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Conceição A. M. Segre*
INTRODUÇÃO
No entanto há diferentes graus de intensidade com que o álcool ingerido pela gestante pode
lesar o feto, desde a forma mais grave que é a SAF, até formas mais específicas, como
distúrbios do neurodesenvolvimento ou defeitos congênitos, constituindo o chamado
“espectro de alterações fetais devidas ao álcool”, ou fetal alcohol spectrum disorders - FASD,
na sua sigla em inglês.
O espectro de alterações fetais devidas ao álcool é definido, segundo o Centers for Disease
Control and Prevention (CDC) americano, como sendo um grupo de condições físicas,
comportamentais e de aprendizado que pode ocorrer em pessoas que foram expostas ao
álcool durante a gestação (2). Efetivamente, vale salientar que FASD não é um diagnóstico,
mas um termo “guarda-chuva” que engloba várias entidades: a SAF, a SAF parcial, os distúrbios
do neurodesenvolvimento e os defeitos congênitos ligados ao álcool.
Considerando-se os efeitos do álcool na mulher pode-se verificar que são diversos daqueles
apresentados pelo homem, para quantidades equivalentes de álcool ingeridas por ambos, pois
a biodisponibilidade do álcool na mulher é maior que no homem em função de (3):
Por outro lado, a diferença quantitativa e qualitativa entre as enzimas fetais e maternas que
metabolizam o álcool, ao lado do fato do feto eliminar o álcool para o líquido amniótico, fazem
com que fique submetido à uma ação muito prolongada do álcool (1,3).
*Livre docente em Pediatria Neonatal pela Escola Paulista de Medicina. Membro da Academia
Brasileira de Pediatria. Membro da Academia de Medicina de São Paulo. Coordenadora do
Grupo #álcool e gravidez da Sociedade de Pediatria de São Paulo e da campanha #gravidez
sem álcool da Sociedade Brasileira de Pediatria.
O álcool atua como agente teratogênico por meio de vários mecanismos (1):
No entanto, ainda são identificados outros fatores de risco como: influências genéticas; estado
nutricional materno; fatores demográficos e o estilo de vida; saúde mental e fatores
psicológicos; padrões de consumo de álcool; e uso de outras drogas (4).
PAPEL DO PAI
O papel paterno tem sido muito pouco estudado. Trabalhos experimentais recentes concluem
que a ingestão paterna de álcool afeta a expressão cerebral do fator de crescimento nervoso e
do fator neuro trófico derivado do cérebro (5). Zuccolo et al. (6), em publicação de 2016,
encontraram associação entre alcoolismo paterno anterior à gestação atual e microcefalia
fetal.
A GESTANTE
A definição de exposição pré-natal da gestante ao álcool, segundo Hoyme et al. (7), engloba os
seguintes parâmetros:
Nos Estados Unidos, de acordo com o Centers for Disease Control and Prevention (8), a
percentagem de mulheres grávidas que consumem álcool aumentou de 7,6% em 2012 para
10,2% em 2015 e o número de mulheres que reportaram embriagues aguda (“binge drinking”)
ou ingestão de uma só vez de quatro ou mais “drinks”, que era de 1,4% em 2012 aumentou
para 3,1% em 2015.
Em 2017, a prevalência global do uso de álcool durante a gravidez foi estimada por Popova et
al. (9) em 9·8% (95% CI 8·9-11·1) e em 15.2% (95%CI) para o Brasil. Esses mesmos autores
concluem que 1 em cada 67 mulheres que consumiu álcool durante a gestação, no mundo,
dará à luz um filho com síndrome alcoólica fetal, o que corresponderia ao nascimento anual de
119.000 crianças afetadas (9).
Pesquisa realizada em maternidade de periferia da cidade de São Paulo identificou que entre
1964 gestantes 33,3% ingeriam alguma quantidade de álcool durante a gestação e 21,4% o
faziam até o final do período gestacional (10).
*drink = medida de qualquer bebida que contenha 14g de álcool puro. National Institute of
Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA) [homepage on the Internet]. Overview of alcohol
consumption [cited 2020 Feb 3]. Disponível em: www.niaaa.nih.gov/alcohol-health.
Não é fácil avaliar o consumo de álcool durante a gestação, seja pela omissão ou negação
desse hábito que, muitas vezes, não é sequer averiguado durante as consultas de pré-natal.
Para tanto poderia se recorrer a marcadores indiretos como transaminases, gama GT, VCM,
porém, embora traduzindo comprometimento hepático, não são específicos. Ou ainda
marcadores de exposição: acetaldeído, transferrina deficiente em carboidratos que poderiam
ser valorizados somente para cifras muito elevadas, ou a alcoolemia, que não avalia exposição
no longo prazo (4).
Um deles, o T-ACE foi proposto e validado especificamente para ser utilizado em obstetrícia e
tem sido largamente empregado (quadro 1). Tem a vantagem de ser de aplicação rápida.
Tratamento
Como não se conhece um nível seguro de alcoolemia, abaixo do qual não ocorram
manifestações de fetopatia alcoólica (8) a recomendação é de tolerância ZERO para álcool
durante a gravidez.
Mesmo a ingestão moderada de bebida alcoólica durante a gestação leva a risco, como
prematuridade, baixo peso ao nascer e asfixia neonatal (15,16).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) (17) publicou em 2014 uma série de recomendações à
equipe de saúde:
• a equipe de saúde deve perguntar a todas as gestantes sobre o uso de álcool e outras
drogas (presente e passado) tão logo quanto possível e a cada consulta pré-natal;
• a equipe de saúde deve, na primeira oportunidade, aconselhar a gestante dependente
a cessar o hábito e de oferecer serviços de desintoxicação sob supervisão médica;
• como a eficácia do tratamento para dependência do álcool não tem segurança
garantida, uma análise individual caso-a-caso de risco-benefício deve ser conduzida;
• mulheres em aleitamento materno devem ser aconselhadas e apoiadas a cessar o
hábito.
O FETO
Os principais locais onde ocorrem as lesões são: cerebelo (hipoplasia), corpo caloso
(alteração da forma, tamanho ou até agenesia), diminuição do volume dos gânglios da
base, córtex, hipotálamo, tálamo, hipocampo e área septal, sendo que as primeiras
cinco semanas constituem o período de maior risco (19). Essas alterações se traduzem
clinicamente como microencefalia e microcefalia (19,20).
Por outro lado, o tipo e gravidade dos defeitos congênitos induzidos pela exposição
pré-natal ao álcool são largamente dependentes do padrão de exposição, da dose, e do
estágio de desenvolvimento do embrião ou do feto no momento da exposição (21).
O RECÉM-NASCIDO
Prevalência
A prevalência estimada de SAF na população geral, segundo referem Lange et al. (21)
em estudo de metanálise publicado em 2017 é de 7,7/1000 habitantes, apresentando
contudo grandes variações de país a país, ou taxas maiores que aquelas globais entre
populações específicas (indígenas, crianças institucionalizadas, população carcerária,
população de baixo nível socioeconômico e população sob cuidados psiquiátricos).
Para a região das Américas em geral a taxa relatada é de 8,8/1000 habitantes. No caso
específico do Brasil, não há dados oficiais.
Quadro clínico
Outras malformações faciais são também assinaladas como fronte estreita, hipoplasia
hemifacial, hipotelorismo ou hipertelorismo, hipoplasia maxilar e mandibular,
prognatismo, ptose palpebral, prega epicantal, nariz pequeno e antevertido, ponte
nasal larga e rebaixada, palato em ogiva, aplasia de úvula, hipoplasia de esmalte,
dentes pequenos, má oclusão dentária, fenda labial e/ou palatina, micrognatia e
orelhas em abano, mal posicionadas e malformadas (21).
2 - A deficiência de crescimento implica no peso ao nascer abaixo do percentil 10 da
curva de crescimento intrauterino, comprimento ao nascer abaixo do 10º. percentil da
curva de crescimento e índice de massa corpórea também abaixo do percentil 10 (21).
3 - A identificação do comprometimento neurológico no período neonatal baseia-se
principalmente na ocorrência de perímetro cefálico inferior ao percentil 10 e presença
de anomalias estruturais do cérebro (25). Dentre estas, pode-se encontrar hipoplasia
até agenesia do corpo caloso que é descrita como uma das anomalias do SNC mais
frequentes (26). Essa ausência leva desde a inexistência de sintomas até quadros de
deficiência mental de graus variados, convulsões e déficits motores.
Na criança maior verifica-se envolvimento cognitivo, que pode variar desde grave
comprometimento intelectual (QI<70) a déficits selecionados, como o déficit de atenção e
hiperatividade (presente em 50% a 80% dos casos), déficit de funções executivas, de memória,
habilidade visual-motora diminuída e pobre performance acadêmica (27-29). São frequentes
os problemas no aprendizado de matemática, atrasos na linguagem e motricidade,
dificuldades de integração social e comunicação, e risco aumentado de doenças psiquiátricas
na vida adulta, problemas com a lei, abuso de álcool e uso de drogas ilícitas (27). Uma alta taxa
de autismo, bem acima daquela esperada, é também observada (30).
Diagnóstico
O diagnóstico de FASD não é fácil. Por um lado, as dismorfias faciais vão esmaecendo
com os passar dos anos e, por outro, as equipes de saúde não estão preparadas para
identificar os casos. Além do mais requer uma equipe multidisciplinar e tem início com
a história materna aonde vai se buscar a informação sobre a ingestão de bebida
alcoólica, que pode ser obtida da gestante por meio de questões diretas sobre esse
hábito ou utilizando-se questionários validados, como por exemplo o T-ACE (11),
conforme anteriormente referido.
O diagnóstico deve ser o mais precoce possível, caso contrário será negado ao
portador de FASD o acesso a serviços especializados, ao tratamento adequado e à
reabilitação.
No período neonatal, o diagnóstico é realizado por meio de critérios clínicos, dados de
neurimagem e exames laboratoriais (pesquisa dos FAEEs) no mecônio, ou cabelo do recém-
nascido.
foram descartadas)
D. Alterações neurocomportamentais:
OU
B. Alterações neurocomportamentais:
OU
Para crianças sem exposição prévia ao álcool documentada, o diagnóstico de PFAS requer
todas as características de A-C:
OU
C. Alterações neurocomportamentais:
OU
Requer as características A e B (esse diagnóstico não pode ser feito de forma definitiva em
crianças menores de três anos de idade):
B. Alterações neurocomportamentais:
OU
Requer características A e B
Diagnóstico diferencial
Tratamento
Tratamento curativo não há, mas o reconhecimento precoce das ações do álcool permite a
possibilidade de reabilitação e melhora do prognóstico (30).
Atualmente algumas opções têm sido exploradas na fase pré-natal com o objetivo de proteger
o feto dos agravos do álcool, como administração de antioxidantes (vitaminas C, E),
suplementos alimentares como ácido fólico, colina, peptídeos neuroativos e fatores de
crescimento neurotróficos (35) cujos resultados ainda não estão consolidados.
O tratamento pós natal é principalmente voltado às lesões cerebrais pois considera-se que
FASD é principalmente um distúrbio causado por esse dano e os achados clínicos são as
consequências dessa disfunção cerebral.
O tratamento demanda, portanto, uma série de intervenções, que podem ser ou não
medicamentosas.
O tratamento dos indivíduos acometidos por FASD é para toda a vida e deve contar com o
envolvimento da família e de toda a equipe de saúde.
Lactação
O álcool é transferido para o leite materno em 30-60 minutos após a ingestão, atingindo níveis
semelhantes aos do soro materno. O álcool não é galactagogo e seu uso reduz a duração da
amamentação (41,42).
O tempo médio para que o leite materno possa zerar a presença de álcool após a ingestão de
um “drink” padrão é de aproximadamente 3 horas (175 minutos) (43).
A exposição de crianças ao álcool através do leite materno pode causar diminuição dose-
dependente em suas habilidades cognitivas (45).
O CDC americano recomenda que a abstinência de álcool durante a lactação é a melhor opção
para mães que amamentam (46). De acordo com a Academia Americana de Pediatria
(American Academy of Pediatrics) o aleitamento materno é permitido, aparentemente
dependendo da dose diária de álcool ingerida (44).
Seguimento
Crianças com FASD apresentam maior número de internações hospitalares e maior tempo de
internação que controles não portadores de FASD. Os problemas mais encontrados são: otite
média, pneumonia, desidratação, anemia, falência de crescimento, abuso sexual, problemas
com alimentação, gastroenterite e bronquite (48).
Pouco se conhece a respeito do futuro de indivíduos acometidos além dos 30 anos de idade.
Modelos animas sugerem que estejam mais sujeitos a apresentarem doenças autoimunes,
diabetes, hipertensão e câncer. Em adultos com FASD, além do alto risco de distúrbios
psiquiátricos e de personalidade, também ocorrem com grande frequência problemas com
interrupção escolar (61%), dificuldades com a lei (60)%, aprisionamento (50%), conduta sexual
inapropriada (49%), uso de álcool e drogas ilícitas (35%) (47).
Custos
Os custos que a ocorrência de FASD traz para a sociedade são elevados, não apenas pela sua
alta prevalência como também aqueles devidos à falta de produtividade dos indivíduos
afetados, além do incalculável sofrimento familiar. Nos Estados Unidos da
América do Norte variou de USD $74,6 milhões em 1984 a USD $4 bilhões em 1998. No Canadá
o custo anual estimado foi de USC$ 5,3 bilhões em 2007 (50).
No Brasil, como não temos dados a respeito da afecção, quanto à prevalência, a cuidados e
consequências, não temos dados referentes a custos.
Mortalidade
Indivíduos portadores de FASD têm nove vezes mais o risco de morte do que outros não
afetados da mesma idade e que quase metade de todas essas mortes ocorre entre jovens
adultos (53).
A expectativa de vida para indivíduos com SAF completa é de 34 anos. As principais causas de
morte são: suicídio, acidentes, uso de drogas ilegais ou álcool, doenças dos sistemas
respiratório, nervoso, circulatório e digestivo, mal formações congênitas, distúrbios
comportamentais e mentais (54).
Prevenção
Conclusões
A razão fundamental para o estudo dos efeitos do álcool no feto e no recém-nascido reside no
fato de se tratar de entidade totalmente prevenível. Qualquer quantidade de álcool ingerida
em qualquer período da gestação pode ser lesiva ao feto.
A abstinência do álcool durante a gravidez e para mulheres que desejam engravidar previne o
aparecimento de novos casos da entidade.
RECOMENDAÇÕES
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