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RACISTAS SÃO OS OUTROS: 10 reflexões

Resolvi abrir o debate sobre este tema. Estou há quatro meses na Argentina e este tema sobre
raça, aqui, tem me instigado muito. Com a chegada da Copa do Mundo e o tri campeonato
argentino, o tema se intensificou. O Twitter, o Instagram, o Facebook, posicionamento de
historiadores, as conversas com o Gui e os áudios de minha amiga Marcella me incentivaram a
escrever. Não estamos na era de textos longos, mas é a forma que encontrei de registrar a
imensidão que percebo sobre este tema. Em linhas gerais, vejo como uma cortina de fumaça o
tema do racismo na Argentina e separei alguns pontos de minha reflexão.

1. Quando brasileiros e brasileiras dizem que a Argentina é racista pela forma como os
argentinos manifestam seu racismo, cria-se uma ideia de que o brasileiro não é racista.
Racistas são os outros... Não se diz “os argentinos também são racistas”. O também faz
a diferença. Por exemplo, os brasileiros têm vinculado imagens de Mbappé a fim de
valorizar seu órgão genital. Esse é o jeito brasileiro de sexualizar a população negra e
perpetuar o racismo. Nesse ponto, vale ouvir o podcast “Mano a Mano” com Sueli
Carneiro e também o que Salloma Salomão e Katiuscia Ribeiro foram convidados, e o
livro O Pacto da Branquitude, de Cida Bento.
2. Há, neste tema, uma confusão entre história e memória. Há histórias que não têm
memórias, e há memórias que não tiveram história. A memória é dinâmica, fluida e
seletiva; obedece a interesses de grupos. A História, aqui, se refere ao campo científico
do conhecimento, pautado em regras, códigos do campo e práticas de pesquisa. Por
exemplo: não ter uma produção de conhecimento e narrativas sobre mulheres não
significa que elas não foram parte dos eventos históricos.
3. O capitalismo é racista. Essa coisa de disputar quem é mais racista é cair no conto do
vigário. Cada sociedade criou, e cria, estruturas de perseguição, morte e segregação de
sua população negra. A exploração é a regra, e toda exceção confirma a regra. A artista
pop negra não poupa o projeto de morte da juventude negra. Há um valor inegável
para representatividade e empoderamento, mas o projeto racista segue solto.
4. Cada país tem sua história e, quando se fala de países colonizados, as coisas se
intensificam e complexificam mais ainda.
5. De 43.000 mil habitantes de Buenos Aires, em 1810, 10.000 eram africanos, sendo que
20% eram livres, segundo o historiador argentino Ezequiel Adamovsky. Ou seja, a
história argentina é atravessada pela escravidão africana, como toda a América. É claro
que o Brasil, por exemplo, por razões que citei no item 2, obteve um fluxo de comércio
de vidas africanas distinto, antes e depois de sua independência.
6. No entanto, desde o fim do século XIX, o governo argentino criou políticas de memória
para construir essa ideia de uma Argentina branca, junto ao fomento à imigração
europeia e estratégias de embranquecimento. Os monumentos, a escola, a
historiografia e as narrativas apagaram a história afro, o que não significa que a
Argentina é totalmente branca. Significa que essa tem sido a forma que o Estado
Argentino escolhe lembrar. O tango, por exemplo, é uma expressão cultural africana.
7. Essa fissura da Argentina com a europeização, no final do século XIX, também ocorreu
no Brasil. Se você não se recorda das transformações urbanas do século XX no Brasil,
vale a pena pesquisar e entender como a sociedade brasileira buscou se europeizar
com fomento à imigração europeia e disseminação de ideias de embranquecimento
como progresso. A história da criação das favelas está diretamente relacionada a essa
proposta.
8. Houve o uso de grande parte da população negra nas linhas de frente nas batalhas de
independência na Argentina que, como se sabe, são os primeiros a serem
exterminados em conflitos bélicos.
9. Não acho necessário entrar no caso do racismo no futebol que assola o Brasil. Cito o
caso do goleiro Aranha, que me marcou muito, assim como em 2018, em uma sala,
com quatro pessoas, em um condomínio renomado de Itu, ao assistir um jogo da Copa,
um homem, branco, pediu para pôr o William, que jogava pelo Brasil, no Pelourinho,
justificando que ele estava jogando mal.
10. Pode-se abordar o tema do censo na Argentina, segundo o qual, em 2010, menos de
1% da população se diz negra. O que podemos dizer é que, em um país com uma
política de memória de valorização da Branquitude, declarar-se negro é um ato de
resistência. Não tenho propriedade para avançar neste item, mas ele deve ser levado
em conta. O que posso dizer que é se declarar em censo é um tema bem complexo, e
nós brasileiros sabemos bem isso: pardo ou negro? Sou branco? Entre outras
questões.

Não há uma conclusão, mas apenas pontos que tenho pensado coletivamente. Certamente
até o fim da experiência do intercâmbio quero gravar um episódio de podcast sobre isso.
Há que pesquisar e compreender mais sobre o tema aqui nas terras argentinas para seguir
contribuindo.

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