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CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS

SAÚDE E PSICOPATOLOGIA
ATIVIDADE AVALIATIVA I

ALUNO: PHILLIPE NICOLY FERREIRA DO NASCIMENTO

HAMLET E A LOUCURA SEGUNDO GEORGES CANGUILHEM

INTRODUÇÃO

Hamlet é uma tragédia escrita por William Shakespeare. A peça se passa na Dinamarca e
conta a história do Príncipe Hamlet que tem como objetivo vingar a morte do rei Hamlet, seu
pai, que foi executado pelo próprio irmão, Cláudio. Depois de envenená-lo, Cláudio casou-se
com a rainha e se tornou rei daquele país. E Hamlet, para vingar a morte, usa a loucura para
dar vazão ao que lhe aflige.

1 - ANOMALIA

A anomalia, segundo Canguilhem, apresenta uma classificação baseada, a priori, em fatos e


análises gerais cujo normal é estabelecido por uma lógica estatística da matemática e com um
relativo distanciamento dos valores que formaram a moral ocidental na Idade Média. Dessa
forma, o normal se caracteriza pela maior frequência na sociedade.

Sendo assim, logo no início da peça, o príncipe Hamlet é surpreendido pelo fantasma de seu
pai, o rei Hamlet recém assassinado pelo seu tio Cláudio (irmão do Rei Hamlet) que, além de
matar o rei, casou-se com a viúva Gertrudes 2 meses após a morte de Hamlet e seguiu a
sucessão ao trono da Dinamarca com tranquilidade, com confissão desse assassinato contato
pela vítima e um pedido de vingança. Ante esses acontecimentos, o príncipe Hamlet é
confrontado com uma nova situação que é colocada em sua vida. A morte de seu pai; a
confissão por meio de um viés surreal; o pedido de vingança e o casamento incestuoso de sua
mãe constituem uma nova constituição de realidade a ser atribuída ao príncipe.

Diante desses impasses, esperava-se que Hamlet mantivesse uma performance teatral para
seguir sua vida sem grandes problemas, assumiria o trono em poucos anos e já com o respeito
e admiração do povo, além de uma expectativa para o casamento de Hamlet com Ofélia, sua
amada, mas não foi o que aconteceu. O príncipe rompeu com o que a sociedade esperava de
seu comportamento e começou a arquitetar um plano para confirmar as informações do
fantasma para, então, conferir a vingança planejada. Sendo assim, Hamlet mudou sua postura,
suas roupas pretas expressavam melhor suas dores da alma, o silêncio se tornou o refúgio de

uma mente que planeja uma grande vingança, seu amor por Ofélia é deixado ao desalento e o
caminho que o levaria ao topo do poder dinamarquês já não o satisfazia mais e, sendo assim,
ele transgride com a expectativa que recai sobre seus ombros.

A seguir, um trecho da obra que demonstra o espanto com a postura dele ao se deparar com
essa nova condição que lhe é atribuída.

Ato I Cena II

REI: Que nuvens são estas ainda te assombrando?


HAMLET: Mas não, Senhor, estou bem à sombra do sol.
RAINHA: Hamlet querido, larga essas cores sombrias,
E te permite olhar o rei como um amigo.
Não fiques para sempre, com olhos velados,
Mudos, procurando o teu nobre pai no pó.
Tu sabes que é normal — tudo que vive, morre
Atravessando a vida para a eternidade.
HAMLET: É, Senhora, é normal.
RAINHA: Mas, se de fato é,
Por que contigo parece tão anormal?

2- ANORMAL

Hamlet, para colocar a prova as palavras do fantasma, cria uma peça teatral que simula a
história do seu tio Cláudio com seu pai e sua mãe para tentar captar alguma expressão límbica
por parte do rei em relação a peça e ele consegue, o que causa um desconforto intenso entre
eles e coloca Hamlet em um impasse ante a vingança que deve ser feita com a morte do Rei e
sua incapacidade de matá-lo.
Além disso, Hamlet assassina Polônio, seu sogro e braço direito do Rei, em um momento de
efusão com o Rei após a peça teatral armada e esse foi a atitude que faltava para Hamlet ser
enquadrado como louco e expulso da Dinamarca com destino à Inglaterra.

Seguindo os impactos que as mudanças de comportamento de Hamlet causaram, a


anormalidade, conceito que diverge de anomalia, segundo Canguilhem, passa a cobrir
Hamlet e o valores constituintes da moral à época ganham espaço dentro do reinado
dinamarquês e, dessa forma, criam uma nova estrutura patologizante em relação a Hamlet, ou
seja, o herdeiro do trono passa a ter um comportamento que destoa do esperado pela
sociedade e, diferentemente da anomalia que se pauta em fatos, a anormalidade, cujos pilares
são os valores sociais, começam a impactar de forma mais efetiva a vida de Hamlet.

Sendo assim e, em relação ao trecho da obra citado anteriormente, é possível notar que as
atitudes em relação a Hamlet saem do campo do discurso preocupado com as mudanças dele
e começam a infringir a sua existência no sentido de excluí-lo do meio social devido suas
divergências comportamentais ao esperado.
Ato IV Cena I

RAINHA: Louco como o mar e o vento quando combatem


(Hamlet)
Medindo o seu poder. Em seu insano arroubo,
Ao distinguir um ruído através do cortinado,
Puxou o punhal e gritou: “um rato, um rato”
E nesse acesso louco, sem ver o bom velho
Ele tirou-lhe a vida.

REI: Mas que ato funesto!


Se estivéssemos lá, nos teria matado.
É um risco a todos que ele fique livre —
Um risco pra você, para nós e para todo mundo. [...]

É possível inferir, portanto, a forma patologizada com a qual Hamlet foi tratado e não apenas
por ter assassinado Polônio, mas por também ser um entrave à normatização vigente cuja
qual ele destoava a fim de conseguir sua vingança.

3- NORMATIVIDADE

Desde o início da obra Hamlet é convocado a se enquadrar no que foi esperado pelas pessoas
que o cercam, mesmo elas não sabem o segredo de vingança que ele escondia. Ao se deparar
com uma nova situação que demanda uma reconstrução do indivíduo, Hamlet se depara com
uma nova normatização vital que lhe permite assumir o papel de louco para matar o Rei, mas
que transgride a normatização social e o coloca nesse estrato de louco que foge do normal,
sendo que essa normatização é a forma com a qual ele consegue viver e recriar a realidade
para, mesmo todo o reino tendo a concepção de que Hamlet seja louco.
Dessa parte deriva o trecho clássico que permeia a sociedade ocidental há mais de 400 anos:

Ato III Cena I

HAMLET: Ser ou não ser: eis a questão:


Saber se é mais nobre na mente suportar
As pedradas e flechas da fortuna atroz
Ou tomar armas contra as vagas aflições
E, ao afrontá-las, dar-lhes fim. Morrer, dormir.
Só isso, E dizer que com o sono damos fim
À nossa angústia e aos mil assaltos naturais
Que a carne herdou: sim, eis uma consumação
Que cumpre ardentemente ansiar.

Sendo assim, é possível notar a angústia da personagem em relação a nova normatividade


criada por ele ao longo da peça. Pensando nessa angústia e em paralelo a essa normatividade,
Ofélia auxilia na exemplificação da norma em relação a sociedade à época de Hamlet.
Paralelo com Ofélia

Apropriando-me do senso comum em relação a loucura, é possível notar outra personagem


que seria facilmente rotulada como louca: Ofélia. Ofélia teve seu amor pelo Príncipe
renegado, viu seu noivo “enlouquecer”, foi afastada de seu irmão e recebeu a notícia de que
Hamlet havia assassinado seu pai. É possível notar a forma como o mundo se reorganizou
para ela e cobrou uma nova forma de existência, mas podemos perceber que ela não
conseguiu se recolocar de acordo com a normatividade instaurada. Ofélia passa a ter um
discurso desconexo no contexto, começa a se comunicar por músicas e poemas até ser

encontrada morta* em um rio, o que pode ser analisado como uma tentativa de estabelecer
uma normalização, mas sem sucesso por ela ter perdido a capacidade de se normalizar. 1

4- DOENÇA, SAÚDE E CURA

Hamlet em seu último suspiro demonstra consciência do que estava acontecendo no reino e
em relação a sua própria imagem para a população. Horácio, seu melhor amigo e confidente
de todo o plano, fica encarregado de contar a verdade por trás da loucura de Hamlet para o
restante do povo para que a lembrança do Príncipe que não assumiu o trono seja mantida
intacta.

Ato V Cena II

HAMLET: Estou morrendo, Horácio,


O potente veneno destrói meu espírito.
Não vou viver para ouvir notícias da Inglaterra,
Mas predigo que a escolha irá a Fortimbrás.
Meu voto agonizante recai sobre ele.
Conte-lhe tudo e os fatos, grandes ou pequenos,
Que terminam aqui. E o resto é silêncio. (morre)
[...]
*FORTIMBRÁS: Que quatro capitães
Ergam Hamlet como um soldado sobre estrado,
Pois, se tivesse sido posto à prova, teria
Mostrado realeza. E, à sua passagem,
Que os refrões marciais e os rituais guerreiros
Ergam alto o seu nome. [...]

Sendo assim, é possível notar que há uma normatividade sendo construída na vida de Hamlet
quando ele cria uma nova norma a partir dos acontecimentos de sua vida e com a máscara da
loucura para vingar a morte do seu pai. Entretanto, o Príncipe da Dinamarca aparenta ter
questões ainda mais complexas que seu papel de louco. Ele é considerado um homem
moderno e se depara com a estagnação da vingança diante seu padrasto e com o Complexo de

1
* Morta: Acredita-se que ela tenha cometido suicídio.
Édipo Positivo** que é fundamental para compreender essa normatividade que ele tenta
reconstruir para matar seu tio, mas sem sucesso. 2

“Pois, se tivesse sido posto à prova, teria mostrado realeza.” essa frase demonstra a forma
com a qual Hamlet se consagrou como Príncipe mesmo não tendo reinado. No entanto, ele
termina a peça morto e sem alcançar seu objetivo de vingança, mas com a consciência
honrada e tranquila, “livre para viver em uma casca de nós” atingindo a cura para um
possível quadro patológico. Baseando-se em Canguilhem, Hamlet não apresenta um quadro
patológico por conseguir criar uma nova norma e por conseguir viver com essa condição.

2
** Complexo de Édipo Positivo:Rivalidade entre o filho e o progenitor do mesmo sexo e desejo
sexual pelo progenitor do sexo oposto.

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