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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Briza Aiki Matsumura (nºusp 12608601)


Ricardo Maggessi dos Santos ( nºusp 13670124)
David da Silva Ferreira (nºusp 10263055)

Trabalho Módulo I - Disciplina PSC 1423


- Psicanálise: Klein, Bion e Winnicott

Docentes:Marina F. R. Ribeiro;
Daniel Kuperman;

São Paulo
2023
Identificação Projetiva

A Identificação projetiva é um mecanismo de defesa que foi descrito por Melanie


Klein em 1946 ante as angústias esquizoparanóides. Uma forma específica de identificação
que tem um caráter de expulsão violenta de parte do self para dentro do objeto. É um conceito
teórico kleiniano para a tendência a livrar-se de tudo o que é agressivo e assustador. Enquanto
na identificação projetiva com predomínio dos aspectos agressivos e expulsivos prevalece um
funcionamento psicótico, na identificação projetiva na qual sobressaem os aspectos
comunicativos estamos diante de um funcionamento não psicótico.

A identificação projetiva pode ser compreendida como uma fantasia inconsciente entre analista e
analisando, podendo ter um caráter mais agressivo e expulsivo, portanto defensivo; ou um caráter mais
comunicativo, sendo os mecanismo de cisão e projeção, em intensidades diversas, estão sempre
implicados.

Segundo Bion, a identificação projetiva é entendida como uma ligação, com um


caráter comunicativo, sendo que as qualidades psíquicas (referente, a conter as angústias do
bebê e do paciente) da mente da mãe e do analista são consideradas. Essa é uma compreensão
que expande o conceito anteriormente estabelecido por Klein. “A identificação projetiva
passa a ser compreendida como um elo de ligação primordial entre bebê e mãe, e entre
analista e paciente.” (p. 122, CINTRA, S; RIBEIRO, M. Por que Klein?. (1a ed.). Zagodoni).
Enquanto em Klein a identificação projetiva predominava os aspectos relacionados ao mundo
interno, do intrapsíquico, em Bion, o conceito passa a pertencer ao campo interpessoal do
sujeito.
Em 1959, Klein afirma que a empatia seria uma forma benigna da identificação
projetiva, envolvendo o “colocar-se no lugar do outro” diferindo das formas patológicas da
identificação projetiva. Neste sentido, a atitude empática do analista é necessária para lidar
com o “material explosivo” da ansiedade do paciente, necessitando ser administrada em
pequenas quantidades.
Apresenta-se também o conceito rêverie (função materna, e também uma função
psicanalítica) que designa um estado de abertura para receber as emoções e as projeções que
são provindas do bebê e/ou também do paciente. Através da capacidade empática do analista
para a sintonizar-se com os aspectos ainda não simbolizados do paciente, a experiência
rêverie oferece um grande alívio ao paciente, que se constrói por meio de identificações
projetivas entre paciente e analista, de forma que ambos possam compreender o que se passa
no campo da experiência emocional da sessão. Através do nosso exemplo (série - You)
buscamos interpretar como esses conceitos se manifestam.
Série - You

A obra escolhida para servir como base da utilização do conceito Kleiniano foi a Série
Americana de Televisão “You” (“Você"), lançada no ano de 2018. A série retrata a vida de
um homem solteiro, chamado Joe Goldberg, que viveu anos em um orfanato após atirar em
seu pai com uma arma de fogo. A trama desenvolve o personagem, e revela aos poucos os
conflitos internos que ele vivencia e a forma como ele os transfere para a realidade, através
de relações amorosas idealizadas, perseguições e assassinatos. Cabe ressaltar que por se tratar
de uma série televisiva e não de um caso clínico os conceitos kleinianos estão sujeitos a
interpretações plausíveis, porém fora de seu contexto usual, a clínica psicanalítica.
Na situação a qual Joe se encontrava quando criança, sua mãe era agredida
constantemente por seu pai, o que, ao invés de proporcionar uma identificação saudável com
o pai, fator esse que contribui para a instauração do ideal do Eu, ou Superego (como
idealizado pelo Complexo de Édipo), levou a um direcionamento de ódio para a figura
paterna, resultando no ato de atirar em seu pai com uma arma. Sob essa perspectiva, o
protagonista teve que viver com a situação traumática de assassinar seu próprio pai por volta
dos 6 anos de idade e de ter sido abandonado por sua mãe, a qual ele buscou defender, sendo
deixado num orfanato.
Segundo Bion, o analista ou a mãe (nos primórdios da infância) precisa ter condições
psíquicas para tolerar ser o depositário das partes indesejadas ou valorosas do
analisando/filho e ser continente para as angústias do paciente/filho. Seguindo tal concepção,
no caso de Joe, protagonista da série, sua mãe não teve propensão para lidar com as angústias
vividas pelo filho, tanto no que diz respeito às fantasias inconscientes de agressividade e de
ódio em relação ao pai, quanto na concretização do ato de homicídio. Por conta dessa
“rejeição”, a principal relação intersubjetiva de uma criança, a com sua mãe, se mostrou
debilitada, e os mecanismos de defesa atuantes na realidade psíquica de Joe se estruturam de
uma forma aquém da normalidade, uma vez que, nos eventos traumáticos por ele
experienciados, a culpa se tornou muito intensa para ser interpretada.
O protagonista passa a ver as figuras femininas com as quais manifesta interesse
amoroso como pessoas inocentes, necessitadas de proteção e de amparo, os quais somente ele
seria capaz de fornecer. A todo momento Joe afirma saber o que a pessoa almeja, pois afirma
serem parecidos, e por conta disso, partilham das mesmas ambições.
À medida que Joe se apaixona, o mundo fica cindido entre o bom e o mau em uma
esfera interpessoal, como é o caso de Genevieve Beck, na primeira temporada. A descrição
que Joe faz de Beck exemplifica bem essa cisão, uma vez que todas as ações tidas por Beck,
desde o livros que ela lê, até a forma como mexe em seu cabelo são tidos como “atraentes”,
“encantadores”, ou seja, ele passa a enxergar um mundo de qualidades afloradas na figura
individual.
Em contrapartida, qualquer ato ou comportamento que seria repudiado por Joe em
qualquer outra situação com outra pessoa, é amenizado ou atenuado quando se trata da figura
amorosa. Sendo assim, tal figura encarna o objeto bom, e o mundo à sua volta que aparece
como obstáculo na união do protagonista com a figura amada - amigas, ex-namorados,
empregos - são tidos como o objeto mau, persecutório, os quais Joe faz de tudo para se livrar
de.
Nesse sentido, por conta da incapacidade de reconhecer o bom e o mau dentro de si
mesmo, Joe realiza no decorrer da primeira temporada identificações projetivas em excesso,
de forma a projetar em seu objeto amoroso sua parte tida como boa, ou seja, seus interesses
mais inofensivos, suas ambições e idealizações sobre a vida, o que faz com que essas figuras
amorosas correspondam à essas projeções à medida que entram em contato com as
indagações de Joe. Nesse sentido, tal mecanismo vai além de uma projeção, e passa a colocar
os caracteres acima destacados “dentro” das personagens, alterando a forma como elas se
enxergam e se sentem diante do protagonista, atuando inclusive como uma forma de controle
de Joe sobre suas “vítimas”.
Toda e qualquer experiência vivenciada na série em relação à figura amorosa de Joe é
tida como direcionada à ele, uma vez que o personagem altera a realidade e a racionalidade
dos fatos em sua narração ao longo da série com o intuito de direcionar os anseios da figura
amorosa e seus comportamentos, e fazê-los convergir em si. Isso indica uma confluência
entre self e objeto, já que o protagonista apresenta dificuldade em diferenciar os
comportamentos e decisões do objeto amoroso que são fruto de vontade e de interesses
próprios e aqueles que são direcionados à ele. Segundo a Teoria Kleiniana:

“[...] quando a projeção de partes boas é demasiada, a mãe (e posteriormente outras


pessoas) pode tornar-se o ideal do ego, favorecendo relações de dependência extrema e
um empobrecimento do ego, pois os aspectos bons são todos atribuídos a um outro e não
podem ser assimilados pelo ego.” (Cintra, E. Ribeiro, M. 2018, pg. 120)
Levando em conta a constatação acima, o ego de Joe se mostrava diretamente
dependente do seu objeto amoroso, já que, uma vez iniciada a relação com tal objeto, a vida
de Joe, assim como seus sentimentos e propósitos, era vivida em função da pessoa amada. Tal
dependência tornou-se instável quando Beck, a mulher amada pelo protagonista na primeira
temporada, descobre os “atos de amor” cometidos por Joe (assassinatos de pessoas próximas
à ela a fim de evitar intervenções indesejadas no relacionamento) e o confronta, o chama de
“monstro”, “assassino”, dentre outras designações. Nesse caso, todo o processo de
identificação projetiva demasiadamente boa cai por terra, e o protagonista entra em contato
com suas partes más, que foram verbalizadas pela pessoa amada, e no impulso de rejeitar tais
características, e falhando em convencer Beck de que ele não era essa pessoa “horrível”,
restou apenas o assassinato como última opção, pondo fim ao seu objeto amoroso.
A passagem de uma identificação projetiva em excesso, que projeta de forma
demasiada as partes boas, para uma identificação projetiva em excesso, que projeta de forma
demasiada as partes más de Joe, na trama, deu-se por meio do contato inicial do protagonista
Joe Goldberg com a coadjuvante da 3ª temporada Love Queen.
Love demonstrou empatia e serviu como ponto de deposição das partes mais aversivas
e das partes mais bem vistas de Joe. Sendo assim, por meio de conversas e encontros ao
longo da temporada, Joe foi capaz de amá-la e de ser compreendido, até mesmo em suas
piores versões, algo que até então ninguém havia se disponibilizado a fazer. Sob essa
perspectiva, agora que Joe pode dispôr de uma figura com condições psíquicas de tolerar ser
depositários de suas angústias (Love), os aspectos projetados por ele puderam se inserir
melhor no campo do simbólico, o que aumentou suas propensões de tornarem-se uma
comunicação. Assim, um bom trecho que reforça tal aspecto teórico é:

“Como Ogden (1990) nota, sob condições otimizadas, o recipiente da projeção pode
reprocessar o sentimento evocado e então retorná-lo para o aquele que projeta numa
forma mais manejável por este, uma forma comunicativa.” (Clarke, S. 2002, p. 21)

Entretanto, na temporada seguinte, ambos realizam um acordo de não cometer mais


assassinatos e se mudam para uma vizinhança tranquila e familiar. No decorrer da série Love
rompe com o acordo, e durante um ataque de raiva acaba por matar a vizinha de sua casa. É
desse exato ponto da trama em diante, quando Joe descobre que Love não fora capaz de
controlar seus impulsos homicidas, que Joe volta a negar em si suas tendências e pulsões de
agressividade para com o próximo, e projeta tudo isso que não suporta ver dentro de si para
sua esposa Love, tornando-a, aos seus olhos, a “vilã” da série.
Sendo assim, o protagonista passa a desenvolver um certo “medo” de que sua esposa
revolte-se contra ele e a enxerga como uma assassina perigosa. Porém, ele insiste em negar a
realidade, na qual sua esposa, Love, é sua semelhante, e fez nada mais que um ato já
realizado por Joe inúmeras vezes.
Quando confrontado por Love acerca de suas identificações projetivas, ou seja, suas
insinuações de que Love é uma “assassina”, “descontrolada”, “instável”, Joe é incapaz de
reconhecer essas características como também constituintes da sua realidade psíquica. Ao ser
colocado a prova, em um certo momento em que Love coloca para ele os diversos
assassinatos que ele havia cometido, Joe não reconhece que os assassinatos cometidos por ele
e por sua esposa são equiparáveis, afirmando que em todos os casos em que cometeu o ato
era “a única opção” ou “por um bem maior”. De acordo com Elisa Cintra e Marina Ribeiro no
Livro “Porque Klein?”, a identificação projetiva excessiva:

“É enfim um mecanismo de defesa primitivo que tenta aniquilar toda e qualquer forma de
desamparo, e a própria realidade psíquica, quanto aos seus aspectos violentos e
assustadores” (p. 125)

Ademais, sob uma visão de Bion, todo esse processo leva a uma maior distorção da
percepção do mundo externo e interno, e a recusa de tais realidades traz alívio imediato.
Assim, o mesmo olhar de necessidade, de boa ação e de “prova de amor” que Joe tinha para
com os assassinatos cometidos por ele, não eram cabíveis aos atos cometidos por sua esposa,
a qual encarnava agora os aspectos negativos de um homicida, os quais Joe nunca fora capaz
de admitir em si, mas era capaz de observar e acusar em Love.
Percebe-se, portanto, que o protagonista peca em alcançar ao longo da série um
equilíbrio entre a expulsão de aspectos bons e maus de seu self, o que é tido como essencial
para o desenvolvimento de relações objetais saudáveis. Assim, uma visão tal como a descrita,
diminuiria a discrepância entre os mundos interno e externo do protagonista, promovendo um
ego mais integrado, e possibilitando uma visão dos objetos como pessoas, nas quais o bom e
o mau coexistem, assim como ocorre no seu próprio psiquismo.
Referências

CLARKE, S. IDENTIFICAÇÃO PROJETIVA: DO ATAQUE A EMPATIA. Nuances: Estudos


sobre Educação, Presidente Prudente, v. 8, n. 8, 2010. DOI: 10.14572/nuances.v8i8.196.
Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/Nuances/article/view/196. Acesso em:
18 nov. 2023.

CINTRA, S; RIBEIRO, M. Por que Klein?. (1a ed.). Zagodoni

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