Você está na página 1de 26

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE ABAETETUBA


FACULDADE DE CIÊNCIAS DA LINGUAGEM

ENDY BARRETO REGO

O SILENCIAMENTO DA HISTÓRIA EM ESTORVO DE CHICO BUARQUE

ABAETETUBA
2008
CAPA: Projeto Gráfico de Deuel Sarges, a partir
de fotografias capturadas nos seguintes sites:

www.abril.com.br/album/chico_buarque.shtml
www.alerj.rj.gov.br
www.averdadesufocada.com
www.chicobuarque.com.br
www.culturabrasil.pro.br
www.dhnet.org.br
www.dotempo.blogger.com.br
www.franciscodandao.com
www.terra.com.br
www.vermelho.org.br
ENDY BARRETO REGO

O SILENCIAMENTO DA HISTÓRIA EM ESTORVO DE CHICO BUARQUE

Artigo apresentado a Faculdade de


Ciências da Linguagem da Universidade
Federal do Pará-Campus Universitário de
Abaetetuba, como Trabalho de Conclusão
de Curso, requisito parcial para obtenção
de título de Licenciatura Plena em Letras-
Habilitação em Língua Portuguesa.

Orientadora: Profª. Drª. Tânia Pantoja

ABAETETUBA
2008
ENDY BARRETO REGO

O SILENCIAMENTO DA HISTÓRIA EM ESTORVO DE CHICO BUARQUE

Artigo apresentado a Faculdade de


Ciências da Linguagem da Universidade
Federal do Pará-Campus Universitário de
Abaetetuba, como Trabalho de Conclusão
de Curso, requisito parcial para obtenção
de título de Licenciatura Plena em Letras-
Habilitação em Língua Portuguesa.

Orientadora: Profª. Drª. Tânia Pantoja

Apresentado em ____/____/______

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________
Dedico este artigo a todos que amam a
literatura e buscam incessantemente o
conhecimento e a sabedoria.
Meus sinceros agradecimentos a:

Deus, por nunca me abandonar e sempre suprir minhas


necessidades;

Mirian Barreto e Manoel Rego – meus pais – por estarem ao meu


lado nessa longa jornada me apoiando, incentivando e dando o
suporte material e espiritual;

Meu namorado José Baía, pela compreensão e incentivo mesmo nos


momentos críticos;

Minha amável orientadora Profª. Tânia Pantoja pela competência,


dedicação, paciência e bom humor;

UFPA e o corpo docente do Campus Universitário de Abaetetuba


pela oportunidade de apreensão de conhecimento acadêmico-
científico;

Katyane Marinho, amiga a quem sempre recorri nos momentos de


dúvida;

Francisco Cardoso, pela revisão do texto e as longas discussões


acadêmicas durante a graduação;

Deuel Sarges, pelo apoio, criação e produção do projeto gráfico


deste trabalho;

Todos os amigos que acreditaram em mim e me ajudaram a


conquistar meu objetivo.
1

O SILENCIAMENTO DA HISTÓRIA EM ESTORVO DE CHICO BUARQUE

REGO, Endy Barreto


Universidade Federal do Pará - Campus de Abaetetuba
endybarreto@yahoo.com.br

PANTOJA, Tânia (Orientadora)


Universidade Federal do Pará - Campus de Abaetetuba
nicama@ufpa.br

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar o silenciamento da História e os


seus efeitos na construção do romance Estorvo (1991)1, de Chico Buarque: a multiformidade
do tempo, a diluição da identidade e as relações familiares problemáticas.

ABSTRACT: This work aims to analyze the mechanisms that make History speak
speechlessly and their effects in the writing of the novel Estorvo (1991), by Chico Buarque:
the instability of time, the disintegration of identities and the problematical familiar
relationships.

PALAVRAS-CHAVE: Chico Buarque – Estorvo – História – Ficção.

KEYWORDS: Chico Buarque – Estorvo – History– Fiction.

1. A TRAJETÓRIA DE CHICO BUARQUE: DE “CANÇÃO DOS OLHOS” AO


ROMANCE “ESTORVO”

De acordo com Braga-Torres (2002), Francisco Buarque de Hollanda, conhecido como


Chico Buarque, nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1944, cresceu rodeado pelos livros da
biblioteca de seu pai e por intelectuais, como Vinicius de Moraes e Paulo Vanzolini, figuras
importantes para seu interesse juvenil pela música. Chico Buarque tornou-se um artista
completo. Músico, dramaturgo e escritor de qualidade excepcional, sua obra é considerada de
grande valor para a cultura brasileira. Miranda (2001, p. 28,29) define-o como:

Um autor que conseguiu varar uma década e meia de obscurantismo, usando


a palavra como instrumento de resistência, [...] dando um testemunho
inequívoco de uma arte que se envereda pelos caminhos da fantasia sem
perder a ligação com o seu tempo.

1
A edição utilizada neste trabalho é a de 2004.
2

Aos 15 anos Chico Buarque compôs a primeira música da qual se lembra: “Canção
dos Olhos”. No entanto, sua primeira apresentação só ocorreu dois anos mais tarde, em 1961,
num show estudantil cantando “Marcha para um dia de sol”. Nessa época, os movimentos
estudantis, os grêmios e sindicatos (ainda livres da interferência do governo) estavam se
organizando. O Brasil se desenvolvia economicamente e os questionamentos sobre política,
arte, educação e problemas sociais estavam presentes, tanto nas rodas de bate-papo quanto na
música e na literatura.
Em 1964, o contexto político brasileiro mudou drasticamente. Os militares tomaram o
poder, dando início a um período marcado por torturas e perseguições. Os direitos não eram
respeitados. Músicos, artistas e intelectuais tinham seu trabalho censurado e os jornais sempre
estavam vigiados e no lugar de reportagens importantes sobre os abusos da ditadura militar
publicavam receitas e poemas. Qualquer manifestação clara de protesto contra o regime sofria
punições severas (BRAGA-TORRES, 2002). Quanto mais o tempo passava mais leis e órgãos
eram criados para combater os que estavam contra o governo. Segundo Fico (2004) a
severidade do AI5 (Ato Institucional nº 5) foi o resultado de uma caminhada que começou
como um simples grupo de pressão e gradativamente conseguiu inculcar a necessidade do
endurecimento do regime. Neste contexto, cessar com as produções ou não expor suas
inquietações era o caminho mais aconselhável para qualquer artista. Porém, não foi esse o
escolhido por Chico.
Segundo Sousa (2004, p.1), “Chico começou a escrever suas letras no momento em
que o discurso poético brasileiro denegava o ferrolho sistêmico do concretismo e rejeitava a
violência dogmática do regime militar”. Quanto mais o regime endurecia a vigilância sobre as
produções culturais, mais Chico Buarque produzia. Ele não apenas inicia sua carreira, como
também a consolida nesse período, tornando-se um ícone da resistência contra a ditadura
militar no Brasil.
Conforme Silva (2004), ao contrário do pensamento geral, a atuação política de Chico
não se traduziu em adesão a doutrinas ou militâncias partidárias. Ele não se considerava o
líder dos oprimidos nem a voz do povo sedento de um defensor. Chico apenas falava dos
incômodos e angústias da sua alma. Como percebemos em seu discurso:

Eu não sou político. Sou um artista. Quando grito e reclamo é porque estou
sentindo que se estão pondo coisas que impedem o trabalho da criação, do
qual eu dependo e dependem todos os artistas (BUARQUE apud MARTINS,
2005, p. 16).
3

Mesmo com essa posição, para o povo, Chico era genuinamente o herói, a voz dos
homens injustiçados por um regime que estabelecia as condutas. A criação dessa caricatura
proporcionou-lhe o título de compositor de protesto n° 1 e o transformou no principal alvo da
censura. De acordo com Braga-Torres (2002), de cada três composições de Chico Buarque,
apenas uma era liberada pela censura e, ainda assim, havendo troca de algumas palavras ou
substituição do título:
Chico Buarque era um homem de seu tempo e, portanto, seu discurso, sua
obra estarão impregnadas das marcas do momento histórico em que viveu.
Chico não nasceu Chico, ele se fez Chico a partir dos elementos sociais que
o cercavam (MARTINS, 2005, p. 7).

Chico Buarque conseguiu produzir e manter viva a chama da consciência e da


dignidade humana num período de constante vigilância, de confusão em todas as esferas da
sociedade e de imposição, aos artistas, de mordaças concretas e outras invisíveis – a censura.
Produziu músicas como “Pedro Pedreiro” (1965), “A Banda” (1966), “Roda Viva” (1967) e
“Cálice” (1973), verdadeiros clássicos dos anos de chumbo. Compôs canções para os filmes
Quando o Carnaval Chegar, Vai Trabalhar Vagabundo e Os Saltimbancos Trapalhões.
Publicou a novela pecuária Fazenda Modelo (1974) e também escreveu as peças Calabar: o
elogio da traição (1973) (censurada), Roda Viva (1967) (censurada), Gota d’Água (1975) e
Ópera do Malandro (1978).
Nos últimos anos do regime militar, Chico Buarque, através da música “Bye Bye,
Brasil”, começou a revelar o perfil de suas obras nos anos vindouros, tirando o protesto do
foco principal e passando a mostrar a fragilidade e a desagregação social. Em “Bye Bye,
Brasil”, segundo Silva (2004, p. 90), “o protagonista [...] é uma espécie de zumbi vagando
sobre escombros pelas franjas do país” dividido entre o moderno e o arcaico.
Os anos do regime militar tornaram-se solo fértil para Chico, e neles há o maior
número de suas produções. Entretanto, esse artista tímido e genial não sucumbiu com o fim
das duas décadas de terror em nosso país. Ele continuou a produzir, mas suas produções
adquiriram uma nova ótica, como explica Maia (apud MALARD, 2006, p.151):

Como é compreensível, após os anos de chumbo, o romance de meados dos


anos 80 e o dos anos 90 não estará mais marcado tão fortemente pela
resistência política e ideológica, a qual constitui um dos traços
predominantes do romance durante a ditadura. Essa constatação não
significa desconsiderar a força crítica da produção ficcional recente, mas
reconhecer que seu foco muda, diante do novo panorama histórico, e passa a
estar, em partes, nas mazelas e problemas estruturais da sociedade brasileira,
muitos dos quais agravados pelo regime militar.
4

Com o início da abertura política, o cenário do Brasil voltou a clarear. Esperava-se,


então, a reconstrução do elo entre a cultura e os anseios populares rompidos em 1964, e sua
elevação ao merecido lugar de destaque. Porém, o efeito foi outro: nem a cultura nem as
aspirações populares continuavam as mesmas. O país, após a longa tempestade – os anos da
ditadura –, respirava um ar de frescor e alívio, apesar dos seus efeitos ainda serem sentidos.
Abel Silva (apud HOLLANDA e GONÇALVES, 1980, p.18), ao falar sobre as produções da
pós-ditadura, diz:
Os poetas podem jogar mais com o presente – mas os narradores necessitam
de um tempo histórico, os narradores falam do passado. Então acabou a
censura no Brasil, acabou o AI-5 e nós começamos a ter só agora os
sintomas de uma verdadeira literatura pós-64, falo da literatura de inspiração
política, mais madura, menos testemunhal.

A partir da década de 90, Chico Buarque passou a dedicar-se mais à obra romanesca,
produzindo três grandes romances: Estorvo (1991), Benjamim (1995) e Budapeste (2003),
transformados posteriormente em trilhas cinematográficas. Esses romances problematizam a
questão identitária e mostram a solidão das personagens no frenesi das grandes cidades
(REBELLO, 2006).
A produção de Chico, segundo Paraizo (2005), é, sobretudo, urbana. Na cidade, as
tramas se “desenrolam” 2 e apresenta-se a outra realidade do país, com pessoas vulneráveis,
cheias de dúvidas e sem perspectivas, revelando a amargura e a desilusão, após os anos da
ditadura. São indivíduos definidos por Rebello (2006, p. 37) como “homens frágeis e
debilitados diante da vida, sem possibilidade heróica”.
Rebello (2006, p.15) caracteriza os protagonistas dos romances buarqueanos como
“eus à deriva, isolando-se ou perdendo-se no labirinto das grandes cidades. Homens buscando
referências sob a face perdida, mas ao invés de sentido encontram ruínas e um grande vazio”.

1.1 O enredo de Estorvo

Estorvo, objeto de análise deste trabalho, é o primeiro romance produzido por Chico
após a ditadura militar. Ele é lançado 17 anos depois de Fazenda Modelo e é uma obra de
onze capítulos, todos sem títulos, e com personagens anônimos. Seu enredo inicia com a
descrição do protagonista atordoado pela presença de um homem à sua porta, homem esse de
2
O “desenrolar” nesse contexto é usado como o local onde a história acontece e não como o desemaranhar de
todos os problemas, com a finalidade de dar um final feliz à trama.
5

quem ele não se lembra muito bem. Durante a tentativa de buscar na memória a figura do
visitante, a campainha toca novamente e, quando ele se aproxima da porta, tem a impressão
de estar sendo observado, por que o “olho mágico” parece posto ao contrário. Esse fato
desencadeia a fuga insana do protagonista durante toda a obra.
Vestindo-se rapidamente, ele começa a perseguir o seu “observador”. E, abruptamente,
passa de “perseguidor” a “perseguido”. Sentindo-se encurralado, ele vai à casa da irmã
milionária e lá chegando, como de costume, recebe mais uma ajuda financeira. Ao anoitecer,
dirige-se para o sítio da sua família, local invadido por menores delinqüentes e plantadores de
maconha. Pela manhã, um grupo de rapazes motoqueiros expulsa-o de lá, fazendo-o dirigir-se
novamente à cidade. E, uma vez lá, vai à loja do shopping onde trabalha sua ex-mulher. Ao
contar-lhe da suposta perseguição, ela não demonstra muito interesse. Então ele pede a chave
da casa onde moravam para ir buscar algumas coisas que havia deixado por lá.
No percurso, ele resolve visitar um amigo, mas, chegando à frente do portão do prédio,
depara-se com muitas câmeras e com uma mulher gritando que seu filho estava sendo
injustamente acusado de assassinato. Por medo de se tornar suspeito do crime, ele desiste de
entrar no prédio e continua a caminhada para a casa da ex-mulher. Ao entrar na casa, o
protagonista lembra-se dos momentos passados com ela e percebe a mudança de todos os
cômodos e objetos. Ao percorrer o ambiente onde outrora vivia, ele tem atitudes grotescas,
como urinar na pia da cozinha e entupir o banheiro ao tomar banho. Depois de causar uma
imensa desarrumação na casa, ele pega a mala com os seus pertences e vai embora.
Por achar inconveniente andar com uma mala pelas ruas, ele vai à casa da irmã para
guardá-la. Chegando a casa, dirige-se ao quarto dela e, dominado por um louco impulso,
rouba-lhe as jóias. Daí, o protagonista volta para o sítio donde fora expulso.
Próximo à entrada da propriedade, ele pega carona com os traficantes invasores. Eles
vêem as jóias e se apossam delas, dando-lhe como pagamento uma mala com maconha. Ao
amanhecer, ele vai à cidade e tenta livrar-se da droga. Pensa em deixar na casa da mãe, mas
não tem coragem de falar com ela. Então, entra no prédio do seu único amigo. Todavia,
quando sobe a escada, a mala cai de suas mãos e se abre. Assustado com a movimentação dos
moradores do prédio, ele foge. Mais uma vez vai para o shopping atrás da sua ex-mulher e
tenta falar com ela, mas, como a porta da loja está fechada e ela não lhe dá atenção, ele quebra
a vitrine, confessando, em seguida, que nem tinha vontade de entrar. Daí o protagonista
encontra-se com “a magrinha” amiga de sua irmã e, juntos, seguem para a casa desta.
Depois de uma longa partida de tênis entre o cunhado do protagonista e “a magrinha”,
eles dirigem-se para a sala de jantar e, durante a refeição, o seu cunhado comenta sobre a
6

viagem forçada da esposa após ter sido violentada num assalto na noite anterior. No fim do
jantar, o delegado responsável pelo caso chega para colher mais informações e, no decorrer da
conversa, o cunhado aproveita para falar sobre a invasão do sítio da família da esposa e o
desinteresse da polícia em tomar as devidas providências.
O protagonista desliga-se da conversa e recria mentalmente toda a cena do assalto,
assim como a suposta conversa da sua irmã com o delegado. Ele imagina que a irmã, ao ser
interrogada, flerta com o delegado para convencê-lo de não investigar o sumiço das jóias.
Esse seu desvario é interrompido pela voz do delegado convidando-o para ir ao sítio. Por não
ter alternativa, ele aceita o convite e eles seguem para lá. Porém, antes de chagarem ao local
de destino, o delegado pára na casa de um homem com aparência de ex-pugilista, a quem
chama de colega. Esse homem é um dos invasores do sítio e segue viagem com eles.
Quando chegam ao sítio, o delegado dá fim à vida de todos os traficantes. É uma
espécie de queima de arquivo. O protagonista, ao presenciar a chacina, fica ainda mais
perdido e sai rapidamente do sítio e, de pés descalços, caminha até o posto Brialuz para pegar
o ônibus. Próximo ao local, avista um homem magro com uma camisa quadriculada e,
julgando conhecê-lo, correr para abraçá-lo. Porém, esse o interpreta mal e atinge-o com uma
faca. Ferido, o protagonista sobe num ônibus e a trama encerra com ele pensando em pedir
abrigo para sua mãe, seu amigo ou sua ex-mulher, até a sua irmã voltar da viagem e lhe
adiantar seis meses do aluguel do apartamento onde morava.

1.2 Fortuna Crítica de Estorvo

Estorvo é uma obra fascinante e já foi analisada por vários pesquisadores. Entre os
trabalhos desenvolvidos, destacamos: “Estorvo & anônimos, no enredo da memória, do
presente e da imaginação”, produzido por Ana Mery Sehbe de Carli; “Recursos
Cinematográficos de ‘Estorvo’ no contexto Pós-moderno”, produzido por Marcelo Briseno; e
“O EU estilhaçado e o NÓS interditado: a crise das identidades em Estorvo, Benjamim e
Budapeste, de Chico Buarque”, produzido por Ilma da Silva Rebello. Por serem todos esses
estudos de grande relevância porque canalizam sua atenção para aspectos recorrentes, tais
como: a diluição das camadas sociais, o tempo multiforme, a relação familiar problemática e a
diluição da identidade.
Em “Estorvo & anônimos, no enredo da memória, do presente e da imaginação”, Ana
7

Mery Sehbe de Carli (2006) faz um paralelo entre a obra e o filme Estorvo, demonstrando os
artifícios utilizados por Ruy Guerra – diretor do filme – para manter-se fiel à obra de Chico
Buarque.
Carli começa seu artigo explicando a trama de Estorvo e apresentando o perfil do
protagonista: um homem sem-nome, sem oportunidades heróicas, em estado de decomposição
e dissolução da identidade. É um ninguém, com impressões e sensações, apesar da situação
deplorável.
Estorvo imprime um tom de delírio e desorientação, resultante da situação de
degradação e vertigem do protagonista-narrador. Criando, assim, um estado de confusão e
mistura de sonho e realidade, observável pela maneira multiforme de demarcação do tempo.
O tempo para Carli aparece em Estorvo sob três formas distintas: o tempo real, o
tempo da memória e o tempo da imaginação. Formas percebíveis, na obra, através da
utilização dos diferentes tempos verbais e, no filme, através da sobreposição de imagens,
mudanças de luz ou de plano.
Conforme Carli, o interesse de Chico Buarque em revelar a organização social
contemporânea, caracterizada pela fluidez das categorias sociais e desordem proveniente do
processo de industrialização brasileira, também é o enfoque principal do filme “Estorvo”,
tendo um protagonista desorientado, vítima dos trancos e barrancos do acaso, com uma vida
de repetições, sem nunca avançar, expondo, de tal modo, o “sanatório geral” vivenciado pela
sociedade contemporânea.
No artigo “Recursos cinematográfico de ‘Estorvo’ no contexto Pós-moderno”,
Marcelo Briseno (2006), assim como Carli, desenvolve um paralelo entre o romance Estorvo
e o filme, expondo os recursos cinematográficos utilizados para acentuar o universo distorcido
da trama. Briseno inicia o seu trabalho apresentando as duas linhas de pensamento sobre o
significado do pós-modernismo e o conceito mais aceito pela crítica: um movimento de
reação ao moderno, buscando revelar o efêmero, o fragmentário e o caos.
Segundo Briseno, Estorvo é um romance com características modernistas exageradas,
mas, por conter elementos como a desreferencialização, a desubstancialização do sujeito, o
caos, a fragmentação e a perda da identidade, foi classificado pela crítica como um romance
pós-moderno, apesar de não ser genuinamente a expressão do período.
Para Briseno (2006, p. 48), Estorvo revela a fragilidade e a instabilidade da espécie
humana, apresentando um personagem paranóico vagando por uma metrópole. Um homem
desreferencializado, imerso num universo caótico. Um humanóide vulnerável, perdido em
suas dúvidas existenciais, assim como o país.
8

O ambiente de instabilidade e anonimato presente no romance foi objeto de grande


preocupação na transposição da narrativa literária para o filme. Dificuldade essa, felizmente,
vencida com êxito, através da utilização dos cenários de várias cidades na composição da
cidade anônima, o uso de iluminação em contraluz, a trilha sonora de pouca harmonia e a
realização das gravações com a câmera na mão.
Briseno encerra seu artigo colocando o filme Estorvo como um belo exemplo de
adaptação cinematográfica, por conseguir assimilar o universo caótico, opressivo e
fragmentado da narrativa literária, utilizando com maestria os recursos da linguagem e da
cinematografia, mantendo-se fiel à identidade do romance de um tom revelador invejável.
Na dissertação intitulada “O EU estilhaçado e o NÓS interditado: a crise das
identidades em Estorvo, Benjamim e Budapeste, de Chico Buarque”, Ilma da Silva Rebello
(2006) demonstra como Chico Buarque trabalha em suas obras a questão identitária, a
diluição das camadas sociais, os problemas familiares e a solidão das personagens imersas no
ambiente excludente das grandes cidades.
Segundo Rebello, o romance Estorvo é narrado em alta velocidade, a linguagem é
movida pela percepção do protagonista, e a passagem do sonho para a realidade transcorre de
uma forma quase imperceptível, por não haver referências ao ato de despertar.
O protagonista narra a sua história como se ela desenrolasse no momento da narração,
sua visão é limitada, não há um narrador onisciente, isto é, a história é narrada na primeira
pessoa e no presente. Um narrador-protagonista falando consigo mesmo, um homem
atordoado, cheio de incertezas, em trânsito permanente, retomando lembranças do seu
passado como uma espécie de vertigem.
Em Estorvo o protagonista é um sujeito anônimo, delineado como um paranóico, um
fugitivo sem causa, percorrendo continuamente os mesmos lugares, como se estivesse
andando em circulo: a casa da irmã, o sítio e o trabalho da ex-mulher, agravando a cada volta
o seu estado de decomposição e caos. Ele é um indivíduo com dificuldade de reconhecer os
outros, assim como os outros também têm dificuldade de reconhecê-lo.
Sobre as suas relações familiares, Rebello define-as como “problemáticas”, pois, com
a irmã, só há uma aproximação quando ele precisa de dinheiro, sendo capaz até de roubar as
jóias dela. Com a mãe Ele não mantém contato. E com a ex-mulher, ele sempre tem atitudes
inconvenientes, como bagunçar a casa e atormentá-la no trabalho. O protagonista de Estorvo
é o espinho no dorso familiar, é a “ovelha negra”, um verdadeiro estorvo na vida das mulheres
a sua volta.
9
A diluição dos grupos sociais e a facilidade do protagonista em caminhar entre os dois
mundos são características marcantes do romance. O protagonista é um ser desfamiliarizado,
não se coliga com nenhum grupo social ou espaço, não se identifica com a esfera do crime
nem da legalidade, apenas transita por ela. No sítio, convive pacificamente com os traficantes
invasores e na cidade freqüenta a casa e as festas da irmã com a maior naturalidade.
Para Rebello, o espaço de estranhas relações apresentado em Estorvo é o reflexo da
sociedade fraturada da década de 90, perdida diante da nova realidade do país, em que todos
querem se sobressair, e a transgressão é a única norma a ser seguida, sendo essa uma tentativa
de quebrar as algemas da submissão imposta pela ditadura militar.
Apesar da natureza cíclica do romance Estorvo – com um protagonista percorrendo
sempre os mesmos lugares, numa espécie de ciranda ou labirinto circular, a cada página
folheada as relações aparecem mais problemáticas e a identidade mais diluída, preponderando
o tom de delírio, desorientação e instabilidade. Isso ocorre porque a História está exaurida,
logo toda construção adquire um tom problemático, seguindo para um caos maior.
A partir da apresentação feita sobre a trajetória de Chico, trabalhamos com a idéia de
que, no conjunto dos romances, o projeto estético por ele desenvolvido pauta-se no problema
da resistência versus apatia. Essa observação é possível através da análise do foco de suas
obras nos diferentes períodos3 em que seus romances foram construídos: na novela Fazenda
Modelo, produzida nos anos de censura, percebemos a sua focalização na resistência, ao
apresentar um boi que, para transformar a fazenda em um modelo na região, oprime os outros
bois, chegando a ponto de substituí-los por uma plantação de soja por ser mais rentável. Já nas
suas obras pós-ditadura, Chico, ao perceber o estado de confusão e solidão dos indivíduos nas
grandes cidades, diante da abertura política e evoluções tecnológicas, foca-se então na apatia.
Em Estorvo, há um protagonista anônimo e disperso a vagar pelas ruas de uma metrópole,
numa mistura de paranóia, sonho e realidade. Em Benjamim, o protagonista é um ex-modelo
fotográfico em decadência que transita pelo seu universo como se este fosse um set de
filmagem. Considerando o problema da resistência versus apatia nas obras de Chico Buarque,
partimos para a hipótese de que a apatia torna-se o motivo norteador do romance Estorvo, e
ela se revela a partir do silenciamento da História.

3
Não faremos menção ao seu ultimo romance: Budapeste (2003).
10

2. O SILENCIAMENTO DA HISTÓRIA EM ESTORVO

Para falar do silenciamento histórico no romance Estorvo é necessário de antemão


tratar do conceito de História e política do silenciamento. Conforme Sônia Lacerda (1994), a
História, durante muito tempo, foi vista como uma ciência de saber positivo – indiscutível –
completamente separada do conhecimento e elaboração ficcional. No entanto, essa definição
tornou-se superada quando se admitiu a interação dialética entre memória e História, como
explica Seligmann-Silva (2003, p. 67):

Não existe uma História neutra; nela a memória, enquanto uma categoria
abertamente mais efetiva de relacionamento com o passado intervém e
determina em boa parte os seus caminhos. A memória existe no plural: na
sociedade dá-se constantemente um embate entre diferentes leituras do
passado, entre diferentes formas de enquadrá-lo.

Tanto a História quanto a criação ficcional buscam traduzir o “real”, pautando-se no


imaginário, isto é, nos discursos e narrativas produzidos através dos registros da memória. De
fato, a diferença entre as duas sempre esteve atrelada apenas às convenções disciplinares,
conferindo à criação ficcional o descompromisso com a realidade e, à História, a autoridade
de relato verídico. De acordo com Costa (1994), pelo inevitável entrelaçamento entre elas, a
História passou a ser compreendida não como o resgate do passado, tal como aconteceu em
sua verdade absoluta, mas como uma investigação em busca de apreender as regras que
possibilitaram, ao acontecimento, existir enquanto sentido. Georges Duby (apud LACERDA,
1994, p. 40) também, ao falar sobre o assunto, define a História como uma “escola do
cidadão”, com pessoas livres e capazes de submeter as informações recebidas a uma análise
coerente, menos contagiada pelas ideologias existentes.
A partir da concepção da História como uma narração de acontecimentos ou ações
dispostas cronologicamente através de um múltiplo conjunto de discursos 4 produzidos por e
sobre os fatos, em que a memória tem um papel fundamental, as forças dominantes se viram
obrigadas a escamotear os registros da memória para silenciar o sentido de certos discursos e
manter o seu poder sob a construção histórica. Segundo Yosef Yerushalmi (apud SILVA,
2003, p. 63), se no século XIX houve sofrimento por ter-se “história demais”, na pós-

4
“Unidade lingüística superior à frase, equivalendo à mensagem ou enunciado – ou texto” (CARDOSO, 1997,
p.13).
11
modernidade o sofrimento é pelo “fim da história” 5, “o fim da temporalidade”6 e o
surgimento do “inexistencialismo”.
A sociedade pós-moderna foi submetida à chamada política do silêncio ou
silenciamento, definida por Orlandi (1997, p. 30-31) como o ato de tomar a palavra, fazer
calar, obrigar a dizer, silenciar. Contudo, o homem está “condenado” a significar com ou sem
as palavras. Quando o enunciado é retirado, ainda assim existe o gesto, o pensamento e a
memória. O silêncio em si mesmo produz significado, é matéria significante por excelência:

O silêncio não é o vazio, o sem-sentido, ao contrário, ele é o indício de uma


totalidade significativa. Isso nos leva à compreensão do “vazio” da
linguagem como um horizonte e não como uma falta (ORLANDI, 1997, p.
70).

Cabe ao historiador a tarefa de ser o primeiro na frente de batalha contra as investidas


das forças dominantes, retrucando a hipótese dos detentores do poder também serem os
detentores da História. Ele deve ler o “dito” e o “não dito” nos discursos. Yerushalmi (apud
SILVA, 2003, p. 62-63) discorre:

No mundo que é o nosso não se trata mais de uma questão de decadência da


memória coletiva e de declínio da consciência do passado, mas sim da
violação brutal daquilo que a memória ainda pode conservar, da mentira
deliberada pela deformação das fontes e dos arquivos, da invenção de
passados recompostos e míticos a serviço de poderes tenebrosos. Contra
esses militantes do esquecimento, traficantes de documentos, os assassinos
da memória, contra os revisores das enciclopédias e os conspiradores do
silêncio, contra aqueles que, para retomar a imagem magnífica de Kundera,
podem apagar um homem de uma fotografia para que não fique nada senão
seu chapéu, o historiador, apenas o historiador, animado pela paixão austera
dos fatos, das provas, dos testemunhos, que são o alimento da profissão,
pode levar a montar guarda.

Os detentores do poder utilizam os mais variados artifícios para manter seu domínio,
dentre esses, a mídia ocupa lugar de destaque: com seus brilhantes holofotes difunde a idéia
de “superação” dos traumas após exibi-los e cultuá-los nos meios de comunicação. É como se
sua exposição colocasse um ponto final em toda dor e sofrimento. Esse processo é visto no
Brasil, após a ditadura militar, quando o povo 7, fascinado pela idéia de um “novo tempo” –
uma época de liberdade e evolução tecnológica –, acomoda-se diante da anistia dos militares –
figuras responsáveis por inúmeras atrocidades em nosso país. E Chico Buarque, ao perceber
5
O silenciamento de muitos discursos e a construção de uma história diferente daquilo que de fato aconteceu.
6
Com a supressão de muitas partes da História, a idéia de tempo, tornou-se dispersa.
7
Segundo Aguiar (2004, p. 51) o termo “o povo” até a década de 30 tinha uma significação diferente em cada
esfera da sociedade. Só a partir do golpe militar quando os indivíduos uniram-se para lutar contra a censura é que
o termo tornou-se uno e os indivíduos o encarnaram realmente.
essa situação, deixa então de focalizar, em suas produções, o tema da resistência para expor12a
acomodação e passividade do povo diante da tentativa de silenciamento dos horrores vividos
nos anos de chumbo, mostrando os efeitos do silenciamento histórico na vida dos indivíduos e
da sociedade brasileira.
O romance Estorvo está entre as expressivas criações desse período. Uma obra
marcada pelo anonimato e desreferencialização, isto é, A perda das referências históricas,
sociais e individuais do protagonista. Em sua narrativa não há uma História organizada, os
fatos aparecem dispersos, havendo uma mistura de imaginação, lembrança e realidade. É
impossível dizer o período ou a cidade onde a trama acontece, pois não há referência a
nenhum momento de nossa História ou a alguma de nossas cidades, seja sub-repticiamente,
seja por meio das marcas do real. Existe apenas um protagonista “solto” por uma metrópole
desconhecida. O silenciamento histórico toma conta da trama e provoca um matiz de
desorientação e instabilidade, perceptível pela multiformidade do tempo, a diluição da
identidade e as relações problemáticas do protagonista com as outras personagens.

a. A multiformidade do tempo

O tempo da narrativa abarca outros dois tempos: o tempo da memória e o tempo da


imaginação. As multiformas do tempo causam um tom de dúvida inflexível no romance,
exigindo uma enorme concentração do leitor para identificar quando a narração do
protagonista é sobre algum fato real, imaginário ou fruto de sua imaginação. Há uma mudança
muito rápida dos tempos, como conferimos no seguinte fragmento:

Hoje encontro a porta encostada, o quarto escuro, e arrependo-me um pouco


de ter entrado. Os metais da orquestra chegam cá em cima com toda
potência, mas estou certo de ter ouvido um suspiro, um suspiro de voz
conhecida. Sinto que me habituarei à penumbra e verei dois corpos na cama.
O homem poderá ser o rapaz bonito das taças de vinho, e terá os ombros
muito brancos. E a mulher, ela verá que estou ali, mas não vai querer
interromper, e estará com os cabelos castanhos abertos como um leque no
lençol, e vai me olhar de um modo que nunca me olhou. Pretenderei virar as
costas, mas estarei emperrado. [...] fecharei os olhos com tanto ímpeto, que
as pálpebras cairão no chão. Minha visão clareia e não há ninguém no
quarto. Ali está a cama impecável, com uma colcha de renda antiga e uns
almofadões. Naquele domingo aquela cama me desgostou, o lado do marido
todo amarfanhado, e dei o quarto por visto (BUARQUE, 2004, p. 63-64).

Nesse fragmento, as diferentes temporariedades expostas misturam-se freneticamente


13
através da alternância dos tempos verbais. O protagonista, no início do parágrafo, diz: “Hoje
encontro a porta aberta”, o verbo “encontrar” no presente do indicativo sugere a narração dos
fatos no tempo da narrativa. Já quando ele discorre: “e verei dois corpos na cama”, o verbo
“ver”, no futuro do presente, indica a mudança dos fatos para o tempo da imaginação. E ao
terminar proferindo: “aquela cama me desgostou”, o termo “desgostar” no pretérito perfeito
transpõe a narrativa novamente para outro tempo – o tempo da memória. Essa mistura dos
tempos narrativos reflete o pensamento de um homem desvairado, perdido entre as
lembranças, o presente e o imaginário.
Mesmo não havendo menção, no romance, sobre os horários de todos os
acontecimentos ou o número de dias da trama, ao focarmos nossa visão nos fatos descritos no
tempo da narrativa, percebemos que o processo de deterioração do protagonista acontece em
sete dias, o equivalente a uma semana em nosso calendário. Durante esses sete dias, a cada
volta concluída, a aproximação do ápice caótico é mais nítida. Nenhuma ação é capaz de
revelar um vestígio de possibilidade heróica. A tabela abaixo dispõe os acontecimentos nos
períodos da manhã, tarde e noite. Comprovando assim o fechamento do ciclo narrativo de
Estorvo em sete dias.

MANHÃ TARDE NOITE


Inicia sua fuga e toma O protagonista viaja
1° DIA Dorme no sítio
café com a irmã para o sítio da família
É expulso do sítio pelos Vai para a casa da ex- Dirige-se à casa da irmã e
2° DIA
invasores e volta à cidade mulher rouba as suas jóias
Novamente viaja para o Permanece no sítio
3° DIA Dorme no sítio
sítio descansando
Fica à beira da piscina
4° DIA Continua na piscina Dorme no sítio
abandonada do sítio
Desperta e vê a colheita Os traficantes entregam-lhe
5° DIA Continua dormindo
da maconha a mala com maconha
Janta com o cunhado e volta
6° DIA Viaja para a cidade Tenta livrar-se da mala
ao sítio com o delegado
Caminha para o ponto de
7° DIA
ônibus e lá termina ferido

Ao comparar a narrativa de Estorvo com a história da criação do mundo apresentada


na Bíblia Sagrada, percebemos que em ambas o ciclo narrativo é de sete dias, mas com uma
extraordinária diferença. Na história da criação do mundo, Deus constrói tudo em seis dias,
descansando no sétimo. Em Estorvo, o protagonista se desconstrói em seis dias, alcançando o
clímax caótico no sétimo, quando a narrativa encerra com a descrição dele descalço, ferido,
sem rumo e ainda em fuga, isto é, nem ferido ele consegue parar com a sua fuga insana. 14

b. A diluição da identidade

A diluição da identidade não é obra do acaso no romance. Ela é uma das evidências do
silenciamento histórico. Esse silenciamento da História brota como o resultado da escolha do
protagonista em abandonar os seus bens e a sua família, bem como todas as lembranças dessa
época de sua vida, conforme percebemos no fragmento:

Era uma noite, e já estávamos jantando na varanda quando ele decidiu que
eu era um bosta, sem mais nem menos. Disse assim mesmo: “você é um
bosta”. E disse que eu devia fazer igual ao escritor russo que renunciou a
tudo, que andava vestido como um camponês, que cozinhava seu arroz, que
abandonou suas terras e morreu numa estação de trem. Disse que eu também
devia renunciar às terras, mesmo que eu também tivesse que renunciar
minha família, que era outra bosta. Também era uma bosta toda lei vigente e
todos os governos. [...] Jogamos nossas coisas no porta-malas do carro dele,
um rabo-de-peixe caindo aos pedaços, e fomos embora do sítio deixando a
cancela aberta (BUARQUE, 2004, p. 83).

No parágrafo acima, o protagonista procura se desacomodar, ou seja, não se adequar


às regras do sistema vigente. Ele busca romper com tudo o que considera sem importância.
Porém, sua desacomodação torna-se sem significado porque, ao se desacomodar, ele também
se desvencilha do arquivo da memória, perdendo suas referências históricas e mesmo sociais.
Ao desvencilhar-se das lembranças, a memória adquire cortes profundos, assemelhando-se a
um livro com muitas páginas arrancadas. O resultado, sem dúvida, é o processo de
silenciamento de identidade sofrido pelo protagonista.
De acordo com Orlandi (1997), essa é uma das seqüelas da política do silenciamento.
Ao calar partes da História, ela leva em sua bagagem muitos arquivos “pessoais” e a própria
identidade do indivíduo, deixando-o sem perspectiva, imerso num caos imensurável. Orlandi
(1997, p. 65) explica esse processo dizendo:

Assim é o homem. O mundo está nele. E quando ele se retira, não é somente
da multidão exterior que ele se distancia, mas dessa multidão enorme que faz
nele morada.

O protagonista anônimo está imerso nesse universo de retirada. Ao romper com seu
passado, se auto-exila, causando não só o silenciamento histórico, mas também o pessoal. A
História, os acontecimentos, as relações sociais e as lembranças oferecem ao individuo
conteúdo e o auxiliam no processo de sua composição humana, mas quando esses elementos
15
são silenciados, sua identidade tende a ficar comprometida. As suas referências externas
desaparecem e as internas tornam-se diluídas. O homem exilado dessas referências, esvaído
de si mesmo, não consegue dar significação aos acontecimentos e se torna um flutuante.
Em Estorvo, o narrador-protagonista passa aos leitores o seu olhar turvo sobre o
mundo, imprimindo na alma de cada um a sensação de desequilíbrio, abandono e incerteza.
Ele inicia a narrativa do livro dizendo: “para mim é muito cedo” (BUARQUE, 2004, p.7), o
que revela a sua imprecisão sobre os fatos. Na obra, é comum o uso de expressões como:
“pode ser”, “parecia”, “penso que”, “como se”, “achei que”, “não sei se” e “talvez”, para
realçar o tom de incerteza. Vejamos alguns fragmentos: “Pode ser que chorasse todo sábado,
admirando a festa e não podendo dançar” (BUARQUE, 2004, p. 107); “Parecia queimado ao
sol” (BUARQUE, 2004, p. 123); “Penso que estou dormindo quando um rapaz de turbante
me aparece na porta” (BUARQUE, 2004, p. 127); “É como se a mão que segura o pau não me
pertencesse” (BUARQUE, 2004, p. 133); “Achei que ela estaria no closet para trocar o maiô”
(BUARQUE, 2004, p. 64); “Recebo na face direita um golpe violento, não sei se de algum
objeto ou de joelho” (BUARQUE, 2004, p. 74); “Talvez fique com raiva e chame o porteiro”
(BUARQUE, 2004, p. 98).
Ao ler o romance Estorvo, a sensação é de que a cada linha surge uma cratera ainda
maior diante dos olhos, contornada pela incerteza, delírio e instabilidade. Tem-se a impressão
de estar em um carro desgovernado a caminho do precipício, sem se saber exatamente para
onde se está caminhando, o motivo de se estar ali ou o porquê de as coisas caminharem
daquela forma.
Desse processo brota a problematização da apatia em Estorvo: a dificuldade do
protagonista em se ajustar à normalidade e a uma existência conveniente com as regras sociais
poderia estar relacionada à transgressão de maneira positiva, como modo de romper
dialeticamente com os padrões autoritários que norteiam a sociedade. No entanto, de nada
adianta o protagonista ser um desajustado, ou em outras palavras, um desacomodado, se não
existe uma identidade histórica para dar significação a algum tipo de resistência.

c. As relações problemáticas

As relações problemáticas são delineadas no romance desde as suas primeiras páginas


quando surge um protagonista conversando consigo mesmo e quase sem nenhum diálogo com
as outras personagens, prevalecendo, na narrativa, o monólogo interior:
16

Minha irmã andando realiza um movimento claro e completo. Parece que o


corpo não realiza nada, o corpo deixa de existir, e por baixo do peignoir de
seda. [...] E eu me pergunto, quando ela sobe a escada se não é um corpo
assim dissimulado que as mãos têm maior desejo de tocar (BUARQUE,
2004, p. 18).

O protagonista de Estorvo não consegue firmar suas referências apesar de sempre


estar com as mesmas pessoas e em trânsito pelos mesmos lugares: a casa da irmã, o sítio da
sua família e o trabalho da ex-mulher, numa circularidade sem fim. A cada volta concluída,
sua identidade e seus laços afetivos surgem mais estraçalhados. No primeiro encontro com a
irmã, ele apenas recebe um cheque dela; na segunda vez, invade o quarto desta e rouba-lhe as
jóias; e na terceira vez, ao saber do assalto e do estupro, não demonstra remorso por ter
roubado suas jóias. Na primeira viagem ao sítio, apenas dorme e de lá é expulso pela manhã;
na segunda vez, faz negócio com os traficantes; e, na terceira, é testemunha do assassinato dos
traficantes e do envolvimento do delegado com os invasores. Na primeira visita ao trabalho da
ex-mulher, ele só conversa com ela; na segunda, ele quebra a vitrine da loja. A terceira visita
não é mencionada porque a narrativa encerra com ele ferido no ônibus a caminho da cidade.
O fim caótico do protagonista não é algo inesperado, já que todo o romance é
delineado pela instabilidade. Na realidade, ele é o ápice do estraçalhamento de um sujeito
exilado, desprovido de vínculos afetivos ou morais. Um indivíduo com dificuldade até de
reconhecer as pessoas a sua volta, como constatamos na seguinte parte da obra:

Sento-me de frente para uma moça que creio conhecer e não me lembro de
onde. Ela também me olha, mas não me cumprimenta, não me sorri, aliás,
me dá a impressão de estar com os olhos marejados. Quando vejo as muletas
apoiadas nos braços do seu sofá, atino que é a irmã de um antigo conhecido
meu, um que dava festas numa casa com as amendoeiras (BUARQUE, 2004,
p.107).

O protagonista de Estorvo é um ser sem referências, daí as relações não terem muita
importância para ele. Todos são apenas “os outros”. Ele transita pelos lugares e vê todo
mundo, mas os vínculos não existem, não sabe nem o nome das pessoas, denominando-os
pelas suas características mais marcantes: “o magro com a camisa quadriculada”, “a índia”, “a
magrinha”, “a menina do cabelo encaracolado”, “os meninos dos limões”, “a preta gorda”, “o
ex-pugilista” e “o negro desengonçado”. Essa sua apatia não é só nas relações mais distantes,
ela ocorre também em suas relações familiares. Ele só as procura quando precisa de alguma
ajuda. Por exemplo, ele visita a irmã quando precisa de dinheiro; vai ao trabalho da ex-mulher
quando precisa de um esconderijo; e só pensa em procurar a mãe quando precisa 17
se
desvencilhar da mala com maconha.
Ao buscarmos as relações mais problemáticas do romance, aflora a relação do
protagonista com a mãe, porque, enquanto com a irmã e com a ex-mulher ele consegue
manter alguma aproximação, com a mãe não existe nenhuma. Ele não consegue nem ao
menos falar com ela pelo telefone. Se a narrativa percorresse o caminho da conveniência
social a relação dele com a mãe estaria entre as melhores, uma vez que os fortes laços entre
mães e filhos são constantemente reforçados na sociedade ocidental, mas como o protagonista
tem uma posição excêntrica em relação à sociedade em que vive, tal relação então se destaca
entre as mais problemáticas.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chico Buarque é um artista com um enorme poder de observação. Em Estorvo, utiliza


toda a sua intimidade com as palavras para caracterizar a sociedade da década de 90 e criticar
a sua acomodação diante das investidas de silenciamento da história pelas forças dominantes.
Cria um narrador-protagonista anônimo e sem oportunidade heróica que, ao desvencilhar-se
da sua História, torna-se um nada, um “desacomodado” e, contudo, apático.
O problema da apatia em Estorvo deflagra um elogio à História, ao expor sua
importância para a existência humana. Na obra, as relações problemáticas, a diluição da
identidade e a multiformidade do tempo tomam conta do ambiente narrativo, por causa da
ausência histórica, e transmitem a incerteza, a instabilidade e o fim apocalíptico para os que se
acomodam diante do estraçalhamento da História. Chico Buarque mostra que, se a História é
apagada – silenciada – o homem se torna vazio. E se nos anos da ditadura Chico utilizou o
deslocamento de sentidos, cantando o amor para falar do político, na década de 90 não vai ser
diferente: ele usa o silenciamento da história para falar da acomodação e do caráter passivo da
sociedade. Estorvo é uma chamada de atenção à sociedade brasileira.
18

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, F. O suingue da massa. CULT, n.78, ano VI. Março de 2004. p. 50-52.

BÍBLIA SAGRADA. Gênesis, C. 1:1-31, 2:1-3. Tradução de João Ferreira de Almeida. 5. ed.
São Paulo: Geográfica, 2005.

BRAGA-TORRES, A. Mestres da Música no Brasil Chico Buarque. 1. ed. São Paulo:


Moderna, 2002.

BRISENO, M. Recursos cinematográficos de “Estorvo” no contexto Pós-Moderno.


Inovcom - Revista Brasileira de Inovação Científica em Comunicação, v. 1, n. 2, p. 46-50,
2006. Disponível em: http//revcom.portcom.intercom.org.br/índex. Acesso em: 14 maio 2006.

BUARQUE, C. Estorvo. 2. ed. São Paulo: Companhia das letras, 2004.

CARDOSO, C. F. S. Narrativa, Sentido, História. Campinas, SP: Papirus, 1997.

CARLI, A. M. S. de. “Estorvo” & anônimos, no enredo da memória, do presente e da


imaginação. In: CARLI, A. M. S. de. & RAMOS, F. B. (Orgs.). Palavra prima: as faces de
Chico Buarque. Caxias do Sul, RS: Educs, 2006.

COSTA, E. Z. Sobre o acontecimento discursivo. In: SWAIN, T. N. (Org.). História no


plural. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1994.

FICO, C. Além do golpe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditadura


militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

HOLLANDA, H. B. de e GONÇALVES, M. A. Política e literatura: a ficção da realidade


brasileira. In: NOVAES, A. (Org.). Anos 70 Literatura. Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980.

LACERDA, S. História, narrativa e imaginação histórica. In: SWAIN, T. N. (Org.). História


no plural. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1994.
MALARD, L. 110 anos de crítica literária. Disponível em:
http://www.academia.org.br/abl/media/RB52%20-%20PROSA-03.pdf. Acesso em: 14 abril
2008. 19

MARTINS, C. A. O inconformismo social no discurso de Chico Buarque. Fênix-Revista


de História e Estudos Culturais, v. 2, Ano II, n. 2, Abril-Junho/ 2005. Disponível em:
http://www.revistafenix.pro.br/reschristian.php. Acesso em: 14 abril 2008.

MIRANDA, O. T. Chico – o poeta da fresta: ou de como o poeta cantou sua cidade num
tempo de tempestade. Belém, PA: Paka-Tatu, 2001.

ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4. ed. Campinas, SP:


Editora da UNICAMP, 1997.

PARAIZO, M. de A. A Cidade no espelho: breve recorte na obra de Chico Buarque.


ALCEU, v. 6, n. 11, p. 139- 152, jul-dez/ 2005.

REBELLO, I. da S. O Eu estilhaçado e o Nós Interditado: a crise das identidades em


Estorvo, Benjamim e Budapeste, de Chico Buarque. Orientadora: Lúcia Helena. Tese de
Mestrado. Niterói, 2006.

SILVA, F. de B. e. Chico Buarque. São Paulo: Publifolha, 2004.

SELIGMANN-SILVA, M. Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento. In:


SILVA, M. S. (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na Era das
Catástrofes. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.

SOUSA, D. P. A. de. Os sessenta anos de um artista: “Chico Buarque do Brasil”. Fênix-


Revista de História e Estudos Culturais, v. I, Ano I, n. 1, Outubro-Dezembro/ 2004.
Disponível em: http://Revistafenix.pro.br/pdf/Resenha%20Dolores%20Puga%20Alves%20
de%20Sousa.pdf. Acesso em: 16 abril 2008.

BIBLIOGRAFIA DE APOIO

ÂNGELO, I. Nós que amávamos tantos a literatura. In: SCHWARTZ, J. & SOSNOWKI, S.
(Orgs.). Brasil: O Trânsito da Memória. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1994.
BOBBIO, N. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na
sociedade contemporânea; trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1997. 20

CHIAPPINI, L. Ficção, cidade e violência no Brasil pós-64: aspectos da história recente


narrada pela ficção. In: LEENHARDT, J. & PESAVENTO, S. J. (Orgs.). Discurso histórico
e narrativa literária. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998.

COELHO, T. O que é Utopia? 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.

DENIS, B. Literatura e Engajamento: de Pascal a Sartre. São Paulo: EDUSC, 2002.

LUCAS, F. O caráter social da ficção do Brasil. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987.

MENESES, A. B. de. Chico Buarque: poeta do social e do feminino. In: CARLI, A. M. S. de


& RAMOS, F. B. (Orgs.). Palavra prima: as faces de Chico Buarque. Caxias do Sul, RS:
Educs, 2006.

PIÑÓN, N. O que é a república dos sonhos. In: SCHWARTZ, J. & SOSNOWKI, S. (Orgs.).
Brasil: O Trânsito da Memória. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.

REZENDE, M. J. de. A ditadura militar no Brasil: repressão e pretensão de legitimidade


1964-1984. Londrina: UEL, 2001.

SOARES, L. F. G. Estorvo e outros estorvos. Orientadora: Tânia Regina de Oliveira Ramos.


Tese de Mestrado. Florianópolis, 1996.

WANDERLEY, C. da S. A. O conteúdo Político na dramaturgia de Chico Buarque:


“Calabar”, “Gota D’água”, “Os Saltimbancos” e “Ópera do Malandro”. Intercom –
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, v. 1, n. 2,
Setembro/2007. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos
/R2059-1.pdf. Acesso em: 14 abril 2008.

Você também pode gostar