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GOIÂNIA

fundações da modernidade
literária no cerrado
Ademir Luiz da Silva
Eliézer Cardoso de Oliveira
(organizadores)

caminhos
COL. TESSITURAS DO CERRADO / REVISTA NÓS

CONSELHO EDITORIAL
Alcides Freire Ramos (UFU)
Ana Cavalcanti (EBA/RJ)
Arthur Gomes Valle (UFRJ)
Camila Dazzi (CEFET/RJ)
Edgar Silveira Franco (UFG)
Edgard Vidal (CNRS/FR)
Giuliana Vila Verde (UEG)
Haroldo Reimer (UEG/CNPq)
Julierme Sebastião Morais de Souza (UEG)
Marcos Antônio da Cunha Torres (UEG)
Marcos Silva (USP)
Maria de Fátima Oliveira (UEG)
Maria Idelma Vieira D’Abadia (UEG)
Mary Anne Vieira Silva (UEG)
Poliene Soares dos Santos Bicalho (UEG)
Robson Mendonça Teixeira (UEG)
Rodrigo de Freitas Costa (UFTM)
Rosangela Patriota Ramos (UFU)
Sandro Dutra Silva (UEG/UNIEVANGÉLICA)
Valmor da Silva (PUC/GO)
Ademir Luiz da Silva
Eliézer Cardoso de Oliveira
(organizadores)

GOIÂNIA
fundações da modernidade
literária no cerrado

Goiânia, 2021
Copyright © 2021
Ademir Luiz da Silva e Eliézer Cardoso de Oliveira

Este livro foi produzido com os recursos do Edital FAPEG Universal n. 07/2014,
referente ao projeto do Centro de Produção e Visualização do audiovisual para
estudo dos saberes e expressões culturais do Cerrado Goiano.

Imagem da capa: Heleno Godoy, Bússola nº 3, 1960.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Goiânia : fundações da modernidade literária no cerrado /


organização Ademir Luiz da Silva, Eliézer Cardoso de Oliveira.
-- 1. ed. --
Goiânia, GO : Editora e Livraria Caminhos, 2021.

ISBN 978-65-89552-04-8

1. Ensaios brasileiros - Coletâneas 2. Goiânia


(GO) - História 3. Modernismo (Literatura) - Brasil
I. Silva, Ademir Luiz da. II. Oliveira, Eliézer Cardoso de.

21-63142 CDD-869.4

Índices para catálogo sistemático:


1. Ensaios : Literatura brasileira 869.4
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: MODERNIDADE URBANA E LITERÁRIA EM GOIÁS 9


Eliézer Cardoso de Oliveira
Ademir Luiz da Silva

Parte 1: Eventos e instituições literárias modernas em Goiás

UBE: SOB O SIGNO DA RESISTNCIA CULTURAL 21


Heloisa Selma Fernandes Capel

I CONGRESSO NACIONAL DOS INTELECTUAIS: A INTELECTUALIDADE


GOIANA REAGE AO ISOLAMENTO CULTURAL 43
Fernando Martins dos Santos

Parte 2: Goiânia na modernidade literária

A REALIDADE DA FICÇÃO: REPRESENTAÇÕES DA CIDADE DE


GOIÂNIA NOS CONTOS LITERÁRIOS E POEMAS 61
Eliézer Cardoso de Oliveira

ENTRE O ARCAICO E O MODERNO: UMA LEITURA DE


CHÃO VERMELHO, DE ELI BRASILIENSE 85
Ewerton de Freitas Ignácio
Andressa Andrade Pires
Émile Cardoso Andrade

A MODERNIDADE/MODERNIZAÇÃO DA CIDADE DE GOIÂNIA:


O DISCURSO DE ELI BRASILIENSE EM CHÃO VERMELHO 99
Marco Túlio Martins
Geisa Daise Gumiero Cleps
Karinne Machado Silva
Parte 3: GEN – Grupo de Escritores Novos

O GEN E A MODERNIDADE EM GOIÁS: UM DEPOIMENTO 117


Heleno Godoy

O GEN E O MODERNISMO 133


Maria Helena Chein

GEN – UM SOPRO DE RENOVAÇÃO EM GOIÁS 143


Moema de Castro e Silva Olival

Parte 4: Qual modernidade?

A MODERNIDADE CHEGA AO SERTÃO: A MÁQUINA EXTRAVIADA


DE JOSÉ J. VEIGA 165
Maria de Fátima Oliveira
Lucas Pedro do Nascimento

AS DUALIDADES MODERNAS NA LITERATURA GOIANA 179


José Eduardo Mendonça Umbelino Filho

PÃO COZIDO DEBAIXO DE BRASA, DE MIGUEL JORGE, E UMA


REFLEXÃO SOBRE AS CONTRADIÇÕES DA MODERNIDADE 191
Isaias Martins de Souza

Parte 5: Aquém e além da modernidade

GILKA BESSA, UMA POETA MULHER NA PERIFERIA DO FEMINISMO 219


Tarsilla Couto de Brito

GERALDINHO NOGUEIRA: SABERES DA NARRATIVA ARTESANAL 239


Lucas Pires Ribeiro
Robson Mendonça Pereira

A LITERATURA DE EDIVAL LOURENÇO EM TRÊS TEMPOS 267


Ademir Luiz da Silva

AUTORES 281
GOIÂNIA
fundações da modernidade
literária no cerrado
APRESENTAÇÃO
Modernidade urbana e literária em Goiás
Ademir Luiz da Silva
Eliézer Cardoso de Oliveira

C ontar uma história por escrito não é, necessariamente, fazer literatura.


Literatura é, sobretudo, trabalho de linguagem buscando produzir efeito
estético. Não é algo simples, nem fácil. A distância entre um texto literário
e uma narrativa coerente é a mesma entre um esboço e uma obra acabada.
Essa ressalva pode parecer severa ou conservadora, mas é necessária, para
não se cair na tentação de considerar o fenômeno artístico-literário como
algo banal, inflacionando-o. Onde tudo é arte, nada é arte. Onde tudo é
literatura, nada é literatura.

Qual é, então, a melhor definição de literatura? Em seu nível básico, é uma


coleção de combinações únicas de 26 pequenas marcas pretas numa super-
fície branca – “letras”, em outras palavras, já que a palavra “literatura”
significa coisas feitas de letras. Essas combinações são mais mágicas do que
qualquer prodígio tirado da cartola de um prestidigitador. Mas uma resposta
melhor seria que a literatura é a mente humana no auge de seu talento para
expressar e interpretar o mundo ao nosso redor (Sutherland, 2017, p. 14).

Portanto, fundamentalmente para efeitos didáticos, podemos considerar


que literatura é uma espécie de “jogo sofisticado” entre os seres humanos
realizado por meio das palavras escritas, a fim de alcançar uma realização
estética potencialmente original. Esse jogo existe há milhares de anos.

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Quando a escrita foi inventada, para realizar registros práticos de contabi-
lidade, logo se percebeu que àqueles estranhos sinais podiam ser alinhados
de forma que contassem histórias ou imitassem a musicalidade, surgindo,
assim, o registro por escrito das tradições orais em forma de poesia e,
posteriormente, narrativas em prosa. Já a tal de modernidade é coisa mais
recente, emergindo, na Europa, junto com a Reforma Protestante, com o
Estado Nação, com o Capitalismo, com a Revolução científica, mas se
amadurecendo no século XVIII com o Iluminismo. A modernidade foi se
espalhando pouco a pouco para vários países do mundo até se tornar – na
poderosa metáfora utilizada por Marshall Berman (1996) – um “turbilhão”
desencadeador de mudanças sociais e culturais profundas. A literatura, por
dois motivos, sentiu-se à vontade em meio a esse turbilhão: primeiramente,
porque a criatividade literária é devedora de momentos de crise de valores,
de transformações culturais, da disputa entre o novo e o velho; em segundo
lugar, porque a modernidade propiciou autonomia ao campo literário,
libertando-o da religião, da política, da filosofia, possibilitando aos autores
dedicar-se à literatura pela literatura.
O tema desse livro é um desses encontros entre modernidade e literatura,
ocorrido bem no meio do Cerrado, no estado de Goiás, particularmente
na cidade de Goiânia a partir da década de 50 do século XX. Para muitos
sociólogos, historiadores e críticos literários, esse encontro trouxe uma
oportunidade ímpar para estudar a autonomização do campo literário
goiano, a partir da sofisticação das obras e da crítica, do surgimento de
instituições literárias e de eventos culturais e de publicações periódicas
voltadas para o campo literário. Mais importante ainda: o encontro entre
literatura e modernidade no sertão goiano inspirou o surgimento de obras
que são documentos complexos de uma sociedade em meio a uma encru-
zilhada cultural, pressionada a escolher “entre o arcaico e o moderno”, ou
seja, entre adotar os valores modernos ou manter os provincianos. Para os
diferentes autores dos textos que compõem esse livro, as “letrinhas” que
formaram palavras colocadas uma a frente da outra tem um significado
além da tão almejada fruição estética, pois são concebidas como documen-
tos da cultura. Está é a “realidade da ficção”, ou seja, o momento em que
as obras literárias saem do mundo divertido da ficção e adentram ao mundo
sério da crítica literária, da análise sociológica e da narrativa historiográfica.

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Mas “quando a modernidade chega ao sertão”, ela se transforma, pois é
obrigada a reconhecer seus próprios limites. A modernidade postula um
universalismo axiológico, mas na prática é obrigada a capitular-se diante da
força inercial da tradição. Ninguém é moderno por inteiro, nem mesmos
os sofisticados europeus que inventaram a modernidade, pois todos carregam
o peso do passado sob os ombros. Em Goiás, mais do que em muitos ou-
tros lugares, pode-se perceber com clareza “as contradições da moderni-
dade” que explicam, em parte, a presença “das outras modernidades” e as
“dualidades modernas na literatura goiana”. Entender os limites, as contra-
dições, as marginalidades da cultura literária moderna em Goiás perpassa
por contextualizar o advento da modernidade a partir do surgimento da
cidade de Goiânia, a maior experiência da modernidade em solo do cerrado.
Goiânia foi idealizada como difusora da modernidade, da arte, da
cultura. Não por acaso, foi batizada com o nome de um livro: o poema
épico Goyania, lançado por Manuel Lopes de Carvalho Ramos em 1896.
No poema, a viagem exploratória do bandeirante Bartolomeu Bueno, o
Anhanguera, pelas terras dos índios goyazes tornou-se uma saga aventu-
resca, trágica e romântica. No dia 24 de outubro de 1933, na cerimonia de
lançamento de sua pedra fundamental, um exemplar do livro foi enterrado
sob o monumento que marca o marco zero da nova capital, localizado na
atual Praça do Cruzeiro. Esse ato acabou se revelando, literalmente, justiça
poética.
No mesmo ano o jornal O Social, da cidade de Goiás, instituiu um con-
curso para escolher o nome da nova capital de Goiás. Entre as muitas su-
gestões apresentadas, os nomes mais votados pelo público foram Petrônia,
sugestão do poeta Léo Lynce, com 105 votos, Anhanguera com 26 votos,
Heliópolis com 16 votos, Crisópolis com 13 votos e Tupirama com 10 votos.
Goiânia, a sugestão apresentada pelo professor Alfredo de Castro, sob o
pseudônimo Caramuru Silva do Brasil, recebeu apenas dois votos, um do
próprio autor da sugestão e outra da professora Zanira Campo Rios.
Provavelmente, a palavra se origina da expressão tupi-guarani “guyanna”,
que significa “terra de muitas águas”.

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Em sua justificativa, Alfredo de Castro escreveu:

GOIÂNIA: Qual o nome que pela sua significação, sua sonoridade, fácil
grafia e sentido histórico, melhor se adaptaria à cidade nova que será a capital
do Estado? Haverá, é certo, copiosa lista de denominações para a nova
urbs. Nenhuma, porém, conservará o sabor histórico, a cor local, o signifi-
cado regional desta palavra, curta, sonora, que reflete com serenidade a
ideia de nossa origem. A solução de continuidade histórica que adviria da
imposição de um apelido, talvez interessante e valioso, sob vários aspectos,
à mais importante cidade do Estado, não deixaria de arranhar, sequer de leve,
o estranhado amor que devotamos ao culto sagrado das nossas tradições.
GOIÂNIA – Nova Goiás, prolongamento da histórica Vila Boa, monu-
mento grandioso que simbolizará a glória da origem de todos os goianos.
Goiás, 10-10-33. Caramuru Silva do Brasil.

A proposta se alicerça na noção de continuidade. Goiânia, a nova Cidade


de Goiás, a Vila Boa do futuro que não nega as tradições. Apesar da baixa
votação popular, não se sabe exatamente o motivo, o nome Goiânia foi
escolhido por Pedro Ludovico Teixeira. Oficialmente, a cidade permaneceu
sem nome, sendo chamada apenas de “futura capital” ou “nova cidade” nos
documentos oficiais, até o dia 02 de agosto de 1935, quando foi oficial-
mente batizada por força do artigo 1º do decreto estadual número 327. A
força do livro enterrado emergiu e abraçou toda a cidade que era cons-
truída no cerrado.
A utopia da modernidade estava nos relatórios do interventor Pedro
Ludovico e dos urbanistas Armando de Godoy e Atílio Correia Lima. Daí
as características inegavelmente modernas da cidade que podem ser visua-
lizadas no seu traçado urbanístico, na sua vinculação com a expansão capi-
talista para o interior do país e na sua arquitetura Art déco. Contudo, ideias
modernas que estavam na cabeça – e nos relatórios – dos políticos e dos
urbanistas não estavam na da maioria dos habitantes da cidade, provenientes
basicamente das cidades do interior de Goiás. Ao lado da nova capital pla-
nejada, havia Campinas, uma cidade centenária transformada em bairro,
mas que, mesmo assim, servia como contraponto à modernidade de Goiânia;
por isso, ao lado de relações sociais novas, havia as relações tradicionais

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típicas das cidades interioranas goianas; ao lado das casas e prédios em Art
déco, havia as casas do estilo colonial e os precários casebres dos trabalha-
dores da cidade.
Havia uma provincianidade fortemente enraizada no cotidiano da cidade,
nas décadas de 1930, 1940 e 1950. Até porque, nesse período, Goiânia era
uma cidade pequena, não muito diferente, em termos demográficos das
outras cidades goianas. Em 1940, a população total de Goiânia, segundo
dados do IBGE, era de apenas 18.889 habitantes. Passou por um grande
crescimento na década seguinte, mas ainda possuía apenas 40.333 habitantes
em 1950, menos que a cidade de Anápolis, a mais populosa do estado, com
uma população de 50.338 habitantes naquele ano.
O sociólogo alemão Georg Simmel (1967), num magistral texto deno-
minado “A metrópole e a vida mental”, demonstrou que cidades com
população pequena estimulam a padronização de comportamentos. A
pressão da comunidade, da vizinhança, coage os indivíduos e até os mais
jovens ou os artistas, inovadores por excelência, sentem-se constrangidos
diante do olhar vigilante, curioso e recriminador de parentes, amigos, co-
nhecidos ou colegas de trabalho. A sociabilidade em Goiânia, em suas
primeiras duas décadas, transcorria em ritmo lento, pautada por um lazer
fortemente ligado à religiosidade católica, ao mundo rural e à vida familiar.
Quermesses, banhos em córregos da região, pescarias, passeios na Praça
Cívica ou na Avenida Goiás, frequentar o cinema e sorveterias, eram o que
ordinariamente as pessoas faziam para se divertir na nova capital do estado.
Os ventos da modernidade sopraram com mais força a partir de meados
da década de 1950. A construção de Brasília trouxe gente do Brasil inteiro
para o Planalto Central e boa parte desse povo migrou, por tabela, para
Goiânia. Em 1960, Goiânia já contava com 133.462 habitantes, deixando
bem para trás a cidade de Anápolis, cuja população, nesse mesmo ano, era de
68.732. Na esteira do crescimento demográfico, ocorreu uma importante
mudança cultural em direção a uma sociabilidade moderna. A modernidade
precisa de muita gente para se sustentar, crescer e quebrar as barreiras tradi-
cionais. Nesse período, os mais abastados escolheram morar nos arranhas
céus, uma moradia sem quintais, sem janelas, sem os tradicionais controles
da vizinhança. A impessoalidade é fundamental para modernidade.

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O lazer tornou-se menos familiar e voltado para a juventude que que-
ria se divertir nas boates e no drive-in. A difusão do automóvel – outro
efeito indireto da construção de Brasília – viabilizou a presença dos motéis
nas margens da BR-153. O surgimento, em 1959, da Universidade de
Goiás, ligada à Igreja Católica, e, em 1960, da Universidade Federal de
Goiás, trouxe ideias, teorias e práticas mais cosmopolitas. Em 1970, a po-
pulação já era de 389.784, uma multidão de gente que se espalhava pelo
Parque Mutirama, inaugurado em 1969; pelo Estádio Serra Dourada,
inaugurado em 1973; pelo Autódromo Internacional de Goiânia, inaugu-
rado em 1974; pelo Centro Administrativo, inaugurado em 1973; pelo
prédio comercial Parthenon Center, inaugurado em 1976; e até mesmo
pelo Cemitério Parque, inaugurado em 1961, que até hoje espera por seu
moderníssimo forno crematório.
Equipamentos modernos numa cidade que começava a experimentar o
gostinho de ser uma metrópole. Os artistas e os intelectuais aproveitaram
as oportunidades desse ambiente menos provinciano e começaram a “co-
locar suas asinhas de fora”. Entre os dias 14 e 21 de fevereiro de 1954,
promoveram, independente da iniciativa governamental, um evento cultu-
ral de grandes dimensões em Goiânia. Trata-se do I Congresso Brasileiro
dos Intelectuais, um evento que espalhou gente ilustre pelas ruas da capi-
tal. Estrangeiros célebres como o chileno Pablo Neruda, o português Fer-
nando Corrêa Silva e o haitiano René Depestre; além dos brasileiros Jorge
Amado, Hector Flores, Ascenso Ferreira, Estelinha Egg, Maria Della
Costa, dentre outros. No congresso, literatura, teatro, artes plásticas e
música foram temas discutidos em palestras informais realizadas no Colé-
gio Lyceu de Goiânia e que duravam até o entardecer, divulgando uma
cultura cosmopolita na cidade (Oliveira, 1999).
Os intelectuais e artistas goianos da década de 1950 contaram com o
auxílio importante de uma livraria que se tornou referência na cultura goi-
aniense: o Bazar Oió. O nome, bem ao estilo das vanguardas modernistas,
demonstra o interesse de seu proprietário, o paulista Olavo Tormim, em
sacudir o mundo das artes em Goiânia. Na livraria, que em 1957, chegou a
ser a 8ª do Brasil em venda de livros, eram realizadas palestras, exposições
de quadros e lançamentos de livros. O clássico Ermos e Gerais, de Bernardo

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Élis, foi publicado com o selo da Editora Oió. O livro Becos de Goiás e Estórias
Mais, de Cora Coralina foi lançado na livraria em 1965.
Vinculado à livraria, foi publicado entre fevereiro de 1957 a novembro
de 1958, o Jornal Oió, um jornal mensal, voltado exclusivamente para as
artes e para literatura, sob a responsabilidade de Eliezer Penna. Nomes
importantes da literatura e das artes goianas utilizaram o espaço do men-
sário. Nele, podia-se ler contos de Bariani Ortêncio e Bernardo Élis, poe-
mas de Gilberto Mendonça Teles e Regina Lacerda, resenhas e entrevistas
de Domingos Félix de Souza, Geraldo Ramos Jubé e José Gody Garcia,
gravuras de Frei Confaloni (Silva, 2018). Muitos desses autores eram filiados
à União Brasileira de Escritores (UBE) - seção Goiás, fundada em abril de
1945, uma instituição fundamental no fomento dos debates culturais na
nova capital.
O Congresso Goiano de Intelectuais, as reuniões dos artistas e intelec-
tuais na livraria e no jornal Oió, o advento das universidades e a fundação
da sucursal goiana da UBE prepararam o terreno para o surgimento do
GEN (Grupo de Escritores Novos) e a propagação do modernismo literário
em Goiás. O modernismo é o mais sofisticado produto cultural da moder-
nidade, pois não apenas se reconhece como sua expressão, mas conscien-
temente a toma como objeto de crítica. O modernismo não se submete aos
cânones estabelecidos e desconstrói as formas de linguagem. Os autores
vinculados ao GEN, entre 1963 e 1967, adotaram o verso livre, o concre-
tismo e a poesia práxis. Na prosa, os contos e romances caracterizavam-se
pela sondagem psicológica, a ênfase no conflito do indivíduo e o mundo
urbano, e prosa regionalista crítica.
Nossa questão central é tentar ao menos esboçar algumas respostas
para a seguinte pergunta: como se deu e quais os desdobramentos do “jogo
sofisticado” da literatura moderna em Goiás? Neste livro apresentamos uma
série de artigos escritos por autores que realizaram pesquisas de reconhecido
revelo sobre o contexto descrito. Ou mesmo que foram testemunhas ou
partícipes dele, como o caso dos célebres escritores Heleno Godoy e Maria
Helena Chein e da crítica literária Moema de Castro e Silva Olival, que
colaboram com preciosos relatos memorialísticos sobre o GEN e a Goiânia
dos “anos dourados” e “anos rebeldes”, uma cidade que se queria moderna.

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Uma modernidade que constantemente questiona a si mesma, seja nas
máquinas extraviadas de J. J. Veiga, nos redemoinhos de terra vermelha de
Eli Brasiliense, nas ironias históricas de Edival Lourenço ou nos versos de
Gilka. Uma modernidade que sempre deu um passo atrás para dar dois
adiante, como no caso do imenso sucesso popular do contador de causos
Geraldinho nas décadas de 1980 e 1990. Modernidade que sofreu um duro
golpe com o acidente radiológico com o Césio 137, catástrofe que se tor-
nou inspiração para contos, romances, filmes e músicas. Modernidade
“tradicional”, vigiada noite e dia por uma anacrônica estátua equestre de
Pedro Ludovico. Modernidade inaugurada pelo enterramento (vivo?) de
um livro. Não de um livro qualquer, mas de um poema épico, o primeiro
gênero literário concebido pela humanidade. Uma modernidade tão goiana,
composta de aquéns e de aléns do moderno.

* * *

Este livro integra um projeto multimídia financiado pela FAPEG


(Fundo do Amparo a Pesquisa do Estado de Goiás), juntamente com o
documentário “Cidade Nova, Escritores Novos: a história do GEN”, dis-
ponível gratuitamente no canal do LUPPA (Laboratório Universitário de
Pesquisa e Produção Audiovisual) na plataforma de compartilhamento de
vídeos Youtube, para pesquisadores, estudantes e demais interessados.

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REFERÊNCIAS
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. Trad. Carlos Felipe
Moisés e Ana Maria Ioriatti. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. As imagens e Mudança Cultural em Goiânia.
Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Ciências Humanas e Letras,
UFG, 1999.
SILVA, Fernando Costa e Silva. O Jornal Oió na formação do Campo Literário goiano
em 1957 e 1958. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de História,
Goiânia, UFG, 2018.
SIMMEL, Georg. “A metrópole e a vida Mental”. In. VELHO, Guilherme
Otávio (org.). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1967. P. 13 a 28.
SUTHERLAND, John. Uma Breve História da Literatura. Porto Alegre, RS:
L&PM, 2017.
Parte 1
Eventos e instituições literárias
modernas em Goiás
UBE: Sob o signo da resistência cultural
Heloisa Selma Fernandes Capel

A história da União Brasileira de Escritores (UBE) - seção Goiás,


iniciou-se em abril de 1945. Nesta ocasião, em uma sala do Jóquei Clube
de Goiás, foi eleita a diretoria provisória da ABDE, entidade que, na década
de 1960, transformaria-se na UBE atual. Embora tenha sido criada em
1945, já se esboçavam as iniciativas para se criar um “núcleo”, ou uma
“delegação de escritores” em períodos anteriores, como explica Bernardo
Élis em entrevista ao Jornal Folha de Goiaz na década de 80.1 Segundo o
escritor, providências anteriores não lograram êxito, mas demonstraram o
interesse em criar a instituição. O esforço e a intenção de vários intelectu-
ais e de Cristiano Cordeiro, que viria a ser o primeiro presidente da
entidade, bem como as iniciativas de Bernardo Élis foram decisivas nas
origens da entidade.
Junte-se a esses personagens, elementos estruturais e de conjuntura fa-
vorecidos pelo Primeiro Congresso de Escritores, realizado em São Paulo,
além do atrelamento de um concurso literário criado pela Prefeitura de
Goiânia em 1944 à nova associação: a ligação da ABDE à Bolsa de Publi-
cações Hugo de Carvalho Ramos.2 Estes elementos combinados vão
resultar na criação e afirmação da ABDE, marco inicial da União Brasileira
de Escritores, seção de Goiás.
1. "Inicialmente vou mostrar-lhe um ofício datado de 13 de novembro de 1944, dirigido
por mim à Associação Brasileira de Escritores de São Paulo. Nele expunha o desejo de um
grupo de escritores goianos (“uma turma de rapazes ligados ao jornalismo e às letras”) em
fundar em Goiânia, um núcleo da entidade, e pedia instruções sobre como proceder. Ai vê-
se que providências anteriores haviam fracassado". Elis, Bernardo. Entrevista ao jornalista
Roberto Pimentel. Jornal Folha de Goyaz, Caderno Folha Cultural, 09 de outubro de 1983.
2. Segundo Bernardo Elis, a gerência da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos
pela ABDE foi uma necessidade do poder público que precisava de um aparelho intelectual
que garantisse o seu funcionamento A ABDE abriria as inscrições, receberia as obras, faria
o julgamento e publicaria as obras por meio de licitação. Bernardo Elis destaca o trabalho
de Oscar Sabino que, segundo ele, foi uma figura muito importante no gerenciamento de
todo o processo. (Idem, p.18).

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Para se compreender a criação da Associação Brasileira de Escritores
(ABDE) em Goiás, todavia, é necessário vislumbrar o processo de formação
de entidades culturais brasileiras no período. Houve uma intensa movi-
mentação das forças político-sociais no cenário internacional e no país du-
rante as décadas de 1940 e 1950 e a performance da associação de escritores
foi, ao mesmo tempo, um reflexo e um meio de expressão e resistência ao
panorama social e político que emoldurou o cenário. Vivia-se o período dos
nacionalismos europeus, o fim da segunda guerra mundial, o acirramento
dos blocos político-partidários de esquerda e direita e o recrudescimento
da censura político-cultural estimulada pela Era Vargas no Brasil.
Os escritores, legítimos representantes da intelectualidade brasileira,
reagiram, foram influenciados por teorias e práticas políticas e, com a clara
idéia de resistir às pressões ao seu ofício, associaram-se. As origens estive-
ram relacionadas à Sérgio Milliet, Mário de Andrade e Manuel Bandeira,
intelectuais que fundaram a Sociedade Brasileira de Escritores em maio de
1942, no Rio de Janeiro.3 A seção de São Paulo foi requerida por Sérgio
Milliet, sob o nome de ABDE (Associação Brasileira de Escritores) – seção
de São Paulo em novembro de 1942.4
Caio Porfírio Carneiro e J. B. Sayeg chegam a afirmar que é bastante
significativo que os escritores tenham se associado durante a Guerra Civil
Espanhola, sob o impacto de obras como Guernica – sobre a cidade bom-
bardeada em 1937 – e o assassinato de Federico Garcia Lorca, em 1936.
Segundo os autores, sob a pressão da Alemanha Nazista e do Estado Novo,
é de se admirar a coragem de intelectuais que fundaram a Sociedade de
Escritores Brasileiros, inspirada em princípios libertários, “como voz
destoante da política endurecida pelos rancores da ditadura.”5

3. Sérgio Buarque de Holanda, em depoimento publicado no livro UBE – 40 anos, diz que
“em 1942, no Rio de Janeiro, Mário de Andrade, Sérgio Milliet e Manuel Bandeira
resolveram fundar a Associação Brasileira de Escritores no Rio de Janeiro e aqui em São
Paulo ficaria a seção paulista”. CARNEIRO, Caio Porfírio e SAYEG, J.B. A Vocação
Nacional da UBE: 62 anos. São Paulo: RG Editores, 2004. p. 11. "Em 1942, por iniciativa de
escritores contrários à falta de liberdade de expressão imposta pelo Estado Novo, foi
fundada no Rio de Janeiro a Associação Brasileira de Escritores. Entre seus fundadores
incluíam-se Otávio Tarquínio de Sousa (presidente), Sérgio Buarque de Holanda,
Astrogildo Pereira, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Sérgio Milliet, Mário de
Andrade, Oswald de Andrade e Érico Veríssimo". (Jornal O Escritor, edição 110).
4. Posteriormente foi fundada a ABDE – Associação Brasileira de Escritores – seção de São
Paulo, tendo o seu Estatuto e obtido o Registro no Cartório Dr. Arruda, 1º Oficial de
Registro, sob o número 3275, em 9 de novembro de 1942. CARNEIRO, Caio Porfírio e
SAYEG, J.B. A Vocação Nacional da UBE: 62 anos. São Paulo: RG Editores, 2004. p.28
5. Idem, p.13.

22
Outro acontecimento importante criou solo fértil para a criação da
ABDE em Goiás: I Congresso Brasileiro de Escritores. Realizado em São
Paulo, em janeiro de 1945, deste evento participaram aqueles que seriam
os fundadores da entidade: Bernardo Élis, Cristiano Cordeiro e João Acci-
oly. É o próprio Bernardo Élis quem destaca a importância do evento para
a fundação da ABDE: “a atual UBE, foi fundada em 14 de abril de 1945,
com o nome de Associação Brasileira de Escritores – seção de Goiás. Passou
a chamar-se UBE – União Brasileira dos Escritores de Goiás – a partir de
15 de agosto de 1962(...). Antes da fundação houve em São Paulo – janeiro
de 1945 – o I Congresso Brasileiro deEscritores, convocado pela ABDE
paulista, a que compareci com Cristiano Cordeiro e João Accioly, inte-
grando a representação de Goiás”.6 A ABDE, entretanto, que nasceu
como uma associação de classe preocupada com questões específicas
referentes ao métierdo escritor, como os direitos autorais, acaba por firmar-
se como entidade propulsora da cultura e da luta pelos ideais democráticos.
O I Congresso Brasileiro de Escritores parece ter sido, de fato, um
marco para afirmar a vocação nacional da UBE, até então, ABDE, congre-
gando intelectuais de vários Estados que intencionavam discutir os rumos da
produção cultural e os limites da ditadura no Brasil. Ao reunir mais de
quinhentos participantes que discutiam diversos aspectos da política e da
cultura no país, as vozes intelectuais acabaram por contribuir para fortale-
cer a pressão de diversos setores sobre o Governo Vargas, que, por uma
série de fatores, terminou o seu primeiro mandato em outubro de 1945.7
Com o congresso, os escritores passam a fazer parte da intelectualidade,
que no dizer de Sérgio Montalvão, tem a missão de “orientar os homens”,
de fazer o papel de “educadores políticos”.8 Foi neste congresso redigida a
Declaração de Princípios, um manifesto contra o fascismo e o getulismo,
o que assinala o compromisso da intelectualidade com a liberdade de
expressão.9

6. ÉLIS, Bernardo. O Escritor Goiano é Tímido. Jornal Voz do Escritor, Órgão de Divulgação da
União Brasileira de Escritores, seção de Goiás, Ano I, número 1, maio de 1989. p. 8
7. “O I Congresso Brasileiro de Escritores, organizado pelas ABDEs, tendo como mola
propulsora a seção de São Paulo, transformou-se em marco importante e decisivo para
quebrar os grilhões da ditadura”. CARNEIRO, Caio Porfírio e SAYEG, J.B. A Vocação
Nacional da UBE: 62 anos. São Paulo: RG Editores, 2004. p.40
8. MONTALVÃO, Sérgio. O Intelectual e a Política: a militância comunista de Caio Prado
Júnior (1931-1945). Revista de História Regional:7(1):105-127, 2002.
9. MACHADO, Luiz Carlos. Eleições na UBE. DM Revista, s/d

23
A palavra de ordem dos escritores, portanto, era a (re)conquista das
liberdades democráticas, e, em especial, a liberdade de expressão e criação.
Carlos Guilherme Mota considera o congresso como um marco na história
da cultura no Brasil, uma aspiração legítima dos intelectuais brasileiros ao
processo de redemocratização. Além disso, o autor destaca, a partir do
episódio, a presença da política na vida cultural brasileira, aspecto sob o
qual, a produção cultural no Brasil, e, em particular, de suas entidades
representativas, sempre estarão sujeitas.10
Coordenado por Sérgio Milliet, o Congresso trouxe convidados estran-
geiros como Pierre Monbeig e Roger Bastide, intelectuais franceses que
estudaram o Brasil e desenvolveram importantes pesquisas na recém-criada
Universidade de São Paulo, além de Jaime Cortesão, brasilianista português
que atuou em Universidades cariocas. Para se compreender a abrangência
do evento, entretanto, vale ainda ressaltar que participaram do Congresso
entidades como a União Nacional de Estudantes (UNE), a Sociedade
Brasileira de Autores Teatrais, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais e
várias outras instituições representativas da cultura brasileira. Dentre os
participantes, destaque-se, ainda, os nomes de Mário de Andrade, Caio
Prado Júnior, Monteiro Lobato, Antônio Cândido, Jorge Amado, Carlos
Lacerda, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda,
dentre outros.
As atividades do Congresso ocorreram em torno da apreciação de teses,
análise de direitos autorais, temas da cultura em geral e questões políticas.
Em meio a uma série de discussões, foram aprovadas 13 teses que versavam
sobre a democratização da cultura, o apolitismo dos intelectuais, além de
democracia e a planificação. Para alguns autores, a formulação política
nascida nesse encontro aproximava liberalismo e democracia11, embora
houvesse muitos comunistas presentes. Os comunistas, desde a década de 30,
sempre se preocuparam em manter relações com a intelectualidade brasi-
leira, a ala progressista. Buonicore confirma a idéia e informa os aconteci-
mentos posteriores: “A Associação Brasileira de Escritores (ABDE) foi
criada em 1942 por intelectuais democratas, em geral contrários ao Estado
Novo. Desde o início, os comunistas dela participaram tornando-se majo-
ritários em sua direção a partir de 1945”.12
10. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia e Cultura Brasileira (1933-1974). São Paulo:
Ática, 1980.
11. CAVALCANTI, Berenice. Certezas e Ilusões: os comunistas e a redemocratização da sociedade
brasileira. Rio de Janeiro, Eduff/Tempo Brasileiro, 1986.
12. BUONICORE, Augusto. Comunistas, Cultura e Intelectuais entre os anos de 1940 e 1950.
Revista Espaço Acadêmico, 2003. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br

24
Não é de se admirar, portanto, que o I Congresso Brasileiro de Escritores
tenha sido tão importante como mola propulsora da criação da ABDE –
seção Goiás. Bernardo Élis, um dos representantes da delegação de Goiás,
parece ter sido uma peça fundamental dessa estratégia. Além de escritor
com produção regional, uma tendência no período, Bernardo Elis estava
de acordo com o clima de esquerda que insuflou a ação político-cultural
dos intelectuais da época. Numa entrevista concedida ao jornal da UBE,
A Voz do Escritor, ele mesmo explica suas convicções profissionais e ideológicas:

O papel do escritor me parece o mesmo em todas as épocas. Tentar vislumbrar


o futuro e, para mim, o futuro está no socialismo democrático, no amor entre
os homens, na supressão da exploração do homem pelo homem, no respeito
à dignidade humana. O escritor pode ajudar na formação de um mundo
melhor, lutando por seus princípios, especialmente, para mim, os acima
enumerados. Lutando pelo método da práxis, isto é, na teoria e na prática.13

Além das afinidades com as reivindicações e utopias do período, Ber-


nardo Élis vivia um momento de oportunidades importantes que, aliados à
sua produção de natureza social e realista, iriam consagrá-lo como inte-
lectual e escritor na região. Em algumas entrevistas ficou evidente o desejo
de organizar uma entidade que possibilitasse a captação de verbas gover-
namentais para publicação. Para BarianiOrtêncio, um dos presidentes da
UBE, a Bolsa Hugo de Carvalho Ramos (1943) e a criação da ABDE
(1945) foram estratégias legais que possibilitaram a publicação da obra
Ermos e Gerais de Bernardo Elis14 e o fortalecimento da agremiação nascente.
A fundação da ABDE – seção Goiás, em 1945, foi articulada, portanto, por
Bernardo Élis e a prefeitura de Goiânia que prometeu, por meio de
Venerando de Freitas Borges, vincular a Bolsa Hugo de Carvalho Ramos,
criada dois anos antes, às atividades a serem desenvolvidas pela entidade.
Esta Bolsa aprovou a publicação da obra Ermos e Gerais, o livro de contos
do então estreante escritor que se destacaria no cenário regional e nacional
como um ficcionista engajado. Publicada em 1944, Ermos e Gerais recebeu
cartas com louvores de Monteiro Lobato e Mário de Andrade.
13. ÉLIS, Bernardo. O Escritor Goiano é Tímido. Jornal A Voz do Escritor, Órgão de
Divulgação da União Brasileira de Escritores, seção de Goiás, Ano I, número 1, maio de 1989. p. 8
14. ORTÊNCIO, Bariani. Entrevista concedida à pesquisadora Heloisa Capel em
03/04/2006.

25
Filiado ao partido comunista em 1944, Bernardo Élis contou, ainda,
com a colaboração de um emblemático nome da esquerda nacional para a
criação da ABDE – seção Goiás: Cristiano Cordeiro, o fundador do Partido
Comunista do Brasil em 1922. Cristiano Cordeiro estava em Goiás,
deportado de Pernambuco por causa de sua militância política. Mesmo
sem forte formação teórica, Cristiano Cordeiro era um idealista, conside-
rado por Leandro Konder como um “santo do comunismo”.15 De fato, na
Revista do Arquivo Histórico do Movimento Operário Brasileiro dedicada
a Cristiano Cordeiro, foi publicada a entrevista concedida ao jornalista
Ricardo Noblat, em 1979. Nela Cristiano Cordeiro assim define a utopia
comunista e cristã pela qual dedicou sua vida e trabalho:

Acredito que o mundo caminha em direção ao socialismo. O governo do


Estado Socialista, na sua fase final, dará margem a que surja um novo tipo
de sociedade e que o Estado histórico, o Estado da coação sobre as pessoas,
desapareça, e ceda lugar ao Estado apenas como órgão para administração
das coisas. Nenhuma classe dominará sobre as outras. (...). Num Estado
Socialista, a liberdade de culto e religião terá de ser respeitada. (...). O sistema
moral do cristianismo é inatacável. Não há nada na essência do cristianis-
mo que colida com a ética socialista. (...) Jesus Cristo foi nosso primeiro
camarada.16

Com esta índole e ética, Cristiano Cordeiro chegou a Goiás e envol-


veu-se com representantes da intelectualidade goiana. Entretanto, sua
participação nas origens da ABDE, foi mais simbólica do que efetiva. Em-
bora conste nos registros da entidade como primeiro presidente, Cristiano
Cordeiro nunca exerceu o cargo de maneira concreta. Ao relatar, em suas
memórias, sob quais circunstâncias aportou em Goiás em 1940 para retor-
nar ao Recife oito anos depois, não há nenhuma referência à entidade em
que figura como primeiro presidente:
15. “O movimento comunista mobilizou todo o tipo de gente. Em suas hostes havia desde
bandidos, delinqüentes, cretinos, oportunistas, até pessoas de notável integridade, grande
valentia, fulgurante inteligência, enorme generosidade. E havia uns poucos revolucionários
que conseguiam unir a paixão política, a dedicação à Causa, com um poderoso espírito de
tolerância, uma constante disposição para o diálogo. É a esses militantes que eu, recorrendo
a uma imagem provocadora, chamaria de ‘santos’ do comunismo. (...). E, graças a Paulo
Cavalcanti, tive a ocasião de entrar em contato epistolar com Cristiano Cordeiro, outro
representante dessa nobre estirpe.” KONDER, Leandro. Cristiano, santo do comunismo. JB -
Online, 2004, p.1. Disponível em: http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/colunas/konder
16. CORDEIRO, Cristiano. Depoimento a Ricardo Noblat. In. Revista Memória & História.
Revista do Arquivo Histórico do Movimento Operário Brasileiro. Pernambuco, S/Ed.,N.2,1982.p.88

26
Em 1939, por conta do Estado Novo, fui deportado de Pernambuco e tive
de sobreviver em Santos, lecionando em dois colégios e trabalhando como
revisor do jornal Diário de Santos. Dois anos depois, recebido por Pedro
Ludovico, interventor de Goiás, apresentado a ele pelo então deputado
federal Domingos Velasco, fui ser professor em Goiânia. Como eu, muitos
deportados depois da “intentona” receberam abrigo de Ludovico. Aos que
reclamavam de sua tolerância para conosco, ele costumava responder,
citando Euclides da Cunha: “Goiás e Mato Grosso são a Sibéria Canicular
do Brasil”, querendo dizer com isso que nós, de fato, éramos prisioneiros.
Em Goiânia, fui diretor da Biblioteca Pública e colaborei em jornais. Na
condição de presidente da Liga pela Anistia da cidade, estivemos com Prestes,
no Rio, quando ele ainda estava preso. Aproveitei para denunciar-lhe a
infiltração de elementos do governo de Vargas na Reorganização do PCB,
que fora posto na ilegalidade (...). Em 1948, retornei ao Recife.

Bernardo Élis confirma essa posição: “Cordeiro nunca esteve na presi-


dência da entidade, pois desde o Congresso de São Paulo retornou para o
Rio de Janeiro, reassumindo cargo de que tinha sido afastado pela ditadura
getulista na qualidade de fundador do Partido Comunista Brasileiro. Desde
o início, pois, a presidência da antiga ABDE e hoje UBE esteve ocupada
por mim, onde me mantive de 1945 a 47, depois entre 47 e 49 e novamente
de 1959 e 61”.
Mesmo não sendo o presidente efetivo da entidade, Cristiano Cordeiro
constou nos registros como seu presidente. Sua escolha foi confirmada na
seção preparatória da ABDE de Goiás, realizada em 26 de maio de 1945.
Neste documento, além da confirmação dos nomes anteriormente definidos
para compor a diretoria, há uma discussão interessante sobre os rumos da
associação nascente e de sua relação com a política. Desde o início, fica
registrada a necessidade da ABDE possuir um veículo literário e, ainda,
sobreviver com subvenção política, mas preservando sua liberdade de
expressão. Esta tônica fica esclarecida desde os primórdios da entidade. Ao
avaliar o Estatuto nascente, na reunião de aprovação final do Estatuto da
ABDE realizada em 09 de junho, os participantes Cristiano Cordeiro,

17. Idem, p.86-87.


18. Élis, Bernardo. O Escritor Goiano é Tímido. Jornal A Voz do Escritor, Órgão de Divulgação
da União Brasileira de Escritores, seção de Goiás, Ano I, número 1, maio de 1989. p. 8

27
Bernardo Élis, Domingos Félix, Hélio Lobo, Maria Paula Fleury, Ofélia
Sócrates e Eli Brasiliense, fazem anotar no livro de reunião que seria alterado
o artigo 2º. Nele, o seguinte texto deveria garantir a livre expressão e de-
bate de idéias.19
O documento da sessão preparatória ainda informa uma estratégia que
parece ter sido fundamental na consolidação e legitimação da entidade até
os dias atuais: a vinculação da Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, criada em
1943, à ABDE. A partir da fundação da entidade, o julgamento da Bolsa
seria realizado por uma comissão criada na entidade: “José Godoy Garcia
propõe que o julgamento das obras da Bolsa de Publicações Hugo de Car-
valho Ramos seja realizado pela ABDE. Todos concordaram”.20

ATA de Fundação da Associação Brasileira de Escritores (ABDE)


realizada no dia 14 de abril de 1945

A os quatorze dias do mês de abril de um mil novecentos de quarenta e cinco, às


quinze horas, no salão do Jóckey Clube de Goiás, foi realizada Sessão Solene para
fundação da Associação Brasileira de Escritores (ABDE) e eleição de sua Diretora
Provisória. Aberta a Sessão, usou da palavra o escritor Cristiano Coutinho Cor-
deiro, dizendo da necessidade de constituir uma entidade que viesse a representar a
classe dos escritores goianos. Em seguida, passou a palavra aos presentes. Usou da
palavra o escritor Bernardo Elis que enalteceu a iniciativa que foi corroborada com
os escritores presentes: Srs. Domingos Félix de Souza, José Décio Filho, Vilmar
Guimarães, Hélio Lobo, Maria Paula Fleury de Godoy, Eli Brasiliense, Euclides
Félix e outros. Após a discussão ficou decidido sobre a fundação da entidade e que na
assembléia seguinte seria apresentado o Estatuto e a composição da Diretoria Defi-
nitiva. Assim ficou formada a Diretoria Provisória: Prof. Cristiano Cordeiro,
Bernardo Elis e Hélio Lobo. Nada mais a constar, foi lavrada a presente ata, que
após lida e achada conforme foi assinada pelos presentes. Assinatura dos Fundadores:
1.José Lobo; 2.Cristiano Cordeiro; 3.Ofélia Sócrates do Nascimento Monteiro;
4.Maria Paula Fleury de Godoy; 5.José Bernardo Félix de Sousa; 6.Bernardo
Elis; 7.José Godoy Garcia; 8.Domingos Félix de Sousa; 9.M.Augusto Gonzaga;
10.José Décio Filho; 11.Oscar Sabino Júnior; 12.Eli Brasilliense Ribeiro;
13.Anderson de Araújo Costa; 14.Frederico Medeiros; 15.Hélio Lobo; 16.Zecchi
Abraão; 17.(ilegível); 18. José Augusto da Paixão; 19.(ilegível); 20.Paulo
Limírio Malheiros; 21.Gilson Alves de Sousa; 22. Elder Rocha Lima; 23.(ilegível)
24.J. Lopes Rodrigues; 25.Colemar Natal e Silva; 26.Gilson de Castro.

19. ATA de aprovação final do Estatuto da ABDE, Goiás. Realizada em 09 de junho de 1945.
Ata em que aprova uma alteração no artigo 2o :”Promover pelo debate de idéias o
esclarecimento de toda e qualquer questão de ordem cultural”.
20. ATA da seção preparatória da ABDE de Goiás. Goiânia, 26 de maio de 1945.

28
Para a primeira seção ordinária da ABDE de Goiás, realizada em 23 de
junho de 1945, o local escolhido para a reunião foi uma sala da Sociedade
Goiana de Pecuária (SGPA), cedida por Altamiro de Moura Pacheco.
Decide-se, nesta reunião, adaptar o Regimento Interno da Seção de Goiás
ao Estatuto de São Paulo, condicionado a apenas algumas mudanças. O
registro legal da ABDE no Diário Oficial foi realizado em julho de 1945.
No termo de registro são definidas as normas básicas da Associação.
Desde as primeiras reuniões, é recorrente a idéia de criar um órgão
literário da ABDE para divulgar os trabalhos dos associados21. E é inte-
ressante observar o panorama cultural e literário de Goiás no momento
desta reivindicação.
No jornal O Observador, publicado em 194222, Modesto Gomes opina
sobre a situação literária de Goiás no período. A despeito do isolamento
do restante do país e dos centros literários mais dinâmicos, Modesto
Gomes antevê uma contribuição de peso que se desenvolve desde Hugo de
Carvalho Ramos e a lenta integração de Goiás ao resto do país. Para ele,
este processo deve-se à formação mineratória e agropastoril do Estado,
pouco afeito aos assuntos da cultura. É a ficção regionalista, para Modesto
Gomes, que acende a literatura goiana e a projeta para fora do Estado.
Este autor identifica duas correntes regionalistas importantes na década de
40: a terrígena e a primitivista.
A primeira, “de prosa rebuscante e difícil”, teve como iniciador Hugo
de Carvalho Ramos. Nesta corrente, criou-se uma realidade ficcional ve-
rossímil, “uma literatura de protesto, interessando-se vivamente pelo so-
frimento das criaturas, a miserável gente do interior de Goiás”. Os
continuadores de Hugo de Carvalho Ramos, como Bernardo Élis e Eli
Brasiliense, foram regionalistas que, ao trabalhar a realidade, o fizeram de
maneira literária e artística. Como escreveu Mário de Andrade a Bernardo
Élis: “jamais a gente percebe nos escritos de você aquele ranço do docu-
mento, tão prejudicial à ficção legítima. Você pega o documento e com
ótima desenvoltura o transforma num elemento seu, como nascido de você,
criando aquela realidade mais real que o real, que é do melhor espírito e
força da ficção”.23

21. ATA da primeira seção ordinária da ABDE de Goiás. Goiânia, 23 de junho de 1945.
22. GOMES, Modesto. Jornal O Observador – Goiás - Agora E Outros, 1942.p.1
23. ÉLIS, Bernardo. Caminhos e Descaminhos, Contos. Goiânia, Ed. Brasil Central, 1965.

29
A segunda corrente, a primitivista (na expressão de Gilberto Mendonça
Teles), teve como iniciador Pedro Gomes. Neste caso, a prosa interessa-se
mais pelos traços orais de fundo folclórico. BarianiOrtêncio, com dois livros
publicados na ocasião, era um legítimo representante dessa corrente,
segundo Modesto Gomes.24
Gilberto Mendonça Teles, tradicional crítico literário de Goiás, identi-
fica no período, importantes acontecimentos que, segundo ele, criaram
uma atmosfera propícia à criação e posterior consolidação da ABDE.
Antecedido predominantemente pelos ares românticos, o modernismo em
Goiás iniciou-se, segundo o autor, na década de 20, com a publicação de
Ontem, obra de Léo Lince (pseudônimo de Cileneu Marques de Araújo
Valle). Todavia, o movimento de 1930, a fundação de Goiânia, a criação da
Revista Oeste, além da instauração do Instituto Histórico Geográfico de
Goiás (1933) e da Academia Goiana de Letras, em 1939, revolveram o solo
da movimentação intelectual. Para o autor, entretanto, é a criação da Bolsa
Hugo de Carvalho Ramos, em 1943, o acontecimento mais relevante no
cenário literário e cultural de Goiás deste período. Como explica:

A Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, foi criada pelo decreto municipal n.475,
de março de 1943 e regulamentada pelo decreto nº 599, de 30 de abril do
mesmo ano. Em 1945, pelo decreto-lei nº 522 de 8 de outubro, passou a ser
supervisionada pela Associação Brasileira de Escritores – Secção de Goiás
(ABDE), que nesse ano se fundou em Goiânia. Apesar de seu funciona-
mento mais ou menos burocrático, a Bolsa Hugo de Carvalho Ramos é a
única entidade cultural que prestou e vem prestando efetiva contribuição às
nossas letras.25

De fato, logo que foi fundada, a ABDE assumiu a responsabilidade pelo


julgamento e premiação da Bolsa Hugo de Carvalho Ramos. Na Ata da
sessão de 01/09/194526, em reunião realizada na SGPA, há a nomeação da
Comissão Julgadora da publicação da Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, a
partir daí de responsabilidade da ABDE. A Comissão foi constituída por
Domingos Félix de Sousa, Maria Paula Godoy e Oscar Sabino Júnior.

24. GOMES, Modesto. Jornal O Observador – Goiás – Agora e Outros, 1942 p.1
25. TELES, Gilberto Mendonça. A Poesia em Goiás (estudo/antologia). Goiânia, Ed. UFG,
1983. p.132
26. ATA da 3ª Sessão da ABDE, Secção da Goiás, 01/09/1945.

30
Além do parecer sobre a obra em geral, os integrantes da comissão
comprometiam-se com a correção da obra, caso indicado.27
Os documentos encontrados na sede da UBE atual, demonstram o en-
volvimento dos representantes da ABDE, em 1946, com a Bolsa Hugo de
Carvalho Ramos, comprovando ser, esta, a atividade mais importante da
entidade no período. Em comunicação com a Prefeitura de Goiânia, as
obras aprovadas eram editadas em São Paulo, na Empresa Gráfica Revista
dos Tribunais Ltda. Necessário observar, que, mesmo tendo como presi-
dente oficial o nome de Cristiano Cordeiro, os ofícios desse ano são ende-
reçados ao secretário em exercício, Oscar Sabino Júnior, ou ao escritor
Bernardo Élis, referindo-se a ele como “presidente”, cargo que só assumiu,
legalmente, no ano seguinte.
Obra póstuma, Nos Rosais do Silêncio (1947), de Americano do Brasil, foi,
portanto, a primeira obra publicada pela Bolsa Hugo de Carvalho Ramos,
sob a supervisão oficial da ABDE. Considerado como pré-modernista por
Gilberto Mendonça Teles, em Nos Rosais do Silêncio, o autor se mostra como
um “poeta simbolista, pelos temas e concepções, pela musicalidade impressa às
palavras, pelas prosas poéticas ou sonoras, que constituem parte do livro. O
pré-modernismo, justifica-se, por outro lado, pela liberdade de expressão
concedida à feitura dos versos e a adoção de ritmos novos, pessoais”.28
Em ata da 4ª Sessão da ABDE, de 15/09/1945, os membros da comissão
reuniram-se para discutir e avaliar os pareceres sobre a obra Nos Rosais do
Silêncio. A obra foi aprovada e considerada de reconhecido valor histórico.
Em parecer de Marilda Palínea (pseudônimo de Maria Paula Fleury de
Godoy) ainda é possível observar a atmosfera de luta dos escritores e a
valorização das obras que, de alguma maneira causassem algum impacto
social:

Voto pela imediata publicação, como valioso documento de nosso passado


cultural, e por não ser uma obra frágil, cultural ou emocionalmente inútil,
antes uma obra importante pelo seu espírito de revolta, como sadio esforço
de evolução, de superação.29

27. Ofício nº 427, Protocolo 2223. De Venerando de Freitas Borges, Prefeito Municipal.
Destinado ao Dr. Cristiano Cordeiro, Presidente da Associação Brasileira de Escritores,
Secção de Goiás. 20/03/1945. Neste ofício, o prefeito encaminha ao presidente da ABDE,
as cópias da obra Nos Rosais do Silêncio, de Americano do Brasil, para parecer e correção.
28. TELES, Gilberto Mendonça. A Poesia em Goiás (estudo/antologia). Goiânia, Ed. UFG,
1983. p.109
29. ATA da 4ª Sessão da ABDE, secção de Goiás. Goiânia, 15/09/1945

31
Desde o princípio, a ABDE demonstrou preocupação em manter a
credibilidade do julgamento das obras a serem publicadas pela Bolsa Hugo
de Carvalho Ramos. Em 05/09/1945, o prefeito Venerando de Freitas
Borges, solicita da ABDE a avaliação da obra Musa Bravia, de Demóstenes
Cristino. Neste ofício, o prefeito informa a recusa de Léo Lince em julgar
a obra, pela proximidade entre o parecerista e o autor.30 Houve, portanto,
algumas recusas de avaliação e de publicação, que, embora com razões
subjetivas e de justificativa difícil, afirmaram que as comissões deveriam
tratar com respeito os autores concorrentes à Bolsa, tratamento adequado
ao escritor que deveria ser estimulado, em especial em Goiás, Estado onde
quase ninguém escrevia:

O livro “Vozes do Caminho”31 não deve ser publicado pela Bolsa de publi-
cações Hugo de Carvalho Ramos, mas o autor deve ser tratado como gente,
não como cachorro de estimação. E, se possível, que seja chamado a iniciar-
se nos misteres da ABDE, em homenagem a seu esforço na elaboração de
um livro, num Estado onde quase ninguém escreve.32

Com a ação contínua do secretário em exercício, Oscar Sabino Júnior e


o Presidente Bernardo Élis, as atividades da ABDE em 1947 foram intensas
e giraram em torno da Bolsa Hugo de Carvalho Ramos. Cartas e ofícios
demonstram que as reuniões aconteceram com freqüência e que já gravi-
tavam em torno da publicação de outras obras, a serem julgadas por
comissões alternadas: o livro Vida Pobre, que teve o seu título mudado para
Rio do Sono, de José Godoy Garcia, obteve sua publicação em 1948, além
da obra Pium, de Eli Brasiliense, que seria publicada em 1949. A ABDE
preocupava-se, também, com a distribuição das obras, como atestam as
comunicações do secretário da entidade com livrarias em que fosse
possível fazê-lo.33
30. Ofício nº 455, protocolo 2494. De Venerando de Freitas Borges, Prefeito Municipal.
Destinado ao Dr. Cristiano Coutinho Cordeiro, presidente da Associação Brasileira de
escritores, Secção de Goiaz. 05/09/1945.
31. De autoria de Manuel Ferreira Lima.
32. COSTA, Gerson de Castro. Ofício nº 1/46 de Bernardo Élis (Presidente em Exercício
da ABDE) endereçado ao Exmo. Sr. Prefeito Municipal de Goiânia. Secretaria ABDE,
Secção de Goiaz, 02/03/1946.
33. CARTA de Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça (Presidente da Casa do
Estudante do Brasil – CEB). Endereçada a Oscar Sabino Júnior, ABDE (Associação
Brasileira de Escritores), Secção de Goyaz, 07/04/1948. Fora transmitido ao diretor da
CEB uma cópia da carta que Oscar Sabino enviou a esta instituição pedindo que o livro Rio
do Sono fosse distribuído por sua livraria/editora, a fim de que lhe fossem prestadas
informações sobre as condições para a distribuição da obra.

32
Em vários ofícios fica evidente a dependência da ABDE, nas atividades
efetivas de publicação, das verbas liberadas pela Prefeitura de Goiânia e
que estavam relacionadas à Bolsa Hugo de Carvalho Ramos. A ABDE,
nascida sob influência dos protestos de intelectuais comunistas a favor da
liberdade de expressão, vinculava sua estrutura de funcionamento ao poder
público.
A década de 50 será um período importante na história da entidade.
Fatos externos à ABDE – Seção Goiás, bem como eventos ocorridos in-
ternamente, vão contribuir para que a associação se consolide e adquira
sua primeira sede. Antes, porém, vale analisar o panorama nacional da
matriz geradora das ABDEs regionais. A ABDE nacional sofre uma cisão e
os efeitos se fazem sentir em Goiás.
Com o fim do Estado Novo em 1945 e a redemocratização do país, o
Brasil conheceu um pequeno período de reconquista de algumas liberdades
democráticas como a liberdade de imprensa e de organização. Todavia,
com o fim da II Guerra e o início da Guerra Fria, houve perseguição
ideológica durante o governo Dutra (1946-1951). Em 1950, Getúlio volta
ao poder sob um equilíbrio tenso: de um lado, os militares e a UDN; de
outro, o movimento nacionalista apoiado por trabalhistas e comunistas.
A década de 50 será conhecida pela radicalização política e este fato
influenciou a história da ABDE.
É importante lembrar que a ABDE foi um importante instrumento de
manifestação a favor das liberdades. Diversos intelectuais que aglutinaram-se
em torno de sua criação e organização; irmanados na luta contra a ditadura
getulista na ocasião, mostrarão mais tarde suas divergências ideológicas.
Tais dissensões vão culminar com uma cisão na ABDE de São Paulo.
Buonicore considera os conflitos na ABDE como um dos momentos mais
dramáticos de cisão da intelectualidade brasileira. As discussões se acirraram
durante a eleição na associação em 1949. Concorreram, pela primeira vez,
duas chapas: uma apoiada pelos comunistas e outra pelos setores liberais e
democráticos. Da chapa de oposição liberal faziam parte os escritores
Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, dentre outros.
Buonicore relata que houve sérias agressões durante o evento e que, embora
os comunistas tenham vencido as eleições, a organização intelectual iniciada

33
na década de 40 perdeu força. “Os intelectuais paulistas não comunistas
eram taxados de escória da terra, em que pontificam tarados, renegados,
lumpens e até mesmo alguns retardados mentais”.34 Para os mais sectários
comunistas, Carlos Drummond foi considerado “um anticomunista raivoso,
para quem a lealdade jamais constituiu uma pedra no caminho”.35 Drummond
explica em seu diário que desejavam uma associação livre de sectarismos e
que tal ponto de vista era inconcebível para o comando comunista que
venceu as eleições da entidade em 1949.36
Em Goiás a situação social era, também, dramática. Mesmo com o pano-
rama democrático e populista inaugurado com a era Ludovico, a década de
50 foi o período do acirramento de muitas questões sociais. Cite-se, como
exemplo, os conflitos de terra na região de Trombas e Formoso, no muni-
cípio de Uruaçu (1952). Todavia, é importante assinalar o atrelamento da
ABDE, desde a sua criação, ao apoio e à subvenção política, articulados
desde a primeira presidência, como já foi mencionado. Fato que, se por
um lado, criava uma certa dependência estrutural da entidade ao poder
político, por outro não parecia interferir, de forma direta, na maneira como
os escritores, em pequeno número, pensavam e elaboravam suas obras.
Nos primeiros anos da década de 50, os documentos encontrados na
entidade tratam dos pareceres sobre as obras a serem publicadas pela Bolsa
Hugo de Carvalho Ramos e a defesa da tônica regional das publicações.
São de 1951 os pareceres sobre a obra Gente deRancho, de Léo Godoy
Otero. Neles há uma exaltação aos aspectos regionais presentes na lingua-
gem do autor – que não usou termos caipiras só nos diálogos – mas na
construção das personagens, considerados tipos característicos de Goiás.
O livro é recomendado porque “tem mais exatidão sobre os costumes e
comportamentos da gente da roça e das favelas goianas”.37
A defesa da temática regional e realista ainda estava de acordo com a
perspectiva comunista de fazer literatura engajada. Em 1953, há um pare-
cer de José Godoy Garcia sobre a obra Dentro da Noite, de José Milton
Vianna. Nela, pode-se observar uma defesa apaixonada da literatura de
34. BUONICORE, Augusto. Comunistas, Cultura e Intelectuais entre os anos de 1940 e 1950.
Revista Espaço Acadêmico, 2003. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.
35. Opinião de Osvaldo Peralva. Idem.
36. BUONICORE, Augusto. Idem
37. PARECER, de Pedro Gomes sobre a obra Gente de Rancho, de Léo Godoy Otero.
Goiânia, ABDE, 30/11/1951.

34
cunho social e da inadequação, para a época, dos “romantismos das velhas
escolas”. José Godoy Garcia inicia esclarecendo que não leu todos os
poemas do livro, pois achou desnecessário, e que apenas examinou cerca
de vinte poemas de José Milton Vianna para concluir que não era preciso
estudo de todos eles, uma vez que “conhecer o poema de um romântico é
conhecer mil”.38 Em seguida, reconhece na poesia de José Milton Viana “o
romantismo da velhíssima escola, o qual se não for abandonada pelo poeta
jamais lhe renderá dinheiro”. Neste caso, afirma, “somente aquilo que há
de juventude em sua obra, e é de fato, o que mais há, poderá fazer dele
uma criatura do seu tempo”.39
José Godoy Garcia continua seu parecer e declara que “somente é fonte
para a justa poesia e para uma criação literária viva, os anseios dos humil-
des, dos oprimidos, das camadas mais baixas e profundas do povo, as an-
gústias das gentes simples, humilhadas, famintas, revoltadas, as lendas e
histórias populares”.40 Acrescenta que a poesia de J. Milton Vianna não
bebe desta fonte. Mesmo assim, para acender o debate literário, o parece-
rista recomenda a publicação da obra, o que de fato ocorreu em 1955.
Gilberto Mendonça Teles identifica muitos acontecimentos significativos
para a cultura em Goiás, desde a década de 40. Desde a vinda de Bernardo
Élis do I Congresso Nacional de Escritores em 1945, até a década de 50,
muitos outros eventos iriam fomentar a dinâmica intelectual literária e
cultural no Estado. De todos, destaca três: a Fundação da Associação Goiana
de Teatro (AGT) – idealizada por Otavinho Arantes – que apresentou um
texto de Mário Lago, em 1946; o lançamento do jornal Goiaz Moço, em
1948, que, embora de vida curta, contribuiu para o lançamento de novos
valores literários, além da Fundação da Faculdade de Filosofia de Goiás,
em 1949, hoje parte integrante da Universidade Católica de Goiás, insti-
tuição que estimulou os estudos literários e acadêmicos na região.41
A cisão da ABDE em São Paulo e o acirramento das questões ideológicas
podem ter influenciado a quebra da euforia literária e continuidade de

38. PARECER de José Godoy Garcia sobre a obra: Dentro da Noite, de José Milton Vianna.
Goiânia, ABDE, 03/11/1953.
39. Idem.
40. Idem.
41. TELES, Gilberto Mendonça. A Poesia em Goiás (estudo/antologia). Goiânia, Ed. UFG,
1983. p.133-134

35
publicações em Goiás durante os anos de 1950 e 1955.42 Este “marasmo
literário” estará entre dois acontecimentos importantes na capital: o I Congresso
Nacional dos Intelectuais (1954) e a I Semana de Arte em Goiás (1956).
O I Congresso Nacional dos Intelectuais foi realizado em Goiânia, no
período de 14 a 21 de fevereiro de 1954. Sob a presidência de Xavier Júnior
e assessorado por mais de cinqüenta intelectuais goianos, o Congresso
perseguiu os seguintes objetivos: defender a cultura brasileira e estimular
seu desenvolvimento, preservando suas características nacionais; promover
o intercâmbio intelectual entre os povos; discutir os problemas éticos e
profissionais dos intelectuais.
Ao Congresso compareceram nomes internacionais como Pablo Neruda
(Chile), Fernando Correa Silva (Portugal), René Depreste (Haiti), Gabriel
Darboussier (França), Assunción Flores (Paraguai), dentre outros. Vieram,
também, representantes de outros Estados. A participação local ficou a
cargo de todos os intelectuais envolvidos na Revista Oeste, segundo Gilberto
Mendonça Teles. A ideia, segundo este autor, era realizar um encontro
que restabelecesse a união dos intelectuais, divididos por causa da cisão em
São Paulo, em 1950. Como explica:

A história desse I Congresso Nacional de Intelectuais, realizado em Goiânia,


em 1954, pode ser assim resumida: Derrubada a ditadura e finda a Guerra
Mundial, começam a agitar os escritores brasileiros em vários Estados. Em
Goiás, a conseqüência imediata foi a criação de uma secção da ABDE, em
1945. Neste mesmo ano, realizou-se em São Paulo o I Congresso Brasileiro
de Escritores, promovido pela ABDE. Marcou-se outro para dois anos
depois, que se realizou em Belo Horizonte, em 1947. Em 1949, realizou-se
o III, desta vez na Bahia. Por ocasião do IV Congresso Brasileiro de Escritores,
realizado em Porto Alegre, um dos nossos representantes, Domingos Félix
de Sousa, mesmo contra seus companheiros (Bernardo Élis, D. Amália
Hermano, etc), se bateu para que o V Congresso se realizasse em Goiânia,
no que foi atendido. Mas, por essa época, com a infiltração de idéias comu-
nistas na Associação Brasileira de Escritores, houve uma cisão em São Paulo,
imitada depois nos outros Estados, criando-se mesmo novas instituições.

42. “De 1950 a 1955 um marasmo geral tomou conta de nossas letras, registrando-se
apenas o lançamento de Poemas e Elegias (1953), de José Décio Filho e Alvorada (1955) de
Gilberto Mendonça Teles”. Idem, p.31. Interessante que o autor desconsidere os livros de
José Vianna (Dentro da Noite), de 1955, de características românticas, e mesmo a obra de
Leo Godoy Otero, publicada em 1954, e que obteve excelentes pareceres no início da
década de 50, o livro regionalista Gente de Rancho. O autor também não comenta a
publicação de Leolídio di Ramos Caiado, em obra premiada pela Bolsa Hugo de Carvalho
Ramos e publicada em 1952: Expedição Sertaneja Araguaia-Xingu.
36
Então, para que se unissem, não somente os escritores, mas todos os inte-
lectuais brasileiros, em vez de realizar em Goiânia o V Congresso Brasileiro
de Escritores, programou-se o I Congresso Nacional de Intelectuais, que
conseguiu atingir os seus objetivos.43

Não há registros, na entidade, de atas ou documentos que indiquem o


processo de transição na presidência da ABDE – seção Goiás, da direção
de Bernardo Élis, para outra pessoa, em 1949. Todavia, sabe-se, por docu-
mentos mais pontuais e classificatórios, que a presidência da UBE, ficou a
cargo de Eli Brasiliense de 1950 a 1955. Jornalista, educador e escritor, sua
notoriedade deve-se à publicação de Pium, pela Bolsa Hugo de Carvalho
Ramos, em 1949, no mesmo ano em que assumiu a presidência. Por meio
desta obra, segundo Sérgio Milliet, criou-se uma nova província literária
no Brasil, contrabalançando o peso das publicações do Rio de Janeiro e de
São Paulo.44
Em entrevista concedida a Geraldo Coelho Vaz em 1989, Eli Brasilien-
se explica os maiores desafios da entidade durante os anos em que exerceu
a presidência e destaca a importância do I Congresso Nacional de Intelec-
tuais:

Em primeiro lugar, era a falta de dinheiro para uma instalação funcional da


entidade. Tivemos, também, que enfrentar a descrença em qualquer inicia-
tiva, pelo pequeno número de associados, numa época em que imperava o
berro do zebu. Superando tudo isso, conseguimos realizar o I Congresso
Brasileiro de Intelectuais, com a ajuda do Estado, que nos deu uma verba
de quinhentos mil cruzeiros. Hospedamos todos os participantes e ainda
sobrou dinheiro. A idéia foi muito criticada no início, mas teve logo o apoio
de todos os intelectuais goianos, do Brasil e do Exterior.45

Se o I Congresso Brasileiro de Intelectuais não foi suficiente, de fato,


para estimular as letras em Goiás, ou mesmo resolver, em definitivo, todos
os problemas da ABDE, outro acontecimento, após o último ano da
presidência de Eli Brasiliense, iria somar-se aos esforços de congregar
43. TELES, Gilberto Mendonça. A Poesia em Goiás (estudo/antologia). Goiânia, Ed. UFG,
1983. p.135.
44. VAZ, Geraldo Coelho. Entrevista realizada com Eli Brasiliense. Jornal Voz do Escritor, Órgão
de Divulgação da União Brasileira de Escritores, secção de Goiás. Ano I, Junho de 1989, n.2.p.8
45. BRASILIENSE, Eli. O Brasil Macaqueia. Jornal Voz do Escritor, Órgão de Divulgação da
União Brasileira de Escritores, secção de Goiás. Ano I, Junho de 1989, n.2.p.8

37
intelectuais e escritores, além de divulgar e estimular a cultura artística: a
realização da I Semana da Arte em Goiás (1956). A Semana da Arte foi
realizada no primeiro ano da gestão de José Bernardo Félix de Souza
(1956-1957).
José Bernardo Félix de Souza nasceu em família de intelectuais e, para-
lela à sua atividade como escritor, exerceu vários cargos públicos e foi
professor nas Universidades de Goiás. Não há, na entidade, registros que
dêem detalhes de sua eleição para presidente da ABDE – Seção Goiás.
Sabe-se, entretanto, que exerceu o mandato por dois anos e que durante
sua gestão, as atividades culturais da ABDE continuaram seu curso. É desse
período, também, a conquista de um apoio importante para a entidade:
a definição legal de uma subvenção anual, a ser paga pelo Estado para,
dentre outras atividades, auxiliar na manutenção da entidade, como será
explicado adiante.
Sob a responsabilidade do novo presidente da ABDE, José Bernardo
Félix de Souza, foi, então, realizada a I Semana da Arte em Goiás (1956).
Segundo Gilberto Mendonça Teles, a Semana foi pensada pelo Prof. José
Bernardo Félix de Souza para motivar o ambiente literário. Para este
seminário, foram convidados livreiros e alguns escritores paulistas como
Domingos Carvalho da Silva, Mário Donato, Antônio Rangel Bandeira e
Homero Silveira. Em seu pronunciamento, este último reacendeu a polê-
mica iniciada no ano anterior, por ocasião de um evento realizado no
Jóquei Clube para homenagear escritores iniciantes, em que o Prof. Zecchi
Abraão afirmou que em Goiás “nunca houve literatura”. Na I Semana da
Arte em Goiás, Homero Silveira fez várias críticas aos escritores goianos,
especialmente por não se adequarem aos valores poéticos do modernismo,
em sua terceira fase. Embora houvesse protestos, o próprio Eli Brasiliense
assim se expressou sobre o episódio: “cavalo que anda com passo lerdo
precisa mesmo de algumas lambadas”.46
Para Gilberto Mendonça Teles, esta polêmica teve uma repercussão
positiva no período. Ela foi a grande motivadora do grupo literário “Os
Quinze”, grupo encabeçado por Regina Lacerda e que reuniu diversos es-
critores e artistas em fevereiro de 1956. Este grupo chegou a fazer circular,
no ano seguinte, o único número do jornal Poesia, jornal em que o grupo

46. TELES, Gilberto Mendonça. A Poesia em Goiás (estudo/antologia). Goiânia, Ed. UFG,
1983. p.171

38
revela sua identidade com os poetas da “Geração de 45”. Os autores esco-
lhidos para integrar o grupo eram os considerados da nova geração: Regina
Lacerda, A.G. RamosJubé, Elísio de Assis Costa, Jesus Barros Boquady,
Gilberto Mendonça Teles, Édison Alves de Castro, Maria Ivone Rodrigues,
Raimundo Rodrigues, Irorê Gomes de Oliveira, Eurico Barbosa, Benedito
Odilon Rocha, Frei Nazareno Confaloni, Jacy Siqueira, Minerval Benedito
de Oliveira e José Leão. No artigo de fundo do jornal Poesia, escrito por A
G. Ramos Jubé, os quinze apoiaram um manifesto. Nele, prometeram lutar
pela cultura de sua terra e que, concordavam com Bernardo Élis quando
afirmava que o empenho dos escritores deve ser o de criar um ambiente
cultural que os liberte do isolamento e da rotina que os sufoca e estiola. O
manifesto dos Quinze termina com uma exaltação à união: “somos quinze,
porém somos toda a geração literária de Goiás, uma vez que nela estamos
integrados”.47
De fato, a polêmica e as rivalidades deram o tom da entrevista concedida
ao Jornal do Escritor em 1989, pelo presidente da ABDE, José Bernardo Félix
de Souza:

Havia uma certa rivalidade entre o pessoal da entidade, mas eu superava essas
questões.(...) Acho que tudo não passa de puro despeito. Há escritores que,
se aparecem, conseguem se projetar lá fora, são esquecidos aqui.48

O presidente também assinala o maior desafio dos escritores goianos:


encontrar meios de publicação e distribuição de suas obras. No relatório
que José Bernardo Félix de Sousa faz para nova diretoria da vida da insti-
tuição entre os anos de 1956 e 1957, há referências à I Semana da Arte e à
subvenção anual concedida pelo Estado à ABDE, para custeio e manutenção
da entidade.
A eleição da nova diretoria foi convocada em abril de 1957. No Edital de
convocação, há uma indicação do endereço da ABDE, local em que pro-
vavelmente as reuniões eram realizadas: a sede social da Associação Goiana
de Imprensa-AGI, no Edifício Goiamat, Av. Goiás, n°32, 2º andar.49 De
fato, convocadas as eleições, a nova diretoria foi eleita em 16/05/1957.
47. Idem, p.172-173.
48 SOUZA, Bernardo Félix de. Tudo Continua Igual. Entrevista. Jornal Voz do Escritor, Órgão
de Divulgação da União Brasileira de Escritores, secção de Goiás. Ano I, Julho de 1989, n.3.p.8
49. Edital. Associação Brasileira de Escritores, secção de Goiás, 15/04/1957. O endereço
completo também pode ser visualizado no Formulário para a Realização do II Curso de
Literatura da Associação Brasileira de Escritores – Secção de Goiás, no início da década de
1960
39
A gestão de Oscar Sabino Júnior contribuiu, de maneira concreta, para
o processo de consolidação da ABDE. Com as conquistas da administração
anterior, Oscar Sabino deu continuidade ao processo de abertura dos canais
de publicação e divulgação dos escritores. Em carta de 08/11/1957, o novo
presidente informou ao Secretário de Educação, José Feliciano Ferreira,
que, pela lei nº 1.229 de 05 de julho de 1956, foi concedida, à ABDE, sub-
venção anual ordinária de cento e vinte mil cruzeiros, sendo que a quantia
de sessenta mil cruzeiros seria destinada à criação de uma bolsa de publi-
cações, de caráter permanente, para a edição de obras de escritores con-
temporâneos residentes em Goiás, cuja regulamentação ficaria a cargo da
entidade beneficiada. Informa, ainda, que atendendo a disposições da lei,
remetia ao secretário, para ser referendado, o Regulamento da Bolsa apro-
vado pela diretoria da ABDE de Goiás, em reunião realizada no dia
27/07/1957.50
Neste ano, houve, ainda, a inscrição de sete obras para concorrer à
Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, além do planejamento de publicação de um
Anuário Cultural da entidade e da execução de um Curso de Literatura.51
Os recursos carreados pela subvenção anual, entretanto, foram utilizados
para as publicações da recém criada Bolsa da ABDE, como demonstram as
obras O Cego (Jesus Barros Boquady)52, Fábula de Fogo (Gilberto Mendonça
Teles) e Música e Maestro (Basileu Toledo França)53, editadas em 1959,
1961 e 1962, respectivamente.
Gilberto Mendonça Teles vê certa dinâmica nas produções literárias
deste período, com a emergência de autores inéditos. De fato, o apoio
político e as atividades programadas parecem ter dinamizado a entidade,
estimulado os escritores e propiciado meios de melhorar a estruturação
física. Nesse sentido, a mais importante realização da administração de
Oscar Sabino Junior, talvez tenha sido a aquisição de uma sede própria.
50. CARTA de Oscar Sabino Júnior, endereçada ao Secretário de Estado da Educação, José
Feliciano Ferreira. Goiânia, ABDE, 08/11/1957.
51. CARTA de Oscar Sabino Júnior convocando Reunião de Diretoria. Associação
Brasileira de Escritores, Goiânia, 18/12/1957.
52. CARTA de Oscar Sabino Júnior endereçada à Revista dos Tribunais, Associação
Brasileira de Escritores, secção de Goiás, Goiânia, 26/01/1959. Remete os originais do livro
O Cego, de Jesus Barros Boquady, Prêmio Léo Lince da Bolsa de Publicações da ABDE.
53. CARTA de Bernardo Élis endereçada à Revista dos Tribunais, Associação Brasileira de
Escritores, Secção de Goiás, s/d. Remete os originais dos livros Fábula de Fogo, de Gilberto
Mendonça Teles e Música e Maestro, de Basileu Toledo França, premiados pela Bolsa de
Publicações da ABDE – GO.

40
Até este momento, as reuniões da ABDE continuavam a acontecer na sede
social da AGI (Associação Goiana de Imprensa). Oscar Sabino e Bariani
Ortêncio (tesoureiro) relatam que houve uma venda antecipada das salas
do Edifício Vila Boa, na Av. Goiás.54 Uma sala foi adquirida no Edifício, a
sala 409, que só seria entregue três anos depois, na gestão de Gilberto
Mendonça Teles (1960-1963). Bariani Ortêncio assinala que a associação
era uma das únicas no Brasil que possuía sede própria:

Quando foi feito o Edifício Vila Boa, foram vendidas, por antecipação, as
salas e a UBE55, na gestão de Oscar Sabino, e eu era o seu tesoureiro, com-
prou uma. A única União Brasileira de Escritores que na época funcionava
com sede era a nossa.56

Oscar Sabino explica que a aquisição da sede no Edifício Vila Boa é a


realização de que mais se orgulha enquanto esteve à frente da entidade.
Destaca, também, que se esforçou para completar a organização com a ca-
talogação de documentos e estruturação do arquivo e expedição de cartei-
ras para os sócios.57
Enquanto isso, em São Paulo e no Rio de Janeiro, movimentos nacionais
iriam influenciar os rumos da ABDE. A queda de Getúlio Vargas, a subida
de Juscelino Kubitschek e João Goulart iriam arrefecer os radicalismos nas
entidades do sudeste. Os sectarismos não tinham mais razão de ser, pois,
de alguma forma, os movimentos sociais e políticos conquistaram espaços
de expressão no cenário nacional. Não era mais tão necessária a militância
radical em associações de classe utilizadas como canais de propaganda
política e protesto.
54. Para Bernardo Elis, Oscar Sabino foi muito importante para a instituição. Como
afirma: “por força de uma verba escassa doada à ABDE pelo Governo Estadual, Oscar
Sabino planejou comprar em prestações, a sala onde funciona a entidade. Silenciosa e
eficientemente, Oscar Sabino Júnior pagou até o derradeiro vintém e deu a ABDE a
referida sala que, com o presidente Bariani Ortêncio, leva o nome de meu pai (o poeta
Erico José Curado). Se a temos, devemô-la a Sabino.” Elis, Bernardo em entrevista a
Roberto Pimentel. Jornal Folha de Goiaz, Folha Cultural, 1983.
55. Na ocasião, ainda ABDE.
56. ORTÊNCIO, Bariani. Direito Autoral é uma Vergonha. Entrevista. Jornal Voz do
Escritor, Órgão de Divulgação da União Brasileira de Escritores, secção de Goiás. Ano I,
Novembro de 1989, n.7.p.8
57. SABINO JUNIOR, Oscar. Preço do Livro Desestimula. Entrevista. Jornal Voz do
Escritor, Órgão de Divulgação da União Brasileira de Escritores, secção de Goiás. Ano I, agosto de
1989, n.4.p.8

41
Com efeito, em 1958, resolveu-se a antiga cisão da ABDE ocorrida
quase dez anos antes por questões ideológicas. Em 17 de janeiro de 1958, a
Associação Brasileira de Escritores – seção de São Paulo e a Sociedade
Paulista de Escritores, fundem-se e constituem a UBE – União Brasileira
de Escritores – seção de São Paulo, tendo seu estatuto registrado em
14/02/1958.58 A primeira Diretoria foi, então, constituída, tendo como
presidente, Sérgio Milliet e, em seus quadros de apoio, Menotti Del Picchia
e Sérgio Buarque de Holanda, dentre outros. A nova entidade comprometia-
se, a partir da Assembléia Geral de Fundação, a manter-se autônoma,
embora fosse desejo constituir federação com as demais agremiações
literárias no país.
A autonomia não se referia apenas aos outros estados e as ABDEs existen-
tes, mas, especialmente, à liberdade de expressão e criação dos associados,
livre de influências políticas que a desviassem dos verdadeiros objetivos e
natureza da entidade.
Os documentos da ABDE – Seção Goiás confirmam a posição de inde-
pendência política. Em correspondência de Antônio D’Elia, Secretário
Geral da UBE – São Paulo com Oscar Sabino Junior – Presidente da ABDE,
seção Goiás, e com outras filiadas, houve uma exposição de motivos para o
adiamento do V Congresso Nacional de Escritores, projetado para realizar-
se naquele ano: a dificuldade de manter uma posição de independência dos
temas políticos mais polêmicos durante o evento, o que poderia prejudicar
a recente reunião das entidades.
Os anos posteriores iriam assistir, em Goiás, ao prosseguimento da po-
lítica de união defendida pela UBE-São Paulo. A ABDE, seção Goiás, será
transformada em UBE-Seção Goiás, por meio da aprovação de um novo
Estatuto. A despeito desse passo, seriam anos difíceis, em que a complexa e
tumultuada conjuntura do período pré-ditadura militar iriam provocar um
retrocesso na organização e conquistas da entidade. Mas isso é assunto
para outro texto.

58. CARNEIRO, Caio Porfírio e SAYEG, J.B. A Vocação Nacional da UBE: 62 anos. São
Paulo: RG Editores, 2004. p.28.

42
I Congresso Nacional dos Intelectuais:
A intelectualidade goiana reage ao
isolamento cultural
Fernando Martins dos Santos

N a nova capital de Goiás, o ambiente cultural era cada mais efer-


vescente. A cidade já contava com o Liceu de Goiânia, a Escola Técnica
Federal, a Escola Normal, o Grupo Escolar Modelo e com a Academia
Goiana de Letras. A nova capital passava a viver cada vez dentro dos
conceitos da modernidade, como mostra o arquiteto Gustavo Neiva Coelho:

Implantada dentro desses conceitos de modernidade, desenvolvimento e


progresso, a cidade de Goiânia tem, em um primeiro momento, a arquite-
tura, como carro-chefe do seu desenvolvimento cultural e artístico. A
modernidade da Art Déco […]. E é essa visão de modernidade que vai
desencadear um processo de discussão e consequente avanço cultural no
sentido de tentar aproximar Goiânia dos grandes centros culturais do litoral
brasileiro. Nesse momento surgem edifícios do porte do Teatro Goiânia e
da Estação Ferroviária, além de monumentos como o coreto da Praça Cívica
[…]. Eventos culturais traziam até Goiânia nomes do primeiro escalão da
literatura nacional, como Monteiro Lobato, e Jorge Amado, e mesmo
internacional, como o Prêmio Nobel chileno Pablo Neruda. (COELHO,
1998, p. 35)

Oficialmente, o primeiro grande evento cultural feito em Goiânia foi o


seu Batismo Cultural1, em 1942, que foi marcado por um variado pro-
grama cultural, de considerável importância tendo em vista que, “através
de Goiânia o País volta-se para Goiás” (DOLES e MACHADO, 1998, p. 38).
1. “No Batismo Cultural, a cidade se viu tomada por uma série de eventos significativos: a
reunião dos Conselhos Nacionais de Geografia e Estatística, a Exposição-Feira de Animais,
a Semana Ruralista e o 8º Congresso Brasileiro de Educação. Inaugurou-se o Cineteatro
Goiânia, com a apresentação da peça Colégio Interno, que trouxe a atriz Eva Tudor, no papel
principal. Foi também apresentado o filme Divino Tormento, estrelado por Janet
MacDonald e Nelson Eddy. Coroando esse pot-pourri de eventos, a Orquestra Sinfônica de
Goiás, apresentou-se no Palácio das Esmeraldas sob a regência do maestro Joaquim Edson
de Camargo, músico de saudosa memória para todos que conhecem a história musical do
Estado.” (DOLES e MACHADO, 1998, p.38)
43
Com o Batismo Cultural de Goiânia e seus ilustres visitantes, os artistas
locais passaram a se reunir com maior frequência para discutir o que estava
em pauta no contexto cultural do Estado e do Brasil e ainda mostrar o que
estavam produzindo. Foi neste contexto que surgiu a primeira escola de
arte do estado, a Sociedade Pró-Arte de Goyaz, em 1945.
A Sociedade Pró-Arte de Goiás foi liderada pelo músico, escultor e
arquiteto José Amaral Neddermeyer2, que contou com a participação de
outros artistas, como José Edilberto Veiga3 e Jorge Félix4. Mesmo tendo
como principal atração a música, foi aberta pela Pró-Arte uma pequena
escolinha de artes, onde os três principais nomes do movimento davam
aulas gratuitas e ao ar livre5.
Mesmo não conseguindo um grande volume de produção para criar
uma nova cena artística, a Sociedade Pró-Arte de Goiás se organizava para
fazer uma exposição6 por ano, que ocorreu entre 1945 a 1947, com a prin-
cipal intenção de demonstrar o que os artistas goianos estavam produzindo
naquele momento. A Pró-Arte não teve uma vida longa no cenário artísti-
co de Goiânia, mas, devido aos artistas ligados a ela, o movimento foi a se-
mente do que viria a ser o ambiente artístico na cidade.

2. Pintor, escultor, músico e arquiteto, nasceu em São Paulo em 1894 e faleceu em Goiânia
em 1951. Arquiteto formado pela Universidade Mackenzie em 1918, fez curso de escultura
no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, SP, e mudou-se para Goiânia na década de 30
para projetar e chefiar a execução e de obras da nova capital. Em, 1942 quando do Batismo
Cultural de Goiânia, organizou e participou da 1ª Exposição de Artes Plásticas da Cidade.
(MENEZES, 1998, p. 151)
3. José Edilberto da Veiga Jardim. Nasceu na Cidade de Goiás em 1906 e faleceu em
Goiânia em 1975, onde foi professor do Liceu de Goiânia. Pintor e exímio desenhista.
(MENEZES, 1998, p. 151)
4. Jorge Félix de Sousa. Nascido na Cidade de Goiás em 1908, faleceu em Goiânia, onde
residiu desde o início da capital (…). Era arquiteto, formado pela Universidade Brasil, e foi
aluno da Escola de Belas-Artes do Rio de Janeiro, com especialização em Modelagem e
Aquarela. (MENEZES, 1998, p. 150)
5. A escolinha que funcionou, de 1948 a 1949, chegou a ter cerca de 20 alunos, e
normalmente as aulas aconteciam na Praça Cívica em frente ao Palácio das Esmeraldas,
mas logo o governador cedeu duas salas no Museu Estadual de Goiás.
6. Em 1945 a Pró-Arte realizou uma mostra denominada “I Exposição de Pintura,
Escultura e Arquitetura”, com apenas 10 trabalhos. O evento repetiu-se em 1946 com 17
participantes e 67 trabalhos. Em 1947 haviam 25 participantes e 145 trabalhos.
(FIGUEIREDO, 1979, p.93)

44
A experiência da Pró-Arte foi importante para gerar uma certa inquietude
entre os artistas goianos. De acordo com Amaury Menezes: “Neddermeyer,
Veiga, e Jorge Félix, da Pró-Arte, mais Peclat7, Ritter, sob a liderança de
Luiz Curado8, continuavam planejando a fundação de uma escola de artes”
(1998, p. 41). Já em 1950, Luiz Curado e Ritter planejavam criar uma
escola infantil para desenvolver as habilidades voltadas para desenho e
instrução artística, tentando associar teoria e prática. Os dois artistas
queriam implementar novos conceitos artísticos na arte goiana, que ainda
era dominada por uma arte conservadora.
Em 1950, chegou à Cidade de Goiás o frei dominicano Nazareno
Confaloni. O frei foi convidado por Dom Cândido Penso para pintar
afrescos na Igreja do Rosário, onde foram feitos quinze painéis e o altar-
mor representando os Mistérios do Rosário. Por ter feito um estilo de
pintura mais contemporânea, a população local, que não estava acostumada
com o novo estilo, considerava-o como “pintor louco” e que pintava “cristos
horríveis” (FIGUEIREDO, 1979, p. 94).
Sabendo da presença desse novo pintor na Cidade de Goiás, Luiz Curado
foi ao seu encontro para conhecer seu trabalho e conseguir sua adesão para
o movimento idealizado por ele e Gustav Ritter. Seu primeiro passo foi
tentar conseguir a transferência de frei Confaloni9 para Goiânia, que logo
foi concedida pelo bispo.
Com Luiz Curado, Gustav Ritter10 e frei Confaloni, foi concebido o
projeto de criar uma instituição de ensino superior, a Escola Goiana de
7. Antônio Henrique de Peclat (Peclat Chavannes). Nasceu em 27-7-1913 na Cidade de
Goiás e faleceu em Goiânia em 1988. Pioneiro na nova capital, mudou-se para Goiânia em
1937 para lecionar desenho no Lyceu de Goiânia. Entre 1941 e 1944 residiu no Rio de
Janeiro, onde estudou na Escola Nacional de Belas-Artes (MENEZES, 1998, p. 214)
8. Luiz Augusto do Carmo Curado. Nasceu em 1919, na cidade de Pirenópolis/GO e faleceu
em Goiânia em 28-7-1996. Escultor, gravador e principalmente professor (…). Fundador da
EGBA, como os outros artistas eram poucos afeitos aos problemas administrativos, teve no
professor Luiz o coordenador das atividades didáticas e pedagógicas da Escola, em prejuízo
do seu trabalho como artista plástico. (MENEZES, 1998, p. 167)
9. Frei Giuseppe Nazareno Confaloni. Nasceu em Grotte do Castro, Viterbo, Itália, em
23-1-1917, e faleceu em Goiânia em 4/6/1977. Ainda na Itália, ordenou-se sacerdote da
Ordem Dominicanos em 1939. Veio para o Brasil em 1950, fixando residência na Cidade
de Goiás, onde pintou os 15 afrescos da Igreja do Rosário (MENEZES, 1998, p. 200).
10. Henning Gustav Ritter. Nascido em Hamburgo/Alemanha, em 10-3-1904, faleceu em
Goiânia em 22-10-1979. Iniciou seus estudos de arte em Hamburgo, em 1935 veio para a
América do Sul (Peru) e ano seguinte para o Brasil, naturalizando-se brasileiro em 1947. Em
Goiânia, foi professor de carpintaria na Escola Técnica Federal de Goiás (MENEZES, 1998,
p. 222).

45
Belas Artes, fundada em 1º de dezembro de 1952. A instituição teve como
professores-fundadores Luiz Curado, Gustav Ritter, frei Confaloni, Antônio
Peclat, José Edilberto da Veiga e Jorge Félix de Sousa.
A Escola Goiana de Belas Artes só teve sua inauguração em março de
1953. Seu funcionamento ocorreria em prédio cedido pela viúva de Ned-
dermeyer, Dona Ruth, na rua 9, no centro de Goiânia, tendo Luiz Curado
como diretor, e ainda exercendo funções didático-pedagógica e artísticas.
Para este ano, foi oferecido um “Curso de Preparação” ao exame de
habilitação. Para o ano seguinte, era constituído de três matérias: Desenho
Artístico e Pintura, que era ministrada por frei Confaloni e Peclat; Desenho
Geométrico, que era ministrada por José Edilberto da Veiga e Modelagem,
ministrada por Gustav Ritter.
Ao mesmo tempo que se fez a inauguração da EGBA, também foi feita
a abertura da 1ª Exposição Coletiva dos Professores da EGBA, no hall de
entrada da escola. A seguir, o cartaz da exposição inaugural da EGBA
(Imagem 01) e a lista das peças de Veiga Valle que fizeram parte da exposição
(Imagem 02).
O fato se mostra importante para o reconhecimento de Veiga Valle co-
mo o principal artista goiano do século XIX, sendo que em uma exposição
de temas mais ligados ao modernismo brasileiro e de inovação artística, ele
foi rememorado como um artista importante para a arte goiana.
Neste clima de inovação e valorização artística, no ano de 1954, Goiânia
vivenciou um dos eventos mais audaciosos: o “I Congresso Nacional de
Intelectuais”, realizado entre os dias 14 e 21 de fevereiro, que foi “resultado
da reação de intelectuais goianos ao isolamento cultural da jovem
metrópole do oeste” (FIGUEIREDO, 1979, p. 94).
O Congresso foi organizado por Xavier Júnior, presidente da Academia
Goiana de Letras (AGL) e teve apoio da Associação Brasileira de Escritores
(ABE). O Manifesto de Convocação contou 1082 assinaturas, dos mais
variados campos, como: artistas plásticos, romancistas, poetas, jornalistas,
músicos, cineastas, advogados, médicos, juristas, radialistas e entre outros.
De acordo com Boletim de preparação para divulgarem suas diretrizes e
metas, alguns dos temas propostos foram: Defesa da cultura brasileira e
estímulo ao seu desenvolvimento, preservando-se as características nacionais;
intercâmbio cultural com todos os povos; problemas éticos e profissionais
dos intelectuais; salvaguarda das fontes e dos elementos populares da cultura.

46
Imagem 01: Capa do programa da Exposição inaugural da EGBA.
Fonte: FECIGO. Foto: Fernando Santos (2017).

47
Imagem 02: Obras de Veiga Valle que foram expostas na Exposição inaugural da EGBA.
Fonte: FECIGO. Foto: Fernando Santos (2017).

48
Sobre as motivações do Congresso ter sido feito em Goiânia, o escritor
goiano Gilberto Mendonça Teles, escreveu:

A história desse “I Congresso Nacional de Intelectuais”, realizado em Goi-


ânia em 1954, pode ser assim resumida: Derrubada a Ditadura e finda a
Guerra mundial, começam a agitar-se os escritores brasileiras, em vários
Estados. Em Goiás a consequência imediata foi a criação de uma secção da
ABDE , em 1945. Nesse mesmo ano, realizou-se em São Paulo o “I Congresso
Brasileiro de Escritores”, promovido pela ABDE.11(…). Por ocasião do “IV
Congresso Brasileiro de Escritores”, realizado em Porto Alegre, um dos
nossos representantes, Domingos Félix de Sousa, mesmo contra seus com-
panheiros (Bernardo Élis, D. Amália Hermano, etc), se bateu para que o
“V” congresso se realizasse em Goiânia, no que foi atendido. Mas, por essa
época, com a infiltração de ideias comunistas na Associação Brasileira de
Escritores, houve uma cisão em São Paulo, imitada depois nos outros Estados,
criando-se mesmo novas instituições. Então, para que se unissem, não
somente os escritores, mas todos os intelectuais brasileiros, em vez de se
realizar em Goiânia o “V Congresso Brasileiro de Escritores”, programou-se
o “I Congresso Nacional de Intelectuais”, que conseguiu atingir os
seus objetivos. (TELES, 1983, p.135)

O Congresso contou com nomes importantes da intelectualidade goiana,


brasileira e da América Latina, com destaque para o poeta Pablo Neruda
(Chile). No entanto outros nomes se destacaram no Congresso, como: os
poetas René Deprestes (Haiti) e Elvio Romero (Argentina); os escritores
Jorge Amado, Bernardo Élis, Bernardo Kordón (Argentina) e Mario Barata;
os cineastas Alberto Cavalcanti e Lima Barreto.12
A abertura do Congresso deu no Cine Teatro Goiânia, que foi orna-
mentado de forma imponente para receber os congressistas e as autoridades,
que lotaram todas as suas dependências. Goiânia se movimentou e mobili-
zou com faixas que foram espalhadas pela cidade par receber os convi-
dados, os funcionários públicos foram colocados à disposição do
Congresso, os estudantes se movimentaram para ficar perto dos intelectuais
que admiravam, a pacata Goiânia se agitou os intelectuais que vieram de
várias parte do Brasil e do mundo.
11. Associação Brasileira de Escritores.
12. No ano anterior, 1953, Lima Barreto tinha ganhado dois prêmios no Festival de
Cannes com o filme O Cangaceiro (melhor filme de aventura e melhor trilha musical).

49
O governador Pedro Ludovico Teixeira foi o grande patrocinador do
evento, sendo que parte das solenidades de abertura foram feitas no Palácio
das Esmeraldas, em que foi servido um coquetel e contou musicais de
artistas goianos. O envolvimento de Pedro Ludovico reafirma a ideia de
um projeto político moderno para Goiás, pois desde a década de 30 se tem
um envolvimento entre os membros da EGBA e os intelectuais das insti-
tuições políticas goianas (VIGARIO, 2017).
A programação do Congresso era composta debates sobre os problemas
que o cinema brasileiro enfrentava, debates políticos, recital de poesia,
homenagens, festas, apresentações folclóricas e churrasco. A Escola Goiana
de Belas-Artes foi convidada para participar da comissão organizadora e
ser responsável pela exposição artística. Luiz Curado e frei Confaloni ficaram
encarregados de coletar material, entre pinturas, esculturas e gravuras pelo
interior de Goiás e fazer o convite a artistas de outros estados e Gustav
Ritter ficou responsabilizado por criar o cartaz do evento (Imagem 03) e
tomar outras providências.

Imagem 03: Fac-símile do cartaz do


I Congresso Nacional de Intelectuais.
Fonte: FECIGO.
Foto: Fernando Santos

50
A exposição contou com mais de 300 obras de artistas goianos e de ou-
tras regiões do país. O Congresso tinha como uma das suas características
pensar as inovações de uma arte definida como modernista. A exposição
contou com várias seções, como a dos indígenas Carajás, expondo suas
cerâmicas, ornamentos e armas; arte popular com peças de Maria Beni14 e
Sebastião Epifânio15, e também peças de ex-votos da Sala de Milagres de
Trindade. Uma das seções que mais chamou a atenção dos visitantes, prin-
cipalmente das delegações estrangeiras, foi a que estava exposta 20 peças
de Veiga Valle (imagem 04), intitulada “Esculturas do Goiano Veiga Valle”.
Como mostra um artigo escrito por Luiz Curado, para a revista Renovação:
“(…) Congresso Nacional dos Intelectuais propagou ainda mais o nome de
Goiás sobretudo através dos trabalhos do inspirado artista. As muitas
delegações estrangeiras ao Congresso se extasiaram ante as obras de Veiga
Valle”. (CURADO in RENOVAÇÃO, 1955, p. 182)

Imagem 04: Exposição que ocorreu no I Congresso Nacional de Intelectuais.


Fonte: RENOVAÇÃO, janeiro de 1955, ano III, nº 1.

13. Alguns nomes que tiveram obras expostas foram: Carlos Scliar, Oswaldo Teixeira,
Georgina de Albuquerque, Quirino Campofiorito, Sérgio Milliet, Mario Zanini, Djanira,
Rebolo Gonçalves, Bruno Giorgi, Mestre Vitalino, Luiz Curado, Gustav Ritter, frei
Confaloni, entre outros. (MENEZES, 1998, p.44)
14. Maria Fleury. Nasceu em Pirenópolis em 1919.Escultora e ceramista, trabalhava com
entalhes em madeira e figuras em cerâmica, representando as cenas folclóricas e religiosas
da cidade, principalmente as celebres cavalhadas de Pirenópolis. (MENEZES, 1998, p.179)
15. Escultor de temática sacra, era, no início do século, na Cidade de Goiás, segundo o
pesquisador Elder Camargo de Passos, conhecido entalhador e criador de presépios, numa
temática e estilo bastante ingênuo. (MENEZES, 1998, p. 234)

51
Um dos melhores balanços que se pode fazer da seção “Esculturas do
Goiano Veiga Valle”, do “I Congresso Nacional de Intelectuais”, está nas
reportagens contidas na Revista Renovação, de janeiro de 1955. Antes de
entrar propriamente no Congresso, foi feita uma reportagem que cita trechos
da aula inaugural da EGBA, em 1954, ministrada pelo professor Jordão de
Oliveira, da Escola Nacional de Belas-Artes, defendendo que as peças de
Veiga Valle são tidas como magníficas e que deveriam ser tombadas o mais
rápido possível.
Na mesma revista, em um artigo feito por Regina Lacerda, intitulado
O que foi a Exposição do Congresso Nacional de Intelectuais, a escritora e
folclorista, então secretária da EGBA, fez todo o retrospecto da organização
e da realização do Congresso, mostrando algumas reportagens nacionais e
até mesmo internacionais sobre o evento. Regina Lacerda afirmou que o
“ponto alto” do evento foi a exposição organizada pela EGBA, mas que
nem tudo foram flores, pois os donos das obras de Veiga Valle ficaram com
ciúmes das peças. Isso demonstra que as peças do agora “artista” desvin-
cularam-se do caráter sacro e também ganharam status de obra de arte.
Sobre a exaltação dos ânimos dos donos das obras de Veiga Valle, Regina
Lacerda escreveu:

Se algum trabalho foi calmo e facilitado pelo conforto da Cidade, outros ti-
veram outro aspecto. O tempo das chuvas dificulta as viagens e o ciúme dos
donos das esculturas de Veiga Vale foram dois problemas difíceis de se con-
tornar. Não faltou exaltação de ânimos por parte de alguns possuidores de
obras daquele mestre, resultando improfícua uma viagem a uma das mais
tradicionais cidades do Estado. (LACERDA in RENOVAÇÃO, janeiro de
1955, p. 23)

O poeta chileno Pablo Neruda foi um dos maiores destaques do


Congresso, sua vinda foi noticiada em inúmeros jornais pelo Brasil,
chegando-se a cogitar que na verdade quem aqui estava era um sósia.16
16. A nota saiu no jornal Tribuna da Imprensa (RJ) em 5 de junho de 1954, meses depois que
o Congresso já tinha ocorrido. Na nota intitulada “O Poeta Morreu”, Azevedo Lobo
escreve: Esteve no Rio há dias, fazendo-se passar pelo poeta Pablo Neruda, um individuo.
Daqui, foi para o Congresso de Intelectuais em Goiânia, usando o nome do maior poeta da
América par prestigiar uma reunião de pseudo-intelectuais, que não passam de homúnculos
vitimados pela “praga da Ásia”(…) Neruda tinha um hábito, confessado: gostava de assobiar
(dizia mesmo que Deus, ao fazer o mundo, devia estar assobiando). Esse que passou por
aqui mal sabe falar, não abre a boca, não assovia nunca. (…) O falso Neruda não sabe
exprimir-se, tem inteligência embotada, tratamudeia frases absurdas. (TRIBUNA DA
IMPRENSA, 5-6 de junho de 1954, p.4)
52
No entanto, o escritor catarinense Salim Miguel escreveu o seguinte relato
na revista Sul – Revista do Círculo de Arte Moderna sobre a presença e o
discurso de Neruda no Congresso:

Um dos pontos altos do Congresso foi inegavelmente a Conferencia de Pablo


Neruda. Alto, gordo, rosto imóvel de Buda, sem movimentar pràticamente
um músculo, com voz compassada e quase igual, de leves nuances, começou
a falar. Em poucos pendiam de sua palavra. Aquilo atingia a todos, vinha
direito, num impacto. E ainda os mais céticos e menos emocionáveis, bem
logo se tinham deixado levar. Que poder possui êste homem, verdadeira
constituição de poeta? Todo ele parece respirar, transmitir poesia. Vai
dizendo as coisas mais simples, suas lutas e esperanças; vai mostrando que,
em qualquer parte domundo, o desejo de todos é um só e se resume numa
tão pequenina palavra… (SUL – REVISTA DO CIRCULO DE ARTE
MODERNA, julho de 1954, p. 29 e 30)

Imagem 05: Pablo Neruda declamando poemas na solene abertura do I Congresso de


Intelectuais, em Goiânia.
Fonte: SUL – REVISTA DO CIRCULO DE ARTE MODERNA, julho de 1954, ano
VIII, nº 22.

53
Com esse encontro de gerações de intelectuais de todo o Brasil e (re)
descobrimentos, como se mostrou com as obras de Veiga Valle, no decorrer
do Congresso de Intelectuais os debates se firmaram na responsabilidade
dos intelectuais em preservar as características da cultura brasileira e das
ameaças que ela enfrentava, podendo levar a sua descaracterização. Os
entraves e as dificuldades enfrentadas pelos intelectuais eram as mais
diversas como as dificuldades dos escritores de conseguirem editar suas
obras. Os atores não dispunham de teatros e nem escolas dramáticas.
O cinema, que teve um breve período de fecundidade, sofre com a concor-
rência do cinema hollywoodiano. As pesquisas cientificas e folclóricas são
praticamente inexistentes por falta de apoio.
No final do Congresso foi criado um documento17 com as resoluções
para que se tivesse um ponto de partida para a difusão cultural brasileira. A
Resolução Central do Congresso foi lida em plenário pelo padre Publio
Callado, da delegação de Pernambuco. As principais resoluções que
nortearam o Congresso foram:

1) afirmamos que o povo brasileiro possui uma cultura nacional caracterís-


tica e vigorosa, suscetível de desenvolvimento ilimitado, que deve ser pre-
servada das influencias desvirtuosas que a ameaçam;
2) afirmamos que o intercâmbio cultural com todos os povos pe um fator
básico de enriquecimento da cultura brasileira, além de contribuir para cri-
ar relações amistosas entre todos os países e por isso deve ser cada vez mais
intensificado, sem restrições ou discriminações ;
3) afirmamos que a defesa das liberdades democráticas é condição indis-
pensável ao desenvolvimento da cultura e repudiamos tôdas as leis que res-
tringem as garantias democráticas;
4) reclamamos condições dignas de vida e meios materiais necessários à ex-
pressão e divulgação do pensamento e da cultura.

No mesmo documento se lança recomendações para o desenvolvimento nas


áreas de literatura18, música, teatro, cinema, rádio, televisão, artes plásticas19,

17. O documento foi publicado integralmente na revista SUL – REVISTA DO CIRCULO


DE ARTE MODERNA, julho de 1954, ano VIII, nº 22.
18. Foram recomendados cinco pontos sobre a literatura onde se pede auxílio dos governos
para que se crie prêmios literários, bolsas de estudos, isenção do papel destinado a
impressão de livros e que os escritores aproveitem ao máximo as fontes portuguesas,
ameríndias e africanas voltadas para as publicações infanto-juvenis.
19. Nas artes plásticas foram feitas 15 recomendações, onde a sua maioria se relaciona a
incentivos por parte do governo a abertura de ateliês e museus, preservação de obras e
edifícios. Um ponto que se deve destacar foi o último quesito, onde se recomenda as >

54
discriminação social e folclore. Na ciência, cada grupo representado
(historiadores20, juristas e professores) fez suas recomendações.
O 1º Congresso Internacional de Intelectuais foi amplamente divulgado
na imprensa brasileira, sendo alguns exemplos: A Noite (RJ), O Jornal (RJ),
Correio da Manhã (RJ), Revista o Momento Feminino (RJ), Tribuna da Imprensa
(RJ), Última Hora (RJ), Voz Operária (RJ), Diário Carioca (RJ), Diário de
Notícias (RJ), Imprensa Popular (RJ), Lavoura e Commercio (SP), O Dia (PR),
O Estado de Goiaz (GO), Cidade de Goiaz (GO), O Popular (GO), Pequeno
Jornal. Jornal Pequeno (PE), Sul. Revista do Círculo de Arte Moderna (SC) e a
Radio Brasil Central dedicava diariamente uma hora para falar sobre os
trabalhos realizados no Congresso.
Em entrevista o artista plástico goiano Amaury Menezes, que participou
do Congresso, relembra de seu encantamento com as exposições, princi-
palmente com as gravuras e xilogravuras de Carlos Scliar, e da importância
do Congresso para a arte goiana

(...) esse Congresso Nacional de Intelectuais foi importante para Goiás pelo
seguinte: na literatura, na música, no teatro e nas outras atividades artísticas,
Goiás já tinha uma evolução modernista. Bernardo Élis e Eli Brasiliense
eram escritores com tendências modernistas. Na música, a mesma coisa,
porém, com um linha mais contemporânea; e nas artes plásticas é que
faltava. (Menezes apud VIGARIO, 2017, p. 165)

O Congresso de Intelectuais se tornou um marco no modernismo goiano,


pois foi a partir dele se introduziu um debate que mostra a necessidade de
inovações para que se chegasse a uma arte que poderia ser definida como
modernista (COSTA, 2006) e propiciou que a arte de Goiás fosse demons-
trada para grande parte do Brasil. Sobre a exposição artística no Congresso
ser de características modernistas, mas ter cedido espaço a artes mais tradicio-
nais, se nota que a exposição não seguiu uma rigidez de um programa de
ideologia estética, como aconteceu no modernismo nacional (VIGARIO,
2017). Com isso, se pode concluir que esse programa modernista contribuiu
para fortalecer uma imagem goiana que se tem uma valorização da cultura
tradicional, mas que se buscava inserir nas nuances do modernismo.

autoridades competentes que se crie na em Goiânia o “Museu Veiga Valle”, mostrando o


quanto o santeiro goiano teve sua obra admirada pelos congressistas.
20. Na comissão dos historiadores as recomendações foram para preservar as tradições
(mas não especificando de que forma) o que chama atenção é a recomendação para que as
cidades de Olinda, Vitória, São Luiz do Maranhão e a Cidade de Goiás, sejam
transformadas em cidades museus.

55
REFERÊNCIAS

Bibliografia
COELHO, Gustavo Neiva. A Mudança da Capital e as Artes em Goiás. In:
MENEZES, Amaury. Da Caverna ao Museu – Dicionário das Artes Plásticas em
Goiás. Goiânia: Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira, 1998.
COSTA, O. Edegar. Paulo Fogaça nas Artes Plásticas em Goiás: indícios de con-
textualização. Revista UFG. Junho de 2006, ano VIII, nº 1, p. 39 – 43.
CURADO, Luís A. Carmo. Veiga Valle – O Fra Angelico brasileiro. In: Renovação,
Goiânia, Ano III, n.01, p. 16 e 28, jan, 1955.
DOLES, Dalísia Elizabeth Martins; MACHADO, Maria Cristina Teixeira.
O batismo cultural de Goiânia. In: MENEZES, Amaury. Da Caverna ao Museu –
Dicionário das Artes Plásticas em Goiás. Goiânia: Fundação Cultural Pedro Ludovico
Teixeira, 1998.
FIGUEIREDO, Aline. Artes Plásticas no Centro Oeste. Cuiabá: Edições
UFMT/Museu de Arte e Cultura Popular, 1979.
LACERDA, Regina. O que foi a Exposição do Congresso Nacional de Intelectuais.
In: Renovação, Goiânia, Ano III, n.01, p. 23 e 24, jan, 1955.
MENEZES, Amaury. Da Caverna ao Museu – Dicionário das Artes Plásticas em
Goiás. Goiânia: Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira, 1998.
TELES, Gilberto Mendonça. Estudos goianos. A poesia em Goiás. 2.ed, rev. Goiânia:
Ed. Da Universidade Federal de Goiás, 1983.
VIGARIO, Jacqueline Siqueira. Diante da Sacralidade humana: produção e apropriações
do moderno em Nazareno Confaloni (1950 – 1977). Tese (Doutorado em História) –
Universidade de Goiás, Goiânia, 2017.

Periódicos
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CORREIO DA MANHÂ, Rio de Janeiro (RJ), dezembro de 1953. (Disponível: site
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DIÁRIO CARIOCA, Rio de Janeiro (RJ), novembro de 1953. (Disponível: site <
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de 1954 (Disponível: site < http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/> Aces-
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TRIBUNA DA IMPRENSA, Rio de Janeiro (RJ), junho de 1954. (Disponível: site
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ULTIMA HORA, Rio de Janeiro (RJ), fevereiro de 1954. (Disponível: site <
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VOZ OPERÀRIA, Rio de Janeiro (RJ), junho de 1954. (Disponível: site <
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/> Acesso: 15/07/2018)
Parte 2
Goiânia na modernidade literária
A realidade da ficção: representações da cidade
de Goiânia nos contos literários e poemas
Eliézer Cardoso de Oliveira

Introdução

E ntre as décadas de 1960 e 1980, a cidade de Goiânia passou por


uma forte mudança cultural. Nesse período, parte de seus habitantes
abandona os hábitos provincianos e adota valores típicos de habitantes de
grandes cidades. O fator sociológico que explica essas mudanças culturais
foi o aumento demográfico, conseqüência do êxodo rural, que marcou a
sociedade brasileira da época, e da imigração impulsionada pela construção
de Brasília, uma vez que muitos imigrantes optaram por morar em Goiânia.
O crescimento demográfico foi vertiginoso: de 74 mil habitantes em 1955,
aumentou para 251 mil em 1965, 518 mil em 1975 e 800 mil em 1980.
(IBGE, p. 1981).
Por um lado, esse incremento populacional foi responsável pelo cresci-
mento desordenado da cidade e, conseqüentemente, pelos loteamentos
sem infra-estrutura e pelas inúmeras ocupações urbanas que descaracteri-
zaram o planejamento inicial da cidade, agravando os problemas de
pavimentação, saneamento básico, transporte coletivo e degradação
ambiental. Por outro lado, esse crescimento veio acompanhado de novidades
infra-estruturais importantes: a Usina Serra Dourada (1960), as universidades
católica (1959) e federal (1960), o Cemitério Parque (1961), o Centro
Penitenciário de Goiás – CEPAIGO (1964), o Estádio Serra Dourada
(1973), o Autódromo Internacional de Goiânia (1973), o Parque Infantil
Mutirama (1969), o edifício-estacionamento Parthenon Center (1976),
edifícios de apartamentos, motéis, etc.

61
Por isso, a elite política (e parte da população) interpretava o intenso
crescimento demográfico da capital como um indício do progresso. Isso
fica bem nítido na mensagem do Prefeito Iris Rezende, em 1966, em
comemoração ao aniversário da cidade:

Há trinta e três anos, alertado pelo grito mudancista de Pedro Ludovico


Teixeira, Goiás inteiro acordou para o amanhã do progresso: a fundação de
Goiânia. Hoje, o que era sonho para muitos se tornou realidade palpável
que transformou todo o Estado numa nova fronteira humana, no marco
inconteste de uma nova civilização que (...) renova a cada passo a sua confiança
inquebrantável no futuro grandioso desta terra abençoada. (Jornal Cinco de
Março, Goiânia, 24 out. 1966).

Por outro lado, a população goianiense passou a expressar sentimentos


típicos de grupos que estão transitando de um universo dominado por
valores tradicionais para um dominado por valores modernos: nostalgia,
receio, angústia e solidão. Os sentimentos eram ambíguos: ao mesmo
tempo em que se orgulhava do crescimento e do progresso da cidade, sentia-
se saudades do seu passado e apreensão em relação ao seu futuro. Utilizando
o vocabulário de Reinhard Koselleck (2006), pode-se afirmar que o
horizonte de expectativas conflitava-se com o espaço de experiências.
Essa tensão entre o progresso e a tradição, o novo e o velho, a comuni-
dade e o indivíduo, a aldeia e a metrópole pode ser mapeada pela utilização
de obras literárias como fontes, já que elas revelam tensões de um objeto
complexo como a cidade. Charles Monteiro foi um dos que percebeu a
potencialidade das fontes literárias para o estudo da cidade de Porto Alegre:

A historiografia silencia sobre a crise urbana, os conflitos sociais na cidade


[Porto Alegre] e o profundo processo de remodelação urbana (...) para se
dedicar a[o] (...) inventário mítico dos heróis das origens da conquista e da
colonização do estado; enquanto, na literatura, (...) escritores como Érico
Veríssimo e Cyro Martins tratariam da questão do êxodo do campo rumo
às cidades, dos conflitos entre antigos e novos valores, das tensões e segre-
gações sociais no espaço urbano. (Monteiro, 1998: p. 35).

Em Goiânia, os romances, as crônicas, as poesias e os contos nela am-


bientados conseguem fazer uma leitura múltipla da cidade, não enfocando
apenas os seus aspectos modernos, nem tampouco os aspectos provincianos,
mas as duas coisas ao mesmo tempo. Portanto, o objetivo deste texto é

62
utilizar os contos literários (de Bernardo Élis, José Mendonça Teles e
Marieta Telles Machado) e poemas (de Gilberto Mendonça Teles, Brasigóis
Felício, Nelson Figueiredo e João Neder), para analisar a sensibilidade dos
indivíduos em relação à mudança cultural ocorrida em Goiânia, nas décadas
de 1960 e 1970, mapeando as suas reações diante das inovações modernas
da cidade. Ao contrário de Hayden White, que afirmou que em toda a
obra de intenção realista há um pouco de ficção; neste trabalho parte-se do
pressuposto teórico inverso: o de que em toda a obra de ficção há um
pouco de realidade.

A visão crítica em relação a Brasília

A construção de Brasília, a menos de 200 quilômetros de Goiânia, gerou


um surto de otimismo progressista que não se via desde 1942, nos festejos
de inauguração da capital. Para os intelectuais goianos, Brasília seria o final
da Marcha Para Oeste, iniciada com a construção de Goiânia nos anos 30.
Desse modo, as duas cidades, ambas planejadas com as mais modernas
teorias urbanísticas disponíveis em suas épocas, destinadas a serem centros
administrativos e a trazer progresso para o Brasil e para Goiás respectiva-
mente, ambas filhas do saber moderno, eram vistas como cidades-irmãs.
Goiânia, como irmã mais velha, forneceria todo apoio necessário para que
se efetivasse a construção da cidade-caçula.
Por isso, a mudança da capital federal foi esperada com muita ansiedade
pelo povo goiano (Silva, 1997, p. 37-54), e pelo goianiense em particular.
Em 1953, ainda nem iniciadas as obras no Planalto Central, já havia uma
escola no setor Campinas com o nome de Ginásio Brasília; a partir do dia
10 de fevereiro de 1953, uma família de imigrantes italianos, os Lisita,
passou a editar o Brasília Jornal – são apenas dois, entre vários exemplos,
que mostram o quanto a expectativa da construção da nova cidade no
Planalto Central excitava a população comum de Goiânia. Os administra-
dores públicos goianos também acompanhavam cada detalhe da construção
de Brasília, como se estivessem diretamente envolvidos, o que explica o
ponto facultativo dado aos servidores públicos goianos, no dia 23 de fevereiro
de 1960, dia em que o presidente norte-americano Dwitht D. Eisenhower
visitou Brasília. (Reis, 1979, p. 317).

63
A Academia Goiana de Letras publicou especialmente um Número
Comemorativo da Mudança da Capital para o Planalto Central de Goiás,
em que Zoroastro Artiaga, no artigo Salve Brasília!, expressa otimismo,
beirando a charlatanice, com a inauguração da capital federal

A ocupação do vasto araxá do Brasil-Central é um convite à independência


econômica; a quebra da tutela secular; a marcha para a liberdade e para a
felicidade, porque, todos os que se transferirem para o interior, ficarão ricos,
sem nenhum esforço, como aconteceu em Goiânia, onde, os que tiveram fé
e confiança, unicamente com a valorização da terra, acham-se milionários.
Os que trabalharam e agiram, estão multimilionários. Este é um convite do
Oeste para a fortuna, para a abastança, para a quebra dos grilhões do sub-
desenvolvimento. Ave, pois, Brasília! Sejam bem-vindos, todos os que
acreditam em um Brasil grande, poderoso, prestigioso e livre, que já está
vivendo por si mesmo, e que dentro de cinco anos terá progredido. (Artiaga,
1960, p. 03).

Esse tipo de representação lembrava as imagens edênicas que impulsio-


naram os colonizadores portugueses e espanhóis no Novo Mundo. Brasília,
utopicamente, impulsionaria o desenvolvimento do Brasil e traria prospe-
ridade para a vida das pessoas que para lá se dirigissem. O artigo, por suas
idéias hiperbólicas, parece, para um leitor do século XXI, mais um folhetim
vulgar do que um escrito de um intelectual experiente como Zoroastro
Artiaga.
Da mesma forma em que a relação entre irmãos não é de pura fraterni-
dade, a proximidade entre as duas cidades não deixou de provocar atritos e
ressentimentos. Durante o chamado Movimento da Legalidade, em 1961, o
governador de Goiás Mauro Borges Teixeira elaborou o Plano Geral de Ação
que numa de suas Linhas de Ação a Seguir objetivava:

Planejar ações ofensivas contra os rebeldes em Brasília e, posteriormente,


integrarmos no conjunto das operações do País e eventualmente atuarmos
ofensivamente fora do Estado de Goiás. (Borges apud Teixeira, 1994, p.44).

A resolução do impasse da posse de João Goulart fez com que as relações


entre Brasília e Goiânia se atenuassem. No entanto, três anos depois, foi
de Brasília que o Regime Militar decretou a intervenção política em Goiás,
sendo Mauro Borges Teixeira substituído, num momento de grande tensão
e perigo de um confronto armado, pelo interventor Carlos de Meira Matos.

64
A desilusão dos goianos com Brasília foi explorada literariamente por
Bernardo Élis (1987) no conto “Urbanização (Relatório)”. Trata-se de uma
sátira, provavelmente inspirada no clássico da ficção Máquina do Tempo de
H.G. Wells. No conto, em que Brasília é denominada Newtown, predo-
mina uma linguagem irônica, com severas críticas à ideologia do progresso,
como na “Fala do Presidente ao inaugurar Newtown”:

Outro aspecto de significação básica é a função cibernética da Newtown:


foi imaginada para funcionar como cérebro das altas decisões nacionais.
Só poderá desempenhar seu papel de centro de comando administrativo
(e centro produtor de uso e bens de gozo) aceitando as concepções novas,
modernizando não apenas as estruturas dos edifícios públicos (e privados –
não confundir com W.C. – inclusive fábricas, estabelecimentos comerciais,
etc.) como o aparelhamento de seus órgãos burocráticos (comerciais,
industriais etc.). (Élis, 1987, p. 168).

O estilo técnico-informativo da fala do presidente permite uma leitura


irônica dos discursos otimistas, ingênuos e crédulos da capacidade de Brasília
resolver os problemas do país (como o de Zoroastro Artiaga). Em lugar
disso, o conto informa que “para se construir essa ultramoderna cidade, o
país do Terceiro Mundo contraiu uma dívida tão grande que os credores se
viram na obrigação de receber a metade do território que se constituía o
País”. Além disso, ela foi responsável pela “mais terrível e temível ditadura,
graças a qual seria possível continuar a obra progressista de terminar a
construção de Newtown” (Idem, p. 168).
Numa evidente alusão à alocação da população pobre nas cidades-satélites,
relativamente afastadas do Plano-Piloto, o conto relata que, em Newtown,
os habitantes considerados “subversivos" foram obrigados a refugiar-se nos
subterrâneos da cidade, comendo ratazanas ou subindo à superfície à procura
de alimentos, atacando os parques em que eram criados bovinos e eqüinos
– uma vez que os habitantes da superfície só se alimentavam de “iguarias
quimicamente elaboradas pelas avançadíssimas indústrias locais, cujo sabor
era intolerável pelo primitivo paladar e grosseiro apetite dos moradores
subterrâneos”. (Idem, p. 171).
No final do conto, os administradores de Newtown, não conseguindo
pagar a imensa dívida contraída para a sua construção, abandonam-na.

65
Os moradores dos subterrâneos passam a ocupá-la, reinstalando o seu
antigo modo de vida:

Num dos mais belos e artísticos parques da cidade montaram uma fazenda
de gado, isto é, colocaram um cocho à sombra de uma árvore, deitaram sal,
e as vacas principiaram a parir com a maior perfeição jamais presenciada.
Noutro parque fizeram uma vasta roça de toco, como sabiam fazer e sempre
fizeram os avós, bisavós e tetravós. (Idem, p. 167).

O autor propõe um retorno ao modo de vida tradicional, típico da


população rural de Goiás, para minimizar as mazelas produzidas em nome
do progresso. Esse conto foi publicado em 1984, quando se percebeu que
as possibilidades prometidas com a construção de Brasília não se tornaram
realidade, o que explica o tom irônico e crítico em relação a Capital Federal.
Esse também foi o tom do poema Capital, de Gilberto Mendonça Teles:

Dista 202 km de.


Disto lhe vêm
todos os males
presentes e futuros.
Os males do passado
vinham da lonjura
do Rio de Janeiro. (Teles, 1982, p. 110).

Enfim, os contos e poemas permitem recuperar uma leitura crítica dos


goianienses em relação à Capital Federal que destoa dos discursos políticos
e do ufanismo da imprensa da época.

A visão crítica em relação às formas de lazer modernas

Em relação às formas de lazer, nesse período houve mudanças profundas


em Goiânia. O tradicional Jóquei Clube, a partir da década de 60, gradati-
vamente deixa de ser referência nas reuniões sociais da elite goianiense.
Há uma diversificação de novos clubes sociais, como o clube privée, mais
tarde (1960) Country Clube (formado quase exclusivamente por médicos),
o Clube de Regatas do Jaó (fundado em 1962), O Goiânia Tênis Clube, o

66
Balneário Meia Ponte, o Clube Oásis, etc. Essa dispersão dos centros de
lazer da elite se explica pelo seu crescimento numérico. Simmel, nesse
sentido, afirma que “Existe um limite absoluto, além do qual a forma de
grupo aristocrática não pode ser mantida. (...) para ter eficiência como um
todo, o grupo aristocrático deve ser visível para cada um de seus membros.
Cada elemento deve conhecer pessoalmente todos os outros.” (Simmel,
1983, p. 94-4).
Desse modo, as festas de reveillion e os bailes de carnavais que eram
expressão metonímica do lazer em Goiânia vão se fragmentar com o sur-
gimento de novos grupos sociais, principalmente imigrantes desvincula-
dos das antigas famílias tradicionais.
Do mesmo modo, as centenárias formas de lazer dos habitantes do
bairro de Campinas – os banhos nos córregos e rios, as pescarias e as caça-
das – vão diminuir gradativamente, por causa da poluição dos rios e dos
córregos e da destruição das matas.
Até as tradicionais casas de prostituição de Campinas perdem cada vez
mais espaço para os motéis que se instalam às margens da rodovia que liga
Goiânia a São Paulo. Os prostíbulos de Campinas situavam-se na zona re-
sidencial, com risco de serem confundidos com as casas de família – daí a
exigência de se colocar uma luz vermelha discriminatória nesses locais para
evitar desagradáveis mal-entendidos; já os motéis, nessa época, eram sepa-
rados das áreas residenciais, oferecendo a garantia de maior discrição.
Nos contos, percebe-se um repúdio em relação a essas novas casas des-
tinadas a práticas sexuais. No conto “Lua Cheia”, de José Mendonça Teles,
a personagem principal utiliza os motéis para encontros extraconjugais:

— Tenho uma novidade para ti, inauguraram outro na saída para São Paulo,
e vamos estreiá-lo. É o quente, ar condicionado, geladeira, telefone, cama
giratória, espelho até no teto, te levo lá, prometo. Ok. Ok. (Teles, 1971, p. 22).

Apesar do ufanismo das personagens, o conto é crítico sobre os motéis,


como demonstra o seu final moralista: a personagem contrai uma doença
sexualmente transmissível, colocando-a em uma situação constrangedora:
“se aquela fresca me pegou esse troço já transmiti para a minha mulher”
(Idem).

67
No conto, percebe-se uma mudança de visão a respeito da prostituição.
Nos anos 40 e 50, o hábito de freqüentar os bordéis era um modo de afirmar
a masculinidade diante dos outros homens. O bordel seria um clube de
homens que disputam a prostituta mais cobiçada. Já nos motéis, os
freqüentadores são protegidos pelo sigilo, garantido pela localização periférica
e pela peculiaridade de sua arquitetura.
Não houve, no entanto, o desaparecimento total dos bordéis de Campinas.
Eles apenas perderam o seu glamour dos tempos em que eram freqüentados
pelas principais autoridades públicas da capital.1 A partir de 1962, com a
inauguração da Estação Rodoviária de Campinas, as casas de prostituição
passaram a ser freqüentadas por viajantes e forasteiros. Assim, como ten-
tativa de atrair os cada vez mais escassos clientes, muitas mulheres utilizaram
a rua como local de propaganda. Iniciava-se a prostituição de rua em Goiânia.
Enquanto em épocas passadas, as casas de prostituições aparecem, em
muitos casos, de forma estilizada, com proprietárias caridosas e clientes
cavalheiros, agora a prostituição é retratada de forma nua e crua. O conto
“A irmã do Inácio”, de Marietta T. Machado, retrata a história de Inácio,
um rapaz do interior, cansado de “pegar no rabo da enxada”, que vem a
Goiânia em busca de novas e melhores oportunidades: casa-se com Irene,
trabalha o dia inteiro e estuda à noite. Mesmo enfrentando dificuldades
financeiras, traz a sua irmã Rosa para morar com sua família. Rosa começa,
então, a aparecer com roupas caras que não condizem com seus rendi-
mentos. Inácio, desconfiado, resolve segui-la, descobrindo seu segredo:

O galaxie branco seguiu para a rodovia de São Paulo, paraíso dos motéis.
Andava em marcha regular, o taxi seguindo-o com discrição. O galaxie parou
em frente a um motel. Pare, disse eu ao motorista do taxi. Fiquei perplexo e
confuso. Não sabia o que fazer (Machado, 1978: p. 49-50).

Percebe-se, nesses contos, o retrato de Goiânia com todos os qualitati-


vos negativos de uma metrópole moderna, já que possui relações sociais

1. Sobre isso, revela Bernardo Élis: “Uma nota interessante do tempo é que os bordéis,
sobretudo o de uma Maria Branca, por exemplo, eram freqüentados pelas figuras mais
destacadas do mundo político, como alguns secretários de Estado; parece que ao tempo era
de bom tom ou era uma alta recomendação a notícia de que um alto funcionário era
assíduo freqüentador de um bordel.” (Élis apud Teles, 1986:24).

68
distorcidas, capazes de levar uma moça interiorana a se prostituir. A cidade
é um lugar sem alegria, como no poema “Vou indo (à margem da vida)”:

Rondo a cidade à procura de nada.


Aqui levei um tombo,
por ali levei porrada.
Vejo a cidade transmudada.
Passeio aqui, desolado
onde pisaram-me o calo
pisoteou-me a vida.
Passeio sem alegria.
Nesta praça fui beijado
pela biscate negrinha
que pôs-me a sífilis nos olhos
até hoje espantado. (Felício: 1979, p. 13).

Longe de ser um flâneur benjaminiano, embasbacado pela grandiosidade


da metrópole moderna, o eu-lírico do poema mostra-se consternado pela
visão da “cidade transmudada”. Nesse sentido, a visão pessimista de Goiânia
revelada pela literatura constituiu um contraponto crítico às obras ufanistas
de cunho político-administrativo. Isso explica uma importante mudança no
lazer da juventude goianiense. A tradicional prática do footing, a caminhada
vespertina por determinados locais da cidade, típica dos anos 40 e 50,
desaparece como ritual social, dando lugar às casas noturnas (boates e
dancings), destinadas ao público mais jovem. Elas concentravam-se no centro
da cidade – no subsolo do Hotel Bandeirante, a boate Kafuné, o boliche
Bola Preta (o primeiro de Goiânia), as boates Chanel e Tasca 8, Bamboo e
Porão 47, com sua luz negra e iluminação psicodélica, freqüentados princi-
palmente por jovens universitários. Com a inauguração da Praça Universi-
tária, em 1968, os estudantes deslocam-se para lá, principalmente para a
boate Chafariz.
Nesse sentido, o conto “Divina”, de José M. Teles, apresenta as novas
possibilidades de diversão da juventude goianiense:

A noite cobre Goiânia neste Domingo de ócio e mistério. Os vampiros


descem às soltas pelos bairros onde as meninas-moças, descuidadas, suspiram
sessões do Capri ao lado do mocinho de calça justa, ou guardam, no íntimo,

69
um sublime desejo de chopiar no Mário’s, Sanchopança, Abdalla, Casarão
ou, em último caso, um rápido e bem segregado encontro pelo drive-in.
(Teles, 1971, p. 52).

Já na década de 70, presenciou-se a extinção ou a descaracterização de


muitas das casas noturnas do Centro e do Setor Universitário. Em vista
disso, deslocaram para a Praça Tamandaré, no setor Oeste. Lá proliferaram
várias casas de diversões noturnas, dentre as mais célebres: Azambuja, o
Siryus, o Tot’s, a boate Number One, o Zero Bar, o Saloon, o Boteko, o Dom
Quixote, o Pilão, o Papillon.
Essas casas dançantes, freqüentadas principalmente por jovens, expres-
sam mudanças de valores culturais, já que, nos anos 40, a diversão tinha
um caráter mais familiar. Nas memórias de um pioneiro da cidade, “a única
diversão eram reuniões simples que se fazia no Grande Hotel. As famílias
ali se reuniam, e havia lá um piano que era executado pela esposa do Dr.
Manoel Gomes Pereira (...)” (Silva. In. Goiânia,1989, p. 160).
Já as festas em boates e danceterias dos anos 60, 70 e 80 tornaram mais
movimentadas. Sob ritmos americanos, moças e rapazes faziam movimentos
frenéticos até altas horas da madrugada; a luz negra e o jogo de luzes
impediam que se reconhecessem as pessoas que dançavam ao seu redor –
enquanto a conhecibilidade era o pré-requisito das festas dos anos 40 e 50,
agora o anonimato tornou-se a regra. Isso garantia liberdade aos freqüen-
tadores desses ambientes, quando comparado às festas nos clubes ou em
casas de família. O poema a seguir descreve esse novo ambiente da diversão
da juventude goianiense:

Sobre luzes negras


numa casa cheia de música
A dona da casa, assentada
sobre um despotismo duvidoso,
Aqui, Maria dos olhos bonitos,
onde os olhos do preconceito, não
te vêem, estar longe de ti
faz frio, dá saudade! (Neder, 1989, p.245)

70
As casas noturnas, apesar de provocarem sensação de maior liberdade da
conduta, certamente causavam o estranhamento em muitos jovens de valores
mais provincianos, que se identificariam com a personagem Margarida do
conto “Mergulhada na Urbe”. Ela veio do interior para trabalhar em Goiânia,
conseguiu emprego numa loja de roupas e teve um relacionamento com
seu patrão que a levou para conhecer a noite goianiense:

Eu nunca tinha ido a uma boate. E não sabia bem, que casa era aquela, que
gente era aquela, que ria, dançava agarrado, um vozerio, som berrado,
escuro, os dentes, as roupas, os olhos das pessoas brilhando muito, como se
fosse tudo de prata. (Machado, 1978, p. 119).

Se alguns jovens estranharam, parte da população mais velha da cidade


indignava-se ainda mais: “os bailes acontecem cada quinze dias, luz negra
no salão, imaginem! Menores se embebedando, danças de rosto colado,
quando não a gritaria indecente do rock, meninas mostrando os seios e o
umbigo, absurdo!” (Idem, p. 81).
Outra diferença entre essas festas e as do período anterior baseia-se no
fato de serem organizadas geralmente por jovens e para jovens. Segundo
Hobsbawm, no século XX,

A cultura jovem tornou-se a matriz da revolução cultural no sentido mais


amplo de uma revolução nos modos e costumes, nos meios de gozar o lazer
e nas artes comerciais, que formavam cada vez mais a atmosfera respirada
por homens e mulheres urbanos. (Hobsbawm, 1995, p. 323).

Goiânia não foi exceção. Muitos jovens nasceram em Goiânia2, ao


contrário de seus pais, não moraram em cidades interioranas ou na zona
rural – portanto cresceram com a convicção, embora exagerada, de que
viviam em uma cidade cosmopolita e moderna, o que, aliado aos novos
valores transmitidos pelo cinema, televisão e rádio, tornava-os mais abertos
à cultura moderna.
Houve também um considerável aumento da participação autônoma da
juventude feminina no lazer. No dia 29 de março de 1959, realizou-se,
para espanto de muitos, o primeiro jogo de futebol feminino em Goiânia,

2. O garoto Goiani Segismundo Roriz, nascido no dia 5 de abril de 1935, o primeiro


registro de nascimento de Goiânia (apud Monteiro, 1938:391), estaria, por exemplo, com
vinte e cinco anos de idade em 1960.

71
entre as garotas do Operário de Araguari e um combinado goianiense
(Reis, 1979, p. 345). Em 1963, no Bairro de Nova Vila, seis anos antes do
surgimento da Academia Feminina de Letras e Artes do Estado de Goiás,
já existia uma Associação Cultural Feminina.
No conto “Medo”, já se percebia, em Goiânia, a partir de 1960, mu-
lheres independentes, morando sozinhas, embora ele fizesse uma leitura
bastante conservadora dessas ousadas mulheres. A personagem principal,
apesar de ser chefe de repartição pública e pintora, vive em estado de per-
manente tensão – tem medo de perder o emprego e o namorado, de rou-
barem seu carro, de contrair alguma epidemia.
Em outro conto, “A solteirona do pensionato”, a personagem Luísa,
por opção própria, não quis casar-se. Agora, com trinta e dois anos, sente-
se deprimida e solitária. O fato de ela não ter feito o que era comum para
as demais, isto é, casar-se, é tratado no conto como seu grande erro: “Mas
Luísa se descuidou demais do tempo ou o tempo se descuidou de Luísa e
passou levando seus admiradores e deixando-a estática naquele mundo vi-
sionário”. (Teles, 1973, p. 43).
Enfim, estes contos, mesmo que imbuídos de uma visão conservadora,
mostram o alto preço pago pela independência feminina, mesmo em uma
cidade como Goiânia, supostamente com valores mais abertos do que as
demais cidades goianas.

A crítica à tecnologia: automóveis

A melhoria da iluminação da cidade com a inauguração da Usina


Hidroelétrica de Cachoeira Dourada permitia que a juventude divertisse
até altas horas da noite.3 O aumento do número de automóveis na cidade
também foi fator preponderante para o prolongamento do período de
diversão. Nos anos 40, a maioria da juventude utilizava a bicicleta para se
locomover, como relata a folclorista Regina Lacerda

Tinha meu próprio veículo (como a maioria das moças) uma bicicleta inglesa
era a minha. Por toda parte a gente pedalava e pedalava e até mesmo para
assistir a chegada de uma amiga no aeroporto, que era ali mesmo. Pela
constante falta de luz na cidade, as bicicletas tinham que ser equipadas com

3. Um anúncio de jornal de 1960 de uma boate demonstra isso: “PORÃO 47: aberta das
21:00 hs as 2:00 hs da madrugada”. (O Popular, Goiânia, 15 de maio de 1960). .

72
farol, campanhias e exibir placas de licença como os carros. Os ciclistas
deviam carregar os documentos de propriedade sem o que, a polícia de
trânsito aplicava sanções legais. (Lacerda In. Goiânia, 1989, p. 293).

Na década de 40, o racionamento de combustível provocado pela II


Guerra Mundial fez como que os poucos automóveis particulares – como
o Ford azul metálico da família Caiado, a Ramona ano 29 de Altamiro de
Moura Pacheco, o carro de Augusto Gontijo em Campinas e do Paulo
Fleury da Silva e Sousa e os carros de praças existentes – tivessem que
utilizar um combustível alternativo – o gasogênio. Os primeiros veículos a
utilizar esse tipo de combustível foram dois caminhões procedentes do Rio
de Janeiro que chegaram a Goiânia, em 1938 (Reis, 1979, p.707), sendo
posteriormente utilizado em veículo de menor porte, como descreve Ivo
de Melo, destacando a excentricidade desses carros:

Um enorme cilindro de metal, instalados na parte externa, traseira, do veí-


culo, com uma tampa na parte superior, muito bem fixada por sargentos
externos bem fortes, para evitar a perda de uma pressão; uma espécie de
fornalha ambulante, que recebia pequenas bolas de naftalina e fazia ferver
um tanque de água que, a partir dessa combustão, gerava vapor suficiente
para forçar a movimentação dos cilindros do motor e... O negócio andava!
(Melo, 1998, p. 221).

Além dos carros e das bicicletas, havia as carroças e as charretes, inclu-


sive, em 1959, foi fundada uma associação dos carroceiros e charreteiros
de Goiânia (Idem, 265). Existiam também as lambretas, que se moviam
tranqüilamente nas ruas largas e com poucos carros.
Gradualmente, as ruas de Goiânia foram cada vez mais ocupadas por
carros, até que, em 1958, já houve a necessidade de instituir-se, no quadro
da polícia, a Guarda de Trânsito de Goiânia, que teve muito trabalho, pois
os atropelamentos tornaram-se rotineiros. Os contos não perderam a
oportunidade de mostrar esse lado sangrento do progresso:

O guarda solícito apresenta-se ao patrulheiro-chefe dizendo que foi um


atropelamento, que o homem da bicicleta devia ter ido fazer compras, que
por certo vinha do Mercado, pois levava um pacote de arroz que se espati-
fou com o choque, que o atropelador evadiu-se, que não anotaram a placa
do automóvel (...) (Teles,1971, p. 62).

73
Aliás, os atropelamentos ou inabilidade dos motoristas goianienses são
temas sempre recorrentes na literatura sobre Goiânia. As ruas largas e retas
de uma cidade planejada como Goiânia, com uma população de raízes
rurais, não habituada ao trânsito mais rápido, certamente criaram um
ambiente propício aos acidentes.
De qualquer forma, o automóvel representa um dos símbolos de
modernidade para a juventude elitista de Goiânia. Associado ao poder e à
velocidade, o automóvel é utilizado como arma de conquista, servindo para
levar garotas aos motéis ou a locais desabitados: “Depois de mais algumas
tentativas, ela acaba cedendo. O carro se arranca rápido, ante os olhares
curiosos das pessoas que passam.” (Teles, 1973, p.103). Em 1970, já são
mais de 14 mil veículos de passeio licenciados; em 1975, esse número
chega a quase 40 mil (Sabino Júnior, 1980, p. 62); em 1982, circulam pela
cidade mais de 100 mil carros (Folha de Goiaz, 24 outubro de 1982).
Em termos de lazer infantil, a universal criatividade da criança supria a
ausência de serviços especializados, improvisando diversões com qualquer
coisa que estivesse ao alcance (brincadeiras em grupo, banho em córregos,
futebol, fabricação própria de brinquedos etc.). Porém, em alguns mo-
mentos, havia uma oferta de serviços especializados, principalmente dos
circos e de alguns parques de diversões itinerantes que, desde os tempos
em que Campinas ainda era cidade, fazia a alegria dos pequeninos. Dentre
os vários eventos que marcaram a inauguração oficial de Goiânia, em
1942, o que mais chamou a atenção do público infantil foi a presença do
Americano Parque, com várias diversões nunca vistas por aqui: a menina-
prodígio, a mulher decapitada, números de mágicas, a Roda Gigante, a
Pista Infantil, o Tiro ao Alvo. (Netto, 1993, p. 21).
Nos anos 60, havia alguns parques infantis com poucos brinquedos em
alguns bairros da cidade, como a Vila Operária e a Fama. Apenas em 1969,
com a inauguração do Mutirama, a cidade passa a ter um parque infantil
de grandes dimensões, com brinquedos modernos, como o Tobogã, a
Montanha Russa, etc. fazendo dele um dos mais modernos do país. Além
disso, foi criado o Jardim Zoológico, “um dos mais importantes do terri-
tório nacional pela variedade de espécies, e [por ser] também centro de
pesquisa” (Folha de Goiaz, 24 outubro de 1982). Tanto um, como o outro
eram utilizados como argumentos da modernidade da cidade.

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Enfim, após a década de 60, aparecem em Goiânia formas de lazer mais
ligadas a um modo de vida moderno, embora não se possa afirmar que as
práticas antigas de diversões simplesmente desapareceram – elas continua-
ram coexistindo com as outras, contribuindo para, também nesse aspecto,
dar um caráter ambíguo à cidade.

Crítica às novas formas de moradia

Com o crescimento demográfico, Goiânia também cresceu fisicamente,


primeiramente para os lados, depois para cima. O influxo da construção de
Brasília produziu um grande número de empresas da construção civil.
Após o término das obras na Capital Federal, muitas delas passaram a atuar
em Goiânia, contribuindo para mudar o panorama físico da cidade.
Não interessa realizar um estudo sistemático do processo de implantação
desses edifícios privados, mas o seu efeito sobre os valores dos indivíduos.
Na década de 40, o ideal de padrão de moradia para a elite era o sobrado,
como o da descrição abaixo de Gerson Castro Costa:

Foi desse tempo a construção de um sobrado, na esquina da Avenida


Tocantins com a Rua 2, feito pelo Dr. Carlos de Freitas, verdadeiro pioneiro
das primeiras horas da fundação de Goiânia. Com belos jardins dando para
os dois lados das vias públicas, parecia, aos olhos provincianos dos passantes,
o palácio de Nabucodonosor, em Babilônia, com seus jardins suspensos, só
que as hastes dos pés de flores estavam ao nível do rés-do-chão. (Costa. In.
Goiânia, 1989, p. 100).

A principal característica desse tipo de edificação eram os detalhes


singulares de sua arquitetura; graças a ela, sua imagem ficou preservada na
memória do pioneiro. Já a forma de habitação dos edifícios de apartamentos
é caracterizada, sobretudo, pela sua aparência externa homogênea. São
dezenas de apartamentos semelhantes, cujo número de identificação na
porta se torna realmente necessário para evitar confusões constrangedoras.
A modernidade fez-se acompanhar da produção em série, da homoge-
neização dos objetos de consumo e até do espaço, trouxe “o movimento no
sentido de criar um ambiente homogêneo, um espaço totalmente moder-
nizado, no qual as marcas e a aparência do velho mundo tenham desaparecido

75
sem deixar vestígio.” (Berman,1986, p. 68). O edifício de apartamentos,
além de homogêneo, é totalmente racional: desde o aproveitamento do
espaço com a superposição de habitações até o controle de entrada e saída
de moradores e visitantes pela guarita da portaria. Em termos de raciona-
lização e normatização da conduta, só fica atrás da prisão moderna, nos
moldes em que foi analisada por Foucault em Vigiar e Punir. Nesse sentido,
a jaula de concreto que os apartamentos representam para o indivíduo te-
nha um sentido mais literal do que a jaula de ferro que Weber vislumbrou
para a modernidade.
Esse tipo de habitação, apesar da proximidade física, provoca um
relacionamento social mais distanciado nos moradores. Segundo Robert
E. Park,

Uma parcela bem grande das populações das cidades grandes, inclusive as
que constituem o seu lar em casas de cômodo ou apartamentos, vivem em
boa parte como as pessoas em algum grande hotel, encontrando-se, mas
sem se conhecer umas às outras. (Park, 1967, p. 67).

Desse modo, a antiga relação de vizinhança, característica fundamental


das pequenas cidades e da zona rural, fica limitada pela estrutura arqui-
tetônica que restringe os contatos sociais aos encontros fortuitos (nos ele-
vadores) ou formais (nas reuniões de condomínios).4
Os edifícios residenciais, portanto, dificultam a afirmação da personali-
dade do indivíduo por meio de sua moradia. Para compensar a falta de
indiferenciação externa, existe a compensação interna, com a decoração –
forma moderna de afirmar a personalidade pela residência, detalhe que
não passou despercebido a Walter Benjamin:

Desde Luís Felipe, a burguesia se empenha em buscar uma compensação


pelo desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade grande. Busca-
a entre suas quatro paredes. (...) a moradia se torna uma espécie de cápsula.
Concebe-a como um estojo de ser humano e nela o acomoda com todos os
seus pertences, preservando, assim, os seus vestígios, como a natureza
preserva no granito uma fauna extinta. (Benjamin, 1989, p. 43-44).

4. É preciso lembrar que os edifícios, das décadas de 60 e 70, não possuíam área de lazer
como os edifícios atuais, o que possibilita um relacionado mais intenso entre os
condôminos.

76
Desse modo, a verticalização representa a transformação nos valores da
elite de Goiânia em direção a um comportamento mais metropolitano. O
anúncio de um desses apartamentos, em 1975, aponta as principais quali-
dades desse tipo de moradia: “Edifício de 9 andares; Garagem individual,
02 elevadores, luxuoso Hal de Entrada, Central de Gás, Gelosias de alu-
mínio em toda as janelas.” (O Popular, 5 outubro de 1975).
A altura, o controle da entrada e saída, o individualismo e a funcionali-
dade da tecnologia moderna, fazem com que os arranha-céus provocassem,
não só a fascinação nos indivíduos, mas também repúdio, elogios e críticas.
Quanto às críticas, partem principalmente da criação poética, como no
poema progresso:

GLÓRIA AO HOMEM NAS ALTURAS


O lombo liso dos prédios
velozmente verticaliza
a antivida das cidades
GLÓRIA AO HOMEM NAS ALTURAS
Confinado o homem sobe
esnobe, quadriculado
isola e se multiplica
coisificado no ar
GLÓRIA AO HOMEM NAS ALTURAS
O isolamento em quadrados
se por uma lado, é verdade
elimina a comunicação
compartimenta, por outro
a neurose e a solidão
uniformizando a cidade
e assegurando na terra
PAZ AO HOMEM SEM VONTADE. (Figueiredo, 1980, p. 27-8).

Esse poema, publicado em 1980, é fundamentalmente irônico, a come-


çar pelo título progresso e pela citação bíblica. Ele critica o sentimento de
onipotência dos homens que pretendiam chegar as alturas celestes por
meio da arquitetura, como foi o caso dos que construíram a torre de Babel
ou dos que edificaram, em 1970, o Edifício Bemosa, com 26 andares, o

77
mais alto de Goiânia na época. O edifício de andares aparece em oposição
à vida: é antivida, sendo também o responsável por “coisificar o homem no
ar”, tirando-lhe a consciência, isto é, a sua vontade. O poeta é pessimista
em relação às novas possibilidades geradas para o homem na metrópole
moderna.
De modo geral, a crítica dirige-se à impessoalidade das relações sócio-
afetivas na metrópole moderna, demonstrando um sentimento de nostalgia
pelo tempo em que as relações eram mais íntimas e afetivas. Em Cidade
petrificada, o poeta compara a cidade da sua infância com a atual:

Já percorri
com meus olhos de menino
esta cidade de pedra.
(estava cheia de vida
quando menino
a habitava).
(...) Tem uma doença
que agiganta seu ventre
e traga seus sobreviventes
(é impossível salvá-la).
Está podre, e absurda.
Há edifícios nobres:
Luís de Camões,
Condomínios de Versailles.
Só sei dizer dos quintais pobres
onde perdi, sem ter encontrado
as ilusões de menino. (Felício, 1981, p.105).

Cidade-de-pedra, cidade-sem-vida, cidade-doente, cidade-poder.


Metáforas pejorativas indicando a transformação acarretada pelo cresci-
mento (ou agigantamento). Os edifícios, como representantes dessa
transformação, estão em oposição à época tradicional em que se brincava
nos quintais.
Também nos contos, os apartamentos são vistos como lugares de
solidão:

78
Primeiro seus olhos azuis dirigiram-se da janela do décimo sétimo andar
para a rua estreita, ondulada pelo movimento colorido dos carros. Depois
uma angústia sem conta foi brotando do peito e espalhando pelo corpo co-
mo garras frias e cruéis. (...) Não, ninguém. Apenas sombras deslizando pe-
los quartos vazios e a constante iminência de alguma voz. De vez em
quando parecia-lhe sentir alguma aproximação humana. Quem sabe?
Quem sabe? Girava o corpo rápida, atravessava a peça correndo, detinha-se
no vão de alguma porta, mergulhava a cabeça no corredor ou no outro cô-
modo, espreitava à direita, à esquerda. Nada. Só silêncio e sombras. (Ma-
chado, 1978, p. 65).

A personagem em questão enlouquece: raspa parte de seus cabelos,


pinta o corpo de azul, inunda a casa, deixando a torneira aberta. Não existem
vizinhos para notar o seu período de reclusão e oferecer-lhe ajuda. Os
únicos seres humanos, que estão em seu ângulo de visão privilegiada,
aparecem na rua, distantes, preocupados com seus afazeres cotidianos.
De modo geral, as críticas aos aspectos metropolitanos da cidade remon-
tam a secular oposição campo-cidade descritas por Raymond Williams
(1989) no seu magistral O campo e a cidade na história e na literatura. Goiânia
é comparada às pequenas localidades, próximas ao ambiente rural. Essas
críticas permaneceram, no entanto, sufocadas diante da euforia causada
por grandes edifícios, considerados como mais um adjetivo da Goiânia
moderna: “Goiânia com 86 mil residências e seus arranha-céus é hoje a
Rainha de Sabá dessa marcha gloriosa da conquista do Brasil pelos
brasileiros”. (O Popular, 23 de jan. de 1975).
Muitos dos goianienses talvez desconhecessem – ou nem estivessem
preocupados – a relação entre Marcha para Oeste e arranha-céus. De
qualquer modo, muitos preferiram a nova forma de morar: em 1969, do
total de pedidos de financiamento para construção de residências, 1.300
eram para construção de casas e apenas 135 para construção de aparta-
mentos; já, em 1978, os financiamentos para construção de casas subiram
para 1.652 e para apartamentos, chegaram a 2.431; no ano de 1982 foram
construídos mais de 4 mil apartamentos em Goiânia, o que provocou a
mudança na paisagem urbana: em 1969 existiam cerca de 169 edifícios na
cidade; dez anos depois eles já eram 1.815 (IBGE, 1981).

79
Conclusão

Os contos literários ambientados e alguns poemas que abordam Goiânia


são importantes fontes históricas para mostrar o sentimento dos goianienses
diante da modernização cultural. A modernidade representada pela cons-
trução de Brasília, pelas novas formas de lazer e de morar são responsáveis
também por trazer medo e sofrimento. A literatura permite recuperar
esses sentimentos, fazendo uma leitura crítica da modernização, possibili-
tando, desse modo, ao historiador encontrar “a realidade na ficção”.
Este artigo, como já foi dito, tem como uma de suas premissas a
concepção de que toda obra de pretensão realista tem também elementos
fictícios; e, por outro lado, toda obra fictícia contém também elementos
realistas. Ou nas palavras de Hayden White

Já não somos obrigados, pois, a acreditar – como os historiadores do período


pós-romântico – que a ficção é a antítese do fato (como a superstição ou a
magia é a antítese da ciência) ou que podemos relacionar os fatos entre si
sem o auxílio de qualquer matriz capacitadora e genericamente ficcional.
(White, 1994, p. 142).

Essa concepção abre espaço para análise de obras ficcionais como


potencialmente informativas para entender os aspectos culturais, em que é
preciso considerar a literatura como, nas palavras de James Clifford (1998,
p. 63-99), uma alegoria etnográfica, isto é, ver no texto literário algo além
do que ele expressa, de ver a ficção como seqüências de metáforas e imagens
úteis para compreensão da cultura. No caso deste artigo, o algo a mais
seria a representação da cidade de Goiânia na literatura de ficção, a fim de
determinar como Goiânia é lida, pensada e representada nesses textos.

80
REFERÊNCIAS

Livros e artigos:
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Obras
Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense; 1989.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade,
São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica; Rio de Janeiro: Editora da UFRJ,
1998.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O breve século XX, 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto/ PUC,
2006.
MONTEIRO, Charles; Pensando sobre a cidade de Porto Alegre na historiogra-
fia. In Cidades Brasileiras. São Paulo: CAPES/COFECUB / Instituto de Estudos
brasileiros/ Universidade de São Paulo, 1998, p. 34-37.
PARK, Roberto Ezra. “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento
humano no meio urbano”. In. VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno
urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
SILVA, Luiz Sérgio Duarte da. A construção de Brasília: modernidade e periferia.
Goiânia: Editora da UFG, 1997.
SIMMEL, G. Georg Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
TEIXEIRA, Ana Maria. Mauro Borges e a Crise Político-militar de 1961 em Goiás:
Movimento da Legalidade. Brasília: Senado Federal (Centro Gráfico), 1994.
WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1994.
WILLIAMS, Raymond. O Campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.

Livros ou artigos sobre Goiânia:


ARTIAGA, Zoroastro. “Salve Brasília!”. Número Comemorativo da Mudança da
Capital para o Planalto Central de Goiás. Goiânia: Academia Goiana de Letras,
1960.
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Anuário Estatístico de 1980.
Goiânia: IBGE, 1981.

81
MELO, Ivo de. Do cofre da vida: causos de Campinas das Flores de Nossa Senhora da
Conceição. Goiânia: Ed. do Autor, 1988.
MONTEIRO, Ofélia Sócrates do Nascimento. Como nasceu Goiânia. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1938.
NETTO, Pimenta. Anais do Batismo Cultural de Goiânia: 1942. Goiânia: Prefeitura
de Goiânia, 1993.
REIS, Gelmires. Efemérides Goianas. Goiânia: Secretaria de Educação e Cultura,
1979.

Contos literários:
ÉLIS, Bernardo. “Urbanização (Relatório).” In. Obra Reunida de Bernardo Élis. Rio
de Janeiro: José Olympio Editora, 1987.
MACHADO, Marietta Telles. “A irmã do Inácio”. Narrativas do quotidiano.
Goiânia: Oriente: 1978.
MACHADO, Marietta Telles. “Mergulhada na Urbe”. Narrativas do quotidiano.
Goiânia: Oriente: 1978.
TELES, José Mendonça “A solteirona do pensionato”. In. A cidade do ócio.
Goiânia: Editora Oriente, 1973.
TELES, José Mendonça. “Divina”. Via Sacra. Goiânia: Gráfica do Cerne, 1971.
TELES, José Mendonça. “Lua Cheia”. In. Via Sacra. Goiânia: Gráfica do Cerne,
1971.

Poemas:
FELÍCIO, Brasigois. “Cidade Petrificada”. Hotel do Tempo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira/Massao Ohno, 1981.
FELÍCIO, Brasigóis. “Vou indo (à margem da vida)”. In. Exílio. Goiânia: Gráfica
e Editora Unigraf, 1979.
FIGUEREDO, Nelson. “Progresso”. Sonhos e esporas, poemas. Goiânia: Gráfica e
Editora Unigraf, 1980.
NEDER, João. Poema composto no Índia Bar. In. GOIÂNIA, Prefeitura Munici-
pal. Assessoria Especial de Cultura. Memória Cultural: ensaios da história de um povo.
Goiânia, 1989.
TELES, Gilberto Mendonça. “Capital”. In. Poesia. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1982.

82
Depoimentos:
Depoimento de Bernardo Élis. In. TELES, José Mendonça (org.). Memórias
Goianienses, Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 1986.
Depoimento de Gerson Castro Costa. In. GOIÂNIA, Prefeitura Municipal.
Assessoria Especial de Cultura. Memória Cultural: ensaios da história de um povo.
Goiânia, 1989. P. 100.
Depoimento de Paulo Fleury da Silva. In. GOIÂNIA, Prefeitura Municipal.
Assessoria Especial de Cultura. Memória Cultural: ensaios da história de um povo.
Goiânia, 1989:160.
Depoimento de Regina Lacerda. In. GOIÂNIA, Prefeitura Municipal. Assessoria
Especial de Cultura. Memória Cultural: ensaios da história de um povo. Goiânia,
1989: 293.

Jornais:
Cinco de Março, 24 outubro de 1966. Coletânea/Goiânia – Arquivo Histórico
Estadual de Goiás
Folha de Goiaz, 24 outubro de 1982. Recortes/Goiânia – Arquivo Histórico Esta-
dual de Goiás.
O Popular, 23 de janeiro de 1975. Recortes/Goiânia – Arquivo Histórico Estadual
de Goiás.
O Popular, 5 outubro de 1975. Seção classificados. Microfilme: out./set/1975 –
Centro de Documentação e Pesquisa de O Popular.
O Popular, Goiânia, 15 de maio de 1960. Arquivo Histórico Estadual de Goiás.
Entre o arcaico e o moderno: uma leitura de
Chão Vermelho, de Eli Brasiliense

Ewerton de Freitas Ignácio


Andressa Andrade Pires
Émile Cardoso Andrade

Introdução

E li Brasiliense nasceu em 1915, em Porto Nacional, naquela época


localizada no norte de Goiás, hoje estado do Tocantins; foi escritor, filólogo,
romancista, ensaísta e jornalista. Em 1957, entrou para a Academia Goiana
de Letras, da qual foi presidente de 1961 a 1964. Seu primeiro romance
Pium - nos Garimpos de Goiás, de cunho claramente histórico-social, foi
publicado em 1949, após ter sido premiado com a importante Bolsa de
Publicações Hugo de Carvalho Ramos e, em razão de seu grande sucesso,
o garimpo é citado novamente, reaparecendo em outras obras do autor.
Em 1954, publicou Bom Jesus do Pontal, entre outras obras como Rio Turuna,
Um Grão de Mostarda, A Morte do Homem Eterno, e Uma Sombra no
Fundo do Rio.
O seu romance intitulado Chão vermelho, publicado em 1956, cristaliza
narrativamente as primeiras décadas da nova capital do estado de Goiás, a
cidade de Goiânia, em um momento em que a atual e densamente urbani-
zada capital ainda se constituía por ser um aglomerado urbano em que se
notava a existência de poucas casas e por prédios governamentais,
construções unidas entre si por ruas de chão vermelho, a cor característica
do solo da região, ruas que se cobriam de poeira na seca e que se transfor-
mavam em lamaçais na época das chuvas.

85
Desse modo, a obra traz à baila o surgimento e o desenvolvimento ini-
cial de Goiânia por intermédio de um olhar narrativo que enxerga a analisa
aquilo que vê, tudo sob a ótica de um narrador que se surpreende com a
modernidade que, inexoravelmente, passa a constituir a cidade e começa a
plasmar novos modos de as pessoas lidarem umas com as outras: assim como
o núcleo narrativo protagonista – a família de Joviano ou Jove –, o narrador
parece se igualar às personagens, nivelando-se ao patamar delas e compar-
tindo de suas visões, anseios e experiências perante as peculiaridades de um
denso processo de urbanização e de um implacável surto desenvolvimentista
que paulatina e inexoravelmente se fazia notar na urbe recém-criada.
O enredo se desdobra, sobretudo, a partir da narração de fatos, aventuras
e desventuras vivenciados por Joviano e por sua família, habitantes da
região antes mesmo de o massivo processo de urbanização se processar, na
recém-criada capital, com sua força total. A família de Joviano é composta
por sua esposa, Dona Fia, por seus dois filhos, Binduca e Toninho, este um
jovem que almeja cursar medicina em São Paulo e aquele um garoto
peralta, porém obediente aos mais velhos, dois filhos que ainda residiam
na casa dos pais, e também por sua filha Santinha, casada com Dr. Ferreira,
um conhecido médico da cidade, que tinha por hábito atender e medicar
os mais pobres, mesmo que esses não tivessem condições financeiras de
arcar sequer com o valor praticado pelas consultas.
Em termos estruturais, tem-se na obra uma narrativa linear, com espaços
referenciais bem demarcados e com predominância do tempo histórico-
social (NUNES, 1988), ou seja, quando o tempo, entendido como época
em que se passa a história, se deixa entrever por indícios físicos, e técnico-
descritivos – referências a personagens públicas do plano da realidade,
acidentes e tragédias famigeradas, determinados meios de locomoção ou
de comunicação –, e não de modo cronologicamente explícito.
O núcleo familiar de Joviano constitui também o núcleo da narrativa, e
é ele que vive, capítulo a capítulo, histórias compartilhadas com outras
personagens, o que de certa maneira compõe um amplo painel narrativo,
plasmado por histórias e personagens que surgem aqui e ali no enredo –
muitas delas em apenas um capítulo –, mas a cujas experiências de vida se
somam as experiências vivenciadas por Joviano e/ou as pessoas compo-
nentes de seu núcleo familiar.

86
Nesse sentido, observa-se que o foco narrativo incide mais sobre os fatos
do que sobre a repercussão de tais fatos na vivência interior das persona-
gens que os vivenciam. Isso, aliado à linguagem simples, objetiva e direta
por meio da qual a narrativa é tecida, além da presença maciça de diálogos
na massa verbal da narrativa, diálogos iniciados de modo claro, por traves-
sões, confere dinamismo ao enredo, de modo que a leitura se mostra rápida
e de fácil entendimento.
Levando em conta o retrato do urbano que se tem em Chão vermelho,
uma urbe ainda muito ligada ao universo rural em que ela foi criada, nosso
objetivo, neste texto, é promover uma leitura desse romance buscando
evidenciar como se cristaliza, no espaço citadino da obra, um espaço
citadino que se urbaniza a passos acelerados, por meio de referências a um
contexto histórico-social subjacente aos primeiros anos da cidade de
Goiânia, e também buscando demonstrar que se tem, na obra literária em
pauta, o retrato da experiência urbana de indivíduos que vão para a cidade
em busca da realização de seus anseios, mas que acabam se deparando com
um espaço por muitas vezes hostil, no qual ou se acompanha o fluxo das
transformações, ou se é posto à margem das coisas.

Entre o rural e o urbano, entre a poeira e o asfalto

Joviano, na condição de antigo habitante da região, sente um estranha-


mento diante da modificação da paisagem rural para um cenário urbano,
ao mesmo tempo em que admite sentir um certo receio em relação aos
rumos e aos ditames que a acelerada urbanização promovia no contexto
citadino de que ele é morador. Acreditava, em grande parte, que o progresso
estava imprimindo mais contradições e problemas do que realização pes-
soal aos habitantes e ao local; entretanto, mesmo com esse estranhamento,
provocado pela inexorável transição da paisagem rural, que lhe era antiga
conhecida, para uma paisagem urbana, que lhe fascina, amedronta e
encabula, o protagonista ainda demonstra grande afeto pela localidade dita
como leu lar.

87
Desse modo é que ele, quando

Avistava a Avenida Anhanguera, inçada de automóveis, alguns até engraçados,


parecendo mais com jabotis de lata [Joviano pensava que] o progresso
estava estragando tudo. Já não se podia mais andar com sossego pelas ruas.
O vivente ia muito bem, andando distraído, de repente era um guinchar
perto, a roda do carro riscando o asfalto. Carro passava por cima de gente
de vez em quando. No bairro não havia desastres porque os choferes
tinham de andar com cuidado, para se livrar dos buracos. (BRASILIENSE,
1993, p. 10).

Observa-se, por meio da leitura desse fragmento, que a capital já con-


tava com uma ampla frota de carros, e que essa frota, de certa maneira, já
atordoava a mente e a vida dos habitantes do local, principalmente dos
mais antigos, como Joviano. Trata-se do que Georg Simmel já havia sina-
lizado em 1903, em seu “As grandes cidades e a vida do espirito”, ao de-
fender a ideia de que as grandes cidades, as futuras metrópoles,
bombardeariam seus moradores com um excesso de estímulos psíquicos,
estimulando-lhes a vida mental de modo a lhes corroer o sossego.
Observa-se, ainda, uma crítica implícita ao governo, na medida em que
Goiânia, se por um lado já se constituía uma cidade com uma frota consi-
derável de automóveis, por outro lado ainda era uma cidade com ruas
poeirentas e esburacadas, ruas cuja construção e conservação ainda não
haviam atingido sua plenitude, constituindo-se, antes, como locais insalubres.
Em outro diapasão, cumpre notar, esse mesmo descaso do poder público
com relação à conservação das ruas é que, de certa maneira, confere relativa
segurança aos moradores mais afastados, na medida em que os buracos os
protegiam, livrando-lhes de possíveis e fatais atropelamentos.
A existência, já, de muitos carros presentes na nova capital, se justificava
também pelo fato de que

Muita gente não andava mais a pé. Chegava de tanga na cidade e logo
aprendia a mandraca da riqueza fácil, sem suor e sem canseira, punha casa
de aluguel e carro pra rodar. Por isso é que olhava sempre com desconfiança
todo sujeito com modos de camponês embrulhado em roupa de carregação,
com o bote armado para emprestar dinheiro até vinte por cento.
(BRASILIENSE, 1993, p. 10).

88
Joviano sentia verdadeiro asco de agiotas. Tanto é que, quando um deles,
Juventino, vai até sua casa para pedir votos a um cargo público e lhe dá
uma nota de dinheiro a Binduca, ele, depois de se apossar da nota com a
qual o agiota candidato presenteara seu filho pequeno, a lança à chama do
fogão a lenha, enojado.
Nesse aspecto, verifica-se, na massa verbal da narrativa, uma distinção
maniqueísta entre as personagens, posto que se tem, de um lado, aquelas
cujas ações e cujos valores são tributárias de antigos códigos de honra e de
conduta, para os quais a palavra empenhada possui mais valor do que um
documento assinado, e, de outro lado, seres cujos atos desdizem suas palavras,
comportando-se como pessoas mentirosas, trapaceiras, libidinosas, egoístas.
Evidentemente, o núcleo familiar de Joviano se insere no primeiro grupo:
todos constituem uma família humilde, trabalhadeira, bondosa e integra,
caracterização que se aplica inclusive ao comportamento e natureza de seu
genro, o Dr. Ferreira, abre mão de receber pelo trabalho praticado, sendo
o médico dos desvalidos.
Em meio à metrópole que se formava, porém, não teria como se ficar
imune ao novo contexto urbano, plasmado por relações mais frias do que
calorosas, e mais objetivas do que subjetivas. Embora não possamos afirmar
isso categoricamente, visto que a narrativa se encerra antes de o núcleo
familiar de Joviano se esfacelar – com exceção de Dona Fia, que morre
vitimada por um efisema –, o filho mais velho se encaminha para se mudar
para São Paulo, onde se podia “tomar um banho de civilização”
(BRASILIENSE, 1993, p. 23), e o genro, Dr. Ferreira, após ter chegado
exausto em casa, de madrugadinha, começa a tecer as seguintes considerações:

Valeria a penas aplicar a lei da compensação? Tratamento demorado em


pobre, quase de graça. Uma agulhada no corpo já podre de algum ricaço,
preço alto. Safadeza. O melhor era um bom emprego, mais de um, três ou
quatro, a exemplo de alguns colegas. Um consultório no centro da cidade,
uma enfermeira bonita e uma legião de clientes ricos, portadores de doenças
imaginárias e moedas reais. (BRASILIENSE, 1993, p. 85).

Não obstante esse momento de tentação, o médico rapidamente re-


constrói sua verdadeira consciência e, como estava tomando café, bateu

89
Com força a xícara no pires, para espanto de Luiza [a empregada]. Ergueu-
se. Não fora isso que jurara na solenidade de formatura. A fadiga era a tinta
com que o diabo escrevia aquelas coisas na sua ideia. Diabo? Não conhecia
esse cliente. (BRASILIENSE, 1993, p. 85).

Interessante observar que, embora tenha seus princípios morais e seja


obediente a eles, no pensamento do médico Ferreira tem-se a menção à
palavra “cliente”, e não ao vocábulo “paciente”, o que seria mais plausível,
como seria de se esperar em se tratando de um médico para o qual a saúde
das pessoas às quais ele atendia era mais importante do que a carteira delas.
Esse efêmero momento de tentação vivenciado pelo médico, resguar-
dadas as devidas e necessárias proporções, nos remete à memória bíblica da
tentação vivida por Cristo quando esteve em retiro no deserto. E não nos
parece gratuito, nesse aspecto, que Chão Vermelho tenha por epígrafe um
trecho do Evangelho de Isaías, um dos profetas mais conhecidos no con-
texto bíblico:

E edificarão casas e as habitarão; e plantarão vinhas, e comerão o seu fruto.


Não edificarão para que outros habitem; não plantarão para que outros
comam.
O deserto e os lugares secos se alegrão disto; e o ermo exultará e florescerá
como a rosa. (epígrafe de Chão vermelho)

O texto da epígrafe aponta para a percepção da apropriação do espaço e


para sua consequente e exitosa transformação, em termos humanos. Trata-
se, de acordo com as considerações de Nelly Novaes Coelho (1974), da
transformação de um “ambiente natural” em um “ambiente social”, a qual
ocorre sempre que braços humanos, mediante o empenho e a força de seu
trabalho, iniciam e promovem mudanças na natureza, domesticando-a, ou,
mesmo, eliminando-a, como nos atestam e comprovam os crimes ambientais
perpetrados em contextos urbanos e suas adjacências.
Em outro trecho, em um momento em que o genro de Joviano, o
médico Ferreira, estava conversando com um conhecido, que se mudara
há muito para o interior, tem-se uma menção à corrupção que pode imperar
no meio de uma política rasteira e desprovida de reais interesses populares:

90
– Mas prefeitura dá tanto assim, Nogueira?
O outro debruçou-se sobre a mesa, abriu as pernas para acomodar o ventre
bojudo e confidenciou:
– Para quem é besta não dá. Olha aqui, eu vendo tratores, arados e “jeeps”,
sabe?
– É representante de alguma firma?
– Peço tudo em nome da Prefeitura, por intermédio da CEXIM, pois parti-
culares não podem. Depois digo que a municipalidade não está em condições
de ficar com a encomenda e vendo as licenças para firmas do Rio, por
dinheiro grosso. É tudo batatolina, negócio limpo.
– Negócio sujo, Nogueira.
– Mas se não sai nem um tostão dos cofres da Prefeitura, velho!
– Por direito esse dinheiro pertence à Prefeitura, porque você fez negócio
em nome dela. (BRASILIENSE, 1993, p. 103).

Após perder a paciência com seu interlocutor, o médico de se despede


de maneira ríspida e se afasta para cuidar de seus pacientes. Nesse frag-
mento, tem-se um exemplo de como o narrador se vale de alguns expedi-
entes narrativos para se referir a hábitos e comportamentos que,
infelizmente, não estão de todo desatualizados. O expediente se configura
pela técnica de fazer com que personagens desfilem pelas páginas de modo
a interagirem com o protagonista, Joventino, ou com membros de sua
família, o que gera situações por meio de cuja descrição e relato o leitor
passa a conhecer o lado mais sombrio e desonesto das personagens que
não se enquadram em um padrão moral e ético.
Essa estratégia narrativa, em algumas obras, principalmente no contexto
da literatura infantil brasileira em seus primórdios, fazia com que os textos
adquirissem contornos moralizantes, didáticos, instrutivos. Isso não chega
a ocorrer no contexto narrativo de Chão vermelho, embora o maniqueísmo
em relação à caracterização das personagens, como já afirmamos, se faça
notar de modo contundente: nessa obra, ou a personagem é mostrada em
sua faceta honesta e eticamente correta, ou é mostrada em sua faceta
desonesta e malandra, desprovida de senso moral e repleta de sentimentos
de egoísmo. Tanto em um caso quanto em outro, o que se tem são perso-
nagens planas, aquelas que não mudam seu padrão comportamental ao

91
longo da narrativa, sendo previsíveis e pouco profundas do ponto de vista
psicológico. (FORSTER, 1998).
Ewerton de Freitas Ignácio, em seu livro Do campo abandonado para a
cidade suportada: campo e cidade na literatura brasileira (2010), defende a ideia
de que, no decorrer do século XX, a literatura em prosa produzida no
Brasil evidenciou, em suas páginas, um voltar as costas para o campo e
uma imersão na vivência da cidade grande, algo iniciado no começo desse
século, promovendo um tipo de êxodo rural literário. Embora o tempo
narrativo de Chão vermelho, conforme já evidenciamos, não seja cronolo-
gicamente explicitado, pode-se pressupor, pelas inferências disseminadas
ao longo do texto, que se trata de uma história que se desenrola na década
de 1950 e, portanto, em um momento que delimita e marca a metade
do século.
Desse modo, não nos parece gratuito que as personagens do romance,
embora sejam moradoras da cidade – de uma cidade que é uma capital que
se moderniza a passos largos –, ainda sentem profundas conexões com o
campo do qual são oriundas. Talvez por esse motivo, aqueles indivíduos
que não conseguem se adaptar de modo pleno à vida urbana sejam postos à
margem das coisas, posto que alijadas de uma condição digna de vida, e
passam a subsistir como andarilhos e/ou mendicantes.
É o que acontece, a título de exemplo, com o carroceiro Marcelo, que
já havia sido expulso de seu roçado por grileiros de terra que haviam
incendiado seu casebre e que, no contexto da cidade grande, não encontra
uma maneira de viver dignamente, dos frutos de seu trabalho braçal. Em
uma noite em que Brígida, sua esposa, adoece, ele não suporta o fardo
imposto pelas dificuldades financeiras e desaba em prantos perante o
médico, o senhor Ferreira, ao se relembrar do que lhe ocorrera a ele e à
sua família:

Marcelo havia vencido a ruindade da terra e a tornara produtiva. Quando


os soldados chegaram lá, acapangados pelos grileiros, lutara até esgotar-se,
para depois ser surrado sem soltar um berro. Quando sua casa estava
pegando fogo sentia o incêndio era por dentro, estirado no chão. [...] desatou
a chorar. Manoel levou-o para a varanda e mostrou-lhe uma cadeira junto
da mesa. Era melhor deixá-lo desabafar aquela agonia. [...]

92
Marcelo veio ajudar. Estava envergonhado de haver chorado na presença de
um estranho. Até a tremura do corpo havia cessado, mas evitava o olhar do
médico e baixava a cabeça. (BRASILIENSE, 1993, p. 49-50).

Se por um lado a cidade se mostrava sedutora para aqueles indivíduos


que para seus domínios se dirigiam, por outro lado se mostrava um cenário
de prolongamento das injustiças e desigualdades vivenciadas em contextos
rurais. Desse modo, se o malandro e o gaiato se davam bem no contexto
citadino, o trabalhador, o honesto tinham de se virar como podiam para
garantir uma condição digna de vida.
Enquanto isso, a cidade continua a se expandir, prolongando suas ruas e
tomando conta do horizonte:

– Já reparou como Goiânia tá grande? Cadê o cerradão que a gente varava


todo santo dia? Tudo é casa e de muito luxo. Tem até prédio de arranha-céu.
Terminou de modo intencional.
– Gosto disso aqui, Fernando. Tenho amor nesta cidade como se fosse mi-
nha filha. Ela tem muito do nosso braço. (BRASILIENSE, 1993, p. 49-50).

Tais fragmentos, dispostos lado a lado, podem, em certa medida, serem


vislumbrados como portadores de visões dicotômicas sobre uma mesma
cidade. Para nos valermos de versos de Mário de Andrade, tecidos tendo
São Paulo – a grande Pauliceia – como referência, poderíamos afirmar que,
se para algumas personagens de Chão vermelho Goiânia é “a comoção da
minha vida”, para outros pode bem ser uma “boca de mil dentes a [me]
triturar” (ANDRADE, 2005).

Cultura e religião no chão do cerrado goiano

Tem-se ainda, no contexto narrativo de Chão vermelho, espaço para a


representação de hábitos culturais locais, muitos dos quais ligados à
religião. Não obstante, já se pode notar, também, uma certa aculturação,
por parte de algumas jovens, em suas tentativas de imitarem o que se via
nas telas de cinema.

93
Dessa maneira é que quando Toninho, o filho mais velho de Joviano,
vai ao aniversário de Noêmia, moça de família abastada de quem gostava,
acaba reparando, com olhares de reprovação, o comportamento pouco
autóctone de Marta, uma jovem que inclusive passou a admitir, em sua fala
diária, o uso de anglicismos:

Ele cantava e não se esforçava por sorrir. Junto dele Marta, uma grandaça
de cabelos oxigenados, esganiçava um insosso “Happy birth-day to you”.
Desafinada, tinha pigarro. Era como se atirasse molho inglês no bolo da
aniversariante. Sentiu-se aliviado quando a cantoria terminou. [...]
Logo uma eletrola começou a funcionar. Boleros, tangos argentinos,
mambos. Que diabos teriam feito do samba? Era o que sabia dançar
melhor. Foi sentar-se a um canto, para ficar longe do pedantismo de Marta.
A conversa dela era cheia de yes, ok, darling, no, uma coisa insuportável.
(BRASILIENSE, 1993, p. 106).

Aos olhos de Toninho, bem como aos de seu núcleo familiar, o que não
era natural da terra parecia forçado e, por isso, digno de reprovação.
Imitações de falas de artistas de cinema hollywoodiano, bem como a
apropriação de gostos musicais alheios ao que até então se conhecia e era
nacional, também não eram vistos com bons olhos, mesmo que tais coisas
já fizessem parte do cotidiano de muitas pessoas na capital goiana.
Em outro momento, Toninho vai, com alguns amigos, para Trindade,
onde se realizava a tradicional festa do Divino. Já no trajeto, onde os
“carros rodavam com os faróis acesos por causa da poeira” (BRASILIENSE,
1993, p. 110),

Os rapazes riam e olhavam o movimento da estrada, especialmente a


procissão de romeiros e pedintes. Tapavam o nariz com os lenços, a poeira
se infiltrava por todos os cantos e sufocava. Toninho aceitara o convite dos
colegas pela curiosidade de dar uma olhada na romaria famosa. Trindade
era uma cidade pequena e falava-se em mais de cinquenta mil pessoas
por ocasião da festa. A promiscuidade deveria apavorar os sanitaristas.
(BRASILIENSE, 1993, p. 110-111).

94
Apesar de a festa do Divino ser retratada, na obra, de maneira porme-
norizada, o foco das descrições não é religioso. Trata-se de um retrato mais
objetivo, isento de proselitismo e de um ponto de vista que se coaduna à
existência e defesa do sagrado. Tanto é que a descrição da festa religiosa,
com suas nuances e peculiaridades, é motivada pela ida de Toninho e de
seus três colegas, ou seja, quatro jovens, à cidade de Trindade, à qual se
dirigem para verem o movimento, andarem pelas barracas, conhecerem,
enfim, a realidade que a cidade vive em torvelinho nos dias de festa.
Nesse aspecto, cumpre observar que não só nesse momento narrativo o
sagrado se deixa representar em plano secundário: em outros pontos da
narrativa, a religião igualmente se deixa representar de uma maneira que
faz com que sua aura de espiritualidade seja dissolvida no redemoinho
factual do cotidiano, funcionando mais como pano de fundo cultural do
que como uma preocupação genuína com o sagrado e sua cristalização no
corpo descritivo do romance.
No que diz respeito à arquitetura da cidade, verifica-se que muitas
construções eram feitas de maneira indevida, fosse pela grande necessidade
de crescimento em um curto período de tempo, ou pela já citada forma de
conseguir dinheiro fácil, uma vez que a profissão de pedreiro era acessível
a muitos e alguns desses não se importavam em fazer um serviço bem
feito. Assim, quando havia tempestade, as construções caiam e acabam
deixando feridos e desabrigados.
Desse modo, a exemplo de tais construções, verifica-se, no contexto
narrativo do romance, o retrato de pessoas que vivenciam suas experiências
de um modo particularizado, ou seja, como se relutassem em ter sua indi-
vidualidade anulada frente à cidade cujos domínios se espraiavam pelo
cerrado, de forma constante, incisiva e inexorável. São personagens mais
humanizadas e que, por essa razão, têm suas vivências desdobras mais no
plano do humano e menos no do sagrado.

95
Considerações finais

Pode-se constatar, em Chão vermelho, o movimento de migração de


pessoas de outras regiões do país para a nova capital goiana, para onde
partem em busca de emprego ou de melhores oportunidades de vida.
Dessa forma, podemos notar a exposição da cidade como ponto específico
referente à oportunidade de melhoria de vida ou forma de sobrevivência, o
que nem sempre se verifica algo possível a todos.
Nota-se também que o processo de desenvolvimento, ao mesmo tempo
em que trazia seus benefícios, ainda trazia consigo problemas comuns,
causadores de estranhamento para a época: a precariedade de energia, o
aumento de acidentes de trânsito, asfalto em poucas localidades e a
violência são alguns exemplos.
O processo de modernização acaba por fim corrompendo algumas
pessoas, fazendo mesmo com que Joviano se sentisse sorumbático e
nostálgico, principalmente pelos valores de uma época que foi substituída.
No entanto, o tom nostálgico está presente em toda a obra, mesmo que a
personagem veja benefícios no desenvolvimento da cidade; acima de tudo
ele sente falta do espaço antes rural em que vivia e que agora fora substi-
tuído pelo urbano.
Nesse aspecto, o protagonista se vislumbra, de maneira irreversível,
cada dia mais distante do chão vermelho – realidade e imagem que lhe
emoldura as lembranças de seu passado – e cada dia mais imerso nas
malhas viárias urbanas do chão asfaltado – realidade e imagem apontada
por seu presente e por seu futuro.

96
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Mário de. Poesia completa. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.
BRASILIENSE, Eli. Chão vermelho. 2a ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1993.
COELHO, Nelly Novaes. O Ensino da Literatura comunicação e expressão. 3. ed. Rio
de Janeiro: 1974.
FORSTER, Edward Morgan. Aspectos do romance. Trad. M. H. Martins, 2. ed. São
Paulo: Globo, 1998.
IGNÁCIO, Ewerton de Freitas. Do campo abandonado para a cidade suportada: campo
e cidade na literatura brasileira. Universidade Estadual de Goiás, 2010.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1998.
SIMMEL, Georg. A grande cidade e a vida do espírito. In: VELHO, Otávio
Guilherme. (Org.). O fenômeno urbano. São Paulo: Zahar, 1979.
A modernidade/modernização da cidade de Goiânia:
O discurso de Eli Brasiliense em Chão Vermelho

Marco Túlio Martins


Geisa Daise Gumiero Cleps
Karinne Machado Silva

Introdução

A publicação do livro Chão Vermelho, em 1956, pelo escritor Eli


Brasiliense, representou em importante movimento de encontro entre o
pensar literário e a modernização que a cidade de Goiânia passava entre as
décadas de 1950-1970. A narrativa ficcional se mistura, em muitos
momentos, com a memória do escritor que se estabeleceu na capital nos
seus primeiros anos.
A partir do contexto literário e geo-histórico, este artigo visa discutir
como a história da cidade de Goiânia e do seu espaço geográfico são
discutidos no livro desse pioneiro, Eli Brasiliense. Na condição de testemunha
ocular1 ele narra histórias daqueles que arriscaram na aventura de mudar
para uma cidade construída no meio do Centro-Oeste, cidade marcada
pela paisagem do sertão goiano.
O objetivo central do artigo é analisar o discurso construído pelo autor
à luz da modernização territorial que estava em processo de disseminação
como projeto de Estado. Ligado a isso, tal discurso também englobou a
dualidade sertão/litoral que estava presente na materialidade geográfica
bem como no pensamento social da época.

1. BURKE, Peter. Testemunha ocular. O uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Ed.
UNESP, 2017.

99
Eli Brasiliense chegou em Goiânia em 1937, momento este de interio-
rização da modernidade capitalista determinada pela área core do Brasil
(São Paulo e Rio de Janeiro). Assim, tem-se como pressuposto que este
período histórico vivenciado pelo escritor influenciou diretamente na
promulgação de um discurso (através da arte) acerca da instalação dessa
modernidade capitalista no interior, simbolizada pela edificação de Goiânia.

A modernização do sertão na formação territorial brasileira


(1930-1956): questões teóricas e históricas

Analisar o processo de formação territorial do Brasil é uma preocupação


recorrente entre vários intelectuais de diferentes campos científicos. Nas
ciências humanas é possível construir uma análise que parte do discurso
produzido por um determinado sujeito que é datado e especializado.
Nesse sentido, a análise discursiva empreendida por pesquisadores tor-
na possível a verificação dos sentidos e dos impactos que os discursos pro-
vocaram no imaginário social bem como na organização espacial de uma
determinada sociedade. Deste modo, a proposta que aqui se constrói tem
como finalidade metodológica analisar a formação territorial de Goiás e
suas implicações no que vem a ser denominado de sertão. Nessa perspec-
tiva, a fala promulgada por Eli Brasiliense se enquadra a partir do mo-
mento que retratou a construção de Goiânia e o sentido de moderno
enraizado a partir dela.
Lucien Goldman (1979) definiu o papel de alguns sujeitos históricos,
inseridos numa determinada sociedade, como indivíduos expressivos. Para
Goldman, os indivíduos expressivos são aqueles que conseguem, a partir
de seus textos e discursos, expressar as ideias de uma determinada classe
social de forma organizada. Desta maneira, tais discursos tornam-se legítimos
e tomados como verdade para uma determinada classe social. Utilizar-se-á
neste trabalho o projeto metodológico que Goldman desenvolveu para
analise os discursos de tais indivíduos expressivos, neste caso, Eli Brasiliense.
Para o filósofo só é possível analisar os discursos produzidos pelos intelectuais

100
a partir de uma tríade dialética entre obra, biografia e contexto. Nas palavras
de Löwy e Naïr (2008), “consiste em realizar uma espécie de ‘vaivém’ meto-
dológico entre a obra, seu significado histórico e o que a tornou possível”
(LÖWY, M; NAÏR, S, 2008, p.59).
É factível a partir disso, depreender da obra de Eli Brasiliense (Chão
Vermelho) o processo de formação territorial do Brasil e o aparecimento da
cidade de Goiânia integrando tal dinâmica socioespacial. É o aparecimento
de uma capital no interior do país que indefinidamente foi colocado como
o grande sertão, sobretudo, pelo pensamento social brasileiro da época.
Cabe assim, definir o que vem a ser o sertão. Tal “categoria” ou “con-
ceito” passou por diferentes adjetivações no decorrer da história do Brasil.
Entretanto, a proposição de Moraes (2009) de sertão: um outro geográfico
consegue abarcar a necessidades de análise que envolve tal conceito.
O sertão sempre foi visto e observado como a paisagem natural onde
havia a predominância dos homens dos tempos lentos, ou seja, “o sertão
como um lugar onde predomina o ritmo dado pela dinâmica da natureza,
onde o elemento humano é submetido às forças do mundo natural”
(MORAES, A.C.R, 2009, p.87). Para Moraes (2009), o sertão não se
configura como um recorte delimitado e definido por uma espacialidade
concreta.

Muito menos, o sertão se qualifica pela intervenção das sociedades sobre a


superfície da Terra. Não são as obras decorrentes da ação humana que indi-
vidualizam tal espaço, dando-lhe uma qualificação própria pelo uso e trans-
formação dos lugares. Não são construções específicas (ou o seu
adensamento) que lhe conferem singularidade. Antes, a ausência de tais
elementos é que aparece como fator de distinção em sua delimitação. Tam-
bém não são as atividades produtivas ali praticadas que qualificam, ou mes-
mo a marca de tais atividades numa paisagem local. O sertão não se
constitui, portanto, como uma materialidade criada pelos grupos sociais em
suas relações com os lugares terrestres. Ao contrário, a invisibilidade da
presença humana é muitas vezes levantada como um traço característicos
desses espaços não raro definidos como “vazios demográficos” ou “terras
desocupadas” (MACHADO, 1995). (MORAES, A.C.R, 2009, p.87-88).

101
Nesse sentido, pode-se dizer que o sertão não é um lugar em específico,
mas vários lugares que apresentam os mesmos condicionamentos imputados
a eles. Por isso, deve-se destacar a não existência de sertão e sim de
sertões. Um local determinado como sertão apresenta assim a condição
que lhe é dada, sobretudo pelo Estado, no que diz respeito ao seu processo
de valorização.
Portanto, o lugar condicionado a ser sertão representa uma ideologia
geográfica de um “discurso valorativo referente ao espaço, que qualifica os
lugares segundo a mentalidade reinante e os interesses vigentes neste
processo”. (MORAES, A.C.R, 2009, p.89). O sertão, ou os sertões, são os
lugares que ainda não estão ou não foram inseridos na lógica dominante
capitalista, representando áreas que devem ser colonizadas ou projetadas
para a modernidade. A localização traçada para a cidade de Goiânia entre
as décadas de 1930-1950 pode ser enquadrada com esse qualificativo.
O sertão será sempre uma área receptora de projetos do Estado para
que tais áreas sejam incluídas na lógica expansionista, imperialista e
colonizadora da modernidade e da modernização capitalista do espaço.

O sertão é comumente concebido como um espaço para a expansão, como


o objeto de um movimento expansionista que busca incorporar aquele novo
espaço, assim denominado, a fluxos econômicos ou a uma órbita de poder
que lhe escapa naquele momento. Por isso, tal denominação geralmente é
utilizada na caracterização de áreas de soberania incerta, imprecisa ou me-
ramente formal. No geral, utiliza-se o termo sertão para qualificar porções
que se quer apropriar dos fundos ainda existentes no território nacional em
cada época considerada. Nesse sentido, trata-se de um qualificativo que induz
um novo processo de domínio territorial sobre os espaços enfocados, isto é,
que introduz um novo surto de dominação política no âmbito espacial deli-
mitado pela qualificação proposta. (MORAES, A.C.R, 2009, p.90-91).

A cidade de Goiânia, desde sua gênese (projeto) até a sua consolidação


se desenvolveu como um símbolo de mudança e de modernidade que se
instalaria em pleno sertão de áreas do cerrado. Diferentes discursos sobre a
mudança da capital promoveram o debate intenso sobre tal processo, o que
desencadeou a necessidade de formação de um imaginário que contribuísse
com a instalação do ideal do novo/moderno na área definida para se instalar
a cidade. Eli Brasiliense foi um desses intelectuais que contribuiu para a
formação desse imaginário moderno e na desconstrução do ideário de

102
atrasado e retrógrado. Nesse sentido, quando se analisa o contexto de
formação de uma certa infraestrutura moderna para comportar a nova
lógica que se instalava, a localidade de Goiânia seria alvo do projeto de
modernização capitalista, deixando gradativamente sua condição de sertão.
Um desses grandes símbolos do moderno é a ferrovia.
A transferência da sede administrativa do estado no início do século XX
significava, para o governo do estado, torná-la um reflexo da modernização
econômica e da nova política territorial instalada no Brasil (Marcha para
Oeste). Goiás encontrava-se inserido na lógica da economia de mercado,
no papel de exportador de produtos agrícolas para as demais regiões do
Centro-Sul, antes da mudança da capital. Entretanto, as transformações
econômicas ocasionadas pelo Estado getulista, com o aumento da indus-
trialização e a expansão do processo urbanização provocou modificações
significativas na economia regional. A maior consequência dos reflexos do
que ocorria no cenário nacional em solo goiano foi o novo arranjo político
que retiraria antigas oligarquias do poder e colocaria outras.
Para o historiador Barsanufo G. Borges (1990), uma das exigências para
que o capital amplie seu poderio econômico é a conquista de novas regiões,
tais como Centro-Oeste (os fundos territoriais) que no início do século
passado possuía um vasto território ainda pouco explorado pelo mercado
consumidor. Para além disso, toda essa região foi usada para consolidar o
mercado interno parcialmente desarticulado.
Desse modo, ao realizar a incorporação de novos territórios, o capital
(representado pelas classes dominantes de caráter local) encontraria meios
de (re)produção. Para atingir esse objetivo, houve a implementação de
uma infraestrutura de transporte que permitiu ao Centro-Sul, região que
concentrava o maior capital financeiro da época, a conquista do Centro-
Oeste e a consequente expansão da frente pioneira.2
A construção da Estrada de Ferro de Goiás, no início do século XX, foi
possível devido alguns fatores estruturais: às forças políticas emergentes,
ao projeto de Estado brasileiro e aos financiamentos estrangeiros (exemplo
da França). Os novos grupos políticos entendiam que a modernização nos

2. Frente pioneira constitui-se os ambientes e espaços ainda não dominados pelo capital.
Caracteriza-se pelo povoamento mais escasso, pelas formas tradicionais de produção e pela
oferta de terras. Para aprofundar o tema consultar: Martins (2009).

103
meios de transportes de cargas era uma condição necessária para o desen-
volvimento econômico de Goiás. Os trilhos ligavam a região aos maiores
centros consumidores: Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo.
Considerado como o primeiro meio de transporte de cargas moderno
do estado de Goiás, a Estrada de Ferro tornou viável a rápida exportação
de produtos primários (arroz, charque etc). Além de incrementar a circu-
lação de produtos para outras localidades brasileiras, a ferrovia dinamizou
as trocas comerciais intermunicipais, beneficiando principalmente as cidades
cortadas pelos seus trilhos, localizadas ao sul e ao sudoeste do estado.
Apesar de não ter ocorrido um rápido processo de mecanização da pro-
dução agrícola e a intensificação das relações de produção capitalistas, nas
cidades próximas a ferrovia (Araguari, Paranaíba, Catalão, Senador Canedo,
Goiânia, Anápolis, Pires do Rio, Ipameri, Anhanguera, Goiandira, Leopoldo
de Bulhões, dentre outras) houve a substituição gradativa da agricultura de
subsistência pela produção em larga escala tendo como consequência a
valorização das terras. Para além do fluxo de mercadorias gerado pela
instalação da ferrovia, a mesma serviu para a consolidação e ampliação dos
núcleos urbanos existentes que acompanhavam os trilhos. (CASTILHO,
D, 2016).
A especulação fundiária foi uma característica marcante da história da
ferrovia, especialmente, porque a propriedade da terra e a economia agrária
passaram a adquirir cada vez mais importância no processo de produção
mercantil. Além dessa característica podemos ressaltar a modernização e
urbanização das cidades goianas servidas pela linha férrea.
Ainda segundo Barsanufo G. Borges (2000, p. 74) a expansão da fronteira
agropecuária, resultado da frente pioneira, sinalizou a inserção de Goiás
no mercado nacional:

A interiorização da fronteira era fundamental para concretizar a centraliza-


ção do poder político, criar um mercado interno e aumentar a produção de
alimentos para atender a demanda das populações urbanas. Ou seja, o cará-
ter arbitral das decisões do interventor [Pedro L. Teixeira], com relação à
construção de Goiânia, apoiava-se tanto na política de conquista do Oeste,
como nos interesses das novas forças econômicas e políticas emergentes no
país. (BORGES, 2000, p.74).

104
As novas forças das cidades localizadas ao Sul e ao Sudoeste Goiano
detinham grande poder econômico facilitado pelos trilhos da estrada de
ferro, o que provocou reivindicações por uma maior participação nas deci-
sões políticas. Contudo, o poder consolidado da família dos Caiado3, que
por longa data governava o estado de forma autoritária e centralizadora,
era um obstáculo a essa ampliação na tomada de decisões dos novos grupos.
Desse modo, os grupos políticos originários das cidades em expansão,
representados pelo governo de Pedro Ludovico Teixeira, responsável pela
transferência da capital, identificavam a Cidade de Goiás como uma cidade
dominada pelo mandonismo local e pelo poder da família dos Caiado.
Portanto, o panorama político desenhava-se da seguinte forma: de um
lado, posicionavam-se grupos do sul e sudeste, que desejavam uma moder-
nização econômica maior e uma mudança política capaz de possibilitar a
participação efetiva de seus políticos; de outro, os tradicionais grupos
regionais, dominantes desde a Primeira República, defensores da perma-
nência do status quo no cenário político e da manutenção do poder regional
na antiga capital.

Havia em Goiás – cidade e capital –, serviços de força e luz, rede escolar


completa, serviços básicos de higiene e saúde pública etc., o que a destacava
em termos de desenvolvimento urbano. Porém, havia um universo de
acontecimentos que dava a impressão de que a capital havia se estancado no
tempo: sem o crescimento dos serviços urbanos citados, sem uma mentali-
dade que segue as transformações pelas quais passava o país, sem dar mos-
tras de que o progresso de todo o Estado era uma preocupação e a
modernidade uma meta. A capital de Goiás estava, enfim, distante do capital.
(CHAUL, N, 2001, p.169).

À medida que o desenvolvimento econômico das novas regiões aumentava,


uma maior distância se criava entre essas localidades e a antiga capital de
Goiás. Atacar os líderes da política estadual tornou-se sinônimo de ofensivas
à capital. Esse conturbado cenário político regional é mais um reflexo

3. A família Caiado exerceu grande influência na história de Goiás, tanto no período


monárquico quanto na República. Antônio José Caiado, conhecido como Totó, foi
governador do estado, senador da República e patriarca de gerações de políticos que
dominaram por muito tempo o cenário da política regional. Eles exerceram forte liderança
até a Revolução de 1930, período em que a oligarquia dos Caiado perdeu poder para as
novas oligarquias ligadas a Pedro Ludovico Teixeira. Entretanto, não podemos ignorar o
fato que até nos dias atuais a família exerce grande relevância na política nacional. Ver:
Freitas (2009).

105
do cenário político nacional (que desencadeará a "Revolução" de 1930)
que provocou processualmente uma nova organização espacial no país
provocada pelo incentivo à industrialização e urbanização.
Com o estabelecimento do Estado varguista pós-1930, apoiado pelo
Exército, o presidente Washington Luiz foi deposto, instalando assim o
denominado governo provisório 1930-34. A partir disso, houve uma
mudança significativa na política nacional, marcada pela entrada de novas
lideranças políticas de estados como Rio Grande do Sul, Paraíba e Rio
de Janeiro.
Apesar de não causar sérias mudanças sociais, o movimento de centra-
lização do poder federal retirou do poder estadual grupos oligárquicos
ligados à família dos Caiado e derrubou a ordem política que os sustentava.
Em consequência disso, houve a nomeação de Pedro Ludovico Teixeira
para o cargo de interventor federal, pelo então governo provisório de
Getúlio Vargas.
Pedro Ludovico era um jovem intelectual, político, formado em Medicina,
que aglutinou, em torno de sua figura, as forças dissidentes de grupos das
regiões Sul e Sudoeste do estado que apoiavam a Revolução de 30.
Uma das principais plataformas políticas de Pedro Ludovico contem-
plava a transferência da capital. Reafirmando a posição de Ludovico, a
pequena Vila Boa de Goiás, construída com padrões da arquitetura colonial,
com ruas tortuosas, traçado urbano maleável e adaptável4 às necessidades
da mineração havia sofrido, ao longo do século XIX e início do XX, duras
críticas de governadores como Miguel Lino de Campos (1827), Couto de
Magalhães (1863) e Carlos P. Chagas (1930).
Incorporado ao discurso do novo, do moderno, Vila Boa de Goiás não
poderia oferecer condições favoráveis para continuar a sediar a capital de
um estado colocado sobre uma nova dinâmica territorial. Elementos tais
como, o perfil dos ocupantes que abrigava, das condições topográficas, do
clima e da escassez de recursos naturais, em especial a água não corrobo-
rava a partir de 1930 com o projeto de Estado colocado em prática pelas
classes dominantes.
4. Cidades como Vila Boa de Goiás (atualmente Cidade de Goiás), Pirenópolis, Corumbá,
surgiram em decorrência das minas de ouro descobertas nos séculos XVII e XVIII.
Conforme as minas eram descobertas as cidades iam se moldando ao garimpo, ou seja, ruas
e vias de circulação apareciam no intuito de possibilitar a extração do mineral. As casas e o
traçado urbano expandiam conforme a direção os veios de ouro, por isso, o caráter
maleável do desenho urbano das cidades mineradoras.

106
A cidade que havia surgido em meados do século XVIII devido às des-
cobertas de jazidas de ouro na região do Centro-Oeste, assim como ocor-
reu em Minas Gerais e São Paulo, não obedeceu a um crescimento
ordenado do espaço apresentando uma ocupação de forma "caótica".
(MORAIS, 2003). Pelo contrário, conforme as jazidas foram sendo desco-
bertas a cidade expandia na direção das vias auríferas.
Vila Boa de Goiás foi construída com uma arquitetura vernacular5, ou
seja, em que se empregaram materiais e recursos fornecidos pelo próprio
local contrapondo-se ao rigor das cidades planejadas do século XX. Além
disso, as condições geográficas do sítio eram apontadas, por aqueles que
defendiam a mudança da sede administrativa do estado, os mudancistas6,
como justificativa para a transferência.
As maiores críticas das condições topográficas de Vila Boa de Goiás era
o terreno tortuoso, o fato da cidade ser cercada por morros e a pouca
disponibilidade de espaço físico para o crescimento urbano. Entretanto,
como já foi demonstrado pela historiografia foram as motivações políticas
e um novo projeto nacional aquelas que de fato pautaram a transferência
da capital.
Segundo os novos grupos que surgiram com a Revolução de 30, a ideia
de transferir a capital significava fundamentalmente o deslocamento defi-
nitivo do poder estadual. Isso porque as oligarquias tradicionais tinham na
cidade de Vila Boa de Goiás o apoio político, econômico e social necessário
à manutenção da autoridade – a mudança geográfica era sinônimo de uma
grande mudança de poder. Ou seja, em uma outra cidade, os grupos da
política tradicional não estariam acomodados no poder.
Nesses termos, a construção de Goiânia tornou-se o símbolo de um
novo tempo que, por sua vez, deveria ser dirigido pelos grupos do Sul e do
Sudoeste Goiano, centros econômicos de Goiás com Pedro Ludovico
Teixeira à frente da política estadual e em plena consonância com o
governo federal. Desse modo, Ludovico era o nome que imprimiria a
modernidade e o progresso necessários à inserção do estado na economia
nacional.
5. Vernacular neste caso significa um estilo arquitetônico que caracteriza um modo de
construir próprio do lugar, nativo e com materiais populares.
6. Os mudancistas (que defendiam a transferência da capital de Vila Boa de Goiás para
Goiânia), conhecidos também por situacionistas, faziam parte do Partido Social
Republicano (PSR). Estes eram apoiadores da Revolução de 1930 e contrários à Coligação
Libertadora Goiana, formada por oposicionistas, caiadistas e dissidentes do PSR. Para mais
detalhes, ver: Silva e Mello (2013, p. 57-89). geográfico, no caso Goiânia.

107
Considerada uma região periférica da economia nacional, a inserção de
Goiás no cenário macroeconômico brasileiro significava construir uma
nova capital capaz de se tornar símbolo da modernidade no sertão. No
Relatório Oficial enviado a Getúlio Vargas em 1939, Pedro Ludovico
Teixeira, entre muitos gráficos do crescimento econômico do estado e
justificativas das despesas administrativas, mencionou a Marcha para o
Oeste como um fator decisivo na efetivação da transferência da capital.
A Marcha para o Oeste condensou mitos integradores como nacionalidade,
desenvolvimento e modernização. Empreendido na política do Estado
Novo, o projeto era divulgado como um símbolo da brasilidade. Em discur-
sos, Getúlio Vargas propagava que o interior brasileiro guardava a verdadeira
essência da identidade nacional e sua efetiva ocupação resolveria problemas
sociais enfrentados nos grandes centros. Para além de questões que envol-
vem a formação nacional, Vargas como representante de uma "nova"
composição do Estado, projetava a integração do território via industriali-
zação e urbanização, o que diretamente influenciou no estabelecimento de
uma capital planejada à oeste.
Nesse sentido, visava resolver a falta de terras no litoral brasileiro, criar
colônias agrícolas e construir estradas que dinamizassem a economia entre
o litoral e o interior do Brasil. Interesses imobiliários e de empresas
ferroviárias ligadas à agricultura de exportação também explicam a
Marcha para o Oeste.
Nas palavras do interventor Pedro Ludovico, Goiás guardava um grande
valor econômico que ia ao encontro do projeto varguista da Marcha para o
Oeste, como atesta Ludovico Teixeira (1934, p. 69):

Parece, finalmente, que é soada a grande hora de Goiaz. As providências, já


em franca execução, tendem a concretizar a Marcha para o Oeste. Hão de
despertar o seu fabuloso potencial econômico, constituindo ao mesmo
tempo, um passo decisivo na construção do imperialismo preconizado por
Vossa Excelência – o imperialismo dentro das nossas fronteiras.

O “imperialismo dentro de nossas fronteiras” explicita as prerrogativas


da interiorização, a importância do movimento de ocupação das regiões de
fronteira e da intensificação das funcionalidades de cada região para a

108
economia nacional. A ocupação do Oeste, no caso de Goiás, criou condições
para que a economia regional passasse da pecuária de corte e da lavoura de
subsistência para a agropecuária. Desse modo, o estado assumia um novo
papel nas relações de produção capitalista, na nova divisão territorial do
trabalho, principalmente após a interligação com os centros consumidores
do país por meio da Estrada de Ferro de Goiás.
Nesse sentido, Eli Brasiliense influenciou e foi influenciado diretamente
por essa materialidade que se instalava na década de 1930, o que provocou
a construção discursiva sobre essas terras sertanejas. Tal autor, disporá de
um emaranhado de ideias que em diversos momentos da obra Chão Vermelho
o autor tenta creditar a modernidade e modernização a ser instalada não
deixando de valorizar, entretanto, a condição socioespacial dos homens lentos.
Ou seja, mesmo a modernidade estando presente no seu discurso há uma
preservação de elementos tradicionais no recorte espacial do qual se fala.

A construção da modernidade capitalista no discurso de


Eli Brasiliense em Chão Vermelho

No romance os trabalhadores e o restante da camada popular surgem


como personagens cheios de esperanças, valores morais como a amizade, o
amor, a honestidade e a honra. Esses princípios por muitas vezes são con-
frontados com a dureza da realidade de uma cidade violenta, com poder
policial questionável, com relações de trabalho não regulamentadas, com
uma política local arbitrária e com relações desiguais. Nesse sentido, é
inquietante perceber como as concepções e juízos de valor são contrastados
com o rápido crescimento urbano que impõe, atropela e desconsidera o
imaginário mais arraigado a tradição.
Podemos perceber na fala do servente Fernando, ao conversar com o
Joviano, o sentimento de raiva na impessoalidade e na desigualdade de
tratamento entre os que detinham um pouco mais de conhecimento
especializado e os que apenas possuíam a força de trabalho:

109
– Olha, Jove, vou-me embora. Me dano à-toa, e acabo é quebrando a cara
de um pedreiro desses qualquer dia, inda mais o Tiburtino. Moro dibaixo
do chapéu mesmo, não tenho diabo de mulher para me trapalhar a vida,
nem filho. Ora, já se viu como ele debocha com servente? É só toda hora
gritando: Quero massa, mole! Bota mais água no barro, nossa amizade!
Prego de pedreiro é água!"
Fernando terminara com tristeza.
– Ora, a gente então não tem nome? É traste do lixo? Não aguento. Vou-
me embora sinão faço sujeira. (BRASILIENSE, 2002, p.44)

A queixa do amigo Fernando para o ouvinte Joviano expõea indignação


do individuo não mais ligado pelos laços de amizade e sociabilidade do
universo rural. Mas pelas relações trabalhistas e impessoais. Nestas rela-
ções o nome, identidade única do sujeito, passa a não mais importar. Neste
momento percebe-se a dificuldade dos indivíduos de se adaptar ao meio
social e do mundo do trabalho na cidade.
Além desse aspecto ligado a sociabilidade, outro ponto chama a atenção
no livro Chão Vermelho: o olhar do citadino frente as transformações do
espaço urbano. Na fala do narrador, Joviano, sobre o Setor Central
encontramos a seguinte constatação:

Dali se avistava a Avenida Anhanguera, inçada de automóveis, alguns até


engraçados, parecendo mais com jabotis de lata. O progresso estava estra-
gando tudo. Já não se podia andar com sossego pelas ruas. O vivente ia
muito bem, andando distraído, de repente era um guinchar perto, a roda do
carro riscando o asfalto. Carro passava por cima de gente de vez em quando.
No bairro não havia desastres porque os choferes tinham de andar com
cuidado, para se livrar dos buracos (Idem, p.45).

No decorrer da narrativa, o escritor criticava que "Muita gente não an-


dava mais a pé. Chegava de tanga na cidade e logo aprendia a mandraca da
riqueza fácil, sem suor e sem canseira, punha casa de aluguel e carro pra
rodar" (Ibdem). O carro como símbolo do lado maléfico da modernidade é
um dos indícios de um discurso que apesar de carregar a influência da
modernidade/modernização que Goiás passava refletia o embate entre o
novo/tradição.

110
Com relação ao espaço geográfico temos uma descrição provocativa
sobre os espaços onde vivia aqueles as camadas populares. O trecho indi-
cado abaixo parece indicar uma paisagem ocupada pelos mais pobres,
possivelmente, o bairro descrito seja o Bairro Popular. Localizado nas
proximidades do Setor Central e ocupado predominantemente pelos
trabalhadores da construção civil esse bairro não teve assistência do poder
público e infra-estrutura básica.

A vantagem de quem morava naquele bairro era a paisagem. Uma riqueza


de panoramas e em baixo a cidade que tomava corpo. Pobre, porém, não
podia viver de panoramas. Em redor havia sujeira, doença, desamparo.
Paisagem era para gente de casa arreada e gastos sem medida. Nem gente
da roça podia apreciar belezas de matas e de água caindo da serra. Via grileiro,
polícia, cabos eleitorais mentindo e ameaçando em tempo de caçar votos.
(Ibidem, p.46)

Neste trecho aparecem importantes pontos de convergência com a


reflexão da cidade que logo cedo apresentava seus maiores problemas:
setores não planejados, a grilagem7 de terras e o sistema político.
Os setores não planejados fizeram parte da efetivação da nova capital
que logrou em planejar espaços que seriam ocupados pela elite goianiense
como: Setor Oeste, Sul, Central e Aeroporto. Estes apresentavam os
aspectos mais modernizantes do planejamento urbano: zoneamento,
arborização, infra-estrutura e equipamentos urbanos. A propaganda
governamental utilizou da imagem desses espaços para demonstrar sua
competência e uso racional do planejamento urbano. Contrariando esse
ideário de planejamento bairros como Macambira (atualmente Pedro
Ludovico) e Bairro Popularacolhia uma população sem o apoio do poder
público. Indicações de desamparo, doença e violência é comum nos depoi-
mentos dos pioneiros que ocuparam esses espaços.

7. O termo grilagem está associado ao inseto (grilo) uma vez que havia a prática de colocar
documentos fraudados dentro de uma gaveta com esses insetos. O contato prolongado do
papel com esse inseto tornava a aparência do documentado mais amarelada, causando um
efeito gradual de envelhecimento. O aspecto antigo, criado artificialmente, ajudava na
fraude de falsificação de documentos relativos a posse da terra.

111
O discurso do escritor Eli Brasiliense, assim como os bairros populares,
contrasta com o discurso de modernidade/modernização elaborado pelo
governo estadual ao mesmo tempo que personifica tal discurso. Reflete as
nuanças de uma cidade construída para ser a paisagem do novo, mas que
guardou aspectos rudimentares e tradicionais de Goiás. Como exemplos
podemos notar a exploração da mão-de-obra das camadas mais pobres e a
dificuldade de adaptação dos sujeitos, que embora habitassem o espaço
urbano guardavam na sua mentalidade valores e significados advindos do
espaço rural.

112
REFERÊNCIAS
BRASILIENSE, Eli. Chão Vermelho. Goiânia: IGL: AGEPEL, 2002.
BORGES, Barsanufo Gomides. O despertar dos dormentes: estudo sobre a Estrada de
Ferro de Goiás e seu papel nas transformações das estruturas regionais, 1909-
1922.Goiânia: Editora UFG: 1990.
BORGES, Barsanufo Gomides. Goiás nos quadros da economia nacional: 1930-1960.
Goiânia: Editora UFG, 2000.
CASTILHO, Denis. Modernização territorial e redes técnicas em Goiás. Goiânia:
Editora UFG, 2016.
CHAUL, Nasr Fayad. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da
modernidade. Goiânia: Editora UFG, 2001
_________________ . Goiânia: a capital do sertão. Dossiê cidades planejadas na
hinterlândia. Revista UFG, Goiânia, ano XI, n. 6, Jun. 2009. Disponível em:
<htttp://www. proec.ufg.br/revista_ufg/junho2009/goiânia>. Acesso em: 20 mar.
2010.
GOLDMANN, Lucien. Dialética e Cultura. Trad. Luiz Fernando Cardoso, Carlos
Nelson Coutinho e Giseh Vianna Konder. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia Histórica do Brasil: cinco ensaios, uma
proposta e uma crítica. São Paulo: Annablume, 2009.
LÖWY, Michael; NAÏR, Sami. Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade. São
Paulo: Boitempo, 2008.
RELATÓRIO apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas dd. Chefe do Gover-
no Provisório, e ao povo goiano, pelo Dr. Pedro Ludovico Teixeira, Interventor
Federal neste Estado, 1930-1933. Goiás, 1934.
Parte 3
GEN – Grupo de Escritores Novos
O GEN e a modernidade em Goiás: um depoimento

Heleno Godoy

O GEN – Grupo de Escritores Novos, que existiu em Goiânia,


Goiás, entre os anos de 1963 e 1967, foi um acontecimento, um momento
literário significativo, um divisor cultural de águas. Fruto do esforço de
alguns escritores que, no início da década de 60, começavam a se aventurar
no mundo da literatura, jamais se propôs como “movimento literário”:
não propunha novas estéticas (embora procurasse o novo na literatura),
nunca se apresentou a não ser como “movimento cultural”. Tinha como
propósito congregar um grupo de estudantes (em sua maioria universitários)
interessados em ler e escrever (principalmente poesia) e, sobretudo, estudar
literatura, discutir literatura, aprender literatura; daí, como consequência,
também produzir literatura e publicar essa literatura. Compreender isso é
de muito importância, pois detratores da época e de hoje se dão ao direito
de esquecer tal proposta do grupo, ou fingir ignorá-la, chegando até mesmo
a afirmar que se alguém do grupo sobrevive/sobreviveu até a atualidade e
adquiriu renome e respeitabilidade literária foi por “ter ido estudar”, tal
como sugerido por eles.
Não, pois balela e mentira, isso nunca foi sugestão de quem quer que
seja, o GEN elegeu estudar literatura antes e acima de tudo como única
alternativa para a criação literária, seguindo uma proposta semelhante à de
Mário Faustino (mas não influenciada nem motivada por ela), em sua
página literária “Poesia-Experiência”, no Suplemento Dominical do Jornal
do Brasil, do Rio de Janeiro: “repetir para aprender, criar para renovar”.
O que aconteceu de importante então, que é preciso repetidamente
afirmar para se evitar distorções e interpretações errôneas, é que o GEN
foi um momento cultural na literatura em Goiás em sintonia com a atualidade
literária nacional na e da época. Espero deixar isso mais claro no decorrer
desse depoimento.

117
Se coisas na natureza até podem estar sujeitas ao acaso, este não foi
propriamente o caso do GEN, que teve uma época propícia para seu
aparecimento. A história recente do país mostra que a década de 50 e o
início da de 60 foram de grandes transformações políticas e sociais: se os
transtornos que levaram ao suicídio de Getúlio Vargas embaralham os
anos iniciais da década de 50, os anos em que Juscelino Kubitschek foi
presidente do Brasil (1956-1961) acabaram reconhecidos pelo desenvolvi-
mentismo propiciado por pesados investimentos industriais e pela
construção e fundação de Brasília (1956-1960). Embora o golpe militar de
março de 1964 tenha destruído muitos ideais cultivados na época, não
conseguiu impedir que se continuasse a acreditar em transformações
possíveis – nós do GEN e vários outros escritores da época, acreditávamos
nessas transformações e trabalhamos por elas. Conseguimos, sim, enfrentar
e superar as dificuldades existentes e que se apresentavam; com todos os
erros que possamos ter cometido, mas sobretudo pelos acertos que logramos,
também conseguimos superar essas dificuldades. Não se pode dizer que o
GEN tenha sido um grupo de escritores que fracassaram em seu intento.
Pelo contrário, a existência de escritores que pertenceram ao GEN e que
construíram sólidas carreiras de inegável valor, ao longos de todos esses
anos posteriores à sua existência, corrobora essa minha afirmação. O GEN
não lançou manifesto algum, não se constituiu com “poetas ícones de uma
geração”, jamais se pretendeu “dono” da literatura em Goiás, mas também
recusou-se a ser regionalista, voltados para “nossos causos”, seguindo a
uma tradição que vinha de Hugo de Carvalho Ramos e chegava a Bernardo
Élis. O GEN sempre honrou e respeitou esses nossos dois (e vários outros)
grandes escritores – chegou a escolher e instituir Bernardo Élis “patrono”
do grupo –, mas nunca aceitou que o futuro literário de Goiás estaria na
manutenção de “nossa vocação regionalistas”, como propugnava a maioria
dos escritores mais velhos da época. O GEN nunca reconheceu essa
vocação e jamais a seguiu. A passagem do tempo provou que o GEN estava
correto, nossa vocação regionalista, tão propalada na época, desapareceu
com o tempo e a evolução do gosto do público e das tendências novas que
surgiram depois de 1960, com e apesar da ditadura. O GEN, volto a insistir,
sempre respeitou nossos grandes regionalistas, mas preferiu integrar a
corrente que pensava a nova capital, Goiânia, e o estado de Goiás por
inteiro, no panorama das grandes transformações culturais que o Brasil

118
sofreria da metade da década de 50 em diante. A razões foram muitas e
apresento algumas a seguir.
Antes da construção e fundação de Brasília, quando Pedro Ludovico
Teixeira, então interventor governante do estado de Goiás, propôs a
mudança da capital de Goiás para Goiânia, cidade que ele idealizou,
mandou planejar e fez construir, os fundamentos da modernidade no estado
começaram a ser estabelecidos. A chegada da estrada de ferro contribuiu
ainda mais para que a proposta da “marcha para o oeste”, que caracterizou
parte do governo de Getúlio Vargas, se concretizasse. De cidade fundada
em 1933, inaugurada em 1937, à capital de hoje, Goiânia cresceu enorme-
mente. Planejada para ter cinquenta mil habitantes em cinquenta anos, já
em 1950 contava com 53.389 habitantes; em 1960, já eram 151.013 habi-
tantes. Se em 17 anos já ultrapassara seu planejamento de cinco décadas,
em 1960 triplicara sua população.1
Pois é nesse contexto de desenvolvimento e crescimento que nasceu o
GEN. Assim, por consequência, pode-se afirmar, como fiz antes, que o
GEN nasceu em um momento propício: as duas universidade que passa-
ram a existir na época, a Católica de Goiás (hoje, PUC-GO), fundada em
17 de outubro de 1959, e a Federal de Goiás, fundada em 14 de dezembro
de 1960, tinham suas faculdade e seus cursos funcionando há tempos, mas
ajudaram a consolidar um novo período educacional e cultural em Goiânia
(embora sem marcar transformação alguma, sem dar início a um novo pe-
ríodo de nossa evolução cultural-literário2); o número de livrarias na cidade,
mesmo se pequeno, em comparação a outras capitais brasileiras, foi ampliado;
o número de jornais, mesmo se levarmos em conta a existência de alguns
apenas como fruto de razões ou desrazões políticas, também foi ampliado,
o que significou a possibilidade de mais lugares para publicações. Ao término
da década de 50, na metade do século XX, Goiânia apresentava condições
para o aparecimento de novas ideias, novas posições, novos rumos, novas
atitudes.
1. Não farei indicações bibliográfica de dados que podem muito facilmente ser encontrados
em fontes diversas sobre a fundação de Goiânia e seu desenvolvimento.
2. Insisto que a mera fundação ou criação das universidades não marcou uma nova era ou
etapa de nossa transformação cultural, portanto, jamais um marco em nossa evolução
literária e cultural. Em termos educacionais, sim, mas devemos nos lembrar de que as
faculdades que passaram a integrar essas duas universidades já existiam e foram elas, se
verdadeiramente foram, a causa de qualquer influência em nosso desenvolvimento. Hoje,
de um ponto de vista distanciado, talvez se possa ter da fundação dessas duas universidades,
uma visão menos apaixonada, mais analítica e crítica. As histórias das fundações da PUC-
GO e UFG ainda precisam ser demorada e criticamente escritas.

119
O GEN foi isso, não a causa da atualização da modernidade daquelas
duas décadas mencionadas, mas o fruto (um dos frutos possíveis, pois outros
existiram, evidentemente) ou o resultado disso tudo. A fundação do grupo
coincidiu com a venda, em Goiânia, de jornais de grande circulação nacional
no mesmo dia de sua publicação em São Paulo, no Rio de Janeiro ou em
Belo Horizonte, e de algumas revistas de grande circulação (diária, semanal
e mensal), assim como de outras mais restritas, como foi o caso da revista
Leitura, dedicada à literatura. Isso possibilitou, como nunca antes, que os
escritores de Goiás, especialmente de Goiânia, tivessem contato com
novos escritores, suas obras e as novas tendências que apresentavam e que
apareciam no cenário cultural brasileiro em suplementos literários como
os dos jornais O Estado de São Paulo ou Jornal do Brasil, e que podiam ser
lidos nos domingos de manhã, quando as bancas de jornais se abriam, ou
pouco tempo após. Isso não acontecia antes, pois os meios de comunicação
apenas começavam a se expandir e a se modernizar, naqueles tempos.
Daí decorre a defesa que sempre fiz de que a publicação do livro Rio do
sono, de José Godoy Garcia, é que efetivamente marcou o início do
Modernismo em Goiás. Mas isso se deu em 1948, portanto, vinte e seis
anos depois da realização da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, em
1922. Faço aqui uma distinção: uma coisa é um poeta apresentar influências
modernistas e, por isso, ser considerado um precursor; outra é um poeta
ser efetivamente modernista, não apenas por fazer uso do verso livre, por
exemplo (de resto, uma invenção e introdução do Simbolismo, não da
Semana de Arte de 1922), ou do abandono da rima, outro exemplo do que
se supõe ser “modernismo” (afinal, a poesia grega e romana não exigia
nem apresentava rima). Espero que se entenda que falo aqui não só do uso
ou prática de formas poéticas caras ao Modernismo de 22, mas também da
prática de uma consciência criativa em sintonia com a modernidade que
aflorou em 1922. Se tivemos introduções modernistas em Goiás através da
importante poesia de Leo Lynce ou de João Accioli, a prática de uma
consciência criativa modernista se dá apenas com José Godoy Garcia e
alguns outros poetas goianos, como Afonso Felix de Sousa, cuja estreia,
com o livro O túnel, também se deu em 1948. O que enfatizo é que em
verdade nosso Modernismo começa no fim da década de 40, início da
década de 50, portanto, depois da fundação de Goiânia. Se foi grande a

120
contribuição de Leo Lynce e de João Accioli, e em hipótese alguma
desconsiderando-a ou menosprezando-a, foi muito mais efetivamente
modernista a contribuição de José Godoy Garcia e de Afonso Felix de
Sousa. Não me refiro à qualidade (inegável, é claro) das obras daqueles
dois poetas, apenas refiro-me ao fato, por exemplo, de a adoção do verso
livre por Leo Lynce não o impedir de continuar a ser o poeta simbolista
que anteriormente era e continuou sendo. Seu livro Ontem, publicado em
1928, e por maior que seja sua importância, não fez verdadeiramente nascer
o Modernismo em Goiás. João Accioli é um caso à parte, de um poeta que
se foi de Goiás para São Paulo e foi modernista lá, atuando lá, tendo
extensa ficha de contribuição para com a cultura, a educação e a literatura
“paulistas”.3
Ora, no início da década de 60, no século 20, as coisas não mais chegavam
atrasadas e os escritores novos que surgiam em Goiânia (também os muitos
outros que jamais pertencerem, fizeram parte do GEN) tomavam e passaram
a tomar conhecimento do que se fazia no resto do Brasil, ao mesmo tempo
em que as novidades culturais e literárias no resto do Brasil aconteciam:
não só notícias sobre novos livros e novas publicações, mas novas ideias,
novas críticas, novas propostas. Afinal, da metade em diante da década
de 50 as vanguardas começaram a ser notícia, começaram a acontecer:
Concretismo (São Paulo) e Neoconcretismo (Rio de Janeiro), Tendência
(Belo Horizonte), Instauração Praxis (São Paulo), Poema Processo (Rio de
Janeiro/Natal), Tropicália (Rio de Janeiro/Salvador/São Paulo), Poesia
Marginal/Geração Mimeógrafo e tantos outras tendências mais ou menos
efêmeras que se manifestaram.
3. Atente-se para a “Nota do Autor” (p.19-26), escrita para a quarta edição de seu livro de
estreia, Olho dágua, originalmente publicado em 1937: nela não há uma única referência a
Goiás ou a escritores goianos, sendo uma longa reminiscência de tudo o que o poeta e
romancista nascido em Goiás fez em São Paulo, toda a sua contribuição quer como escritor,
quer como homem público. Ver ACCIOLI, João. Olho dágua. 4.ed. Prefácio de Domingos
Carvalho da Silva, Nota do autor. São Paulo: Editora Obelisco, 1967, 176p. Chamo
atenção ainda para outro aspecto dessa publicação: existem onze opiniões críticas sobre a
obra de Accioli publicadas nas orelhas e contracapa do livro, nenhuma de escritor ou crítico
goiano. Sem o menor grau de bairrismo e apesar de toda uma mitologia em torno do
consumo de pequi e de se ser regionalista ou cantor sertanejo, entendo que a ideia de se ser
goiano relaciona-se a atuar no estado, a aqui se estabelecer raízes, a partir daqui se
estabelecer uma consciência criativa; para mim, quem nasceu em outro estado brasileiro
mas aqui atuou e produziu, aqui deixou sua marca e aqui exerceu sua influência, é goiano.
Com uma ressalva – isso, sim, é o mais importante –, somos todos brasileiros, acima de
tudo e com e apesar de nossas diferenças, até mesmo divergências, regionais.

121
Elas apareciam em jornais e revistas e também na televisão. Já mencionei
alguns desses jornais, indico algumas das revistas: a Revista Leitura, regu-
larmente vendida em bancas de jornal, fundada pela Editora Leitura na
década de 40, mas com duração até 1968; a revista Cadernos Brasileiros,
fundada em 1959, com duração até 1970, dirigida por Afrânio Coutinho, e
que teve em sua redação, por algum tempo, Nélida Piñon, que começava
sua carreira literária. Li pela primeira vez sobre Evgeny Evtuchenco em
um ensaio de Pierre Forgues (“Evtuchenco e os novos poetas”) no número
3 de Cadernos Brasileiros (ano V, p. 57-73, 1963), exemplar que guardo até
hoje, entre vários outros da revista. Posso acrescentar a essa lista a primeira
fase da Revista Civilização Brasileira, publicada por Ênio Silveira, a partir de
março de 1964, e que trazia a poesia “engajada” de Moacyr Felix, Ferreira
Gullar, José Godoy Garcia e alguns outros. Em todas elas, novos poetas e
poesia nova apareciam.
Lembro-me muito bem de esperar ao menos pelo O Estado de São
Paulo e pelo Jornal do Brasil, pois apresentavam em seus suplementos o
que de mais importante e novo se fazia no Brasil. Nós, participantes do
GEN (mas não todos, evidentemente), corríamos às bancas de jornal e re-
vista para comprar aqueles jornais e ler o que andava acontecendo no Bra-
sil. Isso nos pôs em sintonia com o que se fazia nacionalmente, o que foi
de suma importância para nós e para o desenvolvimento da literatura em
Goiânia e Goiás. Se esse meu depoimento pode ser lido como tendencioso
(não é), posso citar o que foi escrito pela professora, pesquisadora e crítica
literária Albertina Vicentini, no Posfácio que escreveu para meu livro Re-
lações, numa reedição de 1993:

Em Goiás, em meados dos anos 60, havia (e pela primeira vez passo a passo
com os centros culturais do país) anseio de modernização das letras, através do
trabalho do GEN – Grupo de Escritores Novos, a que Heleno Godoy
pertenceu, juntamente com Yêda Schmaltz, Emilio Vieira, Maria Helena
Chein, Edir Guerra Malagoni, Luís Berto, Rosemary Costa Ramos, Maria
Cunha, Luiz Fernando Valladares Borges e Miguel Jorge, este o redator-
chefe da “Página Literária do GEN”, no jornal Folha de Goyaz. O GEN
sustentou intelectualmente esse suplemento literário, promoveu publicações,

122
como a antologia do grupo4, abriu polêmicas acirradas sobre questões de
literatura nos jornais da capital, fez traduções, estudos, conferências e
mostras, como a I Semana de Poesia Moderna em Goiás, realizada em
1966, que expôs poemas-cartazes e realizou conferências de intelectuais
goianos e de outros estados. De fato, foi um grupo atento ao processo de
revisão intelectual daquele tempo.5 (Grifo da autora)

Essas afirmações da profa. Vicentini foram repetidas e reafirmadas,


posteriormente, por outros críticos, pesquisadores e escritores goianos.
Em 1994, em “O conto contemporâneo em Goiás”, o prefácio para a
primeira edição de Antologia do conto goiano: volume II, organizado por ela e
pelas também professoras e críticas Darcy França Denófrio e Maria Zaira
Turchi, Vera Maria Tietzmann Silva, depois de descrever a multifacetada,
dinâmica e transformadora década de 60, no século XX, caracterizando-a
como um período de grandes transformações sociais e políticas, afirma que é
“neste contexto histórico complexo que surge em Goiânia um movimento
de preocupações estéticas, de duração breve, mas de efeito prolongado, o Grupo
de Escritores Novos (GEN), que atuou de 1963 a 1968, e que reunia poetas,
ficcionistas, atores e artistas plásticos”.6 Em seguida, acertadamente asse-
vera: “O grande mérito do grupo parece ter sido romper o apertado círculo

4. Referência à primeira publicação do GEN: Poemas do GEN. Goiânia: Livraria Brasil


Central Editora, 1966, 160p. Com capa do pintor D. J. Oliveira e impressa na Gráfica
Santa Maria, de Belo Horizonte, a antologia traz uma “Apresentação” não assinada e, em
ordem alfabética, poemas de Ciro Palmerston Muniz, Célio Slywitch, Edir Guerra
Malagoni, Emílio Vieira, Heleno Godoy de Sousa, Iêda Schmaltz, Luiz Fernando
Valladares Borges, Luís Berto, Maria Helena Chein, Maria Luzia Sisterolli, Miguel Jorge,
Natal Neves, Rosemary Costa Ramos. Todos os poetas apresentaram seis poemas, com
exceção de Ciro Palmerton Muniz, que apresentou cinco, e Edir Guerra Malagoni, sete.
Algumas observações: Yêda Schmaltz nunca mais publicou nada sem o Y inicial de seu
prenome; eu nunca mais publiquei nada com o sobrenome da família de meu pai. Os poetas
incluídos na antologia não formavam o núcleo inicial do GEN, constituindo-se em um
núcleo já expandido: Célio Slywitch, eu, Luís Berto, Maria Helena Chein, Maria Luzia
Sisterolli, Miguel Jorge, Natal Neves e Rosemary Costa Ramos não fomos membros
fundadores do GEN. Inicialmente pensado como “Grupo Seis Janelas”, os fundadores do
GEN incluíam ainda Aldair da Silveira Aires e Geraldo Coelho Vaz, que já haviam se
afastado do grupo na data da publicação de Poemas do GEN.
5. Ver VICENTINI, Albertina. Posfácio. In: GODOY, Heleno. Relações (narrativas). 2.ed.
Goiânia: Ed. Universidade Católica de Goiás, 1993 (85-1007), p.88-89.
6. Ver SILVA, Vera Maria T., DENÓFRIO, Darcy F. e TURCHI, Maria Zaira, Orgs.
Antologia do conto goiano: volume II: o conto contemporâneo. Goiânia: Editora UFG, 2013, p.20.
Todos os grifos são meus.

123
do regionalismo que até então unificava a ficção feita em Goiás e introduziu
uma postura crítico-reflexiva na criação literária”, mais adiante acrescentando
que, para “os membros do GEN, escrever deixou de ser dom das musas,
centelha sublime de inspiração, para tornar-se fruto de labor intelectual,
culminância de um processo de estudo e de experimentação” (idem).
Se não bastassem tais observações aqui apresentadas, para a confirmação
do que anteriormente disse sobre o GEN, posso acrescentar mais outras
comprovações. A profa. Moema de Castro e Silva Olival, em dois livros
fundamentais para a história do GEN e, consequentemente, para a história
dos últimos 55 anos de modernidade e modernismo na literatura de Goiás,
reforça essas ideias apresentadas por Albertina Vicentini e, depois, por
Vera Maria T. Silva. No primeiro volume de GEN: Um sopro de renovação
em Goiás, ela diz, logo no início de sua “Apresentação”:

O GEN marca seu nascimento, ocorrido em 1963, com um tom de polêmica,


reflexões críticas, debates acalorados, num ideal de atualização em busca de
renovação, tom que vai distingui-lo até sua dissolução em 1968-1969.
Foi, sem dúvida, um divisor de águas, na vida literária em Goiás, um vento
promissor.7 (Grifo meu)

Neste livro, a professora e crítica estuda obras de quatro dos integrantes


do GEN, na seguinte ordem: Miguel Jorge, Yêda Schmaltz, Heleno
Godoy e Maria Helena Chein. No segundo volume de seu estudo8, além
de informações sobre vários membros do GEN não estudados no já citado
primeiro volume, ela volta a discutir a obra de Yêda Schmaltz e suas relações
com as obras de duas outras poetas brasileiras, Hilda Hilst e Adélia Prado,
e a estudar também os genianos Geraldo Coelho Vaz, Emílio Vieira, Ciro
Palmerston Muniz, Luiz Fernando Valladares Borges, Luís Araújo Pereira,
Marietta Telles Machado e outros mais, como Aldair Aires, Edir Guerra
Malagoni, Célio Slywitch, Hélcio Antônio de Oliveira, José Ferreira da
Silva, Natal Neves, Eduardo Jordão, Maria Luzia Sisterolli, Reinaldo
Barbalho, Rosemary Costa Ramos, Tancredo Araújo e Maria da Cunha
Moraes.
7. OLIVAL, Moema de Castro e Silva. GEN: um sopro de renovação em Goiás. Goiânia:
Kelps, 2000, 158p., p.13.
8. OLIVAL, Moema de Castro e Silva. GEN: um sopro de renovação em Goiás: II volume.
Goiânia: Kelps, 2009, 196p.

124
Como apêndice ao seu livro, Moema de Castro e Silva Olival elaborou
um questionário com dez perguntas e apresentou-os a quatro escritores,
pedindo-lhes a gentileza da colaboração: Ático Vilas-Boas da Mota, Aidenor
Aires, Carlos Fernando Filgueiras de Magalhães e Getúlio Targino Lima.
Nenhum deles pertenceu ao GEN, mas de alguma forma com o grupo
conviveu, entre 1963 e 1968. O depoimento do prof. Ático Vilas-Boas da
Mota historia as origens do GEN, embora essa origem não esteja, como
diz ele, em um grupo literário da cidade goiana de Catalão. Não sei o
motivo que levou o referido professor a fazer tal afirmação errônea
(provavelmente levado a assim acreditar por influência de Aldair da
Silveira Aires, que era natural de Catalão e um dos fundadores do GEN),
pois conviveu com o grupo antes, durante e depois de sua existência e
atuação – ele tinha a obrigação de saber mais e melhor que isso. O grupo
de Catalão mencionado, se existiu tal como afirma o prof. Ático, não teve
vida cultural expressiva, continuidade de trabalho, influência na vida cultural
goianiense e goiana em geral. Ao final de seu depoimento, e isso é que
merece nossa atenção, Ático Vilas-Boas da Mota enumera algumas carac-
terísticas do GEN que historicamente, em sua opinião, o dignificam:
ausência de lutas, disputas e dissidências internas; o apoio dado ao grupo
pela grande pianista Belkiss Carneiro de Mendonça, que abriu as portas do
Conservatório de Música da UFG, cedendo-lhe espaço para as suas
reuniões semanais; a acertada escolha de Bernardo Élis como “patrono”
do grupo; a manutenção da “Página Literária” no jornal Folha de Goiaz,
outro apoio importante recebido pelo GEN; por fim, “a adoção de uma
política de divulgação e integração cultural trazida pelo intercâmbio além-
fronteiras goianas, por exemplo, um permanente contato”9 com escritores
de Minas Gerais e de São Paulo.
Em seu depoimento, o poeta Aidenor Aires relembra:

No pouco tempo em que convivi com o GEN, como grupo, estive diante
dos problemas cruciais da literatura. A questão da linguagem, as tendências
e escolas literárias, obras e autores. As discussões e debates, especialmente
para mim, foram o transporte das tradições romântico-parnasianas, apren-
didas na escola para a visão contemporânea da arte literária.10

9. MOTA, Ático Vilas-Boas da Mota. Grupo de Escritores Novos (GEN): Testemunho de


seus primórdios. In: OLIVAL, Moema de Castro e Silva. GEN: um sopro de renovação em
Goiás: II volume. Goiânia: Kelps, 2009, p.141-45. Grifo meu.
10. AIRES, Aidenor. Depoimento do escritor Aidenor Aires. In: OLIVAL, Moema de
Castro e Silva. GEN: um sopro de renovação em Goiás: II volume. Goiânia: Kelps, 2009, p.151.
Próximas citações serão parentéticas por número de página. Todos os grifos são meus.

125
E continua, dizendo ter sido o GEN importante porque “seus compo-
nentes inspiraram novas atitudes em nossa literatura. Permitiu a emergência
dos jovens, num cenário ocupado por gente ‘madura’ e pouco suscetível a
mudanças. Mesmo não seguindo uma linha estética rígida, fomentou a
liberdade, permitindo que cada um buscasse sua linguagem... (151-52),
para concluir afirmando que o “GEN foi uma brisa de renovação. Não
porque impusesse um novo modo de ver o fenômeno literário, mas porque
abriu espaço a novas participações” (152-53). Na opinião do poeta Aidenor
Aires, “mesmo quem não participou do grupo, ou foi crítico de sua atuação,
não deixou de se influenciar [pelo GEN]. Muito dos nossos escritores, como
Gabriel Nascente, Brasigóis Felício, e eu mesmo, dificilmente teríamos
ousado na literatura se não fosse pelos caminhos abertos pelo pessoal do
GEN” (153). Depois de chamar a atenção para o fato de o GEN ter
contado com “pouco apoio oficial, ou quase nada”, Aidenor Aires chama a
atenção para o que, na opinião dele, é a “marca mais acentuada” do grupo,
“a da crítica”, pois “ensejou o debate, as discussões e tornou nossa literatura mais
próxima da vida, dos apelos do momento histórico. Inseriu Goiás na Modernidade,
ligando-o às preocupações estéticas que sacudiam o país” (153).
As palavras do escritor Aidernor Aires confirmam o que estive dizendo
desde o início deste depoimento: não que o GEN trouxesse a modernidade
para a literatura em Goiás, mas por inserir a modernidade goiana na
contemporaneidade nacional, sem atrasos, sem ações a posteriori. Na época
do aparecimento do GEN e no tempo em que ele existiu, predominava na
literatura em Goiás os princípios estéticos da Geração 45, na poesia, aquela
mesma do retorno a Bilac, da busca da forma fixa, da preferência pela
métrica e pela rima, fazendo frente a um suposto exagero a que a poesia
brasileira teria chegado com ou através do uso indiscriminado do verso livre
(volto a insistir, verso livre não é invenção do Modernismo). Do outro lado
da mesma moeda exista o apelo ao Regionalismo na ficção, como se
pudéssemos ser escritores apenas e tão somente se, ao mesmo tempo,
“soubéssemos” metrificar e rimar e também nos inseríssemos numa
suposta (muito mais romantizada e saudosista) realidade regional, como se
Goiás, como estado ou região nacional, jamais pudesse evoluir, alterar sua
situação sócio-política-econômica, para sempre destinado a ser apenas de

126
“tropas e boiadas” ou de “ermos e gerais”. O ideal estético da Geração de 45
tinha como seu defensor e promotor Gilberto Mendonça Teles; a defesa
do Regionalismo era feita por Domingos Félix de Sousa. Pois o GEN,
mesmo recusando o Regionalismo, escolheu Bernardo Élis como seu
patrono, claramente indicando que respeito e admiração por um escritor e
sua obra não significava adesão às suas preferências e inclinações. O GEN
admirava e respeitava a obra de Bernardo Élis, mas não seguiu seu ideário,
sem que isso significasse desprezo pelo ele e sua obra. O GEN apenas não
quis fixar-se no passado, não quis tutela ou adesão a princípios de quem se
sujeitava a tendências passadistas. Pelo contrário, apostou no futuro,
ignorando todas as menores gerações literárias após os Modernismos de
22 e 30, para buscar nas vanguardas das décadas de 50 a 70 o que Moema
de Castro e Silva Olival apropriadamente chamou de “um sopro de
renovação em Goiás”.
O GEN colheu inimizades e ressentimentos por isso? Claro, justamente
por ter criado polêmicas e exercido o direito de se defender. A primeira
polêmica foi a própria criação do grupo; a segunda, a escolha de Bernardo
Élis como patrono, pois suscitou invejas e ressentimentos profundos por
parte de quem se considerava aquilo que por aqui existia de melhor. A opção
por Bernardo Élis foi, em primeiro lugar, um recado claro de que o grupo
não se dedicava apenas à poesia; se isso não ficou evidente na época, o futuro
o confirmou. Em segundo lugar, a escolha por Bernardo significou uma
opção e preferência pela qualidade local e nacional. Simples assim!
O terceiro dos depoimentos aqui citados, na ordem em que aparecem
no segundo volume do livro de Moema de Castro e Silva Olival, é do
escritor Carlos Fernando Filgueiras de Magalhães. O leitor entenderá a
razão pela qual aqui transcrevo uma parte maior do depoimento em tela.
Assim escreveu Carlos Fernando:

O GEN, embora até hoje, seja reafirmado e ao mesmo tempo constantemente


negado por aqueles que não participaram daquele momento especial das
artes locais, traz, entretanto, de maneira irrefutável, uma importante contri-
buição como aglutinação artística, apesar da ingenuidade e da falta de talento
de muitos deles, condição provada posteriormente, com o passar do tempo.

127
Dificilmente autores como Yêda Schmaltz, Maria Helena Chein, Miguel
Jorge, Luís Araújo e Heleno Godoy deixariam de produzir e de publicar
suas obras, independentemente ou não do GEN. O que valoriza este grupo é
exatamente ter promovido um certo desconforto no meio literário e artístico local
vigente, que, com atuação decidida e o questionamento de certos valores, tidos como
imutáveis, viu-se englobado por um mar de interrogações diante de um processo
artístico petrificado e incipiente, já incapaz, como motor histórico da criação, de
promover qualquer avanço que não fosse a propagação de seus efeitos paraliterários.
Inconformados com a situação, e considerando a “periculosidade” do
grupo, os xamãs da poética e da prosa locais viram naqueles “meninos” um
incômodo a mais no seu status, pois eram considerados pela antiga geração
como grupo inconveniente e imaturo, capaz de provocar ranhuras e estragos
na concepção vigente da categoria literária instituída por eles como a única
possível. Muito longe de ser apenas uma movimento a mais que incomodaria o
cenário artístico de uma época, uma coisa jamais tirarão do Grupo de Escritores
Novos: o fato de que, em Goiás, este ajuntamento de jovens e promissores escritores
provocaria uma ruptura histórica, de cujo patamar artístico se descortinava no
futuro, a posição de seus integrantes ao marcar uma época, que se transformaria
em um divisor de águas (antes e depois do GEN) ao sepultar de vez o pensamento
da escola regionalista, literariamente considerado como tal, inaugurando o horizonte
de possibilidade de uma nova escrita, rica e atual, e de uma consciência do mundo
real, longe da fronteira nefelibata e avara, manifestada na obra poética e
ficcional de Heleno Godoy, Yêda Schmaltz, Miguel Jorge, Maria Helena
Chein e Luís Araújo, tanto pela constância de publicação da maioria, quanto
pela qualidade do texto literário veiculado.
Embora não fizesse parte do GEN, mas participante da Instauração Praxis,
ao conviver com eles, tornei-me testemunha ocular de todos os percalços e
de toda a promoção desse grupo, que plantou entre nós, entre outras afirmações,
a semente discordante da renovação no hodierno horizonte das Letras em Goiás,
como perspectiva de uma geração e de uma época, como confirmação
daqueles propósitos de que se tornariam paladinos ao defendê-los até hoje,
tal a sua repercussão como movimento artístico e importância de atuação, tornando-se
impossível ignorar o seu registro e sua instigante revelação futura no trabalho
criativo de seus autores. (Grifos meus)

Que o leitor perdoe e entenda a citação alongada, mas é importante


observar nela todos os aspectos que, anteriormente e de modo pessoal, eu
já havia mencionado. Resta mais um, o último, dos depoimentos que aqui
estou citando. No mesmo livro de Moema de Castro e Silva Olival, o último

128
deles é do também escritor e eminente jurista Getúlio Targino Lima,
contemporâneo de alguns dos membros do GEN no curso de Direito da
então Universidade Católica de Goiás (hoje PUC-GO). Diz ele, no
terceiro parágrafo do seu depoimento que

Ali, estudantes de direito, juntamente comigo, alguns jovens entenderam


de, ainda que não sendo um movimento cultural, à falta mesmo de um projeto
específico ou de um programa sólido de princípios e objetivos coerente-
mente aceitos por todos, no plano cultural, movimentaram as águas artísticas
de Goiás, tidas por eles como um pouco estagnadas.11

As palavras grifadas, sem que se pretenda aqui corrigir o escritor (pois


não se trata disso), podem ser entendidas, a primeira, como “movimento
literário”, já que se refere à falta de princípios norteadores do GEN
enquanto tal; parece-me que Getúlio Targino Lima refere-se a isso, à
impossibilidade de o GEN ter sido ou pretendido ser uma movimento
literário, já que, entre outras razões, faltaria ao grupo “princípios e objetivos
coerentemente aceitos por todos”. Quando o escritor, em seu depoimento,
fala desses princípios e objetivos “no plano cultural”, parece que ele diz
exatamente que o GEN se apresentava como um movimento cultural apenas,
não de uma proposta de novas estéticas e princípios literários. A confirmação
disso se dá na última parte citada, a de que “as águas artísticas de Goiás
[eram ou foram] tidas por eles (os membros do GEN) como um pouco
estagnadas”. O escritor Getúlio Targino Lima está certo em suas afirmações,
que corroboram o que anteriormente afirmamos: o GEN não foi
“movimento literário”, foi um movimento cultural, no sentido já explicado.
Daí ele reconhecer, no quarto parágrafo de seu depoimento, que “era preciso
formar um agrupamento, um conjunto de jovens artistas que, reunidos,
poderiam muito daquilo que individualmente não alcançariam” (163).
Em seguida, Getúlio Targino Lima também aborda um dos pontos essenciais
para a criação e para a existência do GEN: “Tinham ideias, mas precisavam
publicá-las. Tinham anseios, mas era necessário fazê-los desabrochar.
Tinham potencialidades, mas precisavam transformá-la em potência” (164).

11. LIMA, Getúlio Targino. Depoimento do Dr. Getúlio Targino Lima – Grupo de
Escritores Novos, um depoimento ocasional. In: OLIVAL, Moema de Castro e Silva.
GEN: um sopro de renovação em Goiás: II volume. Goiânia: Kelps, 2009, p.163, ênfases
acrescentadas. Próximas citações serão parentéticas por número de página.

129
Creio ser possível, aqui, um resumo didático e uma reafirmação:

1. O GEN foi um grupo de escritores que não tinham identidade de


princípios estéticos, apenas de atividade cultural;
2. O GEN não foi um “movimento literário”, mas uma afirmação
cultural;
3. O GEN agrupou escritores de diferentes tendências e propiciou
sua própria seleção de valores: quem sobreviveu literariamente à
existência do grupo era o que havia nele de melhor, de mais cons-
tante e de mais dedicação.
4. O GEN propiciou aos novos escritores que surgiram em Goiás
uma oportunidade nunca ao próprio GEN oferecida: a luta do grupo
por sua própria sobrevivência acabou por criar condições para o
aparecimento de novos escritores em nossos estado.
5. O GEN chegou ao fim de sua existência através de uma decisão
de seus próprios integrantes, não por força ou influência de quem
quer que fosse.
6. A despeito da existência de alguns livros e ensaios escritos sobre o
GEN, a história do grupo ainda não foi escrita; embora farto material
histórico exista (sejam depoimentos, rememorações, entrevistas dadas
e declarações feitas, escritas e publicadas por membros – veja-se, para
isso, o livro Poemas do GEN – 30 anos, de 199412) e os fundamentais
livros de ensaios de Moema de Castro e Silva Olival, o GEN precisa de
um historiador e crítico literário (ou os dois juntos) que escreva(m)
sua história.

12. GODOY, Heleno, JORGE, Miguel e BARBALHO, Reinaldo, Orgs. Poemas do GEN –
30 anos: depoimentos e antologia. Goiânia: Kelps, 1994, 342p. Este livro traz depoimentos
sobre o GEN de 22 escritores que dele participaram, embora alguns não tenham
apresentados poemas, pois nem todos os participantes do grupo eram poetas. Apenas
quatro dos 26 integrantes do grupo não quiseram dar depoimentos. O livro conta ainda
com uma apresentação por seus organizadores e três depoimentos sobre o GEN, por
Bernardo Élis (“O GEN – Grupo de escritores Novos”, p.13-18), Moema de Castro e Silva
Olival (“O GEN e a Cultura em Goiás”, p.19-57) e Waldomiro Bariani Ortêncio (“Grupo
de Escritores Novos”, p.59-63).

130
O GEN, enquanto grupo, fez sua última reunião (“extraordinária”,
segundo a redação da saudosa escritora Marietta Telles Machado, então
Secretária do grupo13) no dia 12 de agosto de 1967. Não está escrito na
ata, mas a proposta de se acabar com o GEN foi conjunta, minha, que era
então presidente do GEN, e do escritor Luís Araújo. Caso os membros do
grupo não quisessem que o grupo acabasse, já tínhamos, Luís e eu, ofício
também conjunto em que oficializaríamos nossa afastamento do GEN.
Não foi preciso utilizá-lo, os membros GEN decidiram extinguir o grupo.

Como depoimento que queria dar, não creio precisar ir adiante.

O GEN foi isso e, provavelmente, ainda mais.

Goiânia, novembro-dezembro de 2018.

13. A última ata está no verso da página 55 do terceiro e último livro de atas das reuniões
ordinárias e extraordinárias do Grupo de Escritores Novos. O primeiro desses livros se
perdeu, o segundo e o terceiro estão sob minha guarda e disponíveis para pesquisa, embora
não possam sair de minha biblioteca. Como último presidente do GEN, guardei os livros
de atas e um livro de presenças em lançamentos e reuniões festivas promovidas pelo grupo.
Até hoje, além de mim, nunca foram utilizados por nenhum pesquisador goiano ou de fora
de Goiás, nem mesmo por aqueles que já escreveram e publicaram sobre o GEN.
O GEN e o Modernismo

Maria Helena Chein

T enho retrocedido em mim, sempre que desejo ouvir incoerências,


saber dos despropósitos e lembrar-me dos amarelos, vermelhos e azuis de
minha vida.
O GEN - Grupo de Escritores Novos, em minha lembrança, era ver-
melho. Intenso, marcante, fazia-me vibrar em dissonâncias e acertos nas
questões relacionadas com o sensível e a criatividade. Ele já existia, quando
cheguei. Era aquele grupo de jovens turbulentos–porque inteligentes e
dinâmicos–que se recolhiam para estudar e produzir, e se encontrar nas
reuniões semanais. Então, entre risos e sorrisos, debulhávamos nossas
verdades em forma de poemas. O lírico e o social entrincheiravam-se nas
muitas emoções e tomavam as mais variadas formas para serem julgadas,
após a leitura atenta de todos. Aquele era um momento de dentro e de
fora, de densidade e difusão. Na mente de cada um, a palavra surgia como
a força impulsionadora que se interpunha entre o real e o imaginado e daí
resultava a classificação do texto em bom ou ruim, original ou repetitivo.
E permanecíamos leais na análise, direcionados por nossos elementos
pessoais que nos caracterizavam como agressivos ou implacáveis ou ainda
condescendentes. Afinal, tentávamos acertar os passos, enquanto perse-
guíamos o modelo de nossa linguagem, do estilo e da própria crença que
nos levava a realizar sempre.
Nas reuniões, fazíamos palestras para o próprio grupo, estudando
autores significativos, que muito acrescentariam ao nosso mundo
complexo de tensões e fé. Lembro-me de que minha primeira fala foi
sobre Graciliano Ramos e Dalton Trevisan, um paralelo entre ambos,
como contistas. A segunda, sobre o Regionalismo. Valeram-me bastante,
pois procurei fazer um trabalho compatível com as exigências do Grupo,
que batalhava o crescimento, tanto na parte do conhecimento, quanto na
produção de textos.

133
Quem aprende, quer compartilhar. E saíamos a repartir o que havíamos
conseguido, declamando poemas em reuniões, fazendo palestras em escolas,
viajando para cidades do interior, com aquela enorme vontade de sermos
ouvidos. E também de ouvir. Os mestres de então, professores e escritores
da terra, passavam-nos lições valiosas. A experiência, a cultura de tantos
nos fortaleciam, e os solicitávamos sempre. Eles nos atendiam. Quantas
vezes convidávamos escritores de outros Estados e, quando aqui chegavam,
os contatos se estabeleciam, nosso entusiasmo crescia. Se muito deixavam,
outro tanto levavam, em forma de vibração positiva e vontade de produ-
zirem mais.
Cada um de nós já se sentia capaz de se entregar ao processo literário e
suas implicações, como escrever e publicar um livro. Predispusemo-nos
aos desafios, aceitando e trabalhando nossos limites.
O Grupo de Escritores Novos pulsou forte em minha memória, e dele
guardo os pesos e medidas de todos os companheiros, amigos e criadores
de ficção e poesia. O que nos uniu foi o profundo amor pela arte e pela
humanidade.1

* * *

A Literatura Goiana era nitidamente regionalista antes do GEN, com


seus grandes nomes: Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Élis, Carmo
Bernardes, Bariani Ortencio, Eli Brasiliense, José J. Veiga, Ursulino Leão,
autores de obras singulares. Tem-se como Regionalismo a literatura feita
com a linguagem, a paisagem, usos e costumes da região. Antes de tudo, o
homem está ligado à terra que o recebeu e lhe fornece meios de sobrevi-
vência física, econômica, emocional, artística, espiritual, com sua super-
abundância e sua permanência, apesar dos desmandos contra si e das terríveis
catástrofes. Consciente do poder de imaginar, prever, o escritor recria a
terra, o homem, seus conflitos e apaziguamentos. Excelentes obras surgiram
e foram estudadas, filmadas, discutidas: Tropas e Boiadas, Veranico de Janeiro,
Jurubatuba, Vão dos Angicos, Pium, A Hora dos Ruminantes e Maya, de nossos
autores citados.

1. O trecho acima foi extaído do livro Poemas do GEN - 30 Anos. Heleno Godoy, Miguel
Jorge, Reinaldo Barbalho, Editora Kelps, Goiânia, 1994.

134
Então, em 1963, surgiu, em Goiás, um grupo de jovens desejosos de ler,
estudar, e produzir poesia. Esse era o objetivo comum, que se ampliou em
discussões sobre a Literatura nacional, a forma e o conteúdo, técnicas para
elaboração de textos, a procura de caminhos para a ampliação e renovação
do que aqui se fazia em. Havia uma grande vontade de pesquisar, a vontade
de fazer. Tudo já foi feito, diriam. Mas acreditavam nas possibilidades.
A imaginação, a inteligência não têm limites, daí a busca do que é válido,
mesmo esbarrando-se nos senões. Válido, no plano literário e em outros
planos, é tudo que tem valor, e valor é sinônimo de substancialidade,
essencialidade.
No princípio, eram seis jovens que se reuniam para discutir poesia:
Geraldo Coelho Vaz, Aldair da Silveira Aires, Yêda Schmaltz, Edir Guerra
Malagoni, Ciro Palmerston Muniz e Tancredo Araújo. Foram os fundadores
do Grupo, com o nome de “Seis Janelas”. Um dos seus propósitos era a
publicação de um livro, com esse nome, sugerido pelo professor Ático Vilas-
Boas da Mota. Luiz Fernando Valladares Borges entrou para o Grupo.
Depois, juntaram-se a ele Emílio Vieira, Natal Neves, Clarice Dias,
Miguel Jorge e Maria da Cunha Moraes. No dia 9 de agosto de 1963,
oficializaram a criação do GEN-Grupo de Escritores Novos – cujo
primeiro presidente foi Aldair da Silveira Aires. Bernardo Élis, escolhido
como Patrono. O nome GEN, com o significado etimológico de origem,
matriz, foi sugerido por Luiz Fernando Valladares. O divisor de águas
entre o Regionalismo e o Modernismo, em Goiás, acabava de nascer.
Naquele alvorecer constante de ideias, textos, encontros, somaram-se
ao grupo outros jovens desejosos de ver, ouvir, aprender, discutir literatura
em suas vastas proporções. A relação completa dos 22 integrantes do GEN,
em ordem alfabética, está na contracapa do livro Poemas do GEN 30 Anos:
Aldair da Silveira Aires, Célio Slywitch, Ciro Palmerston Muniz, Edir
Guerra Malagoni, Eduardo Jordão, Emílio Vieira, Geraldo Coelho Vaz,
Heleno Godoy, José Ferreira da Silva, Luís Araújo Pereira, Luiz Fernando
Valladares, Maria da Cunha Moraes, Maria Evangelina, Maria Helena
Chein, Maria Luzia Sisterolli, Marietta Telles Machado, Miguel Jorge,
Natal Neves, Reinaldo Barbalho, Rosemary da Costa Ramos, Tancredo
Araújo, Yêda Schmaltz.

135
Locais onde se reuniam: no início, na Biblioteca do SESC, depois, no
Conservatório de Música, por último, na sede da UBE (União Brasileira
de Escritores), a convite do então Presidente, o escritor Bariani Ortencio.
O Grupo encontrava-se no Anjo Azul, bar situado no Lago das Rosas, para
interpretação de poemas, quando Clarice Dias, sempre de preto, declamava
em espanhol e, no término, jogava-se ao chão, para os aplausos de todos os
presentes. Não raro, convidados especiais participavam das reuniões, como
o professor Ático Villas-Boas e Monsenhor Primo Vieira, que escrevia
poemas sacros. Segundo Yêda Schmaltz, os maiores incentivadores e
promotores do grupo foram o professor Ático Villas-Boas, o professor
Colemar Natal e Silva (Reitor da UFG), professor Jerônimo Geraldo de
Queiroz (Reitor da UFG) e Domiciano de Faria (Secretário de Cultura),
entre outros nomes importantes.
O GEN recebeu o Troféu “Os melhores de 63” (Revista Oásis e CERNE),
realizou Seminários, Concursos Literários, Curso de Iniciação à Arte Poética
e ainda a Primeira Semana Goiana de Poesia Moderna, da qual se publicou
uma Antologia. Foram editadas duas revistas, em 1966 e 1967.
Foram presidentes: Aldair da Silveira Aires, Ciro Palmerston, Luiz
Fernando Valladares, Miguel Jorge e Heleno Godoy.
O livro Poemas do GEN 30 Anos, (organizado por Heleno Godoy,
Miguel Jorge, Reinaldo Barbalho), Editora Kelps, traz os depoimentos e a
antologia dos seus membros, constituindo-se um documentário excelente
para pesquisa. O livro é dedicado a Marietta Telles Machado e a Reinaldo
Barbalho, que haviam partido, mas a dedicatória “permanecem conosco”
mostra nosso sentimento de grande afeto.
As declarações, observâncias, aplausos de vários escritores, poetas,
ensaístas são pontos relevantes que distinguem o trabalho do grupo como
sério e renovador, com as características das novas propostas modernistas.
O que lhes importava era a obra bem nascida, trabalhada, sem a preocupação
de dirigir sua literatura para o engajamento social, porque havia o risco de
se tornarem panfletários, repórteres, quando seu grande compromisso era
com o texto, com a criação. Testemunhavam sua época através de um
trabalho criativo, em termos de linguagem, técnica e conteúdo. Contar
uma história e escrever um poema pode ser para muitos, mas saber fazê-lo
requer disposição e conhecimento do que se quer falar e como falar.

136
Nessa época, a escritora Aída Félix de Sousa fez-me uma série de
perguntas sobre Literatura e, entre elas, o que eu pensava sobre a relação
homem-terra e o regionalismo artístico. Respondi-lhe que, antes de tudo,
o homem está ligado a terra, e que procurava soluções para seus problemas
até mesmo fora daqui, por isso as viagens espaciais, o boom da época.
Eu não era ligada ao regionalismo, mas o respeitava como criação artística,
como interpretação de uma realidade, e o Brasil tem dado verdadeiras
excelências no campo regional. Contudo, se fosse para eu escolher entre
um conto regionalista bom e um conto psicológico bom, ficaria com o
último. Outra pergunta de Aída foi pela minha preferência pelos temas e
soluções líricas, ao que lhe respondi: “Soaria mal e pedante, eu dizer que
sou o protótipo do lirismo. Mas é a verdade. Não consigo me afastar de
minha própria sensibilidade. E o amor é a minha consciência. Sinto-me
sempre amando. Daí a causa e a consequência líricas do que escrevo. Fugir
do lirismo seria fugir de mim mesma.“ E veio o questionamento da escritora:
“quem sobreviverá na Literatura?” Todos aqueles que têm talento, capacidade
de trabalho e uma vontade muito grande de continuar na luta. O ato da
criação machuca, dói e para isso temos que usar um remédio, então é
escrever, ler, estudar, reinventar. Escrever para viver.
O GEN vivia intensamente o momento do Modernismo, cujas caracte-
rísticas coadunavam com seu espírito de renovação e a vontade grande de
se fazer ouvir, de se fazer entender. Na Poesia, adotavam o verso livre e a
problemática da atualidade e, não raro, envolviam-se com a vanguarda,
procurando a consolidação do pensamento poético através de uma forma
nova, de conteúdo novo, para um mundo que quer a reformulação de
caminhos e um acerto de fins. Trabalhavam com sinceridade e essa since-
ridade era arma para emulações, às vezes combativas, mas sempre de caráter
evolucional. O tempo requeria luta, dinamização, e não podiam deixar a
poesia passar em “doce acalento de um rio”, sem tentar modificá-la, depois
de compreendê-la, ajustá-la, depois de vencê-la. O poeta pode transmitir a
realidade à realidade, através da estrutura técnico-formal, sem impedir o
lirismo, sem murar o necessitável sentimento humano. Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade,
Cecília Meireles foram importantes guias, ao lado de muitos poetas
estrangeiros, um Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Walt Whitman.

137
Os rumos abriam-se para a Instauração Práxis, com Mário Chamie; o
Concretismo, com Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio
Pignatari; e para o Poema Processo, com Wlademir Dias Pino, Moacyr
Cirne, Neide de Sá e Álvaro de Sá.
Na Prosa, a expressividade dos genianos manifestou-se nos vários gê-
neros, mas de início, o conto foi a maior referência. Autores brasileiros e
os de várias outras nacionalidades enriqueceram seu conhecimento e pos-
sibilitaram novas incursões em seus textos.Distanciavam-se do Regionalis-
mo pelo desejo de uma revisão crítica da Literatura feita em Goiás. Sartre,
Camus, Kafka, Alain Robbe-Grillet ao lado de grandes nomes de nossas
Letras, como Clarice Lispector, Nélida Piñon, Raduan Nassar, foram lei-
turas escolhidas, entre muitas outras. Tratando-se do conto, houve a divi-
são clara entre o tradicional e o moderno.
Focalizaram em suas escrituras, novos recursos, entre eles, a corrente
de consciência, monólogo interior, descontinuidade de tempo, pluralidade
cênica, fusão de planos mentais. A ensaísta Vera Maria Tietzman, no
prefácio do livro Antologia do Conto Goiano II (sob sua organização e da
Profa. Maria Zaíra Turchi), observou que “A preocupação com a forma,
surpreendente e inovadora, é, pois, característica dos escritores perten-
centes ao GEN ou que demonstraram afinidade com seus princípios e
valores.” Termina o prefácio, dizendo que “A leitura dos 47 contos reunidos
nesta Antologia proporciona um panorama amplo da ficção que se faz hoje
em nosso Estado, uma ficção múltipla, variada, que abriga o tradicional e o
moderno, o regional e o universal, o rural e o urbano, o realista e o psico-
lógico, o alegórico e o fantástico”.
O professor Jerônimo Geraldo de Queiroz escreveu na orelha do livro
Poemas do GEN 30 anos: “Como vocês enriqueceram a literatura brasileira
feita em Goiás! Na temática, na invenção, na elaboração, na estilística, nas
figuras de palavras e de pensamento, nas mensagens estéticas e sociais.
Aperceberam-se de que a vida, em movimento transformador, produz ne-
cessidades crescentes, solicitando que também a língua se transforme...”.
Aliás, o Prof. Jerônimo lembrou-se da questão linguística, porque uma das
preocupações do movimento modernista foi a valorização da língua
portuguesa falada no Brasil, no sentido de uma “linguagem brasileira”.

138
Mas vejamos, o Português culto do Brasil é quase igual ao Português culto
de Portugal. As diferenças maiores estão na linguagem do dia a dia, com as
variantes geográficas e regionais, e também socioeconômicas. Em seus
trabalhos, os escritores se aproximaram da linguagem coloquial, subjetiva,
crítica, irônica, rompendo com os padrões estéticos vigentes.
A professora e ensaísta Moema de Castro Silva e Olival, em sua obra
GEN – Um sopro de Renovação em Goiás, afirmou: “Foi, sem dúvida, um
divisor de águas, na vida literária em Goiás, um vento promissor: Conhe-
cer, discutir, confrontar para ‘renovar’. O quê? Como? Isto se veria depois.
No ato de desestabilizar, rompantes juvenis, julgamentos apressados, por
vezes, provocam dissenções, mas na peneirada do joio e do trigo, somou o
trigo. O resultado foi positivo”.
No momento em que escritores de todo o Brasil dedicavam-se às escolhas
de novos caminhos ou à permanência do que vinha sendo feito, os genianos
punham-se a par do movimento modernista, pelo estudo e análise de toda
essa estruturação, e partiam para a elaboração de textos poéticos e em
prosa. Wania de Sousa Majadas, também professora e ensaísta, na orelha
do livro da professora Moema, propõe a seguinte reflexão: “Negar o GEN
e suas realizações é negar a evolução da própria cultura em nosso Estado”.
E mais adiante: “Foi uma tarefa difícil desses escritores, afinal estavam
abrindo mão da segurança do que já estava pronto, do empírico e investiram
no sacrifício e no risco”.
O GEN redescobriu Cora Coralina. Toda a história de desvelo e admi-
ração por essa ilustre mulher está no grandioso livro de Luiz Fernando
Valladares Borges, Encontros com Cora Coralina de Goyaz, de 673 páginas,
editado pela Kelps. Um documentário importante para a Literatura e a
História, minuciosamente pesquisado. Tudo que se quer saber sobre Cora,
sua vida, poesia, prosa, seus doces, homenagens, premiações, depoimentos,
e mais, sobre as festas, o folclore e acontecimentos da época, na cidade de
Goiás, encontra-se no livro. A propósito, Luiz Fernando sugeriu ao Grupo
que convidasse Cora Coralina para ingressar no GEN, mostrando assim,
que o Grupo não desrespeitava o passado e seus reais valores. O convite foi
feito na casa de Cora, ao que ela respondeu: “Aceito, sou do GEN...e eu
mereço”.

139
O escritor Bernardo Élis assim se manifestou em Poemas do GEN 30 anos:
“O grupo promovia encontros e discussões, procurando entrar em contato
com os artistas mais velhos e polemizavam ferozmente os novos postulados
artísticos. Foi na verdade um grupo atuante, crítico e que tratava com
seriedade ou profissionalismo o labor literário, o que é hoje compreensível,
pois a partir de tal época a arte começou a render pagamento em Goiás,
coisa que não aconteceu com a minha geração e as gerações que me ante-
cederam.“ E mais adiante: “Nesse ambiente eu tive a honra de ser convi-
dado para ser o patrono do grupo nascente. E com muita alegria aceitei o
convite tão honroso e carinhoso”.
Miguel Jorge atestou no citado livro: “Aspirávamos a um sentimento de
união, de trabalho, dos traços essenciais do que seria a ‘nova literatura’ que
buscávamos. Em nossas cabeças iluminadas por um ideal, pela vontade de
vencer, haviaapenas a beleza una das palavras e da luta para domá-las,
colocando-as à frente de todos. Tudo isso valia por um manifesto que jamais
foi escrito ou intencionado. Lembrou-se do escritor mineiro Fábio Lucas
que achava o GEN dinâmico, sério, que dava força e vida não só aos seus
atos, como aos personagens e histórias que criava. Esteve em Goiânia e viu
de perto a movimentação do Grupo e, de longe, acompanhava suas
produções e criações”.
Heleno Godoy, no final do seu depoimento, em Poemas GEN 30 Anos:
“Não me arrependo de ter, em junho de 1967, proposto, posto em votação
e obtido o acordo dos genianos para extinguir o GEN. A ‘coisa’ já tinha
acontecido, a vida já ia a meio caminho e, por certo, o GEN não tinha por
vocação virar uma academia [...]. Se fizemos bem? Sobrevivemos! E isso,
certamente, não é pouco! O GEN de que me lembro foi isso: um ato de
criação e de amor. E o fim ainda não chegou! Nem acho que chegará.”
Os tempos agora são outros. Outros caminhos, cismas, pensamentos,
buscas, conceitos e lembranças que persistem. Aquele grupo de pouco mais
que adolescentes perpetua-se em minha memória com as falas e sorrisos,
a generosidade distribuída e a seriedade de quem se arroja para o que der e

140
vier. Não havia medo, nem distinção de credos, nem inveja latente,
mas um companheirismo que salvava qualquer polêmica, discussão e
incompreensões. Um grande amor nos aproximava, conduzindo-nos para
os caminhos que cada um escolhia. Muitos já não estão entre nós, e peço
licença para que, em nome do meu querido Reinaldo Barbalho, eu preste
uma homenagem a todos, com a minha saudade.

Goiânia, setembro de 2018

Ajudaram-me nessas reminiscências:

Poemas do GEN 30 Anos. Heleno Godoy, Miguel Jorge, Reinaldo Barbalho, Edito-
ra Kelps, Goiânia, 1994.
GEN Um Sopro de Renovação em Goiás. Moema de Castro e Silva Olival, Editora
Kelps. Goiânia, 2000.
Antologia do Conto Goiano. Volume II. Vera Maria Tietzmann Silva, Darcy França
Denófrio, Maria Zaira Turchi, Editora Kelps, Goiânia, 3ª Edição, 2013.
Encontros com Cora Coralina de Goyaz. Luiz Fernando Valladares, Editora Kelps,
Goiânia, 2016.
GEN – Um sopro de renovação em Goiás*

Moema de Castro e Silva Olival

“As águas do GEN vão e voltam e dividem o tempo em antes e depois”


Miguel Jorge em Universo das Letras (discurso de Posse na AGL).

1. O histórico do GEN - Grupo de Escritores Novos - está inserido,


totalmente, na Antologia: Poemass do GEN - trinta anos - sob o título
“O GEN e a Cultura em Goiás”, organizada com Miguel Jorge e Reinaldo
Barbalho.
2. Impossível deixar de fazer referência, ainda que breve, a algumas
observações feitas pelo prefaciador dr. José Fernandes, no texto que ele
apresentou, no correr do primeiro volume do GEN - Um sopro de renovação
em Goiás.
3. Inicia seu prefácio “A estética na estética”: “Há iniciativas estéticas
que, se não constituem o início e a concretização de um novo estilo literário,
como aconteceu com a maioria das revolucionárias propostas do começo
deste século, que resultaram nas múltiplas faces do Modernismo, pelo menos,
motivam seus membros à produção artística. Em Goiás. A verificação deste
fenômeno pode ser feita nas produções artísticas dos componentes do
Grupo de Escritores Novos, GEN.” (...). “Moema de Castro e Silva Olival
em seu premiado livro pela Bolsa de Publicações Nelly Alves de Almeida,
criada pela Professora Zilda L. Barbosa e mantida pela Universidade
Salgado de Oliveira - UNIVERSO em parceria com a UBE, secção de
Goiás, na impossibilidade de estudar todos os genianos, ateve- se àqueles
que lhe pareceram os mais representativos. Para isso, dedicou especial

* Nota dos organizadores: o depoimento produzido pela professora doutora Moema de


Castro e Silva Olival foi organizado na forma de notas, ao estilo dos célebres apontamentos
de aula de Roland Barthes.

143
atenção à obra de Miguel Jorge, estudando principalmente aspectos rela-
tivos à narrativa, uma vez que o processo polifônico por ele criado cons-
titui uma forma bastante original de sintonizar o ser da personagem com a
linguagem. Este procedimento instala no discurso uma visão metafísica da
linguagem, à medida que ela passa a conformar o ser agônico, ontológico
ou apenas social da personagem “(...).
4. Também, neste volume primeiro, foram vistos Iêda Schmaltz, Heleno
Godoy, Maria Helena Chein, que foram situados no momento histórico
“por que passaram, o que possibilita a outros estudiosos estabelecer
correlações entre as estéticas que se fizeram dentro do GEN e as estéticas
que o antecederam, que com ele concorreram e que os seguiram. Um estudo
nestas direções, a partir do que fez a vencedora da Bolsa de Publicações
Nelly Alves de Almeida, importará à literatura feita em Goiás, porque
imporá ao estudioso uma visão ampla dos modernismos e, consequen-
temente, das poéticas que a conformam”,
5. No livro O Modernismo de Wilson Martins (A Literatura Brasileira,
Vol. VI. Cultrix, 3ª edição, p.55), nota interessante nos esclarece algumas
dúvidas. Por exemplo. Diz ele: “Ao contrário do que por tantos anos se
pensou, em conseqüência de um compreensível engano de perspectiva,
foram os modernistas que fizeram a Semana de Arte Moderna e não a
Semana de Arte Moderna que fez o Modernismo. Mas antes que esta última
palavra entrasse em circulação, foi o nome de ‘futurismo’ que estava em
moda e tão espalhado que tira qualquer significação às reivindicações
tardias de prioridade em que se em que se comprouveram. Por exemplo:
os escritores do Rio de Janeiro. Em 1921, lembra Paulo Mendes de Almeida,
rememorando as secções literárias da revista A Cigarra, falava-se muito em
Futurismo. Publica a referida revista um editorial lançando como o mais
interessante dos nossos poetas futuristas um certo Mário Flama, pseudô-
nimo de um moço enfermo, entrevado há dez anos. Dotado de um “gênio
prodigioso”, era provável que ele, no Brasil, viesse a empunhar ‘o bastão
de chefe da nova escola’, acrescentando que, Marinetti, em Milão, fora
o primeiro a ‘proclamar-lhe o gênio’.”

144
6. Continua Wilson Martins, discorrendo sobre algumas das bases
responsáveis pelas mudanças históricas que prepararam os traços básicos
do novo tempo. Vejamos: “O cinema foi o meio de expressão artística que
veio dar aos modernistas e futuristas o instrumento de uma arte do tempo,
de uma arte em movimento. Renato Almeida diria que, ‘com o cinema
nasceu uma linguagem nova’. A velocidade, a visão cinematográfica e aviatória
estão evidentemente ligadas ao simultaneísmo que é o grande princípio
estético do modernistas, em todas asa formas de arte.( ...).Sendo, então os
modernistas os primeiros a compreender que não se tratava de renovação,
mas de revolução, ou melhor, que não há renovações estéticas ou outras
que não sejam, em maior ou menor medida, revolucionárias.”
7. Do novo tempo, portanto, já conscientes destas renovações estético-
filosóficas, voltemos a nosso Estado, e ao Grupo de Escritores Novos
(GEN) bem cientes do alcance das pesquisas em torno destas novas faces
de produção cultural: artístico-literárias.
8. Em meu livro O espaço da crítica III - editado pela UFG, premiado
pela ABL-RJ, e prefaciado pela profa. Nelly Novaes Coelho, da Universidade
de São Paulo, em junho de 2005, na p. 23: “alguns princípios básicos são
expostos de modo a revelar a posição hegueliana da obra como um todo,
fundo e forma sendo faces de uma mesma moeda, em unidade dinâmi-
ca.(...) Daí a práxis inovadora da arte moderna, instalando novo ritmo em
que se parte da força do raciocínio tradicional do consenso para a refle-
xão pós-moderna do dissenso, e em que se opera com a subjetividade, de
um lado, e, de outro, com a desestabilização da subjetividade.” Fiz questão
de relembrar estes indícios da nova literatura, simbiose das visões ôntica e
estética, que abriu fronteiras para a criatividade estética e para as perspec-
tivas dos estudos literários em Goiás. Impossível deixar de fazer, aqui,
referência a este movimento que abriu fronteiras para a criatividade estética
e para as perspectivas dos estudos literários:
9. O GEN marca seu nascimento, ocorrido em 1963, com um tom de
polêmica, reflexões críticas, debates acalorados, num ideal de atualização
em busca de renovação, tom que vai distingui-lo até sua dissolução em
1968-1969. Foi, sem dúvida, um divisor de águas, na via literária em Goiás,
um vento promissor: Conhecer, discutir, confrontar para “renovar”.

145
O que? Como? Isto se veria depois. No ato de desestabilizar, romances
juvenis, julgamentos apressados, por vezes, provocaram dissenções, mas na
peneirada do joio e do trigo, somou o trigo. O resultado foi positivo (...).
Vejamos que nomes se sobressaíram nos dias atuais, advindos do grupo
relacionado, levando-se em conta o teor e a representatividade das respec-
tivas produções.
10. Ainda que toda tentativa de classificação mereça reparos, e sabendo
que alguns dos integrantes não passaram do primeiro fôlego, citaremos,
primeiro, os que, após o término do movimento, continuaram trabalhando,
e que se distinguem pela produção literária até hoje. Nele, estariam
incluídos:
a) Ciro Palmerston
b) Luiz Fernando Valadares
c) Geraldo Coelho Vaz
d) Marieta Telles Machado
e) Aldair Silveira Aires
f) Emílio Vieira
g) Luiz Araújo
h) Eduardo Jordão

11. As obras dos respectivos autores estão mencionadas no Histórico


incluído na Antologia. Vamos aproveitar um pouco deste histórico, quando
reproduzimos, nos depoimentos de vários renomados escritores de então,
notas históricas, por vezes significativas, como as que encontramos no
depoimento do Professor Ático Vilas- Boas da Mota.
12. Vejamos: “Tudo começou em Catalão, quando um grupo de jovens
pretendia romper com a monotonia da vida interiorana. Eram eles: Aldair
Silveira Aires, Braz José Coelho, Setembrino Mastrella, Luiz Gonzaga de
Oliveira, Nazareno Ferreira, José Safatle Naim, Roberto Aires, e Hélio
Mesquita (Bacalhau). O grupo, inicialmente, adotou o nome de ruega, nome
de uma música mexicana muito divulgada naquela época. Por se tratar de
um grupo com preocupação literária, logo optou pela impressão de um
jornal com o título A voz do estudante. Evidentemente, esse jornal tinha todas
as características de um órgão estudantil e era impresso nas espichadas
madrugadas, justamente quando a cidade dormia e os jovens sonhavam.”

146
13. “Passando algum tempo, isto é, em 1962, vieram para Goiânia,
com a finalidade de ali trabalharem e estudarem, os principais articuladores
daquele movimento: Aldair Aires e Geraldo Coelho Vaz.”
14. “Justamente naquela época, nós acabávamos de nos instalar em Goiâ-
nia, atendendo o honroso convite do Dr. Colemar Natal e Silva, dinâmico
fundador da Universidade Federal de Goiás.Ali chegamos sobrecarregado
de planos e sonhos que, para nossa alegria, muitos deles, foram realizados.”
15. “Pois Bem, um belo dia, os jovens catalanos Aldair Silveira Aires e
Geraldo Coelho Vaz nos procuraram cheios de otimismo e ideais literários.
Discutimos, animadamente, os pormenores dos seus projetos, (...). Eram
seis os antologiados: Aldair Silveira, Ciro Palmerston, Edir Malagoni,
Geraldo Coelho Vaz, Tancredo Araújo e Yêda Schmaltz. Por se tratar de
seis jovens intelectuais, com cosmovisões próprias, isto é, diversas formas
de enxergar e interpretar o mundo, sugerimos que a coletânea e o grupo
fossem denominados de “Seis janelas”. Aceitaram a nossa sugestão.
Contudo, o grupo tomou novos rumos, inclusive, multiplicou o número
de seus componentes, mediante a incorporação de outros jovens que se
reuniam no SESC (Av. Goiás) e foi ali , numa de suas costumeiras reuniões,
que o brilhante Luís Fernando Valadares Borges, também cheio de
entusiasmo juvenil, sugeriu aquele grupo surgente a denominação de
Grupo de Escritores Novos (GEN), prontamente aceito por todos os seus
componentes. E, assim, a partir daquele instante, uma nova sigla iria
ocupar um longo período das letras goianas na qualidade de parâmetro ou
melhor, divisor de águas do processo literário goiano.”
16. Entre outras opiniões, também respeitáveis, ainda que com pequenas
divergências, vejamos pequeno trecho do escritor Aidenor Aires. Diz ele:
“O GEN foi uma brisa de renovação. Não porque impusesse um novo
modo de ver o fenômeno literário, mas porque abriu espaço a novas parti-
cipações. Creio que mesmo quem não participou do grupo, ou foi crítico
de sua atuação, não deixou de se influenciar (...). A marca mais acentuada
foi a da crítica. Abriu espaço para as diversas formas de expressão, como é
plural a contribuição dos componentes do grupo.”
17. Ensejou o debate, as discussões e tornou a nossa literatura mais
próxima da vida, dos apelos do momento histórico. Inseriu Goiás na
Modernidade, ligando-o às preocupações estéticas que sacudiam o país.

147
18. No depoimento do escritor Carlos Fernando Filgueiras de
Magalhães, em que pese o distanciamento temporal e sua responsabilidade
histórica, “falar sobre o antigo Grupo de Escritores Novos (GEN), de
Goiânia, é tarefa que requer, antes de tudo, diferençar o que seja um
grupo estatuído e uma aglomeração de ideais de juventude, não necessari-
amente de origem burocrática.(...). Naqueles distantes anos iniciais da
década de 1960, por já ter tentado participar de semelhante projeto em
Belo Horizonte, onde estudava e residia antes de vir para Goiânia, com o
grupo já em ascensão, movi-me por outro lado, cuja necessidade se baseava
no encontro de idéias com relação ao processo de criação literária, longe
do foco de reuniões, cuja preocupação, na maioria, além do congraçamento
e debates em torno do projeto artístico do grupo, como era normal entre
aqueles jovens, era a possível oportunidade de expor seus trabalhos, funci-
onando mais como tertúlia literária, em minha opinião à época, e que se
confirmaria, pouco tempo depois, quando dois de seus expoentes Heleno
Godoy e Luís Araújo, aquele, então, como presidente da entidade, resol-
veram selar a sorte do grupo ao dissolvê-lo, uma vez que cumprira sua
necessidade histórica, ilustrada por uma movimentada cena literária de
Goiás naquele período, quando aqueles dois escritores citados, imbuídos
pelos ares renovadores do pensar e do agir, enquanto consciência artística
da Instauração Praxis e que, diretamente, promoveram aquele salutar
rompimento, e tomaram radicalmente a mencionada posição, isto é, a de
representantes, não só ligados pelos vínculos fraternais,mas igualmente
pela ampla discussão no plano das idéias. Cito os nomes de Luìs Araùjo,
Heleno Godoy, Miguel Jorge, Maria Helena Chein, Yêda Schmaltz, Luís
Fernando Valladares Borges, Marietta Telles Machado, Reinaldo Barbalho
e Aldair da Silveira Aires entre outros.”
19. Dificilmente, autores como Yêda Schmaltz, Maria Helena Chein,
Miguel Jorge, Luís Araújo, e Heleno Godoy deixariam de produzir e de
publicar suas obras, independentemente ou não do GEN.
20. Muito longe de ser apenas um movimento a mais que incomodaria
o cenário artístico de uma época, uma coisa jamais tirarão do Grupo de
Escritores Novos: o fato de que, em Goiás, este ajuntamento de jovens e
promissores escritores provocaria uma ruptura histórica, de cujo patamar
artístico se descortinava no futuro, a posição dos seus integrantes, ao marcar

148
uma época, que se transformaria em um divisor de águas (antes e depois do
GEN), ao sepultar de vez o pensamento da escola regionalista literaria-
mente considerado como tal, inaugurando o horizonte de possibilidade de
uma nova escrita, rica e atual, e de uma consciência do mundo real.
21. Embora não fizesse parte do GEN, continua Carlos Fernando, mas
participante da Instauração Praxis, “ao conviver com eles, tornei-me teste-
munha ocular de todos os percalços e de toda promoção desse grupo que
plantou entre nós, entre outras afirmações, a semente discordante da
renovação no hodierno horizonte das Letras em Goiás, como perspectiva
de uma geração e de uma época, como confirmação daqueles propósitos de
que se tornariam paladinos ao defendê-los, até hoje, tal a sua repercussão
como movimento artístico e importância de atuação, tornando-se impossível
ignorar o seu registro e sua instigante revelação futura no trabalho criativo
de seus autores.”
22. Resolvi, então, entre os escritores que mais se distinguiram, no caso
Miguel Jorge, cuidar de suas inovações no campo do Teatro, gênero esco-
lhido por ele, mencionando ligeiramente suas demais obras, ainda que
importantes como alguns romances, como: Pão Cozido debaixo de Brasa, e,
sobretudo, o último Minha Querida Beirute. Quanto aos demais citados,
pretendo referir-me apenas a mais dois ou três escritores, tendo em vista o
talento exposto nos respectivos trabalhos.
23. Iniciemos, ainda, com Miguel Jorge, cuja obra sobre Teatro trouxe
grandes inovações à época, e depois, então, poderemos, embora consciente
de menor espaço, citar criações de outros importantes escritores como
Yêda Schmaltz, Heleno Godoy, Maria Helena Chein, cuja atuação no
grupo foi muito significativa , quanto ao gênero da poesia, da pesquisa, do
conto, além do romance, como veremos.
24. Um traço que une a todos: a construção do fazer literário, o domínio
da linguagem em todo seu potencial de experimentação revolucionária da
vanguarda, na arte de narrar, de poetar. Releve-se a dimensão humana de
suas literaturas, perquirindo o Homem, com flashes dialéticos, em todas as
suas vivências. Talvez, aí, um dado comum que lhes tenha vindo do conví-
vio do GEN, em que se discutiam e se vislumbravam horizontes dos novos
tempos da Literatura no Brasil e no mundo, e a necessidade do resgate do
humano, ingrediente que lhes deveria servir de matéria-prima.

149
25. A renovação dos quadros culturais do Estado já se havia prenunciado
desde o Batismo Cultural de Goiânia, em 1942, com reunião de intelectuais
daqui e de fora, muitos deles passando a se aglomerar em torno da revista
Oeste (1942-1945). Depois, com a chamada geração 45, que teve em
Bernardo Elis seu líder natural, reacendeu-se o interesse na busca de novos
horizontes, ainda que fosse uma tentativa um tanto dispersiva, enfraquecida
por oposições entre os “novos” e os “velhos”, segundo nos relatam
Gilberto Mendonça Teles e Oscar Sabino Júnior.
26. E o GEN, em 1963, imprimiu, com o ímpeto dos jovens, uma busca
mais determinada às tendências renovadoras.
27. Concluindo, atribuímos ao GEN este papel de cadinho da intelec-
tualidade em Goiás entre os anos 60 e 70, de que resultaram nomes capazes
de representar, hoje, o que temos de mais consciente e criativo no mundo
das Letras. Estariam ai, apesar do GEN, é verdade, comandados pelo
talento, mas, certamente, foi com o GEN que se aprofundaram as condi-
ções de conscientização do papel de escritor moderno, das colocações da
relação Homem- Literatura (o homem apanhado nas profundezas de seus
desejos, através das frustrações do cotidiano), do peso de suas possibilidades
e de suas responsabilidades no mundo cultural de hoje.
28. Agora, depois da pequena exposição teórica, expondo a história
relativa à constituição e atuação do GEN, gostaria de escolher um dos
gêneros que melhor distinguiram cada um dos jovens autores mencionados.
29. Por exemplo, conforme o que anunciamos, destacaria o Teatro como
uma das inovadoras distinções de Miguel Jorge, embora também tenha se
distinguido nos demais gêneros como poesia, prosa: conto, romance,
crônica. Vejamos o teatro e sua performance bem moderna, em relação ao
que se praticava então.
30. Iluminado pelo espírito do século, segundo Pushkin, o teatro também
teria de realizar importantes mudanças na cena dramática, atualizando sua
dialética teatral. O que foi bem praticado por Miguel Jorge. Vejamos:
“A Linguagem poética, narrativa e teatral de Miguel Jorge configura-se
como estrutura eivada de tensão e magia. A dinamicidade imagética que
ela provoca decorre da rigorosa busca da palavra ‘certa’, da palavra ‘gume’,
do signo plurívoco capaz de operar montagens transfiguradoras, respon-
sáveis pela sua ‘energéia’, como células de tensão”.

150
31. Discípulo de Meyerhold, o criador do teatro revolucionário moderno,
aperfeiçoa-se, progressivamente, em simbiose com o espírito de um diretor
de cena, na técnica das associações de ideias, princípio básico da tão
preciosa, quanto ao escritor, a da palavra exata.
32. “As associações certas dão vigor ao espetáculo, multiplicam, incal-
culadamente, sua força de ação enquanto as associações falsas a destroem.”
33. Versátil-escritor poeta, crítico de arte e dramaturgo, Líder do
GEN, movimento que, a partir da década de 1960, inseriu, definitivamente,
Goiás nos tempos modernos, Miguel Jorge não conhece limites no seu
processo de criação. Não refuga temas, não separa gêneros. Nele, prosa e
poesia se fundem. Sua técnica literária é marcada pelas inovações que a visão
moderna imprimiu aos demais campos de criação artística, como o das artes
plásticas e do cinema. Sabe ser um artífice, também, no processo da expe-
rimentação, buscando, sempre, novos efeitos. Segundo já tivemos ocasião
de observar em “A linguagem tridimencional de Miguel Jorge”: “Atribuímos,
principalmente, à promiscuidade agressiva dos níveis narrativos dos textos
de Miguel Jorge, a sensação de dinamicidade que deles emana, esta impressão
de cena ao vivo, provocando este impacto teatral que nos causa” (Signótica,
ano 1, p.107).
34. Como Dostoievski, Miguel Jorge é um dramaturgo nato, ou pelo
talento em lidar com o diálogo – célula dramática por excelência – ou pelo
sincretismo singular das imagens, tanto que nos seus contos e novelas res-
pingam, sempre, fragmentos de tragédias a serem escritas. A capacidade
aluída explica, talvez, a facilidade de transposição de um gênero para outro,
o que ocorre, por exemplo, com o conto “Putein”, do livro Avarmas, que
se transforma na peça teatral homônima, ou com o conto “Avarmas,” de
mesmo nome do livro, na peça “A recompensa”, ou com vários contos do
livro Avarmas, que energizam a temática de “14ª Estação”. E é, na área do
teatro que, neste momento, buscaremos caracterizar a sua escritura,
fazendo um percurso por toda sua produção, salientando, sobretudo, seu
aspecto simbólico-interpretativo.
35. No meu primeiro volume sobre o GEN, tenho vários ensaios sobre
o teatro de Miguel; penso que uma leitura destes estudos facilitaria e muito
entender os meandros criativos do citado autor, na referida área. E, por
exemplo, no livro O Espaço da Crítica III, no capítulo 2, cujo tema insiste

151
na leitura crítica em obras contemporâneas do gênero romance, algumas
premissas iniciais fazem sobressair, com a devida atenção à leitura crítica,
os núcleos temáticos das referidas obras. Por exemplo: “O sentido da
existência é, de fato, o centro em torno do qual se move o Romance
(Walter Benjamin).”
36. “A imagem constitui a cifra da condição humana” (Octavio Paz ).
37. “É preciso que o homem se passe, com armas e bagagens, para o
lado do homem” (André Breton).
38. Sem Épica, não há sociedade possível, porque não existe sociedade
sem heróis em que se reconhecer” (Octávio Paz).
39. Ainda, examinamos, sob olhar crítico, a linha poética perceptível na
primeira produção de Miguel, na arte da dramaturgia: O Visitante/Os Angélicos,
prefaciado por Romildo Antônio Sant’Anna, isto em 1973. Diz-nos o
crítico: “A diferença de Miguel Jorge consiste em sugerir o mundo através
de um devaneio”. Observação válida, a nosso ver, para estas duas primeiras
peças em que, no entanto, já borbulham traços do polemizador aguerrido
que, através do dinamismo de suas imagens, de seus diálogos, mais que
sugerir, contamina o leitor/ espectador com a força de sua linguagem
inquiridora, marca que será uma constante, em progressivo aperfeiçoa-
mento, no seu trajeto de criador literário.
40. Busca, tenazmente, tanto no romances, contos, novelas, quanto no
teatro, agitar, ainda que bem temperado por humor ferino, o questiona-
mento dos anseios, angústias e fragilidades do Ser, num mundo que os
ignora por convenção ou limitação de horizonte ou conveniência. Sempre
enriquecendo seus recursos persuasivos, na sequência das demais obras,
como: “Camaleões”, que é uma peça em dois movimentos. A temática é
engajada politicamente, sem deslocar o interesse maior no ser humano.
Trata da arbitrariedade do poder militar, da tortura, e do conseqüente
aviltamento interior e exterior do perseguido (...), A época das torturas
militares dos governos Costa e Silva e Médici transparece aqui e ali.
41. Peça maior, Camaleões é a saga do embrutecimento existencial,
decorrente, aqui, de duas personalidades doentias, a serviço de um sistema
também, por si, doentio com a supressão da liberdade, mas, daí o grande
perigo, personalidades fracas investidas de poder. E demonstrar a ação

152
corrosiva deste poder será o escopo da peça, através do maniqueísmo que
exerce sobre personalidades fracas, aliás, um ponto nevrálgico sempre
objeto da literatura de Miguel Jorge.
42. Outra peça (sempre relativa ao teatro moderno): Putein; Miguel
Jorge e a “angústia da influência”. Putein, peça, também com dois movi-
mentos, é a dramatização de um dos mais fortes contos do livro Avarmas e
reforça a proposta temática da ação demolidora que o poder exerce sobre o
homem.
43. Temos a assinalar, nas peças confrontadas, Putein, de Miguel Jorge e
Viridiana (peça cinematográfica) de Luís Buñuel e, ainda, do mesmo Putein
e Esperando Godot, de Samuel Beckett, a marca da chamada “Angústia da
influência”, ou seja, a contaminação inevitável entre os grandes criadores
das Letras e Artes da humanidade, aquela afinidade intelectual que move a
criatividade para rumos afins, e que foi tão bem explicitada por Harold
Bloom, talvez, a respeito de um poeta exercer influência sobre outro (...),
através de uma generosidade de espírito, talvez, mesmo, de uma genero-
sidade compartillhada (p.62).
44. Busca, num segundo momento, a afinidade criativa que apontaria,
da parte dos autores, a filiação ao culto das técnicas vanguardistas do
expressionismo, do surrealismo, do absurdo, ao caricaturar a participação
das personagens, acentuando a negatividade das forças inatas do ser
humano. Mergulhado no absurdo das contingências do cotidiano: a impor-
tância do sonho, ainda que considerado uma meta quase inatingível.
45. Por isto, no setor das influências, talvez, devêssemos nos reportar à
constituição dos diálogos- células dinâmicas no processo de dramatização -
e que aproximam Miguel Jorge de Samuel Beckett, como poderemos
verificar em Esperando Godot. Ambos têm o segredo da dinamicidade
desse recurso sígnico que consideramos “núcleos atomísticos”. Para eles, o
diálogo é uma célula dramática, capaz de articular um agudo senso de
reação crítica.
46. Sintetizando a exposição sobre o teatro de Miguel Jorge, esclareço
que poderíamos, também, sentir a sua aproximação, não só com Samuel
Beckett, mas ainda com Ionesco, enquanto cultores do absurdo, no ataque
à própria vida. Apontaríamos, então, as vigas mestras que sustentam os

153
respectivos princípios estético-filosóficos: o niilismo, a inquietação, a angústia,
a solidão, envolvendo personagens apanhadas no “pasmo existencial”,
mesmo aqueles que exteriormente fazem rir.
47. Convém ressaltar, à oportunidade,e de modo especial, a atuação
intensa do papel do encenador e do diretor, sugerido pelos indicadores de
cena, e a cuja liderança os demais elementos da peça, atores inclusive, se
submetem (...). A novidade chegou ao teatro brasileiro, nos anos 50 ou 60,
graças ao Teatro de Arena e Oficina, segundo matéria de O Estado de São
Paulo (19/08/97) a respeito das comemorações dos oitenta anos de Décio
de Almeida Prado, crítico de Teatro que esteve em tudo ou quase tudo que
se fez de Teatro em São Paulo.
48. Na peça A recompensa, o autor retoma a temática dos perseguidos
políticos pela ditadura militar. Na verdade, é a dramatização do conto
“Avarmas”, do livro homônimo e se constrói em torno da busca, por um
casal, de notícias de seu filho desaparecido. Nesta peça, o autor faz-nos
percorrer as “estações” de sofrimento, humilhações e angústia, vivenciadas
pelos pais que buscam o filho, ainda que, talvez, só o seu corpo (...). E de
todos os caminhos e descaminhos percorridos desta busca massacrante, na
tenebrosa cena de incursão do casal no pântano, em busca do corpo do
filho, num gesto de delírio, Emília, a mãe, ouve a voz de Paulo e reage
com espanto: “Foi terrível. Quase não reconheci sua voz. As palavras
vinham muito estranhas, como se lhe tivessem cortado a ponta da língua.”
(...) “Disse que não pertencia mais a este mundo. Que o fizeram montar na
grande lua vermelha e voar como um pássaro azul” (p. 36).
49. Difícil separar, aqui, o dramaturgo do poeta. Na verdade, como
dissemos, de início, Miguel Jorge se dá todo em cada gênero explorado,
permitindo-nos apreciar uma obra sempre múltipla e enriquecida. No
sexto e último movimento, temos a dramatização da evidência do mani-
queísmo das formalidades burocráticas, reduzindo as personagens Pedro e
Emília a números, a robôs, como se poder ver no exemplo a seguir:
50. “É melhor arrancarem-me o coração do peito e, no lugar dele,
pregarem o tal do número. Tudo isso me causa horror” (p. 140).
51. Mais uma vez, Miguel tenta a dramatização das forças que repri-
mem e desfiguram a personalidade- do homem. no impacto dos diálogos

154
que primam pela “Energeia” sujestiva, com visão muitas vezes carnavalizada
e parodística da realidade, ele consegue recriar, com tintas do absurdo, a
força da proposta crítica.
52. Pirilampos e Vagalumes, peça feita para teatro infantil, nos parece
deslocada do conjunto. Talvez ficasse melhor num tomo de suas novelas
infantis que, na verdade são nove, como “Anjo no Galinheiro” e que, na
época estava em segunda edição.
53. Finalmente, em 1997, Miguel Jorge publica Amor/14ª Estação, volume
contendo duas peças, em um ato cada, e vários quadros. Assim “Amor:
poldro que se doma (fogo de outra chama)” E “ Décima Quarta Estação”
constituem o último lançamento do autor, até então. Na primeira temos,
em experiência talvez única até então, uma antologia dramatizada. A temática:
o amor e as inúmeras formas de concebê-lo, de senti-lo, é exposta através
de um diálogo travado entre Cupido e um narrador incrédulo dos efeitos
do Amor, e da voz de um rol de figurantes e poetas que tentam expressá-lo
através de versos de seus poemas, incluindo poemas-cartaz.
54. Já a peça “Décima Quarta Estação” é um painel cubo-surrealista,
uma unidade teatral explosiva, constituída de fragmentos de contos de seu
livro Avarmas. São fragmentos convergentes, em termos de reiteração da
linha temática do livro;o homem e seus percalços existenciais. As referidas
personagens, que saem de dentro da capa que envolve o escritor numa
bela simbologia de centro de criação ,atuam na medida do desvelamento
do gesto criador, ao mesmo tempo em que insistem no reforço da temática
existencial.
55. Reafirmamos, assim, a força da dramaturgia de Miguel, ratificando
as palavras de Meyerhold, dirigidas aos atores técnicos e demais integrantes
do “teatro livre” russo, quando, ao ser indagado sobre qual o teatro que
poderia ser representativo de seu tempo, respondeu:” aquele em que o
estado D´alma está em uníssono com a “inteligentzia” de sua época. Tal como
o teatro de Miguel Jorge.
56. O segundo nome de projeção, no GEN, e que poderia ser mencionado
aqui, embora de maneira sucinta, poderia ser o de Yêda Schmaltz, vista sob
a esteira luminosa de sua poesia. Seriam, por exemplo: Eco, A Jóia de Pan-
dora, prêmio da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos (1995), e
Rayon, Prêmio da Bolsa de Publicações Cora Coralina, de 1997.

155
57. A entranhada consciência feminista desta poeta, seu aguçado poder
de lirismo, fazem de sua escritura especial campo de interesse para os que
pesquisam a produção literária contemporânea e, sobretudo, para os que
percorrem as trilhas da dimensão pós-moderna na poética do Mito. Pela
sua requintada sensibilidade, é comparada a Cecília Meireles. Pela agudeza
sarcástica de sua verve poética, nós a compararíamos a Drummond. Com fina
ironia, retrata a vida em lances críticos, repassados de cruel mordacidade.
58. Avessa, a princípio, a experimentalistas, sobretudo práxis, acaba por
se abeberar dos recursos estéticos modernos da pesquisa da linguagem,
na multiplicidade de suas dimensões, distinguindo-se, também, pela cons-
ciência do fazer poético.
59. A profunda compreensão, da parte de Yêda do trágico, do mitológico,
da ambigüidade dos valores, traz, para o leitor, uma poesia para cuja decodi-
ficação se solicita um leitor qualificado, erudito, atento às verdades míticas
universais, um intérprete competente dos elementos essenciais da vida e da
cultura. Ecos- como passaremos a designá-la, é a reedição Schmaltziana
dos mitos clássicos, em especial o da sedução, o do amor auto-suficiente:
Narciso. E do enfoque deste sentimento, pela mulher moderna. A poeta
joga, no seu texto poético, com a ambigüidade que o vocábulo sugere:
eco, substantivo comum, som refletido por um corpo: prolongamento de
som. Eco, substantivo próprio de uso mitológico (do grego EKHÔ), ninfa
das fontes e florestas, personificação do eco. Segundo Ovídio, Hera puniu
a ninfa transformando-a em eco, por ter favorecido os amores de Zeus.
Segundo outras tradições, teria sido amada por Pan, que, repudiado,
mandou despedaçá-la. Ou teria morrido de dor, por causa de um amor
infeliz por Narciso.
60. É, que, pela Mitologia, Pandora foi a primeira mulher a ser criada
por Hefesto, o Júpiter romano, assumindo, na tradição pagã, o papel de
Eva, na tradição cristã. Mulher bela, recebeu dons privilegiados de todos
(Pan) os deuses, menos de Hermes que, maldoso, lhe atribuiu “a perfídia e
a dissimulação”. Foi enviada aos homens munida de uma caixa que,
segundo a lenda, encerrava todos os bens e todos os males.

156
61. Yêda se identifica com esta “minoria”, e é desta matéria que extrai o
seu canto. Grande artesã da linguagem poética moderna, neste livro, ela
substancia um grito de Amor que busca seu eco, sua completude. E isto se
faz pela força de uma linguagem mágica, por vezes , anárquica, que vai
recriar seus mitos, reconfigurando-os.
62. Neste instante, a poeta, musa primeira do GEN. cria novos planos
semânticos, com o jogo de recursos computadorizados, com o lance de
cortes, de aproximação ou de reduplicação das palavras, de massas sonoras,
e recursos estilísticos vários, como paradoxos, antíteses, metáforas etc,
desdobrando e “fazendo ecoar” significados.
63. Pensamos que muito representativa desta Odisséia lírica de Yêda
Schmaltz é a série de poemas intitulada Ecos, na medida em que, cada um
deles traz uma faceta da nova mulher que está sendo contada; a Eco pós-
moderna, o sujeito lírico destes poemas em que se confunde a própria Yêda.
Ex.” Amar um morto/ que não revelou sua postura/ de determinado ser,
para não ser/ por mim (ou Eco) amado”. (eco VIII, p. 113).
64. Vamos terminar (...) concluindo com o texto “Estética do fractal”
que revela a natureza metalingüística do projeto poético de Yêda, na
busca dessa”poética do fogo” que ela persegue, na sua natureza ambígua
de “aranha e borboleta”. Entre as chamadas vozes libertárias, às quais,
pelos métodos adotados nas suas buscas de elaboração poética, poderíamos
acrescentar ao lado de Yêda outras vozes do espaço nacional como Hilda
Hilst e Adélia Prado, por exemplo, que se incluiriam, neste espaço “por
iluminarem seus cantares”, diz Hilda Hilst: “Porque, criança, aprendi/
na feira: ave e mulher// Cantam melhor na cegueira” (Hilda Hilst, 2002, p
60). “Sempre me recusei a ser anjo/ Eu amo a rebeldia. (Yêda: Ecos-A jóia
de Pandora, de 1996, p. 133). “Mulher é desdobrável. Eu sou” (Adélia Prado,
“Poesia reunida. Bagagem” p. 11).
65. Heleno Godoy. O amante de Londres: Jogo de Máscaras. Estamos
terminando grande parte de nossas considerações literárias propostas, mas
não poderia deixar de mencionar, este geniano Heleno e o arrojado domínio
das estruturas básicas da narrativa curta – matéria temática significativa,
intensidade da ação e tensão interna – que parece caracterizar seu livro de
contos O Amante de Londres. Nele, o escritor busca cristalizar com sucesso,

157
o conceito de Júlio Cortázar sobre as condições de excelência do gênero.
Diz ele que “para que haja um bom conto, é preciso escrever tensamente e
mostrar intensamente. Mirar o leitor, e cravar a narrativa em sua memória”.
E como se consegue isto?
66. Não contando com a dilatação do espaço literário próprio do
romance, o contista tem de prender o espectador-leitor, numa escavação
vertical e ganhá-lo por knock-out”, como se expressou um amigo de Cortázar,
ao discorrer sobre o exercício da leitura do conto. E se nos lembrarmos
que estas condições – tanto a escolha do material temático, quanto a
intensidade de ação e a tensão interna – são ofício do escritor e, portanto,
resultam de um processo de visão crítica da realidade reelaborada estetica-
mente pela linguagem, podemos avaliar o quanto de técnica será dispen-
sada nessa arte de ligar o material significativo – o tema – ao seu
consumidor – o leitor.
67. Gostaria de tomar a liberdade de sugerir, também, a leitura de meu
livro, Contos (des)armados, livro em que tentei seguir (com sucesso, desculpem-
me a falta de humildade, mas a partir das valiosas e competentes apreciações
de diversos colegas daqui e de fora) as orientações de Cortázar.
68. Heleno se notabilizou em vários gêneros, e encerrou suas habituais
atividades, quando presidia o GEN, passando a guardar o precioso livro de
atas do referido movimento. Os contos são flashes destes perfis, expostos
com engenho e arte, de modo a nos revelar, no desenrolar da ação, todo o
potencial de dramaticidade, no prisma da dimensão humana, de que se
investe a respectiva manifestação. A inspirada apresentação do livro por parte
do representante de um dos órgãos responsáveis pelo Prêmio Caliandra –
de que o livro foi merecedor no gênero conto – o poeta e Secretário Municipal
de Cultura, Itamar Pires, faz-nos pressentir que temos, pela frente, uma
trilha preciosa, que se destina, assim como Caliandra - a flor do cerrado
que lhe deu o nome e que “eriçada ela mesma, em vermelho sobre amarelo,
não resiste ao toque da mão do homem, senão fenece” - que se destina,
pois, aos que tem o privilégio da percepção dos caminhos da sensibilidade
literária, para que possam usufruí-los.
69. O gene desta seara ficcional se fortalece a partir da citação, na página
seguinte, de pressupostos de filósofos perfiladores de uma práxis psicanalítica,
apontando para o fio da temática geral do livro: A vida. Cada conto a desvelar

158
as profundezas abissais do ser humano, nos seus estranhos mecanismos de
compulsão. É “O Jogo das Máscaras”, na sequência dos contos e que faz
desenrolar o fio narrativo.
70. Heleno é um escritor que se apraz em esboçar perfis psíquicos,
como já dissemos. É um pesquisador da mente, em seus processos patoló-
gicos. E mórbidos, na medida que faz, de suas personagens, bobinas vivas
da trágica condição do ser humano.
71. Para encerrar este nosso primeiro encontro com alguns dos genianos
mais produtivos, poderíamos citar, também, na área do conto, mas de
orientação mais tradicional, a escritora Maria Helena Chein, também poeta,
cuja obra era divulgada, sobretudo pelo jornal “O Quarto Poder”, da
Imprensa da IFG. Este jornal se constituiu numa grande porta, voz dos
jovens talentos da época naquele período. Assim é que o exemplar de 20 de
outubro de 1963 trouxe seu poema “Balada da noite cálida”. Primeiro a ser
publicado – e a edição de 3 de novembro, do mesmo ano, continha seu
segundo poema tornado público; “Companheiras da solidão”, que já revela
o núcleo vital de sua força criadora: o canto da mulher perquirida com
flashes dialéticos em suas inúmeras vivências.
72. Na prosa, vejamos Maria Helena sob a ótica da autoria feminina no
jogo elocucional narrativo. Vejamos: Ela apresentou três livros de contos:
Do Olhar e do querer (1974), prêmio da Bolsa de Publicações Hugo de
Carvalho Ramos. No conto “Amanhã depois da chuva” apresentando voz
narradora aparente e ilusoriamente onisciente, dirige-se a um “tu” que na
verdade é o sujeito da enunciação, mascarando um “eu” que sobrecarrega
as funções do sujeito do enunciado. (“Tu”, “eu”, “você”); professora no
interior, membro de uma família conservadora que ama, que inventa para
a família que vai trabalhar em outra cidade, que alterna com o diário as
explosões dos movimentos interiores da consciência – jogo dialético entre
o certo e o errado, num expressão ambígua que se reveste de possibilidades
inesperadas, recriando níveis de leitura antes impensados – que prepara
sua mala, que toma um carro para a grande viagem e que para quarteirões
à frente – à porta do prédio de seu amante (pequena grande viagem) e os
apelos existenciais. (...) Tudo isto arquitetado à moda dos relatos policiais,
da técnica do suspense, que se encontra como promissora sendo a ser
explorada, na obra de Maria Helena.

159
73. O segundo: Joana e os três pecados (1983), e o terceiro: As moças do so-
brado verde (1986). Concluímos que sua obra traz um rico manancial de
promissoras sendas a serem percorridas.
74. Concluindo nossa curta amostragem sobre alguns dos autores
representativos do GEN, penso que conseguimos, através deles, aproxi-
marmo-nos das inovações construtivas, alimentadas pelos centros literários
nacionais e internacionais, na tentativa de modernizar e enriquecer a
abertura ou atualização da nossa produção cultural desvelando nossos
novos horizontes.

160
REFERÊNCIAS

GEN - Um sopro de renovação em Goiás. Volume Um. EDITORA Kelps,


Goiânia,2000 . Prêmio do Concurso Bolsa de Publicações Nelly Alves e Almeida-
1999.
GEN - Um sopro de renovação em Goiás. Volume Dois. Outras janelas. Novas etapas.
Editora Kelps, Goiânia, 2009.
Depoimentos diversos sobre o GEN e suas atividades.
Moisés, Massaud. Dicionário de Termos Literários.
Magno Albino Pereira. Dicionário Mitológico.
Meyrhold, Vsévolod. O Teatro De Meyerhold. Tradução, apresentação e
organização de Aldomar Conrado. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro.1969
Parte 4
Qual modernidade?
A modernidade chega ao sertão:
A Máquina Extraviada de José J. Veiga
Maria de Fátima Oliveira
Lucas Pedro do Nascimento

Escrevo para conhecer melhor o mundo e as pessoas. Quem prestar aten-


ção verá que os meus livros são indagativos, não explicativos. Isso faz deles
um jogo ou um brinquedo entre autor e leitor; ambos indagando, juntos ou
não, e descobrindo – ou não...
José J. Veiga (1996, f. 2).

Introdução

M uito já se escreveu sobre José J. Veiga e seu fantástico conto,


A Máquina Extraviada. O que se pretende nesse texto é analisá-lo, buscando
relacionar a Literatura com a História e mostrar como esse conto pode
representar aspectos da chegada da modernidade no interior do país, e suas
contradições. Para tanto, necessário se faz, em primeiro lugar, conhecer
um pouco desse importante escritor goiano, reconhecido e admirado pela
crítica literária nacional e internacional. Em seguida, discute-se a relação,
às vezes harmoniosa e às vezes conflituosa entre a História e a Literatura,
ressaltando as possiblidades de diálogo entre elas, bem como as suas
fronteiras. Finalmente, busca-se analisar o conto A Máquina Extraviada,
ressaltando suas características estéticas e históricas, ao mesmo tempo em
que se dedica a pontuar aspectos relacionados à modernidade, num exercício
que faz dialogar a ficção com o contexto da realidade de uma cidade
imaginária, mas que bem poderia ser qualquer cidade do interior de Goiás,
referência bem familiar ao autor.

165
O escritor goiano José Jacinto Pereira Veiga (1915-1999), mais conhecido
como José J. Veiga1, nasceu aos 02 de fevereiro de 1915 na Fazenda Morro
Grande, entre os municípios de Corumbá de Goiás e Pirenópolis (GO),
filho de Maria Marciana Jacinto e Luiz Pereira da Veiga. Após concluir os
estudos secundários no Liceu da Cidade de Goiás, mudou-se pra o Rio de
Janeiro, onde formou-se em Direito em 1941, trabalhando no jornal O
Globo, na Tribuna da Imprensa e, depois, na British Broadcasting Corporation
(BBC), em Londres.
Sua estreia na literatura foi um pouco tardia, após os 40 anos de idade,
com o livro de contos Os Cavalinhos de Platiplanto. Sete anos depois, escreve
A Hora dos Ruminantes (1966) e em seguida, A Máquina Extraviada, em
1968. Na década de 1970 publicou mais dois importantes livros: Sombra dos
Reis Barbudos (1972) e Os Pecados da Tribo (1976), seguidos por Aquele
Mundo Vasabarros (1982) e o Risonho Cavalo do Príncipe (1992).2 Seus livros
foram traduzidos para diversos idiomas e publicados em diversos países,
entre eles Portugal, Espanha, Estados Unidos e Inglaterra. José J. Veiga
faleceu aos 84 anos de idade, em 1999.

Diálogos e Fronteiras entre a História e a Literatura

A verdade literária é uma, a verdade histórica, outra.


Mas, mesmo que esteja repleta de mentiras - ou melhor,
por isso mesmo -, a literatura conta uma história que a
história, escrita pelos historiadores, não sabe nem pode
contar (LLOSA,2004, p.24).

A discussão em torno das sintonias e dissonâncias entre a História e a


Literatura é de longa data e tem provocado muito debate em torno da
questão. Pode-se dizer, em linhas gerais, que em tempos passados, as duas
áreas do conhecimento tiveram uma relação bem próxima, sendo que no

1. Há um interessante espaço dedicado a José J. Veiga na sede do Serviço Social do


Comércio (SESC), localizado no Setor Central de Goiânia, que foi inaugurado em 2007.
Lá, é possível encontrar documentos, como parte de sua correspondência, originais de
artigos para jornais, contos e romances, e onde estão também, em torno de 1.800 volumes
do acervo de sua biblioteca pessoal, em diversas línguas, o que expressa bem as influências
recebidas na composição de sua obra.
2. Com o livro de estreia, José J. Veiga ganhou o Prêmio Fábio Prata em 1959. Com o livro
Sombras de Reis Barbudos, em 1973, recebeu o Prêmio Menção Honrosa pelo Concurso
Nacional de Literatura. Ganhou o Jabuti com as obras De Jogos e Festas, Aquele Mundo de
Vasabarros e O Risonho Cavalo do Príncipe. Em 1997 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da
Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra.

166
século XIX seus campos foram delimitados com mais rigor, mas ocorrendo
uma reaproximação a partir do século seguinte, com um movimento de
renovação historiográfica. Esse movimento, que surge na França na década
de 1920, que ficou conhecido como Escola dos Annales, tem como princi-
pais ícones os historiadores franceses Marc Bloch e Lucien Febvre, que
fundaram a revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, no ano de 1929.
A renovação que vai ocorrer a partir daí se caracteriza principalmente pela
crítica à historiografia tradicional, na qual predominava a historiografia
político-factual, e em defesa de uma história que valorizasse todas as ativi-
dades humanas e que fosse mais ampla e interdisciplinar, dialogando com
outras áreas como a Geografia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, e
com a Literatura. Com esta ampliação, há uma inovação do conceito de
fonte histórica, novos temas e novas abordagens passam a objetos de
pesquisas, e consequentemente novas metodologias são utilizadas. É nesse
contexto que a literatura ganha um lugar privilegiado junto à história e
passa a ser vista como aliada nos estudos históricos.
Assim, o historiador que se interessa e acredita nos ganhos em relacionar
estas duas áreas do conhecimento, aproxima-se do escritor literário ao
aceitar que recorre à imaginação e às representações em seu ofício. Nesse
sentido, muitos historiadores se destacam nesse campo de estudo e muito
têm contribuído para o debate, como por exemplo Roger Chartier3, Hayden
White4, Sandra Jatay Pesavento5, Nicolau Sevcenko6, Rafael Ruiz7, para
citar apenas alguns nomes.
Pesavento (1999), em seu texto Fronteiras da ficção: diálogos da história
com a literatura discute a relação entre a obra do historiador Capistrano de
Abreu com a de ficção de José de Alencar, mostrando que tanto é possível

3. Historiador francês ligado à Escola dos Annales que tem participado da discussão sobre
as relações entre a história e literatura.
4. Historiador estadunidense, falecido recentemente (março de 2018), conhecido por suas
críticas epistemológicas à historiografia.
5. Historiadora brasileira, professora da UFRGS, falecida em 2009. A autora, adepta da
História Cultural, trouxe enriquecedoras contribuições para o debate em trono das
questões relacionadas à relação da história com a literatura, como por exemplo, seu texto,
Fronteiras da ficção: diálogos da História com a Literatura.
6. Historiador brasileiro falecido em 2014. Seu livro mais importante para este debate é
Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na I República, tendo sua primeira
edição publicada em 1983, pela Editora Brasiliense.
7. Historiador brasileiro, professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Com diversas publicações, pode-se destacar seu livro Literatura e Crise: uma barca no meio do
oceano, publicado em 2015, pela Editora Cultor de Livros.

167
encontrar uma espécie ficção controlada no texto histórico quanto uma
verdade ou forma de aproximação com o real no texto literário. É assim
que a questão da veracidade e ficcionalidade do texto histórico, presentes
na contemporaneidade, faz dialogar a história e a literatura num processo
que dilui e abre portas para a interdisciplinaridade.

Trata-se, pois, de partir das aproximações e distanciamentos que se estabe-


lecem entre os domínios de Clio e Caliope que, como musas, criam aquilo
que cantam, tal como nos ensina a mitologia antiga. Ora, História e Literatura
são formas distintas, porém próximas, de dizer a realidade e de lhe
atribuir/desvelar sentidos, e hoje se pode dizer que estão mais próximas do
que nunca (PESAVENTO, 2003, p.32).

A autora ressalta que, enquanto a tarefa do historiador é controlada


pelos vestígios que chegam até o presente–pois ele não cria vestígios do
passado (no sentido de invenção absoluta), mas os descobre ou lhes atribui
sentido, conferindo-lhes estatuto de fonte – o literato cerca-se de garantias
do real, de elementos de veracidade para dar autenticidade ao seu texto,
apelando tanto para crônicas quanto para obras de caráter histórico.
Assim, na representação do real (ficção controlada), o historiador busca
um nível de verdade possível – não mais aquela verdade inquestionável,
única e definitiva – pois os historiadores reconhecem hoje que o fato puro
não existe na história, que esta recorta, escolhe e compõe narrativas de
acontecimentos e até de desejos, pensamentos e sensibilidades. Pesavento
(1999) mostra que a obra histórica pode assumir, às vezes, um ritmo poético
com estrutura de um romance, pois há um processo de montagem que
implica usos e recursos fictícios, mas que mesmo assim, é diferente de uma
obra de ficção, que tem maior liberdade e não precisa apresentar um álibi.

Se o texto histórico busca produzir uma versão do passado convincente e


próxima o mais possível do acontecido um dia, o texto literário não deixa de
levar em conta esta aproximação. Embora a trama seja, em si, criação abso-
luta do autor, busca atingir este efeito de apresentar uma versão também
plausível e convincente (PESAVENTO, 1999, p. 830).

Desse modo, percebe-se que nesse processo de representação do real, a


História se serve de estratégias de conhecimento e de recursos que se

168
aproximam de uma ficção controlada para explicar e reconstruir uma dada
realidade por meio de uma narrativa coerente, mas que pode estar perme-
ada de elementos simbólicos. A autora conclui, então, que, quando a his-
tória se entrecruza com a literatura, as fronteiras em parte se diluem, pois
os textos históricos podem comportar recursos ficcionais e os textos literá-
rios podem cercar-se de estratégias documentais de veracidade.
O conceito de representação é fundamental para os estudos culturais e
para entrecruzar história e literatura, pois segundo Chartier (1990, p. 17),

As percepções da realidade não são de forma alguma discursos neutros:


produzem estratégicas e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a
impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar
um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas
escolhas e condutas.

Ainda de acordo com o autor, pode-se entender a relação entre literatura


e história de duas maneiras: “A primeira enfatiza o requisito de uma
aproximação plenamente histórica dos textos”, e a segunda, “Procede ao
contrário, isto é, descobre em alguns textos literários uma representação
aguda e original dos próprios mecanismos que regem a produção e
transmissão do mistério estético” (CHARTIER, 2000, p.197).
Por outro lado, Hayden White (1991) vem destacar que,

A teoria literária tem importância tanto direta como indireta para a


compreensão da escrita histórica. Direta, na medida em que elaborou, com
base na moderna teoria da linguagem, algumas teorias gerais do discurso
que podem ser utilizadas para analisar a escrita histórica e para identificar
seus aspectos especificamente "literários" (ou seja, poéticos e retóricos).
(WHITE, 1991, p. 3).

Hayden White completa afirmando que também indiretamente, a


moderna teoria literária é importante para a escrita histórica, pois, “[...] as
concepções de linguagem, fala, escrita, discurso e textualidade que a infor-
mam permitem insights relativamente a alguns problemas tradicio-
nalmente colocados pela filosofia da história [...]. (WHITE, 1991, p. 3).

169
O autor se surpreende pelo fato de que “[...] os filósofos da história tenham
demorado tanto a reconhecer a importância da linguagem para a compre-
ensão do discurso histórico, especialmente desde que a filosofia moderna
em geral fez da linguagem um objeto central de interesse em seu exame de
outros departamentos da ciência” (WHITE, 1991, p. 4).
Resta ressaltar que a relação entre as duas áreas do conhecimento –
História e Literatura – é discutida e vista como profícua também por parte
dos literatos, como por exemplo, pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa8.
Segundo ele, o caminho da verdade e da mentira é semeado de armadilhas,
e os oásis convidativos podem ser miragens, pois a ficção é uma forma de
aplacar o inconformismo dos homens, que geralmente não estão contentes
com seus destinos, e no embrião de toda ficção pulsa um desejo insatisfeito.
O autor acrescenta que não se escrevem romances para contar a vida, senão
para transformá-la, acrescentando-lhe algo, mas demarca bem as diferenças
entre uma ficção e um livro de história, pois, embora ambos encarcerem o
tempo real no tempo artificial do relato, trata-se de sistemas diferentes de
aproximação do real. A noção de verdade ou mentira funciona de maneira
distinta em cada caso. Para a história, a verdade depende da comparação
entre o escrito e a realidade que o inspira (vestígios, documentos); para a
ficção, a verdade depende da capacidade de persuasão, da força comunicativa,
da habilidade e da magia. O autor alerta pelo fato de que todo bom
romance diz a verdade, e todo mau mente, pois “dizer a verdade” para um
romance significa fazer o leitor viver uma ilusão e por mais delirante que
seja a ficção, ela afunda suas raízes na experiência humana, da qual se nutre
e à qual alimenta. Llosa ainda reforça que as mentiras dos romances nunca
são gratuitas porque preenchem as insuficiências da vida e o regresso à
realidade leva sempre a um empobrecimento brutal, ou seja, a comprovação
de que somos menos do que sonhamos. Finalmente o autor defende que,
sair de si mesmo, ser outro, ainda que ilusoriamente, é uma maneira de ser
menos escravo e de experimentar os riscos da liberdade. Assim, conclui
Llosa (2004, p. 24) “A verdade literária é uma, a verdade histórica, outra.
Mas, mesmo que esteja repleta de mentiras – ou melhor, por isso mesmo –,
a literatura conta uma história que a história, escrita pelos historiadores,
não sabe nem pode contar”.
8. Mario Vargas Llosa nasceu em Arequipa (Peru) em 1936. Escritor, jornalista, ensaísta e
político peruano. Fez doutorado em Filosofia e Letras. Trabalhou em Paris como jornalista
e redator da revista France Press. Foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em
2010.

170
A Máquina Extraviada: sinais da Modernidade em Goiás

Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e


finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre
sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que
está entusiasmando todo o mundo (VEIGA, 2010, p. 90).

É tamanha a importância da obra do escritor goiano José J. Veiga


enquanto produção literária, cultural e histórica (por que não?!), que, nas
últimas décadas, alguns estudos acadêmicos têm se encarregado de analisá-la
em questões relacionadas a conteúdo, temática e estética. Embora seja
inegável o reconhecimento e a consequente valorização no ambiente
acadêmico do que essas obras têm e ainda podem oferecer, são escassas as
pesquisas que se propõem a perceber nelas os sinais e as consequências da
modernidade para/na sociedade e o próprio caráter distópico, presente em
absolutamente todos os textos do autor. Essa modernidade, a que nos
referimos, pode ser entendida como “uma unidade paradoxal, uma unidade
de desunidade” que despeja as pessoas em um “turbilhão de permanente
desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia”,
conforme proposto por Berman (1986, p. 15).
Em Goiás, a representação da modernidade adquire maior ímpeto nos
anos de 1930, com a ascensão de Pedro Ludovico Teixeira ao poder. Em
sua proposta estava a promessa de um tempo novo, com a consequente
defesa de um rompimento com o passado, cujos símbolos eram a decadência
e o atraso. Assim, necessário seria romper com tudo que se ligasse ao antigo,
e para isso, segundo Chaul (1997, p. 149), “A modernidade para os arautos
de 30 consistia no progresso do Estado, por meio do desenvolvimento da
economia, da política, da sociedade e da cultura regionais”. Desse modo,
além do rompimento com o grupo político que se perpetuava no poder, a
construção de uma nova capital coroaria esta nova fase e seria o símbolo
maior da modernidade em Goiás.
A modernidade pode assim ser vislumbrada, pois, “Se nos adiantarmos
cerca de um século para tentar identificar os timbres e ritmos da moderni-
dade do século XX, a primeira coisa que observaremos será a nova paisagem,
altamente desenvolvida, diferenciada e dinâmica, na qual tem lugar a

171
experiência moderna” (BERMAN, 1990, p.158). Assim, essas transfor-
mações produzem mudanças no cotidiano das pessoas, como bem mostra
José J. Veiga em A Máquina Extraviada.
José J. Veiga tornou-se famoso não apenas pela literatura ficcional
produzida, mas, particularmente, pelo sentido especial de crítica e veraci-
dade a ela atribuída. Autêntico como era e ainda se mantém, embora já
falecido, denunciou em seus escritos a dominação que tolhe a subjetividade
do sujeito, o entorpece e rouba de si mesmo; criticou os sistemas autoritários
e burocráticos que se aproveitavam da inocência, ignorância, precisão e
vulnerabilidade das pessoas; a opressão e a atmosfera de medo impostas
por esses sistemas; a convivência harmônica dos personagens com foras-
teiros, invasores e o próprio “estranho”, e, por fim, descreveu “as inqui-
etações dos indivíduos que não compreendem sua própria realidade.”
(GOMES, 2017, p. 15)
Assim, sua produção literária, especialmente de 1964 a 1982, pode ser
considerada uma importante alegoria à realidade brasileira. Para Gomes
(2017, p. 12):

Ao pensar sobre o autoritarismo imposto ao Brasil desde o Estado Novo


(agravado durante o governo militar pós-1964, presenciado por José J. Veiga)
e a relação entre realidade e ficção, torna-se evidente a influência do contexto
político e social, declaradamente utilizado pelo autor como matéria de ficção
em suas narrativas. Assim, A hora dos ruminantes, de 1966; A máquina extra-
viada, de 1967; Sombras de reis barbudos, de 1972; Os pecados da tribo, de
1976; O professor Burrim e as quatro calamidades, de 1978; De jogos e festas, de
1980 e Aquele mundo de Vasabarros, de 1982, trazem ressonâncias da censura
e da opressão, configurando essas narrativas com um caráter distópico.

Destarte, os traços, os fatos e a própria atmosfera política do contexto


em que vivia/ escrevia, motivaram-no a elencar o que poderia ser dito,
silenciado, mascarado e ocultado e, o mais interessante, o melhor modo de
dizer aquilo que o ansiava enquanto sujeito.
Se para alguns sua literatura é um tanto quanto “fantástica” ou
“neorrealista”, imaginária ou descabida, para nós, os elementos narrativos,
os enredos formatados, a composição dos personagens, o “imaginário”, o
surreal e o “descabido”, dentro desses enquadramentos, foram muito mais
canais condutores da crítica implícita/ explícita (voluntária ou involuntária
do autor) do que simples suportes para a produção de uma literatura
meramente ficcional.

172
Nesse sentido, a literatura de José J. Veiga foi, à seu tempo, uma im-
portante ferramenta para a propagação de seus ideais e, sobretudo, de suas
amarguras. Para Candido (2006, p. 186), “a literatura pode ser um instru-
mento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações
de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a
mutilação espiritual”. Esse é, ao nosso ver, um dos principais dos objetivos
da literatura veigueana: atribuir um caráter intimamente transformador e
denunciante aos seus textos. Para tanto, valeu-se da “distopia”, o oposto da
utopia, a idealização otimista de uma sociedade perfeita (GOMES, 2017).
Desse modo, prevaleceram, portanto, na narrativa, aspectos negativos da
vida do sujeito e da própria sociedade, assim como as consequências
decorrentes disso sobre ele, o que às vezes acaba tornando-o soturno,
infeliz, temeroso e desprovido de autonomia frente à opressão.
Estes elementos se fazem presentes, claramente, no conto “A máquina
extraviada”, escrito por José J. Veiga em 1967. No texto, o narrador
personagem é um compadre que objetiva situar outro compadre dos últimos
acontecimentos da pacata cidade em que ambos viveram por muito tempo
e onde o primeiro ainda vivia. O segundo, embora distante, ansiava por
notícias daquele “sertão” onde suas raízes estavam fincadas. Assim, o
narrador quer inteirar o compadre sobre o último acontecimento que tem
causado reboliço na cidade, pois com a chegada da estranha máquina,
“quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se
apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha
brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos (VEIGA, 2010, p. 90).
Se a correria, as mudanças e os novos projetos de vida os afastaram, a
escrita, a comunicação via correspondência, os reaproximaram e assegurara
o intercâmbio de informações na ocasião. Logo, o modo escolhido pelo
autor para “contar” o conto já se relaciona e conecta inteiramente à temática
da modernidade. Não se trata de um causo contado face a face ou uma
conversa ao sopé de fogueira. É sim uma “modernidade” em si, o próprio
contar do “ocorrido”.
O que motivou a narrativa? A chegada e a instalação de uma máquina
inusitada na praça central da cidadezinha. Embora seja aparentemente o
relato de um simples fato, “esse episódio suscita e movimenta uma série de
conflitos que estão intimamente ligados aos dramas humanos que já se
anunciam no conto e que problematizam a vida do homem sob uma nova
lógica”(CARVALHO, 2017, p. 127): a lógica do enfrentamento com a
modernidade, de suas consequências e da alteração que de seu ritmo de vida.

173
Aquele era um dia como outro qualquer. As pessoas agiam com natura-
lidade. Realizavam suas atividades diárias com a mesma presteza e mecani-
cidade de sempre. Nada de diferente acontecia naquele lugar. Parecia estar
esquecido, parado há muito tempo. Foi então que um grupo de homens
apareceu trazendo consigo em três caminhões algo muito estranho. Curiosos
e transeuntes foram se amontoando ao redor para saber do que se tratava e
para entender o que faziam ali. Não houve empatia, conversa ou gentileza
entre forasteiros e munícipes. Aqueles, apenas fizeram o serviço que lhes
havia sido incumbidos: instalar a máquina.

A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou aca-


bando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos
dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões)
muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era
aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam
mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam proposital-
mente nos curiosos, pisavam-lhe os pés e não pediam desculpa, jogavam
pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar
ou se machucar que saísse do caminho (VEIGA, 2010, p. 90).

O boato correu de ponta a ponta na cidadezinha. Em pouco tempo,


quase todos se apaixonaram pela máquina, “contrariando a opinião de certas
pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias
a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do
povo ainda não diminuiu” (VEIGA, 2010, p. 91). Recorrente na literatura
veigueana, esse enfrentamento de ideias e forças denota a própria cotidia-
nidade, a colisão de gerações, preferências e, principalmente, da moderni-
dade com a tradição. No padre e nos poucos que torciam o nariz à
máquina José J. Veiga caracteriza àqueles que se opõem à modernidade ou
que veem nela algo perigoso demais. São os que olham de soslaio e resistem
ao “novo”. Entretanto, mesmo que se opunham a ele (o novo) não faziam
nada para prejudicá-lo, pois sabem de sua importância para os outros.
Aqueles que se tornaram afeitos à máquina preservavam-na, cuidavam-na
e começaram a fazer à sua sombra muitas das atividades que antes faziam
em lugares distintos. A máquina passou também a ser aproveitada pelos
políticos como ferramenta de manejo e manipulação. Tornou-se símbolo
citadino. Ganhou da prefeitura até mesmo um funcionário para lustrá-la,

174
poli-la e assegurar sua conservação. O fluxo de vida da comunidade foi se
modificando aos poucos. Eram as consequências da modernidade, que
transforma e ressignifica o modo do homem se relacionar na sociedade e
consigo mesmo.

Nesse processo de recepção de um projeto de modernidade tardia é que se


afirmam as dicotomias brasileiras, resistentes e reticentes, como a dubiedade
campo e cidade, tradição e modernidade, novo e velho, enfim, humano e
desumano. Em A máquina extraviada fica evidente a construção de uma
noção de modernidade que nem sempre correspondeu ao avanço que se
esperava do advento moderno, já que ainda persistiram elementos conser-
vadores, retrógrados até, mas inevitáveis, sem chance para retroceder
(CARVALHO, 2017, p. 125).

O “progresso”, personificado e compactado no estranho objeto instalado


no lugar mais importante da cidade foi o que lhe deu um ritmo diferente
de vida. A cidade,que nem nome possui, e é qualificada apenas como “sertão”,
ou seja, um lugar inóspito, distante, movimentou-se com sua presença e
aos poucos seus moradores foram se rendendo ao seu encanto, sua magia,
caindo naquilo que Baudelaire (apud BERMAN, 1986, p. 138) discute, ao
falar de progresso:

Deixo de lado a questão de saber se, pelo contínuo refinamento da humani-


dade, proporcionalmente aos prazeres que se lhe oferecem, o progresso
indefinido não vem a ser a mais cruel e engenhosa tortura; se, procedendo
como o faz pela sua autonegação, o progresso não viria a ser uma forma de
suicídio permanentemente renovada e se, enclausurado no círculo de fogo
da lógica divina, o progresso não seria como o escorpião que se fere com
sua própria cauda — progresso, esse eterno desiderato que é o seu próprio
desespero.

A máquina aos poucos, fantasmagoricamente, foi se infiltrando no ritmo


de vida da cidade e administrando a vida das pessoas. Estas, por sua vez,
protegiam-na sem nem mesmo saber qual seria sua utilidade. E como
conclui o compadre narrador, elas não gostariam de saber. Talvez se
soubessem deixariam de admirá-la. A máquina perderia seu mistério.
Preferiam continuar ali, naquele ritmo de vida.

175
Assim, José J. Veiga denuncia os acontecimentos políticos da década de
1960, valendo-se, para tanto, da sutileza, do insólito e crítica a inserção ou
o espaço que a modernidade tardia tem ocupado na vida das pessoas,
absorvendo suas expectativas, modificando suas vidas. Nesse sentido, ela
pode escravizar, manipular e até inverter os valores das pessoas, e na mesma
medida, se tornar uma ferramenta de manobra política para os poderosos.
Para Carvalho (2017, p. 125), sua crítica esteve atada à “luta constante
entre o conhecido e o desconhecido, a tradição e o moderno, o sertanejo e
o urbano, o rotineiro e o inusitado, o que é de dentro e o de fora, entre
outras antinomias”. Logo, A Máquina Extraviada se torna a realidade na
ficção, na cotidianidade.
Na pequena comunidade interiorana que experencia a transição de um
ambiente “sertanejo” para uma ambientação “moderna”, embora fugaz e
limitada, vê-se interpretada, retratada, a própria realidade brasileira: os
dilemas de um país que sofre com dubiedade entre o rural e o urbano, o
tradicional e o moderno para implantar a dinâmica capitalista. Em comple-
mento, José J. Veiga explicita que esse processo político de implantação de
medidas “inovadoras” deveria ser antecedido de um outro processo: o de
formação, informação e esclarecimento, senão o resultado será sempre
desastroso.
Ao término da leitura de seu conto ficam-nos muitas inquietações e as
perguntas: se estamos em uma democracia, por que não participamos da
tomada de decisões? Por quea implantação de “obras” destituídas de
significado ou aplicabilidade às nossas cidades não nos inquieta? A resposta
está no próprio texto: às vezes somos apenas pessoas manipuladas por
“máquinas extraviadas”.

Considerações Finais

Percebe-se que, embora José J. Veiga tenha deixado Goiás ainda jovem
e só ter escrito seu primeiro livro após os 40 anos, a sua obra é repleta de
paisagens e personagens que remetem à sua terra natal. Veiga consegue
conciliar muito bem o regional com o universal, tendo a crítica social co-
mo uma característica marcante em seus livros. O cotidiano apresentado
em sua literatura é, em sua maioria, o de pequenos vilarejos do interior
brasileiro, o que remete à sua infância em Goiás.

176
Apesar da presença do insólito, fantástico e irreal em sua literatura, o
conto A Máquina Extraviada faz dialogar a história com a literatura,
mostrando por meio da ficção, aspectos do cotidiano do que poderia ser,
por exemplo, a vida de moradores de uma cidade goiana, com sua simpli-
cidade e inquietações, e, principalmente, evidenciando as contradições da
modernidade e suscitando conflitos de interesses e dramas humanos que
ameaçam de modo autoritário a tradição local.

REFERÊNCIAS

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.


Trad. MOISÉS, Carlos F.; LORIATTI, Ana Maria. 1ª reimpressão. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986.
CARVALHO, Leonice de Andrade. A realidade e o realismo em A Máquina Extraviada.
Revista Literartes, nº 7, 2017, pp. 121 – 140.
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre prática e representações. Rio de Janeiro:
Memória e Sociedade, 1990.
_____________. Literatura e História. Rio de Janeiro: RevistaTopoi, nº 1, 2000, pp.
197-216.
GOMES, Analice de Sousa. A criança, o jovem, a mulher e a voz narrativa em romances
de José J. Veiga. 155f. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística) – PPGLL,
UFG, 2017.
LLOSA, Maria Vargas. A Verdade das Mentiras. Tradução Cordelia Magalhães. São
Paulo: Arx, 2004.
PESAVENTO, Sandra Jatay. Fronteiras da Ficção: Diálogos da História com a
Literatura. In: NODARI, Eunice et all. (Orgs). História: Fronteiras. Anais do XX
Simpósio da Associação Nacional de História (ANPUH). Florianópolis: ANPUH,
1999.
__________________. O Mundo como Texto: leituras da História e da Literatura.
História da Educação, Pelotas: ASPHE/FAE/UFPel, n. 14, p 31-45, Set, 2003.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. 2ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 420p.
VEIGA, José J. Por que escrevo?. Folder - O escritor por ele mesmo. São Paulo:
Instituto Moreira Salles, 1996, f. 2.
_____________. A máquina extraviada. In: A Estranha Máquina Extraviada: contos.
15ª Edição,Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2010.
WHITE, Hayden. Teoria Literária e Escrita da História. In: Estudos Históricos,
Rio de janeiro, vol. 7, n. 13, 1991, p. 21-48.
As dualidades modernas na literatura goiana:
Um ensaio sobre identidade, mulas, carros de bois,
soldados e jagunços
José Eduardo Mendonça Umbelino Filho

Entre isso e aquilo

O quanto a dualidade é determinante para a nossa forma de narrar o


mundo? Ou ainda, numa variação da mesma pergunta, por que tendemos a
organizar melhor nossa realidade se pudermos ter uma referência clara de
dois polos opostos? Na minha pesquisa de doutorado sobre a narrativa
jornalística brasileira, muitas vezes me deparei com esses questionamentos.
O jornalismo, em sua maneira peculiar de contar histórias, trabalha com
um curioso movimento dinâmico de polarização e despolarização narrativa.
Seja nas notícias dos impressos diários ou nas reportagens televisivas, seja
no fluxo aparentemente ininterrupto e por vezes improvisado da internet
ou nos drops dos canais de telejornalismo 24h; em quaisquer dessas moda-
lidades, a narrativa jornalística insiste em, primeiro, separar o Bem do Mal,
os Monstros dos Heróis, a Crise da Abundância, os Outros de Nós e, logo
em seguida, misturar esses conceitos em extensas zonas cinzentas: os
monstros se tornam heróis, a crise se torna abundância, os outros se
tornam nós, e vice-versa. Como num movimento de sístole e diástole, o
jornalismo separa e mistura, mistura e separa, mas sempre fazendo uso
referencial das dicotomias. Sempre pagando tributo aos polos da pureza
conceitual, que podem participar diretamente da narrativa, como elementos
do mundo narrado, ou pairar no limbo das coisas que deviam ser, servindo
de bússola para entender as misturas da realidade. Há que se pesar, claro, a
tendência pessimista das notícias, que desde sua origem enxergam mais
monstros que heróis e mais crise que abundância (bad news is good news,
gritavam os pais fundadores do jornalismo moderno). Ainda assim, sempre
é possível observar o peso de grandes oposições antitéticas ordenando o
fluxo e influxo das histórias.

179
Parece-me certo que essa não é uma característica exclusiva da narrativa
jornalística. Seria um elemento basilar de qualquer narrativa humana?
Também a literatura é pródiga em estabelecer grandes dualidades de prístina
pureza para, logo em seguida, traí-las com o lusco-fusco das misturas.
Principalmente a literatura popular, aquela que angaria multidões e cujas
histórias se repetem com incansável sucesso ao longo dos séculos, se
compraz no recurso narrativo dos híbridos: o amor que nasce do ódio em
Romeu e Julieta, a beleza que surge da miséria nas infinitas variações da
Gata Borralheira, o ladrão que rouba dos ricos para dar aos pobres, o
assassino que se redime, o cidadão de bem que se corrompe, o robô que
quer ser humano, o padre que flerta com a luxúria, o pacifista que precisa
pegar em armas, etc. Seria, portanto, esse movimento uma característica
que ultrapassa o simples recurso narrativo e alcança o campo da cognição,
da construção social de mitos e símbolos? Latour (2013) responderia que
sim. Para esse autor, todas essas separações e misturas, que ele chama de
práticas de purificação e tradução, comporiam o amálgama do pensamento
moderno e, de um modo ou de outro, refletiriam na forma como nós, os
modernos, narramos nossas histórias: “Tudo acontece no meio, tudo transita
entre as duas, tudo ocorre por mediação, por tradução e por redes, mas
este lugar não existe, não ocorre. É o impensado, o impensável dos
modernos.” (LATOUR, 2013, pag. 43) Não à toa o recurso do híbrido
torna as narrativas tão mais interessantes para o nosso gosto estético, e
talvez não à toa qualquer crítico literário diria que as melhores obras
modernas são aquelas em que nada é preto no branco, nada é absoluto, e
ninguém tenta nos impor como verossímil suas dicotomias simplistas.
Gostamos dos anti-heróis e dos vilões indecisos. O que costuma faltar a tal
apreciação, e que é exatamente aquilo que Latour reforça, é que não há
meio sem extremos, e enquanto nos aprazemos com as gatas borralheiras e
os Pinóquios tecnológicos, estamos continuamente insistindo nas polari-
dades conceituais do mundo.
A proposta deste ensaio é tentar transpor algo da reflexão sobre as
dualidades da narrativa jornalística para a literatura goiana. Focaremos
naquelas dualidades que fundamentam o mito moderno, a cosmogonia
recheada de crises e revoluções a partir da qual nossas histórias ganham
seu charme e seu sentido. Para isso, escolhi uma obra que me parece
seminal em muitos aspectos: o romance O Tronco, de Bernardo Élis.

180
Há certas características que fazem d’O Tronco uma boa narrativa para esse
tipo de análise. A primeira delas é o fato do romance não aparentar de
imediato sua profunda relação com a formação da narrativa identitária
moderna em Goiás. Ora, é uma obra cuja classificação acadêmica varia en-
tre o romance de protesto e o regionalismo, gêneros decididamente modernos
se pensarmos em termos contextuais, mas cujas histórias tratam de mato,
boiada, jagunçada, interior e poeira. O que há de pensamento moderno
nisso? Há o aspecto mais evidente da luta social, do retrato das desigual-
dades do sistema (Élis dedica a obra aos “humildes vaqueiros, jagunços,
soldados, homens, mulheres e meninos sertanejos mortos nas lutas dos
coronéis”), cujos fundamentos se enraízam no pensamento socialista/social
que é marca da Modernidade. Mas não apenas. Como tentarei inferir mais
adiante, O Tronco também pode ser analisado sob o viés da profunda e
conflituosa formação mitológica do goiano moderno e a construção dos
símbolos e lógicas constitutivas da nossa maneira de organizar a realidade
e nos inserir nelas. Para além da questão histórico-política, há também
uma interessante questão ontológica.
A segunda característica importante é o fato da obra retratar eventos
reais. Na explicação precedente à narrativa, o autor afirma: “Tirante os
pormenores, os fatos centrais desta narrativa aconteceram realmente em
Goiás. Os personagens, entretanto, tendo tudo de comum com o tipo social
que representam, são fictícios. O autor não quis retratar ninguém, nem
copiou de nenhum modelo vivo ou já falecido.” Ele se confunde então com
o jornalista, com o pesquisador, sua estória vira História e ganha sobrepeso
simbólico para um público leitor profundamente encantado pelas promessas
de realidade ficcionalizada. Nada mais moderno do que o recurso do
“baseado em fatos reais” para ofuscar os limites entre a arte e a vida, o fato
e o mito. Mas Bernardo Élis toma um cuidado curioso: os fatos são reais,
as pessoas não. Ele até afirma, talvez ironicamente: “Qualquer semelhança
com pessoa viva ou morta é mera coincidência.” À primeira vista, a
proposta parece justa. Podemos muito bem situar nossos personagens
irreais em cenários, lugares e acontecimentos reais. Um pequeno esforço
de observação, entretanto, permite vislumbrar qualquer coisa dissonante.
Há algo de estranho nesse arranjo, algo sutilmente desconfortável. Isso
porque faz-se necessária uma mentalidade muito específica para aceitá-lo.

181
O procedimento inverso, ou seja, fazer com que personagens reais vivam
acontecimentos fictícios, é chamado de mitificação e está presente na base
de religiões, cultos e histórias seculares. Mas como chamamos o recurso de
fazer com que personagens fictícios vivam acontecimentos reais? Romance
histórico? Tudo indica que a acepção de um sujeito exemplar, um “modelo
ideal” ou uma representação de “um tipo social” que experimenta por nós
acontecimentos históricos é mais moderna do que aparenta. Ora, se o velho
Héracles dos mitos gregos pode ser entendido como um rei de carne e osso
cuja vida se encantou na lenda, o Vicente Lemes d’O Tronco, por mais
comezinho e real que seja, por menos heroico e maravilhoso, não passa de
um modelo de gente – não diz respeito a um indivíduo real, mas a um
grupo deles, a um coletivo e, por isso, à abstração desse coletivo. Ele é uma
ideia, um pensamento. Personagens assim são alegorias das formas de
pensar e interpretar a história que vivem. A partir de suas ações e pensa-
mentos, podemos bem mais que ter uma ideia informativa de como foram
os fatos reais retratados; compreendemos como esses fatos são pensados,
interpretados, valorados e julgados pelo autor e seu público-alvo.
Essas duas características fazem d’O Tronco uma obra emblemática para
pensar nos modos de pensar a nossa própria história. Pensar o pensamento
através das ações, da narrativa e dos dilemas de personagens que, apesar de
fincados na legitimidade simbólica dos “fatos reais”, são sobretudo inter-
pretações judiciosas desses fatos. Dentro dessa perspectiva, reservo à
reflexão do ensaio apenas duas dualidades conceituais que, como já disse,
acredito formatarem as bases da narrativa identitária do goiano moderno.

A primeira dualidade: mulas e carros de boi.

Comecemos com a cena que introduz o personagem Pedro Melo na


história. Montado numa grande mula, a maior da região, o coronel Pedro
Melo passa pela estrada a caminho da cidade, ladeado por seus dois jagunços.
Enquanto considera os detalhes familiares do ambiente, ele se recorda de
quando era um jovem tropeiro e abrira ali, com o suor do próprio rosto,
uma reles trilha de jumentos para a passagem das tropas. Com imensa difi-
culdade chegava-se à Barreiras, na Bahia, levando e buscando suprimentos
no lombo das mulas. Os comerciantes baianos, mais velhos e experientes,

182
faziam pouco caso de Pedro Melo e seus animais. Eles diziam: “Esse seu
Goiás é mesmo um fim de mundo! Por que você não traz carro de boi pra
levar mercadoria?” Pedro não trazia carro de boi porque o trilheiro era
muito estreito. Ainda não havia estrada. Mas, jovem e petulante, mentia
que achava a tropa melhor de lidar que os carros. Em determinado
momento, um dos baianos o provocou: “Ô homem de boca dura! Tu não
traz carro porque lá não existe estrada.” Então Pedro apostou que, até o
fim do ano, entraria com dois carros de boi em Barreiras e provaria não
apenas sua honra, mas a grandeza do fim de mundo chamado Goiás.
Como se descobre no desenrolar da história, ele vence a aposta, abre uma
estrada larga até Barreiras, recebe uma missa em sua homenagem, e
sedimenta seu caminho de conquista e domínio sobre a região.
Há uma dicotomia importante na cena criada por Élis. Ela envolve, de
um lado, o carro de boi e, do outro, a tropa de mulas. Ainda que para nossos
olhos contemporâneos ambos pertençam ao campo do antigo e tradicional,
naquele contexto eles representam polos opostos: o progresso e o atraso.
Mais que isso, o carro de boi significa o projeto de nação unida, de contato
com a civilização; era uma máquina, uma peça de conforto, uma ferra-
menta de desenvolvimento. Já a tropa significa o isolamento, a desunião, o
“fim de mundo”. As mulas pertenciam a um outro tempo que, ainda que
muito próximo e muito vivo na maior parte do Brasil, já era entendido como
menos moderno e mais selvagem. A dicotomia se estende, naturalmente,
para a diferença entre a estrada larga e a trilha de jumentos. Naquela,
entrelaçam-se e o ideal político de nação e o conceito cultural de progresso;
nesta, o ranço histórico da colônia e a marca pejorativa do arcaico. Assim a
ficção escancara um dos traços mais persistentes do imaginário moderno
goiano: o contraste entre província e capital, distância e proximidade, sertão
e litoral, interior e centro. Internalizado para as narrativas da subjetividade
goiana, esse contraste se despe das circunstâncias para surgir como uma
contínua, insistente e obsessiva mania de comparação entre o Aqui-Interior-
Arcaico e o Lá-Litoral-Moderno. Seja com os baianos de Barreiras, seja
com os paulistas, os cariocas, os franceses, os americanos, quaisquer
daqueles que estão Lá, nós goianos vivemos insistentemente a comparação
pejorativa e a consequente necessidade de autoafirmação. Poderíamos até

183
sugerir que tal contraste funda a própria identidade goiana, uma identidade
recheada de distância e isolamento, e, depois, passa a assombrá-la como
um fantasma, a persegui-la em seus sonhos e projetos, a recordar-se
continua e reiteradamente como um trauma ou uma obsessão. Nas artes,
na literatura, no discurso político, no senso comum, nossa identidade
goiana retorna, mil e uma vezes, infinitas vezes, a essa comparação.
Mas a imagem do Tronco não termina aí. Bernardo Élis não se contenta
em simplesmente expor os dois lados da comparação, o carro de boi e o
jumento, a estrada e a trilha. Ele apresenta a solução do problema! Ao
transformá-lo numa contenda pessoal, numa aposta, o autor insere na
dualidade um terceiro elemento mediador: o homem. Ou melhor, Pedro
Melo, o homem goiano1. O goiano que, no fio das próprias mãos, constrói
tanto o trilheiro quanto a estrada, e guia tanto a tropa de mulas quanto o
carro de boi. O goiano que, sozinho, ergue o progresso sobre o atraso, leva
o centro para o interior, alcança a capital da província; e depois, com
petulância e ironia, desfila a província na capital, entrona o interior no
centro, reergue o atraso sobre o progresso, esfrega o sertão na cara do
litoral. Tudo isso ele faz como vendeta, para vencer uma querela com
comerciantes baianos que o desafiaram. Trata-se de uma questão pessoal.
Para Pedro Melo, o progresso, a modernidade, são ferramentas para
provar seu próprio valor. Provas de poder do indivíduo sobre o coletivo.
A cena seguinte, em que o jovem Pedro organiza a construção da estrada,
esclarece tudo. O goiano “como um general, todo encourado”, conduz a
abertura da picada do alto de seu cavalo. Ele apressa os homens porque
quer chegar a Barreiras com os carros de boi no dia combinado. Lá pelas
tantas, porém, percebe que um de seus trabalhadores está para derrubar
um broto de cedro. Interrompe a faina e diz:

– Você sabe o que é isso?


O cabra ficou meio espantado, titubeou, mas o patrão encorajou:
– Vamos, diga, você sabe.
– Apois num é um broto de cedro?

1. Bem explicado, o personagem Pedro Melo é nordestino e não goiano, e a cidade do


Duro fica onde hoje é o Tocantins. Ainda assim, fala-se de Goiás. Pedro Melo representa o
fenômeno do coronelismo, uma prática sociocultural que se estendeu por todo o “sertão”
brasileiro, da Bahia a Goiás, de Minas ao Maranhão. Nascido aqui ou não, o personagem
sintetiza a gênese do goiano como aquele que veio se estabelecer no longe do cerrado, e
que aqui fez brotar sua própria identidade.

184
– Isso mesmo – confirmou Pedro Melo, enquanto com o olhar aprovador
percorria os demais homens ao redor. Também os outros suspenderam a
faina e estavam curiosos pelo desfecho da cena. "O patrão mandava derrubar
o mato e depois não deixava torar um ramico daquele!"
– Para que serve o cedro? - continuava perguntando o moço, sem se dirigir
a ninguém. Num coro, uma vintena de vozes responde:
– Pra fazer cadeira, armário, porta, janela, oratório...
Aí as vozes se calaram, como se tivessem esgotado o rol das serventias.
Pedro Melo percebeu a indecisão dos homens e os concitou:
– Vamos, vamos, para que serve mais?
– Com perdão da má palavra, serve pra caixão, meu amo - respondeu um
mais afoito.
– Isso mesmo, - aprovou Pedro: - é o pau apropriado pra caixão. - Nesse
ponto, perguntou: - E vocês sabem quem sou eu?
Cheios de indecisão, uns três responderam que ele era o patrão, o coronel
Pedro Melo, homem poderoso e rico.
– Vocês podem bater em mim?
– Deus me livre e guarde, - disse o coro de homens descobrindo-se.
– Vocês podem me matar?
– Cruz credo, coronel! Larga pra lá essas brincadeiras sem graça.
– Pois esse raminho daí é a mesma coisa que a minha pessoa. Ninguém pode
fazer mal para ele. Ele vai crescer, vai ficar um pauzão danado de forte e vai
servir para meu caixão... – A frase ficou meio suspensa, enquanto o moço
refletia para, a seguir, dizer com uma firmeza impressionante: – Isso, se eu
morrer!

A estrada deve contornar o broto de cedro, não pode passar por cima
dele. O progresso tem um limite: não pode derrubar o homem que a trouxe
para aquela região e que, embora seja ainda um broto, mais tarde se
tornará madeira útil, versátil, poderosa. Ao se comparar com a árvore,
Pedro Melo não está apenas nos dizendo que ele pertence a aquela terra,
que é feito da mesma substância do cerrado; ele está afirmando: é assim
que resolvemos, aqui, o dilema entre progresso e atraso, entre Modernidade
e Passado. Eu mesmo digo quando é estrada, e quando não é. Além de
contribuir para a construção da imagem forte e marcante do coronel, a cena

185
é também representativa para refletir sobre a abordagem sociocultural do
goiano em relação a sua posição no Brasil e na grande narrativa organiza-
dora das coisas no mundo. Mais tarde, quando Pedro de Melo morre e não
pode ser enterrado num caixão feito com a madeira do cedro, o livro indica
como essa tentativa de impor a província sobre o progresso acaba de forma
humilhante e sem sentido.

A segunda dualidade: o soldado e o jagunço

Este segundo dilema provavelmente é o mais importante do romance.


Ele é a base sustentadora do personagem principal Vicente Lemes. E é,
também, a aporia fundamental do conceito de coronelismo, tão caro à
literatura regionalista brasileira e, como tentarei argumentar, imprescin-
dível quando tentamos entender a narrativa moderna goiana.
Quem é Vicente Lemes senão a releitura goiana da Antígona tebana?
Seu arco narrativo ecoa a antiga tragédia grega proposta por Sófocles.
Ou, se há grandes diferenças a serem consideradas, pelo menos ambos
coincidem numa evidente questão: a luta entre o público e o privado, entre
a lei de um e a lei de todos.
Na peça de Sófocles, Antígona é filha da relação incestuosa entre Édipo
e sua mãe Jocasta. Possui dois irmãos homens: Eteócles e Polinice. Depois
da expulsão de Édipo, eles disputam entre si o trono de Tebas. Mas ambos
morrem num duelo, e a coroa cai na cabeça de seu tio Creonte. Creonte,
então, oferece um sepultamento honroso a Eteócles, seu favorito, mas
ordena que o corpo de Polinice seja deixado sobre a terra, para apodrecer
e ser comido pelos abutres. A decisão do rei é especialmente cruel quando
recordamos que, para a concepção religiosa grega, isso significaria que a
alma de Polinice não pagaria o barqueiro, não entraria no mundo dos
mortos e estaria fadada a vagar eternamente pelo nada. Antígona, irmã
zelosa, revolta-se e implora por um tratamento igualitário para os irmãos.
Como o rei é intransigente, ela rouba o corpo de Polinice e tenta, sozinha,
enterrá-lo. É presa e se mata. Seguindo uma interpretação hegeliana muito
popularizada, a tragédia de Antígona é utilizada para exemplificar a
dicotomia entre o interesse do indivíduo e a decisão do poder público.

186
Em nome de suas crenças, e ao arrepio da lei oficial, Antígona desafia a
ordem real e tenta resolver o problema com suas próprias mãos. Para ela,
o amor fraterno – e a observância dos ritos religiosos – vale mais que a
ordem social.
Já em O Tronco, Vicente Lemes se vê diante de dilema semelhante.
Jovem funcionário do governo, ele chega a Goiás com o objetivo, e a
intenção (a melhor das intenções, em sua perspectiva) de amainar o
domínio dos coronéis. Vicente é, ou quer ser, a voz do Estado. Mas há um
porém: ele é sobrinho de Pedro Melo, o maior dos coronéis. Diante de
uma arbitrariedade no levantamento de um inventário de bens, Vicente se
recusa a acatar as decisões da família Melo. Sai da cidade e consegue reunir
o efetivo militar da capital para instituir a lei e a ordem e garantir a segu-
rança dele mesmo e dos demais funcionários do governo. Sua decisão,
contudo, resulta em guerra, sangue e mais violência.
Em Antígona temos: a arbitrariedade numa decisão pública coloca em
conflito o poder instituído, representado pelo rei Creonte, e o poder
fraterno/religioso, representado por Antígona. Dois sistemas de leis –
ambos legítimos, mas apenas um oficialmente legitimado – se chocam
graças ao desejo individual da personagem principal, que é ponto de
convergência de ambos. N’O Tronco temos: a arbitrariedade numa decisão
pública coloca em conflito o poder oficial, representado por Vicente, e o
poder fraterno/tradicional, representado pela família Melo. Dois sistemas
de leis – ambos legítimos, mas apenas um oficialmente legitimado – se
chocam graças ao desejo individual do personagem principal, que é ponto
de convergência de ambos. Antígona e Vicente decidem resolver o conflito
com as próprias mãos. Confiam no sistema de leis que legitima sua
demanda, e portanto na sinceridade de sua luta, mas acreditam na
ingerência do indivíduo como força suficiente para fazer a coisa certa.
Uma vez que estão do lado certo, suas ações serão respaldadas pelo sistema
de lei que defendem. Ambos se acreditam representantes de um poder
legítimo de justiça. A ação individual de ambos gera resultados funestos.
Engolidos por forças maiores que eles, Antígona e Vicente passam de
indivíduos detentores de seu próprio destino para joguetes dos interesses e
caprichos dos mais fortes.

187
O antagonismo entre ingerência individual e destino coletivo é básico para
a formação do pensamento moderno ocidental. É também o fundamento
volátil, a força motriz, do nosso imaginário sobre o coronelismo brasileiro:
as famílias são mais fortes ou mais fracas que o Estado? Quem de fato
manda no sistema, aqueles que nos são íntimos ou os ilustres desconhe-
cidos que a lei indica? Nossa resposta costuma ser ambígua. Confiamos
no sonho mítico de um sistema democrático que reduz a violência e as
desigualdades, mas nossos heróis favoritos são aqueles que desafiam qual-
quer sistema na defesa de suas famílias, que se destacam por suas ações
individuais e pela luta contra as opressões. É um paradoxo. A moder-
nidade defende o indivíduo contra os desmandos do sistema, mas ao
mesmo tempo acredita que o sistema é formado por indivíduos legitimados
a mandar.
Considero que esse paradoxo está no cerne da identidade moderna goiana.
Mas, assim como na primeira dualidade, aqui também Bernardo Élis não
se contenta em expor os dois lados; ele quer resolvê-los. E faz isso, mais uma
vez, inserindo o terceiro elemento mediador: o homem goiano. No primeiro
caso, Pedro Melo era esse homem. Agora é Vicente Lemes: o filho do coro-
nelismo que sonha com a república, o idealista cuja ação esbarra na agrura
do real e, principalmente, o indivíduo que descobre – para seu grande terror
– que coronéis e governantes se igualam na mesma violência, no mesmo
egoísmo, no mesmo desinteresse pelo povo.
A tragicidade de Vicente aqui talvez supere a de Antígona. Ambos não
conseguem o que querem. Suas ações individuais resultam em morte (em
Antígona na sua própria). Vicente sobrevive, mas para que conclusão? Para
perceber que o poder no qual ele confiava era igual em violência e arbitra-
riedade ao poder contra o qual lutava. A lei, o governo, o Estado, o soldado,
são tão desprovidos de caráter e justiça quanto o coronel, a fazenda, o jagunço.
O que resta a essa identidade entravada no meio de forças devastadoras?
Resta, penso eu, um discurso ambíguo e uma narrativa truncada que, ao
mesmo tempo, jura lealdade ao Estado e divide um saco de sal com a família.
Encantado com o que vem de fora, com o estrangeiro, nós ao mesmo
tempo somos profundamente ciosos dos nossos, fechados em nossas vilas
de São José do Duro. E, assim como os jagunços e soldados d’O Tronco,
nós usamos do poder da mesma forma violenta, submissa à força mais
próxima, distinguindo entre o indivíduo e o coletivo só na teoria. O poder,
na narrativa identitária do goiano, é uma zona cinzenta, um híbrido, entre
os interesses dos nossos e os dos outros.

188
Conclusão

Tanto Pedro Melo quanto Vicente Lemes são, cada um a sua maneira,
a síntese da identidade goiana. Os dois nos oferecem a observação desas-
sombrada das grandes contradições que permeiam a dinâmica de mitos,
crenças e pensamentos com os quais narramos o mundo. Trazemos no
âmago o grande coronel e o pequeno burocrata do governo, o jagunço
violento e o soldado cobiçoso, o pai amável e o idealista incapaz de suportar
a injustiça. Na síntese contínua desses elementos, construímos a zona
cinzenta que constitui o ser goiano. Que é, para o bem ou para o mal, uma
zona de província, onde convivem a distância e o fantasma do progresso.
A província é uma forma de dualidade, porque delimita os extremos de
dois mundos. Mas é também uma mesclagem, porque quem se instala na
província pertence aos dois. Pode ser pensada como um nenhum-lugar,
uma zona franca, terra de ninguém, ou poder ser pensada como a fusão
dos dois lados, a confusão entre um e outro. De qualquer modo, a narrativa
de província, nos moldes da modernidade, parece sempre interessada em
híbridos, naqueles personagens que representam o meio, o nem-lá e nem-cá,
e cuja dinâmica estética é inescapavelmente ética. Afinal, só o puro poderá
ser apenas estético: o Bem absoluto, o Mal absoluto, o Belo e o Feio, todo
absoluto pode sê-lo em si mesmo, por si mesmo, e, portanto, ser apenas
estético. Ao híbrido esse luxo é interdito. O mesclado só encontra estética
na ética – sua beleza, sua plasticidade, o prazer literário de sua existência,
depende da questão que o devora por dentro. Só há Vicente Lemes e
Pedro Melo porque eles não são nem o Progresso e nem o Atraso, nem o
Público e nem o Privado. Eles são a província desses grandes conceitos;
são o lugar onde tudo se encontra e se confunde. Por extensão, e ousamos
aqui uma licença literária, só há Goiás porque há província.

REFERÊNCIAS
ÉLIS, Bernardo. O Tronco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Trad.
Moysés Baumstein. São Paulo: Editora 34, 2013.
Pão cozido debaixo de brasa, de Miguel Jorge,
e uma reflexão sobre as contradições da
modernidade
Isaias Martins de Souza

A cidade [Goiânia-Moderna] dormia com os olhos abertos.


Olhos de fogo. A cidade comia as pessoas e era comida por
elas. Algumas mijavam nela com desprezo.
– Hei, Felipa, nós não somos ninguém nessa cidade?
– Somos, sim. Somos os que procuram coisas no meio da noite,
feitos os gatos, os ratos, as corujas. Coisas que não inventamos.

(Miguel Jorge)

A o se adentrar, por meio da análise de uma obra literária, aqui, o


romance Pão cozido debaixo de brasa (1997), do escritor goiano, Miguel Jorge,
em uma reflexão que visa os meandros das relações entre literatura e
modernidade, no caso, voltando-se a atenção para como isso se deu (e se dá)
no espaço da capital do estado de Goiás, Goiânia, uma cidade controver-
samente moderna; convém, ainda que de forma panorâmica, buscar uma
definição relativamente consensual do que é modernidade (Berman, 1986)
e suas consequências (Giddens, 1991), bem como fazer um recorte
histórico das condições que ensejaram no surgimento da cidade moderna
(Mumford, 1965).
Segundo Marshall Berman, “[...] o pensamento atual sobre a modernidade
se divide em dois compartimentos distintos, hermeticamente lacrados um
em relação ao outro: ‘modernização’ em economia e política, ‘modernismo’
em arte, cultura e sensibilidade” (BERMAN, 1986, p. 87). Assim, a “moder-
nidade” pode ser vista como um “estado”, o estágio de progresso a que a
humanidade chegou; ao passo que o “modernismo” está relacionado a um
pensamento moderno, a um “espírito” investigativo que busca o novo, à
proposta inovadora em si, apresentada pelos artistas. Em meio a isto, a
“modernização” diz respeito ao “processo” ligado às estruturas materiais,
ao aspecto político-econômico que viabiliza as realizações tecnológicas.

191
A modernidade, para Berman (1986), se desenvolveu ao longo de três
grandes fases, tendo o seu primeiro momento ainda no início do século
XVI, passando por uma segunda fase, que teve como marco as revoluções
industrial e francesa da segunda metade do século XVIII e, por fim, a sua
expansão em escala global a partir do século XX. Este desenvolvimento do
mundo ocidental europeu foi calcado no saber racional, que buscava o
progresso da humanidade por meio das conquistas científicas.
Entretanto, critica o autor que, no lugar da tão almejada emancipação
do homem, a modernidade trouxe

[...] uma vida de paradoxo e contradição [...] que promete aventura, poder,
alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor
– mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que
sabemos, tudo o que somos [...] é uma unidade paradoxal, uma unidade de
desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desinte-
gração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia.
(BERMAN, 1986, p. 13;15)

Esse quadro caótico que se instala no âmago da modernidade foi precisa


e oportunamente resumido pela professora e pesquisadora Débora Silva,
ao destacar que “[...] a crise da modernidade configurou-se em um
momento dramático e limítrofe da humanidade, uma vez que o homem
ocidental, perdendo seus referenciais absolutos, se debate na angústia
dilacerante da dúvida” (SILVA, 2011, p. 18).
Chamamos, ainda, a atenção para outro grande estudioso do tema,
Antony Giddens, para o qual “[...] ‘modernidade’ refere-se a estilo, costume
de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século
XVII e que ulteriormente se tornariam mais ou menos mundiais em sua
influência” (GIDDENS, 1991, p. 11). Tal “estilo”, “costume” e “organização
social” estavam pautados na confiança que o progresso da ciência poderia
oferecer para a evolução da humanidade. Entretanto, após a consolidação
da modernidade, com a revolução industrial da segunda metade do século
XVIII, e sua posterior expansão para o mundo a partir do século XX,
uma instabilidade se instala, levando-a a um estado de descontinuidade
(GIDDENS, 1991).

192
O ideal de modernidade foi marcado pela crença no progresso técnico-
científico; contudo, tal expectativa não se efetivou como o esperado, ou,
pelo menos, apresentou um efeito colateral que pôs em dúvida as promessas
de conferir mais liberdade ao homem. Essa crise do pensamento moderno
dá origem a uma crítica de suas instituições e mecanismos, um pensamento
sólido, seguro e uno dá lugar à fragmentação e às múltiplas interpretações
sobre o porvir. Desta forma, tem-se uma consolidação das desestabilizações
dos ideais de progresso com segurança.
A apoteose dos tempos foi capaz apenas de evidenciar uma contradição
atroz. Por um lado, o indivíduo se viu em uma organização social que lhe
prometia, por meio de um discurso e instrumentos, uma autonomia e
realização de seus sonhos; entretanto, por outro, o que se notou foi mais
que a impossibilidade de assim o fazer, uma vez que o ritmo estabelecido
por essa mesma modernidade, que evoca o egocentrismo desmedido, não
lhe permite usufruir dos lauréis advindos do suor de seu trabalho.
É neste contexto, de profundas mudanças em todas as áreas da sociedade,
que repousa (não tão tranquilamente) a obra, de Miguel Jorge, e recria o
espaço da cidade de Goiânia, no contexto do desastre radiológico com o
Césio-1371, no ano de 1987, promovendo, assim, uma reflexão crítica à
modernidade, mais especificamente, a goiana.
Porém, antes de analisarmos alguns detalhes dessa modernidade goiana,
pelas vias do romance de Miguel Jorge, vemos por relevante fazer uma
breve retrospectiva para identificar o que marca o nascimento da cidade
moderna, ainda na metade do século XVIII. Desta forma, torna-se mais fácil
percebermos o discurso de modernização que fundamentou o nascimento
da nova capital do estado de Goiás, na década de 1930 do século passado.
Ao final do ciclo do Feudalismo, o qual era fortemente baseado nas
relações servis, as cidades começam a se fortalecer, uma vez que as relações
mercantis substituíam a cultura de subsistência. Ocorrerá, conforme
observa o professor e pesquisador Ewerton de Freitas Ignácio, “[...] uma
transição para o sistema capitalista de produção, o qual se completaria com
o advento da Revolução Industrial” (IGNÁCIO, 2010, p. 27).
1. Metal alcalino que possui número atômico 55 e número de massa 132,9. Seu nome em
latim caesium significa céu azul. É dúctil, macio, muito reativo e à temperatura ambiente é
líquido. Tem cor branco prateado, é o metal mais pesado dos alcalinos e é fonte dos raios
gama. É altamente reativo em água fria e seus radioisótopos são muito perigosos para os
seres humanos” (Só Q – Portal de Química, 2018, online).

193
A Revolução de 1760 passa, então, a moldar o estilo de vida dos homens,
seus sonhos, seu modo de se organizar socialmente. Tal mudança fará com
que a cidade adquira um crescimento vertiginoso, desdobrando-se em
múltiplos espaços citadinos, uns mais centrais, outros mais periféricos; uns
ligados aos polos industriais, outros aos centros culturais, outros aos
domicílios etc.
O espaço urbano apareceria não apenas como uma organização social,
mas como um organismo faminto por crescimento e que se deixa controlar
apenas momentaneamente. Esse espaço, com a chegada desta modernidade,
torna-se cada vez mais efêmero, está sempre mudando para atender, em
última instância, às determinações do capital. Sua estrutura, suas manifes-
tações culturais, suas leis, seus discursos, suas pessoas, tudo passa a ser
moldado pelo ritmo dinâmico dos tempos modernos.
A cidade passa a ser tão provisória quanto a leitura que se pode fazer
dela. Ela muda dependendo do flâneur que a observa ou do transeunte que
a tenta percorrer, dependendo do local geográfico no qual se encontra o
observador e do espaço temporal no qual ele está. A cidade moderna,
herdada da Revolução Industrial, está em constante e acelerada metamorfose.
Ao estudar essas mudanças na Grã-Bretanha e aplicá-las a outros lugares
do mundo, Raymond Willians estimava, em 1973, que “a importância da
agricultura doméstica se tornou nula, com apenas 4% dos homens econo-
micamente ativos trabalhando na agricultura” (WILLIANS, 1989, p. 12).
Com uma população predominantemente urbana, com pouca dependência
da economia rural, os problemas sociais urbanos se multiplicam, bem como
os de infraestrutura, de convívio entre as classes, da relação patrão-
empregado.
Esta cidade moderna surge como um lugar que atrai absurdamente as
pessoas, promovendo um assombroso êxodo rural. Entretanto, uma vez,
no seu âmago, é como se estivessem em um labirinto rizomático. Estarão
condenados à perdição espacial. Renato Cordeiro Gomes destaca que a
partir da Revolução Industrial “[...] o fenômeno urbano parece ter
ultrapassado as fronteiras das ‘cidades’ e ter-se difundido pelo espaço
físico. O signo do progresso transforma a urbanização em movimento
centrífugo, gerando a metrópole que se dispersa” (GOMES, 1994, p. 64).

194
Ao destacar as diversas contradições das metrópoles, o historiador
americano Lewis Mumford alertava, já em 1961, para os perigos da explo-
ração desenfreada do urânio, o que começava a se tornar um fetiche de
poder para as nações. Sobre o enriquecimento desse material, para fins
bélicos, ou não, o autor advertia:

Entretanto, tão logo, se verifica a fissão, a radioatividade liberada permanecerá


durante toda a vida dos produtos, vida que às vezes se mede em muitos
séculos ou mesmo milênios: não pode ser alterada ou posta fora sem conta-
minar, em última análise, a área onde é amontoada, seja na estratosfera ou
no fundo do oceano. (MUMFORD, 1965, p. 612)

Portanto, a cidade moderna apresenta, na sua essência, a contradição.


Nela, coexistem os benefícios do progresso, do desenvolvimento científico
e também o seu efeito colateral: um rastro de destruição.
Outro problema que Mumford destaca, ao analisar A cidade na história,
é que passado o momento inicial em que os grupos humanos dominaram e
se estabeleceram na Mesopotâmia, no Egito e no vale do Indo, uma evolução
assustadora aconteceu, revelando um progresso indissociável de um retro-
cesso. O estudioso destaca que mediante trabalho disciplinado os grupos

[...] remodelaram a paisagem, construíram uma grande rede aquática de


comunicações e transportes e encheram os reservatórios urbanos de energia
humana que poderia ser empregada noutros empreendimentos coletivos.
Com o tempo, os governantes da cidade criaram um tecido interno de ordem
e justiça, que emprestava às populações heterogêneas das cidades, mediante
um esforço consciente, uma parte da estabilidade moral e da ajuda mútua
da aldeia [...]. Em contraste, porém, com esses aperfeiçoamentos, devemos
apontar as contribuições mais sombrias da civilização urbana: a guerra, a
escravidão, a exagerada especialização vocacional e, em muitos lugares, uma
persistente orientação para a morte. (MUMFORD, 1965, p. 719)

Esse aspecto duplo e contraditório da cidade é notado em todas as suas


etapas evolutivas desde as primeiras civilizações; contudo, na modernidade
pós-industrial, as discrepâncias são elevadas a níveis inimagináveis.
Goiânia não ficaria imune aos efeitos colaterais da modernidade.

195
A metrópole, que agrega como um imã pessoas de todas as partes
(ROLNIK, 1992), cada qual com seus hábitos culturais, linguísticos e
aspirações pessoais, que se chocam com as coletivas, tornando-se um corpo
físico e humano descomunal, é a nova Babel. O crescimento desse orga-
nismo não se dá de forma ordenada, mas de forma aberrante, que gera, na
medida em que cresce, problemas dos mais variados, a saber: violências,
desigualdades, injustiças, ofensas ambientais, busca de matrizes energéticas
nucleares etc.
A cidade moderna comporta a pluralidade de culturas representadas nos
mais diversos grupos que coexistem (des)harmoniosamente em suas ruas.
Ela é pungente e promissora, aponta sempre para o progresso científico e
tecnológico salvador; mas, o que, na prática, se vê é uma intensa desagregação
e os conflitos urbanos aumentando exponencialmente.
Para Renato Cordeiro Gomes, estudioso das representações das cidades
na Literatura, a metrópole moderna revela um “[...] espetáculo disforme da
cidade fragmentada, desse universo descontínuo marcado pela falta de
medida” (GOMES, 1994, p. 81).
Embora apresente forte herança de ruralidade, pode-se pensar e analisar
a cidade de Goiânia, considerando essas características bastante peculiares
de uma metrópole, como tal. E se assim ela se caracteriza, os problemas
mencionados acima igualmente nela aparecerão. No romance de Miguel
Jorge pode-se notar cada um deles e, por meio da análise que se faz, põe-se
em evidência o mais grave de sua recente história, o desastre radiológico
com o Césio-137, no ano de 1987.
Ainda a propósito da cidade moderna, pode-se evocar Ítalo Calvino
(1990), na sua criação de cidades imaginárias, mas que possuem uma
referencialidade com as cidades que conhecemos ao longo da historiografia.
A última cidade descrita por Marco Polo, narrador criado por Calvino em
seu clássico livro As cidades invisíveis, é Berenice, e pode representar com
bastante exatidão a metrópole de hoje. O narrador diz ao imperador mongol
Kublai Khan: “Pelo meu discurso, pode-se tirar a conclusão de que a
verdadeira Berenice é uma sucessão no tempo de cidades diferentes,
altamente justas e injustas” (CALVINO, 1990, p. 70). Assim são as cidades
modernas, plenas de promessas e sonhos, principalmente para os que vêm

196
de fora. Contudo, na medida em que se caminha por ela, que se conhece as
suas tortuosidades, seus labirintos, percebe-se que as frustrações e injustiças
serão maiores.
As Berenices modernas, por serem o centro de agregação de uma cole-
tividade que contraditoriamente é formada por indivíduos que buscam,
prioritariamente, a realização de seus anseios particulares, não poderiam
ser, senão, igualmente contraditórias em todos os seus aspectos. Sejam
configurações culturais, econômicas, científicas, espaciais, enfim, em todas
as suas manifestações coletivas, a semente do egoísmo prolifera.
A busca pelo moderno na realidade goiana iniciou-se com os anseios de
mudança da capital do estado de Goiás, que datam do século XVIII
(CHAUL, 2010). As mais variadas justificativas apareceram para se aban-
donar a Cidade de Goiás e construir uma nova capital, que pudesse
alavancar o desenvolvimento do estado, contudo tal intento foi efetivar-se
somente na década de 1930, com o idealismo do então governador de
Goiás, Pedro Ludovico Teixeira. A construção da nova capital, Goiânia,
deveu-se, fundamentalmente, ao sucesso da revolução de 1930, com seus
ideais de modernizar o país. Então, tendo o apoio de Getúlio Vargas,
Pedro Ludovico supera as forças opositoras locais e leva ao cabo esse intento.
Neste contexto, como observou Chaul, “[...] todas as dicotomias [...]
atraso e progresso, velho e novo, moderno e tradicional vão se tornar o
centro das discussões políticas do estado (CHAUL, 2010, p. 170).
Assim, a partir de um forte discurso progressista que visava colocar o
estado de Goiás na cena nacional e romper com o forte ranço ruralista
que, para os mudancistas, emperrava qualquer possibilidade de evolução,
era preciso, logo a criação de uma capital moderna, para que o moderno
pudesse florescer. Desse modo,

[...] Goiás, a velha capital, passou a significar na mente dos revolucionários


a inércia, o atraso secular confrontando com o ímpeto criador da revolução.
Significava a politicagem das oligarquias depostas frente à limpidez trans-
parente dos verdadeiros democratas [...] [via-se] a mudança como libertação
do passado e como criação de um mundo novo. (PALACIN, 1976, 22; 23)

Pedro Ludovico, como médico, político e intelectual, tornou-se o

197
arauto responsável por encarnar o discurso de modernidade que consubs-
tanciaria a criação de Goiânia. Um grande argumento de convencimento
foi “[...] o saber médico como discurso que dissecaria o velho Goiás e o
internaria para todo o sempre na UTI da história” (CHAUL, 2010, p. 209).
O desenvolvimento de Goiânia, nas décadas que se seguiram, superou
muitíssimo as projeções iniciais, na economia, no crescimento populacional
e, a partir da década de 1950, iniciou-se um processo de modernização da
capital. Desta forma, Goiânia deu seus primeiros e tímidos passos rumo à
modernidade efetiva.
Talvez o boom da industrialização, tão típico das grandes metrópoles
mas que nunca se efetivou aqui, tenha cooperado para que as forças
tradicionais, ligadas às oligarquias e tão criticadas por Pedro Ludovico nas
primeiras décadas do século passado, determinassem os rumos de Goiânia
e de Goiás, atravancando, assim, uma modernidade plena.
Parece que a previsão feita em 1935 pelo então deputado Oscar Campos
Júnior, de que “[...] com a mudança da Capital – (...) – iremos atualizar
Goiás, colocando-o na sua posição de Estado essencialmente agrícola e
pastoril” (PALACIN, 1976, p. 101), não apenas se consolidou na década
seguinte, como, na contemporaneidade, tem se tornado cada vez mais forte.
É essa cidade, que nasceu para ser pujante e galgar espaço como metró-
pole na cena nacional sem, contudo, perder o seu ar de cidade-jardim, mas
duramente ferida em setembro de 1987 pelo desastre com o Césio-137,
que é recriada na obra de Miguel Jorge. Por meio do enredo proposto, o
autor discute os efeitos colaterais da modernidade a que se chegou.
Ironicamente, é estabelecida uma forte crítica às insuficiências que a capital
do estado ainda apresenta diante dos desafios e tecnologias inevitavelmente
propostas pelos tempos modernos.
Sobre esse intento de fazer de Goiânia, desde o seu nascimento, uma
cidade-jardim, é oportuno que

[...] no Plano Diretor elaborado por Atílio Correia Lima, ainda em 1933,
havia uma grande preocupação em dotar a cidade de Goiânia de áreas ver-
des. Os espaços livres eram formados pelos parques do Botafogo, dos Buri-
tis e da Paineira; pelos Park-ways(parques que acompanhavam o curso dos
córregos), pelos jardins e ruas arborizadas. Assim, Goiânia seria uma cida-
de-jardim, a cidade com maior área verde por habitante do mundo. (OLI-
VEIRA, 2006, p. 241. Grifos do autor)

198
Contudo, a partir da década de 1950, período de forte desenvolvimento
da cidade de Goiânia, esse ideal fora deixado de lado. Apenas após o
desastre com o Césio-137 é que se tem tentado recuperar essa imagem
positiva e ecologicamente correta de Goiânia.
Como ressalta Oliveira, “[...] a partir dos anos 1990, a questão ambiental
tornou-se uma questão política que não podia mais ser deixada de lado ou
colocada numa posição periférica pelos administradores municipais”
(OLIVEIRA, 2006, p. 241).
Porém, por mais que se criem parques em Goiânia, por mais que se
jardinem as praças, a brasa do Césio-137 continua quente. Quente, por um
lado, porque as demandas judiciais interpostas pelas vítimas da luz azul
estão longe de serem finalizadas, mantendo, assim, suas feridas abertas na
memória, na alma; por outro lado, quente porque as produções historio-
gráficas e estéticas que voltam a esse tema não cessam de nascer, bem
como as reflexões críticas sobre elas.
A cidade de Goiânia entrou na modernidade, ainda que tardiamente.
De forma contraditória, o Césio-137 foi o cartão de boas-vindas aos seus
moradores. Tal evento se tornou um grande desafio às autoridades médicas
e políticas da época. É certo, como afirmou Berman, que a modernidade
oferece “[...] uma vida de paradoxo e contradição” (BERMAN, 1986, p. 13).
Ao analisar a cidade de Paris, moderna, da segunda metade de século XIX,
por meio da obra de Charles Baudelaire, Berman chama a tenção para a
efetivação desse “paradoxo e contradição” no coração da cidade que acaba
de nascer para a moderna.

Os cavalos e seus montadores, os veículos e seus condutores estão tentando


ao mesmo tempo regular sua própria marca e evitar o choque com os de-
mais. Se, em meio a isso tudo, eles forem ainda forçados a esquivar-se dos
pedestres que, a qualquer momento, podem arremessar-se na rua, seus mo-
vimentos se tornarão ainda mais incertos e, com isso, mais perigosos que
antes. (BERMAN, 1986, p. 158)

Essa imagem ambígua, não muito raramente, pode ser notada em Goiânia
quando se percorre avenidas como a 85, T-7, T-9 ou T-63. Por vezes, é
possível nos depararmos, enquanto aguardamos o semáforo, com uma
carroça com um pangaré desdentado adubando o asfalto e, logo adiante
um Camaro, ou ainda, uma Ferrari.

199
Em Goiânia os contrastes acentuam-se quando da persistência dos tra-
ços de arcaísmos, seja no modo de fazer política, de desenvolver a econo-
mia, de investir em pesquisas científicas ou propostas de desenvolvimento
de infraestrutura. Tais debilidades revelam que, embora Goiânia tenha
nascido e apresenta-se como uma cidade moderna, na prática é uma mo-
dernidade que ainda não foi consolidada.
Como uma cidade que se quer moderna, os vícios humanos comuns a
toda metrópole aparecerão na Goiânia que se vê em Pão cozido debaixo de
brasa. Essa problemática pode ser notada tanto nos espaços centrais da ci-
dade, com o caos que se instalada, quanto nas pessoas automatizadas que
por eles transitam.
Gomes, ao ler literariamente a cidade moderna, observou que “[...] a pólis
perversa gerada pela modernidade associa-se à fragmentação e à ruína da
sociabilidade [...]” e acrescenta que seus “[...] heróis são os inadaptados, os
marginais, os rejeitados que reagem à atrofia da experiência” (GOMES,
1994, p. 69). Nas ruas de Goiânia que figuram na narrativa de Miguel Jorge
pode-se perceber claramente esses traços na relação que é travada durante
todo o romance, entre a família de Felipa e os espaços urbanos. Este autor
vê a cidade moderna como local de “confusão, esfacelamento da comunidade,
não-comunicação, individualidade exacerbada, indiferença” (GOMES,
1994, p. 78). Todos esses aspectos negativos podem ser notados na cidade
de Goiânia que aparece na obra de Miguel Jorge, e aqueles que são os alvos
dessas mazelas que os levarão à morte são Felipa, João Bertolino, Nec-Nec
e a filha pequena e, em uma abrangência mais ampla, todos os excluídos na
modernidade que eles simbolizam.
A cidade é o lugar no qual se diz que tudo é possível; contudo, nem tudo
é possível, nem mesmo ao que crê. Como monumento magnânimo que é,
o espaço citadino necessita de ombros para suportá-lo, ombros tão fortes
como os de Atlas. Quanto mais moderna, mais pesada fica.
Ao analisar poeticamente o contexto de modernização acelerada no qual
se encontrava, na década de 1930, Carlos Drummond de Andrade (2001, p.
182) destacou que “teus ombros suportam o mundo”. Parafraseando-o,
pode-se dizer que ‘teus ombros suportam a cidade’. Isto é possível, pois o
mundo a que ele se refere é o moderno, capitalista e a cidade é o seu efeito

200
mais primoroso, o produto de sua evolução. Porém, vale lembrar que não
são todos os ombros que levam a carga pesada. O peso é inversamente
proporcional ao nível social a que se está vinculado.
Considerando que desde as primeiras cidades até às metrópoles atuais,
sua organização interna, sua arquitetura, suas instituições, enfim, o modo
como ela foi concebida estruturalmente, podem ser vistos como um
discurso, logo, múltiplas leituras podem ser feitas delas. Os projetos que
concebem essas estruturas urbanas são textos que guardam um certo
discurso sobre um certo modo de organização social. Nesse sentido é que
Raquel Rolnik (1992) se refere à cidade como “cidade-escrita”, seja pela
sua engenharia, seus textos historiográficos, literários etc. A partir dessas
possibilidades é que se faz, neste trabalho, uma leitura da modernidade
goiana, a partir do romance de Miguel Jorge.
A cidade tem figurado como tema recorrente nas narrativas ao longo
dos séculos. Os mais variados gêneros literários têm representado, por
meio da elaboração artística da linguagem, os espaços urbanos. De modo
que é possível notar a cidade sendo trabalhada literariamente, seja pelo seu
“cristal” ou pela sua “chama”, como metaforiza Ítalo Calvino (1990), para
referir-se, respectivamente, ao aspecto estrutural, geométrico, por um lado
e ao aspecto mais efêmero, o humano no espaço urbano, por outro.
Com a chegada do século XX, o Modernismo se consolida e a produção
literária terá como tema central as metrópoles. O desenvolvimento das
cidades, como já foi observado, modificou completamente a sua estrutura
e as relações interpessoais. As inovações artísticas acompanharam os
conflitos entre nações; as oposições entre o capitalismo e o comunismo; a
forte industrialização e a exploração dos trabalhadores; o acentuado êxodo
rural e o crescimento dos subúrbios e favelas, dentre tantos outros dramas
modernos.
Apenas para se fazer referência à leitura da cidade moderna, por meio
do texto literário, nos primórdios do movimento modernista no Brasil, é
oportuno notar o tom dessa abordagem quando se observa que, sem
mitificar o espaço metropolitano, fruto da vitória do capital industrial, mas
personificando-a, às vezes, para criticá-la melhor, Mario de Andrade canta,
em seus versos, a vibração da metrópole paulista. As profundas modifica-
ções arquitetônicas e os comportamentos de seus moradores aparecerão
em sua poesia.

201
Em sua obra Paulicéia desvairada, lançada em 1922, Andrade poetiza São
Paulo nos seus aspectos de cristal e de chama. No poema “Os cortejos”
o eu-lírico expressa:

Monotonias das minhas retinas...


Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
Todos os sempres das minhas visões! ‘Bom giorno, caro’.

Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia – a grande boca de mil dentes
(ANDRADE, 1987, p. 84)

A cidade é apresentada pela sua vibração própria de uma metrópole,


dinâmica e monótona ao mesmo tempo, uma vez que sua rotina, por mais
que seja frenética e brutal, massifica os sentimentos e condiciona os olhares
e as ações dos seus habitantes. Os cortejos de automóveis formam “a grande
boca de mil dentes”, pronta para devorar os que por esse espaço transitam.
Em “O domador”, o eu-lírico inicia descrevendo assim a cidade de
São Paulo:

Alturas da Avenida. Bonde 3.


Asfaltos. Vastos, altos repuxos de poeira
Sob o arlequinal do céu ouro-rosa-verde...
As sujidades implexas do urbanismo.
Filetis de marruelino. Calvícies de Pensilvânia.
(ANDRADE, 1987, p. 92)

Ou ainda, em “Noturno”, a noite de São Paulo sendo transpassada pelos


bondes: “Gingam os bondes como um fogo de artifício, /Sapateando nos
trilhos, /Cuspindo um orifício na treva cor de cal...” (ANDRADE, 1987, p. 95).
Apropriando-se das conquistas formais e temáticas feitas pelos modernistas
da geração de 1922, os autores das décadas seguintes vão construir enredos
que analisam, os efeitos do moderno, tanto no espaço rural quanto urbano.
Entretanto, a partir da década de 1960, o foco se voltará a analisar,

202
predominantemente, o homem perdido na cidade altamente modernizada.
Temas como a violência urbana, a fragmentação das relações humanas, a
dispersão dos sujeitos, o desenvolvimento tecnológico que distancia e
aproxima as pessoas na cidade, enfim, o caos da alta modernidade, serão
enredo de muitas obras literárias.
Ao analisar essas mudanças, Renato Gomes destaca que

[...] a partir dos anos 80, ganham espaço as narrativas urbanas que se afas-
tam do registro dos costumes, para demonstrar que a instabilidade urbana
determina nosso cotidiano: o presente turbulento por onde campeia a vio-
lência circunscreve a cidade enquanto morada incerta e inevitável. Morada
incerta que é um ‘agora’ precário a ser substituído por outro ‘agora’ igual-
mente precário [...]. (GOMES, 1994, p. 68)

Abarcando esse contexto urbano moderno, muitas produções literárias,


em Goiás, foram produzidas, destas, destacamos, aqui, o romance Pão cozido
debaixo de brasa.
Em 1967 Miguel Jorge lançava seu primeiro livro, Antes do túnel (contos),
paradoxalmente, esse início coincide com o fim do Grupo de Escritores
Novos – GEN, do qual foi cofundador e presidente por duas vezes, nesse
mesmo ano. Era o começo de uma carreira literária que lhe renderia
diversos prêmios e reconhecimento para muito além de Goiás. Certamente
os anos de participação no GEN e na vida cultural de Goiânia, de um modo
geral, serviram-lhe para afiar as palavras e regar o gérmen poético que já
instava em brotar, florescer e dar bons frutos, como de fato ocorreu.
Miguel Jorge, tornou-se grande referência para os estudos literários
goianos e em sua produção, nos mais variados gêneros literários, pode-se
perceber a efetivação da renovação tão conclamada por aquela nova geração
de escritores goianos da década de 1960. A escrita experimental deste
escritor goiano e o tom poético não se perdem ao longo de seus textos em
prosa. Pelo contrário, é comum se notar abundantes jogos sonoros, metáforas
e simbologias em nomes de personagens e lugares, que cooperam com a
elaboração de uma narrativa envolvente. Com um discurso mais fluido, o
autor lança mão, por exemplo, das inversões sintáticas, criação de neo-
logismos, monólogo interior, polifonia, paródia.

203
Manejando habilmente estes recursos literários, o autor parte de uma
reflexão sócio-política local que revela uma modernidade caótica. A dis-
cussão, à medida que os enredos se desenvolvem, pensa a essência do ser
humano, as relações interpessoais, uma busca de si e um questionamento
do sentido da existência humana, o fracasso das instituições modernas.
Ao refletir sobre a poética deste escritor, Carvalho afirma que a prosa
de Miguel Jorge é tipicamente contemporânea

[...] por afastar-se da linha de representação do mundo e engendrar-se nu-


ma linha de interrogação do mundo. A lógica comum é substituída pelo
fragmentário, pelo sem-sentido e pelo inverossímil, arrastando o leitor para
o mundo de pesadelos, onírico, em que predomina o jogo de uma visão pe-
culiar labiríntica. (CARVALHO, 2000, p. 63)

Pelo posicionamento que se percebe na produção de Miguel Jorge,


pode-se afirmar que não ocorre um mero engajamento de classe, mas sim
uma posição contra os mais variados tipos de abusos do poder no mundo
moderno, principalmente nas cidades metropolitanas. Uma de suas grandes
obras, que debate esse tema, é justamente Pão cozido debaixo de brasa.
Esta obra, em um de seus enredos, aborda o tema do já mencionado
desastre radiológico, sendo assim, convém uma brevíssima retrospectiva
para este contexto. Por negligência e excesso de burocratização, nem os
responsáveis pelo Instituto Goiano de Radioterapia – IGR, nem o devido
órgão público de fiscalização removeram dos escombros do IGR a bomba
altamente radioativa de Césio-137. Tal omissão se desdobraria no referido
desastre radiológico e marcaria profundamente a cidade de Goiânia,
deixando uma nuvem de “poeira azulada” sobre a sua história.
Dos registros historiográficos sabe-se que no segundo domingo de
fevereiro de 1987 a cidade de Goiânia tornou-se cenário de um aterrador
desastre radiológico com o Césio-137. Nesta data, Wagner Mota Pereira e
Roberto Santos Alves, moradores do centro da cidade e amigos desde a
infância, quando recolhiam material reciclável, tiveram acesso a uma
cápsula, em um centro de radioterapia desativado, contendo o pó radioativo.
Após levarem o material em um carrinho de mão para a casa de Roberto,
romperam, com o uso de algumas ferramentas, o lacre de proteção e

204
libertaram o pó azul, que a partir daquele momento, faria muitas vítimas,
dentre estas, quatro morreram já no mês seguinte. Nos dias que se segui-
ram, familiares dos jovens seriam contaminados e figurariam como vítimas
daquele que se tornaria um famigerado desastre radiológico, conhecido
internacionalmente.
Pão cozido debaixo de brasa é formado por dois núcleos narrativos inde-
pendentes, que apresentam como ponto de convergência o espaço urbano
da cidade de Goiânia e a abordagem de dramas fundamentais da humanidade.
Mesmo identificando o espaço escolhido pelo autor para o desenvolvi-
mento do enredo, o tratamento conferido a ele é diferente nas duas narrativas.
Se, por um lado, no primeiro núcleo a cidade de Goiânia é apenas mais um
elemento a figurar entre os que estruturam a narrativa e no qual o dia
predomina; por outro, na segunda narrativa, este mesmo espaço, onde a
noite é soberana e cria uma atmosfera de perigo constante, adquire vulto
de personagem e transborda a sua referencialidade local para se tornar
universal.
As duas narrativas que formam o romance se desenvolvem de forma
mesclada. Os capítulos não seguem uma ordem linear e a descontinuidade
é que se torna a regra nesta obra. A análise que aqui se propõe, repousará
apenas no segundo núcleo narrativo, que aborda o desastre com o Césio-
137, em Goiânia.
No segundo núcleo do romance em questão, Felipa, João Bertolino e
Nec-Nec, representando os desfavorecidos da cidade metropolitana,
carregam, perambulando pelas ruas centrais de Goiânia, todo o peso de
uma cidade que se pretende moderna. Suportam o peso da escassez de
alimentos, de assistência médica, de moradia, de acolhimento, de dignidade.
Nessa condição de extrema inferioridade social, por certo que o peso os
escravizaria. É o que se percebe na narrativa, restando, assim, almejarem
um outro plano que lhes fosse mais leve – o plano transcendente – que se
dá, ironicamente, por meio da luz de Césio-137. A morte lhes será libertação
da matéria pesada. É a partir dessa ótica mais crítica que Miguel Jorge tece
sua narrativa e constrói suas personagens e células de conflito.

205
Já no primeiro capítulo do segundo núcleo narrativo, intitulado “E foi
assim que Felipa e João Bertolino olharam a cidade”, pode-se ter um
exemplo da caracterização de Goiânia como cidade modernizante e,
também, daqueles que transitam por esse espaço confuso, perigoso e
excludente. O casal de catadores de sucatas vai empreender uma busca
dupla: por parte de Felipa, pela libertação, pela transcendência; e por parte
e João Bertolino, pelo pão cotidiano.
O narrador apresenta esse lugar da seguinte forma:

Fazem de conta que a cidade é como um campo de ferro, por onde eles
caminham, e falam e gritam, à vontade, abrindo trieiros pelos quintais,
charcos, vales abandonados [...] A cidade é um ofício e tem muito a se
aprender com ela. (JORGE, 1997, p. 34-35)

Pela caracterização inicial, negativa, da cidade de Goiânia, vê-se logo


que a travessia dessas personagens em direção ao novo milênio não será
fácil. Isto é, se eles conseguirem efetuá-la. À medida que a cidade vai sendo
descrita, as personagens vão sendo apresentadas também. Para o leitor, o
conhecimento do que pensam e sentem Felipa, João Bertolino e Nec-Nec
ocorre conjuntamente com as descrições da cidade de Goiânia. Assim, o
lugar social que eles ocupam, como se veem e veem a cidade e os outros, o
que a cidade lhes oferece, tudo isso se revela a partir desse relacionamento.
Essas e outras informações mostram, por um lado, como o autor do
romance buscou representar Goiânia no contexto da catástrofe radiológica
e, por outro, as personagens excluídas neste mesmo contexto.
Uma segunda imagem da cidade de Goiânia é dada pelo narrador, ao
final do primeiro capítulo, a qual contrasta com a mencionada anterior-
mente pela poeticidade.

Naquele momento, a cidade era sincera. Erguia-se inclinada pelos raios do


sol, ainda branca nos olhos, ainda cinza nos pés [...]. Agora, mais ligeiras [as
horas], puxando o sol por sobre os varais de roupas, os edifícios, as casas, os
casais. A cidade arregalava os olhos mal dormidos e via as pessoas como se
fossem outras. Os rostos ainda amassados pelo travesseiro. A cidade tinha
pressa e se movia. Rodava. Sacudia os corpos de alguns que, ainda bêbados,

206
monologavam. Acesa, a cidade pesava mais. E ficavam, soltas nos ares,
misturas de línguas, de gestos, de cortes, de mortes. Havia tempo, agora,
para se ver melhor os campos, os arredores. Ver e não serem vistos. No
entanto, João Bertolino dormia ainda, feito um enorme e amarelo pássaro.
(JORGE, 1997, p. 41)

Miguel Jorge não apenas constrói as descrições dos lugares e das ações,
mas confere à sua prosa uma aura poética que coopera com a beleza da
obra e a distancia de um romance histórico convencional. Ainda que a
paisagem detalhada não seja a de um locus amenus, mas sim caótica e
perigosa como é o coração de uma metrópole, a beleza lírica que a estetiza
se faz presente.
Essa cidade de Goiânia que “arregalava os olhos mal dormidos” será
uma antagonista, sempre um perigo, para Felipa, João Bertolino e Nec-Nec.
Não poderia ser diferente, uma vez que os efeitos colaterais da moderni-
dade são mais latentes nas cidades. Por isso mesmo, a urbanista Raquel
Rolnik observa que “[...] a violência urbana (dos crimes e mortes, dos aci-
dentes de carro, da destruição da natureza, da precariedade da habitação,
das explosões de revolta) é a expressão viva do caráter contraditório da
cidade industrial” (ROLNIK, 1992, p 50). Esta é a Goiânia na obra.
A cidade de Goiânia é caracterizada aos poucos, na medida em que o
casal percorre suas ruas. E em meio a essa cidade dinâmica e perigosa, “[...]
como se fossem sombras vindas de outro planeta, sentiram-se atravessados
por olhares interrogativos” (JORGE, 1997, p. 54). Estas menções deixam
claro o lugar que eles ocupam na sociedade, onde o que eles produzem e o
que consomem não são o suficiente para dar-lhes outro lugar senão à margem.
Assim, buscando a sobrevivência, “[...] João Bertolino caminhava. Felipa
caminhava. Eram agora duas figuras mudas. Além dos dois, uma praça.
Uma figura de bronze. Quem ela estava ali representando?” (JORGE,
1997, p. 55). Embora a sequência não responda à pergunta, a figura de
bronze faz uma referência ao monumento “O Anhanguera”, que se localiza
no centro da cidade de Goiânia, no cruzamento das avenidas Goiás e
Anhanguera. As duas figuras mudas socialmente juntam-se, neste momento,
à estátua muda, porém, imponente, do símbolo dos “desbravadores” do
Estado de Goiás, do qual Goiânia é a capital.

207
Em meio aos elementos de referencialidade à cidade de Goiânia, ela é
caracterizada como cidade do medo. Isto se deve a duas razões indisso-
ciáveis: o fato de ser uma nova cidade moderna, uma metrópole que por si
só já espalha o medo sobre as pessoas, seja pelo barulho, pelo concreto,
pela agitação, pelas ambições e explorações dos semelhantes; e, também,
pelo acontecimento decorrente da própria modernidade, a catástrofe com
o Césio-137.
Esta atmosfera é assim apresentada pelo narrador onisciente, ao revelar
o interior de Felipa, olhando para a noite goiana:

Sentia o cheiro da cidade. O cheiro daquelas pessoas que se agitavam.


Havia gente demais naquelas ruas. Grupos se ajuntavam por nada. Por tudo.
Para se aquecerem. Para se protegerem do medo que vinha de todas as partes:
da sirene da polícia, dos desvarios das cabeças, da miséria, originadora dos
males. Medo deles mesmos. (JORGE, 1997, p. 66)

A imagem criada pelo autor transpõe os limites da cidade de Goiânia,


uma vez que, como já observamos, na obra de Miguel Jorge ela adquire
conotação universal. Assim sendo, a cidade do medo ou da violência é
qualquer metrópole em qualquer lugar do mundo.
É ilustrativo evocar novamente o poeta Carlos Drummond de Andrade,
pelo quadro que ele cria em seu poema “Congresso internacional do medo”:

Provisoriamente não cantaremos o amor,


que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas
(ANDRADE, 2001, p. 159).

208
Drummond, ao poetizar a cidade moderna, cria uma atmosfera que se
alinha com a que se nota na obra, igualmente poética, de Miguel Jorge,
evidenciando que paralelamente ao progresso proposto pela cidade industrial,
tem-se a marca do medo e da violência, nas suas mais variadas formas.
O título do poema dá o tom da universalização dos problemas descritos.
O poeta não se refere tão somente ao Rio de Janeiro ou à São Paulo dos
anos de 1930 e 1940, mas a qualquer outra cidade adentrando a moderni-
dade. Nesse aspecto, há mais uma aproximação com a abordagem feita
pelo romance em questão e seu caráter universalizante.
A primeira menção ao lugar onde a luz azul será encontrada ocorre
logo após essa caracterização da cidade como um lugar de medo. Depois
de vagarem pela noite à procura de sucatas, como normalmente fazem,
Felipa e João Bertolino chegam a um lugar cuja descrição ajuda a identificar
que se trata do local no qual a cápsula contendo o Césio-137 fora encontrada
pelos amigos Wagner e Roberto, na vida real. Ao chegar, João Bertolino
pergunta à esposa:

– O que mais você vê, Felipa?


– Só essa luz, saída do meio dos escombros.
– Que lugar é esse, mulher?
– Um lugar santo.
– Um lugar santo, Felipa?
– Acho que sim. Vejo uma capelinha próxima da casa demolida,
feito um braço da cruz de Cristo, no espaço vazio.
– E quem fez essa demolição, Felipa?
– Os mandantes, João Bertolino.
– Os mandantes, Felipa?
– Eles mesmos.
– Tesconjuro!
(JORGE, 1997, p. 70)

O lugar a que chegam os catadores do centro da cidade são os escombros


da Santa Casa de Misericórdia que, pelo nome que tem, por si já revela
grande ironia, explorada habilmente pelo autor, uma vez que a narrativa
trata de um drama que revela uma tragédia com muitas vítimas. A ironia se

209
completa com o fato de no mesmo espaço haver uma capela, e, no entanto,
nem mesmo a “proteção divina” fora capaz de evitar o encontro dos mise-
ráveis com a cápsula mortal de Césio-137. Além disto, nota-se mais uma
vez a crítica feita às autoridades empresariais e políticas, que autorizaram a
demolição e se mostraram negligentes com os materiais que lá ficaram.
Toda essa problemática, de certa forma, é reflexo da acentuada desigual-
dade socioeconômica que é imposta àquelas figuras excluídas. Para se ter
uma crítica mais firme dessa realidade, o narrador, em muitos momentos,
figura como alter ego de Miguel Jorge e explica que

[...] a cidade se dividia em três ou quatro. Numa das faces, podia-se ver os
reflexos dourados, na outra, a procura do rumo da vida e, numa terceira
ainda, aqueles que já estavam caídos, estirados sobre as águas fedorentas
dos esgotos, por onde os ratos se adestravam em seus movimentos curtos e
rápidos. (JORGE, 1997, p. 72)

Pela divisão apresentada da cidade identificamos onde cada personagem


está situada. E a tríade da narrativa, que representa as vítimas não somente
da radiação, mas de toda uma política moderna e desagregadora, está locali-
zada na terceira parte, aquela reservada para os ratos, junto aos esgotos.
Por conta dessa realidade na cidade moderna é que Rolnik destaca a
inevitável consequência da desigualdade, a violência.

[...] a heterogeneidade e a segregação da cidade fazem do território popular


uma região explosiva: a história da cidade industrial é marcada pela violência.
A violência está antes de mais nada na espoliação urbana [...]. Está também
na criminalidade, expressão clara da cidade dividida; na tensão permanente
em que vivemos na cidade[...]. (ROLNIK, 1992, p. 49)

Para mostrar a cidade de Goiânia moderna como se propõe, o autor a


personifica como uma devoradora de pessoas, um lugar de acolhimento e
exclusão, de soluções e problemas: “A cidade comia as pessoas e era comida
por elas. Algumas mijavam nela com desprezo” (JORGE, 1997, p. 73).
Esse comportamento da cidade e das pessoas está diretamente ligado às
demandas que a sociedade de consumo apresenta.

210
Nessa perspectiva, é conveniente evocarmos novamente o que observou
Mumford, sobre a lógica de funcionamento das metrópoles. Segundo ele,

[...] uma economia em expansão, dedicada aos lucros, não à satisfação das
necessidades da vida, cria necessariamente uma nova imagem da cidade, a
de uma goela perpétua e cada vez mais larga, consumindo o resultado de
uma produção industrial e agrícola em expansão, em resposta às pressões da
doutrinação e da propaganda continuada. (MUMFORD, 1965, p. 691)

Como destacou Mario de Andrade ao descrever a metrópole paulista:


“[...] a grande boca de mil dentes [...]” (ANDRADE, 1987, p. 84).
Tudo, nesse espaço metropolitano, torna-se mercadoria e pode ser nego-
ciado, mesmo o lixo que ajuda a família de Felipa a sobreviver. Inclusive os
corpos, nas noites frias e perigosas da cidade, são negociados para satisfazer
à luxúria humana:

As Evas da noite falavam em voz alta, enfeitavam-se, generosas, oferecendo-


se para as bacanais da vida. Damas seriam, se pudessem. De brincos, batom,
rouge e um pedaço de pano atado em volta do pescoço, como a fortalecer-
lhes a coragem para um improvisado desfile [...] Era o que se tinha: o corpo,
a tosse, o cigarro, a luxúria, o jeito de chamar a atenção para suas vidas.
O retrato vivo de suas misérias (JORGE, 1997, p. 73).

Esta imagem dura criada de Goiânia, no romance, coopera para se


estabelecer uma correspondência de como se mostrava sua modernidade
contraditória no contexto da catástrofe com o Césio-137, no ano de 1987.
Em sua jornada de recriação e leitura crítica, Miguel Jorge vai tecendo
sua análise sociológica da realidade goiana, afligida pelo Césio-137, ao
mesmo tempo em que vai desnudando as bases seguras dos discursos
progressistas da modernidade.
A propósito dos avanços e retrocessos dos tempos modernos, Oliveira
afirma que

[...] a modernidade trouxe a possibilidade de minimizar as principais fontes


de risco das sociedades pré-modernas [...], mas o que aconteceu foi a
ampliação do risco, com o surgimento de novas ameaças: acidentes tecnoló-
gicos, colapso ambiental [desastres radiológicos, por exemplo] e indus-
trialização da guerra. (OLIVEIRA, 2006, p. 102)

211
Este mesmo autor, em outra ocasião, volta a ponderar sobre os ecos
negativos da modernidade, gerando eventos catastróficos dos mais variados
tipos. Destaca que

[...] catástrofe [como esta, com o Césio-137] é o antípoda da ideologia do


progresso, o avesso da modernidade, a materialização do caos, a prova do
fracasso em controlar as forças do cosmos ou de criar instituições sociais
adequadas [...] [ela é capaz de mostrar] [...] o errado, o caótico, o inesperado
e o indesejado do progresso civilizador. (OLIVEIRA, 2008, p. 16)

Miguel Jorge analisa, em Pão cozido debaixo de brasa, exatamente essa


“materialização do caos”, consubstancializada no desastre radiológico com
o Césio-137. Assim, o autor estetiza literariamente estes tempos agônicos
da contemporaneidade. Este procedimento de recriar criticamente o
evento é extremamente pertinente, uma vez que ainda hoje, trinta e um
anos após o fato e vinte e um da publicação de Pão cozido debaixo de brasa, a
brasa ainda não apagou. Pelo contrário, os ventos não favoráveis foram
fortes sobre ela, deixando-a mais viva.
Chamando a atenção para a dimensão dos efeitos do desastre radiológico
em Goiânia, Oliveira afirma que

[...] o acidente com o Césio-137 foi a maior catástrofe da história de Goiás,


não somente pelo número de mortos, pelo número de vítimas e pelos
prejuízos econômicos, mas principalmente porque foi uma catástrofe
conceitual. Ela abalou a crença no progresso e na técnica moderna e jogou
Goiás nos braços da pós-modernidade. Goiânia foi construída sob a promessa
de colocar o estado no caminho do progresso. Em vez disso, a tecnologia
moderna – quase idolatrada por alguns – contaminou a cidade com um
preconceito inimaginável. (OLIVEIRA, 2006, p. 238. Grifo do autor)

É este evento, que marcou a modernidade goiana, que encontra trans-


figurado em Pão cozido debaixo de brasa. Ao abordar o desastre com o Césio-
137, o autor produz um trabalho de grande valor estético e altamente
político. Pão cozido debaixo de brasa está longe de ser uma narrativa alienada
ou panfletária, com jogos simbólicos que não dialogam com a realidade
político-social da época; pelo contrário, o mundo moderno que aparece na
obra é objeto de questionamentos e denúncias contundentes.

212
Quanto ao posicionamento ideológico nas produções modernas, como
na obra de Miguel Jorge, Hutcheon afirma que estas “[...] acabam sendo
políticas e engajadas, porque não se disfarçam, nem podem se disfarçar,
como formas de análise neutra” [...] (HUTCHEON, 1991, p. 81).
Embora Miguel Jorge não se considere um escritor engajado, Pão cozido
debaixo de brasa revela um posicionamento político muito consciente de seu
autor. Trata-se de uma abordagem contundente dos problemas sociais e
dos mais variados dramas humanos.
Em entrevista concedida à pesquisadora Luisa Alves de Mendonça o
escritor fala de seu posicionamento ideológico ao fazer Literatura:

– Você considera-se um escritor engajado?


– Não me considero um escritor engajado. A minha missão como escritor
se destina a um ser político que mostra as mazelas do ser humano, a escravidão, a
exploração, pois, minha Literatura está voltada para o ser humano, o interior
do ser é o que me interessa, o sentimento humano. E depois, todo bom
escritor é um bom observador. Ele vê mais, vai aonde as outras pessoas não
conseguem ir. (MENDONÇA, 2010, p. 122. Grifos nossos)

E, assim, Miguel Jorge levanta temas comuns a todos os homens, como:


violência urbana, injustiça, autoritarismo, desigualdade social, modernidade,
capitalismo, e tantos outros. Enfim, para além dos limites goianos, o autor
propõe uma abordagem universal.
Segundo Carvalho, o escritor Miguel Jorge, “[...] seguindo a linha da
denúncia social, do homem aprisionado e esmagado pelo progresso, trabalha
suas narrativas como uma intensa interrogação do mundo, fugindo à lógica
convencional de narrar e buscando uma estética do fragmentário [...]”
(CARVALHO, 2000, p. 21. Grifos nossos).
A abordagem crítica do evento se dá, principalmente, por meio das três
personagens centrais da obra, que são uma espécie de catalizador da reflexão
político-social que o autor propõe. Embora sejam figuras invisíveis na
sociedade, como duramente o narrador as apresenta: “No chão, as sombras
dos três se misturavam. Três figuras conhecedoras dos caminhos, dos cães,
dos meninos de rua, dos esgotos, dos ratos. Nada, nada mais do que isso”
(JORGE, 1997, p. 93), paradoxalmente, recebem o direito de se expressar
e, assim, vão convidando o leitor para essa rica análise das problemáticas que
afligem os homens na modernidade, principalmente os menos favorecidos.

213
Conforme a crítica literária Moema de C. e S. Olival,

[...] a tríade João Bertolino, Felipa e Nec-Nec simbolizam as forças negras


dos excluídos, dos que, eremitas do destino, se atiram nas esteiras rolantes
da vida e de seus percalços. São catadores de papel – nas pegadas da leitura
histórica, com viés também político-social –, participantes do primeiro
desastre nuclear ocorrido em Goiânia e no Brasil. (OLIVAL, 2009, p. 121)

Assim, as protagonistas, bem ao contrário do herói no romance tradicional,


são figuras, como já se observou, deslocadas, marginalizadas, que, no entanto,
são o canal, por meio do qual toda a análise crítica é extravasada. Como já
demonstrado, principalmente por meio dos diálogos entre Felipa e João
Bertolino, o evento é abordado com certo tom de denúncia, apontando
para as autoridades, os poderosos como responsáveis pelo desastre radio-
lógico em Goiânia.
Portanto, em Pão cozido debaixo de brasa Miguel Jorge coloca em
discussão o autoritarismo, a desigualdade social, a incompetência e hipo-
crisia das figuras políticas, os efeitos colaterais do capitalismo, a exclusão
na cidade moderna.
Para apresentar tal reflexão, a narrativa mostra, mais destacadamente,
uma personagem excluída que promove uma travessia pelas ruas de Goiânia,
mas em direção a uma esperança que se encontra em um plano transcen-
dente. A esperança de transformação que Felipa demonstra, não em um
plano terreno, mas no celestial, revela mais uma vez que a análise é realista
e irônica, o que é uma constante em toda a obra.
Não há espaço, na cidade moderna, para finais felizes em meio a um
contexto tão atroz. A caminhada da tríade protagonista, será marcada por
muitos sofrimentos, sejam vividos por ela, nos desafios diários pelas ruas
da metrópole ou fruto dos momentos em que toma consciência de sua
realidade, inferiormente irreversível.
Por certo, como já se observou, o romance de Miguel Jorge não põe em
discussão apenas a modernidade contraditória de Goiás, mas sua abordagem
questiona o mundo moderno, sem, contudo, se atrever a apresentar
respostas seguras para o porvir. O final aberto da obra indica que a jornada
simplesmente continua e segue tão incerta quanto iniciou. Entretanto, se
alguma indicação pode ser extraída, é a de que a fragmentação das insti-
tuições e de todas as relações se intensificarão.

214
REFERÊNCIAS
ANDRADE, C. D. de. Antologia poética. 48. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001
ANDRADE, M. de. Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia: São Paulo: Ed. da
USP, 1987.
BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad.
Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Loriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Trad. D. Mainard. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
CARVALHO, M. L. F. L. de. Tradição e modernidade na prosa de Miguel Jorge.
Goiânia: Ed. UFG, 2000.
CHAUL, N. F. Caminhos de Goiás: da construção da decadência aos limites da modernidade.
3. ed. Goiânia: Editora da UFG, 2010.
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Trad. Raul Flker. São Paulo: Ed.
Unesp, 1991.
GOMES, R. C. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994.
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: História, teoria, ficção. Trad. Ricardo
Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
IGNÁCIO, Ewerton de F. Do campo abandonado para a cidade suportada: campo e
cidade na Literatura Brasileira. Anápolis: UEG, 2010.
JORGE, M. Pão cozido debaixo da brasa. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2004.
MENDONÇA, L. A. de. Ficção e História em Pão cozido debaixo de brasa de Miguel
Jorge. 2011. 100 f. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Pontifícia Universida-
de Católica de Goiás-PUC-GO, 2011.
MUMFORD, F. A cidade na História: suas origens, suas transformações, suas
perspectivas.Trad. Neil R. da Silva. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1965.
OLIVAL, M. de C. e S. O espaço da crítica III: desdobramentos.Goiânia: Editora da
UFG, 2009.
OLIVEIRA, E. C. de. As representações do medo e das catástrofes em goiás. Tese (2006).
Disponível em: <http://www. repositorio.unb.br/bitstream/10482/1976/1/elie-
zer_oliveira.pdf> Acesso em: 03de jul. de 2018.
_________. Estética da catástrofe: cultura e sensibilidades. Goiânia: UCG, 2008.
PALACIN, L. Fundação de Goiânia e desenvolvimento de Goiás. Goiânia: Oriente, 1976.
ROLNIK, R. O que é a cidade? São Paulo: Editora Nova cultura Ltda, 1992.
SILVA, D. C. S. Poéticas intermédia: ensaios de poesia contemporânea, artes e mídias.
Goiânia: PUC-GO: Kelps, 2011.
WILLIANS, R. O campo e a cidade: na História e na Literatura. Trad. Paulo Britto.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

215
Parte 5
Aquém e além da modernidade
Gilka Bessa, uma poeta mulher na periferia
do feminismo
Tarsilla Couto de Brito

Apresentação

O presente estudo filia-se ao projeto Apresentação da poesia goiana:


de 1948 aos dias atuais conduzido pela Rede Goiana de Pesquisa em Leitura
e Ensino de Poesia, com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa de Goiás
– FAPEG. A Rede reúne professores e alunos pesquisadores da UFG, do
IFG e da UEG. Esses pesquisadores estão inscritos no diretório de Pes-
quisa do CNPq Leitura e Literatura; e em linhas de pesquisa como Poéti-
cas da Modernidade e Estudos Culturais, Comparativismo e Tradução. O
projeto tem como objetivo maior investigar a poesia goiana produzida de
1948 aos dias atuais.
O campo de pesquisa abrange estudos bibliográficos do objeto e do
corpus a ser investigado.O levantamento considera poetas que continuaram
a publicar depois de 1948, marco da pesquisa, e poetas que iniciaram a
partir dessa data até 2015. Dentro desse recorte temporal e geográfico, a
REDE tem trabalhado com temas como o “mito do atraso”, “tradição e
modernidade, “local e nacional”, “variedade da produção” (pela natureza
da produção poética) e “diversidade” (pela natureza da fonte autoral). Mais
recentemente, o grupo adotou os pressupostos de "sistema literário"
(Antonio Candido) e "campo literário" (Pierre Bourdieu) com vistas a
ampliar e dessencializar a discussão sobre a poesia goiana.

219
O tempo-linguagem das Penélopes

De modo particular, o presente ensaio tem como objeto o primeiro livro


da poeta mulher Gilka Bessa. Trata-se de um conjunto de 39 poemas
presentes no livro Feminino Plural (1978) escrito juntamente com Getulina
Pimentel e Zulma Bessa. Dez anos depois, em 1987, Gilka lançou seu
segundo livro, um experimento que reuniu seus poemas à arte fotográfica
de Rosary Esteves com o título de Câmara Lúcida. Depois de uma estreia
promissora, a autora deixou de publicar.
É instigante, devo mencionar, o fato de não encontrarmos nos dois livros
publicados a data de nascimento da autora. A bem da verdade, hoje parece
mesmo impossível encontrar rastos dessa poeta, a não ser que se instaure
uma espécie de investigação da memória de seus contemporâneos.
O tom claramente confessional, no entanto, nos permite levantar algumas
hipóteses. Há, por exemplo, quatro poemas com títulos que remetem
indiretamente à data de nascimento, dentre os quais: “Aniversário” (p.16),
“Quarenta” (p. 29), “Quarenta e um” (p. 40) e “Quarenta e dois” (p.44).
Tendo o livro em foco ganhado a bolsa de publicações Hugo de Carvalho
Ramos em 1978, e o último poema indicando a idade de 42 anos, podemos
imaginar que nossa autora nasceu em algum momento da primeira metade
da década de 30.
O recorte desses poemas de aniversário oferece ainda alguns indícios do
modo como a autora percebe tanto a passagem do tempo para si mesma
quanto a inscrição de si no tempo político e social. Em “Aniversário” lê-se:

Sinto que envelheço.


Mais por dentro que por fora.
A dívida que tenho com os outros e comigo
envelhece também.
Por que colocar assim, impensadamente,
a juventude numa causa inexistente?
Por que usar o tempo
dedicado a ideais abortados?
Agora sou milionário do fastio,
sem me dar ao luxo de uma ilusão.

220
Sem vocação e sem credo.
Sem lugar e sem sonhos.
Sem planos e sem futuro.
Sem aspiração e sem utilidade.
Sem vícios ou dependências.
Sem prazer e sem dor.
Cumprindo meu destino biológico
sem nenhuma transcendência.
Por que este desgosto tão antigo?
Esta amargura de condenada à vida?
O que houve na minha obscura e pacata história?
Faltaram heróis? Sobraram traidores e vilões?
Nada foi duradouro ou bom.
Sempre amargo.
Às vezes amargo-doce.
Nunca doce-doce.
(1978, p. 16)

A pergunta “Por que colocar assim, impensadamente,/ A juventude numa


causa inexistente?” é completada com outros dois versos no mesmo poema:
“Cumprindo meu destino biológico/ Sem nenhuma transcendência”.
Interessante pensar que durante os anos 70, em um ambiente cultural
pouco desenvolvido como a cidade de Goiânia, o feminismo terminava
para algumas mulheres como uma causa juvenil que permaneceria no
passado, como algo ultrapassado, antes mesmo de se projetar.
No último poema desse primeiro recorte, porém, percebe-se que o
ideal ficou no passado, mas as consequências de sua existência, ainda que
temporária, deixou algumas marcas. Vejam o poema “Quarenta e dois”:

Enquanto durmo,
sinto que me descuido,
me desarmo e me desorganizo,
e acordo sempre amedrontada.
O café com leite da manhã
tem o gosto da mesmice.
O corpo endurecido em desalinho
responde instintivamente.

221
Os carros buzinam,
os relógios de ponto continuam inexoráveis
e os telefones tocam.
Aos poucos, me consolo,
me acalento e me cuido.
Tomo contato com os outros
e me acostumo à vida.
(1978, p. 44)

Essa sujeita lírica, depois de ter investido sua força jovem em ideias que
tiveram que ser deixadas para trás, reconstruiu-se como uma Penélope.
Destece a si mesma de noite enquanto dorme, para ganhar o tempo que a
juventude já não permite mais. Durante o dia, seguindo a mesmice do café
com leite, tece o cotidiano ou deixa tecer-se por ele, acostuma-se com a vida.
Há muito a imagem de Penélope transformou-se em metáfora para
autoria feminina1. Sempre associada à ideia da esposa “ideal”, aparece
adjetivada como virtuosa e astuta – pois compartilha da arethé de seu
Odisseu. Essa postura, apesar de ter sido tratada de forma crítica pelas
estudiosas dos problemas de gênero, oferece dois aspectos para uma reflexão
sobre autoria feminina.
O primeiro está diretamente ligado à experiência do tempo e à ausência
de algo ou alguém, à indefinição e à imobilidade. O ato de aguardar ganha
gradientes com ausência de sentido que será construído com a poesia, a
espera não se reduz assim à inércia ou obrigação, mas metamorfoseia-se
em reflexão e escolhas. Um exemplo disso aparece no conto “Colheita”
presente no livro Sala de armas (1973) de Nélida Piñon, em que a perso-
nagem feminina, rompendo com o arquétipo da espera e da recepção
passiva, toma para si o direito de narrar, fazendo com que seu “outro”
viajante ouça a tessitura da espera:

E ela, não deixando ele contar o que fora o registro de sua vida, ia substi-
tuindo com palavras dela então o que ele havia sim vivido. E de tal modo
como se ela é que houvesse abandonado a aldeia, feito campanhas abolicio-
nistas, inaugurado pontes, vencido domínios marítimos, conhecido mulhe-
res e homens, e entre eles se perdendo pois quem sabe não seria de sua
vocação reconhecer pelo amor as criaturas. Só que ela falando dispensava
semelhantes assuntos, sua riqueza era enumerar com volúpias os afazeres
diários a que estivera confinada desde sua partida (...) (1973, p. 102).

1. Cf., a título de ilustração, o ensaio da professora Maria Severina Batista Guimarães


intitulado “Tecelãs de ardis” sobre poetas mulheres brasileiras presente no livro Fronteiras
de Paragens líricas organizado por Goiandira Ortiz e Jamesson Buarque.

222
A imagem do tear introduz o aspecto do devir da linguagem poética,
uma tentativa de tecer o tempo em direção a um destino menos penoso,
mesmo que este seja a morte – era em uma mortalha que a heroína trabalhava,
ainda que não a dela própria. Embora fosse tomada como uma habilidade
obrigatória às mulheres exemplares, a personagem se destacava por sua
aptidão e fez deste artesanato uma espécie de fuga do presente, dividida
entre o nó do passado – a partida de Ulisses ou contemporaneamente o
silêncio – e o acabamento final – o reencontro em que se manifesta em
palavra. Como já observou Julia Kristeva, o tempo da mulher é o tempo da
enunciação, da tomada do signo e do sintagma para si. Esse tempo “estrutura-
se naquilo que o esteia, a morte” (2002, p. 220)

Modernização na autoria feminina

O objetivo mais específico deste ensaio é avaliar qualitativamente, a


partir do dos poemas de Gilka Bessa para Feminino Plural, os índices de
modernização da poesia de autoria feminina nos anos 70, segundo dois eixos:
1) o modo como os poemas de Gilka Bessa respondem à agenda femi-
nista, afirmando ou denunciando o modelo de comportamento feminino
herdado da sociedade patriarcal – com o que poderemos rastrear aquilo
que Nelly Novaes Coelho chamou de passagem de uma lírica sentimental
para uma ética existencial na poesia de autoria feminina. No livro sobre
A literatura feminina no Brasil contemporâneo (1993), Nelly Novaes Coelho
refletiu sobre o desenvolvimento de uma consciência que tentava se posi-
cionar tanto em relação aos estímulos e/ou imposições à criação de autoria
feminina quanto em relação à própria ideia de mulher. Participa desse eixo
de observação a concepção de escrita feminina proposta por Isabel
Allegrode Magalhães (1995) como uma escrita que se lança para fora de
si via construção de uma linguagem literária antipatriarcal, ou seja, que se
inventa a partir de uma experiência de corpo histórico que foi apagada –
a experiência do corpo histórico feminino.
2) a maneira como os poemas de Gilka Bessa apropriam-se da tradição
modernista, cujas conquistas formais e temáticas já estavam consolidadas
nacionalmente no período estudado. Teremos, assim, um esboço do
processo de autonomização da literatura goiana. Retomo aqui Pascale
Casanova, para quem as regiões literárias mais autônomas possuem o
privilégio de definirem a sua literatura como uma literatura “pura”, livre
de coerções, e consequentemente de se imporem como modelo. Por outro
lado, ainda segundo a autora, os escritores de espaços periféricos podem

223
tanto repetir cegamente os modelos dados como “naturais” quanto, desen-
volvendo consciência das relações de força existentes na “República das
letras”, forçar uma entrada promovendo “mestiçagens”, procurando
soluções estéticas fora da tradição que lhe pesa como tal (Casanova, 2002,
p. 63-64). Assim é que “proto-sistemas”2 poderiam entrar em processo de
autonomização ou de modernização literária.

Ideias circulantes em contraponto no


sistema literário goiano

O livro Feminino Plural foi publicado, via financiamento público, depois


de ter conquistado o primeiro lugar da categoria “gênero lírico” no
concurso “Bolsa de Publicação Hugo de Carvalho Ramos”, e impresso na
antiga Gráfica de Goiás (CERNE) em 1978. Uma primeira reflexão pode
ser esboçada a partir dessa informação: sabendo que as premiações literárias
participam da noção de “campo literário” como instituição de legitimação
tal qual a crítica literária isolada – de jornal ou acadêmica –, podemos
abstrair do livro premiado que ideia de literatura estava sendo validada
naquele momento.
O livro não possui ficha catalográfica, os dados da edição estão na folha
de rosto, ao que se segue um índice com os títulos dos poemas, separados
por autoria, e um “Proêmio” assinado por Regina Lacerda, importante
agente da cultura goiana. Nesse proêmio, a ex-professora antecipa versos
do livro, anunciando as questões mais marcantes tratadas na totalidade da
obra. Antes ainda de iniciar a leitura dos poemas, o leitor encontra uma
espécie de advertência das autoras:

O motivo de estarmos juntas, aqui neste livro, é a coincidência do nosso


destino biológico de mulher, com todas as suas implicações sociais e humanas,
na posição geográfica de Brasil, Goiás e Goiânia (1978, p. 11).

2. Em palestra sobre o Prêmio Hugo de Carvalho Ramos que possibilitou a Bernardo Élis
sua primeira publicação, qual seja, Ermos e Gerais, o professor Dr. Antón Corbacho
Quintela descreve o campo literário goiano como algo deficitário pela carência de parque
gráfico entre outros aspectos. Não vamos nos deter aqui sobre a diferença entre as noções
de “sistema literário” apresentada por Antonio Candido em sua Formação da Literatura
Brasileira e de “campo literário” desenvolvida por Pierre Bourdieu em seu As regras da arte
por temor de nos afastarmos demais de nosso objetivo principal. Mas vale ressaltar aqui as
muitas aproximações entre os dois conceitos, como podemos ler na análise de Wander
Nunes Frota em “Sistema literário e campo de produção cultural: os entornos de Candido
e Bourdieu” (2016)

224
Esse “compele intrare” escrito pelas poetas forneceu os dois eixos da
presente reflexão: o “destino biológico de mulher, com todas as suas
implicações sociais e humanas” inscreve-se em um espaço geográfico
também muito específico – “Brasil, Goiás e Goiânia” – sugerindo uma
produção pautada pela consciência da diferença. Avaliar a qualidade e o
peso dessa diferença constitui uma de minhas tarefas aqui.
No parecer da comissão julgadora, reproduzido na orelha do livro,
escritoras goianas já consagradas – Maria Helena Chein, Marietta Telles
Machado e Iêda Schmalts – afirmam que a obra é “organizada com uma
linguagem forte, de poemas densos, de invenções de elevado teor criativo”.
Como contraponto, recorde-se que ao longo da década de 70 outras
quatro autoras goianas também publicavam pela primeira vez seus poemas.
Dilena Sampaio Antonácio publicou Dilena poemas (1970) pela Academia
de Letras Paulo Setúbal, da Fundação Valeparaibana de Ensino, fora do
estado de Goiás com apoio crítico também exógeno – tanto ao sistema
literário goiano quanto à formação específica do profissional de letras.
Nos poemas desse livro, predominam as formas fixas (sonetos, madrigais,
canções) e a temática do amor no melhor do estilo escolar romântico que
vai da “não realização” do amor, do “morrer por amor”, do “delírio amoroso”
e da “incompreensão por não ser amada”. Além disso, apesar de ser um
livro de poemas de autoria feminina dos anos 70, não há qualquer marca
de tomada de consciência da falência do modelo de comportamento
feminino determinado pela tradição patriarcal tal qual denunciada pela
segunda onda feminista.
Guiomar de Grammont Machado lançou o seu Mensagens no mesmo
ano de 1970 pelas Oficinas gráficas da Universidade Federal de Goiás.
O prefácio foi assinado por Mariza de Castro e Silva Machado, poeta
goianiense, integrante da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás,
filha do advogado e acadêmico goianiense de letras Licínio Leal Barbosa.
Segundo a prefaciadora, a poesia de Guiomar viria como uma mensagem
de ternura, de “cura” para os males modernos. As orelhas do livro foram
elaboradas por Andiára Bastos Lousa, uma das “guardiãs” da memória da
cidade de Goiânia. De modo mais breve, seu texto confirma na recepção
local uma espécie de gratidão pela mensagem de ternura e alegria dos poemas.

225
Mensagens divide-se em dois momentos: um de 29 sonetos, que revela uma
formação parnasiana de forma e de conteúdo; e outro de 44 poemas em
que a autora se exercita no verso do cancioneiro popular e em temas
próximos do cotidiano, bem mais ao gosto modernista. Os temas, em sua
maioria, seguem as relações sociais: amor à família, “gratidão” à homenagem
recebida na Faculdade de Farmácia, um elogio de “Brasília” dedicado
aos brasilienses, etc.
Ana Cristina de Castro, cujos poemas de estreia reuniram-se sob o título
Aromas da terra, em 1977, pela editora Oriente, tem seu trabalho poético
avalizado por Gabriel Nascente, escritor goiano de renome que assina as
orelhas do livro, e de Venerando de Freitas Borges, primeiro prefeito da
cidade de Goiânia e criador da bolsa Hugo de Carvalho Ramos. A autora
insere em seu livro elementos para textuais que demonstram uma consciência
literária de sua própria produção em relação à tradição: 1) uma epígrafe de
Mário Quintana que diz assim: “Atiro a rosa do sonho/nas tuas mãos
distraídas...” e 2) uma epígrafe da própria lavra da poeta: “Da manchinha
de uma sapato,/ sim, daí eu tiro minha poesia”. O diálogo com o modernismo
brasileiro está claro, mas, por outro lado, não há ainda uma discussão ou uma
reelaboração do papel da mulher, como veremos nos poemas de Gilka Bessa.
Lançado no mesmo ano de Feminino Plural, o livro de Lourdes Teodoro,
Água marinha ou tempo sem palavra (1978) teve custeio autônomo e dispensou
para textos de crítica literária. Entre as cinco autoras goianas estreantes da
década 70, talvez seja o livro que melhor desenvolva a linguagem poética
dentro do parâmetro moderno de reinvenção da linguagem, levando ao
limite a ideia de poesia como espaço de liberdade do pensamento e da forma.
Sua sintaxe, em alguns momentos, abre mão da gramaticalidade para
representar a impossibilidade de representar. Trata-se de uma poesia difícil,
às vezes paradoxal, que obriga o leitor a enfrentar as questões mais
contundentes da nossa realidade – o racismo, a opressão, a desigualdade, a
fome, a solidão em meio à multidão. Água marinha fecha os anos 70 com
questões que a própria história literária, artística e cultural teve que lidar
em um cenário mais amplo. Atualíssima, sua voz lírica de negra mulher
emerge juntamente com as reivindicações identitárias que fundaram os
estudos culturais e transformaram a universidade a partir dos anos 60.
Com esse conjunto, é preciso reconhecer que as condições de produção
do objeto livro de poesia em Goiás nos anos 70 ainda eram muito irregulares
e pouco consistentes.

226
A observação dos para textos das obras de estreia das autoras aqui citadas
permite algumas considerações sobre a consciência de literário externada
por cada livro enquanto objeto que circula e faz circular ideias sobre criação,
o que pode ser lido como um esboço de diálogo, em termos geográficos,
do local com o nacional e, em termos temporais, do tempo daquele
presente com sua tradição. O livro de Dilena Sampaio produz uma sensa-
ção geral de que sua poesia aparentemente ignorou as conquistas formais e
temáticas das vanguardas do começo do século XX, permanecendo fiel,
assim como os para textos que a precedem, à concepção de poesia como
expressão de sentimentos de um sujeito sensível, culto e letrado, sem
deixar de lado a prática da poesia como panegírico.
Já o volume de poemas de Guiomar apresenta uma “consciência” mais
atualizada no que diz respeito ao momento literário vigente. Do mesmo
modo, em Ana Cristina de Castro percebemos a maneira como certos
poemas apropriam-se da tradição modernista, cujas conquistas formais e
temáticas já estavam consolidadas nacionalmente na década de 1970.
O projeto poético-político de Gilka e de suas colegas avança muito no
conjunto analisado, demonstrando completa familiaridade com o verso
livre e a temática da mulher em visada ética-existencial. Os poemas de
Lourdes Teodoro trazem uma linguagem arrojada, com investimento
estético à altura das dificuldades dos temas que escolhe – racismo, desigual-
dade social, penúria existencial. Assim caracteriza-se a heterogeneidade do
diálogo que essas autoras mulheres estreantes nos anos 70 estabeleceram
com a tradição.

As contradições de uma autora mulher na


periferia do feminismo

No texto “O tempo das mulheres” (2002), Julia Kristeva, ao propor-se


situar a “problemática das mulheres na Europa numa interrogação sobre o
tempo”, oferece parâmetros para a leitura de uma poesia atravessada ao
mesmo tempo pelas questões da tradição literária e pelas indagações sobre
o feminino, sobre suas formas de subjetivação e práticas de emancipação.
Para a autora, as mulheres europeias teriam vivido até a década de 70 duas
formas de experimentar o tempo. uma primeira experiência, arquetípica,
atribuiria à mulher ocidental o tempo cíclico, caracterizado pela repetição
e pela eternidade. “De um lado: ciclos, gestação, eterno retorno de um

227
ritmo biológico acorde com o da natureza. (...) De outro, uma temporali-
dade compacta, sem falha e sem escape. Com tão pouco a ver com o linear
que o próprio nome de temporalidade não lhe convém” (2002, p. 219).
A partir dessa experiência arquetípica, Kristeva situa na sequência duas
gerações que caracterizariam outra forma feminina de viver o tempo no
mundo ocidental. A primeira geração, das sufragistas, teria colocado o
feminino em movimento político, permitindo uma “entrada” da mulher na
temporalidade linear da história. A principal característica dessa geração
seria “a rejeição dos atributos femininos ou maternos considerados incom-
patíveis com a inserção na história (...). Universalista em sua concepção,
essa corrente do feminismo globaliza os problemas das mulheres de dife-
rentes meios, idades, civilizações” (2002, p. 221-22). A segunda geração,
segundo Kristeva, teria vindo com maio de 1968, quando as mulheres
europeias estariam mais interessadas na especificidade do feminino, “estas
mulheres buscam dar uma linguagem às experiências corporais e intersub-
jetivas deixadas mudas pela cultura anterior” (2002, p. 222).
Se a lógica do tempo fosse efetivamente progressiva, se existisse efetiva-
mente um sujeito mulher universal, seria de se esperar que as manifestações
poéticas das autoras mencionadas no item anterior seriam não apenas
homogêneas como também demonstrariam completo domínio de uma
linguagem feminina capaz de expressar a singularidade irredutível e face-
tada de cada autora mulher. Não é o que se pode ler nos livros comenta-
dos. Não é nem mesmo o caso do projeto mais afinado com a agenda
feminista do qual Gilka Bessa participa. Os poemas de Gilka, tematica-
mente, focalizam a condição de ser mulher, mas o faz de maneira a expli-
citar as contradições de quem vive à margem das conquistas do feminismo
europeu, apesar de dele receber reverberações. São poemas que manifestam
as contradições vividas, nas margens da contra-cultura, entre uma educação
patriarcal e o reconhecimento da falência desse modelo de educação, o que
vai resultar na manifestação de dúvidas existenciais, carências afetivas,
insegurança nos papeis que assume, raiva de tudo isso, frustrações, incoe-
rências. Seria mais responsável falar em camadas de feminismos, que
sofrem gradações, da aceitação quase pacífica da opressão, à reivindicação
mais legítima por emancipação.

228
Sem abandonar o tom lírico-confessional, os feminismos de Gilka Bessa
não despersonalizam o sujeito lírico para seguir uma marca de “moderni-
dade” tal qual definida por Hugo Friedrich (Estrutura da lírica moderna,
1978). Os feminismos de Gilka encontram forma, de outra maneira, numa
concepção fragmentada de sujeita mulher autora, produzindo um mosaico,
de diferentes e contraditórias reações femininas ao mundo. Se fosse neces-
sário eleger um poema para ilustrar essa concepção de poesia de autoria
feminina periférica aos acontecimentos, “Mutação” seria uma significativa
porta de entrada ao “universo feminino plural” de Gilka:

Acordo sempre fracionada,


nunca formando um inteiro.
Às vezes desprevenida,
durante o correr do dia,
sempre me roubam mais da metade.
Mutilada, ainda consigo,
com dificuldade, me carregar.
Sinto que durante a vida,
juntando pedações errados,
vou me transformando devagar.
O coração bate dentro da cabeça.
As mãos ocupam todo o peito.
Os olhos quase nada me adiantam,
pois estão sob os pés.
Monstruosa e ninguém se horroriza.
(1978, p. 25)

Mosaico também não seria a melhor palavra descritora para essa concepção
de poesia consciente de sua problemática autoria feminina. O auto-retrato
produzido por Gilka termina por nos oferecer a imagem de um monstro.
O acordar é um acontecimento recorrente nesse conjunto de poemas,
indica tanto uma insatisfação com a mesmice do cotidiano quanto o reco-
nhecimento de que a vida continua e algo novo, nunca radicalmente novo,
pode se insinuar. Nesse poema, o acordar reapresenta a situação de fracio-
namento. Só que ao longo do dia, a fragmentação, condição conhecida do
sujeito moderno desde os românticos de Iena, ganha, ou perde, em
desconjuntamento, partes do corpo de deslocam, e aquilo que deveria ser

229
lido apenas na chave existencial, deverá ser lido também sociologicamente.
As figuras do corpo ganham novos sentidos – o coração que bate na cabeça
diz de uma desracionalização dos sentimentos ou de uma nova sentimen-
talização da razão? Os olhos, tradicionalmente conhecidos como “janelas
da alma”, já não podem mais ver e muito menos deixam algo entrar, pois
estão sob os pés. Uma nuance marcante dos feminismos de Gilka é o
incômodo com a padronização social– em verso e reverso. Encontramos a
denúncia do padrão de comportamento dos outros e ao mesmo tempo a
autoconsciência de um comportamento pessoal. No caso da mutação vivida
pela sujeita lírica, a padronização da recepção é o que a surpreende. Como
ninguém nota a aberração deste eu-monstro que circula?
Há vários monstros nessa poesia, no sentido compósito de reunir
contradições, sem preocupar-se com o acabamento estético em uma unidade
conciliadora. Veja-se a figura da mãe a partir da leitura deste poema que
pede perdão por sua “monstruosidade”, segundo os padrões vigentes:

Absolvição
Perdoa este meu nojo,
esta falta de esperança.
Perdoa o meu cansaço,
esta impotência infinita.
Perdoa o que fiz e o que eu não faço.
Releva o meu atordoamento
e esquece o que falo.
Sei que você ama a vida,
que, por inconsequência ou fatalidade,
lhe transmiti.
E perdoa também por isso.
(1978, p. 27)

Vale destacar que essa “monstruosidade” caracterizava, segundo Julia


Kristeva, a agenda feminista da primeira geração de mulheres europeias
que saiu em busca de sua inserção na história: rejeição à maternidade e a
outras características que o patriarcado havia anulado como subjetividade
válida para uma definição de “ser humano”. E no entanto, três páginas depois,

230
vamos encontrar a sujeita lírica em uma expressão de singularidade de sua
experiência de mãe aparentemente em contradição com o poema que se
acaba de ler:

Momento único
Já é tarde.
Ele está deitado no chão
e me manda, a intervalos,
um sorriso de dentes desiguais
e um brilho nos olhos orientais.
A loura cabeça inclinada,
as minhas mãos reeditadas,
trabalham desenhando.
Estamos sós, nada mais existe.
O desenho cresce.
bezerros azuis, coelhos amarelos,
peixes comedores de borboletas;
uma casa grande com minúsculas janelas;
árvores estranhas com troncos enormes e copas pequenas.
E por cima do telhado um recado:
“Mamãe, para você”.
(1978, p. 30)

Agora a maternidade é imaginada (no sentido de produzir imagem) como


o desdobramento de um corpo único em outro corpo, dando opacidade à
relação mãe-filho de modo que separação e coexistência ganham materia-
lidade. Trata-se de uma expressão lírica de autoria feminina fora dos termos
da identidade e muito mais próxima do que Júlia Kristeva caracterizou como
a segunda geração de feministas– mulheres que buscavam a si mesmas na
“dinâmica dos signos” (2002, p. 222). O lugar geográfico de que fala Gilka
Bessa é periférico ao centro onde Julia Kristeva pode observar e descrever
“o tempo das mulheres”. Periférico ao pensamento feminista, à moderni-
zação das relações afetivas e sociais, à emancipação religiosa. E o lugar da
periferia estrutura uma perspectiva para o olhar. Lugar de onde tudo se vê,
de onde se toma ciência dos acontecimentos sem, contudo, deles participar

231
diretamente. Por isso os poemas de Gilka Bessa trazem a riqueza e a tristeza
da contradição de quem vislumbrou transformações que estão fora de seu
alcance, deixando uma consciência dolorosa de ser e estar “Mais ou menos”:

O meu silêncio guarda


o disfarce do crédito,
o medo da repetição
e a impunidade da omissão.
O meu silêncio guarda
a vontade e a fome não saciada,
a medida da distância,
a camisa de força e a mordaça
da falsa aparência.
O meu silêncio guarda
a acomodação desconfortante
de viver sem aderir ou combater.
(1978, p. 37)

Indícios de modernização literária na escrita

A consciência de época é de suma importância para o que Hans Robert


Jauss propôs como indício de avaliação dos processos de modernização de
uma determinada comunidade literária.

Como se manifesta, no surgimento e na história da palavra moderno, a


consciência de uma passagem do antigo ao novo, e como se pode apreen-
der, através dos contrastes da experiência da modernidade que se renova
sem cessar, a autoconsciência de uma época? (1996, p. 51)

A essa pergunta, o teórico da recepção vai responder observando as


transformações que cada comunidade, em determinados momentos histó-
ricos, promove no alocamento de significados para os significantes
“moderno”, “novo”, “antigo”.Essa pergunta cria condições para supor que
não apenas os modos de organização de um livro, com os agentes convo-
cados para sua apresentação, mas também as filiações que um autor define

232
para si, as afirmações de novidade e as rupturas que supõe realizar podem
contribuir para a explicitação dessa consciência de modernidade e, moto
contínuo, servem de indícios da realidade seu processo de modernização
na escrita.
Em primeiro lugar, é preciso anunciar que não há poemas claramente
metalinguísticos que facilitem tal apreensão nos poemas de Gilka Bessa
para Feminino Plural. Do campo semântico de “moderno”, encontra-se no
conjunto a ideia de novo, no sentido mais caro à autora, como a novidade
de si, algo com quem a sujeita lírica não contava e que de repente aparece:

Fuga
Olho esta fotografia de folhinha
e cresce a minha aspiração simplista.
O céu azul como convém.
Uma inevitável igreja.
Ciprestes enfeitam e atrapalham a vista.
Casas antigas ocultam pessoas.
Uma escada leva a barcos prisioneiros
do rio brilhante que reflete tudo,
como outra cópia na água serena e mansa.
E me descubro na amurada
de mãos dadas com uma criança.
(1978, p. 18)

O poema descreve uma fotografia de folhinha observando tudo com


uma visada que se poderia chamar de teórica, e aí residiria sua expressão
modernista, posto que explicita os modos de representação: “o céu azul
como convém”, a igreja é uma figura inevitável para o cenário, no sentido
de obrigação retórica para a composição de paisagem provinciana, as
árvores atrapalham, não enfeitam, e o reflexo produzido pelo rio é cópia e
não fenômeno de transparência. Aqui, a natureza não se faz passar por
convenção – como aprovaria Rolando Barthes.
É nesse contexto de convenções que a sujeita lírica se descobre. Ela faz
parte dessa formalização da realidade. O novo, então, é a consciência de si
em um mundo dado como convenção, fruto do entrelaçamento de signos

233
arbitrários que a autora recebe relativamente cristalizados para sua escrita.
Em outros poemas, a mesma estratégia da fotografia, do instantâneo, tão
caro ao gosto modernista brasileiro de Oswald de Andrade e de Manuel
Bandeira (referência rápida aos emblemáticos poemas “O capoeira” do
primeiro e “Pensão familiar” do segundo), será utilizada para expressão de
uma subjetividade feminina em que o novo e o antigo convivem no
presente ora com certa tranquilidade –

Casa I
Sábado à tarde.
Casa silenciosa.
O cheiro de cravo do doce de mamão que ferve.
Espaço aumentando com as ausências eventuais.
A tranquilidade espalhada no ar.
O nenê dormindo.
A revista aberta.
O gosto de café ainda na boca.
As reticências da vida.
(1978, p. 26)

– ora contrapõem-se para denunciar sua difícil convivência

Casa II
Faz bem olhar este móvel antigo.
Provavelmente uma cômoda
com pretensão a penteadeira.
E muita história em segredo a me desafiar.
De penteadeira, agora guarda-louça.
Sobre ele, mais um acréscimo insolente:
o telefone.
E ainda:
dois elefantes indiferentes,
e dois anjos, um azul, outro rosa.
Que protegem as chamas de suas velas
E cochicham eternamente.
(1978, p. 34)

234
Se a cômoda antiga puder ser tomada como metáfora da tradição, sua
transformação em penteadeira e depois em guarda-louça em metáfora das
apropriações indébitas inerentes ao ato da escrita, temos uma imagem do
que a autora não chega a explicitar que entende como criação. Sua prática
de criação poética surge assim como uma sequencia de “acréscimos inso-
lentes” que não podem ser considerados “inovação”. O verso livre da poeta
está mais do que consolidado, mesmo que a partir de uma tradição muito
recente. Ela toma a liberdade de um Oswald e de um Bandeira já por
herança poética, e não produz rupturas com o modernismo – até porque,
como já observou Octavio Paz, o passo seguinteàquela liberdade formal
seria a sua anulação (2013, p. 118). A visada teleológica tinha demonstrado
aí sua fragilidade.
Na conclusão de Os filhos do barro, esse livro em que Paz organiza um
pouco do que entendeu por história da poesia moderna, conclusão que
também pode ser lida como uma despedida dos valores da modernidade
modernista, o crítico aponta para o fato de que será necessário reconhecer
que a modernização da escrita não passa apenas pelo jogo entre “Antigos e
Modernos”, mas também pela invenção de uma linguagem forjada na
experiência do próprio corpo, com todas as suas especificidades. “A rebelião
do corpo é também rebelião da imaginação” (2013, p. 160).

Considerações finais

Cruzando os dois eixos de investigação propostos inicialmente, o da


agenda feminina/feminista e o do processo de modernização da escrita,
cruzando-os na ideia de uma escrita do corpo como uma “rebelião da ima-
ginação”, encerramos com o uso da palavra “menstruação” feito por Gilka
Bessa. Palavra-tabu em uma sociedade patriarcal, no poema “Guia prático
no exercício de viver”

(...) Alimentemos com fervor


o nosso sonho provinciano:
“a casa própria”, a televisão,
mesmo que seja como mensal menstruação.
Esforcemo-nos por sermos otimistas e crédulos,
Que melhores dias, com certeza virão!
Louvado seja deus!
(1978, p. 41)

235
“Menstruação” é empregada como metáfora negativa para o “mais do
mesmo”, a repetição inevitável de uma obrigação. O poema todo é dos
mais irônicos entre os 39 do conjunto, mas destacamos aqui apenas a
palavra que poderia ser usada tanto por autores quanto por autoras, mas
que nunca alcançou a mesma condição ou difusão de topoi literário como
as palavra-símbolos da guerra e do falo na história da literatura ocidental.
Fica indicado assim, segundo a lógica de Octávio Paz, Julia Kristeva, Nelly
Novaes Coelho, Helene Cixous, Jacques Derrida etc, o que poderia ser
adotado como indício “outro” de processo de transformação da linguagem
literária.

236
REFERÊNCIAS
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Salesianas,1970.
BESSA, Gilka; PIMENTEL, Getulina; BESSA, Zulma. Feminino Plural. Goiânia:
Cerne, 1978.
CASANOVA, Pascale. A república mundial das letras. Trad. de Marina Appenzeller.
São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
CASTRO, Ana Cristina de. Aromas da terra. Goiânia: Editora Oriente, 1977.
COELHO, Nelly. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano,
1993.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Da metade do século XIX a meados
do século XX. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo: Duas cidades, 1978.
JAUSS, Hans Robert. “Tradição literária e consciência atual da modernidade” in:
OLINTO, Heidrun Krieger. Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. Sem ref.
ao tradutor. São Paulo: Ática, 1996.
KRISTEVA, Julia. “O tempo da mulher” in: As novas doenças da alma. Joana Angélica
d’Ávila Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
MACHADO, Guiomar de Grammont. Mensagens. Goiânia: Imprensa da
Universidade Federal de Goiás, 1972.
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O sexo dos textos. Lisboa: Ed. Caminho, 1995.
PAZ, Octávio. Os filhos do barro. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo:
Cosac Naify, 2013.
PIÑON, Nélida. Sala de armas. Rio de Janeiro: Record, 1973.
TEODORO, Lourdes. Água marinha ou tempo sem palavra. Brasília: edição do
autor, 1978.
Geraldinho Nogueira: saberes da narrativa
artesanal
Lucas Pires Ribeiro
Robson Mendonça Pereira

Introdução

A narrativa, ao longo do processo histórico, sempre esteve presente


na vida das pessoas, propiciando interação entre sujeitos; em especial, na
relação umbilical entre narrador e comunidade de ouvintes, possibilitando
o compartilhamento de saberes tradicionais. O narrador, de acordo com as
observações de Benjamin (2012), atua para a comunidade como se fosse
um guardião de saberes, tanto pertencentes às atividades artesanais das
gerações anteriores, assim como relacionado ao conjunto contemporâneo
no qual está inserido, sendo também um sábio de seu tempo.
O filósofo Walter Benjamin (2012), quando pensa a figura do narrador
artesanal nas primeiras décadas do século XX, acredita presenciar o desa-
parecimento desse artista do seu meio, quando a redução seria um reflexo
da consolidação da modernidade. A estrutura sociocultural moderna teria
modificado toda a relação construída aos moldes tradicionais, tecidas em
harmonia como tempo, tendo na longínqua duração um mecanismo essencial
para narrar e, consequentemente, para se ouvir construções narrativas.
No primeiro momento da pesquisa, Walter Benjamin (2012) e sua teo-
ria sobre o narrador artesanal aparecem em destaque, conjuntamente com
a reflexão que dialoga com os impactos da modernidade no território na-
cional e suas consequências para a atividade do narrador brasileiro. Assim,
a migração do campo para a cidade, juntamente com a inserção dos aparatos
tecnológicos no meio rural, a partir da década de 1960, estão presentes na
problemática que impacta na diminuição da atividade de quem comunica
artesanalmente. Para uma melhor análise sobre os problemas para o
narrador no território nacional, as pesquisas de Lima (2005), Ribeiro
(2010) e Bedran (2010) foram fundamentais.

239
Diante das dificuldades enfrentadas pelo narrador ao longo do século
XX, procuramos entender e identificar a atuação desse comunicador no
cenário nacional. Por meio do objetivo, a pesquisa encontrou em Geraldinho
Nogueira um importante sustentáculo, tanto no quesito de representação
da cultura popular quanto para a narrativa artesanal. No âmbito popular,
as pesquisas de Silva (2015) e Castro (2010) são essenciais para se compre-
ender a representatividade de Geraldinho, principalmente por meio do
humor presente em seus causos.
A trajetória artística de Geraldinho é interessante. Antes mesmo de
fazer sucesso na grande mídia, já era considerado um famoso contador de
causos na região de Bela Vista. Geraldinho Nogueira foi detentor de uma
impressionante capacidade para envolver as pessoas diante de suas comu-
nicações. Os acontecimentos trágicos/cômicos, geralmente relatados,
marcam a tessitura dos seus causos e estão relacionados com o cotidiano
dos indivíduos que acompanham as suas comunicações, o que proporciona
a interação entre quem comunica e aqueles que ouvem a comunicação.
De acordo com Benjamin (2012), uma das características do narrador
artesanal está na reciprocidade junto à comunidade de ouvintes. Nesse
sentido, não restam dúvidas de que Geraldinho teve uma relação muito
próxima com os indivíduos da sua comunidade, retirando os acontecimentos
do cotidiano das pessoas para tecer sua narrativa. Portanto, depois de tecida,
devolvia os acontecimentos para a comunidade por meio dos seus causos.
Os mais conhecidos causos de Geraldinho são: O Causo da Bicicleta, O Causo
do Marimbondo, O Causo do Osso e O Causo do Rádio.
A pesquisa defende Geraldinho como narrador artesanal. Por exemplo,
mesmo quando foi inserido no espaço midiático, em meados da década de
1980, o contador de causos, salvo algumas exceções, continuou comuni-
cando como se estivesse diante dos seus companheiros do dia a dia. As
primeiras aparições televisivas de Geraldinho estão inseridas no contexto
do (re)surgimento do narrador; por isso, não mais artesanal, mas sim
profissional. Nesse sentido, o artigo procura acentuar as diferenças entre
os conceitos artesanal e profissional, defendendo que Geraldinho está
muito mais próximo ao primeiro do que propriamente ao segundo conceito.

240
Defender Geraldinho como narrador artesanal se configura como um
desafio para a pesquisa, porque todos os indícios apontam para o desapa-
recimento dessa forma de comunicação, além de ser um diálogo crítico
com Benjamin, por afirmar que o filósofo se “precipitou” em sua observação
acerca do narrador. Talvez Geraldinho seja o último narrador; porém,
diante da ressignificação sociocultural da cultura popular, a qual representa
tão bem, caracterizada pela relação tradicional/moderno, tenha reunido
condições para permanecer no imaginário coletivo da sociedade goiana,
encantando, divertindo e compartilhando saberes, do mesmo modo que
fizeram os ancestrais pertencentes ao núcleo artesanal ao longo do processo
histórico.

Walter Benjamin: tradição e modernidade no início do século XX

Contando sua própria história e a do mundo, o homem vem se


utilizando da narrativa como um recurso vital e fundamental. Sem
ela, a sociabilidade e mesmo a consciência de quem somos não
seria possível. O conto é uma memória da comunidade, onde
encontramos lugares diferentes de olhar e ler o mundo ao prati-
carmos a arte da convivência. (BEDRAN, 2010, p. 16)

Observando os dizeres presentes na citação, é possível identificar dois


elementos sensíveis, o primeiro procura fazer a relação da narrativa como
pertencente à historicidade humana, o segundo faz alusão à presença con-
temporânea da narrativa no espectro social. A comunicação oral acompa-
nha o sujeito ao longo do processo histórico, como mecanismo de
sociabilidade, possibilitando a interação dialógica entre os indivíduos,
assim como o compartilhamento conjunto de inúmeros saberes. Portanto,
segundo Bedran,“sempre [há]encantamento quando alguém canta ou conta
uma história, seja esta pessoa letrada ou iletrada” (2010, p. 119). A ideia do
encantamento é essencial, porque é por meio do ato de se encantar que
existe a possibilidade da continuidade do enredo narrativo.

241
A longevidade da narrativa, como meio de interação social é uma
evidência importante, entretanto, distante de ser confortável, porque a
continuidade da narrativa desenvolvida artesanalmente sofreu abalos incisivos
no transcorrer do século XX, em especial, nas primeiras décadas. Por falar
em narrativa, essa forma de comunicação tem se tornado meio de inúmeros
debates entre pesquisadores/as ao longo das últimas décadas, tanto pela
ideia do desaparecimento quanto pelo ressurgimento.
O teor das discussões, geralmente, está relacionado com o questiona-
mento sobre a capacidade de (re)adaptação que os narradores artesanais
teriam que enfrentar para continuarem com a vivacidade do enredo narra-
tivo. Dificuldades que se intensificam dentro de um contexto cada vez mais
dinâmico, rápido e instantâneo: “É o entrar no mundo moderno e
contemporâneo que determinará o quase desaparecimento do narrador
tradicional” (RIBEIRO, 2010, p. 04).
Quando se pensa em narrativa artesanal, a impressão que se tem, a partir
da perspectiva da citação anterior, é a de que estamos nos referindo a
determinismos que não nos pertencem, característicos de um passado não
muito distante; no entanto, não mais tão presente como já foi. A ideia sobre
o desaparecimento do narrador intensifica-se por meio da análise feita por
Benjamin: “O narrador por mais familiar que nos soe esse nome, não está
absolutamente presente entre nós, em sua eficácia viva” (2012, p. 213).
De fato, no primeiro momento, ao observar as relações sociais que se
descortinavam no contexto de produção do ensaio benjaminiano, na década
de 1930, o destaque é para a consolidação do trabalho dentro das fábricas.
Concomitantemente ao acesso maior da população às informações, a
impressão sobre o ocaso da narrativa e, consequentemente, do narrador é
de uma notoriedade significativa.
O pequeno fragmento retirado do trabalho de Benjamim (2012) aponta
para uma tendência social da modernidade que trazia, em sua leitura,
como pano de fundo, o desprezo para com os valores tradicionais da soci-
edade, incluindo, nesse patamar, o desaparecimento da narrativa artesanal
e todos os valores socioculturais representados pela comunicação: “É a expe-
riência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais
raras as pessoas que sabem narrar devidamente. É cada vez mais frequente

242
que, quando o desejo de ouvir uma história é manifestado, o embaraço se
generalize”. (BENJAMIN, 2012, p. 213). Como é perceptível, o filósofo
acreditou vivenciar o desaparecimento da narrativa, pelo fato de as pessoas
“modernas” não terem mais tempo, tampouco paciência, para escutarem o
desenrolar de um longo enredo narrativo, sendo a longevidade uma carac-
terística dos narradores, entretanto, não pertencente ao escopo dos
sujeitos modernos.
Assim, diante da ausência de público, ou mesmo da comunidade narrativa,
o narrador se viu solitário, não encontrando espaços para a comunicação
da sua arte. Estando só, o narrador foi, gradativamente, silenciado, e o
silêncio dos narradores seria o reflexo do desaparecimento da narrativa
enquanto arte de comunicação e transmissão de saberes. Analisando o
ensaio de Benjamin, Gagnebin tece as seguintes considerações:

O depauperamento da arte de contar parte, portanto, do declínio de uma


tradição e de uma memória comuns, que garantiram a existência de uma
experiência coletiva, ligada a um trabalho e um tempo partilhados, em um
mesmo universo de prática e de linguagem. (2012, p. 11)

A ideia de um monólogo, a saber, a permanência apenas do narrador,


não propicia a vivacidade da narrativa artesanal. No Brasil, Francisco Lima
(2005) caminha de forma parecida com as observações feitas anteriormente,
ao defender que a partir da década de 1950, com a migração em massa das
pessoas do campo para a cidade, conjuntamente com modificações que a
urbe proporciona, o papel social destinado ao narrador brasileiro teria sido
reduzido drasticamente, impactando na atividade e na redução das pessoas
dispostas a escutá-lo: “Alguns contadores referiram haver recordado
histórias nos intervalos das viagens que realizei, mas, em virtude da falta
de oportunidades de vir a contá-las, caíram de novo no esquecimento”
(2005, p. 90). A atividade do narrador está centrada no que pode ser
entendido como arte viva da memória.
Independentemente da compreensão sobre as diferentes circunstâncias
que marcam a modernidade europeia, comparada à brasileira, o que fica
nítido, de acordo com Benjamin (2012) e Lima (2005), é que os valores
culturais modernos, no âmbito das interpretações, contribuíram para o

243
esfacelamento dos valores tradicionais da sociedade. Entre os muitos meios
abalados, a narrativa artesanal aparece em destaque, porque se adaptar aos
meandros da modernidade seria algo impensável para a figura do narrador,
já que o seu saber é originário justamente da tradição. Ao reduzir o papel
do narrador enquanto personagem, a modernidade teria reduzido a
importância dos valores e costumes tradicionais.
A ideia do desaparecimento da narrativa artesanal vai perdurar até
meados da década de 1970, quando estudos vão identificar um “novo”
sujeito tecendo e narrando histórias/causos e contos, de acordo com as
observações de Matos (2014). O ressurgimento do ato de narrar, no
contexto observado, está relacionado com a arte artesanal, porém não em
sua totalidade porque representa a readaptação do narrador aos valores
tecnológicos, considerado um contador de histórias profissional, como
perceberemos no desenrolar do artigo.
A ideia do pertencimento do narrador ao núcleo profissional é reflexo
da modernidade, embora seja significativo por possibilitar a vivacidade
do enredo, não deixa de representar a diminuição do espaço artesanal.
Evidenciar na prática a reduçãotalvez seja possível ao se observar a con-
juntura contemporânea em que a presença do narrador se constitui como
tarefa árdua. Dessa forma, a percepção acerca da arte de narrar longas
histórias, realizada de maneira artesanal, demonstra ser uma problemática
abrangente. Logo, os apreciadores de enredos duradouros, assim como os
estudiosos da temática, terão que enfrentar dificuldades também no
desenrolar do século XXI.
Mesmo diante das transformações sociais ocorridas ao longo do século
XX, com destaque para a consolidação da escrita, da leitura, da difusão dos
meios de informação, tais como jornais, revistas. Além do deslocamento de
inúmeras pessoas para os espaços urbanos, o que acarretou no trabalho
confinado dentro das fábricas, entre outras modificações, não é possível
afirmar, pelo menos sem uma certa relutância, que o narrador tradicional/
artesanal não se encontre mais presente na conjuntura contemporânea.
Se assim o fizéssemos, a afirmação poderia ser considerada um desvio
de leitura histórica, ao mesmo tempo, ocasionando em dificuldade de
percepção no viés sociológico, porque estaríamos com problemas para

244
reconhecer a capacidade das camadas populares de se adaptarem às trans-
formações socioculturais ao longo do tempo, enclausurando-as em um
patamar de circulação único e intransponível para outros valores.
Nesse âmbito da capacidade para se adaptar, de cultivar os valores
culturais que entremeiam em diferentes espaços e de representar a narrativa
artesanal no tempo presente, o contador de causos goiano Geraldinho
Nogueira aparece como “exemplo” fundamental. Para se entender melhor
a importância de Geraldinho para os meandros da cultura popular e sua
representatividade para a narrativa artesanal, torna-se necessária uma
síntese biográfica do artista goiano.

Geraldinho Nogueira: traços do narrador artesanal

Geraldo Policiano Nogueira ficou conhecido popularmente e artisti-


camente como Geraldinho Nogueira. É considerado por alguns pesquisa-
dores(as), tais como Silva (2015), Castro (2010) e Ribeiro (2017) como o
mais significativo representante da cultura popular goiana e, também, um dos
maiores contadores de causos que a sociedade brasileira teve a oportunidade
de conhecer. O sucesso midiático alcançado por Geraldinho se desenvol-
veu por meio das primeiras aparições televisivas no programa Frutos da
Terra comandado pelo apresentador e publicitário Hamilton Carneiro.
As aparições televisas contribuíram para Geraldinho se tornar conhecido
nacionalmente, ampliando o seu espaço de circulação e comunicação com
a comunidade de ouvintes, até então restrita aos meios populares de Bela
Vista. No entanto, antes da presença da grande mídia, o contador de causos
já era conhecido e admirado em sua região, principalmente pela capacidade
de entreter as pessoas por meio dos causos.1
Geraldinho Nogueira teve no espaço do meio rural o núcleo de vivência
e convivência, construindo e compartilhando saberes por meio desse espaço,
interagindo e aprendendo com as pessoas mais experientes da comunidade.

1. É possível encontrar todos os causos construídos e comunicados por Geraldinho por


meio dos CD Trova, Prosa & Viola, volumes I e II, pelo DVD Trova, Prosa & Viola, e também
pelo site de compartilhamento YouTube.

245
Nos causos, é possível perceber a manifestação de toda carga de saberes
tradicionais passados de geração a geração. Geraldinho, enquanto sujeito,
enfrentou inúmeras dificuldades ao longo da vida, tendo que abandonar os
estudos ainda cedo para ajudar na lide diária, sendo considerado analfabeto
por não possuir educação formal, mas, ao mesmo tempo, sábio no universo
dos valores tradicionais da cultura caipira goiana.
Como representante da cultura tradicional, Geraldinho se valeu dos
saberes da sua cultura, seja por meio dos mutirões em que participava, das
festas religiosas, de caráter popular, como a Folia de Reis e, principalmente,
dos causos que ouvia e contava. Os causos podem ser considerados
característica cultural das pessoas pertencentes ao meio rural até meados
da década de 1970, principalmente no estado de Goiás, quando as pessoas
se encontravam majoritariamente no campo e possuíam o hábito de sentar
perante os amigos para narrarem inúmeros causos alusivos aos aconteci-
mentos de algum conhecido ou ao próprio narrador.
Os causos, dentro do universo da cultura tradicional no Brasil, são per-
tencentes ao histórico social das pessoas, podendo ser encontrados desde o
período colonial, como destaca Cascudo: “Todos sabiam contar estórias.
Contavam à noite, devagar, com gestos de evocação e lindos desenhos mímicos
com as mãos” (1984, p. 16). Geralmente, os causos trazem como meio
norteadores fatos engraçados, aventuras amorosas não bem-sucedidas,
“valentões” surpreendidos por atos inesperados, assombrações de todas as
estirpes e tragicomédias de caráter individual ou coletivo, entre outras
tessituras narrativas.
Diante da análise dos causos de Geraldinho, é possível constatar a
característica dos seus enredos, marcada pela tragicomédia, quando ele
aparece como personagem central, envolvido em variados acontecimentos
e muito distante de se sair bem das peripécias em que adentrava. Em tese,
Geraldinho enquanto personagem dos contos é um verdadeiro anti-herói,
como assegura Castro: “Em Geraldinho, contudo, observamos que a épica
de seus personagens tende à deformação do próprio conceito de herói,
dado o próprio fim cômico das peripécias” (2010, p. 61). Para assegurar a
característica anti-heroica do personagem Geraldinho, recorremos ao
Causo do Osso, procurando aproximar da fonética do artista goiano:

246
[...] E eu, em veiz de tiráoto pedaço, tirei um muleque de suã, e vortei sô, e
passei dento da varana e fui lá pá sala, sentei num tamburetinvéi lá. (...) Fui lá
pá sala, e aí tômascano ali, e vai que envai. Quando eu acabei aquela munição
de fora do osso. E tinha um quartinansim, e tinha um corredozin, de vez em
quando ela ia lá nesse quartin, e quando chegava lá nesse corredô ela me
oiava lá ansim, lá na sala, e eu oiava nela tamém, falei já tá bão. E aí, quando
eu peguei naquele osso pá joga ele no curral, ele tava com um miolão bunito.
Aí eu manei, ah mas eu tôsuzin aqui vô aproveita esse treim. Pelejei pra
chupá ele, tavamei garrado, aí eu tafuei esse dedo na bronca dele ansim, pur
baixo, fui impurrano o dedo e tavamei apertado mais tavarompeno, deixa que
vai, fui empurrando e mamando dota banda. Foi até que eu tavamamano a
cabeça do dedo, que eu fui tira o dedo, cadê rapaiz. Oiá, o coro impelotava lá
na frente ansim, e não dava de si, de jeito nenhum, eu trucia ele ansim, queria
rasga o coro e não saía minimo. Aí eu já fiquei sem graça caquilo, manei, mas
eu tem que arrumá um cumpanheiro pá quebra esse osso, porque não vai saí
não. E eu ali pelejano, pelejano, e eu não sei se ela disconfiô, foi lá no quarto
traveiz, quando ela me oiô lá na sala, eu tampei cum prato ansim, prela num
vê. Ela delatô ali me oiano, eu tamémoiano ela, fazendo com coisa que não
tinha nada. Aí ela delatô, manei, mais eu vô amoita esse treinmió, e fui levano
o dedo pra traiz e tampano cum prato ansim, prela num vê. Quando eu
bambiei o braço pra traiz, tinha um marvado de um cachorrão atráis de mim,
minino, quando eu bambiei, o cachorro pá no osso, e deu um arranco e me
derrubo do tamburete. Rapaiz, eu aprontei uma gritaiada com esse cachorro.
E o prato num vi breca dele não, caquelepampero. Eu gritano cum esse
cachorro e ele rosnano e dano safanão ansim, e numlaigava o osso de jeito
nenhum, e foi me rastano. Só não me levô lá pá saroba, que quando chegô na
porta, eu levei essa mão no portale e falei, rem. Aí eu oieirapaiz, o coro do
dedo acompanhou, oiei nele, tava igual uma cenora quando ocêdispena ela.
Quando eu oiei na porta minino, essa mocinha tava cum pescoço dessa
grossura, segurano pra num ri, acho que de dó de mim. E eu avuei pá banda
de fora, nem a foice eu num levei, fui batê lá em casa. (CD Trova Prosa &
Viola – volume I)

A descrição do causo apresenta a metade para o fim do enredo, quando


o personagem de Geraldinho tentava, desesperadamente, retirar o seu dedo
do pedaço de suã 2, porém a tentativa demonstrava ser em vão e para
aumentar ainda mais o teor trágico do causo, o esfomeado do cachorro
deu-lhe uma mordida no osso, levando junto parte do dedo do personagem.

2. “O mesmo que assuã, que corresponde à carne da parte inferior do lombo do porco.”
Fonte: Dicionário Priberam (on-line). Consulta no dia 20 de fevereiro de 2018.

247
Talvez não tenha ficado perceptível, mas o espaço de construção do causo
está ancorado no mutirão e o principal objetivo do protagonista estava
centrado em agradar o pai da moça com quem flertava, para isso se esforçou
consideravelmente.
Se eventualmente conseguisse agradar, demonstraria sua capacidade de
trabalho e, evidentemente, teria melhores condições de trocar olhares
amorosos com a respectiva donzela, porque o pai enxergaria em Geraldinho
um bom “partido”. Infelizmente, ou felizmente, pensando no deleite de
quem acompanha o causo, as ideias iniciais do personagem não saíram da
forma idealizada, o que não surpreende, levando em consideração os
enredos construídos e comunicados por Geraldinho em que a tragédia
travestida em comédia domina a estrutura construtiva.
Geraldinho, enquanto autor e ator dos causos, traz uma característica
híbrida, porque todo o processo de gestação do enredo tem nos valores
tradicionais da sociedade as diretrizes de sustentação, ou seja, o sujeito
tradicional/caipira se vê, na maioria das vezes, representado pelas dinâmicas
socioculturais tecidas por Geraldinho. A partir disso, quando o contador
de causos teve a oportunidade de se apresentar nos meios midiáticos de
Goiás, não relutou, se fez presente e inseriu o “seu mundo” no denominado
espaço moderno. Assim, o conceito de ressignificação sociocultural vai ao
encontro da trajetória pessoal/artística do contador de causos goiano:

Pensamos em tradição, não como restos do passado, exótico ou estático,


mas algo em construção, sendo (re)significada e recriada pelas pessoas.
Nesse viés, a tradição é a argamassa que permeia as experiências de vida de
homens e mulheres que ainda têm, como referência, práticas culturais
populares na sociabilidade comunitária. (MACHADO & REIS, 2010, p. 293)

O conceito de ressignificação, apresentado pelos autores, tem na tradição


popular o meio cultural de sustentação. No entanto, o tradicional não é
compreendido como imóvel perante os acontecimentos do tempo presente.
Pelo contrário, nesse sentido, tradição e modernidade estabelecem um
diálogo contínuo, impactando nas ações cotidianas, com destaque para os
sujeitos do universo artesanal. Por exemplo, Geraldinho representa a
capacidade de ressignificação das camadas populares, não somente por se
apresentar nos espaços midiáticos, mas por estabelecer relações com os
elementos modernos acessíveis ao seu meio, tais como a bicicleta e, não
menos importante, o rádio.

248
As relações de ressignificação que o sujeito Geraldinho procurou e
conseguiu vivenciar podem ser encontradas em muitas das suas comunicações
narrativas. Entre os causos que apresentam a relação tradicional/moderno
é possível destacar O Causo do Rádio. No enredo, é perceptível o desejo
de conhecer o rádio por parte de Geraldinho e de seu companheiro de
trabalho, uma vez que não medem esforços para conseguirem alcançar o
objetivo, passando, já sem surpresas, por percalços no desenrolar do
acontecido:

Rapaiz, vendo ocêfalá em rádio, eu lembrei a primeira veiz que eu topei o


tar rádio rapaiz, quase me mata de raiva (...) Mais nesse tempo quase
ninguém cunhecia aquilo não, eu já tinha visto falá que já tinha aquilo, mais
achei que nóis nem ia vê isso, era muito longe. Aí foi logo otrêim butuco aí
rapaiz, e aqueze primeiro que pegô a saí pás fazenda rapaiz, só aqueze
bichão forte que comprava, um fraco não dava conta não (...) Aí ele falô pra
mim: “Não Gerardin, posa aí, amanhã cedo nóisvamoescutá uns caipira”.
Aí eu danei culhe: “Cê tá ficano loco rapaiz, onde ocê vai arrumá caipira
aqui amanhã cedo”. Aí ele falô: Não, ali no véiNoque tem um rádio” (...) Aí
cedinnóis bebeu o café, eu fui fazenô o pito pelo camin, era perto
nóischegô logo, quando nóischegô já tinha umas quinze pessoas lá rapaiz, o
povo não conhecia aquilo,frivia lá pá escuta (...) Aí eu oieirapaiz, tinha um
caxotimenriba de uma mesinha, tavapertin dele, pra mim aquilo era um
caxotimdezepô alguma mundiça (...) Quando deu no meio do salão, ela
passô e seguiu no meu rumo, eu manei: “Uai, onde será que tá esse trêim?”
(...) Quando ela chegô naquele caxotim lá enriba da mesa, eu ansim perto,
oiano aquilo, quando ela pegô no imbigo dele que troceu, eu vi que tinha
um palatim lá dento, rolou. Manei: “Tá capiano os caipira”. Rapaiz, ele
dislizô dos caipira e ingarupô numa missa rapaiz. E o veí era daqueze
devoto antigo, quando o padre raiou lá dentô daquele caxote ele varreu o
juiei no chão lá diante, e nóis foi obrigado a jogá o chapéu de costa e
jueiatamém. E eu num sei o que tinha infezado esse padre esse dia rapaiz, e
ele tirava uma meia hora pá reza e uma meia hora pá danácum nóis. Rapaiz,
eu fui infezanocaquilo (...) E o juei não guento, eu levava a mão ansim pá
favurece os dedo, não guentava eu tirava, acudia num, ele não guentava eu
ia pó otô e o paúquebrô, levantá num pudia. Manei: “Mais agora não tem
mais recurso eu vou deitápurquenum pode levantá, quando eu tavacassano
jeito de deitá o padre liberou nóis e eu mão no chapéu e já vuei da banda de
fora [...]. (CD Trova, Prosa & Viola, volume II).

249
Independentemente dos percalços, um dos objetivos foi alcançado,
talvez não o principal que era ouvir os caipiras, mas, de todas as formas,
saíram da casa do velho Noque após conhecerem o rádio. Por meio da
tessitura do causo, se torna perceptível que o processo de ressignificação
não se manifesta somente em Geraldinho, porque se assim fosse, somente
ele e o seu amigo estariam à procura da nova tecnologia; porém, havia uma
quantidade considerável de pessoas interessadas: “umas quinze pessoas lá,
rapaiz”. A constatação evidencia os meandros dos valores tradicionais/
modernos se manifestando na conjuntura da cultura popular goiana, na
qual Geraldinho presenciou a hibridização e se valeu desse processo para
construir os seus causos.
Pela capacidade de estabelecer relações com valores, não necessaria-
mente pertencentes ao seu núcleo histórico de convivência, como os
mencionados recursos tecnológicos, e por adentrar nas raízes das comuni-
cações tradicionais, Geraldinho continua representando os moldes e as
maneiras de construção e comunicação da narrativa artesanal dentro do
meio tecnológico.
No entanto, é possível que Geraldinho, enquanto objeto de estudo, por
mais contraditório que possa parecer, reforce a ideia de Benjamin (2012),
no tocante ao desaparecimento do narrador diante dos auspícios da
modernidade. Diante da hipótese, o artista goiano pode ser considerado o
último narrador artesanal? Para responder à pergunta, é necessário ter um
parâmetro entre a construção histórica da narrativa, concomitantemente
com o universo do contador de causos goiano, sem deixar de observar a
sua arte narrativa.

Geraldinho Nogueira entre dois mundos:


continuidade e redução da narrativa

Ao adentrar no universo de construção dos causos de Geraldinho, as-


sim como da sua capacidade artística,se torna possível, pelo menos no
campo das hipóteses, evidenciar que a arte narrativa ficou circunscrita a
sua pessoa e, depois da sua morte, no ano de 1993, parece não haver
continuadores(as) de enredos longos e duradouros como aqueles cons-
truídos e narrados por Geraldinho Nogueira nem características mini-
mamente parecidas com o artista goiano.

250
No entanto, não faltam tentativas de continuidade. Mas a capacidade
artística de Geraldinho foi tamanha que suplanta todas as iniciativas. Em
sua pesquisa, recusando o rótulo de caipira autêntico que alguns atribuem
a Geraldinho, Silva (2015) identifica o vácuo de representatividade que o
humor, como representação, tanto goiano quanto nacional, estão envoltos
depois do falecimento de Geraldinho:

Por sua originalidade, a contribuição artística de Geraldinho permanece


marcante, mesmo tendo passado vários anos de seu falecimento. Ainda não
há substituto. Há infindáveis imitadores. No encarte do segundo volume de
Trova, Prosa & Viola, Hamilton Carneiro escreveu que seu ator foi “o melhor
e mais engraçado contador de causos do Brasil... Tão original e tão bom
que se tornam ridículos os que tentaram imitá-lo”. (p. 49-50)

O conceito de originalidade defendido por Carneiro não retira a repre-


sentatividade atribuída a Geraldinho no âmbito do universo da narrativa
artesanal, apenas chama a atenção para a inimitável capacidade artística, ao
longo de uma vida, “destinada” aos causos. Outro detalhe alusivo de
representação está no fato de que, praticamente, todos os desdobramentos
de construção e comunicação que acompanharam os narradores, ao longo
do processo histórico, se manifestam em Geraldinho.
É possível destacar a construção dos causos por meio dos acontecimentos
da comunidade, fazendo com que o núcleo de sujeitos se identifique com o
enredo, a reciprocidade junto aos ouvintes, a durabilidade do enredo, o
fato de a narrativa não se esgotar jamais, a capacidade de transmitir
ensinamentos/diversão por meio de suas comunicações e, por último, o
fato de pertencer ao universo de vivência e convivência das pessoas que
acompanhavam as suas desinibidas performances. O narrador é um homem
da comunidade. Geraldinho também foi, primeiro de Bela Vista, depois do
estado de Goiás. Parafraseando Benjamin: “Vistos de uma certa distância,
os traços grandes e simples que caracterizam o narrador destacam-se nele”
(2012, p. 213). Os traços não somente se destacaram em Geraldinho, mas
foram também reproduzidos pelo artista goiano.
Diante da relação entre Geraldinho e a narrativa artesanal, é possível
constatar que não há o desaparecimento do narrador, pelo menos na situa-
ção nacional. Contudo, “surge” outro fenômeno, a saber, a redução no
número de indivíduos que possuem saber para contar um causo de acordo

251
com os moldes tradicionais e, consequentemente, o esmorecimento de
sujeitos dispostos a ouvir. O fenômeno da redução do comunicador artesanal
e de todo o universo que representa não é um fenômeno constatado
somente em Goiás, mas em todo o país, tornando a arte de narrar quase extinta.
Para a figura do narrador, sem perder Geraldinho desse horizonte, a
narrativa faz parte da sua vivência cotidiana, não sendo considerada,
necessariamente, uma profissão. Como exemplo, diante do sucesso alcan-
çado perante as primeiras aparições televisivas ao fazer comerciais para a
extinta Caixa Econômica de Goiás (CAIXEGO)3, Geraldinho, rapida-
mente, foi alçado para ser atração semanal do programa Frutos da Terra,
recebendo remunerações por suas apresentações.
Mesmo estando diante de um novo espaço de comunicação, recebendo
dividendos, Geraldinho comunicou os seus causos de forma parecida com
as formas que narrava nos espaços da região de Bela Vista. É evidente que
procurou fazer algumas readaptações, até pela influência de Hamilton
Carneiro, o qual, além de apresentador do Frutos da Terra, passou a ser
uma espécie de “diretor” das apresentações artísticas de Geraldinho. Apesar
disso, não houve grandes modificações entre o contador de causos que se
apresentava para os seus companheiros de jornada e o famoso contador de
causos que transmitia seus enredos cômicos todos os domingos de manhã
no programa de maior audiência no estado de Goiás, na época.
Quem possibilita compreender a leitura de Geraldinho acercadas apre-
sentações midiáticas é Silva: “Comparava seu novo trabalho com os antigos.
Certamente mais lucrativo, limpo e divertido” (SILVA, 2015, p. 49). O
contador de causos goiano não pode ser considerado um narrador profis-
sional, que faz da arte narrativa a sua principal profissão. Para Geraldinho,
contar os causos era um momento de diversão, espaço para rever os amigos
e jogar uns “dois dedos de conversa fora”. Impressão, praticamente
inalterada mesmo diante do espaço televisivo.
A ideia em torno de Geraldinho como narrador profissional, e não
artesanal, pode ganhar mais consistência na medida que sua inserção no
espaço midiático aparece como meio para compreendê-lo, pois a partir da
década de 1970 (re)aparece a figura do narrador, mas não mais do tipo
artesanal, mas sim o narrador profissional, como destaca Matos: “Em torno
dos anos 1970, vários países foram surpreendidos por um fenômeno urbano,
3. Geraldinho protagonizou quatro peças publicitárias para a CAIXEGO, entre os anos de
1984 a 1989, sendo possível encontrar todas as peças no site de compartilhamentos YouTube.

252
no mínimo curioso numa sociedade essencialmente tecnológica: a volta
dos contadores de história” (2014 p. 17). No Brasil, o espaço sociocultural
do contador tradicional esteve ligado ao meio rural e não necessariamente
ao espaço urbano, sendo o último espaço característico dos profissionais da
narrativa.
Além do “distanciamento” geográfico, o narrador profissional se carac-
teriza por uma relação muito próxima com os adventos tecnológicos,
construindo os seus enredos por meio de influências mais teóricas do que,
propriamente, de vivência coletiva, se valendo de técnicas de ensaio, encena-
ção, repetição da narrativa, comunicando os seus enredos para um público
bastante diversificado culturalmente, diferentemente do narrador artesanal
que estabelece uma relação umbilical com a comunidade de ouvintes,
compartilhando saberes e costumes em comum.
De acordo com as assertivas de Bedran: “O contador de histórias
tradicional não age mediante técnicas de oratória, interpretação ou pesquisa
bibliográfica, pois em sua maioria não é letrado, mas relata histórias
oriundas do seu meio cultural ou de sua própria criação, que brotam da
fonte de sua matéria vivida” (BEDRAN, 2010, p. 69). No que condiz ao
narrador profissional, o próprio termo profissional ajuda a compreender a
diretriz da narrativa, fazendo parte da profissão de quem comunica:

A arte do conto, hoje, segundo Praline Gay-Para, é muito diferente da dos


contadores tradicionais, que contavam de maneira espontânea, num con-
texto familiar, diante de ouvintes conhecidos. Os contadores de hoje cami-
nham por outras trilhas. Como homem de espetáculo, o novo contador lida
com outras variáveis, ele encontra ali pela primeira vez, e que possivelmen-
te não encontrará depois do espetáculo. (MATOS, 2014, p. 114)

Por narrador artesanal, compreendemos o indivíduo pertencente à


comunidade, reconhecido como alguém importante para o seio conjuntural,
retirando desdobramentos que aconteceram consigo ou com pessoas
próximas ao seu meio, comunicando esses acontecimentos por meio da
tessitura do enredo narrativo, divertindo, encantando e ensinando as
pessoas que compartilham os valores culturais parecidos. A experiência na
arte de narrar é uma característica e, ao mesmo tempo, uma necessidade
do narrador, independentemente de ser profissional ou não. Percebe-se
que pela própria configuração da narrativa artesanal, a prática parece ser

253
mais necessária para o artista dessa comunicação, porque, conforme assegura
Benjamin, “o senso prático é uma das características de muitos narradores
natos” (2012, p. 216).
A escrita faz parte do universo de vivência e convivência do profissional,
diferentemente do sujeito que narra artesanalmente e que se vale da orali-
dade como meio norteador das ações cotidianas: “Para isso, ele não utiliza
técnicas adquiridas em cursos ou dinâmicas, mas extrai de sua experiência
vivida os significados e a interpretação do fato narrado” (BEDRAN, 2010,
p. 29). Benjamin, ao decretar o desaparecimento do narrador, identifica
alguns fatores como responsáveis, influenciando no hábito cultural das
pessoas. Entre esses, destacam-se o romance e a informação.
Para o filósofo, depois da consolidação do romance, as pessoas passaram
a se interessar cada vez menos pelo contador de histórias, passaram a se
entreter pelas narrativas escritas/livrescas que não tinham nenhuma re-
lação com a oralidade:

O primeiro indício do processo que vai culminar no ocaso da narrativa é o


surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o ro-
mance da narrativa (e da epopeia no sentido estrito) é que ele está essenci-
almente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com
a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem
uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O
que distingue o romance de todas as outras formas de prosa, contos de fada,
lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a
alimenta. Ele se distingue, porém, especialmente da narrativa. (BENJAMIN,
2012, p. 217)

É perceptível, na análise de Benjamin, o fato de a crítica não ser, neces-


sariamente, a escrita em si, mas ao romance produzido nos gabinetes,
distantes dos valores culturais. Com relação ao romance proveniente da
oralidade que, ao mesmo tempo, fomenta os meandros orais, Benjamin
não percebe nenhum problema, até porque, conforme defende Matos
(2014), é difícil identificar o que seria narrativa para o filósofo. De todas as
formas, o fato de o romancista se enclausurar é entendido no ensaio O
Narrador (2012) como algo inadmissível. Valoriza-se a relação escrito/oral,
com destaque para o último valor por trazer consigo um saber milenar,
construído coletivamente.

254
Geraldinho Nogueira, pelas condições sociais impostas, não teve possi-
bilidade de se valer da escrita, sendo a oralidade a base de toda a construção
da aprendizagem e transmissão de seus saberes. A narrativa está ancorada,
no primeiro momento, no ato de aprender do narrador, com destaque para
a observação dos acontecimentos pertencentes ao cotidiano, assim como
para os conselhos das pessoas mais experientes da comunidade. Depois
desse processo de aprendizagem, o narrador transmite o que aprendeu. A
etimologia da transmissão atende, na maioria das vezes, pelo nome de
narrativa, mas pode variar, sendo representada por contos, poesias, lendas
e outros termos similares. Na situação de Geraldinho, seus saberes são
entendidos, tanto academicamente quanto socialmente, como causos.
Se utilizando da cultua oral, o narrador atua para a comunidade na qual
está inserido como guardião dos saberes relacionados a sua geração, da
mesma forma que pode ser considerado detentor de conhecimento das
manifestações culturais pertencentes às gerações anteriores. A perspectiva
de conhecimento do passado histórico da comunidade se desenvolve pela
estabilidade das relações sociais dentro dos espaços artesanais/tradicionais:
“Nas sociedades baseadas na tradição oral, a memória da comunidade tende
involuntariamente a mascarar e a reabsorver as mudanças” (GINZBURG,
2006, p. 128). A estabilidade social, resultante das manifestações históricas,
é uma forte aliada do narrador, porque as transformações socioculturais
demonstram ser mais lentas nesse meio, embora a característica em si não
impeça que valores provenientes de outras manifestações se façam presentes
no seio tradicional.
Por meio de toda a construção, é perceptível que a principal fonte de
conhecimento do narrador artesanal está relacionada as suas vivências e
experiências práticas. O seu aprendizado se desenvolve em virtude dos
acontecimentos que as relações coletivas podem lhe proporcionar: “Seu dom
é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira” (BENJAMIN,
2012, p. 240). A evidência sobre a influência das relações pertencentes ao
cotidiano facilita a assimilação do aprendizado, ao mesmo tempo são norte-
adoras das imagens que vão tecer os elementos inseridos no enredo narrativo.
Por exemplo, quem acompanha os causos de Geraldinho Nogueira
pode ser levado a entender que o desenrolar do enredo gira em torno
somente do personagem central, a saber, dele próprio. É evidente que há
um protagonista nos causos que não se encontra só, geralmente está

255
acompanhado pelos seus companheiros de jornada que também sofrem as
agruras enfrentadas pelo personagem principal ou são vítimas das suas
aventuras desastrosas. O sentido do compartilhamento, do fazer junto e
das ações coletivas são características dos espaços tradicionais. Geraldinho
soube se valer dos valores da tradição, seja para aprender, construir ou para
comunicar os causos.
Um bom exemplo, talvez, não do fazer junto, mas de estar junto, pode
ser percebido no Causo do Carro de Boi, quando o protagonista Geraldinho
“apronta” com o sistemático Bastião, durante uma empreitada no
transporte de lenhas:

[...] Aí eu cheguei lá um dia cedo pra trabaiaprelê, ele tinha um sistema de


pruziácagente com o dedo mindim no canto da boca, quando ele saiu lá que
eu ia chegano (...) Eu falei: “Bençã, Bastião”. Ele: “Sempre”. Ele num falava
Deus te abençoe não, era sempre, eu num sei o quê que é isso. Aí, ele disse:
“Hoje é procê mais o Aforsotirá uma lenha da roça do cumpadeBadé”. Aí,
sô, eu já virei pra traiz pra reuni os boi e marremo no carro, eu e o minimo
dele saiu. Era pra tirá duas carrada lá pu espigão dispejá, e nas trêislevá o
carro chei. Nóis já tinha tirado a primeira carrada, dispejemo lá, quando
nóisincostô o carro lá no monte de lenha, ele chegô lá muntado numa mula
veia que ele tinha. Chegô, apiô da mula, marrô ela num toco lá, e
veicaquelas perna dura, pezão inchado, aí falô: “Eu vó ajudá o Gerardin que
o Aforso é mei fraco”. E subiu lá e eu fui dano madeira prele, fui dano,
quando deu do mei pra riba, eu dei num pau muito pesado lá no monte de
lenha, mexi cuele e vi que tava muito pesado, falei prele: “Ôsenhô Bastião,
esse pau nóislaiga ele”. Ele aico e: “Não, esse é de i”. Rapaiz, eu nuveleino
pé desse pau e fui esfregano ele púrudero do carro arriba, fui inchano, até
que eu puis ele no rodero do carro (...) Quando chegô nesse pau que eu
queria laiga, era um pau cumprido só, pesado pra daná, quando nóislevô ele
aqui pra jogá ele pus fuero, eu fiquei esperano ele, ele falô vá, eu mandei.
Ele falô vá e num jogôrapaiz. Hum,minino, oia, quando o pau bateu a
ponta no chão lá, e deu um coice no subaco dele, virou ele de costa, e
enriba de um boi de coice, um boi azogadominino (...) Quando eu vi que
ele esparramô lá no meio do cerrado, e ele era mau demais, e bruto memo,
e ele cum macaco de trinta e oito na cintura rapaiz, quando eu vi que ele
espraiô, eu ainda fiquei lá: “Tomara que Deus ajuda quele acaba de morre e

256
eu tô fora” (...) Quando eu vi, ele mexeu cunha perna, manei, mais esse
marvado vai aprumá e vai me matá. Aí eu manei, mais eu vô vê se eu dô
conta de morrê antes dele miora, eu não sinto a dor da bala. Aí eu deitei de
bruço dento do carro e parei o forgo. Falei: “Agora eu morro memo, não
tomo forgo e quero vê”. Quando num dava mais, eu ia sortano de
pouquinansim, e oiano ele. Tornava juntá, e agora eu morro memo. Pois eu
lutei até disacussuae não dei conta de morrêrapaiz (...)Aí ele oio ne mim
caquelêzóiniblinado: “Mais o Gerardin não tem curpa não, foi eu memo
que falei vá”. Aí eu tomei forgoligeropra discontaaqueze atraso, e
fiqueipensano, se eu tivesse dado conta de morre, eu tinha perdido o
trabaio,rapaiz. (CD Trova, Prosa & Viola – volume II).

As peripécias do personagem com o velho Bastião representam o


conceito de trabalho dentro do universo tradicional, não realizado de
forma solitária, contando com a presença de filhos nos afazeres, quando
não, com pessoas próximas da comunidade, entre conhecidos e amigos da
região. Na situação do causo, provavelmente o senhor Bastião fosse
conhecido da família de Geraldinho e, diante da proximidade, o personagem
foi lhe prestar os serviços. Diante do trabalho conjunto, inúmeras situações
se fazem presentes e também lembranças de acontecimentos engraçados,
envolvendo indivíduos conhecidos da comunidade. No universo de Geraldinho,
todo o emaranhado de relações poderia se transformar em enredo narrativo.
Ao se observar a estrutura do enredo, é possível imaginar que a situação
tenha sido verídica, com a participação de Geraldinho ou mesmo o fato de
ter acompanhado a comunicação feita por outro indivíduo e, por conse-
guinte, deu-lhe continuidade e nova roupagem, transformando-a em causo.
A arte do narrador não está apenas em comunicar o enredo, mas, conjun-
tamente, em ouvir o que os indivíduos têm para lhe transmitir. Diante da
construção e reconstrução, fatos são acrescidos, situações valorizadas, outras
retiradas, com o intuito, na situação de Geraldinho, de deixar o causo
engraçado.
O narrador artesanal representa a comunidade de ouvintes, porque se
não houver a identificação com o enredo nem com o narrador, a comuni-
dade se distanciará, não possibilitando o sustentáculo para a narrativa. No
bojo da cultura popular/tradicional goiana é muito raro encontrar pessoas

257
que não se identifiquem com os causos de Geraldinho, a grande maior se
identifica por ter passado ou conhecer alguém que passou por situações
parecidas com as peripécias dos personagens.
É possível encontrar um bom exemplo de representação coletiva por
meio do Causo da Bicicleta. Nesse enredo, o personagem principal, um se-
nhor com idade já avançada resolve comprar uma bicicleta, porém nunca
tinha tido contato com o meio de locomoção. Diante da ausência de con-
tato, sofre muito durante as primeiras tentativas, tendo quedas que o levam
a pensar em desistir. Ainda assim, resolve continuar, o que demonstra sua
persistência e, claro, divertindo a comunidade, pois quanto mais insiste,
mais proporciona o teor trágico/cômico do enredo. Para melhor perceber
os desdobramentos descritos, há a transcrição, abaixo, de partes do causo:

[...] foi aí, eu já gritei o santo que me acudiu lá atrais, pra me dá uma
cambota pra mim disocupar a mão,prá acudi aquilo sô. Porque eu levava o
carcanhar no rodeiro dela, queimava o pé eu fofava, e o trem invai. Mais
quando eu gritei o santo travez sô, ele não deu conta de isbarra ela, mais
judo eu aponta ela num cupinzão que tinha ansim, na bera do camin. Mininio,
quando eu apontei ela, o cumpim era mais arto que essa mesa, quando ela
bateu lá rapaiz, que ela aprumo pra cima, eu chorei o estamo na nuca dela
ansim ô, passei pú riba dela, do cumpim, e maiei de lá. Aí quando eu
levantei, quando fui acudi, tava só as cinza dele, queimo tudo, e aquela
boiboia no beiço, a boca torta pra li. E eu com o estamotamémdueno, aí eu
oiei e não tinha butão de camisa, não tinha coro no estamo. Eu manei, de
certo que algum toquim que eu esfreguei nele aí. Oiei no cupim onde eu
esfreguei, não tinha toco rapaiz, aí eu rudiei e fui panha ela, quando eu irgui
ela rapaiz, eu descobri, ela tem uma birruga na nuca. Minino, quando ela
prumo, eu chorei o estamo ali e passei pú riba. Tavachein de linha de butão,
coro do estamo, tudo arredó daquela potoca. Aí, aí eu, quando, eu ainda
alembrei na hora, agora interôtrêis objeto que eu não tenho confiança mais
nunca, é bicicreta, cigarro de papel e sordadotamém. (CD Trova Prosa &
Viola – volume I)

Diante da análise minuciosa do causo, percebe-se que o enredo gira em


torno do único personagem, o próprio Geraldinho. Todavia, o protagonista,
justamente por pertencer ao universo tradicional, não está só e representa
um conglomerado de pessoas oriundas do contexto das décadas de
1970/80, as quais passaram por inúmeros infortúnios durante seus primeiros

258
contatos com o advento da bicicleta no meio rural, acostumando-se às
constantes quedas. Ao cair da bicicleta, Geraldinho levou junto milhares
de sujeitos que, por meio da memória, recordavam situações similares
àquelas enfrentadas pelo personagem. Percepção parecida pode ser en-
contrada na análise feita por Silva:

A graça da narrativa está no processo de aprendizagem, de assimilação da


modernidade. Porém, mais uma vez cabe questionamento, qual pessoa que,
aprendendo a andar de bicicleta, não teve suas quedas? Com Geraldinho,
numa idade mais avançada do que o habitual, não foi diferente. (2015, p. 42).

Desse modo, o sentido de memória coletiva adquire notoriedade para


se perceber as relações de proximidade no âmbito do universo tradicional:
“Essas lembranças existem para “todo o mundo” nessa medida e é porque
podemos nos apoiar na memória dos outros que somos capazes de recordá-
las a qualquer momento que desejamos” (HALBAWCHS, 2003, p. 67).
Nesse âmbito, a memória dos outros é a memória de Geraldinho que ao
comunicar os seus causos possibilitou o reavivar da memória das pessoas
que, de alguma forma, possuíam identidade cultural com o meio tradicional
de Goiás na década de 1980, com destaque para os sujeitos pertencentes ao
meio rural ou que migraram para os centros urbanos, mantendo suas raízes
ligadas aos valores ancestrais.
Sem o sentimento de pertencimento junto ao contador de causos, é
provável imaginar que, mesmo com a incrível capacidade para tecer e co-
municar, Geraldinho não teria tido o sucesso de aceitação obtido. Se por
qualquer outro motivo obtivesse, é provável que sairia rapidamente do
“gosto popular”. Somente permaneceu fazendo sucesso, e permanece,
porque quem acompanha o enredo, de alguma maneira, se sente identifi-
cado com os acontecimentos presentes nos causos:

Ninguém que entenda o idioma português, em suas nuances, fica indife-


rente a sua prosa. Muitos goianos, que se envergonham de ser conterrâneos
de certas duplas sertanejas, costumam presentear amigos que visitam o
estado com algum dos CD’s que registram o espetáculo Trova, Prosa & Viola,
estrelado por Geraldinho. Orgulham-se do contador de causos. Não por
acaso, os causos do “osso”, do “marimbondo” e, principalmente, o causo da
“bicicleta” são considerados clássicos locais. Quase todos os conhecem”.
(SILVA, 2015, p. 31).

259
O narrador artesanal está umbilicalmente ligado à comunidade. No que
se refere a Geraldinho, a relação de proximidade continua prevalecendo
até os dias atuais. Mais importante do que conhecer é se identificar com o
contador de causos. Talvez a palavra orgulho, presente na citação, sintetiza
a representatividade de Geraldinho Nogueira enquanto artista e sujeito
para o goiano, e de uma forma mais alargada, para a narrativa construída e
desenvolvida artesanalmente.
Como evidenciado, no início do artigo, Benjamin (2012) decreta o
desaparecimento do narrador artesanal, entretanto, Geraldinho é, indubi-
tavelmente, um narrador artesanal. É possível que represente o último
narrador entre nós por ainda ter conseguido se fazer presente dentro do
contexto, no qual teóricos acreditaram não vivenciar mais a presença da
narrativa desenvolvida nos moldes artesanais, construída diante da lide
diária, em contato frequente com as pessoas, tendo a função de encantar e
divertir e, não menos importante, de transmitir uma série de saberes em
que o narrador se utilizava de algumas estratégias para atingir os objetivos.
Geraldinho se valeu do humor e do riso.
Para o filósofo (2012), a narrativa artesanal tem um poder de não se
esgotar jamais. Com a inserção de Geraldinho nos meios midiáticos, os
recursos tecnológicos têm possibilitado a vivacidade do seu enredo,
perceptível pelos milhões de acessos que seus causos continuam a receber
no YouTube. Assim, “em decorrência” da tecnologia, é possível afirmar
que os causos de Geraldinho não se esgotarão jamais, pois, por meio da
sua arte e capacidade artística, conseguiu ampliar a comunidade de ouvintes,
se deslocando de um espaço local para o âmbito estadual. A tecnologia é
importante para a localização do causo, mas, sem a arte da narrativa,
provavelmente Geraldinho não continuaria tendo o sucesso que tem.
Essa afirmativa acerca da presença do narrador artesanal entre nós
encontra na vivacidade artística, assim como nos moldes de construção e
comunicação dos causos de Geraldinho, importante sustentáculo prático.
Frente ao talento artístico e por representar a identidade tradicional/caipira/
popular de Goiás, Geraldinho adquiriu notoriedade, sendo compreendido
como o mais importante contador de causos goiano de todos os tempos,
representando toda a conjuntura coletiva que continua a perceber nos espaços
de manifestação da cultura caipira a identidade sociocultural do estado.

260
As comunicações caracterizadas pelo humor trágico/cômico possibilitam
o “verdadeiro” desnudar social do universo de vivência e convivência de
Geraldinho Nogueira, que não é somente dele, mas da historicidade
sociocultural de Goiás. É justamente pelo fato de mergulhar no “mundo”
do contador de causos que somos apresentados a toda a carga de costumes
e saberes das manifestações tradicionais e, não menos importante, ao uni-
verso da narrativa artesanal que, provavelmente, encontrou em Geraldinho
o seu último, mas não menos significativo, representante.

Considerações finais

Pensar o espaço, ao longo do século XX, destinado pela sociedade ao


narrador artesanal, se configurou como um desafio importante para a pes-
quisa. O desafio está presente pela própria construção social do contexto,
sendo “propício” à diminuição da narrativa, tendo na modernidade um dos
possíveis fomentos para a redução, justamente pela relação entre meio e
toda a carga de costumes que a modernidade carrega.
Nesse sentido, o presente artigo procurou compreender o espaço des-
tinado para o narrador artesanal a partir do ensaio O Narrador de Walter
Benjamin (2012), considerado um importante sustentáculo teórico. Assim,
foram analisados os fatores que levaram Benjamin a decretar o desapareci-
mento do narrador, concomitantemente com a carga de costumes que a
tradição fomenta, visto que são justamente os costumes da tradição que
forneceram o sustentáculo para a atuação da literatura oral.
Diante da enfática afirmação “benjaminiana”, procuramos compreen-
der as relações desenvolvidas pelas camadas tradicionais com os desdobra-
mentos não, necessariamente, pertencentes ao escopo de suas relações
históricas. Os recursos tecnológicos receberam atenção especial, princi-
palmente pela inserção que tiveram, a partir de meados do século passado,
em todas as camadas sociais, com destaque para o rádio, para o aumento
dos leitores em potencial e para a televisão. No Brasil, de forma mais precisa
em Goiás, os mencionados recursos tecnológicos também se fizeram
presentes no cotidiano das pessoas tradicionais.

261
Para alguns pesquisadores, como Ribeiro (2010) e Lima (2005), a televisão
foi a principal responsável pela diminuição dos contos, causos e narrativas
populares no Brasil. A partir de sua introdução, as pessoas colocaram o
narrador em segundo plano, silenciando-os gradativamente. Frente às
observações, o artigo entende que houve uma redução considerável dos
narradores artesanais no país. No entanto, redução não significa desapare-
cimento, há importantes diferenças entre as duas formas de leitura.
A sustentação em torno do não desparecimento do narrador artesanal
pode ser melhor percebida se observadas as atividades artísticas desenvol-
vidas por Geraldinho Nogueira. Consoante ao demonstrado ao longo do
artigo, Geraldinho foi um contador de causos goiano que adquiriu notori-
edade, primeiro em sua região e, diante da receptividade, já no término de
sua vida, foi levado para a grande mídia. Mediante análises de cunho teórico
que pensam os moldes de construção, desenvolvimento e comunicação da
narrativa, a pesquisa identificou sensíveis semelhanças entre o contador de
causos goiano e os narradores artesanais.
Entre as semelhanças, é possível destacar a valorização para com os
saberes tradicionais da comunidade, a presença da coletividade nas ativi-
dades do cotidiano, respeito para com a oralidade, valorização das conversas,
o enredo dos causos sendo construído por meio dos acontecimentos que se
sucederam com indivíduos conhecidos, o saber passado de geração a
geração, a capacidade para dar e receber conselhos, a longevidade dos
enredos narrativos, assim como a presença marcante da comunidade de
ouvintes na comunicação oral, entre outros importantes detalhes.
Geraldinho é considerado por Castro (2010) e Silva (2015) como
importante representante da cultura popular, com destaque para o humor
presente em suas comunicações. Além disso, é possível alongar o conceito
de representação, entendendo-o, também, como representante da narrativa
artesanal. Se assim o for, há uma possibilidade de se “distanciar” da enfática
frase de Benjamin quando decreta o desaparecimento do narrador, dizendo:
“Não, o narrador não desapareceu, ele continua presente, atendendo pelo
nome de Geraldinho Nogueira”. Os críticos da definição podem dizer que
Geraldinho é o último narrador, o que reforça a ideia central da pesquisa.

262
A defesa a respeito de Geraldinho, como representante da narrativa ar-
tesanal, somente foi possível pelo conceito de ressignificação sociocultural
apresentado ao longo do texto, o qual pensa a relação de proximidade e de
aproximação entre tradicional e moderno. Assim, por último, a inserção de
Geraldinho no espaço midiático sintetiza justamente a relação tradicional/
moderno, possibilitando vivacidade e continuidade dos seus causos, carregados
de saberes e de valores artesanais, sendo possível encontrá-los por meio de
diferentes recursos audiovisuais, em especial no site de compartilhamento
YouTube. Sem a relação híbrida entre os valores culturais, incorporada por
Geraldinho, provavelmente não estaríamos defendendo a continuidade da
narrativa, porque o valor cultural teria desaparecido com o falecimento do
contador de causos.
As pesquisas voltadas para se pensar Geraldinho Nogueira estão, prati-
camente, se iniciando dentro da academia e seria impossível, não somente
por se tratar de umartigo, mas por estar relacionado a Geraldinho, ter a
pretensão de fechar a discussão. Assim, o que foi intentado esteve ancorado
na provocação para que surjam novas construções acadêmicas que venham
corroborar, se distanciar ou apresentar novas hipóteses de interpretação
sobre o mais significativo artista popular de Goiás.

263
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A literatura de Edival Lourenço em três tempos

Ademir Luiz da Silva

1. Poesia memorialística

D e criança pobre da zona rural da cidade de Iporá, Goiás, até ser


um dos principais intelectuais goianos, a história de vida do escritor Edival
Lourenço é, por si só, extraordinária. Depois de passar por uma infância
que pode ser descrita como uma mistura de Meu Pé de Laranja Lima e
O Senhor das Moscas, Edival não parou de se superar, tornando-se advogado
e funcionário de carreira da Caixa Econômica Federal, “escritor fantasma”
de políticos, presidente da União Brasileira de Escritores Sessão Goiás,
cronista de imprensa, imortal da Academia Goiana de Letras, Secretário
de Cultura do Estado de Goiás e um dos nossos mais premiados artistas,
tendo recebido muitas láureas, prêmios, troféus, comendas e tapinhas nas
costas. Recebeu pelo conjunto da obra a Comenda Jorge Amado da União
Brasileira dos Escritores do Rio de Janeiro. Trajetória que valeria um livro
ou, como é moda, um filme.
O livro, de algum modo, acaba de sair. Não como uma biografia auto-
rizada (ou não autorizada), mas, literalmente, composta em verso, não em
prosa. Embora a produção poética de Edival Lourenço não seja eminente-
mente biográfica, é interessante notar o quanto sua história pessoal serve
de matéria-prima para cunhagem de seus versos. Esse é um dos muitos
elementos, e dos mais ricos, presentes no livro Poesia reunida (1983-2013),
lançando pela Editora ExMachina de São Paulo. O volume reúne seis
obras: Estação do cio, sua estreia de 1983, A caligrafia das heras, Enganos do
carbono, Coisa incoesa, As vias do voo e Pela Alvorada dos Nirvanas, de 2013.

267
Esse último, talvez seu trabalho mais maduro em poesia, abre o livro, que
não se preocupa em ser cronológico quanto a ordem de publicação original
das obras. Segundo o mestre em Teoria Literária pela Unicamp Iuri
Pereira, autor da apresentação, a partir de Coisa Incoesa, de 1993, “o tema
da memória será também, a partir daqui, uma presença constante na poesia
de Lourenço” (2014, p. 10).
Esse registro pessoal, via de regra, não se apresenta em sua prosa.
Na maioria de seus contos e no primeiro romance, Centopeia de Neon,
Prêmio Nacional de Romance do Paraná de 1993, observamos narrativas
nas quais se destacam o senso de humor afiado e irônico costurando enredos
calcados no realismo fantástico. Mais recentemente, no romance Naqueles
Morros, Depois da Chuva, um dos vencedores do Jabuti de 2012, Lourenço
arriscou-se na delicada carpintaria do gênero romance histórico. Uma tarefa
ousada, mas muito bem-sucedida. Para escrever esse livro muitas pesquisas
foram necessárias. Pesquisas em arquivos e em vasta bibliografia especializada,
não necessariamente na memória. De algum modo, podemos definir que o
prosador Edival Lourenço se volta para fora, enquanto o poeta Edival
Lourenço volta-se para dentro.
Mas esse ensimesmar-se poético não é de modo algum uma experiência
egocêntrica, narcisista, fechada em si mesma. Pelo contrário, sua poesia é
uma poesia da experiência, uma poesia do vivido, mas, sobretudo, de suas
observações acerca desse vivido. Se a prosa de Edival Lourenço é criada a
partir de voos de imaginação e pesquisa erudita, sua poesia é a recriação
lírica do passado a partir da perspectiva do presente do poeta. Uma carac-
terística que o contador de histórias empresta ao poeta, remetendo-se a
tradição narrativa ocidental. Mais ou menos como o velho Serenos
Zeitblom, narrador do Doktor Faustus, de Thomas Mann, procurando se
lembrar como o jovem Serenos Zeitblom viveu sua amizade com o trágico
compositor Adrian Leverkhun. Firmemente atado a essa ancora de
racionalidade, Lourenço não permite que seus poemas sejam piegas ou
melodramáticos. Líricos sim, saudosos sim, jamais chorosos.
O poema “Os temperos de outros tempos”, do livro “A caligrafia das
heras” é um bom exemplo: “Naquele lugar e tempo / estar vivo tinha
outro tempero / não havia asfalto, telefone / psicologia, trauma, médico”.

268
A ironia é patente: as crianças criadas no passado e na roça, sem acesso aos
mimos e luxos urbanos, não tinham traumas. Traumas infantis seriam
“invenções” dos psicólogos modernos, “frescuras” que os civilizados
resolveram aceitar como fatos. Mais adiante, no mesmo poema, a voz lírica
advoga que “Qualquer fato comezinho / (a visita dos primos, a música no rádio,
/ um vento mais forte na saia da vizinha (...)) / tudo era acontecimento”.
Em Pela alvorada dos nirvanas, esse “acontecimento” banal do cotidiano
torna-se apoteose quando o jovem poeta descobre um mundo novo de
possibilidades ao ouvir pela primeira vez a música dos Beatles: “isso não
são horas de rever / aquele dia divisor / em que o antenado Thioray / a uns
poucos convidara / para estar em seu muquifo / (...) e ouvir um disco novo
/ de um troço novo / que ele chamou de rock’nroll”.
Sua força poética se sustenta em grande parte na capacidade de dividir
com o leitor o impacto do momento em que a alquimia emocional ocorreu.
Lourenço valoriza o momento da descoberta. Porém, não se torna prisioneiro
dele. Sua trajetória foi e é uma constante sequência de maravilhamentos,
num diálogo com o mundo, que não se estagna ou se cristaliza, que segue
adiante em busca de novidades, sempre questionando o já sabido. E é
justamente isso que cria empatia com o leitor. Uma reação ao mesmo
tempo emotiva, por acompanhar a descoberta, e intelectual, por pensar,
junto com o poeta, sobre ela.
Mesmo que seja para fazer joça de coisas sagradas. Como ocorre em um
poema onde Edival Lourenço reflete com soberbo humor negro acerca das
habilidades mágicas de um “homem de talento extraordinário / que era
capaz de transformar / água em vinho / ressuscitar mortos / e andar a
pé sobre as águas”. A voz lírica não poupa os carolas ao concluir que
“Transformar água em vinho / é uma atividade perniciosa / capaz de
quebrar a cadeia vinícola / provocar êxodo rural, gerar / desemprego em
massa”. Não deixa de notar que “Ressuscitar mortos não me parece / uma
atividade útil nem simpática” e que “Andar a pé sobre um mar tão vasto /
nunca levará a lugares significativos”. Aqui quem fala é o poeta adulto e
cético, zombando das ingênuas aulas de catequese que deve ter recebido
em Iporá. Importante notar que o título do poema, “Filigramas”, indica
que se trata mais de uma ironia do que exatamente de um ataque à religião.
Brutalizar não faz o estilo do poeta, que prefere expor com jocosa leveza o
absurdo lógico das situações.

269
2. Centopeia pós-moderna

Em contrapartida aos profetas apocalípticos que pregam o esgotamento


do romance, sobretudo em virtude das monstruosas realizações do senhor
James Joyce, surgiram recentemente os evangelistas da Boa Nova de que o
romance é o gênero literário pós-moderno por definição. Enquanto os
primeiros acreditam que o romance está morto, ou no mínimo moribundo,
estando fadado a desaparecer, o segundo grupo alardeia que o “defunto” foi
enterrado vivo, mas goza de excelente saúde. Os primeiros defendem que
o conto atende melhor aos interesses dos leitores do século XXI. Em tempos
em que tudo acontece de forma veloz, somente narrativas curtas e descar-
nadas podem sobreviver. Por outro lado, o segundo grupo crê que apenas a
voz polifônica típica do romance pode ao menos almejar dar conta da
complexidade do mundo contemporâneo. Somente diversas vozes, diver-
sos ângulos de narrativa, diversas perspectivas de visão dos personagens,
poderia produzir um modelo convincente da realidade tornada ficção.
De minha parte acredito que os evangelistas da Boa Nova estão certos.
Talvez os limites estéticos do gênero tenham mesmo sido alcançados com
a esfinge Finnegans Wake, mas não tenho dúvidas de que a história do
romance ainda é um work in progress. Não há como negar que, contra todas
as possibilidades, de tempos em tempos surgem volumes que impressionam.
Às vezes pela forma, às vezes pelo conteúdo, às vezes pelo conjunto.
Às vezes por alguns pequenos detalhes. Às vezes por verdadeiros achados
criativos. Obviamente, nem todos são obras-primas acima de qualquer
suspeita ou donos de grande fôlego, mas o fato é que o romance (para citar
uma novela) não é um Quincas Berro D’água. A vida está por todos os lados.
Em Goiás, inclusive.
O romance A Centopéia de Néon, de Edival Lourenço, é um bom exemplo.
Em meio à tradição goiana de romances calcados em troncos, chãos
vermelhos e pequis, é um livro que se destaca pelo inusitado. Com narrativa
não linear, farta ironia intertextual, dialoguismo citacionista misturando
referências eruditas e pop, em cenário predominantemente urbano,
A Centopéia de Néon é pós-moderno da primeira até a última página.

270
Composto no final dos anos 80, bem poderia estar à frente de seu tempo.
Não estava. Foi uma obra premiada. Venceu ao menos dois concursos
importantes: a versão 1992 da Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho
Ramos, da prefeitura de Goiânia, e a versão 1992 do Prêmio Nacional de
Romance do Estado do Paraná. Pelas realizações deste ano, os intelectuais
goianos distinguiram Edival Lourenço com o Troféu Tiokó Literatura –
Prosa. Neste embalo seu livro foi indicado como leitura obrigatória para o
vestibular e tornou-se um best-seller local.
A Centopeia de Néon prima pela originalidade. Sua estrutura não é linear.
São quatro capítulos, narrados em primeira pessoa por diferentes personagens,
com diversos pontos de intersecção. A rigor são quatro protagonistas, cada
qual narrando um enredo que se revele uma fração de um enredo maior.
Não é preciso dizer que Edival Lourenço não foi pioneiro em sua proposta.
Vide, por exemplo, a experiência menos radical de O Colecionador, de John
Fowles. Mas isto importa pouco diante da excelência do resultado.
A pedra angular da obra é um de seus protagonistas: o lobby-man Sidrake
de Thorteval Gahy, Sidrake, o Sinistro. O narrador do primeiro capítulo.
É ele quem fica. É dele que nos lembramos quando terminamos o livro e o
guardamos na estante.
É um personagem instigante, intrigante e, creio, mal compreendido.
No prefácio para a 3º edição, o professor do Departamento de Letras da
Universidade Católica de Goiás Eris Antônio Oliveira escreveu que
“Sidrake, o protagonista, é desprovido de qualquer valor ético ou moral
que possa enobrecer suas ações, por isto encontra-se situado no centro de
um conjunto de relações extremamente maléfico e desfavorável a qualquer
impulso construtivo dentro da sociedade” (1994, p. 12). Não concordo.
Tal descrição transforma Sidrake em um tipo bidimensional. Faz de um
personagem profundo e complexo um recorte de papel, frio e superficial.
Longe disto, Sidrake não é uma encarnação do anticristo, é apenas bom no
que faz. Não existe lobby-man bonzinho. Neste ramo, muitas vezes, ser
competente implica em ser canalha. Se ele inventou sob encomenda a
indústria do aborto clandestino, não foi nada pessoal, apenas negócios.

271
É sintomático o fato de que o livro abre com Sidrake enfrentando um
problema cotidiano dos mais comuns. Seu carro não pegou em uma manhã
fria, provavelmente devido ao excesso de álcool misturado à gasolina.
Diante do imprevisto, Sidrake, como qualquer cidadão, descente ou inde-
cente, xinga: “governo fedaputa que não fiscaliza esses postos ladrões”.
Nada menos condizente com um vilão temível ao estilo James Bond.
Sidrake não quer conquista o mundo, nem nada parecido, só têm consci-
ência de que precisa ser implacável para ser bem-sucedido. Sabe que “até o
nome de minha função, que antigamente era trambiqueiro, trapaceiro,
atravessador contravencional, vigarista, ganhou nome requintado com
adornos nobiliárquicos: lobby-man”. Mas, repito, são apenas negócios.
Sidrake, “apesar de durão e temido tinha alma de poeta”. Era o único
menino da família que tinha paciência para escutar até o fim as histórias
intermináveis de sua mãe “carcomida e esclerosada”. Adulto, tornou-se um
homem que se comove com As Quatro Estações, de Vivaldi. Um ávido leitor
de bulas de remédio, sem ser hipocondríaco (se fosse estaria esbarrando no
estereótipo). Um filantropo que vive um casamento de fachada. Um milio-
nário que compra o amor das mais belas mulheres, mas que não é um exemplo
de virilidade, sendo “portador de semi-flacidez e tinha um orgasmo frouxo”.
Admitindo limites estreitos à interpretação do personagem, ele pode ser
caracterizado como um vilão. Contudo, um vilão falível e humano.
Por outro lado, Eris Antônio Oliveira acertou em apontar Sidrake não
como “um protagonista”, mas como “o protagonista”. Está correto na
medida em que os outros três narradores, pretensos protagonistas de seus
respectivos capítulos, são como satélites orbitando a seu redor. Ele é o fio
condutor do romance. Tudo passa por ele.
Danton Mumbeka, o segundo narrador, é pouco mais do que seu
capanga. Faz o trabalho sujo para o lobby-man. O que inclui matar.
Apesar do currículo, ou em virtude dele, é forçoso notar que talvez seja
baixo demais para o que o enredo lhe atribui ser: um ex-sargento da elite
das Forças Armadas, de 1,50 m. de altura (O lendário T. E. Lawrence, o
Lawrence da Arábia, de 1,65 m, quase não entrou para o exército britânico,
que exigia três centímetros a mais). É o menos interessante do quarteto.

272
O terceiro narrador, um jovem parrudo e covarde chamado Jerônimo,
tornou-se, a pedido de uma amiga da família, aprendiz de capanga de
Sidrake. Tratado pela avó como um débil mental e por todos os outros
personagens como um simulacro de Rambo, o soldado interpretado por
Sylvester Stallone, Jerônimo revela-se para o leitor como um verdadeiro
intelectual. É desmedidamente, talvez exageradamente, culto, irônico, sa-
gaz e articulado. E tem sorte: sendo um menino de fazenda, é um dos
poucos brasileiros a conhecer o mais bem guardado segredo da indústria
fonográfica internacional. Um segredo envolvendo nada menos do que os
Beatles.
Trata-se do maior achado criativo de Edival Lourenço. John Lennon
não morreu e está na ativa usando a identidade de seu filho, Julian (George
Harrison ainda não tinha “fingido” sua morte quanto o livro foi escrito).
Compõe e ensaia com os três companheiros em uma chácara alugada,
se preparando para o retorno triunfal da banda em 2010, evento que
“vai ofuscar a segunda vinda de Cristo” (cancelada por algum motivo).
Considerando que os Rolling Stones ainda tocam Satisfaction até hoje,
imagino que não seria problema a idade que os quatro anciões de Liverpool
teriam em 2010. Os ressuscitados John e George terão respectivamente 70
e 67. Paul, 68, e Ringo, 70 anos. Provavelmente, o terceiro capítulo, inti-
tulado Diabo é o que Habitava a Guitarra de George Harrison, é o menos
coeso do romance. Mas é também o mais charmoso. E o mais independente,
o mais desligado da trama geral. Não precisa tanto das outras partes para
se sustentar. Funciona como um conto.
Uma amante de Sidrake, escolhida por alienígenas para ser a mãe do
novo messias, é a protagonista do quarto capítulo. Não se trata de uma
camponesa virgem, e sim de uma prostituta de luxo que estuda comunicação
nas horas vagas; ou melhor, de uma estudante de comunicação que é
prostituta de luxo nas horas vagas. Seu nome é Romilda Nardini, mais
conhecida como Romã. Como parece ser comum entre estudantes de
comunicação que são prostitutas de luxo nas horas vagas, apresenta-se como
sendo jornalista e modelo. Protegida pelo amante, tornou-se a estrela
maior do telejornalismo nacional. Qualquer semelhança com a realidade
não é mera coincidência. Sua história é a mais aloprada dentre as quatro.

273
Numa bela noite Romã viveu um Contato Imediato do Terceiro Grau.
O furo do século. Entrevistou um extraterrestre, vindo do planeta Gran
(!?), de quem recebe umas libertinas apalpadelas inter-raciais e interplanetárias.
A estranhíssima criatura, em um português telepático dos mais coloquiais,
revela para a bela jornalista que os terrestres são fruto de um experimento
biológico levado a cabo pelos cientistas da civilização intergaláctica When
(!!??), no melhor estilo O Guia do Mochileiro das Galáxias. Segundo o ET, a
humanidade se encontra a beira da autodestruição e Romã recebe a missão
de gerar um híbrido humano/alienígena para salvá-la. Antes de desaparecer,
perseguido por agentes do governo norte-americano (Homens de Preto?), o
alien deixa com ela um aparelho contendo detalhes do plano.
Sem medo da polêmica, Romã coloca estas informações no ar e cai em
desgraça. É sequestrada a mando de Sidrake, tem seu aparelho alienígena
roubado, é despedida da rede de TV e dada como louca. É bem provável
que tenha mesmo enlouquecido.
Dizem que, entre amigos, o grande escritor de ficção científica Arthur
C. Clark gostava de enumerar, em tom jocoso, as diversas formas que
existem de uma pessoa achar que viu discos voadores. De fato, os físicos e
astrônomos sérios já cansaram de descrever as invencíveis dificuldades que
impediriam visitas intergalácticas entre civilizações inteligentes. Neste
sentido, o desmistificador livro Porque Não Há Discos Voadores, de Max
Sussol, mostra que se no mundo antigo os judeus tinham visões de Jeová e
os gregos de Zeus, com o advento do cristianismo multidões passaram a
ter visões de anjos, Maria e Jesus. Na Idade Média via-se sucubos, incubos,
bruxas voadoras, dragões etc. Em seguida fantasmas passaram a vagar pela
Terra, sendo depois codificados como espíritos desencarnados por Kardec.
Mas, “como a moda sempre se renova, eis que na 2º metade de nosso século
(XX), surgem visões mais modernas: UFOS, OVNIS, CHARUTOS,
PIRES, NAVES E DISCOS-VOADORES transportando alienígenas de
todos os tamanhos, de todas as cores e para todos os gostos” (1986).
É quase certo que tais pequenezas pragmáticas pouco interessavam
Edival Lourenço. Não deve ser descartada a possibilidade de ele haver criado
em Romã um personagem esquizofrênico. Abalada psicologicamente pela
morte violenta dos pais. Talvez, na condição de estrela televisiva, fomentadora

274
de uma histeria coletiva. Somente uma alucinação pode explicar a termi-
nologia usada pelo emissário de When. Afinal, com certa condescendência
é até possível admitir que um extraterrestre diga “ET... phone... home...”,
mas é difícil engolir que comparassem uma viagem de milhões de anos-luz
com “um trabalho semelhante a subir de canoa em cachoeiras”.
Seja como for, esquizofrênica ou não, Romã acredita piamente em sua
história e a narra com a convicção dos inocentes. Conta que tempos depois,
enquanto trabalhava em reportagens pouco importantes, teve um encontro
erótico com um alienígena. Depois de fecundá-la, o Anjo Gabriel pós-
moderno parte para nunca mais voltar em “um conjunto de naves apa-
rentemente germinadas, de contorno fluido e brilho azul-fluorescente
feito uma incrível centopeia de néon”. O romance fecha com sua espera:
“a descomunal expectativa: o nascimento do Anunciado Miscigênito e toda
a História em recomeço”.
Além dos nomes excêntricos os “protagonistas” de A Centopeia de Néon
compartilham uma outra característica bastante curiosa: são quadrigêmeos
narrativos. Neste aspecto, A Centopeia de Néon lembra Drácula, de Bram
Stoker, um romance epistolar em que todos os personagens escrevem com
um único estilo, o estilo do autor. Talvez essa incomoda característica seja
o aspecto mais desabonador do romance. Por sorte, no presente caso,
como afirmou Rubem Fonseca sobre Edival Lourenço, “seu texto é ótimo”.
Como explicar tão assombrosa semelhança? Quádrupla personalidade
de um sujeito oculto? Será um lobby de Sidrake junto a Edival? Em princípio,
o estilo copiado é o dele, já que foi o primeiro a apresentá-lo. Não podemos
esquecer que o lobby-man ficou de posse do aparelho de When. O cheiro
de conspiração está no ar. Visando o que? Talvez despistar a humanidade
quanto a eminente chegada do Anunciado Miscigênito. Transformar aos
olhos do público uma realidade em ficção. Será Sidrake uma versão pós-
moderna do Grande Inquisidor dostoievskiano? Não sei. Se for, mais uma
vez, que se saiba que não é nada pessoal contra o salvador da humanidade,
mas apenas negócios.

275
3. O futuro no pretérito

O historiador francês Paul Veyne, em seu longo ensaio “Como se


Escreve a História”, defendeu que: “A história é anedótica. Ela interessa
porque narra, assim como o romance (...). A história da revolta pode
permitir-se ser enfadonha sem, por isso, desvalorizar-se. Provavelmente, é
por isso que a história imaginária nunca pegou como gênero literário”
(1998, p. 23). Não há como discordar do mestre. Ao mesmo tempo em que
o romance histórico se trata de um gênero bastante definido, é inegável
que seus representantes de maior destaque elevam-se para muito além do
nicho. Só é possível citar uns poucos que podem ser reconhecidos como
alta literatura, tais como Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar,
ou Eu, Claudius, Imperador, de Robert Graves. Da mesma forma, ser inspirado
ou usar fatos históricos como pano de fundo não qualifica certos livros
como romances históricos. É o caso, por exemplo, de O Nome da Rosa, onde
a ambientação medieval e a presença discreta de personagens reais foram
utilizadas, sobretudo, como forma de emprestar verossimilhança a um
complexo jogo de citações eruditas enredado por Umberto Eco. Arrisco-me
a afirmar que o mesmo pode ser dito sobre épicos como Guerra e Paz, de
Tolstói, e O Vermelho e o Negro, de Stendhal.
A escrita do romance histórico é, portanto, um terreno pantanoso.
Como evitar que a narração de uma estória dentro da história sob a tutela
da História se transforme em pastiche? Difícil dizer, mas esse desafio tem
sido tomado muito seriamente pelos escritores goianos. O Tronco, de
Bernardo Elis, e Veias e Vinhos, de Miguel Jorge, são exemplos célebres.
Mais recentemente, Mauro Araújo, que já havia realizado uma ampla
pesquisa para reconstruir a era elisabetana em O Visitante, redobrou os
esforços para A Batalha de Poitiers. Em 2010, o arquiteto e urbanista
Gustavo Neiva Coelho lançou O Último Sambenito, fruto de anos de pesquisa
em diversos arquivos brasileiros e europeus. Os resultados são variáveis em
termos de qualidade, mas, em seu conjunto, indica uma tendência de
fortalecimento do gênero.

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O novo viajante do tempo é Edival Lourenço com seu romance Naqueles
Morros, Depois da Chuva – O Jogo do Diabolô, ambientado no Brasil do
século XVIII. A obra recebeu patrocínio da Petrobras e da Caixa Econômica
Federal, via Lei de Incentivo do Ministério da Cultura. No texto introdu-
tório, institucional da Petrobras, justificou-se o mecenato a partir da
perspectiva de que Naqueles Morros, Depois da Chuva foi calcado em “uma
meticulosa pesquisa como pilar básico. Mas se dá o direito de imaginar e
criar circunstâncias, cenários e personagens, e, assim, reconstruir memórias
perdidas ou silenciadas (...), buscar, resgatar e revelar a memória coletiva é
contribuir para que o Brasil se conheça mais, e se reconheça melhor na voz
de seus artistas” (2011, p. 3).
Sem dúvida, Lourenço é uma voz artística que merece ser ouvida.
Estreando na prosa com A Centopeia de Neon, um dos mais inventivos e
engraçados livros publicados no Brasil nas últimas décadas, mais de vinte
anos separam sua primeira excursão pelo gênero romance desta segunda.
Não creio que Naqueles Morros, Depois da Chuva representa necessaria-
mente um passo adiante do autor, diria que seria mais uma mudança de
direção. Se Centopeia de Neon é uma narrativa não linear, irônica, urbana e
pop, o novo livro é o inverso: prima pela narrativa clássica e realista. Existe
misticismo, mas ele é mais simbólico do que real. Passa longe do realismo
mágico sul-americano à Garcia Márquez. O humor afiado que sempre foi
marca registrada de Lourenço também está presente. Mas, diferente do
tom jocoso e, às vezes, nonsense de A Centopeia de Neon, encontramos agora
fina ironia.
Naqueles Morros, Depois da Chuva é um Road Book. Sua trama se
desenvolve no decorrer da longa jornada entre São Paulo de Piratininga e
o arraial de Santana, feita pela comitiva liderada pelo governador Luis de
Assis Mascarenhas. Sua missão é preparar a região das Minas dos Goyazes
para receber sua autonomia administrativa. Para ajudá-lo na tarefa vai o
descobridor das minas, Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera em
carne, osso e chapelão. Junto aos dois, caminha uma galeria de personagens
coadjuvantes, incluindo o narrador da história: um filho bastardo do
Anhanguera. Curiosamente, trata-se ao mesmo tempo de um narrador em
primeira pessoa e onisciente. Um traço de estilo que chama atenção nessa
nova proposta literária de Lourenço. Para Anhanguera “os bastardos não
se contam”. De fato, a delicada questão da bastardia é um assunto recor-
rente no livro. Um de seus mistérios.

277
O ritmo da narrativa é ditado, segundo a vontade do autor, pelo ritmo
da jornada da comitiva. Às vezes mais rápida, às vezes mais lenta. Uma
odisseia no cerrado. O enredo sustenta-se, sobretudo, na relação entre os
personagens, expostos em suas personalidades, ora conflitantes, ora em
colaboração, como seria de se esperar estando eles numa situação limite.
Uma viagem com essa, no século XVIII, com todos seus problemas logís-
ticos e perigos, não era mesmo algo simples. Lourenço soube descrever
essa dificuldade. Isso não é apenas pesquisa, é senso de escrita dramática.
Mais importante do que a pesquisa histórica em si é a maneira como ela
foi utilizada. Quase sempre é de modo invisível, inserida na trama. As
referências de tempo e espaço estão competentemente diluídas nas falas e
descrições. De modo geral, não são ostensivas. Mesmo as imensas listas de
figuras reais citadas ao longo das páginas, demonstrando que Lourenço
pesquisou exaustivamente os Livros de Linhagem ibéricos, estão ali para
gerar credibilidade, não para disfarçar falta de profundidade com informa-
ções vazias. Quando fica evidente que o autor exibe seus esforços investi-
gativos, encaixando na narrativa um rosário de erudição oitocentista, o faz
de modo elegante.
Um exemplo lapidar está no início do oitavo capítulo, quando dom
Luís abre uma de suas arcas de enxoval e descreve o que encontra. Dentre
outras coisas vê ali “78 cartas de tarô, com seus arcanos maiores e menores,
de cuja existência não convêm que a Santa Inquisição nem os padres de seu
comboio tomem conhecimento, uns sete ou oito dobrões de ouro que são
seu amuleto (...) um volume do ‘Meteorologicorum’ de Aristóteles e outro da
‘Ilíada’ de Homero, uma edição antiga de ‘Os Lusíadas’ de Luis de Camões,
uma bíblia em latim, com suposto revestimento de pele humana curtida”.
Ocultismo, dinheiro, cultura clássica filosófica e poética, literatura portu-
guesa e, finalmente, um exemplar do livro sagrado supostamente encadernado
com o preço dos pecados de algum infeliz. Em um apenas parágrafo, descreve-
se um vasto e ao mesmo tempo conciso painel da mentalidade da época.
Finalmente, é importante enfocar o título. À primeira vista parece
estranhamente bucólico, sobretudo para um romance histórico. Naqueles
Morros, Depois da Chuva, lembra os títulos de J. M. Simmel: Todos Seremos
Irmãos, Amanhã é Outro Dia, Até o Mais Amargo Fim ou Mesmo Sorrindo,
Preciso Chorar, dentre outras pérolas. Nada mais falso. Um exame mais
atento revela que é uma expressão que faz todo sentido, muito, muito longe

278
da autoajuda de Simmel. Lemos na epígrafe do livro “E perguntado aos
índios, onde tinham achado aquelas folhetas de ouro, respondendo o cacique:
‘naqueles morros, depois da chuva’ (Capitão do Mato Antonio Pires de
Campos, companheiro de Anhanguera)”. Imbuído de seu contexto histórico,
o título cresce, ganha uma dimensão épica e trágica, semelhante àquela
encontrada no clássico Enterrem Meu Coração na Curva do Rio, de Dee Brown.
O subtítulo ajuda nessa revalorização: “O Jogo do Diabolô”. Trata-se
daquele jogo em que o objetivo é fazer com que se encaixe, jogando no ar,
duas peças ligadas por um fio. O nome do objeto parece provir do grego
diaballo. Dia seria volta e ballo atirar. No contexto da narrativa de Lourenço,
esse “atirar de volta” pode ser múltiplos elementos: desde o retorno do
Anhanguera às minas que descobriu até o passado do fidalgo Dom Luís
que fatalmente vai alcançá-lo na página final do livro. O fio que liga as duas
peças seria a jornada da comitiva. Tortuosa e com grande possibilidade de
dar tudo errado.
Não deu. Por duros caminhos, a comitiva consegue chegar ao Arraial
de Santana. Assim como Lourenço consegue alcançar seu objetivo
enquanto autor de romance histórico. Depois de explorar o presente e o
possível futuro da humanidade (e dos Beatles) em A Centopeia de Neon, em
Naqueles Morros, Depois da Chuva volta ao passado para redefinir sua
trajetória artística. Mostrou talento para o gênero. Algo, como mostrou
Paul Veyne, muito difícil. Pode ser que Edival Lourenço, em seu terceiro
romance, mude novamente de rumos, mas, por hora, seu futuro parece
estar no pretérito.

REFERÊNCIAS
LOURENÇO, Edival. Poesia reunida. São Paulo: ExMachina, 2014.
LOURENÇO, Edival. A Centopeia de Neon. Goiânia: Criassã, 1994.
LOURENÇO, Edival. Naqueles morros, depois da chuva. São Paulo: Hedra, 2011.
SUSSOL, Max. Porque não há discos voadores. São Paulo: Editora Parma, 1986.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Brasília:
Editora da UnB, 1998.
AUTORES

ORGANIZADORES

Ademir Luiz da Silva é Presidente da União Brasileira de Escritores (UBE),


Seção Goiás. Doutor em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e
professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Docente do programa de
pós-graduação interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado
(TECCER), e nos cursos de História & Arquitetura e Urbanismo. Realizou pós-
doutorado em Poéticas Visuais e Processos de Criação. Bolsista pesquisador do
Instituto Camões de Portugal (2002). Coordenador do LUPPA (Laboratório de
Pesquisa e Produção Audiovisual). Editor do periódico acadêmico Revista "Nós -
Cultura, Estética & Linguagens". Indicado ao Prêmio Capes de Teses 2009.
Vencedor do Prêmio Cora Coralina de 2002, do Troféu Goyazes 2013, do Prêmio
Hugo de Carvalho Ramos 2014 e da Comenda Medalha do Mérito Cultural 2015,
do Governo do Estado de Goiás.

Eliézer Cardoso de Oliveira é Doutor em Sociologia pela Universidade de


Brasília (2006), com Mestrado em História pela Universidade Federal de Goiás
(1999) e Graduação em História também pela Universidade Federal de Goiás
(1996). Atualmente é professor efetivo do curso de História e do Mestrado em
Territórios e Expressões Culturais no Cerrado, da Universidade Estadual de
Goiás (Anápolis). Realizou o estágio pós-doutoral no Programa de Ciências da
Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2015). O campo de
atuação abrange uma interface entre História e Sociologia, abordando os
seguintes temas: estética da catástrofe, história cultural, sociologia da valentia,
saberes e expressões culturais do cerrado, teoria da história.
COLABORADORES

Andressa Andrade Pires é Graduanda do curso de Letras Português-Inglês da


Universidade Estadual de Goiás (UEG). Foi bolsista do PIBIC-UEG. Tem
experiência na área de Letras, com ênfase em Análise de Gênero (Linguística) e
Literatura Goiana

Émile Cardoso Andrade é Doutora em Literatura (2011) e mestre em Teoria


literária pela Universidade de Brasília (UnB), possui graduação Letras Português
pela mesma universidade (2002). Atualmente é professora da Universidade
Estadual de Goiás inscrita no POSLLI - Programa de Pós-graduação stricto sensu
em Língua, Literatura e Interculturalidade - campus Cora Coralina. Atua nas
linhas de pesquisa que envolvem literatura e outras artes, literatura e mídias
contemporâneas e literatura e história. Possui projeto de pesquisa na linha:
Literatura, imagens e interculturalidades e é coordenadora do GPTEC Grupo de
Pesquisa em Imagens técnicas (CNPq) desde 2011. Foi coordenadora da Pós-
graduação lato sensu em Literatura e mídias contemporâneas pela UEG
Universidade Estadual de Goiás campus Formosa (2016/2017). Foi coordenadora
de PIBID Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à docência desde 2012 a
2018 e desenvolveu projetos de leitura e escrita em novas mídias em escola pública
do município de Formosa, Goiás.

Ewerton de Freitas Ignácio é mestre em Literaturas em Língua Portuguesa e


doutor em Literaturas em Língua Portuguesa com estágio pós-doutoral em
Literatura Brasileira. Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de
Goiás/Anápolis, onde atua junto ao PPGSS TECCER (Territórios e Expressões
Culturais no Cerrado). Editor do periódico Via Litterae e da Revista Nós.
Membro do Comitê Interno de Pesquisa da UEG. Coordenador do projeto de
pesquisa A representação da cidade na literatura goiana, financiado pelo CNPq.
Líder do Grupo de Pesquisa ERUDIO. Tem experiência na área de Literatura
brasileira, com ênfase em literatura goiana; Teoria literária; Ensino de Literatura e
Letramento Literário. É escritor (romancista e cronista). Bolsista PROBIP -
Programa de Bolsas de Incentivo à Pesquisa da UEG.

Fernando Martins dos Santos, natural de Aurilândia (GO), é mestre em


Ciências Sociais e Humanidades pelo TECCER / UEG, doutorando em História
pela Universidade Federal de Goiás, na linha de pesquisa Fronteiras,
Interculturalidades e Ensino de História. Professor de História e História da Arte
nas redes ensino particular em Goiânia. Tem trabalhos publicados em periódicos e
anais de eventos nacionais e internacionais. Seus estudos se concentram na
construção de Veiga Valle como principal representante da arte sacra goiana.
Geisa Daise Gumiero Cleps possui graduação em Geografia pela Universidade
Estadual de Maringá - UEM (1990), mestrado e doutorado em Geografia pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP, Campus de Rio
Claro (1997, 2005). Cursou pós-Doutorado na Universidade Federal de Sergipe
(UFS), no Programa Nacional de Pós Doutorado da CAPES. Atualmente é
Professora Associado III da Universidade Federal de Uberlândia, nos cursos de
Graduação e Pós-Graduação em Geografia (mestrado e doutorado). Tem
experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia Urbana e Econômica,
atuando principalmente nos seguintes temas: cidade; comércio, consumo e
serviços; dinâmica populacional e territorial e Economia Solidária. Membro do
NDE desde 2015. Pesquisador Mineiro - Nìvel A (a partir de julho/2015).

Heleno Godoy é Professor Titular (aposentado) de Literatura Inglesa da


Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Possui licenciatura plena
em Português-Inglês e Literaturas Correspondentes pela Universidade Católica
de Goiás (1976), mestrado em Modern Letters pela University of Tulsa (1981) e
doutorado em Letras (Estudos Linguísticos e Literários em Inglês) pela
Universidade de São Paulo (2004). Foi, durante trinta e dois anos, professor
Adjunto de Literaturas de Língua Portuguesa e Teoria da Literatura no
Departamento de Letras da Universidade Católica de Goiás, com atuação na
graduação e pós-graduação (Mestrado em Literatura e Crítica Literária, em que
ministrou cursos de Teoria da Narrativa). Tem experiência na área de Literaturas
de Língua Portuguesa, Literaturas de Língua Inglesa e Teoria da Literatura
(especialmente Narratologia, teoria do texto poético, teoria o texto dramático). É
escritor (poeta, contista e romancista, com mais de dez livros publicados, tendo
recebido vários prêmios, entre eles os das Bolsas de Publicação “Hugo de
Carvalho Ramos”; e “José Décio Filho”. Sua obra poética apareceu em Inventário
– poesia reunida, inéditos e dispersos (1963-2015) (Goiânia: martelo, 2015).

Heloisa Selma Fernandes Capel é Professora da Universidade Federal de


Goiás, local em que atua na linha de pesquisa em Interculturalidades do Programa
de Pós-Graduação em História. Coordena o GEHIM - Grupo de Estudos de
História e Imagem (CNPq/ UFG). É Membro do GT Nacional de História
Cultural. Participa do Conselho Editorial da Revista Fênix: Revista de História e
Estudos Culturais. É editora da Revista Nós - Cultura, Estética e Linguagens.
Coordena a coleção História Cultural junto ao corpo editorial das Edições
Verona/ SP. Desenvolve os projetos Mito e Performance: interfaces na formação
do Professor de História e Diálogos Inverossímeis: cultura e sociedade na poética
utópica de Modesto Brocos y Gomez. Foi Conselheira de Cultura do Município
de Goiânia (2005-2012), Coordenadora do Curso de Especialização em Formação
de Professores e História Cultural (PUC/GO - 2004/2009), Coordenadora do
Programa de Mestrado em História (PUC/GO - 2008/2009), Coordenadora do
Curso de Especialização em História: Imaginários, Identidades e Narrativas
(UFG - 2011/2014), Coordenadora dos Cursos de Licenciatura e Bacharelado em
História (UFG - 2011/2013), Vice-diretora da Faculdade de História (UFG -
2011/2013), Presidente da Comissão de Reformulação do Projeto Pedagógico
Curricular do curso de História (UFG/2013) e membro e Presidente do Núcleo
Docente Estruturante do Curso de História (UFG - 2010/2013). Além de vários
artigos publicados em periódicos especializados, publicou, dentre outros
trabalhos, O Espelho de Atena: mito e formação e Flores de Goiás: comunidade
negra. Em conjunto com outros autores, organizou as obras Conversas com Didi-
Huberman ( 2016) Narrativas Ficcionais e Escrita da História (2013),
Performances Culturais (2011) e Criações Artísticas: representações da história
(2010). Atua na área de História com ênfase em história cultural, estudo das
imagens e ensino.

Isaias Martins de Souza é Graduado em Letras pela Universidade Federal de


Goiás (UFG). Pós-graduado em História Cultural: Imaginário, identidades e
narrativas pela Faculdade de História da UFG. Mestre em Educação, Linguagem
e Tecnologias (UEG). Correio eletrônico: isaias.msouza@hotmail.com

José Eduardo Mendonça Umbelino Filho é Doutor em sociologia pela


Universidade Federal de Goiás UFG, na linha de Cultura, Representações e
Práticas Simbólicas. Possui graduação em Comunicação Social - habilitação em
Jornalismo - e mestrado em Comunicação, ambos pela Universidade Federal de
Goiás (UFG). Especialista em História Cultural. Tutor de Educação a Distância
pelo Núcleo de Direitos Humanos (NDH) da UFG, para o curso de
Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania.
Atuou como assessor de imprensa de empresa privada e no Governo de Goiás.
Atuou como Docente dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda. É
pesquisador da área de Comunicação, com experiência em pesquisa de campo,
abordagem quali-quantitativa e análise de conteúdo e discurso, tendo participado
da coleta, avaliação e análise de dados de pesquisas de formação de imagem
política em 14 cidades dos Estados de Goiás e Mato Grosso. Participou do Grupo
de Pesquisa de Gêneros Jornalísticos da Faculdade de Informação e Comunicação
da UFG, e realizou mobilidade acadêmica de mestrado para a Universidade do
Vale do Rio dos Sinos (Unisinos, RS) como parte das atividades do PROCAD
focadas em epistemologias da Comunicação. Escritor premiado em concurso
literário, é filiado à União Brasileira de Escritores - seção Goiás, possuindo dois
livros publicados, além de participações em coletâneas de contos e em projetos
literários virtuais. Recebeu menção honrosa no Prêmio Sesc de Literatura em
2014 e foi vencedor da Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, pela UBE-GO, em 2016.
Karinne Machado Silva é Doutora em Geografia. Possui graduação em
História pela Universidade Federal de Goiás (2002). Especialização em História,
título: Identidade visual da cidade de Goiânia (1933-1960): uma possibilidade de
interpretação. Mestrado em História pela Universidade Federal de Goiás (2006),
título da dissertação: Álbuns da cidade de Goiânia: Visualidade documental (1933-
39), orientador Luiz Sérgio Duarte da Silva. Atualmente é professora do Instituto
Federal de Goiás (IFG), campus Goiânia Oeste. Em 2013 publicou o livro: Álbuns
da Cidade de Goiânia: visualidade documental (1933-40). Tem experiência na área
de História, com ênfase em História e Imagem, atuando principalmente nos
seguintes temas: Ensino de História; história e documento visual.. Atualmente
cursa Doutorado em Geografia, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU),
linha de concentração Análise, Planejamento e Gestão dos Espaços Rural e
Urbano, sob a orientação da professora Drª.: Geisa Daise Gumiero Cleps.
Professora do IFG (Instituto Federal de Goiás), lotada no campus Goiânia Oeste.

Lucas Pedro do Nascimento é Mestre em Educação, Linguagem e


Tecnologias (UEG); Mestrando em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado
(TECCER); Docente do curso de Licenciatura em Pedagogia na Faculdade
Metropolitana de Anápolis.

Lucas Pires Ribeiro é Mestre em Ciências Sociais e Humanidades pelo


Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado –
TECCER da Universidade Estadual de Goiás. Professor de História das Américas
da Universidade Estadual de Goiás - Câmpus Porangatu. e-mail:
lucas_nister@hotmail.com

Marco Túlio Martins é Doutor em Geografia pela Universidade Federal de


Uberlândia com enfase em Geografia Política, Planejamento e Ordenamento
Territorial e História do Pensamento Geográfico. Mestre em Geografia pela
Universidade Federal de Uberlândia. Graduado em Geografia
Licenciatura/Bacharelado pela Universidade Federal de Uberlândia; Pesquisador
do Núcleo de Pesquisa em Geografia e Memória - UFU. Tem experiência na área
de Geografia Humana, Geografia Política com ênfase em História do Pensamento
Geográfico. Foi professor Substituto do Instituto Federal de Goiás - Campus
Itumbiara. Atualmente é professor da Universidade Estadual de Goiás - Campus
Itapuranga e atua como Coordenador do Curso de Geografia da UEG - campus
Itapuranga.
Maria de Fátima Oliveira possui Doutorado em História pela Universidade
Federal de Goiás (UFG), 2007; Pós-doutorado em História pela Universidade
Federal de Goiás (UFG), 2014. Mestrado em História pela Universidade Federal
de Goiás (UFG), 1997; Graduação em Ciências Sociais (Licenciatura Plena) pela
Faculdade de Filosofia Bernardo Sayão (FFBS) (1984). Atualmente é
professora/pesquisadora na Universidade Estadual de Goiás (UEG), Campus de
Ciências Sócio Econômicas e Humanas (CCSEH). Docente do Mestrado
Interdisciplinar Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER) e do
Curso de Licenciatura em História, com ênfase em História Regional (Goiás e
Tocantins) e História do Brasil; Membro do Grupo de Pesquisa GP/CNPq
História do Cerrado Brasileiro (UEG). Bolsista do Programa de Bolsa de
Incentivo ao Pesquisador (BIP)/UEG.

Maria Helena Chein nasceu em Goiânia e passou a infância em Anicuns, Goiás.


É formada em Pedagogia e Orientação Educacional pela Universidade Federal de
Goiás, e em Letras Vernáculas pela Universidade Católica de Goiás, hoje PUC.
Durante nove anos fez programas na Rádio Universitária. É contista e poeta.
JOANA E OS TRÊS PECADOS foi escolhido para figurar na coleção dos dez
melhores livros em prosa do século XX, em Goiás, fazendo parte da Biblioteca
Clássica Goiana e também foi leitura para o vestibular da UFG em 1989. Entre as
inúmeras premiações e homenagens recebidas estão: Troféu Tiokô, da União
Brasileira de Escritores, seção de Goiás; Mulher Destaque, 1993, do Clube
Soroptimista Internacional de Goiânia; Medalha Leodegária de Jesus, do
Conselho Estadual de Cultura; Troféu Goyazes, da Academia Goiana de Letras.
Publicou os livros de contos: Do Olhar e do Querer; Joana e os Três Pecados; As
Moças do Sobrado Verde; Uma Queda e Outros Galopes; Recontar o Conto. No
prelo: Caçador de Manhãs.

Moema de Castro e Silva Olival (1932-2021), filha de Colemar Natal e


Silva, fundador e primeiro reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG), foi
professora de Língua Portuguesa e Estilística, na graduação, e de Crítica Literária
no curso de Mestrado em Letras e Linguística que fundou e coordenou por vários
anos na UFG. Fundadora do Centro de Estudos Portugueses da UFG, membro
da Academia Brasileira de Filologia, da UBE – GO (União Brasileira de
Escritores – sessão Goiás) e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás,
transformou sua coleção “O espaço da crítica” numa marca de excelência na
crítica literária goiana e brasileira. Premiada dentro e fora do país, a professora
Moema recebeu a comenda da Ordem do Mérito, conferida pelo presidente
português Mário Soares, pela contribuição à divulgação da Língua Portuguesa, os
prêmios Clara Ramos e Antônio Olímpio, conferidos pela UBE-RJ, o troféu
Tiokô, na área de crítica literária, da UBE – GO, e o Prêmio Wendell Santos, da
Secretaria de Cultura de Goiás, além de outros. Aposentada da academia, não
deixou de produzir. Autora de mais de uma dezena de livros, tendo “A Literatura
Brasileira e a Cultura Árabe” no prelo, lançou em 2012, na coleção Prosa &
Verso, o volume “Contos (Des)armados”, sua estreia na ficção.

Robson Mendonça Pereira é graduado em História (1992), mestre (1996) e


doutor (2005) em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Fez
estágio pós-doutoral em História Social (2012-2014) pela Universidade de São
Paulo (USP). É professor da Universidade Estadual de Goiás desde 1999, atuando
no curso de licenciatura em História e como docente pesquisador do quadro
permanente do Programa de Pós-graduação Acadêmico Interdisciplinar em
Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER), no Campus Anápolis
CSEH/UEG. Criou em 2013 o Laboratório de Pesquisa Interdisciplinar em
História e Cultura do Cerrado (LAPIHCER-UEG), contando com financiamento
da FAPEG (2013-2016). Coordenou e administrou o projeto de Implantação e
Estruturação do Mestrado Acadêmico TECCER, com financiamento do
Convênio FAPEG/CAPES (2015-2018). Foi bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo-FAPESP (1997-1998), da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de Goiás/CAPES (2012-2014) e do Programa de Incentivo
ao Pesquisador (BIP/UEG) entre 2014 e 2018. Sua área de atuação em pesquisa
volta-se para História Política, Biografia/Autobiografia, História da Saúde e das
Doenças e História Cultural.

Tarsilla Couto de Brito é Professora de Teoria Literária e Ensino de literatura


na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestre em
Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas com
dissertação sobre o poeta brasileiro Murilo Mendes (Unicamp-2005) e doutora
pela mesma instituição com tese sobre a narrativa romanesca “As aventuras de
Telêmaco escrita por Fénelon no final do século XVII francês” (Unicamp-2013).
Desde as pesquisas de mestrado até o presente momento, seus interesses
atravessam diferentes objetos literários com um objetivo teórico: compreender as
práticas de deformação da realidade empreendidas na tradução de um sentimento
de mundo para a linguagem literária.
COLEÇÃO
“ TESSITURAS DO CERRADO ”

O tema deste livro é um desses encontros entre


modernidade e literatura, ocorrido bem no meio do
Cerrado, no estado de Goiás, particularmente na cidade de
Goiânia a partir da década de 50 do século XX. Para
muitos sociólogos, historiadores e críticos literários, esse
encontro trouxe uma oportunidade ímpar para estudar a
autonomização do campo literário goiano, a partir da
sofisticação das obras e da crítica, do surgimento de
instituições literárias e de eventos culturais e de publicações
periódicas voltadas para o campo literário. Mais importante
ainda: o encontro entre literatura e modernidade no sertão
goiano inspirou o surgimento de obras que são documentos
complexos de uma sociedade em meio a uma encruzilhada
cultural, pressionada a escolher “entre o arcaico e o
moderno”, ou seja, entre adotar os valores modernos ou
manter os provincianos. Para os diferentes autores dos
textos que compõem esse livro, as “letrinhas” que formaram
palavras colocadas uma a frente da outra tem um
significado além da tão almejada fruição estética, pois são
concebidas como documentos da cultura. Está é a
“realidade da ficção”, ou seja, o momento em que as obras
literárias saem do mundo divertido da ficção e adentram ao
mundo sério da crítica literária, da análise sociológica e da
narrativa historiográfica.

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