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‘Goa e as Praças do Norte – Análise Crítica de uma obra e de um

percurso no âmbito da Geografia Colonial Portuguesa’ – do caso de


estudo a novas contribuições

Marta Rodrigues
PhD Student & Graduate Teaching Assistant
Department of Geography, University of Sheffield
Email: mffrodrigues1@sheffield.ac.uk

Resumo:
A parca existência de estudos coloniais e pós-coloniais na geografia portuguesa aquando da realização da tese de
mestrado em 2008, abriu-me caminho para a investigação dos trabalhos dos geógrafos da academia portuguesa com o
intuito de, e tendo em conta os debates confluentes de espaço, discurso, práticas coloniais e género, compreender a
produção de conhecimento geográfico.
Ao centrar a dissertação de mestrado na análise da obra “Goa e as Praças do Norte” (1966) de Raquel Soeiro de Brito,
pretendeu-se desmistificar o pensamento existente sobre o Oriente e mostrar o trabalho e a vida fascinante de uma
Mulher que não tinha medo de ultrapassar fronteiras e abrir portas fechadas para as mulheres da sua época, mostrando
o imenso e talentoso trabalho efectuado por uma Geógrafa Portuguesa.
Desenvolvendo-se o corpus da pesquisa em torno da análise crítica da obra, e tendo em conta o contexto político e
ideológico e as circunstâncias históricas, sociais e culturais de produção da obra, procuraram-se os nexos causais que
legitimaram as geografias circunstanciais de uma pioneira da geografia portuguesa moderna.
É esta a minha questão de partida, que não se esgota neste ponto, demonstrando como um estudo sobre a geografia
colonial portuguesa pode abrir caminho para novas contribuições em diferentes áreas.

Palavras Chave: Geografia colonial portuguesa; Produção de conhecimento geográfico; Historiografia feminista

Abstract:
The scant existence of colonial and postcolonial studies in Portuguese geography at the time of my master thesis in
2008, opened me the way to investigate the work of geographers of Portuguese Academy with the aim, and taking
into account the confluent debates of space, discourse, colonial practices and gender, understand the production of
geographical knowledge.
Focusing the master's dissertation on the analysis of Raquel Soeiro de Brito's work "Goa e as Praças do Norte"
(1966), it intended to demystify the existing thought about the Orient and to show the work and fascinating life of a
woman who was not afraid to overcome limits and open closed doors to women of her time, exposing the immense
and talented work carried out by a Portuguese Geographer.
Developing the corpus of research around the critical analysis of the book and taking into account the political and
ideological context and the historical, social and cultural circumstances of the production of her work, the causal links
that legitimized the circumstantial geographies of a pioneer of modern Portuguese geography were sought. This is my
point of departure, which is not exhausted at this point, demonstrating how a study on Portuguese colonial geography
can pave the way to new contributions in different areas.

Keywords: Portuguese Colonial Geography; Production of geographical knowledge; Feminist historiography


Introdução consolidação de impérios e como estas
práticas estão intimamente ligadas às
Nos últimos anos a temática relações de poder e diferenciação dentro
colonial e pós-colonial tem sido um dos da produção de conhecimento
tópicos que tem chamado a atenção de geográfico.
geógrafos a nível internacional,
focando-se na genealogia imperial da Versando o estudo sobre a análise
geografia, na espacialidade do da obra “Goa e as Praças do Norte”
colonialismo e do império e no modo (1966) de Raquel Soeiro de Brito,
como as geografias coloniais e primeira mulher doutorada em geografia
imperiais devem ser revistas a partir de em Portugal, pretendia-se a
perspectivas pós-coloniais. compreensão da produção de
conhecimento geográfico e dos factores
Isto porque as geografias pós- que conduziram à naturalização de um
coloniais são fulcrais para expor as discurso e de uma prática geográfica,
marcas deixadas pelo colonialismo na descodificar quais os contributos e
paisagem e na sociedade, onde as ideias repercussões para a consolidação do
geográficas sobre espaço, lugar e mito do império português colonial e
paisagem contribuem para a articulação construção de um Portugal geográfico
das diferentes experiências do bem como o posicionamento da obra
colonialismo. relativamente a conceitos como
Em Portugal, apesar de alguns orientalismo, lusotropicalismo, espaço,
centros de investigação trabalharem a cultura, paisagem e o “Eu e o Outro”.
temática pós-colonial, esta prática A metodologia adoptada teve em
raramente incorpora a geografia conta os aspectos sociais, históricos e
existindo um lento envolvimento dos políticos vigentes à época da escrita da
geógrafos neste tema, com excepção do obra. Procedeu-se a uma análise crítica
livro de Ana Francisco de Azevedo, e revisionista sobre a teoria
Ramiro Pimento e João Sarmento lusotropicalista, a sua apropriação pelo
“Geografias Pós-Coloniais” (Edição estado Novo e com esta facilitou a
Figueirinhas, 2007) e da tese de construção do espaço colonial
mestrado de Marta Rodrigues1 (2011), português.
havendo a necessidade de se
desenvolverem estudos mais A teoria lusotropicalista do
desafiadores de geografia colonial e sociólogo brasileiro Gilberto Freyre foi
pós-colonial. crucial na moderna politica imperialista
portuguesa. Vendo os trópicos como um
lugar onde nascia uma civilização
“Goa e as Praças do Norte”: o diferente, original e mais humana
estudo devido à miscigenação e assimilação
cultural portuguesa, Freyre recebeu as
A parca existência deste tipo de simpatias de Salazar, sendo convidado a
estudos abriu-me caminho para que, realizar em 1951 uma viagem às terras
através da análise de trabalhos coloniais lusas onde afirma ter encontrado
de geógrafos portugueses, fosse similaridades em todas e denominando
possível demonstrar como a geografia e
as suas práticas foram importantes na
1
Tese de Mestrado em Geografia Humana “Goa e as Praças do Norte – Análise Crítica de uma obra e de um
percurso no âmbito da Geografia Colonial Portuguesa”, Universidade do Minho, 2011
a presença portuguesa nos trópicos de poder instituído. Entendendo-se a
lusotropicalidade. narrativa como um espaço de inscrição
e representação de diferentes formas de
Esta teoria foi condição decisiva poder, a análise textual é crucial para a
para que o Estado Novo apostasse no compreensão da produção do espaço em
reconhecimento e estudo das colónias diferentes encontros coloniais.
portuguesas, num período em que a
ONU exigia a descolonização, para Ao analisar “Goa e as Praças do
demonstrar a necessidade da Norte”, decidiu-se a sua repartição em
colonização portuguesa. É neste quatro tópicos para um melhor
contexto que surgem várias missões de entendimento de como as relações de
geografia, entre elas a Missão de poder Eu/ Outro, Ocidente/Oriente eram
Geografia à Índia onde participam inscritas:
Orlando Ribeiro, Mariano Feio e Raquel
Soeiro de Brito, cabendo à geógrafa a  Paisagem e Clima: Sentimentos
descrição dos aspectos humanos e de Lugar
físicos da Índia Portuguesa, um trabalho
conciso de validação da política colonial “De um céu coberto por grossas
vigente. nuvens cor de cinza que se
desfazem durante horas seguidas
Mais que uma narrativa de viagem em catadupas de água, passa-se a
onde Raquel Soeiro de Brito partilha as uma transparência atmosférica
suas experiências, é também uma quase sem limites, em que os mais
narrativa científica. Uma viagem de pequenos pormenores são avistados
exploração que põe a descoberto as com toda a nitidez a muitos
relações com o Outro e entre paisagem e quilómetros de distância, e durante
corpo. meses seguidos não cai nem uma
gota.” (Brito, 1966:18)
As narrativas científicas são
documentos extremamente ricos em
“uma atmosfera quente e muito
informação geográfica, mas também
carregada de humidade,
essenciais para que se compreenda,
profundamente desagradável, e para
através de exercícios de
pessoas sensíveis, mesmo doentia.”
intertextualidade e análise narrativa, não
(ibide:21)
só o sujeito inscrito na obra mas
igualmente os diferentes tipos de A imagem do sujeito colonial é
encontro na viagem e o próprio contexto construída pela paisagem, perpassando
de produção em que a obra se insere. uma ideia de fixidez e rigidez, uma
narrativa de contrastes onde o belo e
Para esse entendimento, é exótico passa a desagradável, através do
imperativo uma análise textual da obra, relato de experiências e sensações
desconstruindo-se o discurso da autora corporais que clima impõe.
para que se perceba os significados
ideológicos por detrás da obra
científica. Isto porque a produção de  Espaço e História: Afirmação
representações discursivas por textos e da Cultura
imagens permitiu cimentar a
colonização ocidental e manter um “Onde se levantava a opulenta
imaginário geográfico que, ao servir cidade, nada mais se vê que denso
propósitos imperialistas, legitimou o palmar. Um pouco mais de um
século chegou para apagar o traço ocidental, sem nunca relatar
de seus esplêndidos palácios e similaridades com um corpo frágil e
inúmeras casas. A ausência de vida silenciado, num regime patriarcal e
e o silêncio impressionante masculinista que quão diferente seria?
sucederam-se ao movimento de A paisagem goesa é espaço de
outrora.” (Brito, 1966:106) diferenciação e representação do outro
feminino, onde o corpo indiano evoca a
“paredes (…) profusamente atenção da autora, num jogo de desejo e
ornamentadas com grandes fantasia que animam as geografias
espelhos, fotografias, imagens imaginárias ocidentais. Um enredo de
religiosas e papeis de cores garridas representações imperiais do Eu e do
com formas caprichosas, como Outro construídos pelo discurso do
tantas vezes se vê nas salinhas de corpo, do lugar e do desejo.
entrada do Alentejo e dos Açores.”
(ibidem:159)  Lusotropicalismo e o Mito do
Império Português
Um discurso de contrastes entre o
novo e o estranho, o exótico e o medo
“[o goês] em muitos traços da
são perceptíveis nas descrições da
sua formação portuguesa recebeu
autora, mas também uma ideia de vazio
(…) o espírito da aventura, a
onde prima o discurso nacionalista na
coragem de deixar a aldeia para
valorização de elementos e da
garantir a prosperidade de sua casa
arquitectura portuguesa.
e a ambição de acabar nela os dias
em que a miséria o ronde” (Brito,
 Diferenciação de Género: a 1966:33)
Mulher e o Orientalismo
“Quantas e quantas vezes, ao
entrar numa casa de brâmanes
“toda a lida caseira,
cristãos ou chardós se tem a
deslocando-se sem cessar, como
sensação nítida de estar numa casa
sombras silenciosas e vigilantes
dos Açores, de Cabo Verde, de São
(…) na vida do dia-a-dia o homem
Tomé ou do Brasil, para não falar já
é que põe e dispõe” (Brito,
das cidadezinhas da província
1966:46)
portuguesa (…) vai desde o estilo
da casa ao seu mobiliário, aos livros
“todos aqueles corpos pequenos
que se encontram nas estantes (…)
e franzinos, graciosamente envoltos
ao trajar, à maneira de comer, ao
em longos saris de cor lisa e suave
jeito delicado e silencioso de as
ou, em contraste com estes,
senhoras abandonarem a sala de
totalmente cheios de desenhos
jantar após a refeição (…)”
policoloridos, lembram, sem
(ibidem:35)
querer, afinado corpo de baile num
palco gigantesco” (ibidem:170) É notório como a autora tenta pôr
diversas teorias ao serviço da sua visão,
O género é escrutinado, tendo em
demonstrando o comprometimento com
conta a visão da mulher europeia sobre
a teoria lusotropicalista. Indo de
a mulher indiana. A demonstração de
encontro à teoria de Freyre, Raquel
pena pelo feminino oriental é parte de
Soeiro de Brito intensifica o poder da
um posicionamento superior da mulher
assimilação e miscigenação portuguesa.
Ao reforçar a marca portuguesa, a marginalização das mulheres e, na pior
autora demonstra a sua implicação no das hipóteses, para a sua total exclusão
vasto projecto imperial, contribuindo das histórias criadas e ensinadas por
para a sua obra para a perpetuação do geógrafos históricos” (1998:405). Em
poder imperial através de um discurso Portugal, deparamo-nos com a
nacionalista subjacente à política inexistência de estudos sobre mulheres
colonial portuguesa. e com a falta de uma historiografia
feminista na e da geografia portuguesa,
em parte porque “a geografia do género
Novos Contributos tem-se mantido bastante marginal e a
A revisão e análise crítica das obras disciplina parece quase ignorar a
coloniais é necessária para a tenacidade dos recentes debates e
desconstrução das representações de desenvolvimentos internacionais (…) os
lugar do Eu e do Outro, para estudos de género nunca sulcaram um
desmistificar o pensamento ocidental e corte significativo na corrente
desmontar e compreender as políticas dominante da geografia portuguesa, e as
de poder imperial. Além disso, pode geografias feministas (…), geografias
conduzir a novos estudos e geografias, do quotidiano ou da masculinidade,
contribuindo grandemente para a estão notoriamente ausentes”
ciência geográfica. (Sarmento, 2008:59)

Um dos tópicos de extrema Somos defrontados com a


importância é a análise do papel das necessidade de explorar o modo como
mulheres na geografia e qual o seu poder e conhecimento são produzidos e
contributo enquanto produtoras de reproduzidos através da diferença, do
conhecimento geográfico. Geógrafas espaço e do patriarcado e de questionar
como Rose & Ogborn (1998) têm o modo como as geografias de género
focado a necessidade de se reconsiderar foram reformuladas em diferentes
as várias vozes marginalizadas na contextos e providenciaram formas para
construção de impérios, como é o caso uma nova historiografia da geografia.
das mulheres. Não esquecendo que a Como podemos dar voz às mulheres e
história tem sido dominada por homens trazer ao de cima as suas visões e
e que a historiografia tem focado os perspectivas de estudo?
seus estudos no indivíduos e grandes No meu caso culminou num
homens, negligenciando contextos doutoramento, ainda em processo, na
sociais e culturais mais abrangentes, Universidade de Sheffield sobre a
Clara Sarmento tem uma posição orientação do Professor Richard Phillips
bastante clara no que se refere à posição e da Professora Gill Valentine intitulado
da mulher no império português: “A “Putting Women in their place:
ausência das mulheres é evidente Contributions to a portuguese
quando se trata de reconhecer, descrever historiography of geography (1929-
e examinar as condições marginais para 1975)” com o intuito de entender como
as quais as mulheres foram relegadas no o género estrutura o acesso ao
império português” (2008:11). conhecimento e à produção de
Neste sentido, Rose & Ogborn conhecimento, o que poderá ter
consideram que na geografia histórica conduzido à marginalização das
tem havido um esquecimento do papel mulheres na geografia portuguesa e
feminino, contribuindo para “a quais as implicações da recuperação do
conhecimento feminino e das suas contribuindo para o crescimento da
histórias para a geografia? disciplina.
A verdade é que, com a excepção
de Suzanne Daveau, quando nos Conclusão
referimos à geografia portuguesa apenas
se ouvem nomes masculinos: Orlando O fraco empreendimento da
Ribeiro, Ilídio do Amaral, Amorim geografia portuguesa em temáticas
Girão, entre outros. Certamente as como o colonialismo e pós-
mulheres contribuíram para que a colonialismo, permite ver como à uma
geografia portuguesa se desenvolvesse e falta de atenção a debates actuais,
introduziram algo de novo, no entanto, necessários para uma melhor
apenas acedemos à versão ‘oficial. compreensão da história da geografia e
Estará a geografia portuguesa com um do próprio passado imperial.
síndrome androcêntrico que não permite
que se desvendem as histórias ‘não – É notório que o estudo destas e
oficiais’? outras temáticas apenas pode trazer
desenvolvimentos positivos para a
Há claramente a necessidade de geografia e permite contribuir para
endereçar a questão da mulher e do novos estudos, tornando a geografia
género na geografia portuguesa bem cada vez mais actualizada e
como criar uma geografia mais especializada. No entanto, ainda se
inclusive de outras vozes. No caso encontra resistência na geografia
feminino, seria necessária uma portuguesa, ainda de cariz muito
geografia feminista que demonstre onde tradicional.
e como as mulheres foram ‘apagadas’
da tradição geográfica. Para que isto Temas como a historiografia
seja possível a geografia portuguesa feminista e geografia de género,
deve ter uma abertura maior a novos encontram-se actualmente ausentes na
temas e debates, escapar da teia da geografia portuguesa, sendo necessário
geografia tradicional vidaliana que uma maior abertura da geografia
ainda impera em Portugal, abrir novos portuguesa e a introdução de novas
horizontes de investigação, implementar conceitos e áreas para que se
e ensinar novas geografias bem como complemente a história da geografia e
incorporar as geografias de género e se dê voz ao marginalizados na
feministas no seu curriculum. produção de conhecimento científico.
Apenas assim será viável uma mudança
O resultado será certamente a positiva e inclusiva.
exposição da produção de conhecimento
‘oficial’ e androcêntrico, a
destabilização das representações
Bibliografia
tradicionais da geografia académica
portuguesa e a identificação das - Brito, R. S. (1966) Goa e as Pracas
contribuições feitas por mulheres do Norte. Lisboa. Junta de
geógrafas. Para a geografia portuguesa Investigacoes Ultramarinas.
será um passo importante para estar ao
nível da geografia internacional, - Pimenta J. R.; Sarmento, J. and
actualizando-se, chamando a atenção Azevedo, A.F. (2007) Geografias Pós-
para novas temáticas e debates e Coloniais. Porto, Edições Figueirinhas
- Rose, G. & Ogborn, M. (1988) Tese de Mestrado. Universidade do
‘Feminism and historical geography’. Minho
Journal of Historical Geography 14:4
pp. 405-409. - Sarmento, C. (2008) Women in the
Portuguese Colonial Empire: The
- Rodrigues, M. (2001) – “Goa e as Theatre of Shadows. Cambridge
Praças do Norte – Análise Crítica de Scholars Publishing
uma obra e de um percurso no âmbito
da Geografia Colonial Portuguesa” – - Sarmento, J. (2008) “Searching for
cultural geography in Portugal”. Social
& Cultural Geography, 9:5, pp.573-600

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