrit des étudiants des deux
groupes adopte des formes contrastées, comme le sont leurs caractéristiques. C’est
notamment au regard de la façon de décrire l’état postérieur à la formation qui diffère,
les uns annonçant une démarche de perfectionnement en cours, les autres un produit
fini. D’autre part, l’aspect affectif semble plus prégnant dans les propos des étudiants
du BEP que dans ceux des étudiants du BES.
CONCLUSION
Cet article découle d’une recherche sur le rapport à l’écrit de deux grou-
pes d’étudiants en enseignement de l’Université de Sherbrooke, aux programmes
d’enseignement secondaire et d’enseignement professionnel. Nous nous sommes at-
tardés à la transformation de ce rapport à l’écrit au fil de leur histoire de vie des répon-
dants, et plus particulièrement lors de leur passage dans leur programme de formation
à l’enseignement.
Les données de nature qualitative ont été recueillies au moyen d’entrevues semi-
-structurées auprès d’un sous-échantillon de 15 étudiants (8 du baccalauréat en en-
seignement secondaire et 7 du baccalauréat en enseignement professionnel). L’analyse
des données a permis de dégager cinq grandes catégories qui constituent autant de
jalons dans la transformation du rapport à l’écrit des étudiants rencontrés : une des-
cription d’un état antérieur dans le parcours de l’étudiant; une description d’un état
postérieur; un ou des points tournants dans le parcours; les moments jugés marquants
dans l’histoire de l’étudiant; les constantes dans l’histoire de l’individu.
L’analyse a mis en évidence une diversité d’expériences, lesquelles, toutefois, com-
portent des ressemblances dans leur trame. L’un des points communs les plus évidents
se situe dans la façon dont les étudiants de l’une et l’autre des programmes discutent
de leur compétence de scripteur. En effet, les étudiants du BEP abordent plus souvent
le sujet en des termes rappelant un processus, une démarche encore en cours alors que
chez leurs collègues du BES, les propos annoncent davantage une compétence «attein-
te», «complétée».
BIBLIOGRAPHIE
BALLEUX, A. ; LOIGNON, K. Rapport de recherche sur l’identité des enseignantes et des
enseignants en formation professionnelle – quitter le métier… pour l’enseignement. Sherbroo-
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nouveau concept ? In.: DAUNAY, B.; ; REUTER, Y. ; B. SCHNEUWLY (Éd.). Les
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______. Le rapport à l’écriture. Une notion à plusieurs dimensions. Pratiques, n. 113-
114, p. 29-40, 2002.
literacy area. In order to achieve these aims the article uses both research results and
records of an experience involving teacher’s education and a follow up of the practices
of primary school teachers. This empirical material has been analyzed using not only
Bakhtin’s enunciation theory but also some guideline principles to research activities
and pedagogical practice related to verbal language. Using as reference the concept
of phonological awareness, such principles are organized under the perspective of the
discursive starting point to guide the writing and reading process in contrast with the
ones, which centralize the writing alphabetical system phonic approach.
Keywords: Literacy; discourse; phonological awareness; Bakhtin; pedagogical practices.
APRESENTAÇÃO
O desenvolvimento e a autonomia teórico-metodológica do campo da Linguísti-
ca, conquistados na virada do século XIX, permitiram o aparecimento de novas meto-
dologias para a abordagem de fenômenos da linguagem. Ao longo do século XX, novas
perspectivas de estudo se constituíram, mas, apesar deste desenvolvimento, o campo
apresenta dificuldades históricas para contribuir com propostas de trabalho pedagógi-
co formadoras de sujeitos educados criativa e criticamente.
Há 20 anos Abaurre (1994) sinalizava a influência do programa estruturalista nas
salas de aula, que considera o treino de estruturas da língua materna como garantia
de aprendizagem, desde as séries iniciais, na fala e na escrita (ABAURRE, 1994, p.
104). Conforme esclarece Salomão (2009), a marca do estruturalismo e dos avanços
alcançados nesse campo para o estudo de organizações fônicas, morfológicas, e, mais
limitadamente, sintáticas, é o foco no significante, segmentado até obter elementos
mínimos (fones, fonemas, traços fônicos, morfemas, lexemas, classes sintáticas), em
termos de suas propriedades combinatórias e distribucionais. E continua Salomão:
O custo da precisão assim conquistada é a exclusão do sujeito como usuário
“voluntarioso” da linguagem; na verdade, é parte do espólio interdisciplinar do
estruturalismo o orgulho intelectual de ter promovido a desconstrução do “sujeito”,
só reconhecível como dimensão inconsciente: na expressão lacaniana, o sujeito é um
“lugar” (...). (SALOMÃO, 2009, p. 63, grifo e aspas da autora).
O que mais se destaca, em geral, nos estudos gramaticais que vêm balizando o
ensino da língua portuguesa são a exclusão do sujeito e as categorias estruturais elen-
cadas para serem estudadas. Em cartilhas de alfabetização, estes aspectos são muito
flagrantes, os textos não são de ninguém, não têm autor, história. Categorias como
sílabas, vogais, consoantes, frases, letras e outras são o ponto de partida de métodos na
tradição de propostas e práticas de trabalho alfabetizador. Estudos gramaticais não são
relacionados ao aprofundamento do entendimento dos processos de produção e com-
preensão de textos; além disso, promovem tanto o esquecimento da oralidade quanto
o normativismo renitente, conforme Franchi (1987, p. 5): “as normas gramaticais são
teimosamente o eixo do trabalho”. Isto pode ser explicado também por categorias e
conceitos herdados dos gregos e dos filósofos naturalizados como “os conhecimentos”
a serem ensinados/aprendidos, os conhecimentos “verdadeiros” a respeito da língua.
Embora ao longo do século tenhamos mudado algumas roupagens no ensino, conti-
nuamos a trabalhar com pressupostos behavioristas, estimulando a aprendizagem de
uma língua como que autônoma em relação a seus falantes - os diferentes usos sociais
não têm peso, somente o sistema abstrato.
A partir principalmente da metade do século XX, os estudos em teoria gerativa,
em teoria da variação e os estudos sobre o discurso trouxeram a possibilidade de se
repensar o estudo da linguagem nas suas interfaces com a Biologia, a Psicologia, a So-
ciologia, a História e outras ciências humanas. Estes estudos vêm-nos possibilitando
uma ampliação da compreensão da linguagem, no sentido do trabalho com unidades
dialéticas tais como: individual e universal, presença e história, natureza e cultura,
forma e função, texto e contexto, entre outras, elementos tradicionalmente encarados
de maneira dicotomizada.
Especialmente a partir da década de 1980, o trabalho com a linguagem na escola
vem sendo discutido de modo alvissareiro, no Brasil, associado ao processo de abertura
política e eleição de novos governadores. Secretarias de educação de todo Brasil se mo-
bilizaram para construir novas propostas político-pedagógicas na perspectiva da edu-
cação crítica, de qualidade. A área de linguagem recebeu ênfase em algumas propostas
(como, por exemplo, as dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo), evitando-se, e
mesmo superando-se, a separação entre o trabalho linguístico que se realiza nos pri-
meiros anos escolares, voltados para a alfabetização, e o trabalho realizado nos anos
escolares posteriores.
Buscou-se uma concepção de trabalho que considere a língua socialmente enga-
jada, garantindo o estudo da gramática não restritiva, limitativa ou empobrecedora do
saber dos sujeitos (como se tem mostrado tradicionalmente). De acordo com o que
postula Franchi (1987), a gramática se organiza como um conjunto de processos e
operações pelos quais o homem reflete e reproduz suas experiências no mundo e com
os outros, podendo inclusive viajar, por meio deles a universos inimagináveis. A gra-
mática é concebida como “um sistema aberto a uma multiplicidade de escolhas, que
permite não somente ajustar as expressões aos propósitos e intenções comunicativas do
locutor, mas ainda marcar cada texto com a marca de um estilo, não menos expressivo
por ser estilo” (FRANCHI, 1987, p. 43). Evidencia-se, assim, uma enorme distância
entre a gramática como normativismo renitente, com o sujeito excluído, e a gramática
como um sistema aberto a uma multiplicidade de escolhas dos sujeitos, no plural.
O objetivo deste artigo é contribuir para compreender e aprofundar o debate
teórico-metodológico atual sobre aspectos do trabalho educativo na área de alfabeti-
zação. Discutimos, a partir de resultados de pesquisa e da experiência de formação e
acompanhamento de professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, contextu-
De 1985 até os dias atuais, quase trinta anos depois, estudos sobre o tema se
avolumaram muito, entretanto continua havendo a linha divisória explicitada princi-
palmente por estudos sobre a história da alfabetização no Brasil (MORTATTI, 2000;
2011 e outros). Se ao longo do século XX a referida linha separa métodos de marcha
sintética de métodos de marcha analítica, ao final deste século outros tons do tema
aparecem, destacando-se as duplas técnico/social e fônico/discursivo. Naturezas di-
ferentes caracterizam as duplas: foco na abordagem do objeto de estudo e ponto de
partida do trabalho formal de alfabetizar, respectivamente. É interessante observar que
ao longo do século XX a marcha dos métodos se diferenciava pela unidade que era
tomada como base para dar início ao trabalho alfabetizador, a questão do sujeito não
se explicitava, a não ser em abordagens filosóficas do processo de alfabetização, como,
por exemplo, no estudo de Paulo Freire.
A linha divisória que aparece no final do século XX, contudo, concretizada aqui
em duas duplas de categorias, já traz embutida a presença do sujeito. Vale destacar que
o caráter do sujeito presente nas diferentes abordagens não é o mesmo: de um sujeito
produtor de linguagem, que vive em sociedade, a um sujeito engajado politicamente,
passando por um sujeito abstratamente psicológico. Considerando os limites deste
artigo e a complexidade conceitual que envolve a discussão sobre as duas duplas, por
uma questão de método, vou-me dedicar a explorar a segunda dupla apresentada:
fônico/discursivo. A primeira dupla, técnico/social, relacionada à entrada do conceito
de letramento nos estudos sobre alfabetização, embora não focalizada explicitamente,
está implicada, mas sem destaque, ao longo da exposição.
com escrita recente – são uma mescla de símbolos fonêmicos, morfofonêmicos e até
logográficos. Em outras palavras, a essência atual da escrita no mundo tem caráter em
grande medida convencional, embora tenha origem na representação parcial da fala.
O estudo precursor de Chacon (1998) apresenta uma faceta linguística relevante
e pouco explorada em relação à produção escrita: o ritmo, concebido na perspectiva
da enunciação, lugar em que os fatos da linguagem se organizam. Tradicionalmente
associado à oralidade, o foco da pesquisa do autor é o ritmo da escrita operando na
atividade de produção textual. Para tanto, Chacon analisa a pontuação de textos es-
critos de vestibulandos. Um pressuposto importante é que os fatos rítmicos envolvem
toda a linguagem, com papel fortemente estruturador e organizador. Comentados por
Chacon, os estudos de Luria (1988), de Holden & MacGinitie (1972) e de Abaurre
(1989; 1991), a partir de perspectivas e experiências diferentes, são instigantes para a
reflexão sobre a importância do ritmo na constituição do processo de aprendizagem da
escrita de crianças. O autor destaca o caráter multidimensional da organização rítmica
da linguagem promovida pela enunciação.
Embora brevemente considerados, os estudos anteriores evidenciam que o des-
taque prioritário a aspectos fônicos da linguagem no processo inicial de alfabetização
pode mascarar os modos como as crianças se aproximam do conhecimento da escrita.
Pode obscurecer aspectos que são observados pelas crianças quando operam com a lín-
gua viva, com o discurso social. Os estudos sobre alfabetizar e alfabetizar-se têm muito
a ganhar com o reconhecimento do discurso como o espaço em que as dimensões da
linguagem se movimentam e produzem sentido. De acordo com a pesquisadora Ann
Peters (1983), no processo de aquisição da linguagem oral, há unidades de análise do
ponto de vista do adulto, do linguista e da criança, e nem sempre estes três prismas
são coincidentes.
A escrita alfabética tem origem como uma tecnologia de associação de fonemas
a letras. Na longa história do homem de utilização desta linguagem, a crescente com-
plexidade da linguagem a representar e o, também crescente, número de usuários,
demandaram novos caracteres e sinalizações, como sinais de pontuação, acentuação,
letras maiúsculas, normatizações gráficas e ortográficas, entre outros. A escrita se su-
pera como codificadora de conhecimento, passando ela mesma a conhecimento. Sua
organização, seus modos de significar e interagir com conhecimentos de diferentes
campos tornaram-na um modo de saber e de conhecer. A dimensão fonológica da es-
crita, embora necessária, está longe de ser suficiente para alfabetizar crianças e adultos.
Em face do exposto, entendemos que o ponto de partida da criança em processo
de alfabetização não é, necessariamente, a chamada “consciência fonológica”, denomi-
nação imprópria para conhecimentos complexos relacionados às relações entre o que
se fala e o que se escreve. Expressão que se formou no contexto de estudos taxionômi-
cos da língua, associados a perspectivas comportamentalistas de ensino-aprendizagem.
Este é um ponto de partida circunstancial. Nesta perspectiva estaríamos considerando
uma concepção de trabalho com a língua que fragmenta para ensinar, subordina o
sentido da língua ao sistema, como apontamos no início do artigo. Compreendemos
que a aprendizagem da escrita se realiza através de processos de análise da língua, em
que se buscam elementos para entender como se produz sentido por escrito. Estas
análises, entretanto, podem ter outros aspectos e relações linguísticos como partida. Se
aceitarmos a ideia de consciência, quantas consciências e de que natureza serão necessá-
rias para que as crianças se alfabetizem, participem do mundo da escrita? Consciência
fonológica? Sintática? Morfológica? E o que mais? No sentido que vem sendo explo-
rado há décadas, o conceito de consciência é polêmico e não tem suporte linguístico.
Na perspectiva filosófica bakhtiniana, a constituição da consciência é relacionada à
constituição do sujeito histórica e socialmente marcado, do seu discurso e à constituição
da própria sociedade, da história e da cultura, enfim à constituição de um éthos político
que pode ser encarado tanto do ponto de vista micro quanto do ponto de vista macro,
nunca os dissociando. É deste modo que encaramos o sentido de consciência, instância
interior semiotizada e ideologizada, socialmente constituída, que garante a renovação, a
perspectiva de ação e transformação política, discursiva e cognitiva do sujeito.
O que se discute aqui não é se o conhecimento das relações entre fonemas e gra-
femas e o conhecimento do nome das letras são importantes no processo de alfabeti-
zação. Com certeza são conhecimentos importantes. A questão que se coloca é como
e com que sentido as crianças deles se apropriam. A escansão de unidades linguísticas
para compreender a formação e composição da língua por um estudioso é diferente
do trabalho pedagógico de desmontar a língua para ensinar a escrever e a ler. Crianças
não são pequenos linguistas ou pequenos epistemólogos. Não temos dúvida de que
a aprendizagem envolve análises, a questão é: quem faz a análise? Qual é o ponto de
partida? Questões educacionais e didáticas se interpõem.
O ideário educacional ainda hoje aponta para uma noção de aprendizagem cujas
principais características a relacionam a um processo previsível e controlável (e são
testemunho disso os currículos e programas escolares que supõem um tempo métrico
rigorosamente regulado); que avança passo-a-passo, de modo linear e cumulativo; e
passível de medição/avaliação, sendo o resultado geralmente aferido de modo dicotô-
mico: o aluno aprendeu, ou não. Traços recorrentes destas ideias são sintetizados em
princípios tais como: a aprendizagem deve ir do concreto ao abstrato; do mais simples
ao mais complexo; e do particular ao geral. É o que nos diz Colinvaux (2005, p. 4),
lembrando-nos que estes pressupostos vêm sendo questionados pela psicologia do de-
senvolvimento deste os anos 1920, há quase cem anos, portanto.
Sinclair (1990, p.17) destaca que uma longa tradição associacionista confunde
métodos de ensino com processos de aprendizagem da criança, e confunde também
técnicas e hábitos perceptivo-motores com compreensão ou competência. Este desta-
que continua muito relevante ainda hoje. Propostas e práticas pedagógicas permane-
cem reféns de atividades repetitivas, acreditando que para aprender é preciso repetir,
uma menina de seis anos, Camila, no primeiro semestre do 1º ano do Ensino Funda-
mental de escola pública estadual do Rio de Janeiro. Quando Camila começou o 1º
ano, ainda não havia percebido a relação entre a camada sonora da fala e a escrita. A
prática pedagógica cotidiana da professora contemplava ações orais, leituras e ações de
produção de textos. As crianças eram motivadas a falar e ler e escrever como pudes-
sem/soubessem, tudo em torno de temas da atualidade ou ficcionais, encontrados em
suportes de escrita variados.
Texto 1
Texto 2
Texto 3
O texto 2 está vinculado à história Dona galinha e o ovo de Páscoa (de Eliana
Sá, Editora Scipione, 1993), título que foi escrito no quadro de giz e a maioria das
crianças da turma copiou para dar conta da proposta da professora de que a turma
reproduzisse a história que havia sido lida e comentada. É possível observar indícios
de partes da história na produção de Camila, para além do título copiado. Na ter-
ceira linha, a menina procura reproduzir o modo como a história se inicia: Está um
lindo dia para ciscar!/Seta BOM DIA cisca. Na quarta linha, as andanças da galinha
para arranjar um lugar para chocar o ovo especial que havia encontrado parecem ter
dificultado a organização da construção sintática, com repetições da palavra OVO
e, ao final está a palavra CHOCA escrita como OH A. Na quinta linha, consta
“levou para o ninho/Levou para o NiHO”. Na última parte aparece a escrita do
nome de PEDRO, o menino que encontra o seu ovo de Páscoa deixado pelo coelho,
e que a galinha havia pensado ser um ovo de ave especial! E aparece também parte
da palavra COELHO. Chamo atenção que Camila não está escrevendo palavras,
está compondo um texto, muitos conhecimentos estão envolvidos aí além de letras,
é preciso não perder de vista. O discurso escrito vai desabrochando instigado por
propostas envolventes e intervenções desafiadoras.
O texto 3 foi produzido a partir de longas atividades com embalagens de arroz,
levadas pelas crianças, conforme combinado anteriormente. Estas embalagens moti-
varam muitas conversas e mobilizaram muitas informações das crianças sobre hábitos
alimentícios das famílias, entre outros. As embalagens foram classificadas de vários
modos: peso, marca do arroz, local de produção, etc. Neste movimento a professora
também começou a trabalhar com os alunos sobre o gênero classificados, discutindo
suas funções sociais e características. Em determinado momento, a professora propôs
que as crianças produzissem anúncios classificados para vender o arroz que eles haviam
levado para a escola. O texto de Camila nos dá a dimensão do entendimento dela
sobre como aquele gênero agia: Aros (ou Arois?) Ti João Eli (meio apagado) DURa
MuTo/Leva 2 (invertido) i paque 1. As estratégias de persuasão se destacam de forma
apropriada no texto, da mesma forma que dúvidas sobre a melhor maneira de redigir
o texto. Problemas de uma escriba iniciante, problemas de escritores proficientes. O
importante é que Camila com 6 anos parece já ter compreendido que as escolhas de
recursos expressivos modificam os sentidos dos textos. Ela não está somente preocu-
pada com a escrita do texto, ela está aprendendo que o texto tem muitas dimensões,
muitas entradas, pode ter muitos sentidos.
Analisando brevemente o percurso de Camila, podemos observar aspectos de seu
processo que encontram eco no que está sendo estudado e destacado no artigo. Se
formos nos ater a categorias linguísticas consagradas, vamos negar o conhecimento
que a menina apresenta e a progressiva aprendizagem da linguagem escrita. O processo
evidencia caminhos que vão sendo buscados para dar conta das necessidades que os
textos apresentam. Ainda no 1º ano, a produção de Camila já aponta sua competência
discursiva para lidar com diferenças de gêneros. As questões observadas nas produ-
ções das crianças associadas aos conhecimentos linguísticos (aqui incluída a dimensão
discursiva) e pedagógicos, juntamente com o compromisso político de formação de
sujeitos cidadãos, nos dão as balizas para modos de atuar para a ampliação de conhe-
cimentos sobre a escrita e, sobretudo, sobre o mundo da escrita.
os outros, se fazem escolhas sobre o que dizer e como dizer. A escola, de um modo
geral, é um dos primeiros espaços públicos frequentado pelas crianças, o que a leva a
observar e vivenciar diferenças de valores, comportamentos e de uso da linguagem, no
espaço público e privado.
Em dado momento as crianças começam a manifestar o desejo e a necessidade de
escrever (VYGOTSKY, 1999), e precisamos ser sensíveis ao seu esforço para significar
em língua escrita, desde a mais tenra idade. Os entendimentos das crianças, conforme
já mencionado, se originam em diversos tipos de conhecimentos, não necessária e ex-
clusivamente da linguagem verbal. Há crianças que, para compor a sua escrita, levam
desenhos, numerais e símbolos de outras naturezas, valendo-se do valor sonoro destes
símbolos, e também do valor do significado, um valor ideográfico. Outras crianças,
junto a suas sequências de letras (aparentemente aleatórias), lidas por elas com sentido
de um texto, mas sem valor convencional, inserem nos textos a cópia de palavras ou
frases, ou as escrevem de memória, procurando dar legitimidade ao que produzem
(PACHECO, 1997). Estas escritas representam suas tentativas complexas de interação
com o mundo.
DISCUSSÃO FINAL
Na escola, em classes de alfabetização, há conhecimentos a aprender, do ponto
de vista da criança, do aluno, e há conhecimentos a ensinar, do ponto de vista da pro-
fessora. É pela palavra, no tenso processo social de interação com a palavra do outro,
que continua acontecendo a formação da consciência, sendo a palavra “o meio no qual
se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram
tempo de adquirir uma nova realidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de
engendrar uma forma ideológica nova e acabada” (BAKHTIN, 1988 [1934-1935]).
Os processos que as crianças vivem para compreender como se organiza e se realiza a
linguagem escrita, tanto do ponto de vista formal quanto de sua dimensão político-
-social, envolvem uma grande complexidade de conhecimentos, se considerarmos a
fase inicial de sua aquisição na perspectiva da produção do discurso escrito por escrito.
Na dinâmica da sala de aula, as crianças, se sentindo confirmadas como pessoas,
afirmam-se, dizendo as suas palavras, falando sobre o que sabem, evidenciam os gêneros
do discurso que conhecem, se abrindo para novas apropriações. Com boas intervenções
de professores, e também de colegas de classe, vão ampliando conhecimentos e ao mes-
mo tempo aprendendo o funcionamento da escrita, discriminando e manipulando a
relação entre sons e letras, entre outras discriminações (GOULART et al, 2005).
Seguindo a perspectiva indicada por Ponzio (2012, p. 133-134) para a análise dos
discursos e dos textos, é importante nas experiências pedagógicas de sala de aula, ou
relativas a ela, explorar a análise dos discursos, mas também a dialética e a dialógica,
para colher a dialogicidade específica de cada discurso. Neste movimento, conhece-
mos melhor nossos alunos e abrimos espaços para que eles também se conheçam e am-
pliem seus conhecimentos. Evidenciamos e reforçamos o caráter dialógico interno dos
nossos próprios pontos de vista, mostrando a ambiguidade nos significados em que
repousamos nossas certezas, fazendo resultar a dialogicidade interna de nossas próprias
palavras. A afirmação de Ponzio é fundamental: “O diálogo não é uma iniciativa de su-
jeitos separados, mas é a própria condição do sujeito, porque é estrutural ao discurso,
fato que nenhuma ideologia homologante poderá anular.” (PONZIO, 2012, p. 134).
O sistema alfabético é aprendido em contexto enunciativo, não se constituindo
este contexto numa moldura para o ensino. O trabalho educativo deve ser contextua-
lizado no horizonte de diferentes linguagens/conhecimentos sociais, logo também no
horizonte da cultura escrita, com seus produtos e práticas. Retirar a cultura escrita do
cotidiano de crianças pequenas é sonegar informações que são fundamentais para a
compreensão da vida e das possibilidades de vida na sociedade letrada, e também para
a compreensão do valor social do sistema alfabético de escrita: o que podemos fazer
com ele e o que ele pode fazer conosco. A fixação da escola com aspectos gráficos e or-
tográficos funciona produzindo submissão: é o lugar da lei. Por que este lugar ganhou
tanta proeminência nas atividades escolares?
O chamado aspecto fônico da escrita não pode ser ensinado de forma isolada de
outras dimensões do processo de alfabetização. O foco do trabalho pedagógico está no
acompanhamento dos processos de aprendizagem e de suas produções, compreenden-
do o que as crianças sabem. A “consciência” linguística não é uma pré-condição para
a leitura e a escrita. Esta “consciência”, em suas diferentes modalidades, se desenvolve
por meio de atividades significativas, com textos, destaques e intervenções da professo-
ra e dos próprios alunos. Aqui a perspectiva da criança é assumida nas práticas pedagó-
gicas, e não a do adulto. Essa mudança de perspectiva tem expandido a compreensão
de como o princípio alfabético e outros conhecimentos relativos à escrita vêm a ser
conhecidos e usados pelas crianças, atentando para o que as crianças podem e sabem
fazer, ao contrário do que elas não podem e não sabem fazer. Atentar para quem elas são,
e não para quem elas poderiam ou deveriam ser.
Devemos assumir o nosso papel de ensinar a escrita, de propor questões, revisões,
reescritas, de discutir limites e possibilidades para as produções infantis. Não devemos
temer as escritas estranhas que muitas vezes as crianças produzem; ou interpretações e
leituras bizarras que, às vezes, propõem. É importante olharmos para as crianças como
leitoras e produtoras de textos. Olhar para elas na perspectiva do que já são e do poten-
cial que têm. Leitoras e produtoras de textos não só em linguagem verbal, oral e escrita,
mas em outras formas de expressão, como a pintura, visitando as obras de grandes pinto-
res; a escultura; o cinema; o teatro; a música; a dança; entre outras (GOULART, 2005).
Há uma importância enorme em afirmar os cidadãos que, desde muito pequenas,
as crianças são, os conhecimentos que têm. Fazê-las sentir que podem, que devem ou-
sar, correr riscos, para que se confirmem como pessoas capazes e se disponham a trocar
REFERÊNCIAS
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GRANGER, G.-G. Filosofia do estilo. São Paulo: Perspectiva, 1974.
meso and micro dimensions, the discourse analysis proposed here wants to emphasize
the meta dimension, which allows us to think the own writing of research, in relations
with public policies and with the actions of teacher training. We subscribed our-
selves in studies of literacy, situating specifically as our object the teacher’s professional
literacy, which relates to academic literacy, in the discourse of trainers and teachers
(STREET, 2014; LILLIS, 2009). We seek to interrelate teacher identity and teacher
activity, proposing the basis for an analysis of the teacher’s discourse, of texts produced
in the scope of professional training. The aim of this paper boils down to the ques-
tioning of the researchers’ making seek to analyze teacher’s discourses as own words,
authorially built, in the interdiscursive relationship with academic productions that
by forming actions. The teachers makings are described from three dimensions: as
an activity, on a practical plan, of an automated acting, constituting the school ges-
tures; as a professional habitus, or social practice which is inscribed in the institutional
ways of doing, or as an act, according to the philosophical definition from Bakhtin
(2010[1920]). We point out the conception of Teacher Author as the most pertinent,
highlighting itself from several others present in the field, such as: Teacher-Researcher,
Teacher-Reflective Teacher-Storyteller (which prioritizes autobiographies). The mean-
ings produced by each one of these latter three, locate in negative the teacher as object
of discourse, effect from the discourses’ saturation that is imposed. It requires the ful-
fillment of duties, without demanding comprehension, from those who “act”, causing
silence of own speeches. At last, we describe some of the oral and written discourse
genres, produced in the context of continuing education of this research and we dis-
play proposals of long-term sequels for the described research.
Keywords: Teachers` Professional Literacy, Continuing education for teachers; Dis-
cursive genres.
1
A discussão trazida neste texto é impulsionada justamente a partir de uma “dupla nacionalidade” epistemológica, que
assemelha-se por vezes a uma falsa cidadania, quando me identiico como migrante, entre campos de pesquisa que guardam
suas formas próprias de funcionar, de valorar, de fazer e de dizer, tão distintas, a educação e a linguística.
tendo me deter mais do que algumas linhas e observar a título de “parênteses”, para
não incorrer em erro semelhante ao que queremos apontar, mas apenas pontuar epi-
sódios recentes, presentes vivamente na vida acadêmica, nos quais ao preocuparem-se
pesquisadores com seus próprios posicionamentos, assumem uma dimensão meta da
pesquisa, acabam por provocar o efeito contrário à transformação do campo, pois ge-
ram tópicos temáticos que impedem a atitude de renovação. Para afirmar a sua escolha
teórica, tais trabalhos dispendem munição uns contra os outros, numa atitude que
busca rebaixar a que considera discordante, apontando outras modalidades de se fazer
pesquisa instauradas no campo como concorrentes.
Nos processos de produção de conhecimento da universidade brasileira, depa-
ramo-nos constantemente com atitudes de escrita de pesquisa que representam os
autores em seu esforço por se situar no campo, distanciando-se de posições de dizer
que poderiam estar supostas como sendo suas próximas. Seu gesto de enunciadores
aponta para seu dizer antes de enunciar. Os autores ocupam-se com colocações que
funcionam como uma construção lateral, explicitando uma direção de sentido (uma
metaenunciação) que querem marcar para seus trabalhos principais. Constróem assim
sua imagem de autor. Na próxima seção, destacamos dois exemplos que nos chamam
atenção, um mais ligado à área dos estudos linguísticos e outro ligado à educação.
6
BRONCKART, J.-P. ; BOTA, C., 2012, 2013.
7
“Como um nó, amarrado pelas tensões de homólogos nós, que lhe sustentam, a identidade é um núcleo duro de signii-
cação, refere o indivíduo a uma representação social com contornos razoavelmente delimitados, compartilhados, que lhe dão
esteio para agir (DUBAR, 2009; DUBET, 2008)” (ANDRADE, 2011).
8
Este artigo retrata resultados parciais da pesquisa formação As Impossíveis Alfabetizações de alunos de classe popular pela
visão do professor da escola pública, inanciada pela CAPES OBEDUC, 2011-1014.
ção para abordar o fazer docente. Torna-se imprescindível uma ideia clara a respeito da
identidade do professor que produzirá discursos sobre o seu próprio fazer pedagógico.
O discurso de pesquisa, que contribui para a formação acontecer, subsidiando-a
com reflexões produzidas, depara-se antes, em seu próprio fazer, com a difícil questão
metodológica (e discussões se impõem) sobre os meios mais propícios para tocar a rea-
lidade profissional docente, para dar conta de seus meandros e nuances e compreendê-
-la a ponto de até propor sua transformação. O objeto de discurso de toda formação
de professores é o fazer docente. A atividade docente equivale aos gestos profissionais,
traz à cena a máxima realidade da profissão, sua vida, sua experiência, aquilo de que
vale a pena se tratar e por isso também de que é tão difícil falar.
Os fazeres docentes podem ser vistos como atividade, se tomamos apenas seu pla-
no de desenvolvimento mais pragmático, em que se age por automatização, de certos
gestos escolares. São gestos profissionais típicos em eventos pedagógicos. Os professo-
res então atuam como atores, desempenham seu papel, enunciam seu “texto”, do qual
estão cientes, em seu fazer profissional.
Pode-se conceber passar do plano das interações entre atores para o das práticas
sociais dos professores, se inscrevermos tais atividades em um plano menos individual,
tomando os gestos, o seu desempenho, como inscritos em formas institucionais de lidar
com as situações. A (mesma) atividade docente ganha densidade, se a concebemos como
habitus profissional, como prática social, inscrita nos modos de fazer institucionais. Ain-
da se pode ampliar o zoom, enquadrando estes dois planos de compreensão para a ação
docente como condição para que as produções discursivas dos professores sejam atos.
É nesta terceira dimensão que buscamos ancorar os discursos docentes. Ato im-
plica responsabilidade, bem como um engajamento no que se diz, que vá além do
automatismo do primeiro nível descrito acima, das atividades, e das obrigações legi-
timadas que se impõem sem autoria, como ocorre também no segundo nível, o das
práticas. Em nossa pesquisa, almejamos que a formação docente implementada pela
Universidade (por nós pesquisadores) fosse um espaço de produção discursiva de um
sujeito professor, produtor de conhecimentos. A formação que implementamos trata
de temas pertinentes ao fazer pedagógico escolar, ao trabalho docente, de modo a que
o mesmo professor veja se abrirem diante de si possibilidades de sua visão sobre seu
trabalho, que lhe permitam comunicar a seus pares seus modos de ver transformados,
ou seja, apropriados em suas palavras (sua voz), aprofundados por estudos feitos, argu-
mentados por uma compreensão que lhe permita uma posição metaenunciativa. Não
se espera que ele diga o que faz, apenas, descritivamente, relatos de seu fazer, mas os
porquês de seu fazer, para que possa defender o teor deste fazer. Somente neste prisma
é que nós, como pesquisadores formadores, desejamos como produto de nossa forma-
ção implementada, formar professores autores.
(...) E desejo apenas que o resultado destas pesquisas e das formações que decorram
coerentemente deste grande texto de pesquisa reletido sobre o campo da formação
seja o de construir uma leitura universitária de escritas docentes. Que eu cite
professores sendo citados por professores, que os diálogos entre os pares sejam meu
objeto de leitura. “Apud Professores et allii”, quero assim citá-los, o seu coletivo de
docentes, não apenas como meus sujeitos de pesquisa, mas como autores de suas
escritas em um discurso proissional. Meu desejo é lê-los e faço disso hoje, em minha
atual pesquisa, um objetivo proclamado. Ler um discurso não escrito, sonhar com ele.
Querer um discurso deste outro, um discurso que só ele poderá inventar, desde que
autorizado por leitores interessados. Quero textos docentes, proissionais, que tratem
de uma proissionalidade que não é a minha e, por isso, são organizações discursivas
que não sou capaz de realizar, que ainda estão por se produzir, dependendo apenas
da continuação de minha ação de formadora, pesquisadora, orientadora, leitora e
escritora de textos de pesquisa. (ANDRADE, 2011, s/p.)
incorrer em alguns equívocos, dos quais tentaremos escapar. Pois quando se procura
a gênese, encontram-se os hiatos, e exigem-se então saltos a fazer, dos analistas do
discurso. que não encontram linearidade ou continuidade. Não buscar a gênese no
sentido de sua continuidade, mas justamente tratar analiticamente as descontinuida-
des. Pensar o caráter histórico do discurso como contínuo, mas com rupturas, com
descontinuidades em sua coesão, é compreender a ideia de estabilidade relativa de
Bakhtin, que encerra esta descontinuidade. Se a teoria genética é tomada como uma
sequência quase cronológica, torna-se difícil marcar o aprendizado de alguém, o seu
esforço de escrita, para explicar o desenvolvimento de suas práticas, numa sequência
que seja precisa.
3. O terceiro eixo funda-se na ideia de fazer e dizer, que autores pesquisadores
inseridos nos estudos da Análise do Discurso mostram que quando se diz,
se faz. São apontados como fonte deste pressuposto do dizer como fazer
estudiosos da linguagem tais como Austin, por exemplo, que desenvolveu
os primeiros estudos pragmáticos que indicam que dizer é primeiramente
fazer, e quem diz está fazendo. Temos investido no dizer do professor para
nos aproximar de seu fazer, não deixar esta sua prática profissional “muda”,
sem palavras, mas que ela ganhe discursos das quais seja um tema afirmado,
organizado discursivamente pelos docentes, para comunicação, irradiação
de enunciados, em formas de publicização em que possamos investir.
O caráter etnográfico desta pesquisa representa-se pelos encontros de formação:
no face a face com os sujeitos, em tempo longitudinal, sensível a acontecimentos/
eventos em que se veja a produção dos sujeitos quando agem. O objetivo é produzir
uma descrição culturalmente sensível que proponha transformações da realidade dos
sujeitos estudados.
As apresentações de práticas produziram-se como um gênero endógeno ao EPEL-
LE. Representam a produção discursiva dos gêneros orais e escritos do grupo de pro-
fessores, que os tornam uma comunidade de Práticas. Os 77 professores participantes
ao longo do período não estiveram presentes permanentemente. Sua permanência
pode ser considerada pela “unidade” semestre, de tempo de frequência aos encontros.
Durante um semestre, grupos em torno de 20 professores frequentavam com regulari-
dade. Com este rodízio, formavam-se configurações distintas a cada semestre.
Os diálogos entre os grupos foram sempre muito mobilizadores. As discussões
situavam posicionamentos muito singulares, diferentes. As características destes pro-
fessores, como grupo, era bem variada, em termos de sua formação (inicial e continu-
ada), das escolas em que trabalham, do tempo de profissão, da experiência com anos
iniciais de escolaridade (E.I., E.F.) e do pertencimento exclusivo à escola pública ou
ainda trabalhando em escolas públicas de perfil mais elistista (com limitação de vagas
para entrada dos alunos, por exemplo). O tema da escola pública e as questões que
permeiam a sua realidade mais comum sustenta toda a produção discursiva de forma-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, buscamos apresentar avanços de uma pesquisa que se propõe a con-
tribuir com a abertura de possibilidades do próprio contexto estudado. Nossa própria
condição de produtores de pesquisa no campo da educação nos convoca a responder
por esta responsabilidade. Em nossa história de professora numa Universidade pública,
há tempos vimos sendo interpelados pelas políticas e participamos de situações de for-
mação continuada de professores alfabetizadores. Como pesquisadores, inscrevemo-nos
em longa experiência de formação em políticas de formação de professores das quais
participamos pela Universidade, em ações de colaboração com o Governo Federal, tais
como: Programa Nacional do Livro Didático (PNLD); Pró-Letramento R.J. (PL); ações
da Rede Nacional de Formação de Professores (RNFP); Programa/Pacto Nacional de
Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Não tivemos experiência com o programa de
iniciação à docência (PIBID), mas acompanhamos os colegas de nossa unidade que
têm feito este trabalho. O próprio edital do Observatório da Educação (OBEDUC)
da CAPES, no qual está inscrita esta pesquisa, traz um formato específico de relação
com a escola, apostando numa proximidade entre escola e Universidade, que inclui,
por exemplo, bolsas para professores da educação básica, além de outras peculiaridades.
Nestes processos vividos por nós, imprimimos formatações institucionais às for-
mações, o que se traduz em programas nacionalmente propostos ganharem contornos
muito subjetivos, em cada estado do país, em cada grupo coordenador das formações,
o que vai nos constituindo como autores. Partimos de ações com viés extensionista,
mas trata-se da constituição do pesquisador em educação que, ao agir como formador,
aprende sobre este objeto de pesquisa de forma encarnada. Além destas chamadas
pelo MEC, há também as demandas internas à IES em que trabalhamos, com a qual
temos contribuído, com coordenação de cursos de especialização, cursos de extensão
voltados aos professores, eventos de pesquisa abertos ao professor de redes públicas.
Nesta pesquisa, podemos enumerar brevemente os diversos acontecimentos da
pesquisa, avanços obtidos que equivalem a nossos resultados:
• O próprio evento instituído por quatro anos, designado pela sigla EPELLE, e
seu formato particular, artesanal, de formação, que nos possibilita a liberdade
para agir em relação aos moldes institucionais frequentemente impostos;
• Uma professora individualmente criou uma Funpage onde insere suas experiên-
cias pedagógicas como autora; ou seja, criou um modo de publicação autoral;
REFERÊNCIAS
ALVES, B. M. Entre palavras e fotografias: as “apresentações de prática” de professoras
de educação infantil. Texto apresentado no III Seminário Escrita Docente e Discente,
LEDUC Faculdade de Educação UFRJ, 2014.
activities used in basic education; supporting points of view of the social actors; relat-
ing and architecting ideas.
Keywords: Systemic Functional Linguistics; Teacher training; Writing; Literacy.
INTRODUÇÃO
E Deus disse… Com um enunciado, o mundo veio a sua existência. A origem oracio-
nal do universo, conforme citado em Gênesis, espelha o nosso próprio uso da língua
para construir realidade e transformar experiência em significado. Tamanho é o po-
der generativo de realidade da gramática que ela nos possibilita definir ‘a experiência
básica do ser humano (HALLIDAY, 2004, p. vii – tradução nossa)3’.
lizados para introduzir vozes adicionais no discurso presentes nas três metafunções
da linguagem. Na quarta seção, Projeção de citações na escrita reflexiva profissional de
relatórios, está organizada nas seguintes subseções Projeção de citação da literatura cien-
tífica e Projeção de citação da literatura não científica. Nestas subseções, descrevemos a
projeção como um recurso intensificador de ponto de vista, utilizado para informar
fonte de origem de estratégias didáticas empregadas no estágio.
7
No livro de Genesis é relatado a forma como Deus criou o céu e a terra e, tudo que neles há, como: a criação da luz e das
trevas; a separação entre águas e terra; a produção de ervas e árvores frutíferas; os luminares na expansão dos céus; a criação
dos animais e do homem e demais seres viventes, que surgiram por meio de uma simples oração: E disse Deus: haja X. E
houve X. Nesta oração, o processo existencial haja representa algo que foi construído com apenas um participante: Deus.
(cf. Gênesis capítulo 1: 1- 31. In: João Ferreira de Almeida (Tradutor). Bíblia Sagrada e Harpa Cristã. Casa publicadora das
Assembleias de Deus (CPAD): Bueri, São Paulo, 2010).
justifica-se por fazer parte da memória discursiva e cultural dos leitores idealizados
pelo autor da citação.
Neste excerto em epígrafe, Halliday esclarece que assim como o universo surgiu
por meio do pronunciamento de um enunciado, como dito em Gênesis, ao usarmos
a linguagem, temos o poder de construirmos realidades e dar sentido a nossas experi-
ências para realizarmos interações/relações sociais. Neste sentido, o autor assume que
a gramática, isto é, o sistema léxico-gramatical de toda e qualquer língua natural é um
sistema semiótico da experiência humana no contexto social da vida diária. Portanto,
com a gramática, o cientista pode transformar o mundo, ou até mesmo (re)criar novas
realidades virtuais.
Na abordagem teórica da LSF, a linguagem é representada para efeito de análise
da seguinte forma: contexto de cultura8 (gênero), contexto de situação (variáveis de regis-
tro), e gramática do sistema linguístico (metafunções da linguagem).
Na figura reproduzida adiante, apresentamos a representação da linguagem sob a
perspectiva da LSF.
Figura 1: Representação da organização da Linguagem para a LSF (adaptação de MARTIN,1997, apud
SILVA e ESPINDOLA, 2013, p. 273).
Quadro 1: Variáveis de registro do relatório de estágio (adaptado a partir de SILVA e FAJARDO TURBIN,
2011, p. 113).
VARIAVÉIS DE REGISTRO DO
ANÁLISE
RELATÓRIO DE ESTÁGIO
Escrita reflexiva profissional utilizada para relatar experiências
vivenciadas em disciplinas de estágio supervisionado,
CAMPO envolvendo os espaços universitário e escolar, elaborada a
partir de diferentes processos sócio semióticos (exposição,
descrição, narração e argumentação).
Produtores: alunos-mestre matriculados em disciplinas
de estágio, cumprindo uma atividade acadêmica. Leitores
imediatos: docentes responsáveis pelas disciplinas de
estágio, os quais avaliam imediatamente o mérito do
trabalho. Leitores potenciais: outros alunos-mestre dos
RELAÇÃO
estágios ou quaisquer interessados nos documentos,
inclusive para serem usados como objeto de pesquisas
científicas, os quais têm acesso aos documentos no CIMES;
professores colaborados das disciplinas de estágio no
contexto da educação básica.
Nesta seção, apresentamos uma visão geral dos princípios norteadores da LSF, uti-
lizados como recursos para descrever, interpretar e realizar significados da linguagem
no sistema de comunicação humana. Nas seções seguintes, focamos mais detalhada-
mente os recursos do Sistema de projeção, derivados na metafunção ideacional, inter-
pessoal, e suas incursões na metafunção textual, utilizados na LSF para fazer referência
ao discurso próprio e ao discurso alheio.
13
Sobre esta questão, vejamos também o que dizem Martin & White (2005, p. 95.): “(…) Observamos, nesse aspecto,
que quando falantes/escritores anunciam suas próprias posições atitudinais, eles não somente se auto-expressam ‘falam suas
próprias mentes’, mas eles simultaneamente convidam outros para endossar e compartilhar com eles seus sentimentos, gostos
e avaliações normativas que eles estão anunciando. Portanto, declarações de atitudes são dialogicamente orientadas a alinhar
o interlocutor com uma comunidade de valores e crenças em comum”.
de ensino aprendizagem que o professor se dispõe a percorrer durante toda sua vida
profissional. Desse modo, como o responsável em grande parte pela construção do
conhecimento, cabe ao docente buscar formas inovadoras de ensino, trazendo para si
a responsabilidade mútua de fazer com que seus alunos aprendam e não apenas decore
as normas gramaticais sempre tão necessárias na vida escolar. (Informante 01, Estágio
III, 2011.2 – LP – Corpo do relatório).
No fragmento mencionado, observamos logo na primeira oração que o aluno-
-mestre introduz seus pontos de vista e atenua o grau de compromisso com suas afir-
mações, ao utilizar o atributo modal de probabilidade pode ser. Esse atributo modal
é uma construção interpessoal, empregada pelo enunciador para estabelecer com o
leitor um diálogo. Neste diálogo, negociam-se os possíveis contra-argumentos, consi-
derando que existem posicionamentos alternativos contrários. Por meio deste recur-
so, diminui-se o grau de comprometimento e certeza com o conteúdo declarado e
produz-se um efeito de suposição. É uma estratégia para evitar imposição de pontos de
vista. O mesmo ocorre no terceiro parágrafo, reproduzido no fragmento, na seguinte
construção: pois um pode auxiliar o outro.
Uma voz de autoria da literatura científica é trazida na passagem, alinhada ao
ponto de vista do aluno-mestre, enunciador do trecho exibido, de forma que as enun-
ciações reproduzidas acabam sendo fundamentadas no dizer do outro. Nesse sentido,
a responsabilidade do dizer do aluno-mestre não é somente sua, mas do outro que o
compõe, que o entreglosa.
Conforme depreendemos a partir da leitura do fragmento exibido, o instrumento
de ensino mencionado, no ponto de vista do enunciador, deve ser aplicado nas aulas
na educação básica, por ser avaliado no subsistema de apreciação como inovador, assim
como revela o atributo forma inovadora. Esse mesmo instrumento permite prender a
atenção dos estudantes no ensino dos conteúdos gramaticais. O uso do processo mate-
rial sofrem (os mesmos sofrem dificuldades na leitura e sinônimos de inúmeras palavras) en-
fatiza como é sensível para os participantes alunos lerem e tomarem conhecimento dos
sentidos das inúmeras palavras, por eles desconhecidas, presentes nos livros didáticos.
Acreditamos que o processo sofrer é mais um recurso empregado para intensificar
o próprio ponto de vista do enunciador, fortalecendo assim sua voz. Ao mesmo tem-
po, a oração em que esse processo é utilizado pode revelar as experiências vivenciadas
na prática do estágio, já que a escrita do relatório é resultado final de situações peda-
gógicas experienciadas. Nesse caso, o aluno-mestre informa ao seu leitor que utilizou
o dicionário em suas aulas para auxiliar os conteúdos do livro didático, e que essa
estratégia foi bem sucedida, pois possivelmente foi uma forma inovadora de ensino,
uma forma de manter os estudantes atentos às aulas.
Para confirmar e fundamentar as argumentações enunciadas, o autor do fragmen-
to reproduz uma citação direta da literatura científica. Tal citação permite-nos reco-
nhecer a voz alheia que é divulgada no excerto, como também por meio da circunstân-
cia de ângulo indicando ponto de vista de acordo com Francisco Borba, e os elementos
metaenunciativos destacados em sublinhado.
Neste fragmento, a circunstância de ângulo indicando ponto de vista destacada é
um recurso de projeção com função de citação que nominaliza implicitamente o uso
do processo mental cognitivo pensar. Esse recurso constrói importância e valor aos sig-
nificados enunciados e a fonte de referência, servindo para ligar/arquitetar as ideias do
aluno-mestre, mostradas nos parágrafos anteriores, com as ideias legitimadas da voz de
autoria. O recuo textual é outra forma metaenunciativa para intensificar a voz alheia
proclamada através da citação direta. Tanto o recuo textual, como a citação direta, são
recursos do Sistema de projeção.
A citação reproduzida no fragmento introduz o discurso de que o dicionário é um
artefato de grande valor cultural, pois, conforme enunciado pelo autor Francisco Bor-
ba, este artefato é um tipo de repositório, de documento onde encontramos o registro
lexical da língua, vigente na sociedade, diferentemente da gramática normativa que
apresenta as prescrições e regras de funcionamento estrutural de uso da língua.
O autor citado aprecia e supervaloriza o documento de registro lexical da língua,
ao graduar a força avaliada, por meio do elemento de intensificação mais importante,
na oração, O dicionário é a documentação mais importante que nós temos no léxico da
língua portuguesa.
O enunciador do fragmento exibido também utiliza o Sistema de Avaliatividade
no início do trecho destacado, acentuando o valor do instrumento didático de ensino
por ele proposto, por meio da oração [o dicionário é] um importante instrumento no
processo ensino aprendizagem. Nessa situação, percebemos um alinhamento entre a voz
de autoria e a voz do próprio estagiário. No primeiro caso, a voz de autoria refere-se ao
instrumento mencionado como uma riqueza social; no segundo caso, no contexto que
a citação é empregada, este recurso é utilizado para potencializar o ensino.
Na citação direta da voz de autoria, chamamos a atenção para o uso do processo
mental de cognição refletir, em: Reflete a língua tal qual ela é; e, o processo verbal expli-
car, em: gramática que explica como a língua deve ser. Nessas orações, apesar de ambos
os processos não possuírem um participante experienciador do fenômeno projetado,
nem mesmo um dizente realizando a projeção, os fatos projetados ocorrem impessoal-
mente. Portanto, nessas orações temos uma projeção por meio de um processo mental
cognitivo impessoal e uma projeção verbal, por meio de um processo dizente impesso-
al. Ambas as projeções possuem função de relato e mostram como Borba compreende
a função do dicionário e da gramática.
Após a reprodução da voz alheia, a voz do autor do fragmento é novamente per-
cebida no enunciado de forma explícita, por meio de outra oração (Com isso vemos que
há sim uma ligação entre o uso do dicionário em sala de aula e o ensino da gramática),
que utiliza o processo mental de percepção vemos (com isso vemos que). Neste caso, o
processo mental de percepção destacado é entendido como um recurso do Sistema
de projeção de fatos que acomoda uma projeçao pré-existente, indicando eu (aluno-
-mestre) entendo Y, ou compreendo Y. Esta projeção possui função de relato.
Esse exemplo nos mostra que não existem padrões definidos de ocorrências do
Sistema de projeção no Português Brasileiro. O Sistema de projeção para ser identifi-
cado depende do contexto de análise do registro. Inúmeras possibilidades que adotem
os subsídios da LSF são aceitáveis, já que esse sistema é disperso na léxico-gramática.
O grupo nominal há sim, nominalizado pelo processo existencial haver, mostrado
na oração reproduzida no parágrafo anterior, contradiz as vozes que dizem que a arti-
culação proposta pelo acadêmico (dicionário x gramática x livro didático) não é possí-
vel. Destacamos, ainda que, a construção com isso vemos que, em que temos uma pro-
jeção mental de percepção, também possui a finalidade de proporcionar a produção
escrita, à progressão do fluxo informacional. Essa construção orienta as argumentações
tecidas e convoca o locutor à concordância diante do pronunciamento de que a citação
exibida comprova que o ponto de vista inicial defendido pelo aluno-mestre é mesmo
verdadeiro. Ou seja, é possível usar o dicionário para subsidiar o ensino da gramática
e os conteúdos do livro didático.
Com a finalidade de retomar e prosseguir as discussões tecidas, o enunciador do
fragmento emprega o Tema textual desse modo, no mesmo parágrafo que segue a cita-
ção direta apresentada, presente no Tema oracional Desse modo, como o responsável em
grande parte pela construção do conhecimento, cabe ao docente. Esse Tema textual serve
para retomar o ponto de partida da mensagem exibida na oração anterior e nos pará-
grafos anteriores, estabelecendo a mensagem uma função coesa e um efeito retórico
de background.
Nesta oração, compreendemos o uso do modalizador cabe ao docente como uma
forma de suavizar os deveres do profissional do ensino. Para não dizer diretamente o
professor deve, ou o professor tem que, o aluno-mestre prefere empregar a escolha lexical
cabe ao docente. Esta escolha permite-nos caracterizar a escrita reflexiva profissional
como uma escrita construída com enunciados modalizados, especialmente para indi-
car deveres, obrigações e permissões docentes.
Numa nova unidade de informação, presente neste mesmo parágrafo, o aluno-
-mestre sinaliza algumas responsabilidades e obrigações do professor-colaborador,
como: promover a aprendizagem dos estudantes e usar estratégias inovadoras de ensi-
no. Essas obrigações são perceptíveis no fragmento através das escolhas indicadoras de
ações e acontecimentos, nos processos materiais buscar (participante: professor - meta
a ser alcançada pelo participante: formas inovadoras de ensino), fazer (função do profes-
sor - por em prática a meta: com que seus alunos aprendam e não apenas decore normas
gramaticais), e na nominalização trazendo.
PROJEÇÃO DE CITAÇÃO DA
LITERATURA NÃO CIENTÍFICA
Apresentamos outro fragmento retirado da introdução de um dos relatórios inves-
tigados, aonde o sujeito-enunciador entreglosa sua voz, com a voz de um enunciado
indireto da literatura não científica, pertencente à obra Pais Brilhantes professores Fas-
cinantes, autoria de Augusto Cury.
• Fragmento 02:
Trabalhamos com uma técnica sugerida por Augusto Cury, em “Pais Brilhantes
Professores Fascinantes”, no capitulo cinco, sub. item quatro, pagina 129 onde ele
chama de: A Escola Dos Nossos Sonhos, que consiste na Exposição dialogada: a arte da
pergunta. O objetivo desta técnica: desenvolver a consciência critica promovendo o
debate de ideias, estimulando a educação participativa, com a tentativa de superar
a insegurança, debelarem a timidez e melhorar a concentração. (Informante 02,
Estágio III, 2011.2 – LP – Introdução do relatório).
que consiste na; o; com a tentativa de; e) foram utilizados como sutis alterações em rela-
ção ao dizer da fonte, revelando os poucos momentos em que a voz do aluno-mestre
se faz presente no trecho selecionado.
Na citação literal da literatura não científica reproduzida, os processos verbais
apontados como possíveis ações que devem ser seguidas pelo profissional do ensino,
ao serem retomadas pelo aluno-mestre na produção escrita do relatório, em forma de
paráfrase, alguns modalizadores foram por ele empregados para suavizar os compro-
missos e obrigações docentes, como estimulando e promovendo. Os usos dos modali-
zadores, como os exemplificados, são comuns nesses documentos e característicos da
escrita reflexiva profissional, assim como já apontado no fragmento 01, analisado na
seção anterior.
Destacamos ainda a realização do processo verbal chama de antecedido pelo par-
ticipante ele (Augusto Cury), o qual constrói a projeção para o discurso de outrem de
forma explicita, revelando certa exaltação da voz propagada no enunciado. Neste caso,
a projeção destacada possui função de relato.
A voz alheia da literatura não científica mostrada no fragmento, possivelmente
revela que quando o aluno-mestre utilizou em suas aulas a ferramenta de ensino Expo-
sição dialogada: a arte da pergunta, inconscientemente este constrói uma imagem de si
como ‘bom professor’, aquele que investe na promoção de ideias e relações dialógicas
entre professor e aluno; desenvolve a consciência crítica do aprendiz; colabora para a
superação de inseguranças, timidez e favorece a concentração.
Esta imagem pode até mesmo ser uma estratégia para prestar contas ao leitor do
relatório, principalmente ao professor-formador da disciplina de estágio, que as ações
desenvolvidas na prática pedagógica foram cumpridas satisfatoriamente, já que este
documento é o principal instrumento avaliador.
No fragmento exibido, identificamos que o enunciador do fragmento, ao reportar
a voz do discurso da literatura não científica, realizou apenas algumas modificações
estruturais linguístico-discursivas citadas ipsis verbis, tentando reformular e recriar o
discurso alheio.
Observamos que a voz do enunciador aparece na passagem em poucos momen-
tos, principalmente por meio dos recursos de projeção usados para informar origem
das estratégias didáticas empregadas no estágio e nas modalizações apontadas que su-
avizam os deveres e obrigações docentes.
Diante dos fragmentos exibidos, e dos demais dados de pesquisa, constatamos que
uma das características da escrita reflexiva profissional dos relatórios de estágios é o
emprego de literatura não científica para fundamentar as argumentações dos enuncia-
dores. No entanto, esse tipo de literatura, mesmo sendo elaborado numa comunidade
acadêmica, e fazendo parte das práticas socioculturais, na área de Letras/Linguística,
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INTRODUÇÃO
De acordo com os dizeres da epígrafe deste artigo, a vida contemporânea produz
diferentes conhecimentos, que colaboram para múltiplas leituras a respeito dos fenô-
menos no mundo. Nesse sentido, consideramos que a linguagem seja perpassada por
diferentes ideologias capazes de construir identidades plurais3.
No cenário típico de um mundo pós-moderno, é necessário levarmos em conta
o que Moita Lopes (2006) chama de vozes do sul. Recentes pesquisas da área da lin-
guagem procuram vozear atores sociais que estão situados em contextos periferizados
socialmente. O propósito é compreender o que estas vozes suleadas4 produzem em seus
respectivos contextos de uso linguístico e refletir como tais vozes se despontam em um
mundo globalizado, influenciando pessoas de todas as esferas sociais.
Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla desenvolvida no Mestrado em
Letras: Ensino de Língua e Literatura, da Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Na ocasião, focalizamos as Licenciaturas paraenses em Letras, Pedagogia e Matemá-
tica, então consideradas como grupos periféricos ao tomarmos como referência o pró-
prio contexto social brasileiro (PEREIRA, 2014). Neste artigo, focalizamos apenas
a Licenciatura em Matemática, mais precisamente, algumas autorrepresentações dos
professores em formação inicial, construídas nos relatórios de estágio obrigatório dessa
licenciatura, realizados numa escrita reflexiva profissional pouco desenvolvida.
Dois pressupostos guiam nossas reflexões ao considerarmos como grupo periféri-
co a licenciatura a que se vincula o corpus aqui investigado. O primeiro relaciona-se à
realidade do contexto acadêmico paraense comparado ao meio universitário de outras
Regiões brasileiras. Ou seja, torna-se periférico pela própria ideia de marginalização
que é conferida ao Estado do Pará em relação a outros Estados brasileiros. O segundo
relaciona-se à ideia de periferização das próprias licenciaturas, quando comparadas a
cursos de bacharelado na mesma região paraense.
3
Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito das atividades cientíicas dos grupos de pesquisa Práticas de Linguagens em
Estágios Supervisionados – PLES (UFT/CNPq) e Sistêmica Através das Línguas – SAL (PUC-SP/CNPq). Contribui para
o projeto de pesquisa “Escrita relexiva proissional nas licenciaturas: da gramática o discurso” (CNPq nº 407572/2013-9;
PROPESQ/UFT nº AG#001/2014).
4
A forma verbal sulear é utilizada por Kleiman (2013), que faz referência à concepção de vozes do sul tratada por Moita
Lopes (2006) em sua obra Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar.
Para darmos vozes aos atores da pesquisa, situamos nosso trabalho no campo
interdisciplinar da Linguística Aplicada (LA), considerando, precisamente, os estudos
do letramento do professor (KLEIMAN, 2008; 2007), bem como os estudos a res-
peito da própria abordagem não disciplinar da LA (MOITA LOPES, 2006; SIGNO-
RINI, 1998). A LA apresenta um perfil essencialmente social, o que converge com o
objetivo buscado neste artigo.
Para microanálise dos dados, mobilizamos pressupostos da Linguística Sistêmico-
-Funcional (LSF). Na LSF, o texto é considerado como célula central de análise, onde
ocorre a materialização das ideologias do contexto social em que é produzido. Para
isso, nos estudos sistêmico-funcionais, compreendem-se as padronizações gramaticais
como escolhas léxico-gramaticais motivadas por fatores extralinguísticos (cf. HALLI-
DAY & HASAN, 1989; HALLIDAY, 1994; EGGINS, 2004; GOUVEIA, 2009; SIL-
VA e ESPINDOLA, 2013; HALLIDAY & MATHIESSEN, 2014; THOMPSON,
2014; só para citar alguns), permitindo-nos articular texto/linguagem/sociedade.
A interface proposta entre LA e LSF, objetivando a microanálise dos relatórios de
estágio supervisionado, é constituída por dois contrapontos entre essas vertentes de
estudos: o fato de ambas serem, por excelência, abordagens sociais e interdisciplinares
(SILVA e ESPINDOLA, 2013).
Além desta Introdução, Considerações finais e Referências, este artigo está organizado
em cinco principais seções: 1. Interface entre LA e LSF, estabelecemos um diálogo entre
as duas abordagens, partindo do pressuposto de que ambas nutrem um olhar social a
respeito dos estudos da linguagem; 2. Conhecendo um pouco da LSF, apresentamos algu-
mas noções teóricas da abordagem sistêmico-funcional; 3, Contexto de Coleta dos Dados,
apresentamos o contexto acadêmico onde os dados deste artigo foram produzidos e
coletados; 4. Metodologia para Análise dos Dados, discorremos a respeito da metodologia
de pesquisa adotada para o tratamento dos dados; e 5. Autorrepresentações de Alunos-
-Mestre, realizamos a microanálise dos relatórios de estágio. Essa última seção, por sua
vez, está organizada conforme três categorias de autorrepresentações dos alunos-mestre
identificadas na pesquisa: Ressignificação da sala de aula pelo aluno-mestre; Concepção da
escolha metodológica; e Autoavaliação do aluno-mestre no Estágio Supervisionado.
impossível separarmos língua e sociedade, tendo em vista que uma sobrevive na outra,
pois ambas são dinâmicas por natureza.
Os estudos da linguagem estão cada vez mais abertos às contribuições de outros
campos do conhecimento humano, com o objetivo de compreender fenômenos da
língua por ângulos diferentes, complexificando-os consequentemente.
Em outras palavras, as ramificações mais contemporâneas das Ciências Humanas
procuram perceber a linguagem como elo entre diferentes domínios sociais, estando
sujeita a múltiplas funções no momento da interação. Portanto, faz-se necessário con-
siderar a linguagem como elemento essencialmente discursivo, o que implica dizer
que, para a entendermos, é necessário mobilizarmos teorias não apenas linguísticas,
mas também psicológicas, sociológicas, filosóficas, etc.
Nesse contexto, surge a LA que, concebida como inter/trans/indisciplinar, com-
preende os fenômenos linguísticos a partir de situações sociais concretas. Para tanto, os
linguistas aplicados mobilizam diferentes teorias do saber humano com o propósito de
analisar o objeto de estudo sob diferentes pontos de vista. A LA distancia-se cada vez
mais da Linguística Teórica, aproximando-se de outras disciplinas, como a Sociologia
e Educação, por exemplo.
Não estamos propondo aqui uma visão disciplinar da LA. Partimos da premissa
de que a LA é, na verdade, uma nova perspectiva de se fazer ciência, quando o objeto
de investigação é a própria linguagem. Concordamos com Signorini (1998, p. 100)
ao afirmar que a LA é “uma espécie de interface que avança por zonas fronteiriças de
diferentes disciplinas”. Ainda a respeito do diálogo da LA com outras disciplinas ou
campos do conhecimento, compreendemos que:
Está ocorrendo na produção do conhecimento a compreensão de que uma única
disciplina ou área de investigação não pode dar conta de um mundo luido e globalizado
para alguns, localizado para outros, e contingente, complexo e contraditório para
todos (MOITA LOPES, 2006, p. 99).
A LSF é uma abordagem social, porque não desvincula a língua de seu contexto
situacional e cultural. O texto é resultado de uma série de escolhas léxico-gramaticais,
motivadas pelo meio extralinguístico. Portanto, é uma representação do contexto em
que opera (cf. EGGINS, 2004; HALLIDAY e MATHIESSEN, 2004; GOUVEIA,
2009; SILVA e ESPINDOLA, 2013THOMPSON, 2014; HALLIDAY e MATHIES-
SEN, 2014; só para citar alguns). Assim, a interface entre LA e LSF emerge justamente
do diálogo que ambas mantém com a sociedade contemporânea.
Outro contraponto importante na relação LA/LSF é o fato de ambas terem cará-
ter eminentemente interdisciplinar. As pesquisas que compartilham essa abordagem
não disciplinar, ao produzir ciência, valorizam diversas maneiras de estudar os aspectos
da linguagem, podendo contribuir para a descrição tipológica dos usos das formas
linguísticas.
Como a intenção desta pesquisa é justamente analisar a escrita reflexiva profissio-
nal, em relatórios de estágio supervisionado, a partir da descrição de autorrepresenta-
ções de alunos-mestre, a metodologia de análise textual oferecida pela LSF nos ajuda
a entender o contexto maior de produção dos relatórios.
Dessa forma, a reflexão sobre as escolhas léxico-gramaticais do aluno-mestre pode
contribuir para a formação de profissionais mais conscientes dos usos linguísticos e
gramaticais na modalidade escrita da língua, especialmente no que se refere à escrita
reflexiva profissional na licenciatura.
5
É importante considerarmos que as delimitações que apresentamos aos contextos de cultura e de situação são apenas de
natureza metodológica. É impossível demarcar com exatidão o alcance de ambos os contextos, uma vez que estes apresentam
fronteiras instáveis.
Nas análises apresentadas adiante, a ênfase recai nos Processos que apontam o
aluno-mestre como sujeito do complexo oracional. Em LSF, entendemos o termo
Processo como a categoria gramatical que designa a ideia de ação ou estado. Dizemos,
então, que tais Processos são classificados em 6 (seis) diferentes tipos. São eles: Mate-
rial, Mental e Relacional – ditos processos principais –, e Comportamental, Verbal e
Existencial – considerados processos intermediários, tendo em vista que sua condição
semântica encontra-se entre os processos principais (cf. HALLIDAY, 1994; HALLI-
DAY & MATHIESSEN, 2004; HALLIDAY & MATHIESSEN, 2014; EGGINS,
2004; THOMPSON, 2014; só para citar alguns).
Na segunda metafunção a ser aqui considerada, a Metafunção Textual, a oração
é vista como mensagem, sendo construída a partir da estrutura Tema e Rema. Esta
metafunção engloba as demais, além de considerar também a textura das produções
linguísticas. Para a metafunção focalizada, compreendemos por textura o resultado da
interação entre as propriedades textuais de coerência e coesão.
A relação Tema/Rema opera no nível da coesão e, até mesmo, coerência, pois estabe-
lece significados no texto entre termos anafóricos e catafóricos (EGGINS, 2004). Devido
à incidência de escolhas temáticas marcadas nas análises dos dados investigados, nossa ên-
fase recai sobre o Tema, elemento que inicia a oração, compreende até o uso do primeiro
elemento de valor experiencial6. O Tema é compreendido como “o elemento que serve
como ponto de partida da mensagem; ele localiza e orienta a oração no seu contexto. O
usuário escolhe o Tema como seu ponto de partida para guiar o interlocutor a desenvolver
uma interpretação da mensagem” (HALLIDAY & MATHIESSEN, 2014, p. 89).
Dentre os vários tipos de Tema, citamos o simples, o complexo, o múltiplo, o
marcado, o não marcado e, quando ocorrem em estruturas temáticas especiais, podem
ser equativos, tematizados e predicados (cf. HALLIDAY & MATHIESSEN, 2004;
HALLIDAY & MATHIESSEN, 2014; THOMPSON, 2014; só para citar alguns).
Como nossa intenção principal é refletir a respeito do caráter semântico da es-
trutura temática da mensagem, não apresentaremos explanações exaustivas dos tipos
de Tema. Nas análises dos dados, atentamo-nos às possibilidades de sentido que o seu
uso causa na oração.
6
De acordo com “o princípio orientador da estrutura temática”, proposto por Halliday e Matthiessen (2014, p. 105),
“o Tema de uma oração termina com o primeiro constituinte que pode ser o participante, circunstância ou processo. Nós
referimos a este constituinte, em sua função textual, como Tema tópico”.
AUTORREPRESENTAÇÕES DE ALUNOS-MESTRE
Nesta seção, apresentamos o percurso de análise das autorrepresentações dos alu-
nos-mestre. Propusemo-nos a utilizar a LSF como aporte teórico-metodológico para
realização dessas microanálises devido à grande relação entre seus princípios teóricos
e os da LA (cf. SILVA e ESPINDOLA, 2013). Em outras palavras, a LSF nos ajuda a
chegar à materialidade de um texto produzido por atores sociais fluidos e heterogêne-
os, conforme nos apresenta a LA.
RESSIGNIFICAÇÃO DA SALA DE
AULA PELO ALUNO-MESTRE
No Excerto 1, os alunos-mestre ressaltam um ponto positivo, conforme suas con-
cepções das aulas ministradas. De acordo com eles, após sua interferência na rotina da
sala de aula por meio da regência, um aluno da Escola Básica, que não costumava par-
ticipar das aulas, passou a se comunicar expressivamente durante a regência, tornando-
-se um bom aluno. Vale ressaltar que os alunos-mestre não explicam o que entendem
como bom aluno.
EXCERTO 1
relatar), sugere que os fatos relatados a partir de então sejam vistos como motivadores
para uma ressignificação em sala de aula.
O Modalizador (não) atribui uma Circunstância de Negação ao Processo Ma-
terial (participava). Com as escolhas linguísticas, o aluno-mestre reconhece que a
não participação nas aulas é um ponto ruim para o processo de aprendizagem. En-
tretanto, mais adiante, o uso da Circunstância na posição do Tema Marcado (com a
nossa chegada) funciona como uma espécie de “divisor de águas”. Os alunos-mestre
se autorrepresentam como essenciais para a postura assumida pelo aluno da escola
básica. A chegada dos alunos-mestre é representada como fator responsável pelo
melhor desempenho do aluno.
O Processo Material (passou a participar), pelo qual o aluno-mestre faz referência
ao aluno da escola básica como Ator, coloca os professores em formação inicial na po-
sição de ‘redentores’. Eles acreditam que, após intervenção no estágio, o discente pode
se caracterizado como um bom aluno. Essa ideia é reforçada pelo uso da Circunstância
de Modo (com muita facilidade) e de seu Processo Material (aprende).
No Excerto 1, os alunos-mestre sugerem que, para diagnosticar um aluno como
bom, é necessário apenas que ele tenha facilidade em entender o conteúdo trabalhado
em sala de aula. Funcionalmente, isso é comprovado pelo Atributo (uma das nossas
conquistas), ao final do excerto. Essa crença pode não levar em conta outros fatores
que influenciam na aprendizagem de um aluno ou que, mesmo, caracterizam o de-
senvolvimento das habilidades deste público. Logo, não considera os desafios mais
recentes pelos quais a escola básica passa. Tem-se, assim, um olhar simplificado do
aluno-mestre sobre a situação de ensino experienciada.
EXCERTO 2
O Excerto 2 é iniciado pelo Tema Marcado (Na maior parte das aulas ministradas).
O aluno-mestre afirma que não usou a mesma metodologia em todas as aulas por ele
ministradas. Entretanto, trata-se da metodologia predominante em sua postura pe-
dagógica, pois confessa ter sido a utilizada na maioria das aulas. Isso é importante no
processo de autorrepresentação, pois sugere um aluno-mestre que optou por metodo-
logias diferentes em situações de ensino.
Posteriormente, confessa-se tradicional. Por outro lado, admite que realizou tra-
balhos em grupos. Essa ‘contradição’ configura-se pelo alcance oracional dos Processos
Materiais (adotamos e realizamos). Ainda sobre o Processo Material (adotamos), per-
cebemos que a Meta (o método tradicional de ensino através de aulas expositivas) parece
expressar gramaticalmente o que acabamos de mencionar. Da perspectiva sistêmico-
-funcional, notamos que a Meta é constituída por um grupo nominal extenso. O alu-
no-mestre sente a necessidade de explicar como este método tradicional se fez presente
em suas aulas, no caso, por meio de aulas expositivas. Isso atribui uma caraterística um
tanto descritiva, fazendo com que predomine a Atividade Sociossemiótica do Reportar.
O fato de simplesmente recontar os fatos caracteriza um aluno-mestre pouco reflexivo
em sua escrita.
A dimensão do Reportar estende-se durante todo o Excerto 2, por intermédio
das escolhas léxico-gramaticais, com destaque para o elemento adverbial (também),
que introduz uma justificativa pela escolha metodológica, porém apresentando apenas
outro fato, ou seja, somente recontando.
O Processo Material (realizamos) e a Meta (trabalhos em grupo) reforçam a ideia
do recontar e compartilhar experiências vividas. Nesse caso, é um fato relatado que
serve para justificar o primeiro, no caso, a escolha metodológica pelo método tradi-
cional. No plano semântico-discursivo, entendemos essas escolhas gramaticais como
tentativa de reflexão, voltada à Atividade Sociossemiótica do Explorar. O aluno-mestre
procura relacionar a ideia de tradicionalismo à possiblidade de se fazer intervenções
em grupo. Entretanto, dizemos que este momento argumentativo não predomina no
excerto, posto que o aluno-mestre acaba não desenvolvendo, nem justificando, esta
relação, que foi apenas sugerida.
Mais adiante, por meio do grupo verbal (fizemos uso), que tem alcance de Processo
Material, o aluno-mestre afirma ter feito uso de um material concreto, no caso, a Meta
do processo ora referido. Todavia, não explica o que seria este material, nem esclarece
também se esta ‘concretude’ está diretamente associada ao livro didático ou a qualquer
outro aporte metodológico.
Outro Processo Material (utilizamos) usado ao final do Excerto 2 introduz a Meta
(um jogo envolvendo múltiplos e divisores). Assim como ocorreu em excertos anteriores,
o aluno-mestre utiliza grupos nominais extensos para enumerar conteúdos ministra-
dos, sem muita articulação entre tais conteúdos e a maneira como foram, de fato,
trabalhados em sala. Essa realização linguística não é algo produtivo para o letramento
linguístico, tendo em vista que o aluno-mestre não reflete, em sua escrita, a respeito
da sua metodologia e das condições propiciadas na situação de estágio obrigatório.
Partimos do princípio de que a construção das autorrepresentações acontece pela in-
teração, o que solicita do aluno-mestre entender como a sala de aula e outros fatores
contribuem para o andamento de sua prática pedagógica (KLEIMAN, 2005, p. 207).
Entretanto, nesse último caso em especial, a Meta mencionada estabelece, se-
manticamente, uma relação de causa e consequência. Em outras palavras, é como se o
aluno-mestre não relacionasse tradicionalismo e movimento crítico de ação e reflexão
de uma prática docente metodológica (LÜDKE e BOING, 2012).
EXCERTO 3
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com as análises realizadas, os relatórios de estágio supervisionado ana-
lisados apresentam uma escrita ainda bem incipiente quando nos referimos ao teor
reflexivo. Partindo do princípio de que o relatório de estágio supervisionado é um
gênero textual que demanda do aluno-mestre um poder de crítica e reflexão sobre a
prática pedagógica, esperamos que essa produção seja mais bem elaborada, de maneira
a contribuir com as práticas de letramento do professor em formação inicial.
Entretanto, frisamos que os alunos-mestre, responsáveis pela elaboração dos relató-
rios, corpus de nossa pesquisa, parecem conhecer os mecanismos linguísticos que apon-
tam para uma escrita reflexiva profissional. Todavia, as problemáticas que identificamos,
no contexto acadêmico de produção do relatório, não propiciam situações que levem o
aluno-mestre a reflexões produtivas. A ausência de incentivo à reflexão afeta diretamente
a escrita do relatório, tornando a escrita dos textos algo puramente burocrático.
A Licenciatura em Matemática apresenta problemáticas advindas da logística do
próprio contexto universitário em que as disciplinas de estágio supervisionado são
ofertadas. Por isso, acreditamos que tais relatórios refletem a formação do aluno-mes-
tre produtor desses textos, uma vez que a ausência de reflexão nos textos analisados
representa justamente a falta desta habilidade no meio acadêmico em questão.
Esperamos contribuir com os estudos do letramento do professor em formação
inicial. Os resultados revelaram que a escrita reflexiva profissional precisa receber a
devida atenção do meio universitário. Entendemos que esse tipo de escrita, peculiar
das licenciaturas, ajuda a formar profissionais mais críticos e pensantes a respeito de
sua própria prática pedagógica.
A ausência de incentivo à prática da escrita reflexiva do aluno-mestre não corres-
ponde apenas a um problema envolvendo estratégias didáticas utilizadas na formação
inicial do professor ou, até mesmo, à demanda por aprofundamento dos estudos apli-
cados envolvendo o uso do gênero relatório ou do registro reflexivo profissional nos es-
tágios. Apenas a melhor compreensão linguística desse registro acadêmico, emergente
nas licenciaturas, não proporciona uma resposta desencadeadora do empoderamento
do letramento do professor. Existem problemas de política educacional, compreen-
dendo a operacionalização da própria licenciatura, que afetam o trabalho acadêmico
com a escrita nas disciplinas de estágio supervisionado. Esses problemas estão atrela-
dos a demandas socioeconômicas e características culturais da região
Em síntese, destacamos que, ao investigar autorrepresentações dos alunos-mestre
nos relatórios, ficou mais evidente a complexidade da problemática que envolve a for-
mação de professores, a exemplo da Licenciatura em Matemática focalizada neste artigo.
Portanto, do ponto de vista da pesquisa científica, o diálogo entre diferentes disciplinas
do conhecimento é o percurso científico promissor para a proposição de respostas a de-
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