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“O BRASIL NÃO É PARA PRINCIPIANTES”: MAS O BRASIL É.

Sílvio Munari1

Muita gente se animou com as ocupações de secundaristas que tomaram as


escolas de São Paulo no já longínquo 2015.
A Esquerda, em particular essa com “e” maiúsculo, pareceu animada porque as
ocupações colocavam o governo do PSDB em uma sinuca de bico. Ou seja, sindicatos,
partidos e agremiações tentaram colocar-se nessa luta como fazem há tempos. O termo
aparelhamento, por exemplo, continua plenamente atual (cronológica e conceitualmente).
A única escola ocupada que visitamos, no interior do estado de São Paulo, estava cercada
por estes grupos: barracas, bandeiras, panfletos, megafones e todo o kit costumeiro do
aparelhamento.
Mas todo este aparato não tinha nada a ver com o que acontecia (como fato e
como conceito) dentro da escola. A escola era, agora, uma casa. Uma grande casa ocupada
contra a Casa Grande. Mais: ali os adultos eram figurantes, e uma potência em estado
bruto circulava. O que aqueles corpos faziam como política dentro daquela ocupação não
passava sequer por nosso vocabulário e, das muitas tentativas de prosa que tentamos
empreender, apenas uma vingou: o menino disse que “tava suave” dormindo na escola; e
que tinha escolhido dormir “na frente da sala da diretora”; e, já que ele era mandado para
a sala da diretora todos os dias, nada mais justo que “dormir lá de noite também”.
Naquela única vez, e naquela única ocupação, não havia uma língua pressuposta
para nos comunicarmos. E mais importante: os tantos livros, artigos, palestras que trazem
à tona a importância de “dar voz aos estudantes”, de tê-los como “protagonistas no
processo de aprendizagem” (e outros clichês que podem ser encontrados com facilidade),
enfim, tudo isso pode ser substituído por uma expressão da moçada: “zeramos a escola”.
Sem conscientização, sem convencimento, sem politização. Voluntarismo e
involuntarismo? Penso que não serve. Realizaram o sonho da esquerda educacional. Sem
ela.
O que nos pareceu mais interessante nisso tudo é que essa moçada, assim como
aquela moçada dos rolezinhos, colocou em xeque isso a que chamam, na esquerda, de
“politizar”. Corpos juntos para fazer algo em espaços que não foram construídos para este

1Pedagogo. Trabalha na intersecção entre educação, cultura e assistência social, atuando junto com
organizações não-governamentais, movimentos sociais e prefeituras municipais. Integra a Rede
Universidade Nômade.
fazer. Esse deslocamento fez com que não apenas os poderes constituídos reagissem e
procurassem articular inúmeras frentes para se reapropriar dos espaços. A Esquerda
também tentou. E, uma vez mais, caducou, assim como já havia caducado em 2013.
Por isso é que as ocupações de escolas e os rolezinhos nos shoppings permitem
que a gente faça uma leitura às avessas do que acontece por aqui. Ao invés de retomar o
velho “o Brasil não é para principiantes”, essa moçada nos ajuda a fazer uma outra cois a:
afirmar que “o brasil é para principiantes”.
A frase clássica, dita e repetida à exaustão, tenta nos alertar sobre os perigos de
fazer política por aqui. Mas qual seria este Brasil que “não é para principiantes”? O Brasil
Maior2 . A moçada das ocupações e dos “rolezinhos” nos abre caminho para pensar que
há vários outros brasis e que esses brasis menores são, sim, para principiantes. Não há
ingenuidade aqui, mas inocência. E “devemos retornar ao início, devemos retornar à
inocência”, essa “estranheza radical” (BERARDI, 1997, p. 25).
O mais difícil aqui talvez seja abandonar as coordenadas velhas que nos orientam
nesse Brasil Maior. Esse Brasil da Unificação. Que permitiu a regulação eterna da política
instituída pela fusão entre empreiteiras e partidos políticos. Que permitiu que um governo
que representava alguns segmentos de esquerda fosse considerado um governo de
esquerda. Enfim, abandonar esses mapas que permitem que a esquerda leia as novidades
apenas a partir das representações e das velhas coordenadas.
Orientando-se por estas representações e clichês, essa Esquerda do Brasil Maior
criminalizou Junho de 2013; não compreendeu os “rolezinhos” como um modo outro de
estar na vida, outro modo de vida e de política da vida; apoiou as ocupações dos
secundaristas apenas porque eram contra o governo do PSDB; e, repetição sem diferença,
fez com que ela visse nos protestos de matiz verde e amarela tão somente uma invasão
das ruas por fascistas desavergonhados. Lendo a potência somente do ponto de vista do
poder, como se este fizesse concessões àquela, foi incapaz de cartografar o que havia de
potente em cada um desses movimentos.
Seria possível criar outros possíveis?
O pedagogo francês Fernand Deligny (1913-1996) criou um modo
completamente único de lidar com as crianças autistas. Se as crianças não falam, por que

2A inspiração aqui é o artigo do profes sor Giuseppe Cocco “Não existe amor no Brasil Maior”, publicado
no Le Monde Diplomatique – Brasil, em 01 de Junho de 2013, que faz uma vidência do que expressaria o
Junho de 2013 – vidência, aqui, no sentido deleuziano de apreensão do intolerável. Disponível em:
http://diplomatique.org.br/nao-existe-amor-no-brasil-maior/. Acesso em: 31/03/2017.
vamos falar sobre elas? Não falaram. Deligny e “sua equipe” (as pessoas próximas que
não eram técnicas em autismo, mas simplesmente pessoas que se aproximavam e vivia m
junto a esse bando) passaram a fazer mapas para conseguir ver aquilo que, estando lá, não
podia ser visto.
Para nós, seria prático apreender, tão somente, as informações mínimas sobre
isso que Deligny e seus bandos faziam3 .
Os mapas buscavam dar conta de transcrever aquilo que estava colocado, de
forma precisa, no dia a dia da rede em que os bandos circulavam. Transcreviam as linhas
costumeiras. Mas havia também os traçados, em papel vegetal, das linhas das crianças.
Estranhas aos adultos, estas eram as linhas de erro, linhas erráticas, linhas de errância. E
havia, por fim, os pontos de emaranhamento, em que as linhas se encontravam e onde
diferenças se produziam. Mapas e linhas de errância iam sendo sobrepostos e podia-se
ver o que antes não era percebido.
Como age a Esquerda Brasil Maior? Desengaveta seus mapas, suas
representações, e tenta encontrar lá as semelhanças. Tem carro de som? Tem bandeira do
partido? Tem ícone, santo, mártir? Tem palavras de ordem em defesa de político
apreciado pela esquerda (pouco importa se ele é de esquerda)? Não tem isso? “Coxinha ”.
“Sete a um”. “Fascista”. “Cadê as panelas?”. Multiplicam-se os clichês. Um tipo de
esquerda que se replica a si mesma, como os Agentes Smiths de Matrix4 .
E com que força isso poderia falar com os grupos que fazem a chamada
“formação política” (um fetiche tão grande quanto o “trabalho de base”)! São anos
repetindo a mesma fórmula: reúne-se um grupo de militantes em um lugar afastado –
muitas vezes, não por acaso, conventos – para realizar “análises de conjuntura”, “traçar
as teses”, “encaminhar as tarefas” e “formar a militância”, já que “a revolução não será
televisionada”. E então, quando as ruas são tomadas, esses grupos sequer conseguem
ocupá-las. Limitam-se a condenar aquilo que não reconhecem.
Obviamente, não estamos dizendo aqui que a esquerda precisa aprender a fazer
“rolezinhos” e a fazer ocupações de secundaristas. Para não deixar dúvidas: não se trata
de fazer um curso de formação ensinando a fazer “rolezinho” ou ocupação de
secundaristas. Também não se trata de fazer trabalho de base com potenciais rolezeiros

3 Ver também o modo como Deleuze e Guattari pensam com Deligny em Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1996. Vol. 3. (especificamente página 77)
4 Na primeira parte da trilogia Matrix, os Agentes Smith operam como um grande clichê ambulante.

Olhamos para um e para outro e não há qualquer diferença. Invocá-los como referência aqui torna
necessário pensar porque a esquerda não consegue produzir diferença, mas reproduzir clichês.
ou ocupantes. Pode ser que essas formas jamais se repitam. Significar essas forças em
formas é o que de pior se pode fazer.
Mais do que repetir o rolezinho ou a ocupação, é preciso deixar que as ocupações
deem um rolezinho em nossas categorias, em nossas certezas, em nossas referências. Sem
que esses deslocamentos aconteçam, a Esquerda Maior vai continuar olhando para as ruas
e procurar somente aquilo que ela já conhece. Isso é ingenuidade. Outras forças –
chamem-nas do que quiserem – tem sido capazes de captar as diferenças que são
produzidas pela inocência radical desses brasis menores.
Essa insistência em ser Grande, Hegemônico, Majoritário, tem precipitado uma
outra medida que, vinda das ruas, tende a complicar tudo: “vai ficar pequeno”. Ou, quem
sabe, já ficou.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERARDI, Franco Bifo. Dell’innocenza. 1977: l’anno dela premonizione. Verona:


Ombre corte edizioni, 1997.
COCCO, Giuseppe. Não existe amor no Brasil Maior. In: Le Monde Diplomatique. 01
Jun 2013. Disponível em: http://diplomatique.org.br/nao-existe-amor-no-brasil- maio r/.
Acesso em: 31/03/2017.
DELIGNY, Fernand. Œuvres. Paris: Éditions de l’Arachnéen, 2007.
The Matrix (Matrix), Direção e roteiro: Andy Wachowski e Larry Wachowski, produção
Joel Silver, Warner Bros. EUA, 1999.

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