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ARTIGO 12º

(Aplicação das leis no tempo. Princípio geral)

1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-
se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a
regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer
factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos
novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas,
abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias
relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

ANOTAÇÃO

1. Antecedentes: Preceito com correspondência no art. 8.º do Código de Seabra.


Trabalhos preparatórios: artigo 11.º, I e II, do Projecto de M. ANDRADE, Fontes de
direito, vigência, interpretação e aplicação da lei, BMJ, n.º 102 (Janeiro 1961), pp.
141-152.
2. Bibliografia: Nota prévia - Abundam os estudos que, com maior ou menor minúcia,
versam o «problema da aplicação da lei no tempo» de uma forma aplicada, isto é,
na perspectiva da resolução de um particular problema que com respeito a um
particular domínio ou a um particular diploma ou diplomas se suscita. Com uma
única excepção, a lista bibliográfica que segue não os reflecte, circunscrevendo-se à
inclusão dos trabalhos que, tipicamente com um intuito pedagógico, levam por
objecto nuclear a explicitação da regulamentação vertida no art. 12.º CC
(alternativamente e em termos mais gerais, a temática da «aplicação da lei no
tempo»). São eles: J. BAPTISTA MACHADO, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo
Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968; J. CASTRO MENDES, Introdução ao Estudo
do Direito, [s.n.], Lisboa, 1977, 388-400; N. SÁ GOMES, Introdução ao Estudo do
Direito, [s.n.], Lisboa, 1979/80, 551-568; J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao
Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, 220-242, maxime
231-242; M. BIGOTTE CHORÃO, Introdução ao Estudo do Direito, vol. II, [s.n.],
Lisboa, 1983/84, 400-420; A. MENEZES CORDEIRO, “Da aplicação da lei no tempo e
das disposições transitórias”, Cadernos de Ciência de Legislação, 7 (Abril-Junho
1993), 7-29, 20-29; A. MARQUES FERREIRA, O Princípio Geral da Aplicação da Lei
Civil no Tempo, dissertação de mestrado, policop., 1995, maxime 76-88; L. M.
COUTO GONÇALVES, “A Aplicação da Lei no Tempo”, in P. FERREIRA DA CUNHA
(Org.), Instituições de Direito, I vol., Almedina, Coimbra, 1998, 397-405; M.
REBELO SOUSA/ S. GALVÃO, Introdução ao Estudo do Direito, Lex, Lisboa, 2000,
5ª ed., 89-101, maxime 93-101; I. GALVÃO TELLES, Introdução ao Estudo do
Direito, vol. I, 11ª ed. (reimp.), Coimbra Editora, Coimbra, 2001, 275-295, maxime
291-294; M.L. AMARAL, A Forma da República. Uma introdução ao estudo do
direito constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, 180-184; M. TEIXEIRA DE
SOUSA, “Aplicação da lei no tempo”, Cadernos de Direito Privado, n.º 18 (Abril-
Junho 2007), 3-15; J. OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito. Introdução e Teoria Geral,
13ª ed. refundida, Almedina, Coimbra, 2011, 545-570; ; G. MARQUES DA SILVA,
Introdução ao Estudo do Direito, 5ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa,
2015, 157-166; M. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Almedina,
Coimbra, 2018, 279-298, maxime 285-289; D. FREITAS DO AMARAL, Manual de
Introdução ao Direito, vol. II, colab. J. Gomes de Castro, Almedina, Coimbra, 2019,
221-241; A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, I, 4ª ed. reformulada e
atualizada, Almedina, Coimbra, 2019, 850-857; F.J. BRONZE, Lições de Introdução
ao Direito, 3ª ed., Gestlegal, Coimbra, 2019, 833-875; A. MENEZES CORDEIRO in A.
Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado I, Almedina, Coimbra, 2020,
pp. 111-115; P. ROMANO MARTINEZ, Introdução ao Estudo do Direito, AAFDL
Editora, Lisboa, 2021, 355-395; S. LOPES LUÍS, Introdução ao Estudo do Direito, 4ª
ed. reimp., AAFDL Editora, Lisboa 2022, 247-294, maxime 268-277; M. NOGUEIRA
DE BRITO, Introdução ao Estudo do Direito, 3º ed. revista e ampliada, AAFDL
Editora, Lisboa, 2022, 387-430, maxime 401-414; A. SANTOS JUSTO, Introdução ao
Estudo do Direito, 13ª ed., Petrony Editora, Lisboa, 2022, 355-373, maxime 366-
367.
3. Jurisprudência: Acs. STJ 29.06.1976, BMJ, n.º 258 (1976), p. 220, 08.06.1994,
BMJ, n.º 438 (1994), p. 440; 28.03.1996, BMJ, n.º 455 (1996), p. 450, 12.11.1996
(407), 28.05.2002 (1633/02), 22.04.2004 (648/04), 05.07.2005 (1898/05),
25.03.2021 (10307/16.0T8PRT.P2.S1), 30.11.2021 (19/20.5YLPRT.L1.S1); Acs.
RC 08.04.2003 (420/03), 07.05.2010 (1214/07), 03.10.2006 (2474/05), 05.07.2011
(347/01.08 TBMGL); Acs. RE 12.12.1996, CJ – XXI (1996), V, p. 281, 21.09.2021
(4/17.4PBELV-A.E1); Ac. RG 15.04.2021 (2518/19.2YLPRT.G1), Acs. RL
27.10.1999, BMJ, n.º 430 (1999), p. 501; 18.03.2003 (1328/03-7), 16.03.2006
(1310/06-2), 17.01.2008 (8491/07), 03.05.2011 (6290/09); Acs. RP 13.03.2000
(129/00), 15.03.2011 (10027.09.1TB MAI.P1), 12.04.2021 (8950/20.1T8PRT.P1),
04.10.2021 (24466/18.3T8PRT.P1).
4. I. Alojam-se no artigo anotando critérios orientados à resolução de um problema
cuja génese radica na confluência de par de vectores: de uma parte, a sucessão de
leis no tempo; de outra, a existência de situações que, designadamente por isso que
permanecem produzindo efeitos para além da cessação de vigência da norma sob
cuja império se constituiram, são tocadas, durante a sua existência, por regras
diferentes.
II. Divulgadamente dito «da aplicação da lei no tempo» - é significativa, desde logo,
a epígrafe do art. anotando –, tal problema será mais rigorosamente referido como
atinente à fixação dos limites temporais das normas (à determinação das «balizas
cronológicas do [(...) ] âmbito de aplicabilidade [das normas]», na expressão de F. J.
BRONZE, 2002: 768). Trata-se, em cada caso, e em termos típicos, de apurar qual das
leis que se sucedem no tempo é, circunstancialmente, a aplicável. Vistas as coisas
sob um outro enfoque, de delimitar as situações, ou os perfis correspondentes, cuja
consideração é de deferir a uma ou a outra das leis em concorrência. Ainda de forma
alternativa, de delimitar o âmbito de aplicação temporal de cada uma das leis
conflituantes (sublinhando que o problema se constitui num prius relativamente à
etapa da aplicação e, bem assim, a natureza tipicamente conflitual da questão, cf. J.
BAPTISTA MACHADO, 1983: 220 e nota 1 e 231; J. OLIVEIRA ASCENSÃO, 2011: 546;
F. J. BRONZE, 2002: 768-769, 773, nota 13, e 784).
III. Diferente de rigidamente determinada em torno de um critério que linearmente
imponha a aplicação da lei antiga ou da lei nova, a regulamentação vertida no art.
12.º reflecte a ponderação e a intenção compatibilizadora de duas exigências
cardeais em tensão. Por uma parte, o interesse na estabilidade das situações. Por
outra, o interesse na adequação normativa das soluções concretas. Aí onde a
consideração daquele interesse – e, por via dele, a tutela das expectativas individuais
– aponta, em regra, no sentido da preferência pela lei antiga, a exigência da maior
adequação normativa – densificada por princípios como os do «interesse público
geral», do «interesse na adaptação do direito às novas realidades sociais», do
«interesse de terceiros», do «interesse na salvaguarda da unidade e homogeneidade
do ordenamento») – inculca a mobilização da lei nova (J. BAPTISTA MACHADO,
1968: 56 ss; 1983: 223 ss; F. J. BRONZE, 2002: 773 e 784; M. TEIXEIRA DE SOUSA,
2022: 281).
IV. Com sendo fonte de critérios gerais, o art. 12.º CC vê a correspondente
aplicação ser ultrapassada pela eventual existência de critérios de direito transitório
particulares que se afigure pertinente considerar. São estes critérios já os próprios de
certas áreas dogmáticas (como o Direito Penal ou o Direito Processual), já os que,
com natureza formal ou material, são adrede fixados pela lei nova (de conformidade
com a distinção colhida em J. BAPTISTA MACHADO, 1983: 230 e divulgadamente
reproduzida pelos autores e tribunais, revestem-se de natureza formal e, assim, são
ditos critérios de direito transitório formal, os que se circunscrevem à delimitação do
âmbito de aplicabilidade da lei nova em face da(s) antiga(s); merecem o epíteto de
critérios de direito transitório material os que estabelecem uma regulamentação
própria, não coincidente nem com a lei antiga nem com a lei nova, para as situações
que se encontram na fronteira entre as duas leis). Bem entendido, o que fica posto é
sem prejuízo da qualidade do art. 12.º CC como “bitola profunda da ordem jurídica
[que dá] uma medida de valor que [o legislador] deve ter sempre em conta” (A.
MENEZES CORDEIRO, 1993: 22].
V. Sob a determinação de que “[a] lei só dispõe para o futuro”, consagra-se na
primeira parte do n.º 1 a solução geral da irretroactividade da lei (cf. a primeira parte
do art. 8.º CC67). Sem prejuízo de que em favor da lei nova se poderá invocar,
quase sempre, uma maior adequação, exigências de segurança inscritas no princípio
do Estado de Direito e associadas à elementar tutela da estabilidade da vida social
justificam a determinação legal de que, dispondo para o futuro, à lei não seja dado,
em princípio, inflectir sob o passado, imprimindo nova regulamentação a factos,
situações ou efeitos já totalmente esgotados.
VI. Não se constitui o princípio da irretroactividade, como quer que seja, em
princípio absoluto. Proibida pela letra do art. 145.º, § 2, da Carta Constitucional de
1826, a retroactividade não é solução interditada dos quadros do direito vigente em
Portugal. Para além do mais, revela-o logo o n.º 1 do artigo anotando, cuja segunda
parte precisamente rege para a hipótese – destarte abertamente admitida – de a uma
lei ser conferida eficácia retroactiva (explicitando as razões por que a
retroactividade não é solução incompatível com o horizonte de um autêntico Estado
de Direito e por que, em conformidade, a CRP não contém uma proibição geral de
retroactividade das normas, cf. M.L. AMARAL, 2005: 181-182).
VII. Acontecendo, nos termos aludidos, que o legislador atribua eficácia retroactiva
a uma lei sem, contudo, explicitar a medida do passado que pretende atingir, vale,
então, a solução residual posta pela segunda parte do n.º 1: presume-se ficarem
ressalvados (todos) os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a
regular (que não apenas os ressalvados pelo n.º 1 do art. 13.º CC; por maioria de
razão, e embora o preceito não o explicite, ficam ressalvados os próprios factos
geradores de todos esses efeitos). Faz-se referência, a este propósito, a uma
retroactividade ordinária: não sendo a lei (retroactiva) em causa interpretativa (cf. a
anotação ao art. 13.º CC), uma tal medida de retroactividade vale sempre que a lei
ou algum critério específico do domínio em que se insere nada estabeleçam em
contrário (para a distinção entre os diferentes níveis, medidas ou graus de
retroactividade, cf. J. CASTRO MENDES, 1977: 393-394; M. BIGOTTE CHORÃO,
1983: 409-412; A. MARQUES FERREIRA, 1995: 14-15; M. REBELO DE SOUSA/S.
GALVÃO, 2000: 97-99; I. GALVÃO TELLES, 2001: 277-278; M. TEIXEIRA DE SOUSA,
2007: 12-13; J. OLIVEIRA ASCENSÃO, 2011: 566-567; A. MENEZES CORDEIRO,
2019: 852-853; A. SANTOS JUSTO, 2022: 359; M. TEIXEIRA DE SOUSA, 2022: 292-
294).
VIII. Mesmo se se admite que a atribuição de retroactividade por parte do legislador
não tenha de ser expressa (neste sentido, A. MARQUES FERREIRA, 1995: 78; M.
REBELO DE SOUSA / S. GALVÃO, 2000: 92, aparentemente em contradição com o
afirmado pelos AA na p. 96), não pode o intérprete/aplicador imputar à lei eficácia
retroactiva se ela não a contiver por mandato do legislador.
IX. Das leis com eficácia retroactiva autêntica distinguem-se as leis com
retroeficácia inautêntica ou retrospectivas (cf., infra, 8. II e III).
X. A admissão legal, escancarada pela segunda parte do n.º 1, de que a uma lei seja
atribuída eficácia retroactiva cede em face de proibições constitucionais de
retroactividade. Constituem-se em limites constitucionais expressos à
retroactividade das leis ordinárias: i) em matéria de direitos, liberdades e garantias, o
art. 18.º, n.º 3 CRP, do qual resulta não poderem as leis restritivas de direitos,
liberdades e garantias gozar de efeito retroactivo; ii) no domínio penal, o art. 29.º,
n.º 1, CRP, a estatuir que ninguém pode ser punido criminalmente senão em virtude
de lei anterior que declare punível a sua acção ou omissão (nullum crimen sine lege;
nulla poena sine lege); iii) no domínio processual penal, o art. 32.º, n.º 9, CRP, de
conformidade com o qual nenhuma causa pode ser subtraída a um tribunal criminal
cuja competência esteja fixada em lei anterior; iv) em matéria fiscal, o art. 103.º, n.º
3, CRP, a consagrar que ninguém pode ser obrigado ao pagamento de impostos a
que assista natureza retroactiva.
XI. Aos limites constitucionais referidos em X. supra, expressos e, ademais,
materialmente circunscritos, importa aditar dois outros. Por uma parte, o que se
prende com o respeito pelas decisões judiciais firmes, um princípio de
intangibilidade do caso julgado sendo descortinável a partir da solução alojada na
primeira parte do n.º 3 do art. 282.º CRP. Por outra, o que se relaciona com o
princípio da confiança legítima que as pessoas devem poder depositar na ordem
jurídica, o Tribunal Constitucional tendo vindo a entender ocorrer violação de uma
tal directriz sempre que, em cumulação: i) o Estado (os poderes públicos, em geral)
tenham efectivamente tomado decisões, ou encetado comportamentos, susceptíveis
de gerar nos cidadãos expectativas de continuidade; ii) os cidadãos tenham eles
próprios tomado decisões – ou feito planos de vida – com fundamento nessas
mesmas expectativas; iii) tais expectativas na continuidade da política estadual
sejam legítimas, porque fundadas, ou justificadas, por boas razões; iv) a mudança do
comportamento dos poderes públicos não seja exigida por um interesse público que,
pela sua importância e valor, sobreleve o valor da tutela das expectativas privadas
(seguiu-se de perto a síntese ordenadora de M.L. AMARAL, 2005: 183).
XII. Consagrada, pela primeira parte do n.º 1, a solução geral da irrectroactividade –
nas palavras de I. GALVÃO TELLES, um princípio geral, programático, mas um tanto
vago (2001: 291) –, nem por isso resulta dispensado ulterior critério que possibilite,
com a nitidez possível, definir a retroactividade; correlatamente, a
irrectroactividade. Seguro que um exagero na noção de retroactividade paralizaria o
legislador (J. CASTRO MENDES, 1977: 391), o que deve entender-se por
retroactividade? Para perguntar à maneira de I. GALVÃO TELLES, quando acaba o
passado e começa o futuro? (2001: 278)
XIII. Pertence ao n.º 2 prover a resposta e, assim, explicitar a regra, acolhida na
primeira parte do n.º 1, segundo a qual a lei só dispõe para o futuro (nas palavras de
M. REBELO SOUSA / SOFIA GALVÃO, 2000: 96, “(...) devemos perceber que só a
primeira parte do n.º 1 tem relevância para a leitura do n. 2 – ou seja, por outras
palavras, que a relação da lei nova com factos novos ou com efeitos destacáveis de
factos passados e, no reverso, da lei antiga com factos passados ou com efeitos não
destacáveis de factos passados, não é senão a aplicação da regra que prescreve que a
lei só dispõe para o futuro.”). Seguindo para o efeito a teoria do facto passado,
segundo a formulação de ENNECERUS-NIPPERDEY, o legislador ordena a delimitação
do âmbito temporal das leis com base numa contraposição que atende, em termos
fundamentais, ao objecto das leis. E distingue: por uma parte, as leis que dispõem
sobre os requisitos de validade substancial ou formal de quaisquer factos, assim
como as leis que dispõem sobre os efeitos de quaisquer factos; por outra, as leis que
dispõem directamente sobre o conteúdo das relações, abstraindo dos factos que lhes
deram origem. Os termos e a relevância da contraposição são os que se indicam,
infra, sob 7 e 8.
XIV. São pela primeira parte do n.º 2 do art. 12.º CC consideradas as leis que
dispõem sobre os requisitos de validade substancial ou formal de quaisquer factos,
assim bem como as leis que dispõem sobre os efeitos de quaisquer factos. Em caso
de dúvida – é determinado –, deve entender-se que as mesmas só se aplicam a factos
novos, isto é, ocorridos após a sua entrada em vigor, não ficando submetidos ao seu
império nem os factos passados nem os respectivos efeitos, os quais mantêm a
configuração que resulte da lei velha. Tem-se, assim, e a título de exemplo, que
permanecem válidos os negócios verbalmente celebrados durante a vigência da lei
antiga não obstante uma lei nova que vem exigir a observância de forma escrita para
os contratos do mesmo tipo. Assim como que a lei que venha exigir que o nubente
tenha completado 16 anos de idade para adquirir capacidade nupcial só se aplica a
casamentos futuros (entenda-se: celebrados depois da entrada em vigor da lei nova).
Do mesmo modo, sempre exemplificativamente, que a lei que vem regular por
forma diferente os efeitos da factos ilícitos também só se aplica a factos futuros.
XV. O critério que se aloja na primeira parte do n.º 2 do art. 12.º rege em caso de
dúvida. Existirá dúvida sempre que o legislador não edite uma solução particular de
direito transitório. Nas palavras de J. OLIVEIRA ASCENSÃO, 2011: 560, “(...) só não
há dúvida quando os dados normativos impuserem certa solução. Se não houver
nenhum precito específico ou se os preceitos existentes não bastarem para afastar a
ambiguidade, aplicam-se então as regras do art. 12.º, com a mesma imperatividade
de qualquer outra regra jurídica.”. Ou ainda, na terminologia de A. MENEZES
CORDEIRO, 2019: 855: “(...) «na dúvida» significa: sempre que não resulte da
própria lei que ela visa mesmo os factos novos (ou os seus efeitos), assumindo
eficácia retroactiva (...).”.
XVI. Estatuindo o art. 12.º, n.º 2, primeira parte, que as leis dispondo sobre os
requisitos de validade substancial ou formal de um facto são aplicáveis aos factos
ocorridos após o seu início de vigência, desprende-se daí, linearmente, ser
desprovida de relevância, quanto ao valor daqueles factos, a circunstância de a lei
nova ser menos exigente do que a lei antiga (assim, por exemplo, aligeirando
formalidades, dispensando pressupostos ou trâmites ou eliminando impedimentos).
Não é assim, todavia, se a lei nova expressamente confirmar actos nulos ou
anuláveis realizados sob o império da lei antiga; é que, em casos tais, ocorrerá,
afinal, a edição de uma solução particular de direito transitório que, desembocando
em retroactividade in mitius, afasta a regra da primeira parte do n.º 2. Mais delicada
é a indagação em torno da admissibilidade da figura da lei confirmativa tácita. A
despeito de a resposta que linearmente se deduz do art. 12.º, n.º 2, primeira parte, ser
outra, considerações várias parecem tornar legítima a correspondente admissão; são
exemplos dessas considerações: a noção de que a não retroactividade pode
comprometer a estabilidade e a segurança jurídicas que constituem, afinal, o
fundamento vero do princípio da irretroactividade; a consciência do formalismo ou
da inutilidade eventualmente implicados no acatamento da solução que logicamente
se liberta do art. 12.º; o reconhecimento de que casos haverá em cujos quadros não
há lugar a descortinar expectativas da contraparte merecedoras de tutela (J.
BAPTISTA MACHADO, 1968: 69-86; J. BAPTISTA MACHADO, 1983: 248-251; F. J.
BRONZE, 2002: 807; M. TEIXEIRA DE SOUSA, 2007: 11-12; M. TEIXEIRA DE SOUSA,
2022: 291-292).
XVII. A aplicação da lei nova a factos passados não envolve retroactividade sempre
que tais factos não se apresentem como constitutivos, modificativos ou extintivos de
situações jurídicas, antes sendo pela lei nova assumidos como pressupostos
negativos ou positivos da validade ou admissibilidade da constituição de situações
jurídicas. Alude-se, a este respeito, a retroconexão (cf. J. BAPTISTA MACHADO,
1983: 234-237; L. COUTO GONÇALVES, 1998: 402; F.J. BRONZE, 2002: 777; M.
TEIXEIRA DE SOUSA, 2007: 13-14; M. TEIXEIRA DE SOUSA, 2022: 294-296).
XVIII. Depois de, desenvolvendo o princípio da irretroactividade nos termos da
teoria do facto passado, a primeira parte do art. 12.º, n.º 2, considerar as leis que
levam por objecto a regulação de factos – as suas condições de validade substancial
ou formal ou os seus efeitos - e de determinar a correspondente aplicação apenas aos
factos novos, pertence à segunda parte da mesma disposição, iluminada por aquela
teoria, individualizar categoria alternativa, a das leis que dispõem directamente
sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, modelando-o com abstracção dos
factos que a essas relações deram origem. A determinação é, com respeito a este tipo
de leis, a da correspondente aplicação às próprias relações já constituídas, que
subsistam à data da sua entrada em vigor. Tem-se assim que aí onde, por
determinação da primeira parte do n.º 2, as leis que dispõem sobre os requisitos de
validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer
factos só se aplicam aos factos novos, já sucede, por indicação da segunda parte do
n.º 2, que as leis dispondo directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas
são aplicáveis às relações jurídicas constituídas antes da entrada em vigor da lei
nova mas subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência. Seja uma lei que
vem alterar o regime das relações pessoais dos cônjuges ou o regime de
administração dos bens do casal, ou o conteúdo do direito de propriedade; na falta
de indicação em contrário, aplicar-se-á, respectivamente, aos casamentos já
celebrados antes do seu início de vigência ou aos direitos de propriedade
constituídos ou adquiridos antes da mesma data.
XIX. Sabendo-se que o conteúdo das situações jurídicas pode ser sempre
considerado como efeito de um facto, pois todas as situações jurídicas resultam de
factos, surge a necessidade de distinguir os efeitos que estão previstos na primeira
parte do n.º 2 do art. 12.º e os que caem já no âmbito da segunda parte. A chave é
dada pela segunda parte do n.º 2, a qual, nomeando as leis que regulam o conteúdo
de uma relação abstraindo do facto que a originou, deixa entrever a possibilidade
correlata de leis que modelam o conteúdo das relações jurídicas atendendo aos
factos que lhes deram origem. A estas últimas – afinal, leis sobre efeitos de factos –
quadra o regime estatuído pela primeira parte do n.º 2, de onde a sua aplicação, sob
pena de irretroactividade, apenas aos factos futuros. Às primeiras, por seu turno,
ajusta-se a solução desenhada pela segunda parte: dissociando os efeitos das
relações jurídicas dos factos que lhes deram origem, a lei nova pode, sem
retroactividade, ser objecto de aplicação imediata e, assim, reger os efeitos futuros
das situações em curso. Utilizando fórmula de síntese: a lei antiga regula os factos
passados e os efeitos que, segundo um critério legal, lhe estão intimamente
associados; a lei nova regula os factos novos e os efeitos destacáveis dos factos
passados. Sejam, em aplicação do critério legal, alguns exemplos. A lei nova
modificadora do conteúdo do direito de propriedade é aplicável aos direitos de
propriedade existentes à data da sua entrada em vigor por isso que a modelação
legislativa desse direito não é função do título da correspondente aquisição.
Distintamente, não dispõem sobre o conteúdo de uma situação jurídica abstraindo
dos factos que lhes deram origem as disposições da lei nova relativas aos contratos
assistidas de natureza meramente dispositiva.
XX. Mera explicitação, à luz da construção própria da doutrina do facto passado, do
princípio da irretroactividade consagrado na primeira parte do n.º 1, a solução
vertida na segunda parte do n.º 2 não monta a acolhimento de retroactividade – cp.,
todavia, A. MENEZES CORDEIRO, 2019: 856-857 –, antes aludindo os autores e os
tribunais, a seu respeito, a «aplicação imediata», «retrospectividade» ou a
«retroactividade inautêntica ou imprópria» (I. GALVÃO TELLES, 2001: 293).
Ocorrendo retroactividade aí onde a lei disponha para o passado (ou também para o
passado), determinando a produção de efeitos novos em relação a situações jurídicas
já findas, embora não necessariamente consolidadas através do instituto do caso
julgado, descortina-se retrospectividade aí onde tenha lugar a imediata aplicação da
lei nova a situações constituídas à sombra de lei antiga e ainda não esgotadas.
XXI. Os quatro pressupostos referidos em XI supra e que, como ficou dito,
densificam o conceito de protecção da confiança legítima também têm pelo Tribunal
Constitucional sido aplicados aos casos de «retrospectividade» ou de
«retroactividade imprópria» (cf., a este respeito, M.L. AMARAL, 2005: 183-184).
XXII. Enquanto anteriormente usara as expressões «presume-se» (n.º 1, 2ª parte) e
«entende-se, em caso de dúvida» (n.º 2, 1ª parte), o legislador serve-se, no quadro da
segunda parte do n.º 2, de forma – «entender-se-á» – de cunho aparentemente
injuntivo. Sem embargo, na dissonância não parece de ver senão uma opção de
estilo, termos em que valerá com respeito à segunda parte do n.º 2 o que ficou
posto, supra, sob 7. II (neste sentido, A. MARQUES FERREIRA, 1995: 86; J.
OLIVEIRA ASCENSÃO, 2011: 559)

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