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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACVLDADE DE DIREITO DO LARGO DE SÃO FRANCISCO

SOFIA MIDLEJ CARDOSO FERREIRA


No. USP: 13638896

Reação escrita acerca do Caso Anfape: julgamento hipotético e análise fundada nos
conceitos, institutos econômicos e interesses em conflito

Reação escrita apresentada como avaliação


parcial da disciplina Propriedade Intelectual e
acesso ao conhecimento (DCO 0220).

SÃO PAULO
2023
1

VOTO

Trata-se de um processo administrativo apresentado, em abril de 2007, à extinta SDE


(Secretaria de Direito Econômico)1, pela ANFAPE (Associação Nacional dos Fabricantes de
Autopeças), contra as montadoras VW (Volkswagen do Brasil Indústria de Veículos Automotores
Ltda), Fiat Automóveis S/A e Ford Motor Company Brasil Ltda, alegando suposta conduta
anticompetitiva. Sustentava a ANFAPE que as montadoras abusavam de seu poder econômico, bem
como da proteção conferida aos desenhos industriais de peças automotivas para dominar o mercado
secundário de autopeças de reposição (aftermarket), prejudicando fabricantes independentes. A SDE
recomendou a abertura de um processo administrativo em junho de 2007.
Por suas vezes, as montadoras argumentaram que a Lei de Propriedade Industrial proíbe
terceiros de produzir, usar, vender ou comercializar um produto ou processo sem a anuência dos
titulares do direito de propriedade intelectual. Elas afirmaram, ainda, que a proteção concedida pelo
registro de desenho industrial teria, supostamente, eficácia erga omnes, ou seja, aplicar-se-ia contra
todos, sem distinções, e não apenas contra agentes de um mesmo mercado competitivo. Em suma, as
montadoras sustentaram agir em conformidade com a Lei e não cometer práticas anticompetitivas.

É o relatório.

1. Dos desenhos industriais na LPI e dos limites de sua aplicação


Considera-se desenho industrial, sob amparo do Artigo 95 da LPI2, a aparência ornamental de um
produto ou objeto que confere exclusividade sobre sua forma plástica tridimensional ou seu conjunto
bidimensional de linhas e cores. Trata-se, pois, de instituto da propriedade industrial cuja tutela recai sobre
o caráter estético do objeto suscetível de emprego industrial e que não incorre nas proibições legais. Com
eficácia erga omnes (isto é, contra todos os que pretenderem violá-la, sem restrições de mercado), a
proteção do desenho industrial é realizada por meio de registro perante o INPI (Instituto Nacional de
Propriedade Intelectual), com prazo de vigência de dez anos, prorrogáveis por no máximo três vezes por
mais cinco anos - ao todo, vinte e cinco anos de proteção.
No que toca à extensão da tutela, o titular do registro tem o direito de impedir que terceiros
produzam, usem, mantenham em depósito, exponham à venda (desse modo, explorando
comercialmente o objeto protegido), importem ou exportem, sem seu consentimento, objetos que
violem o desenho industrial previamente registrado. Sob amparo dos Artigos 42, 109, § único e 188
da LPI, esta prática se configura ilícito civil e penal.

1
A Lei no 12.529/2011 modificou a estrutura administrativa, passando as funções relativas ao direito da
concorrência da SDE para o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).
2
Art. 95. Considera-se desenho industrial a forma plástica ornamental de um objeto ou o conjunto ornamental
de linhas e cores que possa ser aplicado a um produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua
configuração externa e que possa servir de tipo de fabricação industrial.
2

Impõe-se, no entanto, uma restrição importante ao registro dos desenhos industriais: para ser
protegida, a ornamentação deve se referir à configuração externa do objeto, isto é, precisa ser visível.
Peças embutidas e não aparentes, como a mola ou o êmbolo interno de uma pistola, não permitem registro
como desenho industrial, pois não são perceptíveis durante a utilização normal do produto. Em
determinadas circunstâncias, contudo, é possível registrar o desenho industrial de dispositivos internos ou
de partes componentes do produto (leia-se, na presente situação, autopeças de reposição), desde que eles
sejam comercializados autonomamente, como estruturas sobressalentes de recarga ou reparo.
No caso em comento, trata-se de objetos simples, isto é, aqueles que possuem apenas uma parte,
peça ou componente ou cujas partes, peças ou componentes foram fabricadas de maneira que não há
possibilidade de montagem ou desmontagem do objeto, além de integrarem ou se destinarem à montagem
ou composição de objetos ou produtos. O desenho industrial de partes, peças ou componentes pode ser
registrado como um objeto ou produto por si, desde que se refira a um objeto que apresente configuração
ornamental e pertença a uma única classe e subclasse da Classificação de Locarno3. A título de exemplo, é
possível registrar o desenho industrial do para-brisas de um veículo como um objeto per si, ou seja, sem
fazer referência ao objeto veículo.
Nota-se, entretanto, que a proposta de distinção de mercado em relação à eficácia do registro de
desenho industrial não encontra fundamentos em legislação de propriedade industrial. Ao contrário, a
irregularidade apresentada pelos fabricantes de autopeças não representa uma discussão acerca da validade
do registro e dos meios pelos quais o procedimento de reconhecimento da propriedade intelectual foi
concedido, mas de uma análise, no caso concreto e à luz da Legislação Concorrencial, da extensão destes
registros ao mercado de reposição de autopeças. Diante desse cenário, cumpre-nos investigar os casos
limítrofes e a abrangência da tutela do desenho industrial sobre disputas de mercado, uma vez a
mensuração da abusividade de um direito, avaliação absolutamente subjetiva, envolve a análise dos fins
econômicos e sociais que amparam a previsão daquele direito, de imprecisa caracterização.
No parecer da SDE, ressaltou-se que a questão em apreço “trata de peças must-match, ou seja, as
autopeças de reposição que devem reproduzir (copiar, portanto) exatamente o desenho da peça original
para restituir ao automóvel a sua aparência original ou mesmo para que se encaixem de maneira adequada
no veículo”. Nesse sentido, não há dispositivo legal as exclua da qualidade de cópias, meras reproduções
das peças protegidas pelo registro e contra as quais o titular do desenho industrial pode impedir a
circulação e exploração comercial (que compreende, em análise preliminar, também o mercado de
reposição.
Como cópias, portanto, além de violarem o direito de propriedade industrial reservado às peças
originais, pouco ou nada garantem ao consumidor a qualidade e segurança necessárias às autopeças; em
que pese sejam idênticos o encaixe e o formato, o material, por sua vez, pode ser de qualidade inferior. Por
essa razão, peças alternativas, vendidas à guisa de originais, podem confundir consumidores (que
acreditam tratar-se de peça original) e, eventualmente, prejudicar a vida útil do automóvel.

3
No Brasil, adota-se a Classificação Internacional de Locarno para o Registro de Desenho Industrial.
https://www.gov.br/inpi/pt-br/servicos/desenhos-industriais/arquivos/guia-basico/loc-12-_2019_versao-final.pdf
3

Dessa forma, por não se enquadrarem em nenhuma das hipóteses excepcionais previstas em lei
capazes de autorizar o referido uso, as atividades dos FIAPs praticam ilícitos civis, que ensejam a adoção
das medidas cabíveis.
Além disso, sendo vendidas a um preço inferior ao das montadoras, as peças de reposição têm
maior potencial atrativo, de modo que, liderando a procura de mercado, alcançam margem de
consumidores mais abrangente que a das montadoras de automóveis. Expostas estas razões, na hipótese de
flexibilização do registro de desenho industrial, isto é, declarada a impossibilidade de imposição do
registro contra os FIAPs, resta-nos um debate acerca do abuso do direito de propriedade intelectual, cujos
efeitos seriam de monopólio sobre o mercado secundário.
É, pois, crucial compreender que a capacidade de fazer valer os direitos de propriedade
industrial não deve ser confundida com a intenção de obstruir o progresso dos concorrentes ou
eliminá-los. A oponibilidade representa um elemento fundamental no âmbito dos direitos de
propriedade intelectual, e rotulá-la como uma violação à ordem econômica, na ausência de qualquer
comportamento abusivo, equivale a prejudicar (ou retirar-lhe a utilidade) o próprio sistema de
proteção dos direitos de propriedade intelectual.

2. Do abuso dos direitos de propriedade intelectual e dos efeitos da prática de monopólio


sobre o mercado secundário
Assegura a Constituição Federal (Art. 5, XXIX) aos autores de inventos industriais privilégio
temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, tendo em vista o interesse social
e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País. Estes são, portanto, elementos essenciais à eficácia
do registro do desenho industrial.
Sob este parâmetro, a monopolização do mercado secundário violaria, em certa medida, o
requisito de interesse social (reservando a uma só companhia a comercialização de um produto
específico) e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País (no que concerne à circulação de
capital e a criação de um ramo destinado a atender um determinado mercado consumidor), o que
poderia tornar irregular seu exercício, muito embora a obtenção do direito, como já mencionado,
tenha sido regular. Nesse sentido, considerando que não há imunidade antitruste para desenhos
industriais e ao INPI não se permite realizar tal avaliação, caberá ao CADE investigar e sancionar
eventuais abusos de poder econômico.
Constatado que não se trata de abuso ou fraude no procedimento de registro, mas de abuso no
exercício do direito em si (sob o ponto de vista constitucional e em relação à própria finalidade da
propriedade industrial), o monopólio praticado pelas montadoras no que toca às autopeças de
reposição se verifica potencialmente danoso, tanto em seu aspecto econômico (desaparecimento de
um setor de mercado e restrição de consumo sobre um determinado produto) quanto no social
(ausência de produtos que suprem a demanda por autopeças de baixo custo).
4

Este fenômeno se daria porque os proprietários de automóveis, uma vez adquirido o veículo,
teriam apenas uma opção de fornecedor de peças, sendo obrigados a se submeter às opções, aos
preços e às condições impostas pela montadora, titulares do desenho industrial das peças de reposição.
À luz da legislação concorrencial, conclui-se que a verificação de falta (sintomática) de peças
no mercado brasileiro (Art. 36, § 3˚, IV e XIV da Lei 12.529/11), de diferenciação de preços
(constatada entre os preços sugeridos pelas montadoras e os oferecidos no mercado secundário; Art.
36, § 3˚, X, da mesma Lei) e a exploração abusiva de direitos de propriedade intelectual (Art.36, § 3˚,
XIX) representam patente infração ao sistema concorrencial e à ordem econômica.

Dispositivo
1. Diante do exposto, conclui-se pela existência de infração à ordem econômica, em virtude de
violação à finalidade da propriedade industrial e à disposição constitucional, para a qual o
interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País determinam os limites
impostos à eficácia do registro. A potencial falta sintomática de peças, com a supressão deste
mercado alternativo, o desequilíbrio de preços, a acessibilidade no consumo e a eventual
formação de monopólio são elementos que configuram ofensa ao interesse social, ao acesso à
tecnologia e ao desenvolvimento econômico do país.
2. A despeito da validade do registro de desenho industrial, recomenda-se ao CADE a
condenação das montadoras por exercício abusivo de direitos de propriedade industrial, sem
aplicação de multa sobre o faturamento das montadoras, mas obrigação de cessar práticas
anticoncorrenciais.
3. Decide-se pela aplicação de sanções mais brandas, considerando não haver conduta infratora
significativa. Não tendo sido constatada fraude no processamento do pedido de registro, por
parte das montadoras, mas verificada violação do direito de propriedade industrial por parte
das fabricantes de autopeças de reposição, o ilícito se restringe ao abuso no exercício do
direito e potencial para a formação de monopólio.

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