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CRUZ: “Misericórdia vulnerável”

“Enquanto instituía a Eucaristia, como memorial perpétuo d’Ele e da sua Páscoa, Jesus colocava simbolicamente este
ato supremo da Revelação sob a luz da misericórdia. No mesmo horizonte da misericórdia, viveu Ele a sua paixão e
morte, ciente do grande mistério de amor que se realizaria na cruz” (Papa Francisco – Misericordiae Vultus)

A CRUZ é o lugar por excelência da revelação visível da Misericórdia de Deus.


No mistério da Paixão do Filho se manifestou radicalmente a Misericórdia do Pai. Na Paixão
encontra-mos a Misericórdia de um Deus que desceu e chegou até o extremo da fragilidade para
manifestar a força reconstrutora de seu Amor.
Cruz de Jesus expressa de maneira penetrante o Amor Misericordioso do Pai. Ela é revelação do
Amor levado até às últimas consequências. Ela nos fala daquilo que Deus sente por nós.
“Deus é capaz de sofrer porque é capaz de amar. Sua essência é a MISERICÓRDIA” (Moltmann).
O Amor torna o próprio Deus vulnerável e passível de um sofrimento livre, ativo, fecundo.
Se Deus fosse impassível (incapaz de sofrer) seria também incapaz de amar.
De fato, o mistério do “amor em excesso” de Deus, revelado no silêncio junto ao sofrimento inocente,
chama-se misericórdia compassiva. Só o amor é capaz desse sofrimento compassivo. Porque é Amor
puro, Deus usa de paciência, de presença silenciosa, de misericórdia ativa e, assim, salva de forma
com-passiva toda criatura em seu seio regenerador. Só Ele é capaz de assumir para si o sofrimento e a
fragilidade humana, abrindo um novo horizonte de vida.
No N.T., o mistério da Misericórdia do Pai atravessa toda a experiência de Jesus, de sua missão, mas
também de sua própria paixão e de sua Páscoa. No sofrimento e morte do Filho há a dor de dilaceração,
fragilidade e silêncio do Pai, como em dores de parto por uma criação que ainda precisa da compaixão e
da misericórdia maternal do Criador. Se o Criador sofre em dores de parto por sua criação, nosso
sofrimento está em suas mãos, em seu seio. É a maternidade divina regeneradora de sofrimentos.

Sem a Cruz seria muito difícil convencer o ser humano do amor misericordioso de Deus, e mais ainda
de seu apaixonado interesse por nos salvar. Mas, a partir dela, será sempre possível dizer ao ser
humano que a Cruz de Jesus tem um sentido, e que a última palavra é “salvação”.
No Jesus crucificado se encontram e se reconhecem todos os sofredores inocentes e crucificados da
história; n’Ele se condensam todos os gritos da humanidade sofredora.
A “kénosis” de Jesus nos ensina, portanto, a encontrar Deus nos lugares onde a vida se acha
bloqueada.
Deus “desceu” às zonas mais escuras da humanidade – sofrimentos, fracassos, amarguras, pecados... – para
sentir como Seu nosso sofrimento e ali falar ao nosso coração.

A primeira coisa que descobrimos ao contemplar o Crucificado do Gólgota, torturado injustamente até
à morte pelo poder político-religioso, é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo
da mentira. Precisamente aí, nessa vítima inocente, nós seguidores de Jesus, vemos o Deus identificado
com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde
sofrem e morrem os mais inocentes.
Jesus foi condenado como herege e subversivo, por elevar a voz contra os abusos do templo e do
palácio, por colocar-se do lado dos perdedores, por ser amigo dos últimos, de todos os caídos.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão
ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora...
“Morreu de vida”: isso foi a Cruz, e isso é a Páscoa. E é por isso que tem sentido recordar Jesus,
olhando as chagas de seu corpo e as pegadas de sua vida.
O Crucificado nos revela que não existe, nem existirá nunca um Deus frio, insensível e indiferente, mas
um Deus que padece conosco, sofre nossos sofrimentos e morre nossa morte.
A partir da Cruz, Deus não responde o mal com o mal; Ele não é o Deus justiceiro, ressentido e
vingativo, pois prefere ser vítima de suas criaturas antes que verdugo.
Despojado de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todo êxito político e de toda auréola
religiosa, Deus se revela a nós, no mais puro e insondável de seu mistério, como amor misericordioso.
Nós cristãos contemplamos o Crucificado para não esquecer nunca o “amor louco” de Deus para com a
humanidade e para manter viva a recordação de todos os crucificados da história.
O que nos assusta diante da Paixão de Cristo é o profundo e estridente “silêncio de Deus”.
No entanto, o silêncio de Deus não se deve a que Ele queira calar, mas a que nós não podemos escutar.
Se existe silêncio, este enraiza-se não no calar de Deus, mas na surdez radical do ser humano.
A Cruz de Cristo revela que Deus continua do lado do inocente sofredor. No silêncio, Deus não apenas
se solidariza, mas sofre “em sua pele”, identificado com os sofredores, aqueles que sobram...
“Deus sofre” com seu Filho; seu coração sangra juntamente com ele na cruz. Se Deus “sofre”, é por
seu excesso de Amor, desde o princípio.
O silêncio de Deus na paixão do Filho é a fronteira da esperança: atrás do silêncio da Cruz, espera, viva
e impaciente, a palavra definitiva da Ressurreição.
Ele acolhe o mistério do mal em seu mistério maior de amor, sem utilizar o revide de vingança e de
poder.Na sua própria vulnerabilidade, renunciando aos atributos divinos, sobretudo de potência, Deus
brilha em atributos que surgem do amor puro e humilde.

Para Jon Sobrino, a vivência da Misericórdia é a que impulsiona a Igreja para fora de si mesma, para
as margens, onde acontece o sofrimento humano. Uma Igreja configurada pelo “Princípio
Misericórdia” tem força e coragem para denunciar aqueles que produzem vítimas, para desmascarar a
mentira daqueles que oprimem, para animar e despertar a esperança daqueles que são as vítimas.
Quando isso ocorre, a Igreja é ameaçada, atacada e perseguida; mas isso mostra que ela se deixou
conduzir pelo “Princípio Misericórdia”. A ausência de tais ameaças, ataques e perseguições significa,
por sua vez, que a Igreja não está sendo fiel e esta misericórdia reconstrutora que se fez visível na
Paixão e Cruz de Jesus Cristo. Se ela leva a sério a misericórdia e deixa transparecer no seu modo de
se fazer presente no mundo, então ela se torna conflitiva.
Jesus morre na Cruz porque o ser humano, fechado em si mesmo e em seu poder, não tolera a defesa do
pobre, nem o desvelamento da hipocrisia, nem a denúncia da injustiça, nem a transgressão das
convenções e privilégios sociais ou religiosos. Para os escribas, os fariseus e os anciãos, Jesus rompia
com todos os seus esquemas religiosos e criticava um sistema social que estava profundamente sacrali-
zado e lhes conferia sua própria identidade. Jesus morre porque era misericordioso e não compactuou
nem se cansou, mas se colocou radicalmente do lado dos oprimidos, sem retroceder diante das conse-
qüências; porque foi fiel à sua missão, entrega-se sem reservas, sem guardar nada para si, nem sequer o
mais valioso: sua própria vida, seu desejo de ver coroada sua obra.
Diante do supremo indicador do amor misericordioso de Jesus e do amor do Pai, abre-se para a Igreja
uma inesgotável exemplaridade e uma referência única para ser, também ela, presença misericordiosa.
Textos bíblicos: Mc 14,43-72 Mc 15

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