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INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Docentes:Marina F. R. Ribeiro;
Daniel Kuperman;
São Paulo
2023
Identificação Projetiva
A identificação projetiva pode ser compreendida como uma fantasia inconsciente entre analista e
analisando, podendo ter um caráter mais agressivo e expulsivo, portanto defensivo; ou um caráter mais
comunicativo, sendo os mecanismo de cisão e projeção, em intensidades diversas, estão sempre
implicados.
A obra escolhida para servir como base da utilização do conceito Kleiniano foi a Série
Americana de Televisão “You” (“Você"), lançada no ano de 2018. A série retrata a vida de
um homem solteiro, chamado Joe Goldberg, que viveu anos em um orfanato após atirar em
seu pai com uma arma de fogo. A trama desenvolve o personagem, e revela aos poucos os
conflitos internos que ele vivencia e a forma como ele os transfere para a realidade, através
de relações amorosas idealizadas, perseguições e assassinatos. Cabe ressaltar que por se tratar
de uma série televisiva e não de um caso clínico os conceitos kleinianos estão sujeitos a
interpretações plausíveis, porém fora de seu contexto usual, a clínica psicanalítica.
Na situação a qual Joe se encontrava quando criança, sua mãe era agredida
constantemente por seu pai, o que, ao invés de proporcionar uma identificação saudável com
o pai, fator esse que contribui para a instauração do ideal do Eu, ou Superego (como
idealizado pelo Complexo de Édipo), levou a um direcionamento de ódio para a figura
paterna, resultando no ato de atirar em seu pai com uma arma. Sob essa perspectiva, o
protagonista teve que viver com a situação traumática de assassinar seu próprio pai por volta
dos 6 anos de idade e de ter sido abandonado por sua mãe, a qual ele buscou defender, sendo
deixado num orfanato.
Segundo Bion, o analista ou a mãe (nos primórdios da infância) precisa ter condições
psíquicas para tolerar ser o depositário das partes indesejadas ou valorosas do
analisando/filho e ser continente para as angústias do paciente/filho. Seguindo tal concepção,
no caso de Joe, protagonista da série, sua mãe não teve propensão para lidar com as angústias
vividas pelo filho, tanto no que diz respeito às fantasias inconscientes de agressividade e de
ódio em relação ao pai, quanto na concretização do ato de homicídio. Por conta dessa
“rejeição”, a principal relação intersubjetiva de uma criança, a com sua mãe, se mostrou
debilitada, e os mecanismos de defesa atuantes na realidade psíquica de Joe se estruturam de
uma forma aquém da normalidade, uma vez que, nos eventos traumáticos por ele
experienciados, a culpa se tornou muito intensa para ser interpretada.
O protagonista passa a ver as figuras femininas com as quais manifesta interesse
amoroso como pessoas inocentes, necessitadas de proteção e de amparo, os quais somente ele
seria capaz de fornecer. A todo momento Joe afirma saber o que a pessoa almeja, pois afirma
serem parecidos, e por conta disso, partilham das mesmas ambições.
À medida que Joe se apaixona, o mundo fica cindido entre o bom e o mau em uma
esfera interpessoal, como é o caso de Genevieve Beck, na primeira temporada. A descrição
que Joe faz de Beck exemplifica bem essa cisão, uma vez que todas as ações tidas por Beck,
desde o livros que ela lê, até a forma como mexe em seu cabelo são tidos como “atraentes”,
“encantadores”, ou seja, ele passa a enxergar um mundo de qualidades afloradas na figura
individual.
Em contrapartida, qualquer ato ou comportamento que seria repudiado por Joe em
qualquer outra situação com outra pessoa, é amenizado ou atenuado quando se trata da figura
amorosa. Sendo assim, tal figura encarna o objeto bom, e o mundo à sua volta que aparece
como obstáculo na união do protagonista com a figura amada - amigas, ex-namorados,
empregos - são tidos como o objeto mau, persecutório, os quais Joe faz de tudo para se livrar
de.
Nesse sentido, por conta da incapacidade de reconhecer o bom e o mau dentro de si
mesmo, Joe realiza no decorrer da primeira temporada identificações projetivas em excesso,
de forma a projetar em seu objeto amoroso sua parte tida como boa, ou seja, seus interesses
mais inofensivos, suas ambições e idealizações sobre a vida, o que faz com que essas figuras
amorosas correspondam à essas projeções à medida que entram em contato com as
indagações de Joe. Nesse sentido, tal mecanismo vai além de uma projeção, e passa a colocar
os caracteres acima destacados “dentro” das personagens, alterando a forma como elas se
enxergam e se sentem diante do protagonista, atuando inclusive como uma forma de controle
de Joe sobre suas “vítimas”.
Toda e qualquer experiência vivenciada na série em relação à figura amorosa de Joe é
tida como direcionada à ele, uma vez que o personagem altera a realidade e a racionalidade
dos fatos em sua narração ao longo da série com o intuito de direcionar os anseios da figura
amorosa e seus comportamentos, e fazê-los convergir em si. Isso indica uma confluência
entre self e objeto, já que o protagonista apresenta dificuldade em diferenciar os
comportamentos e decisões do objeto amoroso que são fruto de vontade e de interesses
próprios e aqueles que são direcionados à ele. Segundo a Teoria Kleiniana:
“Como Ogden (1990) nota, sob condições otimizadas, o recipiente da projeção pode
reprocessar o sentimento evocado e então retorná-lo para o aquele que projeta numa
forma mais manejável por este, uma forma comunicativa.” (Clarke, S. 2002, p. 21)
“É enfim um mecanismo de defesa primitivo que tenta aniquilar toda e qualquer forma de
desamparo, e a própria realidade psíquica, quanto aos seus aspectos violentos e
assustadores” (p. 125)
Ademais, sob uma visão de Bion, todo esse processo leva a uma maior distorção da
percepção do mundo externo e interno, e a recusa de tais realidades traz alívio imediato.
Assim, o mesmo olhar de necessidade, de boa ação e de “prova de amor” que Joe tinha para
com os assassinatos cometidos por ele, não eram cabíveis aos atos cometidos por sua esposa,
a qual encarnava agora os aspectos negativos de um homicida, os quais Joe nunca fora capaz
de admitir em si, mas era capaz de observar e acusar em Love.
Percebe-se, portanto, que o protagonista peca em alcançar ao longo da série um
equilíbrio entre a expulsão de aspectos bons e maus de seu self, o que é tido como essencial
para o desenvolvimento de relações objetais saudáveis. Assim, uma visão tal como a descrita,
diminuiria a discrepância entre os mundos interno e externo do protagonista, promovendo um
ego mais integrado, e possibilitando uma visão dos objetos como pessoas, nas quais o bom e
o mau coexistem, assim como ocorre no seu próprio psiquismo.
Referências