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Revista Memória Rural, número 3, 2020 Revista Memória Rural, número 3, 2020

Expressões culturais de Santa Eugénia


Orações, Crenças e Mezinhas
Laura Maria Santos Figueira1
António Alves Martinho2

Resumo: Quando se fala de cultura também se fala de “modos de vida, de tradições e de crenças”. Nes-
te artigo registam-se algumas dessas expressões culturais de uma comunidade rural de Trás-os-Montes
e Alto Douro, com séculos de vivências. Procedeu-se a um levantamento de algumas orações, histórias
e práticas terapêuticas populares, procurando-se proceder ao seu enquadramento antropológico. Pre-
tende-se que o presente trabalho seja um contributo para a preservação e salvaguarda deste Património
Cultural Imaterial.

1. Introdução

Os habitantes de Santa Eugénia são crentes, participam nas cerimónias religiosas e respeitam a palavra de
Deus. Porém, para além dos seus valores morais, éticos e religiosos e do cumprimento dos mesmos, o povo
é, ainda hoje, como o foi através dos tempos, supersticioso, aliás, como a maioria das pessoas do campo
que viveram durante muitos séculos num grande isolamento e abandono, em que o desenvolvimento social
foi muito limitado. Estas circunstâncias levou as pessoas a manterem muitas tradições ancestrais. Acreditam
em forças ocultas e no sobrenatural (nas almas penadas, nos lobisomens, nas bruxas e em feitiços). São
vestígios de antigas crenças pagãs, que deixaram marcas no espírito do povo.
Este mundo maravilhoso e imaginativo é igual ou muito semelhante ao de outras aldeias da região. No
entanto, em Santa Eugénia, tem particularidades e constitui parte significativa da sua identidade, de que
também faz parte a forma como as pessoas trabalham os seus campos, se divertem e, mesmo, se curam
das maleitas que as afligem.
Fig. 1 (ao lado)
Ex-voto ao Senhor dos Milagres

1. Professora do Ensino Básico no Agrupamento de Escolas Diogo Cão. Nasceu em Santa Eugénia, Alijó, a 20/12/1955. Reside em Vila Real. Pro-
fessora do Ensino Básico, com o curso da Escola de Magistério Primário do Porto, concluído no ano Letivo de 1987/1988 e com o Complemento
de Formação, do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros, em Curso de Qualificação para o exercício de outras funções educativas, Animação
Sociocultural, no ano letivo de 2003/2004. Atualmente, leciona no Agrupamento de Escolas Diogo Cão, em Vila Real. Tem já 41 anos de serviço.
Tlm. 96 6009366. E-mail: laurafigueira@portugalmail.pt
2. António Alves Martinho, professor da Escola Mons. Jerónimo do Amaral, aposentado. Nasceu em Santa Eugénia, Alijó, a 3/2/1949. Reside em
Vila Real. Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, fez uma Pós-graduação em Estudos Europeus no Instituto
Superior de Economia e Gestão - Lisboa e uma outra em Gestão Pública e Autárquica, na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Dirigente
associativo desempenha, atualmente, as funções de Vice-presidente do Centro Cultural Regional de Vila Real. É Presidente da Assembleia de Fre-
guesia de Vila Real, desde 2013. Desempenhou as funções de Governador Civil do Distrito de Vila Real (2005-2009), de Deputado à Assembleia
da República (1991-2002) e de Presidente da Assembleia Municipal de Alijó (1993-97). Foi Presidente da Entidade Regional de Turismo do Douro
(2009-2013) e membro do Conselho Geral da UTAD (2009-2012). Tem artigos publicados na imprensa regional e nacional. Publicou o livro “Do
Parlamento, o meu testemunho”. Tlm. 917247055. E-mail: aamartinho@gmail.com

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Cabe aqui, muito a propósito, uma referência ao para os campos de cultivo quer para as aldeias a ex-voto, mas também a forma expressiva que o Vive e responde por mim
conceito de cultura que Mesquitela Lima (1982: 38) vizinhas. São constituídas por representações de seu autor lhe deu, como se pode ver na Figura 1. Para que os meus inimigos,
apresenta quando afirma que «cultura é tudo o que Nossa Senhora, de Jesus Cristo, de São José, de As dificuldades da vida, a doença, as dores, os Nem de dia, nem de noite,
Tenham poder em mim.”
recebemos, transmitimos ou inventamos», ou, por São Tiago e das Almas do Purgatório, em azulejo, perigos, os medos levam o povo a procurar refúgio,
outras palavras, «tudo o que o homem acrescenta à ou pequenas imagens, as mais recentes. (Fig. 1) ajuda e proteção junto de Alguém superior a ele,
2.1.3. Oração depois de deitar
Natureza». Já Edward Tylor, em 1871, a definira como Mas, há poucos anos, ainda, as representações ser humano frágil, indefeso e carente. Refugia-se
«aquele conjunto de elementos que inclui conhe- referidas eram pintadas em madeira. Quando por em Deus e nos Santos, na oração que a eles dirige. “Com Deus me deito,
cimento, crenças, arte, moral, leis, usos e quaisquer ali passavam, as pessoas rezavam. Onde havia cru- Pede uma graça, agradece um favor concedido, Com Deus me alevanto,
outras capacidades e costumes adquiridos pelo ho- zamentos, decerto que as orações se destinavam ou apenas reza para estar em contacto com Deus. Com a graça de Deus
mem enquanto membro de uma sociedade» (citado a esconjurar eventuais bruxedos que ali podiam Como afirma Mischa Titiev: «o homem primitivo E do Divino Espírito Santo.
por Crespi, 1997: 13). Neste quadro conceptual tem ter sido colocados. Nos locais onde se verificaram raramente encara as suas crenças no sobrenatural Nossa Senhora me cubra,
aqui também cabimento o conceito de cultura da como assuntos ociosos, antes está mais inclinado a Com o seu divino manto.
acidentes, como no Rapalobos e no Vale da Pala,
Se eu coberta com ele for,
UNESCO (2001: 1) - «conjunto de traços distintivos, as orações destinavam-se a sufragar as almas das atribuir-lhes um valor prático, como algo que pode Não terei medo, nem ar, nem temor,
espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que pessoas que ali tinham morrido. Outras vezes, as ajudar a sua sociedade a manter-se a si própria». Nem às coisas que de ruim for.
caracterizam uma sociedade ou grupo social. Ela orações serviriam para pedir proteção pelo facto (Titiev, 1963: 299). Senhor, eu dormir quero
engloba, para além das artes e das letras, os modos de se sair da própria povoação, ficando mais ex- E a minha alma vos entrego.
de vida, os direitos fundamentais do ser humano, postos ao perigo. Merecem destaque especial, dois 2.1. Orações Se eu dormir acordai-me,
os sistemas de valores, as tradições e as crenças»3. exemplares, os mais recentes: um, dedicado a Nossa 2.1.1. Oração antes de deitar Se eu morrer alumiai-me
Este artigo visa enquadrar, em termos antropo- Com as três velas da Santíssima Trindade,
Senhora dos Caminhos, num cruzamento da estrada
Jesus Cristo disse missa, Com os cinco círios.”
lógicos, algumas vivências da comunidade de Santa que chega à aldeia com o caminho que dá acesso
Eugénia, expressas em orações, histórias, poesias à ermida de Santa Bárbara, numa clara localização Na noite da solidão.
Numa banda estava São Pedro, 2.1.4. Oração pelos caminhos
religiosas, crenças e mezinhas, recolhidas, na sua que lembra a dos antigos deuses viários; a outra, Na outra estava São João.
generalidade, durante alguns anos e registadas em um pequeno nicho no caminho que se dirige das Na dianteira, os Apóstolos, “Pai Nosso Pequenino,
2003/2004; num caso, a recolha foi mais recente. Caldas de Carlão, junto ao rio Tinhela, para Santa A quem ele dava pão. Pelos montes vai rugindo,
Eugénia, com uma imagem de São Tiago, lembrando “Andai cá filhos meus, Leva as chaves do paraíso.
2. Orações, histórias e poesias populares religiosas o percurso seguido pelos peregrinos que se diri- Que vos quero confessar. Quem lhas deu?
Amanhã pela manhã, Quem lhas daria?
giam a São Tiago de Compostela, passando pelas
Vos darei a comungar. Foi o filho da Virgem Maria.
Em Santa Eugénia, a fé nasce com o povo, é trans- águas termais de Santa Maria Madalena – Caldas de
Dar-vos-ei o meu corpo, por hóstia, Cruz no monte,
mitida de pais para filhos e é sentida de alma e de Carlão com o objetivo de curar os males do corpo. Cruz na fonte,
E o meu sangue, por vinho real.”
coração. A religião católica foi e ainda é, na gene- Passavam, depois, por Santa Eugénia, usando para Quem esta oração disser, Nunca o inimigo nos encontre.
ralidade, a sua natural opção. A não ser por uma descanso, uma das casas brasonadas, onde se pode Três vezes quando se for deitar, Nem de noite,
ou outra pessoa, casos muito raros, não há conhe- ver a concha na padieira do portão principal e na Três almas vai salvar: Nem de dia,
cimento que, aqui, tenha sido professada outra da porta da capela, para, depois, poderem seguir A de seu pai, Nem à hora do meio-dia.
religião, após a cristianização. Na história da aldeia A de sua mãe, Já meu Deus subiu à cruz
caminho pelas vias romanas de Murça ou de Alijó
encontram-se dados relativos a uma paróquia, já E a sua, em primeiro lugar. Para sempre.
em direção ao Caminho Português do Interior. Amém Jesus.”
no século VI, numa época em que se lançaram as Ainda que tenha tantos pecados
Para além das Alminhas, existe em Santa Eugénia, Como de areias tem o mar,
primeiras sementes do cristianismo na região (Plá- até há poucos anos na sacristia da igreja, uma Tábua De ervinhas tem o prado, 2.1.5. Oração a São Bartolomeu
cido, 1984: 39). Votiva de 18294, em forma de cruz, que mereceu Como de flores tem o campo,
Existem algumas peças de religiosidade popu- integrar a exposição do Mosteiro dos Jerónimos, por Tudo isto será pouco “São Bartolomeu, a vós me entrego,
lar, que têm merecido a atenção dos etnólogos ocasião da XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura Para Deus nosso Senhor Já que Deus vos deu tal condão,
– as Alminhas que se encontram nos cruzamentos de Lisboa. É-lhe reconhecido o seu valor intrínseco Vos dar os seus louvores. Que nem filho de Barão.
dos caminhos que dão saída da povoação, quer Prende o demónio
2.1.2. Oração ao deitar Que ele não possa empecer
4. Motivo do ex-voto que consta na parte inferior da cruz: «Esta obra Nem a mim, nem à minha geração.”
3. Fonte: http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/ mandou fazer um devoto andando sobre as águas do mar se viu per-
CLT/diversity/pdf/declaration_cultural_diversity_pt.pdf?fbclid=IwA- dido chamou-se o snr (senhor) dos milagres logo se salvou toda a “Santa Cruz se deite comigo
R1kyA5hjaKwwvSM7bgnlStXdrSHtKe4599w5hwIYv6SN6tW17mVJF- imbarcação» E a Santíssima Trindade.
QnFdA (Data da consulta: março de 2004). Cristo, que não morreu,

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2.1.6. Oração para saber a hora da nossa morte 2.1.8. Oração para dizer às Sextas-feiras

Ergui-me de manhã cedo, “Sexta-feira de indulgências,


Ao cantar do perdigão, A Santa humanidade
E encontrei Nossa Senhora Andou por toda a cidade
Com um ramo de oiro na mão. Com o grande peso da cruz.
Eu pedi-lhe um bocadinho No caminho lhe faltou a luz.
E ela me disse que não. Todo o sol escureceu,
Eu voltei-lho a pedir Filho de Deus morreu,
Morreu para nos salvar.
E ofereceu-me o seu cordão,
Quem não puder crer,
Que me dava doze voltas, São João, que é tal,
Ao redor do coração. Suba aquele outeiro.
E ainda me dava mais uma, Verá ruas regadas,
Que chegava do céu ao chão. Do seu sangue verdadeiro.
“Ó meu padre São Francisco, Mulheres que tendes os filhos,
Benza-me este cordão, Ajudai a sofrer
Que mo deu Nossa Senhora, A morte do meu Deus.
Sexta-feira de Assunção. Aquelas que os não têm,
Santo António milagroso, Não sabem rogar o mal
Filho de Deus todo-poderoso, Que sempre também têm. Amém.”
Uma alma que me deste, Quem esta oração disser
Não a deixo morrer triste. Todas as Sextas-feiras do ano,
Vós, Senhor, que me remiste, Abençoará tantas indulgências...
Dai-me graça e perdão.” E Deus Nosso Senhor
Quem esta oração disser, Lhe dará os seus louvores.
Um ano continuado,
Saberá bem, certamente, 2.1.9. Responso a Santa Bárbara
Quando Deus o vem buscar.
“Confessa-te ó pecador, “Santa Bárbora pequenina,
Que leva o castelinho na mão,
Três dias antes que morras,
Vai pedir a Nosso Senhor
Que contigo é o Senhor.” Que nos livre deste trovão.
2.1.7. Oração à entrada da igreja Santa Bárbora, Barborinha
Leva este trovão
“Da minha casa saio prá Vossa, Para onde não haja
Tantos anjos me acompanhem, Trigo nem pão,
Como passadas eu dou pra entrar. Nem baguinho5 de cristão.
Pecados meus ficai cá fora,
Que eu quero ficar lá dentro. Santa Bárbora, bendita,
Quero entregar a minha alma, Que no céu está escrita,
Ao Santíssimo Sacramento. Com papel e água benta,
Nesta Santa casa entro, Livra-nos desta tormenta.”
Com velas a alumiar.
Aqui deito água benta,
Para nela me salvar.”

Fig. 3 (ao lado)


Andor de Santa Bárbara, em frente à capela
Fig. 2 (ao lado)
Alminhas do Chão-de-Carlão 5. Também se ouvia com a palavra “bafinho” a substituir “baguinho”.

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2.1.10. Outra versão Eugénia, no concelho de Murça, muito próxima em Verbo Divino, não consegue penetrar, o homem vacila e, por isso,
linha reta da ermida de Santa Bárbara. A ela recor- Cordeiro da cruz, procura refúgio e apoio no sobrenatural.
Santa Bárbora se vestiu e se calçou, rem também, implorando a sua proteção. Assim se Salva a nossa vida Sendo assim, o pensamento mítico tende a co-
No seu Santo rosário pegou, compreende a sua subida ao monte e a presença Pra sempre. Amém, Jesus existir, nas nossas sociedades, com o pensamento
Ao caminho se deitou,
nas cerimónias religiosas em honra de Santa Bárbara ++++ racional. Mostra-se, por isso, indispensável à inte-
Jesus Cristo encontrou
no sábado da festa. São verdadeiros rituais, em que O sino quando badala, gração do indivíduo no mundo novo.
E este lhe perguntou:
participam duas comunidades vizinhas, que ainda Parece falar à gente No mundo moderno, o mito continua a perdu-
“- Aonde vais Barborinha?
perduram (Fig. 3). E tem um dom essa fala,
- Senhor, ao céu eu vou. rar, de facto, e a inspirar o nosso comportamento,
- Vai, vai Barborinha, A fala que não nos mente.
O fenómeno da Santa iluminada acontecia, pre- pensamento e emoções. A mentalidade primitiva
Livra-nos deste trovão, cisamente, nesta ermida. Era visto por algumas coexiste lado a lado com a mentalidade moderna.
Deita-o para trás do Marão, O sino pela manhã,
pessoas de Santa Eugénia, mas também de Martim, Tem vibrante badalar, Embora esta possa controlar a primeira, a verdade
Onde não haja trigo nem pão
Nem baguinho de cristão.” normalmente, em trabalhos realizado à noite. Con- Tocando diz com afã, é que nos momentos de maiores dificuldades e
tam os mais antigos que a capela de Santa Bárbara, São horas de levantar. aflições e, quando não há uma explicação racio-
2.1.11. Durante a confeção do pão de tempos a tempos, aparecia iluminada a partir nal, quase todo o ser humano procura refúgio no
da meia-noite. Algumas pessoas afirmavam que O sino toca à tardinha, mito, enquanto «a mais antiga modalidade de or-
Antes de fazer o pão, fazem-se três cruzes com viam como que uma procissão de velas à volta da Hora de bênção e de saudade.
Chora a gente velhinha,
ganização simbólica do mundo e das vicissitudes
a mão. capela. Essa imagem aparecia de repente, sem hora humanas» (Crespi, 1997: 152), ou no sobrenatural.
Com a primeira cruz diz-se: Lembrando-lhe a mocidade.
nem dia certo, e durava pouco tempo. O brilho e É nos meios de menor desenvolvimento social,
“São Mamede te levede.” esplendor desta era tal que deixava as pessoas que ++++
Com a segunda cruz: como as aldeias, tribos ou sociedades subdesen-
observavam este fenómeno tão encantadas que, Quatro cantos tem a casa,
“São João te faça pão.” Quatro círios estão a arder. volvidas, que a fé em crenças e superstições se
Com a terceira: durante muito tempo, não falavam noutra coisa. Tantos Anjos me acompanhem mantém mais viva, ainda hoje.
“E o Divino Nosso Senhor Registaram-se narrações, nos anos sessenta do Na hora em que eu morrer. O povo de Santa Eugénia, aliás como todo o
Te deite a sua bênção.” século passado, do senhor José Gonçalves, co- povo de Trás-os-Montes e Alto Douro, é um povo
Depois, quando se acaba de enfornar, dizem-se ++++
nhecido por Zé Bilhoto, da senhora Maria da Luz com as suas idiossincrasias, onde a franqueza, a
estas palavras: Senhora Santana,
Martinho, também conhecida por Maria Ferreira Fugiu para o monte simplicidade e a simpatia estão presentes, mas
“Cresça o pão no forno e, mais recentemente, do senhor Emídio Agrelos,
E a graça de Deus pelo mundo todo.” E onde se sentou onde ainda permanecem, de uma forma muito clara,
relativas a esse tempo. Fenómeno que ainda foi Nasceu uma fonte. crenças e superstições.
2.2. Histórias observado há poucos anos. Vieram os Anjos, Assim, as pessoas acreditam em almas do outro
Também se registou uma outra visão, testemu- Beberam dela. mundo, que aparecem e transmitem mensagens -
2.2.1. A Santa iluminada e o menino
nhada por várias pessoas. Era visto um menino que, Que água tão doce, são os espíritos de defuntos, pessoas boas e más,
durante o dia, subia pelo caminho do monte de Senhora tão bela!
A Santa, na linguagem dos habitantes de Santa Senhora Santana,
que podem vaguear por este mundo além. As boas
Eugénia, é a ermida de Santa Bárbara, no monte Santa Bárbara até à capela. O caminho antigo era aparecem sob a forma de luzes e vêm pedir aos vivos
Tão maravilhosa!
sobranceiro à povoação, a Norte desta. É ali ve- muito mais íngreme que a estrada atual. O menino Ao pé da fonte que lhes cumpram as promessas que ficaram por
nerada a santa protetora das trovoadas. E todos permanecia por ali durante algum tempo, andando, Nasceu uma rosa. cumprir. Os espíritos maus, esses aparecem com a
os anos, no penúltimo fim-de-semana de agosto, de sítio em sítio, como se brincasse. Não era um forma de animais, como castigo do mal que pratica-
celebra-se a festa em sua honra, com início no sá- menino como as outras crianças. O brilho que dele 3. Crenças e Superstições ram; ou metem-se no corpo das próprias pessoas.
bado, de manhã. Missa e procissão para a igreja irradiava tornava-o belo. Os que narravam este Acreditam, ou, simplesmente, aceitam como
matriz. Os filhos da terra faziam questão de subir ao fenómeno consideravam que não era “próprio de Perante a incompreensão de fenómenos naturais bom certos presságios. Enunciam-se alguns, a título
monte para participar nas cerimónias religiosas que um ser deste mundo”. que a vida encerra, o homem sente a necessidade exemplificativo, porventura, também existentes
davam início aos festejos. A avaliar por relatos dos de se apoiar no sobrenatural, em mitos e rituais noutras comunidades:
antigos, que foram sendo recolhidos em memórias 2.3 Poesia popular religiosa ancestrais, inaceitáveis do ponto de vista da racio- 1. Se um galo cantar fora de horas, é sinal de
e transmitidos de geração em geração, essa festa nalidade, mas que desempenham um papel e uma morte ou de qualquer desgraça;
Canta o galo, vem a luz,
celebra-se há, claramente, mais de cem anos. A Vem um anjo com a cruz função de equilíbrio entre a pessoa e a natureza. A Se à noite se ouvir cantar a coruja ou o mocho, de
devoção a Santa Bárbara está muita arreigada neste Para salvar a nossa vida, dimensão do universo é de tal ordem que o saber e forma insistente, é porque alguém está para morrer;
povo. Mas merece registo especial a veneração das Para sempre. Amém, Jesus. a compreensão humana não a consegue alcançar. 2. Uma mulher menstruada não deve ir ao cemi-
populações de Martim, aldeia limítrofe de Santa Perante os factos inexplicáveis, em que o racional tério ou a um funeral;

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Sapo, sapão, usando o antebraço, do cotovelo à ponta dos dedos.


Cobra, cobrão, Acrescenta três dedos da mão, atravessados e reza
Lagarto, lagartão, a seguinte oração, fazendo deslizar a mão sobre o
Bicho de toda a nação, cinto do avental, enquanto diz:
Eu te corto
O rabo, a cabeça e o coração, Se este corpo está ralado,
Para que não cresças, Ou desmanchado,
Nem enverdeças. Permita Deus,
Em louvor da Virgem Maria A Virgem Maria,
Um Pai Nosso e uma Ave-Maria. O São Gonçalo,
O Santo Amaro
Repete-se este ensalmo três vezes. Se, porém, Que torne ao mesmo
o coxo está dobrado, tem de cortar-se dois dias Como tornaram as cinco chagas
seguidos. Se for cobra, bastará ser cortado por uma De Nosso Senhor Jesus Cristo.
mulher, mas se for cobrão, terá de sê-lo conjunta- Em louvor da Virgem Maria
mente por um homem, mas com a condição de um Um Pai Nosso e uma Ave-Maria.
deles não saber fazê-lo.
Será sinal positivo, de que o problema se está a
3.2. Erguer a espinhela caída (corpo ralado) resolver, a diminuição da distância sobrante, medida
pelos dedos atravessados, um, dois até zero (Fig. 4 ).
Fig. 4 Aida Martins a erguer a espinhela caída
Para a diagnosticar basta estender os braços do
doente, juntando-os à frente. Se os dedos coincidi- 3.3. Erguer o ventre caído às crianças
rem, a espinhela está direita; caso contrário, estará
3. Uma mulher grávida não deve cheirar flores e a mudança dos hábitos está na origem dessas caída. Para a erguer, pega-se num cordão e marca-se Para o diagnosticar, estende-se a criança sobre
nem pegar em certas coisas, como bichos com pelo, alterações. a largura da cintura do doente, massaja-se este, o colo, juntando-lhe os pés. Se coincidirem, não
baços de animais, nem vestir um defunto, nem ir Quando os médicos chegam à conclusão de que sempre na mesma direção e recita-se o seguinte: têm o ventre caído; caso contrário, estará caído.
a funerais ou saltar cordas, ou fios, senão poderá não há nada a fazer, aí estão as pessoas do povo Para o erguer seguram-se os pés da criança e pas-
prejudicar a criança que vai nascer; prontas para acreditar e aceitar o “mítico”. Aqui e Se este corpo está ralado, sam-se-lhe os dedos molhados em azeite ao longo
4. Não se deve salvar (passar por cima de) uma ali ainda se usam práticas terapêuticas para curar Ou desmanchado, das costas e recita-se:
criança, senão ela não crescerá; caso se faça, deve os males, do corpo e da alma. São ritos, neste caso, Ou desfiado,
passar-se novamente, mas em sentido contrário; «um tipo particular de cerimónia, em que à manei- Permita Deus Quando Deus pelo mundo andava
5. Se alguém deitar os restos de comida, deixa- ra de agir, às fórmulas, aos gestos e aos símbolos E a Virgem Maria, Encontrou um homem bom
dos por uma mulher que amamente, a uma fêmea Ou São Gonçalo, E mulher má,
usados se atribuem virtudes ou poderes inerentes,
Ou São Vicente, Cama de fentos
parida, pode fazer com que o leite dessa mulher suscetíveis de produzirem determinados efeitos ou Que torne ao mesmo, E manta molhada.
seque; para o reaver, há que fazer o contrário: - sem resultados» (Lima, 1982: 141). Como tornaram as cinco chagas Ergue-te ventre,
a mulher, em causa, o saber, dá-se-lhe os restos de Registam-se a seguir algumas dessas práticas, De Nosso Senhor Jesus Cristo. Que Deus te mandava.
comida de um animal parido; tal como se usa em Santa Eugénia. Em louvor da Virgem Maria, Em louvor de Deus e da Virgem Maria,
6. Chuva na boda pressagia felicidade na vida; Um Pai Nosso e uma Ave-Maria. Um Pai Nosso e uma Ave-Maria.
7. Copo de vinho tinto entornado na mesa, à 3.1. Cortar o coxo6 (herpes, pruriginoso - erupção
hora da refeição, é sinal de alegria; cutânea produzida por animal peçonhento). No final volta-se a medir a largura da cintura. Esta 3.4. Curar o ar ruim ou medo
8. Matar um gato preto, faz andar a vida sete deve diminuir como sintoma de cura. Repete-se
anos para trás; Pega-se numa faca e, como quem corta, vai-se durante três dias seguidos. Defuma-se o enfermo com uma vela acesa ou
9. Guarda-chuva aberto, dentro de casa, dá azar; fazendo cruzes com ela, dizendo: Uma outra versão, recolhida recentemente junto com um carvão em brasa em que se deitaram ramos
10. Entrar com o pé direito, dá sorte. de Aida da Conceição Rodrigues Martins: de oliveira, ruda e alecrim. Fazem-se cruzes por
Algumas pessoas mantêm e continuam a acreditar Coxo, coxão, A pessoa que faz a oração começa por se benzer. todo o corpo, com o fumo produzido, ao mesmo
nestes presságios, outras perderam-nos e as situ- Aranha, aranhão, Seguidamente, com o cinto do avental mede a cin- tempo que se diz:
ações que atrás se enumeraram não têm para elas tura do doente, estica-o, ela e o doente, pegando
qualquer significado. Um maior grau de instrução 6. Em Santa Eugénia, diz-se “coixo”. Decerto, um regionalismo de coxo. nas extremidades medidas. Mede o comprimento

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Deus te fez, Vai-te daqui, 4. Conclusão


Deus te criou, Este corpo não te pode sustentar.
Deus te tire Pelo Santo Amaro, São Gonçalo, Procurou-se neste artigo elencar e enquadrar em
O mal que contigo entrou. Sagrado Coração Jesus. termos antropológicos dados recolhidos em Santa
Ar de vivo, Em louvor de Deus e da Virgem Maria,
Ar de morto, Um Pai Nosso e uma Ave-Maria.
Eugénia, que constituem traços distintivos das gen-
Ar de mau-olhado, tes desta localidade. Alguns, claramente, marcas
Deixa este corpo. 3.8. Tratar a erisipela (doença contagiosa que se da identidade de uma pequena comunidade rural
Pai Nosso e Ave-Maria. manifesta por inflamação da pele): transmontano-duriense. Esta comunidade, nos já
vários séculos da sua existência, apesar do seu iso-
3.5. Tirar um cisco do olho Diz-se a seguinte oração: lamento, ou talvez, por causa dele, soube adaptar-se
ao meio, foi capaz de sobreviver e construir o seu
Mete-se uma semente de bela-luz e diz-se: Pedro e Paulo vinham de Roma e encontraram bem-estar. Forjou as suas crenças, relacionou-se
Jesus Cristo. Jesus Cristo lhes perguntou: com o espiritual, desenvolveu e manteve as suas
Corre, corre, cavalheiro, - Que vistes por lá, Pedro e Paulo? tradições. Numa palavra, criou as suas expressões
Pela porta do ferreiro, - Senhor, muita erisipela e muita gente morre
Que está lá Santa Luzia, culturais. Com o seu levantamento e análise em ter-
dela.
Que me tire este arujeiro. mos antropológicos está-se a dar um contributo para
- Voltai atrás e vós a curareis.
- Com quê, Senhor? preservar e salvaguardar este Património Cultural.
3.6. Tirar um terçolho (pequeno furúnculo no - Com água da fonte e alívio do monte. Deseja-se que possa ter sequência.
bordo das pálpebras) - Tudo curará e em fogo arderá.
Em louvor de Deus, todo mal passará. Referências bibliográficas
Pela manhã e em jejum, a pessoa que tem um
terçolho, deve sair à rua e ao ver a primeira pessoa 3.9. Afugentar a Inveja, o mau-olhado e os espí- Crespi, Franco, (1997), Manual de Sociologia da Cul-
que encontra, diz: ritos na casa: tura, Lisboa: Editorial Estampa.
Lima, Augusto Mesquitela e outros, (1982), Introdu-
Terçolho mirolho, Fazendo cruzes nos cantos da casa, com água ção à Antropologia Cultural, Lisboa: Editorial Presen-
Sai deste olho benta, diz-se: ça.
E vai para aquele olho.
Pires Cabral, A. M. (2013), Língua Charra – Regio-
Quando o sol nasce na terra nalismos de Trás-os-Montes a Alto Douro (Volume
Outra versão mais adequada à fé do povo: es- E se põe no mar,
fregar o dedo indicador na palma da mão e quando I), Lisboa: Âncora Editora.
Todo o mal que pela minha casa andar
este estiver bem quente, passar no olho doente, ao Lá vá parar.
Plácido, Manuel Alves, (1984), O povoamento do
mesmo tempo que se diz: Eu te esconjuro para o espaço. concelho de Alijó (1115 – 1269), Estudos Transmonta-
Em nome do Pai, do Filho nos, nº 2, Vila Real: Arquivo Distrital de Vila Real,
Terçolho, terçolho, sai deste olho. E do Espírito Santo. Amém. 35-50.
De seguida, invoca-se Santa Luzia, a protetora Em louvor de Deus e da Virgem Maria, Titiev, Mischa, (1963), Introdução à Antropologia Cul-
dos olhos. Um Pai Nosso e uma Ave-Maria. tural, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
United Nations Educational, Scientific and Cultu-
3.7. Curar a ciática Algumas destas mezinhas ou a execução destes ral Organization [UNESCO]
atos só podiam ser realizados por determinadas pes- - http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/
Pega-se numa faca e, fazendo que se corta com soas. Acreditava-se que possuíam poderes especiais HQ/CLT/diversity/pdf/declaration_cultural_diversity_
ela, recita-se: para tais práticas. Talvez se possa dizer que eram pt.pdf?fbclid=IwAR1kyA5hjaKwwvSM7bgnlStXdrSHtKe-
possuidoras de “Mana”, isto é, «uma força poderosa 4599w5hwIYv6SN6tW17mVJFQnFdA
Jesus, Jesus, para além da compreensão, da observação direta,
Ponha a sua bênção.
Corto maus-olhados, ou do controle das pessoas comuns, que tem uma
Corto ciática, ciaticão, ilimitada capacidade para fazer com que as coisas
Reumático, reumatismo, aconteçam.» (Titiev, 1963: 295).
Flato e ar; Fig. 5 (ao lado)
Tudo que neste corpo andar. Pormenor Alminhas do Chão-de-Carlão

Expressões culturais de Santa Eugénia. Orações, Crenças e Mezinhas, pp. 168-179


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178 Laura Maria Santos Figueira | António Alves Martinho

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