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A criminalização dos movimentos sociais

NILDO VIANA*

Resumo
O presente artigo analisa o processo de criminalização dos movimentos sociais,
suas determinações e consequências. Para tanto apresenta alguns conceitos
importantes para o desenvolvimento da análise e esclarece o significado do
conceito de criminalização, bem como suas formas de manifestação. A
explicação da criminalização ocorre através de sua relação com a repressão
estatal. A criminalização é entendida como uma forma de legitimação da
repressão estatal, mas que é insuficiente e por isso é abordado também o
processo complementar de deslegitimação e incriminação dos movimentos
sociais.
Palavras-chave: Repressão; Crime; Ação coletiva; Deslegitimação;
Incriminação.
Abstract
This article analyzes the process of criminalization of social movements, their
determinations and consequences. In order to do so, it presents some important
concepts for the development of the analysis and clarifies the meaning of the
concept of criminalization, as well as its forms of manifestation. The
explanation of the criminalization occurs through its relation with the state
repression. Criminalization is understood as a form of legitimation of state
repression, but it is insufficient and therefore the complementary process of
delegitimation and incrimination of social movements is also addressed.
Key words: Repression; Crime; Collective action; Delegitimation; Injury.

*
NILDO VIANA é professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da UFG/Universidade Federal de Goiás, Doutor em Sociologia/UnB.

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Um tema recorrente nos meios ou seja, deixar claro quem é
militantes e alguns setores dos meios criminalizado. Existem inúmeras
intelectuais é a questão da definições de movimentos sociais e por
criminalização dos movimentos sociais. isso não pretendemos realizar tal
Apesar da recorrência, há pouca discussão aqui (GOSS e PRUDÊNCIO,
reflexão teórica sobre esta questão. O 2004; VIANA, 2016a). Para nosso
nosso objetivo no presente texto é objetivo é suficiente esclarecer qual
justamente esboçar uma contribuição conceito vamos utilizar. Os movimentos
teórica para a discussão sobre o sociais são movimentos de grupos
problema da criminalização dos sociais (JENSEN, 2014; VIANA,
movimentos sociais. 2016a) que surgem devido a uma
Uma reflexão teórica sobre a insatisfação social gerada a partir de
criminalização dos movimentos sociais uma situação social que, por sua vez,
requer esclarecimentos conceituais geram senso de pertencimento,
(movimentos sociais, criminalização e mobilização e objetivos (VIANA,
conceitos correlatos e derivados), 2016a). Assim, as bases sociais dos
explicação da razão e forma de movimentos sociais são grupos sociais
criminalização, bem como elementos (negros, mulheres, estudantes, etc.) e
derivados desse processo analítico. Isso suas reinvindicações são direcionadas
significa que a questão é bem mais para tais grupos. Isso mostra que
complexa do que aparece à primeira movimentos sociais são distintos de
vista. O nosso objetivo aqui é movimentos de classes sociais, pois
justamente realizar esse processo de estas possuem outra dinâmica e
forma introdutória. reivindicações, pois são constituídas na
divisão social do trabalho e isso gera
A reflexão sobre este tema aponta para interesses e formas de luta distintas, tal
explicitar o que são movimentos sociais, como a distribuição de renda, aumento

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salarial, alteração das condições de É por isso que temos que dividir o
trabalho, transformação das relações de movimento social como um todo e suas
produção, etc. (VIANA, 2016a, ramificações (organizações,
VIANA, 2016b, JENSEN, 2014). Da representações e ideologias, tendências,
mesma forma, os movimentos sociais etc.). Um movimento social é o
são distintos de outros fenômenos conjunto dos indivíduos e ações dos
sociais, incluindo manifestações, seus integrantes, tal como o movimento
protestos, etc. (COSTA, 2016), pois negro, feminino, estudantil, entre
protestos e manifestações, por exemplo, outros. As ramificações são partes dele,
podem ser realizadas por classes sociais, tal como organizações, concepções,
categorias profissionais ou pela tendências, etc. Assim, o movimento
multidão (uma parte da população estudantil (universitário, mais
reunindo diversas classes, grupos, etc.). especificamente) gera um conjunto de
Protestos e manifestações são ações e organizações, oficiais e extraoficiais
não movimentos, sendo que os (VIANA, 2016c), como a UNE (União
movimentos sociais podem realizar tais Nacional dos Estudantes), DCEs
atos, mas não podem ser reduzidos a (Diretórios Centrais de Estudantes),
eles. O conjunto de fenômenos que CAs (Centros Acadêmicos), associação
poderiam ser considerados movimentos de casa de estudante, organizações
sociais podem ser ilustrados pelo específicas, etc. A UNE é parte do
movimento estudantil, movimento movimento estudantil, uma ramificação
negro, movimento feminino, do mesmo. A UNE não é “o”
movimento ecológico, entre outros. movimento estudantil, nem é um
movimento social, é uma ramificação de
um movimento específico que é o
O movimento social só existe quando estudantil. Isso vale também para as
parte do grupo social de base do mesmo diversas ideias e concepções existentes
(negros, mulheres, estudantes, no interior do mesmo, bem como suas
ecologistas, etc.) entram em fusão, ou tendências internas. O movimento negro
seja, quando se unem e realizam gera uma diversidade de organizações:
mobilizações. Isso significa dizer que a UNEGRO, MNU (Movimento Negro
existência do grupo social não é a Unificado), MNS (Movimento Negro
mesma coisa que um movimento social. Socialista), etc. O mesmo vale para as
O grupo social pode existir, mas só distintas tendências (orientações
quando parte dos seus integrantes políticas) que podem surgir no mesmo,
entram em fusão, ou seja, se unem com bem como ideologias, representações,
determinado objetivo, é que surge um doutrinas, etc. Assim, setores do
movimento social. As mulheres, por movimento negro o articulam com o
exemplo, sempre existiram como um socialismo, o que significa que suas
grupo social, mas o movimento reinvindicações não são apenas as
feminino só vai surgir em determinadas específicas do grupo, mas também a
condições históricas e sociais. É essa transformação social. Essa concepção
parte do grupo que entra em fusão é que desses setores é uma ramificação do
constitui um movimento social e não a movimento negro e não ele como um
totalidade dos indivíduos integrantes do todo, que convive com outras
grupo (muitos podem, inclusive, ser concepções.
contra o movimento social derivado do Esclarecido o que entendemos por
grupo). movimentos sociais, falta esclarecer o

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que é “criminalização”1. De forma mais contrários à “consciência coletiva”, para
simples, criminalizar é o ato de tornar utilizar expressão durkheimiana, podem
criminosa determinada ação. No ser, em determinado momento histórico,
entanto, o que é um “crime”? Não considerados “crimes”, mas em outro
apontaremos as várias definições de não, pois pode ser visto apenas como
crime, mas vamos partir de uma delas “imoral”, por exemplo. Em síntese, o
para poder esclarecer o que entendemos crime é um ato que contraria a
por crime. Segundo Durkheim (1995), o legislação existente e é esta que define o
crime é um ato que ofende os estados que é ou não um crime, bem como ela
fortes e definidos da “consciência condensa os interesses da classe
coletiva”2. Essa definição é interessante, dominante, tal como o direito à
mas inexata. Um crime é um ato contra propriedade4.
a legislação instituída. Essa legislação Por conseguinte, a criminalização dos
pode expressar a “consciência coletiva” movimentos sociais significa tornar
em uma determinada sociedade, mas crime determinadas ações realizadas por
isso não ocorre sempre, pois a eles. Os exemplos de ações de
constituição das leis é um processo movimentos sociais que podem ser
derivado da luta de classes e outras lutas consideradas crimes são vários:
sociais, com o predomínio dos ocupações (de prédios públicos, terras
interesses da classe dominante3. Os atos
privadas, etc.), atos de depredação,
1
bloqueio de vias públicas, atos de
A questão da criminalização é geralmente
violência contra os policiais, etc.
abordada juntamente com a questão da
repressão (BRAGA, 2013; BRAGA, 2016; Uma vez que esclarecemos os conceitos
MARTINS, 1989; BUHL e KOROL, 2008) e e os fenômenos que estamos analisando,
mais adiante estaremos abordando a relação
entre esses dois fenômenos. podemos passar para a parte explicativa
2
Durkheim, posteriormente, abandonaria a do processo de criminalização. A
expressão “consciência coletiva” e passaria a criminalização dos movimentos sociais
utilizar “representações coletivas” não ocorre aleatoriamente ou ao acaso.
(DURKHEIM, 1996), mas o conteúdo da Há uma razão para se criminalizar os
definição é o mesmo.
3
Marx apresenta uma concepção crítica sobre o movimentos sociais. Mas, antes disso, é
crime e seu envolvimento com as classes sociais
e com a totalidade da sociedade capitalista: “Um possibilitou as mais engenhosas invenções
filósofo produz ideias, um poeta versos, um mecânicas e ocupa uma multidão de honestos
pastor sermões, um professor manuais etc. Um trabalhadores na produção desses instrumentos.
criminoso produz crimes. Se considerarmos um O criminoso produz uma impressão, que pode
pouco mais de perto a relação que existe entre ser moral ou trágica; desta forma ele auxilia o
este ramo da produção e o conjunto da movimento dos sentimentos morais e estéticos
sociedade, revelaremos muitos preconceitos. O do público. Além dos manuais de Direito Penal,
criminoso não produz apenas crimes, mas ainda do Código Penal e dos legisladores, ele produz
o Direito Penal, o professor que dá cursos sobre arte, literatura, romances e mesmo tragédias. O
Direito Penal e até o inevitável manual onde criminoso traz uma diversão à monotonia da
esse professor condensa o seu ensinamento vida burguesa; defende-a do marasmo e faz
sobre a verdade. Há, pois, aumento da riqueza nascer essa tensão inquieta, essa mobilidade do
nacional, sem levarmos em conta o prazer do espírito sem a qual o estímulo da concorrência
autor. O criminoso produz ainda a organização acabaria por embotar. O criminoso dá, pois,
da polícia e da Justiça penal, os agentes, juízes, novo impulso às forças produtivas…” (apud.
carrascos, jurados, diversas profissões que LEFEBVRE, 1979, p. 68-69).
4
constituem outras categorias da divisão social A criminologia crítica vai apresentar a tese da
do trabalho, desenvolvendo as faculdades de emergência do crime e sua relação com as
espírito, criando novas necessidades e novas “sociedades proprietárias” (TAYLOR;
maneiras de satisfazê-las. Somente a tortura WALTON; YOUNG, 1980).

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preciso esclarecer que existem duas movimento operário)6. Esse é o caso,
formas de criminalizar os movimentos por exemplo, da proibição de
sociais. A primeira forma é a manifestações sem “aviso prévio às
criminalização derivada. A autoridades” ou então, como no caso de
criminalização derivada é o que ocorre uma lei estadual no Rio de Janeiro, que
quando uma ramificação de um proíbe o uso de máscaras. Segundo a
movimento social (organização, por Lei Estadual 6.538/2013, do Estado do
exemplo) realiza um ato que é Rio de Janeiro, temos o seguinte:
considerado crime por ser contrário a Art. 3º O direito constitucional à
alguma expressão das relações sociais reunião pública para manifestação
dessa sociedade que foi cristalizada na de pensamento será exercido:
lei e que possui uma não-relação direta
I - pacificamente;
com as lutas sociais. A legislação, por
exemplo, garante o direito de II - sem o porte ou uso de
propriedade e já fazia isso antes de quaisquer armas;
existirem movimentos sociais5. Por isso III - em locais abertos;
é uma criminalização derivada da
IV - sem o uso de máscaras nem de
legislação anteriormente existente.
quaisquer peças que cubram o rosto
A segunda forma de criminalização dos do cidadão ou dificultem sua
movimentos sociais é a direcionada. A identificação;
criminalização direcionada é aquela V - mediante prévio aviso à
voltada especificamente para autoridade policial.
criminalizar os movimentos sociais (e o
§ 1º – Incluem-se entre as armas
mencionadas no inciso II do caput
5 as de fogo, brancas, pedras,
A partir do conceito de movimentos sociais
que utilizamos, ao contrário de outros autores
bastões, tacos e similares.
que usam um termo muito mais amplo § 2º - Para os fins do inciso V do
(McCARTHY e ZALD, FRANK e FUENTES, caput, a comunicação deverá ser
1989), e dos fenômenos que abarcamos ao feita à delegacia em cuja
utilizá-lo, os movimentos sociais somente
circunscrição se realize ou, pelo
surgem na sociedade capitalista (VIANA,
2016a). Essa compreensão é também defendida
menos, inicie a reunião pública
pela abordagem neoinstitucionalista (também para manifestação de pensamento.
conhecida como “teoria do processo político”, §3º – A vedação de que trata o
entre outras denominações) dos movimentos inciso IV do caput deste artigo não
sociais (TARROW, 2009), mas tendo outros
se aplica às manifestações culturais
pressupostos. É somente quando emerge uma
sociedade civil organizada e há o
estabelecidas no calendário oficial
desenvolvimento de meios de comunicação e do Estado.
transporte, que se torna possível a “fusão” de §4º – Para os fins do Inciso V do
parte do grupo social que faz emergir os caput deste artigo a comunicação
movimentos sociais, o que não era possível em
deverá ser feita ao batalhão em cuja
sociedades pré-capitalistas, pois se já existiam
situações sociais que geravam insatisfações, não
6
existia condições para gerar o senso de O movimento operário é mais visado no
pertencimento, o estabelecimento de objetivos e processo de criminalização, pois suas lutas,
mobilização (VIANA, 2016a). Alguns grupos interesses, etc., entram em confronto direto com
sociais, por sua vez, somente emergem no a classe capitalista e o aparato estatal. No
capitalismo (estudantes, ecologistas, pacifistas, entanto, não focalizamos o movimento operário
etc.), o que, obviamente, que o movimento por ser um movimento de classe e não um
social derivado também só pode surgir nessa movimento social, tal como distinguimos
sociedade. anteriormente.

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circunscrição se realize ou, pelo 1. As reuniões e manifestações não
menos, inicie a reunião pública poderão prolongar-se para além da
para a manifestação de meia-noite, salvo se realizadas em
pensamento; recintos fechados, em salas de
espetáculos em edifícios sem
§5º – Considera-se comunicada a moradores ou, em caso de terem
autoridade policial quando a moradores, se forem estes os
convocação para a manifestação de promotores ou tiverem dado o seu
pensamento ocorrer através da assentimento por escrito.
internet e com antecedência igual
ou superior a quarenta e oito horas. 2. Os cortejos e os desfiles não
poderão ter lugar antes das 19.00
Portanto, se uma ação coletiva não horas nos dias úteis e antes das
cumpre com as exigências acima, ela 13.00 horas aos sábados, salvo em
será enquadrada como crime. Se situações devidamente
aparecerem manifestantes usando fundamentadas e autorizadas7.
máscaras, isso será crime. Podemos ver Aqui temos limites impostos pela
também, no Diário da República de legislação no que se refere a horários,
Angola I Série nº 20 de 11 de Maio de localização, etc. Outro exemplo é a Lei
1991, a lei sobre o direito de reunião e Antiterrorismo, aprovada em fevereiro
das manifestações, o seguinte: de 2016 durante o governo Dilma
ARTIGO 4.° Rousseff, que foi questionada até pela
ONU8. A definição de “atos de
(Limitações ao exercício do direito) terrorismo” é a seguinte:
1. O exercício do direito à reunião “Sabotar o funcionamento ou
e manifestação não afasta a apoderar-se, com violência, grave
responsabilidade pela ofensa à ameaça a pessoa ou servindo-se de
honra e consideração devidas às mecanismos cibernéticos, do
pessoas e aos órgãos de soberania. controle total ou parcial, ainda que
de modo temporário, de meio de
2. Não é permitida a realização de comunicação ou de transporte, de
reuniões ou manifestações com portos, aeroportos, estações
ocupação não autorizada de locais ferroviárias ou rodoviárias,
abertos ao público ou particulares. hospitais, casas de saúde, escolas,
3. Por razões de segurança, as estádios esportivos, instalações
autoridades competentes poderão públicas ou locais onde funcionem
impedir a realização de reuniões ou serviços públicos essenciais,
manifestações em lugares públicos instalações de geração ou
situados a menos de 100 metros das transmissão de energia, instalações
sedes dos órgãos de soberania, dos militares, instalações de exploração,
acampamentos e instalações das refino e processamento de petróleo
forças militares e militarizadas, dos
estabelecimentos prisionais, das
representações diplomáticas ou
consulares e das sedes dos partidos 7
Disponível em:
políticos. https://centralangola7311.files.wordpress.com/2
011/04/lei-de-reunic3a3o-e-
Outro artigo coloca o seguinte: manifestac3a7c3a3o.pdf
8
Veja:
ARTIGO 5.° http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/02/17
43863-onu-critica-aprovacao-do-projeto-da-lei-
(Limitações em função do tempo)
antiterrorismo-pelo-congresso.shtml

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e gás e instituições bancárias e sua O aparato estatal visa reproduzir as
rede de atendimento”9. relações de produção capitalistas, o que
Esta lei apresentaria uma definição de significa garantir a expressão jurídica
terrorismo que, segundo seus críticos, dessas relações, ou seja, a propriedade
seria ampla e poderia ser utilizada privada10. Para garantir esse processo, o
contra os movimentos sociais: aparato estatal usa vários recursos e um
dos principais é a legitimação através de
O ato terrorista ficará sujeito a livre ideologias, valores, etc. Quando o
interpretação. Poderá ou não ser,
processo de legitimação falha,
dependerá de quem analisará o
acontecimento e também da geralmente em épocas de crise de
repercussão nos meios de legitimidade, ou então quando as crises
comunicação. Pretendem criar um no/do capitalismo11 geram grandes
fato típico extremamente elástico, lutas, lhe resta outro recurso: a
adaptável a inúmeras situações que repressão.
talvez nada terão a ver com o
No entanto, a repressão não é utilizada
verdadeiro terrorismo. Uma
encomenda sob medida para um apenas nesse momento. Ela é usada
regime qualquer enquadrar os seus cotidianamente. Sem dúvida, o aparato
adversários como terroristas repressivo combate à criminalidade,
(REBOLLA, 2017). mas também os elementos
“subversivos”, ou seja, aqueles que são
Esses seriam casos de criminalização
revolucionários. A criminalidade é
direcionada. A criminalização
constituída pelo conjunto de atos
direcionada pode ocorrer através da
criminosos, o que significa que atentam
auto declaração – como no caso da lei
contra as leis vigentes, enquanto que os
estadual do Rio de Janeiro – ou da
atos revolucionários são considerados
camuflagem – tal como no caso da lei
“políticos”, já que seu objetivo é
de antiterrorismo.
Assim, essas duas formas de 10
Marx apontou para o caráter de todo estado
criminalização (derivada e direcionada) ser uma “associação da classe dominante”
são aspectos importantes para entender (MARX e ENGELS, 1983) para fazer valer os
uma das formas de relação entre Estado seus interesses de classe e o caráter do Estado
e movimentos sociais. O Estado se capitalista, “comitê para gerir os interesses da
burguesia” (MARX e ENGELS, 1988). Uma
relaciona com os movimentos sociais das formas utilizadas pelo aparato estatal para
através de um conjunto complexo de garantir os interesses da classe dominante é o
relações e tanto através da iniciativa aparato jurídico. O objetivo fundamental do
estatal quanto da iniciativa civil aparato estatal na sociedade moderna é garantir
(VIANA, 2016a). A iniciativa estatal a reprodução das relações de produção
capitalistas, ou seja, o processo de produção e
ocorre através da cooptação, apropriação de mais-valor pela classe
burocratização, repressão, omissão capitalista, gerando a acumulação de capital. No
(VIANA, 2016a). Não poderemos tratar plano jurídico isso aparece como preservação da
da dinâmica relacional entre aparato “propriedade privada”, que segundo Marx
estatal e movimentos sociais, mas tão (1989) é uma expressão jurídica dessas relações
de produção, o que significa dizer que é a forma
somente os elementos dessa relação que ideológica na qual o direito traduz tais relações.
nos ajudam a explicar a criminalização. 11
Crises no capitalismo são recorrentes e
assumem várias formas, como crises
financeiras, políticas, etc. Crise do capitalismo é
9
Disponível em: quando o processo de reprodução dessa
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- sociedade está ameaçado, o que ocorre em
2018/2016/lei/l13260.htm época de revoluções sociais (VIANA, 2014).

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transformar a sociedade. Assim, por campesinato e lumpemproletariado)13.
exemplo, se um criminoso rouba um Ela também atinge protestos e
indivíduo, ele está infringido a lei por manifestações (que podem ser geradas
interesse próprio e que torna o objeto do por classes sociais, partidos políticos,
roubo sua propriedade, reproduzindo as movimento social, multidão ou diversos
relações sociais existentes, mas se um responsáveis por sua realização)14. No
revolucionário distribui panfletos, ele entanto, a repressão é uma faca de dois
não infringe nenhuma lei (a não ser que gumes, pois, sendo considerada injusta,
seja criada, o que é um processo de violenta (considerada “brutal” ou
criminalização). O processo de “truculenta”), ou seja, se não for
repressão também atinge os legítima, poderá gerar o efeito contrário
contestadores e setores das classes ao desejado (TARROW, 2009). A
trabalhadoras que reivindicam e repressão precisa ser legítima, pois caso
realizam ações que saem do mero contrário poderá gerar indignação e
discurso. É possível, de acordo com o apoio popular daqueles que foram
aparato jurídico burguês, fazer discurso reprimidos.
revolucionário, mas não é possível Assim, a repressão traz a necessidade de
realizar ações revolucionárias12. Da legitimação. É preciso que as ações
mesma forma, ações coletivas que repressivas sejam consideradas
entram em confronto com os interesses
legítimas para não provocar um efeito
do aparato estatal e do capital são colateral contrário ao objetivo de
passíveis de repressão. Se uma reproduzir os interesses da classe
ramificação de um movimento de luta capitalista. A criminalização é uma
por moradia ocupa uma propriedade forma de legitimação. Ela é uma
privada ou estatal, a lei será acionada
legitimação parcial necessária. No
para realizar a “reintegração de posse”. entanto, ela é insuficiente. Uma lei que
Nesse momento, o aparato repressivo proíbe manifestações de rua pode não
será utilizado para garantir a ser considera legítima pela maioria da
reintegração de posse, caso isso não seja população, por exemplo. Logo, a
feito voluntariamente pelos ativistas a repressão em relação a uma
partir da decisão judicial e do temor da manifestação de rua é possível devido à
repressão. criminalização, mas esta nem sempre
A repressão estatal atinge consegue legitimar essa ação policial.
principalmente os movimentos sociais A criminalização deve, por isso, ser
populares e o movimento estudantil, complementada com a deslegitimação
bem como os movimentos de classes da ação coletiva que está sendo
(principalmente do proletariado, reprimida e a sua incriminação. A
deslegitimação significa transformar
determinada ação em ilegítima. Essa
12
O discurso revolucionário existe, mas é deslegitimação pode ocorrer em relação
marginalizado, sufocado, etc. No entanto, ele
não é abertamente proibido. Essa
13
marginalização e sufocamento é sutil, passando Algumas reflexões sobre isso foram
pelo domínio do capital da produção cultural, desenvolvidas por alguns autores (MARTINS,
desde o capital comunicacional (“indústria 2000; VIANA, 2016d; BRAGA, 2016).
14
cultural”) ao controle burocrático das É esse processo repressivo específico que faz
instituições de ensino, até chegar aos processos com que Della Porta aborde especificamente a
de censura velada que existe no conjunto da repressão policial aos protestos (DELLA
sociedade. PORTA, 1999).

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às suas reivindicações, sua forma de privadas. Procede-se à reintegração
ação, seus ativistas, etc. A de posse, com forte aparato policial,
deslegitimação dos ativistas pode e as manifestações de trabalhadores
ocorrer através da classificação são punidas violentamente, com
negativa15. Esse foi o caso das poder de polícia. Por outro lado, são
tidas como manifestações violentas:
manifestações de junho de 2013,
greves, ocupações de terras para
quando a Rede Globo dividiu os plantar, para morar, passeatas ou
manifestantes entre “pacíficos” e demonstrações públicas. Afirma-se
“vândalos”. A classificação de uma que este tipo de manifestação, são
parte dos manifestantes como violações cometidas pelos inimigos
“pacíficos” é positiva e a dos demais da sociedade, como se os
como “vândalos” é negativa. Esse ocupantes, grevistas e outras
processo classificatório acima também manifestantes não integrassem a
ajuda a entender a classificação negativa sociedade. Na realidade, com estes
das formas de ação: uma é pacífica discursos, impede-se que estas
(positiva) e outra é depredação e manifestações sejam entendidas
com as que mostram os problemas
destruição de bens públicos, ou seja,
reais e cotidianos da maioria
vandalismo (negativa). A sociedade (RODRIGUES, 2016, p.
deslegitimação em relação às 189-190).
reivindicações é realizada através da
contraposição com a lei, moral, valores A incriminação é outro complemento
dominantes, interesses de outros, etc. necessário. A criminalização, tal como
Assim, quando há ocupação de terra, a foi aqui definida, significa produção de
deslegitimação aponta para sua leis que tornam crime determinadas
ilegitimidade diante da lei, do valor da ações, como no exemplo da proibição
propriedade individual, dos interesses de uso de máscaras em manifestações
dos proprietários (legais e legítimos), no Rio de Janeiro. A deslegitimação dos
etc. O caráter de classe de grande parte mascarados é realizada através do
desse processo de deslegitimação é bem questionamento dos seus motivos para
visível: usar máscara (tem algo a esconder?) e
apontar para um processo de
Considera-se que remover desconfiança em relação a tais pessoas e
moradores, que ocuparam áreas sua classificação como “vândalos” (ou
para moradia ocupadas, para
subversivos), pois o uso de máscara
periferias sem infraestrutura fará
avançar o progresso com seria para não poder serem punidos
desenvolvimento econômico. O pelos crimes que cometeriam. A
argumento é que ocupam incriminação significa imputar a alguém
indevidamente propriedades uma ação criminosa. A incriminação
busca convencer a população de que se
trata legitimamente de um crime. Ela
15
Falcone (2011, p. 19) trabalha com uma possui, portanto, dois elementos: um
concepção que tem algumas semelhanças com a
nossa, usando o termo “categorização”:
seria afirmar que é crime e o outro é a
“Relacionar o estudo da prática jornalística com busca de convencer que a lei que
a noção de categorização mostra-se relevante qualifica determinado ato como
quando entendemos que o jornalismo atua criminoso é legítima. A incriminação é
discursivamente no processo de categorização realizada através de um discurso
de atores e grupos sociais. E isso se dá na
construção de modelos cognitivos dominantes, a
legitimador da legislação e da infração
partir do forte controle dos grupos sociais que da lei por parte dos responsáveis pela
têm acesso ao discurso da imprensa”. ação acusada de ser crime.

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A criminalização é um processo real no “corrente de opinião favorável ao
qual a produção de uma lei torna poder”. Acrescenta que:
determinadas ações criminosas e a
incriminação é um processo intelectual A verdade é que o jornal Clarín
deliberadamente ocultou a
de afirmar que se trata legitimamente de
responsabilidade da repressão
um crime (pois desrespeita a lei e está é policial pelas mortes dos dois
apresentada como legítima) e que os piqueteiros e insinuou, durante
ativistas são culpados/criminosos. A todos os discursos veiculados
incriminação é um reforço intelectual naquela edição, que o movimento
(através de valores, concepções, piqueteiro especialmente os setores
sentimentos) da percepção de que um apresentados como duros, mais
crime deve ser condenado ou que certas radicalizados, violentos e
ações são criminosas. Como a lei não é antidemocráticos, eram os
produzida pela população, então uma responsáveis pela escalada de
vez que ela exista e criminalize violência. A forma como o Clarín
realizou esse processo de
determinadas ações, então cria-se a
criminalização contou com a
necessidade de incriminação, que é uma estratégia discursiva de
busca de legitimação da legislação e implicitamente afastar a
deslegitimação dos infratores da lei. responsabilidade pelas mortes do
aparato policial, alegando ser a
A criminalização é uma ação estatal, crise a responsável pelas mesmas,
mas a deslegitimação e incriminação deixando “livre” para intepretações
(não se sabe ainda quem disparou;
são produzidas tanto pelo aparato estatal
só se sabe que os dois jovens
quanto pelo capital comunicacional morreram por impactos de bala), e,
(meios oligopolistas de comunicação), ao mesmo tempo, fornecendo
instituições, intelectuais, etc. O explicitamente elementos que
processo de deslegitimação e induzam a uma interpretação
incriminação é produzido no âmbito extremamente parcial de que foram
estatal e também da sociedade civil. os próprios piqueteiros, que por isso
Esse processo visa constituir uma eram constantemente apresentados
corrente de opinião favorável ao como violentos e antidemocráticos,
processo de criminalização, o que a Aníbal Verón – o setor dos
impediria o efeito colateral negativo da piqueteiros duros, setor piqueteiro
mais radicalizado, caóticos,
indignação da população e possíveis
vândalos, delinquentes, agressores,
reações coletivas. armados e dispostos ao
enfrentamento (e outras inúmeras
Esse processo expressa a realidade caracterizações negativas,
cotidiana da relação entre aparato estatal apresentadas sistematicamente pelo
e formas de resistência e luta dos capital comunicacional), e que de
trabalhadores e movimentos sociais. forma deliberada tais setores
buscavam a morte de alguns
Lisandro Braga, ao analisar o chamado
piqueteiros para poder tirar proveito
“Massacre de Avellaneda”, em 2002 na político dessa situação.
Argentina, expressa como esse processo
de deslegitimação e incriminação ocorre O autor mostra como que no caso
num caso concreto. Segundo Braga, o concreto do jornal Clarín se utilizou o
conjunto discursivo das matérias do processo de deslegitimação (a
jornal Clarín apontava para ocultar a classificação negativa da ala radical do
realidade do massacre e produzir uma movimento piqueteiro como “duros”,

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“vândalos”, “delinquentes”, etc. e a de (Orgs.). Movimientos Sociales: Perspectivas
suas formas de ação e interesses), bem Comparadas. Madrid: Ediciones Istmo, 1999.
como buscou incriminar os piqueteiros. DURKHEIM, Emile. As Formas Elementares
O processo de atribuição de caráter da Vida Religiosa. São Paulo, Martins Fontes,
violento aos piqueteiros é uma forma de 1996.
classificação e de incriminação, pois DURKHEIM, Emile. Da Divisão do Trabalho
não só classifica negativamente os Social. São Paulo, Martins Fontes, 1995.
militantes, como também os tornam FALCONE, Karina. A Legitimação e o
criminosos pela linguagem utilizada, o Processo de Categorização Social. Veredas.
que significa um processo de Vol. 15, num. 1, 2011.
incriminação. Assim, criminalização, FRANK, André Gunder; FUENTES, Marta
deslegitimação, incriminação andam “Dez teses acerca dos movimentos sociais”. Lua
Nova, 17, junho 1989, São Paulo, Cedec, 1989.
juntas e os casos concretos confirmam
sua inseparabilidade. GOSS, Karine P. e PRUDÊNCIO, Kelly. O
conceito de movimentos sociais revisitado. Em
O nosso objetivo foi apresentar uma Tese. Vol. 2, nº 1 (2), janeiro-julho 2004, p. 75-
reflexão sobre a questão da 91. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/artic
criminalização dos movimentos sociais.
le/view/13624/12489. Acessado em:
A questão da criminalização remete, 06/06/2017.
necessariamente, ao problema da
JENSEN, Karl. Teses sobre os Movimentos
repressão e das formas de justificação Sociais. Revista Marxismo e Autogestão. Vol.
de ambas, o que explica sua razão de ser 01, num. 01, jan./jun. de 2014.
e suas formas e elementos derivados.
LEFEBVRE, Henri. A Sociologia de Karl Marx.
Esse processo analítico aponta para Rio de Janeiro: Forense, 1979.
novas questões que precisam ser
MARTINS, José de Sousa. As mudanças nas
desenvolvidas e aprofundadas a partir
relações entre a sociedade e o Estado e a
de novas reflexões e pesquisas. tendência à anomia nos movimentos sociais e
nas organizações populares. Estudos avançados.
Vol. 14, num. 38, 2000.
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3, n. 3, 2013b. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto
do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.
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Jornalístico no Massacre de Avellaneda. MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª edição,
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2016. McCARTHY, J. e ZALD. M. Mobilização de
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Recebido em 2017-10-29
Publicado em 2018-03-10

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