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A Oração segundo os Doutores da

Igreja
Flavio Crepaldi
SUMÁRIO
A ORAÇÃO SEGUNDO OS DOUTORES DA IGREJA
Introdução

A PARTIR DE SANTO TOMÁS DE AQUINO


Afinal, o que é a oração?
Alinhar-se com a vontade de Deus
O que eu ganho por rezar?
Preciso mesmo rezar?
As partes que compõem a oração
A intercessão dos santos
O que se deve pedir na oração?
Pedindo bens materiais na oração
Devemos rezar uns pelos outros
Amai os vossos inimigos
Quando devo usar palavras na oração?
Deus escuta quem reza distraído?
Como é possível rezar sem cessar?
Deus escuta a oração do pecador?

A PARTIR DE SANTA TERESA D`ÁVILA


Um jardim fechado chamado alma
Produzir frutos agradáveis a Deus
Regar a alma com a oração
Santa Teresa e a oração do “Pai nosso”
O segundo modo de regar o jardim da alma
A Oração de Meditação
Novos modos de oração
Amar a Deus é uma forma de oração?
Terceiro modo de regar o jardim
O que é a contemplação?
Oração Mística e seus primeiros graus
Santa Teresinha e o abandonar-se a Deus
Oração Mística e seus últimos graus
A Oração de Santa Elisabete da Trindade
A ORAÇÃO SEGUNDO OS
DOUTORES DA IGREJA
“Sem a oração, segundo a providência
ordinária de Deus, serão inúteis todas as
meditações, todos os propósitos e todas as
promessas. Se não rezarmos, seremos infiéis a
todas as luzes recebidas e a todas as nossas
promessas.”
Santo Afonso Maria de Ligório
Introdução

Não existe vida espiritual sem a oração. O ato de rezar é a


maneira como nos colocamos, conscientemente, sob os cuidados
de Deus, procurando conhecê-Lo e nos tornar conhecidos dEle,
procurando entender e fazer a Sua vontade.

Sim, entender! Porque entendendo, mesmo imperfeitamente,


percebemos que a Sua vontade é o melhor que podemos ter,
infinitamente superior a qualquer coisa que já possamos ter
sonhado. Por isso a oração é, em última instância, um modo de
intimidade e entrega mútua.

É dar-se e, não só receber a Deus de volta, mas também


receber-se. A nossa verdadeira vida, alterada pelo pecado original,
pode ser readquirida se nos unirmos verdadeiramente ao autor de
toda vida. Ele já a recuperou para nós através de sua Encarnação,
morte e Ressurreição. Cumpre a nós, agora, buscá-la em suas
mãos misericordiosas percorrendo o caminho da oração.

A prática cotidiana, no entanto, demonstra que muitos ficam


perdidos sobre o que é a oração, sendo necessário aprofundar seu
verdadeiro sentido. Também é essencial aprender como rezar, para
que possamos crescer em intimidade com Deus (o grande sentido
da oração) e nos entregarmos cada vez melhor a essa atividade que
é a maior e a melhor que podemos realizar para, com e em Deus.

Este livro busca esgotar estes dois pontos principais: o que é


a oração e como praticá-la de modo a gerar muitos frutos já nesta
vida.

Deste modo, em sua primeira parte, traz toda a riqueza da


Teologia Sistemática sobre a oração, com Santo Tomás de Aquino,
Santo Agostinho, Santo Afonso de Ligório e tantos outros, para que
possamos compreender no que consiste a oração e por onde
devemos trilhá-la, bem como o que não é aconselhável fazer e
porque.

Afinal, para começar a crescer em fé, vivendo ativamente a


oração, nada melhor do que ter bem firme, primeiro, a que ela se
refere. Ela está embasada nas questões sobre a Oração que Santo
Tomás de Aquino deixou em sua Suma Teológica.

A segunda parte deste livro, traz a prática carmelitana com


Santa Teresa D’Ávila e suas explicações de como crescer em
santidade a partir da oração, evoluindo em seus diversos graus,
unido o esforço humano e a vontade divina.

Junto com suas orientações, foram acrescentados


ensinamentos de São João da Cruz, Santa Teresinha do Menino
Jesus e Santa Elisabete da Trindade para que a abundância de
exemplos possa levar a uma melhor absorção deste conteúdo tão
profundo. Todos os capítulos desta segunda parte foram construídos
a partir das Obras de Santa Teresa e destes outros autores,
Doutores da Igreja ou Mestres de Espiritualidade.

À semelhança de “Santidade para Todos: Descobrindo as


Moradas Interiores”, que é um caminho didático sobre as práticas
para se crescer e reconhecer o percurso da vida espiritual desde a
conversão até a união plena, esta segunda parte do livro é um
manual prático do crescimento na oração, desde os seus primeiros
graus ascéticos até a grande contemplação mística, objetivo último
a que todo cristão é chamado.

Mais do que aumentar o seu conhecimento sobre Teologia


Espiritual e sobre estes Doutores da Igreja Católica, o grande
objetivo deste livro é ser um propulsor na sua vida de oração e
intimidade com Deus.

Considere-se, desde já, incluído em minhas orações e peço,


encarecidamente, que me coloque também nas suas!
Flavio Crepaldi
PARTE I
A ORAÇÃO A PARTIR DE SANTO TOMÁS DE
AQUINO
“Sabe viver bem, quem sabe rezar bem.”

Santo Tomás de Aquino

✽✽✽
Afinal, o que é a oração?

Entre as várias passagens nos Evangelhos que


recomendam a oração, podemos citar duas: Lucas (18,1) que diz
que “é preciso rezar sempre e nunca deixar de fazê-lo” e Mateus
(26,41) que recomenda: “Vigiai e orai para não cairdes em
tentação”. Esta última, no contexto da advertência de Jesus aos
seus apóstolos que dormiam, enquanto ele suava sangue na dura
batalha interior de sua Paixão que se iniciava.

Se, por um lado, a recomendação é forte e constante, por


outro, parece trazer embutida a certeza de que todos sabem o que é
rezar, orar ou colocar-se em contato com Deus. A prática, no
entanto, demonstra que muitos ficam perdidos sobre o que é a
oração. Podemos dizer que, como os discípulos, muitos estão
adormecidos. Por isso, devemos começar do princípio e perguntar:
o que é a oração?

A primeira e mais simples resposta que encontramos,


inclusive na Bíblia, é que a oração seria um pedido para Deus. Isso
encontra respaldo até mesmo nas palavras de Jesus que diz
“pedirei a meu pai” (Jo 14,16) e na ação do Espírito Santo, que vem
em nosso auxílio, porque “não sabemos o que devemos pedir” (Rm
8,26).
A oração seria, aparentemente, um pedido a Deus motivado
por nossos desejos. Seguindo esse princípio poderíamos dizer que
o desejo de algo nos motiva a rezar e, inversamente, na ausência
de um desejo ou vontade, não é possível rezar. Neste modo de
pensar, a oração seria, portanto, um pedido motivado pela nossa
vontade. Mas, será mesmo?

Argumenta-se ainda, para justificar essa definição, que a


experiência cotidiana impele muitos a dizer que “não tem vontade de
rezar”, que “perdeu a vontade de rezar” ou, que não acredita no
poder da oração, pois seus pedidos-vontades não foram atendidos
por Deus. Segundo essa visão, a oração não passa de um pedir
algo que se deseja a Deus, quando se precisa ou se tem vontade de
fazê-lo.

Tão perto, no entanto, também tão longe. Santo Tomás de


Aquino nos lembra de duas verdades importantes sobre “pedidos”:

1. se pedimos algo a alguém, só pedimos se considerarmos


essa pessoa de alguma maneira superior ou mais capaz de realizar
o que se pede do que nós mesmos.

2. para pedir, precisamos nos aproximar de alguma maneira


de quem pedimos, caso contrário, não somos nem ouvidos, muito
menos atendidos.

Baseado nisso, entende-se que a oração é, em primeiro


lugar, aproximar-se de Deus sabendo que Ele nos é superior em
tudo. Se ele fosse material, chegaríamos perto fisicamente, como é
puro Espírito, a oração é a maneira de nos aproximarmos
espiritualmente dEle. São Dionísio sintetiza isso dizendo que
“quando invocamos a Deus na oração, a Ele estamos presentes
com o espírito descoberto”. Aproximo-me e, assim, vejo e também
me deixo ver.

Claro, não podemos realizar isso sozinhos, então o pedido-


invocação é sim uma característica da oração. Só que o primeiro
pedido-oração a Deus deveria ser sempre o pedido de que
possamos nos aproximar dEle, de que Ele permita que estejamos
em comunhão espírito com espírito ou, como tão
extraordinariamente revela o Salmo: “uma só coisa peço ao Senhor,
e a peço insistentemente: é habitar na casa do Senhor todos os dias
da minha vida” (Sl 26,4).

Isto é, que eu possa me unir contigo Senhor e permanecer


nessa união indefinidamente. Fato que precisa se realizar hoje e
todos os dias da minha vida, como um treinamento para aquilo que,
se Deus quiser, será realizado por toda a eternidade: uma vida
eterna em união íntima com Deus.

Também precisamos lembrar que ninguém pede nada se


antes não pensar naquilo que deseja. O pedido passa,
necessariamente, pela razão. A oração é, deste modo, e antes de
mais nada, um ato intelectual, não da vontade. Não se deseja, não
se pede, aquilo que não se pensa.

São João Damasceno diz, por isso, que “a oração é a


ascensão do intelecto para Deus”. E, sendo um ato intelectual ou
motivado pela razão, fica claro porque pode não existir a vontade de
rezar: o afeto não é mesmo o motor da oração.

Vejamos um exemplo: é um fato intelectualmente conhecido


que existem milhares de acidentes de trânsito diariamente.
Geralmente um deles só passa a me afetar e a me interessar
particularmente, quando alguém que conheço está envolvido, seja
no próprio acidente, seja por meio de um familiar. Além do
conhecimento intelectual da situação, passa a atuar também o meu
afeto ou vontade. Caso contrário, o fato, em si, seria-me totalmente
indiferente, um mero conhecimento intelectual.

Do mesmo modo, se a oração não é própria da vontade, ela,


naturalmente e por si só, não deve gerar vontade ou falta de
vontade. A oração não rege e também não necessita da vontade.
Tem-se a vontade ou não de rezar, quando se antevê uma
vantagem na oração ou se já se recebeu um benefício ao rezar.

Parece ser uma discussão puramente teórica, mas entenda a


partir disso porque, na prática, às vezes (ou regularmente) não se
tem vontade de rezar: seria como ter vontade de que dois mais dois
dessem quatro, ou que a soma dos quadrados dos catetos do
triângulo retângulo fossem iguais ao valor do quadrado de sua
hipotenusa! Ninguém sente vontade de que o teorema de Pitágoras
esteja certo. E, inversamente, não é a minha vontade de que esteja
certo ou errado que o faz ser menos verdade.
Pode-se dizer, pelo contrário, que o normal é não ter mesmo
nenhuma vontade sobre as questões regidas pela razão. Deve-se,
também, questionar se a oração “com vontade” não nos vem
motivada por algo mais do que o puro e necessário contato com
Deus, o reconhecimento que Ele é a fonte, a razão e a meta de
nossa existência.

Claro, como o ser humano não é somente uma somatória de


suas partes, nem pode ser fragmentado, veremos na segunda parte
deste livro como a vontade também participa da oração. Mas,
veremos que não é como imaginamos usualmente, ele fará parte
quando for purificada pela própria ação de Deus. Por hora, basta
saber que, como a oração não tendo origem prioritariamente na
vontade, exige-se um esforço intelectual inicial para fazê-la
acontecer e mantê-la.

Por isso, na definição de Santo Tomás, a oração é a


elevação da mente a Deus, em primeiro lugar para nos
aproximar dEle, depois para reconhecê-Lo como Senhor e,
imediatamente após, para louvá-Lo. Mas, também, para pedir
coisas necessárias à nossa eterna salvação.

E, embora esteja respondida a pergunta que está no título


deste capítulo, sobre o que seria a oração, certamente outras
perguntas agora surgiram: se não é necessário ter vontade de rezar,
por que rezar? O que são coisas necessárias para a salvação? E as
outras “coisas” que necessito e peço? Não é oração, não posso
pedir a Deus?

Essas, e outras perguntas, buscaremos responder nos


próximos capítulos. Por hora, pense nisso: se a oração é uma
elevação da mente a Deus, tenho ocupado parte da minha vida
nisso?

Ou minha cabeça vive ocupada com as coisas da terra,


rasteira no dia a dia, cheia das coisas que passam? Em palavras
mais diretas: você vive pensando em que?
✽✽✽
Alinhar-se com a vontade de Deus

Se fôssemos simplesmente generalizar, poderíamos dizer


que a primeira desculpa dada por aqueles que não rezam é: “não
tenho tempo”. A segunda, provavelmente seria: “não consigo ter
vontade de rezar”.

Considerando que, invariavelmente, arruma-se tempo para


aquilo que se tem muita vontade de fazer (se a questão for somente
conseguir tempo), localizamos a vontade, ou para ser exato, a falta
de vontade, como um grande vilão da vida espiritual. Sim, da vida
espiritual como um todo, pois a oração é a porta de entrada da
mesma.

No entanto, como vimos no capítulo anterior, a oração é


prioritariamente do intelecto e não da vontade. Embora existam
causas para se ter maior ou menor vontade de rezar, o critério não
pode ser, de forma alguma, ter ou não se ter vontade para rezar.

Muito pelo contrário, pode-se dizer com segurança que a


oração é absolutamente necessária para o ser humano (1Tes 5,17)
e, como tudo que é necessário, não pode ser feito ou não ser feito
baseado na vontade. Simplesmente deve-se fazê-lo.
Aos poucos iremos lançando luzes sobre essa questão que
parece tão estranha e tão complicada.

Examinemos, primeiro, outras desculpas mais elaboradas


para a falta da vida de oração como, por exemplo, aqueles que
questionam que, se Deus sabe todas as coisas e, segundo o
evangelho de Mateus (6,26-32), está atento a todas as nossas
necessidades e cuidando de nós, por que precisamos pedir-Lhe
algo através da oração?
Embora Deus realmente saiba de tudo e esteja atento
permanentemente às nossas necessidades, vimos que um objetivo
essencial da oração é nos aproximar dEle.

A partir disso percebemos que não levantamos a Deus


nossas orações porque Ele não conhece nossas necessidades ou
não se importe com elas. Mas para que nós mesmos reconheçamos
que é fundamental se recorrer ao auxílio divino, aumentemos nossa
intimidade com Ele e nossa confiança. Entregando-Lhe todas as
nossas preocupações, perceberemos, finalmente, que só Ele pode
ser o autor de todas as coisas boas que temos e recebemos.

É também uma visão equivocada aquela que, por considerar


Deus eterno e imutável, incapaz de mudar de ideia (Num 23,19),
acreditar que não vale a pena rezar. Afinal, como pedir que Deus
mude o curso de uma história em progresso ou um acontecimento já
realizado, se foi sua providência que assim dispôs as coisas?

Novamente, a leitura está correta e a interpretação errada.


Deus é imutável, Ele dispõe as coisas eternamente, Ele não muda
de opinião, mas, segundo Santo Tomás de Aquino, nossas orações
não são para mudar os desígnios de Deus, mas para conseguir
dEle, exatamente o que Ele dispôs que acontecesse se
rezássemos.

Santo Afonso de Ligório vai um pouco mais longe, ele diz


que, “sem a oração, segundo a providência ordinária de Deus, serão
inúteis todas as meditações, todos os propósitos e todas as
promessas. Se não rezarmos, seremos infiéis a todas as luzes
recebidas e a todas as nossas promessas.”

Ou seja, além de Deus só conceder certas graças ou


permitir a concretização de certos desígnios se o ser humano
rezar, sem a oração para implorar que Deus nos sustente no dia
a dia, mesmo as decisões que já tomamos e queremos manter,
seriam pesadas demais para realizarmos sem o auxílio dEle.
Bem concretamente, através da oração recebemos luzes
para realizar os desígnios de Deus e também, somente através da
oração, podemos receber forças e continuarmos fiéis para realizar o
que Deus estabeleceu que acontecesse se, e somente se,
rezássemos!

Santo Tomás nos diz que esta é a maneira que Deus


estabeleceu para que os seres humanos consigam colaborar com
sua própria salvação: a oração.

Santo Agostinho volta ao mesmo tema dizendo que “Deus dá


algumas graças, como o começo da fé, mesmo aos que não pedem;
outras, como a perseverança, reservou somente para os que
pedem.”

Salienta, assim, que o ato de rezar ou pedir na oração faz


com que o homem participe da providência divina fazendo aquilo
que, na maioria das vezes, é só o que ele, na sua miséria, pode
fazer: suplicar. Essa verdade ecoa nos evangelhos quando Jesus
diz aos apóstolos que, sem Ele, nada pode ser feito (Jo 15,5).

É preciso também combater aquela ideia errônea de que o


mundo é um mecanismo que existe por si só. Ou seja, pode-se até
acreditar que Deus criou o mundo, mas criou de uma maneira que
funcionasse por si mesmo e não precisasse mais de seu criador. De
fato, Deus mantém, e precisa manter, todas as coisas na existência
constantemente. Qualquer um, ou coisa, ou universo, que não fosse
sustentado por Deus a cada segundo, deixaria de existir naquele
mesmo segundo.

Revertendo para a oração, enquanto acreditar-se que Deus é


um criador distante, crescerá a distorção de se achar que Ele não se
ocupa das coisas humanas. Se Deus não está próximo a mim, por
que rezar?

É baseado nessa visão distorcida e distanciada de Deus que


se alimenta o desleixo com a oração: se Ele não me escuta, para
que rezar? Ou, se existe mal no mundo, Deus certamente não está
cuidando dele… Se fulano, que era tão bom, morreu, Deus não está
próximo!

Contra essas visões, Santo Tomás argumenta que Deus


realmente permite certas deficiências em certas condições, pelo
bem universal que Ele conhece e conduz com Sua providência. De
fato, se nenhum animal deveria morrer, como o leão poderia se
alimentar? Se na vida espiritual o homem santo não é humilhado e
perseguido, como ele pode ser purificado e desenvolver a
paciência?

Em contrapartida, há também aqueles que não rezam por


acreditar num destino, ou carma, ou sorte, ou fortuna, ou pré
disposições astrológicas, ou desenrolar das coisas sem a
interferência de ninguém. Esse pensamento exclui a ação de Deus,
a liberdade de escolha do homem e, consequentemente, a própria
oração. Se “tudo está escrito” e não pode ser mudado, toda
esperança é vã.

Mais infelizes ainda são aqueles que justificam esse destino


consolidado, ou escrito, como sendo a própria providência divina.
Para estes, Deus sabe quem irá se salvar ou não e não há nada que
possa ser feito para reverter ou apoiar o que está estabelecido.

Confunde-se, aí, a onisciência de Deus com sua providência.


De fato, a providência de Deus conduz todas as coisas, mas não
como manipulação, pois está aberta às causas segundas, ou seja, a
todas as outras ações que não são conduzidas diretamente por
Deus.

De novo reforçamos o que já foi dito: Raquel não terá filhos, a


não ser que Isaac reze para que ela engravide (Gn 25,21). Maria
será a mãe do Salvador se, e somente se, ela assentir a isso com
sua vontade (Lc 1,38). Isso porque a providência divina age por
diversas formas, inclusive contando com os atos humanos.

Assim, teologicamente falando, cabe ao homem realizar


livremente alguns efeitos dispostos por Deus. Santo Tomás explica
isso de forma clara ao dizer que “não oramos para mudar o que foi
disposto pela providência divina, mas para que façamos o que Deus
dispôs para ser realizado devido à oração dos santos.”

A oração, portanto, não muda o pensamento de Deus, ela


nos ajuda a entendê-lo e, mais ainda, a realizá-lo e, por isso, é
fundamental. Ao mesmo tempo, faz-nos reconhecer nossa
constante fraqueza e aumentar nossa confiança e intimidade
com Ele, participando de Seus projetos, sendo, assim,
absolutamente necessária.

Mas, será que Deus não premia ainda com outros benefícios
aquele que reza? Nos debruçaremos sobre isso no próximo
capítulo. Por hora, talvez seja o momento de revisar alguns pontos
fundamentais que acabamos de ver, e selá-los no coração.

Para facilitar essa revisão é que deixei alguns trechos em


negrito. Certamente você deve ter apontado outros riscando ou
grifando.

✽✽✽
O que eu ganho por rezar?

Para aqueles que entendem que uma das funções da


oração é reverenciar o Deus que nos criou e nos mantém vivos,
louvando-O e adorando-O, a pergunta pode parecer absurda.

Mas, é preciso lembrar que vivemos num tempo


extremamente utilitarista, onde a relação custo-benefício é
constantemente analisada. E, mesmo nas coisas espirituais,
podemos observar uma avareza intrínseca que provoca uma
desconfiança sobre o que se ganha fazendo ou deixando de fazer
isso ou aquilo.

Dentro desta lógica, o prêmio ou pagamento mais óbvio pela


minha oração, seria Deus me conceder exatamente a realização
daquilo que eu havia pedido, rezando. Que outro prêmio eu poderia
desejar ou poderia haver?

No entanto, a prática deste tipo de oração, interesseira e


utilitarista, nos diz que nem sempre recebemos o que pedimos. Por
que? Deus não é bom?

Em primeiro lugar, Santo Tomás de Aquino nos lembra que a


oração feita sem a graça santificante, assim como qualquer ato
de virtude, não merece prêmio algum. Traduzindo em outras
palavras: se não se está em estado de graça, isto é, livre dos
pecados mortais, perde-se a comunhão com Deus e, portanto, o
pecado atrapalha o mérito que se teria, rezando.

Segundo o doutor da Igreja, “devemos dizer que,


absolutamente falando, qualquer ato de caridade merece a vida
eterna. Mas o pecado sobreveniente impede o mérito precedente de
produzir o seu efeito.” Na prática da oração e, sendo bem realista,
se não estamos em estado de graça, não merecemos o que
pedimos. Deus pode conceder o que pedimos (e às vezes o faz) por
pura bondade, por misericórdia ou porque o pedido está de acordo
com sua divina providência, mas não porque quem pediu, está apto
a merecer.

Esclarecendo que, quando tratamos de “merecer” ou “mérito”,


estamos dizendo “direito a receber um prêmio por executar uma
obra.” Neste sentido, que é o que tratamos aqui, dizemos que o
trabalhador “merece” o seu salário.

Usando esta metáfora, podemos dizer que aquele que reza


estando em pecado mortal, é um trabalhador que executa o serviço
sem estar registrado ou, melhor ainda, que pediu demissão já há
algum tempo. Como receber o salário depois, se não for por pura
bondade do “patrão”? Obrigação de pagamento, nesse caso, não
existe!

Não se assuste, em um capítulo próprio examinaremos como


e quando Deus escuta a oração do pecador! No momento,
pensemos somente naqueles que rezam estando em estado de
graça santificante.

Nesta condição, fatalmente levanta-se outra questão: se


realizei uma confissão completa e, portanto, posso presumir que
estou em estado de graça, por que Deus não realiza o meu pedido?
Não teve mérito?

Santo Agostinho responde a essa pergunta dizendo que: “Ao


se pedir fielmente a Deus pelas necessidades da vida, por
misericórdia às vezes ele atende, às vezes não; o que seja bom
para o doente mais sabe o médico do que o próprio doente”.

Traduzindo em linguagem teológica: o principal prêmio, ou


mérito, da oração, é a bem-aventurança ou salvação eterna. Este
deve ser nosso principal pedido ao rezar. Se não pedimos isso, ou
pedimos outras coisas além disso, só recebemos o que pedimos se
isso for útil para a bem-aventurança eterna.
Se o que pedimos é útil ou não para a nossa salvação, na
maioria das vezes, não temos as mínimas condições de atestar. Por
isso Santo Agostinho diz que só quem sabe o que é melhor para o
doente é o próprio médico.

Santo Tomás ensina que, quem pede pela sua salvação,


merece, ou seja, tem mérito, pela própria oração que faz, pois
pede o que deve ser pedido. Além disso, ainda tem mérito
também por realizar uma boa obra. Para o Santo, não há dúvida
de que se vai receber a bem-aventurança que se pede, mas, claro,
somente quando for oportuno receber. Existe um tempo para cada
coisa...

Por outro lado, se pedimos algo que não é útil para a nossa
salvação, nunca merecemos aquilo que pedimos, mesmo que
obtenhamos a salvação ou a bem-aventurança eterna. Repetimos
os gestos de crianças mimadas que se jogam no chão querendo ter
a vontade satisfeita.

O Pai não nos abandona, toma pela mão e conduz para o


lugar correto, mas não existe aí mérito algum do mimadinho que
somos nós mesmos.

Pode-se perguntar, no entanto, como fazer uma oração que


será sempre atendida? É possível? Sim! Existem quatro condições
que precisam ocorrer simultaneamente para que sempre se receba
o que se pediu em oração, estando em estado de graça:

1. Pedir para si mesmo;


2. Pedir coisas necessárias para a salvação;
3. Pedir piedosamente;
4. Pedir perseverantemente.

Sobre o segundo ponto, acabamos de tratar mais acima... A


respeito do primeiro, pode-se dizer que, se realizamos a ação de
rezar, temos mérito, pois realizamos a obra de recorrer a Deus pela
nossa salvação.

Só que este é um mérito que será sempre indireto, ou seja,


não sou eu que consigo a salvação porque rezei. Rezando, eu apelo
a Jesus Cristo que, por seus méritos (ele sim, trabalhou por isso) me
concede a salvação.

O mérito de Jesus é, por isso, chamado de “condigno”: por


sua paixão, morte e ressurreição ele adquiriu o prêmio da salvação
da humanidade. Este outro mérito que temos quando pedimos pela
nossa salvação é chamado de “côngruo”, ou seja, é um prêmio dado
porque Deus quis compartilhar gratuitamente, não porque
realizamos uma obra à altura deste merecimento.

É a mesma diferença entre pagar o salário combinado ao


trabalhador que executa seu contrato (condigno) ou acrescentar
uma soma a mais por pura liberalidade ou pagar um serviço que
nem foi executado devidamente porque decidimos assim fazê-lo
(côngruo).

Voltando à oração pelos outros, se o prêmio que obtemos por


rezarmos pela nossa salvação é um mérito de côngruo (só Jesus
tem real direito a ele, só Jesus tem mérito de salvação condigno), é
impossível eu transferi-lo para o meu irmão. Não posso merecer
para outro o que nem para mim mesmo posso merecer.

Claro, Deus pode até realizar aquilo que, rezando, eu peço


para meu irmão, mas não é porque ele “merece” ou eu “mereci”.

Afinal, este irmão por si mesmo não tem mérito nem de


condigno nem de côngruo, pois não realizou obra alguma e nem
está pedindo para participar dos merecimentos de Cristo. Só que,
não se confunda, veremos num próximo capítulo que devemos rezar
pelos outros, sim! Veremos também os motivos disso. Agora
tratamos somente da oração que sempre será atendida e suas
quatro condições que, lembremos, devem ocorrer simultaneamente.
Em terceiro lugar, e junto com as demais, devemos rezar
piedosamente. Isso quer dizer: com reverência, louvor, gratidão,
delicadeza, atenção e tudo mais que se pode dizer do que é
devotamente bem feito a Deus.

Como diz Santa Teresa de Jesus, nem se pode considerar


oração se você não toma verdadeira consciência de com quem você
está falando, da imensa diferença existente entre Ele e você, bem
como se não se presta atenção como se fala.

Por exemplo, não é orar piamente e, além disso, perde-se o


mérito da oração para Deus, se pedimos em oração o cumprimento
de algum pecado. Parece absurdo, mas infelizmente muita gente
não se dá conta do que está fazendo quando pede em oração a
morte de alguém, o prejuízo do próximo, ou a realização de algo
ilícito ou imoral.

Por último, para ser eficaz, a oração precisa ser


perseverante. Na maioria das vezes, não se recebe porque não se
persevera. São Basílio Magno, lista esta razão entre outras quando
diz para o cristão que “às vezes não recebes o que pedes na oração
porque pedistes mal ou sem piedade, ou levianamente, ou o que a ti
não convém, ou não perseveraste”.

A perseverança na oração vem corrigir nossa própria


inconstância, dando-nos firmeza para prosseguir. Também ajuda a
corrigir a distração, que nos faz se preocupar com muitas coisas ao
mesmo tempo, às vezes, até mesmo desnecessárias.

Como vimos no capítulo “Alinhar-se com a vontade de


Deus”, a perseverança na oração, segundo Santo Afonso de
Ligório, além de corrigir a própria condição transitória deste mundo
que nos faz perder o foco, mantém-nos livres dos perigos da
tentação e de nossa própria inconstância de ideias.

Aos poucos vamos nos aprofundando sobre o que é a


oração. Já vimos que é necessário rezar e que existe mérito nessa
ação, veremos ainda, no próximo capítulo, mais um pouco sobre a
importância de manter essa comunicação constante com Deus.

✽✽✽
Preciso mesmo rezar?

Repare que, em qualquer situação, quando existe certeza e


segurança da resposta, a pergunta sempre é respondida
prontamente e com convicção. Não é necessário pensar muito sobre
aquilo que, para nós, é óbvio ou essencial.

Igualmente, ninguém precisa recordar que se faça aquilo que


consideramos primordial que seja feito. Digamos que está sempre
sob os nossos olhos a necessidade que consideramos
imprescindível ou prioritária.

Sendo a oração o nosso assunto, você tem precisão e


certeza ao responder o porquê é preciso rezar? Não procuramos
aqui a resposta “certa” ou a dos livros, mas aquela que te motiva a
entender que, se precisa, tem que fazer. Se precisa, não esquece
nunca de fazer.

Finalmente, se entende que precisa mesmo, rezar faz parte


de sua vida tanto quanto comer, dormir ou respirar.

Se a sua resposta não é tão forte a ponto de sair do intelecto


e mover o coração para a ação, busquemos orientações da palavra
de Deus e dos santos para adquirir a certeza de fé de que rezar é
necessário e, assim, provocar uma renovação de vida.

A resposta mais simples sobre a necessidade de se rezar é:


Jesus nos orienta a isso! Sendo Deus, lembre-se que não é possível
pensar que foi uma observação meramente casual.

É uma orientação que deve ser seguida, um conselho ou,


pode-se até dizer, um mandamento: “Vigiai e orai para não cairdes
em tentação; pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mt
26,41). Em outros momentos (Lc 18,1), Ele contou parábolas para
mostrar a importância de se rezar e perseverar na oração.

Como vimos anteriormente, a oração nos aproxima de Deus.


A partir deste “chegar mais perto”, entramos em diálogo para pedir o
que nos convém, ou, como tão bem sintetizou Santo Agostinho:
“Deus não nos aconselhou pedir se não quisesse dar”.

Essa aproximação, através da oração em estado de graça,


alimenta a nossa alma com toda sorte de bens espirituais fazendo
com ela fique cada vez mais saudável, cada vez mais cristificada,
cada vez mais dócil ao Espírito Santo.

Pois, assim como a alma dá vida ao corpo, a oração é quem


dá vida à alma. São João Crisóstomo lembra que, “assim como o
corpo não pode viver sem a alma, assim a alma sem a oração está
morta e exala mau cheiro”. Ele diz que exala mal cheiro, porque
aquele que não reza, logo começa a se corromper pelos vícios e
pecados.

Quando Jesus nos orienta a rezar, é com a própria vida da


alma que Ele está preocupado. Aquele que não reza busca sua vida
onde ela não está, por isso não a encontrará.

Como em Jeremias (2,13), Deus pode dizer que o que não


reza “abandonou-me a mim, fonte de água viva, e para si preferiu
cavar cisternas, cisternas defeituosas que não retêm a água”.

A oração é, portanto, fundamento de vida, base de


salvação. Santo Tomás de Aquino ensina que, como a alma é
superior a tudo que é material ou corpóreo, inclusive superior a
todas as obras exteriores de serviço à Deus, a oração está acima de
qualquer outra ação que possa ser realizada, pois “rezando o
homem entrega a sua alma a Deus, submetendo-a por reverência a
Ele”.

Ou seja, através da oração, finalmente reconhecemos


concretamente que Deus é Deus e, de verdade, submetemo-nos a
Ele.

Essa submissão, longe de nos diminuir, deveria ser fonte


de intensa alegria. Deus nos ama mais que nós mesmos e tem
o poder e o desejo de fazer o que for melhor para nós. É o que
nos diz Santo Afonso de Ligório quando exorta para que “estejamos
certos que, querendo o que Deus quer, estamos querendo o nosso
maior bem”.

Ao rezar, e rezando com perseverança, temos o auxílio de


Deus para conseguirmos praticar as virtudes e vencer as tentações
pois, segundo o mesmo Doutor da Igreja, “para observar
inteiramente todos os preceitos divinos, não bastam as luzes
recebidas anteriormente, nem as meditações e os propósitos que
fizemos”, mas é a oração diária que nos concede, por parte de
Deus, as forças necessárias para cumprir o que queremos e
devemos fazer.

Veja que já se introduziu a outra necessidade da oração:


vencer as tentações. A oração é, portanto, uma poderosa arma
espiritual. Segundo Santo Tomás, “depois do batismo, a oração
contínua é necessária ao homem para poder entrar no céu. Embora
sejam perdoados os pecados pelo batismo, sempre ainda ficam os
estímulos ao pecado, que nos combate interiormente, o mundo e os
demônios que nos combatem externamente”.

Somente rezando, pode-se resistir. Isso é tão importante que


São Gelásio atribuía a queda dos anjos, que se tornaram demônios,
à falta de oração. Mesmo sendo criados em estado de graça, não
perseveraram e, segundo o santo, “receberam em vão a graça
divina… e porque não rezaram… caíram”.

Disto podemos entender que, só é possível resistir às


tentações, rezando. E, como já vimos, Deus condicionou certas
realizações da providência à oração. A oração é condição
necessária e imprescindível para se resistir às tentações. Em
linguagem popular pode-se dizer que, ou se reza, ou fatalmente se
cairá em pecado.
Santo Afonso explica que “as luzes recebidas, as
considerações e os bons propósitos que fazemos, servem para que
rezemos nas ocasiões iminentes de desobedecer à lei divina e,
assim, possamos obter o socorro divino, que nos conservará
incólumes do pecado.” Repito: servem para que rezemos…

Deste modo, é possível vencer as tentações, desde que


perseveremos no caminho da oração pois, como diz Santo Tomás,
“o que é possível com o auxílio divino, não se pode dizer
simplesmente que é impossível”.

São João Crisóstomo vai mais longe e afirma que somos


culpados e merecemos castigo se não usamos da oração para nos
manter íntegros: “Não poderá ser desculpado aquele que não quis
vencer o inimigo, abandonando a oração”.

Inversamente, e muito coerentemente, o mesmo santo afirma


que “Deus nunca nega os benefícios a quem ora, ele que nos
provoca pela sua piedade a que não deixemos de orar”.

Listamos, portanto, vários motivos pelos quais devemos


necessariamente rezar e rezar diariamente:

- É uma orientação do Cristo para a saúde e salvação da


nossa alma;

- É o mais alto ato de religião que podemos praticar, muito


acima de quaisquer obras exteriores;

- Coloca-nos voluntariamente sob o cuidado e a providência


de Deus, escutando-o e vivendo sob sua vontade, que é melhor do
que nossas próprias decisões e vontades;

- É o único meio de mantermos nossas promessas e


propósitos válidos e realizáveis;

- É a arma espiritual que, se não nos mantém livre das


tentações, certamente nos impede de cair em pecado.
No próximo capítulo, examinaremos como os santos doutores
nos ensinam a fazer a oração bem feita e completa!

✽✽✽
As partes que compõem a oração

Vimos, no capítulo anterior, que rezar é uma necessidade


para a alma tão grande quanto é necessário para o corpo respirar
ou se alimentar.

Engana-se tremendamente quem acredita que pode se


manter espiritualmente saudável e perseverante na fé sem se
dedicar à oração, tanto como uma pessoa que tem uma doença
silenciosa em evolução acredita que goza de perfeita saúde.

Como é a alma que contém o corpo, e como, além disso, a


alma sobrevive sem o corpo, não o contrário, Santo Tomás dizia que
“bem sabe viver, aquele que sabe rezar bem”.

E, se já vimos no capítulo “O que eu ganho por rezar?”


quais são as quatro condições para que a oração seja sempre
atendida por Deus, cabe aqui outras perguntas: quais as partes que
devem compor minhas orações? Existe um roteiro para uma oração
completa?

Antes de responder a essas perguntas, é preciso deixar claro


que não se trata de buscar moldes para se engessar a oração. Nem
tampouco motivos para se penitenciar por não haver feito uma
oração “perfeita”, muito menos se ensoberbecer por “ter feito tudo
certinho”.

O objetivo destas reflexões sobre a oração é que,


aprofundando o verdadeiro sentido do que é rezar, do como rezar e
buscando compreender os que os santos e doutores orientaram
sobre o assunto, possamos crescer em intimidade com Deus (o
grande sentido da oração) e nos entregar cada vez melhor a essa
obra que, como vimos, é a maior e a melhor que podemos realizar
para (e com) Deus.
O monge João Cassiano, ao entrevistar os padres do
deserto, no século V, em busca de orientações espirituais, ouviu da
boca do Abade Isaac que “As orações modificam-se a todo instante,
segundo o grau de pureza a que cada alma ascende e segundo a
natureza da disposição em que cada uma se encontra.

(...) Por isso, é absolutamente certo que a ninguém é possível


fazer sempre orações uniformes: rezamos de um modo, quando
estamos alegres; de outro, quando somos oprimidos pelo peso da
tristeza ou do desespero; de outro, quando nos sentimos fortes com
os êxitos espirituais; de outro, quando estamos deprimidos pela
violência das tentações; de outro, quando pedimos o perdão dos
pecados; de outro quando pedimos a aquisição de uma graça ou de
alguma virtude ou mesmo a extinção de qualquer vício; de outro,
(…)”

E segue mostrando às múltiplas situações que afetam a


nossa oração.

Mas, é claro, mesmo algo tão vivo quanto a oração, pode ser
estudado e pedagogicamente descrito. Foi isso que fez Santo
Tomás de Aquino em dois momentos.

Primeiro, determinando que, para o ato de rezar, são


necessários três requisitos:

1. Que aquele que reza se aproxime de Deus!


A oração é um ato de intimidade como vimos no capítulo
“Afinal, o que é a oração”. Mais para a frente, nos próximos
capítulos, discutiremos a qualidade desta aproximação: Deus
me ouve se estou distraído? Se estou em pecado? Isso porque
existem maneiras e maneiras de se aproximar de alguém e de
ser digno, ou não, de estar em sua presença.
2. Que se faça um pedido! E, embora ainda não
tratemos aqui de qual o melhor pedido para se fazer quando se
reza, é interessante notar que Santo Tomás se preocupa em
nomear especificamente cada tipo de pedido. Assim, se peço
algo determinado, sabendo exatamente o que quero, esse
pedido é uma postulação. Se não é determinado, mas um
pedido de ajuda ou socorro a Deus em geral, é uma súplica, e,
finalmente, chama-se insinuação quando procuro narrar algo
que provoque ou ocasione uma reação por parte de Deus. Para
se entender a insinuação, o melhor exemplo, é a mensagem
que Cristo recebe sobre seu amigo Lázaro de Betânia: “Senhor,
aquele que tu amas está doente” (Jo 11,3).

3. Que se dê razões para o pedido! Essas


razões, segundo Santo Tomás, muito além das justificativas que
conhecemos para o que pedimos, tem duas formas essenciais:
Da parte de Deus, ou, melhor dizendo, qual a razão para pedir
a Deus? E a razão só pode ser sua santidade e sua
misericórdia sem limites, retratados em trechos primorosos da
Bíblia como: “Senhor, a quem iríamos nós? Só tu tens palavras
de vida eterna. E nós cremos e sabemos que tu és o Santo de
Deus” (Jo 6,68-69). A razão da parte do ser humano é a ação
de graças pela qual reconhecemos que tudo está sob a tutela e
providência de Deus. Em outras palavras, a razão por que rezo
é porque sei que serei ouvido e minha alma se rejubila com
isso.

Em um segundo momento Santo Tomás trata das partes


internas da oração e, para isso, recorre à autoridade de São Paulo
Apóstolo que diz a Timóteo: “Recomendo-te, pois, antes de tudo,
que se façam obsecrações, promessas, súplicas e ações de graças”
(1Tm 2,1).

Assim como os padres do deserto, nas conferências de João


Cassiano, e Santo Agostinho, o doutor angélico também entende
que São Paulo nomeia quatro partes distintas na oração:
obsecrações, promessas, súplicas e ações de graças! Não se
trata de redundância de palavras, mas de ações distintas e
complementares.

Faço uma ressalva: uma consulta a diversas traduções da


Bíblia, resulta em alguns nomes similares para os três primeiros
como súplicas, orações e intercessões. Por isso iremos utilizar as
palavras em paralelo para não perder as proposições originais do
Abade Isaac (através de João Cassiano) e de Santo Tomás de
Aquino.

A primeira parte da oração deveria ser dedicada à


obsecração ou súplica. Obsecrar é implorar a Deus, ou fazer uma
petição de socorro, pelos pecados cometidos, quer passados, quer
presentes.

Como vimos acima, a súplica tem essa mesma conotação de


pedido de socorro, mas sendo genérica, não reflete bem o que é
esse implorar perdão a Deus pelos pecados cometidos que a
palavra obsecração traz tão claramente.

Segundo o apóstolo, os santos padres e o doutor da Igreja,


deveríamos começar nossa oração pedindo a Deus misericórdia
porque somos pecadores.

A segunda parte será uma promessa ou oração como


trazem algumas traduções. Promessa porque, logo depois de
reconhecermo-nos pecadores, precisamos prometer abandonar o
pecado e fazer um voto de servir a Deus.

Prometer abandonar tudo que, no mundo, nos afasta de Deus


e nos impede de viver em sua intimidade e avançar nas virtudes.
Neste sentido é que o Salmo (115,14) diz: “Cumprirei os meus votos
ao Senhor” e Eclesiastes (5,3) recomenda: “Quando fizeres um voto
a Deus, cumpre-o sem demora!”.

Neste caso, Santo Tomás lembra que podemos chamar de


oração tanto as quatro partes juntas quanto somente esta parte. No
caso deste trecho, oração seria somente a elevação da mente a
Deus.

Considero, no entanto, a tradução dos santos padres por


promessa mais completa para um entendimento integral e exclui a
duplicidade do termo oração.

A terceira parte, súplicas ou intercessões, é o momento


onde pedimos também pelos outros. Mais a frente, o próprio São
Paulo irá reforçar isso orientando que a oração seja “por todos os
homens, pelos reis e por todos os constituídos de autoridade” (1Tim
2,1b-2).

Esse é um detalhe importante, frequentemente


negligenciado: somos um corpo, não somos sozinhos. Estamos
unidos à Cristo e aos irmãos, somos Igreja. Quanto mais nos
santificamos, mais a Igreja se santifica. Também quanto mais a
Igreja se santifica, maiores são as graças sobre nós.

Os santos reforçaram isso com argumentos bem simples


sobre a oração dominical: não rezamos Pai meu, mas Pai Nosso!
Pedimos o pão nosso, que não nos deixe cair em tentação.

Por isso as duas traduções se complementam: é, sim,


súplica, mas é também intercessão, pois não é somente por quem
reza que se suplica, é por todo o corpo místico da Igreja.

Finalizando a oração, em sua quarta parte, temos as ações


de graças! É preciso agradecer a Deus todos os dons recebidos
quando rezamos. Reconhecer os benefícios atuais e passados,
agradecer pelas promessas futuras com alegria e dilatação do
coração.

Segundo Santo Tomás, citando a oração de coleta na liturgia


da missa, “damos graças aos benefícios recebidos, porque ‘dando
graças pelos benefícios recebidos, merecemos receber ainda
maiores’”.
Essas quatro partes da oração são retomadas em outro texto
do próprio São Paulo (Fl 4,6) onde ele diz: “Mas em toda a
promessa e obsecração apresentai a Deus os vossos pedidos com
ação de graças” ou, na mesma passagem, em outra tradução:
“Apresentai a Deus os vossos pedidos, em orações e súplicas,
acompanhadas de ação de graças”.

Enriquece também a nossa compreensão da vida espiritual a


observação do Abade Isaac a João Cassiano: essa trajetória das
quatro partes da oração também acaba representando fielmente as
fases do crescimento espiritual.

A perspicácia do padre do deserto vê que os principiantes


passam a maior parte do tempo em sua oração implorando a Deus
para vencer seus pecados. Os espinhos das tentações e os vícios,
ou suas lembranças, estão por demais presentes em sua vida.

Aqueles que já avançaram um pouco na vida espiritual, já


começaram a desenvolver as virtudes com solidez e começam a
progredir. Esses, naturalmente, acabam se detendo mais na
segunda parte da oração: a promessa, ou votos, ou a busca das
virtudes.

Os que já estão avançados, são aqueles que não mais são


atormentados pelos pecados no presente e, por isso, relembram
brevemente os do passado, já tem virtudes sólidas e, deste modo, já
cumprem os que se propõe e respeitam os votos que fizeram e,
assim, tem determinação para pedir também pelos outros, detendo-
se mais na terceira parte da oração.

Por último, os que já têm o coração apaziguado e purificado


pela contemplação de Deus, enxergam claramente os benefícios
constantemente recebidos e, assim, vivem em ação de graças,
passando por todas as partes da oração num ato contínuo de
agradecimento.

Sintetizando, poderíamos dizer que uma oração completa,


segundo São Paulo e Santo Tomás de Aquino, seria aquela que,
consciente de nossos pecados, desejando vencê-los e fazendo
planos e promessas de mudanças a Deus, suplicamos por nós e
pelos outros enquanto já agradecemos os benefícios recebidos, na
certeza de que eles se multiplicarão pelas misericórdias do Senhor.

No próximo capítulo refletiremos se, como vimos que a


oração é um ato de intimidade com o próprio Deus, é realmente
adequado rezar também para os santos, colocando um
“intermediário” no processo?

✽✽✽
A intercessão dos santos

Se apelarmos para o bom senso dos fiéis, assim como se


consultarmos qualquer catecismo básico ou, até mesmo, se
tivermos sido criados num ambiente familiar católico, entendemos
claramente que é lícito e desejável pedir a intercessão dos santos.

No entanto, como fizemos até aqui, tão importante quanto


saber a resposta correta é entender o por quê ela é correta e quais
são as dúvidas próprias que surgem quando a questão é levantada.

Assim, se nos basearmos somente pelo que vimos até agora,


a oração deveria ser feita somente para Deus pois, antes de mais
nada, é aproximação com Ele. Se devemos nos aproximar dEle,
nada mais lógico do que se dirigir ao nosso objetivo sem desvios.

Mas, nem tão lógico assim… Simplesmente porque os santos


são intercessores que nos ajudam a nos aproximar de Deus.

Do mesmo modo que nossos amigos e conhecidos podem


nos indicar para realizar um trabalho, podem atestar nosso caráter
numa situação difícil, podem servir de ponte para soluções que não
estão ao nosso alcance, os santos, por já terem adquirido o prêmio
da bem-aventurança eterna, estão numa situação privilegiada junto
a Deus para nos ajudar.

É importante entender, além disso, que os santos no céu não


rezam mais por si próprios, mas podem constantemente pedir por
nós, que também fazemos parte do corpo místico de Cristo, para
que alcancemos a bem-aventurança final que eles já possuem.

Eles rezam para que os homens de boa vontade se salvem e,


deste modo, concretize-se a obra de Deus no mundo, do modo que
Deus quer e dispõe por sua providência e que, como vimos nos
capítulos anteriores, só se cumprirá através da oração.

Eles também já possuem uma união com o Verbo Divino que,


nós que ainda estamos neste mundo ainda não temos ou mesmo
aqueles que se encontram no purgatório, ainda não têm.

E se ainda podemos rezar uns pelos outros, isso não


acontece com aqueles que padecem no purgatório.

Isso porque os homens e mulheres que estão nessa


condição, se por um lado são superiores a nós porque não pecam
mais, por outro lado, são inferiores justamente por causa da pena,
ou justa purificação, que sofrem.

Nesse caso, não podem orar por nós, somos nós que
precisamos rezar por eles para que logo cessem seus padecimentos
e, justificados e santos, também passem a interceder por nós.

Deste modo, podemos dizer de um modo geral que é correto


pedir de dois modos: pedindo para que a pessoa conceda por ela
mesmo o que pedimos ou para que essa pessoa consiga de um
outro o que necessitamos.

Se esse pedido é feito através da oração, somente a Deus


devemos pedir diretamente graça e glória, dons que só Ele pode
nos dar, como está revelado no Salmo (84,12).

Mas, podemos rezar pedindo muitas outras coisas, utilizando-


se da intercessão da Virgem Maria, dos anjos e santos.

Esse pedido, através de “outros”, não é porque Deus não


pode conhecer o nosso pedido se não for feito por meio deles, mas
para que, pelos seus méritos conquistados enquanto viviam, nossas
orações sejam ainda mais eficazes.

Afinal, as próprias escrituras dizem que as orações dos


santos sobem a Deus como um verdadeiro perfume de incenso (Ap
8, 3b-4).

Seguindo essa verdade, a Igreja reza unida para que Deus


nos conceda Sua misericórdia, e para que os anjos e santos
intercedam constantemente por nós.

Ou, como bem nos exorta a própria palavra de Deus através


do livro de Jó: “a qual dos santos te voltarás?” (Jó 5,1b).

De maneira idêntica a Tradição da Igreja, através de São


Jerônimo, recorda que: “Se os apóstolos e mártires, ainda no corpo,
podiam orar pelos outros, quando ainda deviam preocupar-se por
eles mesmos, quanto mais o poderão após coroados, vitoriosos e
triunfantes!”

Assim, é claro que podemos (e devemos) pedir a intercessão


dos santos.

Mas, diante do exposto de que nossos pedidos são


reforçados pelos próprios méritos dos santos, pode surgir a seguinte
dúvida: Devo pedir a oração somente daqueles que considero mais
santos? Devo me concentrar naqueles que são reconhecidos por
serem apóstolos, ou papas, ou doutores da Igreja?

Num primeiro momento, poderíamos pensar que sim porque


é fato que quanto mais perfeita é a caridade do santo no céu, mais
ele reza pelos que estão na terra que podem ser auxiliados pela
oração. Quanto maior sua caridade, mais unido a Deus ele está e,
por consequência, mais será ouvida sua oração.

Só que a resposta é: não! Parte da beleza da criação e da


providência de Deus é que ela é ordenada, de maneira que os
inferiores participem em graça e em sabedoria do que vivem os
superiores.

Isso porque a ordenação divina está estabelecida para que


os superiores iluminem os inferiores como demonstra a Carta de
São Paulo ao se referir ao primeiro de todos, o Cristo (Hb 7,25).
No caso dos santos, Deus quer que os inferiores sejam
ajudados por todos os superiores, por isso é conveniente orar a
todos os santos, não importa o que achamos ou sabemos sobre sua
“posição” no céu.

E, é claro, se fosse somente uma questão de hierarquia,


voltaríamos às considerações iniciais e deveríamos fazer qualquer
pedido somente à misericórdia divina, ou seja, ao próprio Deus.

No entanto, Santo Tomás de Aquino lembra que, não é raro


acontecer que o pedido que recebe a intercessão de um santo que
seja considerado “menor”, seja mais eficaz que a oração
direcionada àquele considerado “maior”.

Isso pode acontecer pois, o santo considerado “menor” ou


“mais recente”, pode implorar a Deus com mais devoção, mais
propriedade sobre a matéria ou, até mesmo, porque Deus quer fazer
conhecida a santidade dele e seu valor como intercessor.

Assim, não percamos tempo, peçamos a Deus sua


misericórdia, a salvação que tem reservada para nós, todas as
graças necessárias para a Igreja e para aqueles que conhecemos,
sem nos esquecermos de recorrermos aos santos e sua
intercessão!

E, como rezamos no ato de contrição durante a missa:


peçamos à Virgem Maria, aos anjos e santos e também a nossos
irmãos e irmãs que intercedam por nós junto a Deus Pai que está
nos céus!

No próximo capítulo, refletiremos sobre qual seria o pedido


mais adequado a se fazer na oração.

Isso porque são inúmeros aqueles que consideram que o


momento de rezar é aquele reservado para se abrir o baú das
necessidades e chorar a Deus em busca de realizações
extraordinárias… Será? O que realmente devemos pedir a Deus
quando nos colocamos em oração?
✽✽✽
O que se deve pedir na oração?

Nos últimos capítulos sobre a oração, temos refletido


bastante sobre o que ela é, como deve ser vivida e seus benefícios.
Também analisou-se algumas dúvidas que podem aparecer, com
maior frequência ou não, sobre o ato de rezar.

Vamos agora entender que, se pedir algo a Deus é parte da


oração, qual seria o melhor pedido a se fazer? Ou, enquanto
rezamos, devemos pedir algo determinado?

É inegável que parte das nossas orações não atendidas se


devem ao fato de que, como vimos, “não sabemos o que devemos
pedir” (Rm 8,26). E a consequência disso é que pedimos e não
recebemos, simplesmente porque pedimos mal (Tg 4,3).

O apóstolo Tiago, logo em seguida, explica o que é este


pedir mal: queremos que Deus satisfaça os nossos desejos.

Enfim, rezamos para que Deus se coloque a nosso serviço e,


como um “gênio da lâmpada”, faça sempre aquilo que mandamos.

Reflita por um momento: será que os seus pedidos, por mais


justos e necessários que pareçam ou realmente sejam, não se
resumem a essa postura de que você sabe o que é o melhor a ser
feito neste caso e, portanto, Deus só precisa realizar aquilo que
você está “pedindo”?

Voltamos ao primeiro capítulo deste livro: a oração seria um


pedido motivado por nossos desejos… Não passaria de um
movimento dos nossos sentimentos. É importante, para debelar
definitivamente esses erros, recapitular algo do que já vimos para
podermos prosseguir.
A oração é um movimento do intelecto que faz o ser humano
aproximar-se de Deus, para que possa entrar em comunhão estreita
com Ele e, assim, realizar a Sua vontade.

Também para pedir coisas necessárias à salvação, que Ele já


dispôs por Sua providência, mas que depende do assentimento de
cada um.

Vimos, desta forma, que a oração não é para mudar o


pensamento de Deus, mas para entendê-Lo e nos ajudar a
realizá-Lo diariamente, cada vez mais docilmente.

Isso mantém a saúde de nossa alma, promove também a


santificação e ordenação do corpo através das virtudes, faz com que
possamos manter nossas promessas e propósitos assumidos
anteriormente e é a mais importante arma para se resistir às
tentações.

Nada disso é possível, se não se está em estado de graça.


De fato, a oração em pecado é como a palavra do filho que diz ao
pai que vai fazer a sua vontade, mas, de fato, não vai (Mt 21,30).

O pecado nos faz perder a comunhão com Deus e, nesse


ponto, é o próprio avesso da oração.

Segundo Santo Tomás de Aquino, o pecado atrapalha até


mesmo o mérito de quem se coloca em oração querendo se unir ao
criador. Ou, sendo bem claro: daquele que diz que quer, mas, pelos
atos e de fato, não quer verdadeiramente se unir a Deus.

Podemos entender então que, se o principal prêmio da


oração é a bem-aventurança eterna, ou salvação, é isso que
devemos pedir quando rezamos.

Pedir a Deus que nos una com Ele já aqui neste mundo e que
nos conceda a união eterna e indissolúvel que virá, insistentemente,
perseverantemente.
Ele mesmo, a partir disso, orientará sobre que passos
também devem ser dados pelo homem para que a vontade dEle,
que é a nossa salvação, cumpra-se.

Como vimos no capítulo anterior sobre a intercessão do


santos, pode-se e deve-se contar com a intercessão da Virgem
Maria, dos anjos e dos santos para que possamos entender e
realizar os desígnios de Deus para nossa salvação.

Afinal, como diz a própria Palavra de Deus, é vontade dEle


que todos os homens se salvem (1Tm 2,4) e, já vimos, que a
Providência Divina condicionou muitas coisas à nossa oração
particular.

Lembre-se que, após ensinar os pastorinhos a rezar, o Anjo


de Portugal lhes explica: “Os corações de Jesus e Maria estão
atentos à voz das vossas súplicas”.

E, após encontrá-los brincando, como é normal em quaisquer


crianças da idade deles, relembra que muitas coisas estavam
condicionadas à oração dos três, dizendo: “- Que fazeis? Orai. Orai
muito. Os corações de Jesus e Maria têm sobre vós desígnios de
misericórdia.”

É necessário, portanto, pedir a Deus constantemente por


nossa salvação, para que possamos ouvir a Sua voz que nos
orienta e para que tenhamos forças para levar até o fim as
promessas que já realizamos, como uma consagração, o
matrimônio ou a ordenação sacerdotal.

São pedidos bem determinados, semelhantes àqueles que o


próprio Cristo nos ensinou a fazer através da oração do Pai Nosso:
santificar o nome de Deus, fazer a Sua vontade, propagar o Seu
Reino no nosso interior e no mundo, receber as Graças necessárias
para cada dia e correspondê-las, principalmente vivendo o perdão
incondicional.
Mas, além da salvação, posso também pedir bens materiais
na oração? Esse será o tema do nosso próprio capítulo.

Até lá, lembremos que Santo Tomás de Aquino nos orienta


que nunca devemos pedir a Deus nada que possa causar o mal a
nós mesmos e a outros. Mas como saber o que vai nos causar mal?

Muitos acreditaram que a solução para seus problemas era o


dinheiro e, no entanto, a verdade é que as riquezas provocam muito
mais a perdição de muitos do que a salvação. Assim como o desejo
de ser reconhecido, valorizado, honrado, conquistando um título ou
status na sociedade.

Também muitos se perderam e se perdem através da


conquista de vantagens nos negócios, através de “promoções” no
trabalho que os fazem desprezar o espiritual e viver unicamente em
função do material, sobrecarregados pelo mundo e escravizados
pelo materialismo.

Por enquanto, fiquemos somente com aqueles bens que


nunca podem causar o mal e não tem como produzir resultados
ruins.

São aqueles que nos tornam verdadeiramente felizes e nos


fazem merecer a felicidade eterna e que, os santos, utilizando as
Sagradas Escrituras, pediam sem cessar: “Despertai vosso poder, e
vinde salvar-nos!” (Sl 79,3) e as lindas orações do Salmo 118, entre
elas: “De todo o coração eu vos procuro; não permitais que eu me
aparte dos vossos mandamentos” (Sl 118,10).

✽✽✽
Pedindo bens materiais na oração

Até aqui, temos refletido sobre os princípios básicos da


oração, buscando compreender melhor o que é rezar e como rezar.
Somente conhecendo o fundamental sobre seus princípios é que
podemos, na segunda parte deste livro, nos aprofundar nela e
verdadeiramente crescer na oração.

Para isso, utilizamos a doutrina segura da Igreja Católica, seu


magistério, seu catecismo e os santos que receberam o
reconhecimento de doutores.

Infelizmente, neste campo de estudo e prática,


frequentemente encontram-se opiniões muito “pessoais” e sem
fundamentos na doutrina, ou mal fundamentadas.

Como exemplo, um verdadeiro fundamento doutrinário que é


distorcido o tempo todo é: Deus é bom! E, utilizando essa premissa,
acaba-se concluindo que qualquer absurdo que se vive ou se pense,
Deus, em sua bondade, acolhe, perdoa e compreende.

Neste caso, um princípio verdadeiro e ontológico é


transformado em justificativa para coisas, na maioria das vezes,
injustificáveis. Ou, na melhor das intenções, duvidosas.

Assim, para ficar claro, não é verdade que Deus acolhe


qualquer tipo de oração contanto que seja sincera, feita de
coração. Alguém pode, sinceramente, desejar (e pedir em
oração) a morte de um assassino, ou estuprador, ou de um
genocida e isto nunca será agradável a Deus (Sl 5,5).

É, até mesmo, a fonte de um pecado, como lembra o


Evangelho segundo Mateus (Mt 5,22) e João em suas cartas (1Jo
3,15).
É adequado rezar pedindo bens materiais?

Se voltarmos à definição de Santo Tomás de Aquino sobre a


oração, aparentemente seria inoportuno rezar pedindo por coisas
materiais.

Parece absurdo e interesseiro elevar a mente a Deus,


aproximar-se dEle, reconhecer sua grandeza e senhorio, louvá-Lo,
para depois pedir uma casa, ou carro ou computador.

Mesmo “o sucesso de nossa colheita”, a concretização de um


negócio ou a boa realização de um trabalho parece ser algo
estranho a esta intimidade buscada com Deus.

Esse abismo se abre ainda mais quando lembramos que


Santo Tomás ensina que o principal pedido na oração deve ser à
nossa eterna salvação.

Quando se diz isso às pessoas, elas costumam ficar


chocadas. Afinal, “a salvação é algo que Deus deve dar a todos, se
ele é realmente bom! Nem precisamos pedir ou se preocupar com
isso!” Outro exemplo de como a distorção sobre a bondade de Deus
impera.

Mas, voltando ao assunto específico deste capítulo, também


no Evangelho encontramos muitos argumentos contra se rezar
pedindo coisas materiais.

Em Mateus (6,33), Jesus deixa claro que não devemos nos


preocupar com bens temporais. Eles não devem ser buscados, virão
por acréscimo, se focarmos em buscar o Reino de Deus com afinco.

Ou seja, se pedimos em oração aquilo que mais nos


preocupa (ou ocupa), e a Palavra de Deus nos ordena a não nos
preocuparmos com os bens temporais (Mt 6,25), de certa forma
parece errado pedirmos coisas materiais, pois revela imediatamente
por onde anda o nosso coração e que ele não está fixo em Deus.
Isso é ainda mais forte se nos lembrarmos que o apóstolo
Paulo exorta fortemente a não se rebaixar com as coisas terrenas,
mas manter os olhos fixos em Deus que é eterno (2Cor 4,18).

Isso se reforça quando se percebe, também à nossa volta,


quantas pessoas se perderam e se desencaminham por causa da
busca e da posse de bens materiais. Vivem como escravos do que é
temporal, passageiro, mas visível. Esquecem-se do que é invisível,
mas eterno.

Por outro lado, sob certas condições e cuidados, não é


errado rezar a Deus pedindo bens materiais. O ser humano ainda
é um ser corporal, além de espiritual, e tem necessidades materiais
também.

Afinal, quando Jesus ensina que “não só de pão vive o


homem” (Mt 4,4), ele está afirmando duas coisas ao mesmo tempo:

1. existe algo mais importante para a vida do que o pão;

2. a necessidade de “pão” é parte integrante da vida do ser


humano.

Santo Agostinho explica que é lícito pedir em oração tudo


aquilo que é lícito desejar. Isso obviamente inclui os bens materiais.
Mas não qualquer bem temporal, em qualquer quantidade, a
qualquer preço.

Por isso ele explica que “quem quer o suficiente para a vida e
nada mais, o quer de maneira não indecorosa. Eles não são
desejados por si mesmos, mas para a saúde do corpo e para
estarmos com dignidade perante aqueles com os quais convivemos.
Estando de posse desses bens, devemos pedir na oração para que
se conservem; e quando não os possuímos, para que venhamos a
possuí-los.”

Assim, sempre é adequado pedir os bens materiais se


eles não são buscados por si mesmos, nem com exagero.
Santo Agostinho explica que, os bens temporais estão em
segundo plano quanto à sua dignidade, não quanto ao tempo.

É também por lembrar disso que a Igreja se esmera em obras


de caridade. Deus é mais importante sempre, só que às vezes é
necessário cuidar primeiro da saúde, da fome, da indigência. Se não
se esquece ou se perde o objetivo final, não existe erro aí.

Santo Tomás ensina que ocupar-se (ou preocupar-se) com os


bens temporais, inclusive na oração, não é proibido. Somente não
se deve se ocupar com aqueles bens que são supérfluos ou
desordenados.

Neste caso, possuir ou desejar possuir um carro e pedir isso


também a Deus, não é um erro. A pergunta que se deve fazer é:
precisa ser uma Ferrari? Precisa ser “novo” com 727 itens de série?

E, a principal pergunta de todas: no que este carro vai


contribuir, facilitar ou ajudar a minha salvação, as práticas de virtude
na minha vida ou ser canal de graça e caridade para outros através
de mim?

Afinal, a condição principal da oração, assim como a meta de


nossa vida, não muda: precisamos pedir aquilo que é útil para a
nossa salvação. Coisas espirituais e, como estamos vendo agora,
também coisas materiais.

As materiais para que possamos viver com a dignidade que


os filhos de Deus merecem, como disse Santo Agostinho, mas
também para que nos ajudem a viver em Santidade, como lembra
Santo Tomás:

“É lícito desejar os bens temporais, não pondo neles


principalmente nosso fim, mas como deles recebendo algum auxílio
para nos dirigirmos para a bem-aventurança, enquanto por
intermédio deles é sustentada a vida do corpo e são praticados atos
de virtude.”
Isso explica onde erram aqueles que se perdem por
influência do mundo na posse dos bens materiais: buscam “as
coisas” ou bens temporais como um fim em si mesmo, para
“descansar” neles, se satisfazer com eles, usufruir do mundo e de
suas posses como o rico reprovado por Jesus no Evangelho
segundo Lucas (12,16).

Quando se vive assim, a alma realmente se rebaixa. Quando,


seguindo a orientação de Santo Tomás, procura-se os bens
materiais como auxílio para se santificar e buscar a Deus, não só
realizamos a nossa meta eterna como também conduzimos estes
mesmos bens para o alto.

Devemos procurar e pedir em oração, somente os bens


necessários para a vida e que nos sejam concedidos exatamente na
medida em que são úteis para a nossa salvação.

Ou, como diz a Palavra de Deus: “Afastai a falsidade e a


mentira, longe de mim a pobreza e a riqueza, dai-me somente o
necessário para a minha vida” (Pr 30,8).

No próximo capítulo veremos que, ao contrário do que


pareceu até agora, a oração não é uma vivência que leva ao
isolamento. É um momento intenso de comunhão com Deus e com
os irmãos.

✽✽✽
Devemos rezar uns pelos outros

Analisamos, nos capítulos anteriores, alguns pontos que são


fundamentais para entender o que é essa relação do ser humano
com Deus que chamamos de rezar.

É, antes de mais nada, um trato de intimidade ou amizade,


como se referia a ela Santa Teresa de Jesus. Com a doutora de
Ávila, na segunda parte deste livro, exploraremos essa
característica mais pessoal e íntima da oração.

Nesta primeira parte, no entanto, examinamos mesmo o que


é óbvio porque precisa ser melhor compreendido para ser melhor
vivido.

E é pensando nisso que refletimos aqui sobre porque é um


dever rezarmos uns pelos outros.

Porque também as pessoas devem sempre rezar juntos pelas


causas comuns ou quando se intercede por alguém. Sim, é um
dever, pois na carta de São Tiago existe a ordem: “Orai uns
pelos outros, para que sejamos salvos” (Tg 5, 16). Mas… por
que?

Santo Tomás de Aquino nos apresenta três motivos


principais. Primeiro porque a oração coletiva é mais facilmente
atendida.

Afinal, Jesus nos ensinou que, onde dois ou mais estiverem


reunidos, ele mesmo fará parte do grupo, sustentando-o e
intercedendo por ele (Mt 18,20).

Segundo, como vimos que a oração é também


agradecimento e louvor, para que muitos agradeçam juntos os
benefícios de Deus (2Cor 1,11).

Essa união pelo louvor e agradecimento é um reflexo, aqui na


terra, da própria vida bem-aventurada dos santos e uma
participação ativa na “comunhão dos santos” que compõe toda a
Igreja.

Finalmente, e esta é uma razão pedagógica, para que


aqueles que vivem uma vida mais virtuosa, buscando ativamente a
santidade, não sejam acometidos pela soberba e se considerem
auto suficientes.

Ou seja, precisamos entender que mesmo a oração dos


“menos virtuosos” é agradável a Deus e atua ativamente dentro do
corpo místico de Cristo, que é a própria Igreja, promovendo o bem
coletivo a todos.

Vários outros santos valorizaram e explicaram a necessidade


da união na oração, São Cipriano ensinava sobre a oração do “Pai
Nosso” que “não dizemos na oração dominical: Pai meu, mas Pai
nosso; nem: me dai, mas nos dai; porque o Mestre da Unidade não
quis que se fizessem orações particulares de modo a um orar só
para si. Quis que um orasse por todos, como Ele a nós todos
conduziu à unidade”.

No entanto, devemos lembrar que vimos no capítulo “O que


eu ganho por rezar?” que o primeiro requisito para que a oração
seja atendida é que devemos rezar por nós mesmos.

Santo Tomás explica porque a oração para outras pessoas às


vezes não são atendidas mas, reforça que, mesmo quando a nossa
oração não é benéfica para quem rezamos, reverte em benefícios
para nós:

“Às vezes acontece que a oração feita para o outro seja


ineficaz, embora seja piedosa, perseverante e relativa à salvação,
devido ao impedimento da parte daquele por quem oramos.
Jeremias ouviu do Senhor: ‘Se estivessem Moisés e Samuel
perante a mim, não inclinarei meu coração para este povo’ (Jer
15,1). Todavia a oração será meritória para quem ora, se o faz por
caridade, segundo diz o salmista: ‘A minha oração voltará ao meu
peito’ Sl 34,13.

A Glosa assim explica: ‘Embora não lhes tenha sido


proveitosa, eu não perdi o merecimento’” Santo Tomás de Aquino
(Suma Teológica II-II, Q83, A7).

Por último, uma questão que já toca o tema que


examinaremos no próximo capítulo: se as pessoas boas rezam por
si mesmas e tem suas próprias orações atendidas por Deus, e
aqueles que não vivem segundo a fé em Deus nem rezam e nem
estão abertos à Graça, por que deveríamos rezar por eles?

Afinal, poderíamos adotar como exemplo a palavra de Deus


dirigida a Isaías: "Quanto a ti, não intercedas por esse povo. Não
ergas em favor dele queixas ou súplicas e não insistas junto de mim,
porque não te escutarei" (Jer 7, 16).

A verdade é que temos obrigação de rezar pelos


pecadores para que se convertam. Pois, do mesmo modo que
fomos trazidos para a salvação quando ainda não merecíamos
(Rm 5,8), temos o dever de também pedi-la para nossos irmãos.

Já, pelos justos, aqueles que já percorrem um caminho de


santidade, devemos rezar para que perseverem e progridam
porque, como ensina Santo Agostinho “Deus dá algumas graças,
como o começo da fé, mesmo aos que não a pedem; outras, como a
perseverança, reservou somente para os que pedem.”

Peçamos por aqueles que se esquecem de pedir! Como


estão em estado de graça, com certeza receberão!

Obviamente, Santo Tomás nos lembra que, como não


sabemos quem é justo e quem é pecador, quem se salvará ou quem
não se salvará, não devemos negar a ninguém as nossas orações.
Devemos pedir a conversão, a perseverança e a progressão a
todos.

Se, como vimos no capítulo anterior, é correto pedir na


oração o que é correto desejar, devemos pedir e desejar o bem não
só para nós, mas também para os outros. Isso faz parte daquele
amor que devemos ter pelo próximo.

Cumprimos, assim, os dois primeiros mandamentos


sintetizados por Jesus: amamos a Deus sobre todas as coisas nos
unindo a Ele pela oração e amamos ao próximo como Jesus o ama:
intercedendo por sua salvação, sua perseverança e progressão na
santidade.

Isso é maravilhosamente sintetizado por São João


Crisóstomo quando lembra que “Orar para si, a necessidade obriga;
para os outros exorta-nos a caridade. É mais agradável a Deus a
oração, não motivada pela necessidade, mas recomendada pela
caridade fraterna”.

No próximo capítulo, examinaremos uma difícil questão: se


devo rezar por todos, sou obrigado também a rezar por aqueles que
eu sei que me odeiam?

✽✽✽
Amai os vossos inimigos

Acabamos de ver que é um dever rezarmos uns pelos


outros. Esse dever não possui exceções, pois contempla tanto os
pecadores quanto os santos: rezamos para que uns se convertam e
para que os outros progridam sem cessar no amor a Deus.

Dito isso, Santo Tomás de Aquino nos lembra que “é


necessário que nas nossas orações coletivas, que fazemos pelos
outros, não estejam excluídos os inimigos.”

Sim, o preceito emitido por Jesus em Mt 5, 44: “Orai pelos


que vos perseguem e vos caluniam”, continua válido e necessário.

Afinal, como Ele mesmo nos lembra (Lc 6,32-34), se fizermos


o bem somente para aqueles que amamos e que nos amam, que
merecimento teríamos? Até os pecadores e os malvados tratam
bem aqueles a quem amam.

Mas, antes de prosseguir com a necessidade da oração pelos


inimigos e por aqueles que não nos amam (ou chegam até mesmo a
nos odiar), precisamos entender um pouco sobre a dificuldade que
temos em controlar a nossa raiva.

Esta paixão da alma, também chamada de cólera, é a grande


criadora do ódio e do rancor em nós e foi bem estudada por um
monge do século IV chamado Evágrio Pôncio, ou Pôntico, ou do
Ponto, porque nasceu na antiga região “do Ponto” que pertencia à
Grécia e atualmente faz parte da Turquia.

O monge Evágrio dedicou uma especial atenção às paixões


da alma ou doenças espirituais, assim como a atuação dos
demônios que promovem e instigam essas paixões em nós.
Para viver bem o preceito de rezar pelos nossos inimigos e
por todos aqueles que nos odeiam abertamente, é importante
entendermos alguns princípios explicados por Evágrio.

O primeiro ensinamento é que, embora seja impossível


amarmos a todas as pessoas igualmente, podemos aprender a
agir de modo justo com todos com quem nos relacionamos,
não alimentando em nós mesmos rancores e ódios.

Para isso, deve-se lembrar constantemente de que a raiva


nunca deve ser dirigida para o pecador, ela só é útil contra o
pecado.

Todos os seres humanos continuam a ser imagem de Deus,


mesmo que não se comportem como tal e, portanto, não existe
ninguém que não seja digno de ser amado.

Deste modo, Evágrio é categórico em dizer que “não existe


absolutamente cólera justa contra o próximo”. Se alguém busca a
oração de pura intimidade com Deus, precisa dominar a cólera e
vigiar os pensamentos que são seus brotos: a suspeita, a raiva e o
rancor.

Eles são os pensamentos que cegam o intelecto e destroem


o contato com Deus. São Paulo nos exorta a isto quando diz que
“ergamos para o Senhor as mãos puras, sem cólera nem disputas”
(1 Tim, II, 28).

Seu outro ensinamento neste campo é que nossa parte


irascível, que nos faz fortes e determinados, precisa estar ordenada
corretamente, isto é, submissa à razão.

Quando isso acontece, ela nos ajuda a sermos resilientes e


perseverantes na santidade e a combater ferozmente nossas
fragilidades e as paixões que nos levam a pecar. Também ajuda a
resistir e sermos violentos contra os demônios que nos tentam e
procuram desvirtuar.
Infelizmente, um irascível descontrolado, é o que nos faz
brigar e criar disputas com outras pessoas, criando rixas,
desavenças e comportamentos “infernais” que não condizem com
nossa própria filiação divina e nem com o mandamento do Senhor
de nos amarmos uns aos outros.

Ou seja, segundo Evágrio, a ira só é adequada e


corretamente ordenada se dirigida contra nossos verdadeiros
inimigos: os demônios.

Não contra os homens que são imagens e semelhança de


Deus e que somos obrigados a amar incondicionalmente.

É pensando nisso que ele explica que os demônios farão de


tudo para que a nossa parte irascível seja insubmissa à razão e
combata os outros homens.

Usando uma metáfora, podemos dizer que o irascível é


como um cão feroz que mora no nosso interior, ele precisa ser
ensinado a nos defender dos lobos, que são os demônios, e
nunca atacar as ovelhas, que são nossos irmãos.

Pensando nisso e entendendo que devemos ter ódio do


pecado, não do pecador, precisamos amar o nosso inimigo por
causa de sua existência, que é semelhança de Deus, e não deixar
de amá-lo por causa do erro que cometeu ou da culpa que carrega.

Mas, esteja atento pois, mesmo aqueles que dizem não ter
“inimigos”, cultivam desafetos e aversões secretas e, às vezes, nem
tão secretas assim.

É o vizinho “que não me cai bem”, o atendente da loja que é


“insuportável”, um patrão que “eu preferia que morresse”. Sejamos,
num primeiro momento, honestos com nossos sentimentos para
que, depois, possamos vencê-los com determinação.

Existe um teste bem simples para localizar em nosso interior


esses de quem não amamos ainda o suficiente: quem você não
gostaria de encontrar no céu?

Algumas pessoas chegam ao absurdo de dizer que: “- Se


fulano estiver lá, nem quero entrar…” São esses que, no nosso
interior, são tratados como inimigos, mesmo que não o façamos
socialmente perante os outros.

Devemos, então, relembrar que o maior amor que pode


existir por alguém, seja amigo ou inimigo, parente ou desafeto, é
desejar a sua salvação eterna e a sua santificação na terra.

Aqueles que rezam pela salvação dos seus desafetos


carregam um verdadeiro sinal de santidade, imitando
perfeitamente a Cristo que rezou e intercedeu por seus
assassinos.

Embora devamos desejar sua correção e sua santificação,


Santo Tomás também lembra que às vezes é lícito lutar contra os
inimigos, pois, se isso não fosse adequado, teríamos que admitir
que todas as guerras seriam sempre ilícitas, e não o são.

Neste caso, também chega a ser lícito rezar pedindo males


temporais para os inimigos para que se corrijam, mas, obviamente,
se - e somente se - o objetivo do pedido for a correção deles e não
um pedido de vingança.

Deus permite o mal para que o pecador se corrija e, pela


correção, o pecado seja destruído e o pecador redimido.

Partilho com você um exemplo concreto disso: uma religiosa


me disse, certa vez, que havia rezado para que o seu irmão, um
empresário muito bem sucedido, perdesse tudo.

A oração foi atendida e o verdadeiro objetivo alcançado:


levando uma vida insensível a Deus e voltada para o materialismo, a
completa falência fez com que repensasse seus valores e mudasse
finalmente o rumo de sua vida.
Anos mais tarde, como um “bônus”, recuperou sua condição
privilegiada de bens materiais mas, graças a Deus, já havia se
tornado um novo homem.

No próximo capítulo, veremos que a oração é tão dinâmica e


profunda que podemos rezar mesmo sem palavras. Até lá, coloque
em prática sua vida de oração e reze por aqueles que ama, que
conhece, mas também por aqueles que você ainda não ama tanto
assim.

Reze também pelos que são desconhecidos e, até por


aqueles que você sabe que acabaram desenvolvendo um ódio ou
declarando-se seus inimigos pelos erros que você cometeu ou, até
mesmo sem motivo algum.

Que possamos todos, sem exceção, um dia gozarmos juntos


da bem-aventurança celeste.

✽✽✽
Quando devo usar palavras na
oração?

Provavelmente, ao ver o título deste capítulo, você pensou:


“- Como assim? É claro que rezamos com palavras!” No entanto, a
resposta é: “nem sempre”.

Isso porque alguns santos nos alertam que os mais


profundos graus de oração, aqueles conhecidos como
contemplação infusa atuam como uma profunda união da vontade
com Deus mesmo em silêncio absoluto.

Esse começo de união, como um caminho de purificação,


deixa o entendimento completamente “no escuro” e “sem palavras”.

Por isso o autor conhecido como Pseudo-Dionísio, o


Aeropagita, chamou a contemplação de raio de treva e, São João da
Cruz a trata como noite espiritual, onde “os mergulha Nosso Senhor
em tanta escuridão que ficam sem saber por onde andar, nem como
agir pelo sentido, com a imaginação e o discurso” (Noite Escura,
livro I,VIII,3).

Na segunda parte deste livro, quando trataremos da vida de


oração a partir da prática carmelitana, examinaremos passo a passo
como se constrói essa intimidade com Deus na oração que levará
até a contemplação e a união perfeita.

Não devemos, no entanto, considerar que as orações que


utilizamos palavras, conhecida por oração vocal, seja uma forma
inferior de intimidade com Deus. Ela permanece sempre útil e, se
bem feita, cumpre eficazmente sua função.
Por exemplo, engana-se quem acredita que, como Deus
conhece o mais profundo dos corações, não devemos lhe dizer
nada ou não usar as palavras para comunicar aquilo que sobre nós
Ele já conhece.

Afinal, como vimos até aqui, a oração não serve para levar
coisas desconhecidas a Deus, mas para unir todo o nosso ser e
nossa mente ao Senhor.

Neste caso, Santo Tomás de Aquino relembra que,


principalmente aqueles que não têm uma vida espiritual
desenvolvida ainda, precisam da oração com palavras para manter
sua mente focada no que estão fazendo.

E, se por um lado, as palavras ou o discurso interior


podem nos distrair da oração, se bem ordenados ao que
estamos fazendo, isto é, à própria oração, ajudam a nos
concentrar.

Precisamos lembrar também que, em um caso específico, a


oração “com palavras” é fundamental: quando rezamos
coletivamente, como na liturgia.

Afinal, a oração feita pelos ministros ordenados e por todo o


povo, precisa ser conhecida por todos e rezada em comum acordo.
Isto só é possível vocalmente e, além disso, em voz alta.

No caso da oração privada ou particular, aquela que Jesus


recomenda que seja até mesmo oculta (Mt 6,6), e é oferecida por
uma pessoa específica, por si mesma ou pelos outros, não há
necessidade que seja vocal ou que se utilize da voz “externa” para
ser veiculada.

No entanto, Santo Tomás acrescenta dois bons motivos para


fazê-lo vocalmente.

Primeiro, como vimos, rezar com palavras e até


exteriormente ajuda na concentração e a aumentar a devoção
interior.

Santo Agostinho nos diz que “pelas palavras ou por outros


sinais, nós mesmos nos excitamos para o aumento dos santos
desejos”. Claro que, se isso acabar sendo uma fonte de distração ou
agir impedindo a devoção, deve ser imediatamente evitado.

Também deve-se prestar bastante atenção para que essa


oração por demais exterior não seja uma forma dissimulada de
exibicionismo.

Contra esse perigo nos alertou gravemente o Senhor com a


parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,9-14). E, sobre o mesmo
tema nos esclarece Santo Agostinho dizendo que “não é mau que
sejamos vistos pelos homens; mas [é mau] fazer alguma coisa com
a intenção de sermos vistos por eles.”

Por isso, São João Crisóstomo utiliza a mesma passagem


para ensinar que “o Senhor não quer que se participe da oração
coletiva com a intenção de ser visto pelos outros. Por isso, quem ora
não deve manifestar extravagâncias que os homens observam”.

Em segundo lugar, a oração com palavras emitidas


vocalmente é boa porque possibilita que o homem reze por inteiro.
Afinal, somos corpo e alma! Não somente alma, não somente corpo.

Assim, essa oração acontece como dita nos Salmos:


“alegrou-se meu coração, e a minha língua exultou” (Sl 15,9) e
“minha voz clama ao Senhor, em alta voz suplico ao Senhor” (Sl
141,2). O ser humano todo, corpo e alma, louva, agradece e glorifica
ao Senhor.

Mas, quer orando em voz alta ou no segredo do seu coração,


quer participando da oração coletiva ou particularmente, será que
Deus escuta a oração de quem reza distraído? Esse será o tema da
reflexão do nosso próximo capítulo!
✽✽✽
Deus escuta quem reza distraído?

Entre as diversas dificuldades que se sobrepõem à oração,


duas ocupam lugar central: esquecer-se de rezar e distrair-se ao
rezar.

Se a primeira pode ser resolvida com o estabelecimento de


uma rotina e seus acessórios (agenda, alarmes, avisos, um
pouquinho de força de vontade), a segunda, além de ser mais difícil
de ser erradicada, pode causar problemas mais sérios.

Afinal, Deus escuta a oração de quem reza distraído? Ou, a


oração distraída permanece sendo oração?

De imediato podemos dizer que, na oração vocal, aquela feita


com palavras como vimos no último capítulo, precisa existir uma
mínima correção em relação às palavras.

É surpreendente a quantidade de pessoas que erram as


palavras e sequências de uma oração.

Para citar um único exemplo disso, na oração conhecida


como “Salve Rainha”, frequentemente ouvimos “(...) e depois deste
desterro, mostrai-nos Jesus, bendito é o fruto do vosso ventre (...)”,
quando o correto é: bendito fruto de vosso frente. Um problema
de concordância e de confusão desta oração com a “Ave Maria”.

Depois, existe a necessidade de se prestar atenção no


sentido das palavras. A oração não é somente uma repetição de
fórmulas prontas sem sentido.

O que estou pedindo? Com o que estou me comprometendo?


Vejo muita admiração e consternação quando falo sobre o tema e
explico o sentido do trecho do “Pai Nosso” que diz “(...) perdoai-nos
as nossas ofensas, assim como perdoamos a quem nos tem
ofendido (...)”.

Já parou para pensar nisso? Eu peço que Deus me perdoe


exatamente do mesmo modo que (assim como) eu perdôo as
pessoas; nem mais, nem menos.

Isso quer dizer que, se em vez de dar o perdão, você pede


justiça e castigo para quem te ofende, toda vez que você reza o “Pai
Nosso” é justiça absoluta e castigo por seus erros que você está
pedindo a Deus.

O sentido deste trecho da oração é: Senhor, trate-me


exatamente como eu desejo que aqueles que me ofenderam,
caluniaram, traíram, agrediram, etc., sejam tratados.

Por último, para existir oração, eu preciso determinar uma


finalidade e um porquê de eu estar rezando.

Ou isso já se tornou um hábito sem sentido e automático em


sua vida? Repetir ave-marias, pai-nossos, etc., sem pensar sobre o
assunto? O porquê fazemos é fundamental para existir oração.

Dentre os vários objetivos ou finalidades para se rezar, por


favor, não se esqueça de que é para a Glória de Deus e nossa
santificação pessoal.

Coloque sempre essas duas intenções com as outras que


você tiver e, lembre-se, nada é mais importante que essas duas que
se referem diretamente à sua salvação e bem-aventurança eterna.
Afinal, aqui “tudo passa”, como diz Santa Teresa D’Ávila.

Parte da pergunta inicial já foi respondida: para rezar sem


errar as palavras, pensando no sentido do que digo e estabelecendo
uma finalidade, não tem como estarmos distraídos na oração!

No entanto, é claro que podemos começar bem e nos distrair


depois de iniciar, por força do hábito ou por culpa da nossa fraqueza
natural.

Santo Tomás de Aquino nos lembra que a oração é elevação


da mente a Deus e somente uma mente atenta consegue se elevar.
Mas é consciente de que, justamente por causa da limitação
humana, a mente não consegue permanecer constantemente
elevada o tempo todo e as divagações podem acontecer.

Mas, neste caso, minha oração continua valendo? Em parte


sim: a oração que iniciou bem e depois sofreu distração não perde o
mérito e o valor de súplica.

Se eu me dispus a rezar e elevo minha súplica a Deus, o


mérito, que recebo por qualquer atitude feita por amor a Deus, ou
seja, pela intenção de amá-lo, já foi conquistado.

Do mesmo modo a súplica que é própria de qualquer oração:


a impetração (nome usado na teologia) é suficiente e válida no
primeiro momento que é proferida e não precisa ser constantemente
renovada enquanto se reza.

Dito isso, nunca é demais ressaltar que a oração precisa ser


buscada sem distrações. São Basílio Magno é categórico: “O auxílio
divino deve ser implorado sem negligência, sem divagações”, ou
seja, se a mente divaga de propósito na oração, é pecado e isto
impede que a oração aconteça.

Para se precaver contra isso Santo Agostinho insiste para


que “quando orais a Deus em salmos ou em hinos, tende no
coração o que a boca profere”.

No entanto, se a distração da mente enquanto se reza ocorre


sem intenção, não sendo proposital, não tira os frutos da oração
mencionados acima: mérito e impetração.

Sem culpa, embora fazendo todo o esforço para estar


atentos, os santos também se distraíam na oração.
O mesmo São Basílio afirma que “Se enfraquecido pelo
pecado não podes orar com atenção e procuras evitar isto, Deus
não o considerará. Porque, neste caso, não podes estar na sua
presença como deves, não por negligência, mas por fraqueza”.

Também nas escrituras encontramos que “o meu coração me


abandonou” (Sl 39,13), explicitando claramente que nem tudo que a
mente se obriga a fazer tem a adesão (e a atenção) do coração.

Mas, paremos um instante. Se a distração acaba ocorrendo,


por que Santa Teresa D’Ávila, doutora da Igreja e mestra da oração,
afirma que a oração distraída deixa de ser oração?

Primeiro, porque perdida a atenção, perde-se a intenção do


fim, desaparece o foco que nos guia para onde devemos ir.

Assim, Santo Tomás afirma que a atenção é absolutamente


necessária para se atingir a finalidade da oração que é elevar a
mente a Deus e estabelecer comunhão com ele.

E, perceba que os dois primeiros frutos da oração: mérito


e súplica, só foram adquiridos porque são necessários uma
única vez no início da oração e aconteceram enquanto existia
atenção da parte de quem rezava.

Depois, e, no caso, o mais importante para Santa Teresa, o


terceiro fruto da oração é que ela nos santifica enquanto estamos
em união atenta com Deus.

Podemos utilizar a imagem de um carregador de celular na


tomada: se existe corrente elétrica (a atenção), o “carregamento”
acontece; a partir do momento que a corrente se perde, também
não existirá mais carga no celular.

Santo Tomás de Aquino compara esse fruto da oração atenta


com “uma certa refeição da mente”. De fato, Deus nos alimenta
espiritualmente através do aumento da graça santificante enquanto
permanecemos unidos a Ele.
Essa infusão e aumento da graça santificante acontece pela
própria virtude de Cristo no sacramento do batismo, por exemplo.

Ali, somente a obra feita por Cristo é necessária para o


recebimento e atuação da graça santificante e, por isso, até uma
criança sem uso da razão pode recebê-lo.

Na oração, por outro lado, embora a graça provenha de


Deus, ela necessita de nossa cooperação para se estabelecer e
crescer. Jesus deixa isso claro ao dizer que “Quem permanecer em
mim e eu nele, este dá muito fruto; porque sem mim nada podeis
fazer” (Jo 15,5).

É pensando nesse sentido de santificação pessoal ou


refeição espiritual que tanto Santa Teresa, quanto Santo Tomás, são
unânimes em dizer que, sem atenção constante de quem reza não
há aumento da graça santificante e verdadeiro alimento para a alma.

No próximo capítulo, procuraremos entender como é possível


rezar sem cessar e, deste modo, cumprir a ordem do apóstolo São
Paulo em sua carta aos Tessalonicenses (1Ts 5,17).

✽✽✽
Como é possível rezar sem cessar?

Até aqui, temos investigado os princípios básicos que regem


o ato de rezar, o que significa este ato e porque fazê-lo. Também o
que não pode faltar e tudo que é recomendado, ou não, no
momento de se rezar.

Neste capítulo, refletiremos sobre como cumprir um conselho


evangélico e mandamento apostólico: rezar continuamente.

Afinal, no Evangelho de Lucas, Jesus conta uma parábola


para ensinar como é necessário rezar sempre, sem nunca desistir
(Lc 18,1-7).

Na carta aos Tessalonicenses, São Paulo é bem mais direto


dizendo: “Orai sem cessar” (1Ts 5,17). Mas, será que é realmente
possível fazer isso? Sim e não.

Considerando concretamente a oração em si mesma, aquele


momento em que paramos tudo para falar e ouvir o Senhor de todas
as coisas, não é possível rezar sem cessar.

Afinal, temos outras ocupações que também tomam nosso


tempo e são boas e santas, como prover as necessidades da
família, ocupar-se dos filhos, contribuir para a edificação de nossos
irmãos e da sociedade.

Santo Tomás de Aquino explica que “A medida de cada coisa


deve ser proporcional à sua finalidade, como a medida do remédio
deve ser de acordo com a saúde.

Por isso, é necessário que a oração perdure somente


enquanto serve para excitar o desejo do fervor interior.
Mas, se esta medida for ultrapassada, de modo que a oração
não possa durar sem gerar tédio, ela não deve ser prolongada”.

Ou seja, como vimos anteriormente, a oração mecânica,


distraída, apesar de ter um mérito inicial (quando ainda nem era
mecânica e distraída), não conserva sua principal qualidade que é
nos santificar, colocar-nos em comunhão com o Senhor e nos
fornecer uma “refeição espiritual”.

E, por isso, não é útil e nem proveitoso que ela dure por
muito tempo, seja ele qual for.

Somente a oração atenta, com a mente elevada a Deus e em


união com ele deve ser praticada por mais tempo, mas, mesmo
assim, impossível de ser levada o tempo todo de nossa vida.

Santo Agostinho explica como conciliar uma oração fervorosa


e atenta com a nossa dificuldade em se manter em oração por
longos períodos: “Dizem que os monges do Egito oravam muito,
mas com orações breves e lançadas ao céu como dardos, para que
tensa e vigilante, muito necessária para quem ora, a atenção não se
dissipasse nem enfraquecesse pelo tempo prolongado.

Assim agindo, mostravam que essa atenção assim como não


deve ser prolongada com dificuldade, assim também não deve ser
interrompida, se permanecer”.

Impressionante, não é? Aqui fica claro que a duração da


oração é um detalhe ou consequência de outra atitude fundamental:
qual o nível de entrega e de união com Deus que eu tenho ao rezar?

Se não vale a pena prolongar uma oração vazia, também não


é recomendável abandonar a oração sem uma causa justa, se esta
for viva e frutífera.

E, para não restarem dúvidas: entrar no emprego no horário,


alimentar os filhos, estar presente na vida do(a) esposo(a) são
causas justíssimas e precisam ser equalizadas com nossa vida de
oração.

No entanto, parece que um problema se estabeleceu: então o


ensinamento de Jesus, reforçado por São Paulo, não é exato? Não
podemos “orar sem cessar”?

A resposta é que, se não considerarmos somente o ato


imediato e concreto da oração, não só é possível como é altamente
necessário que rezemos continuamente.

E não se trata apenas de um jogo de palavras, como


veremos agora.

A oração, quando considerada em sua causa e finalidade,


precisa ser contínua e ininterrupta, tornando realidade até mesmo
a palavra que diz: “Eu durmo, mas meu coração vigia” (Ct 5,2).

Afinal, o que causa a oração? A virtude teologal da Caridade


ou o Amor a Deus! É por amá-Lo, por querer sua companhia, por
desejar ser um só coração com Ele e ouvir a Sua vontade que nos
colocamos em oração.

A Caridade é também o fim ou finalidade da oração e, repito,


para ficar bem claro: é para Amá-lo ainda mais, para estar cada vez
mais próximo dEle, desejar fazer da Sua vontade a nossa vontade,
que nos dedicamos à oração.

Esse desejo de Deus que é causa e finalidade da oração


precisa ser ininterrupto! “Meu coração se lembra de ti: ‘Buscai minha
face’. Tua face, Senhor, eu busco” (Sl 27,8).

A força motora desse desejo precisa estar viva em tudo que


fazemos e, assim, fazer todas as coisas e cada uma delas para a
Glória de Deus e a realização do seu reino em nós e no mundo
(1Cor 10,31).
Ou, como diz Santo Agostinho: “Por um desejo permanente
oramos sempre na fé, na esperança e na caridade”.

Com esse desejo imenso de Deus, a oração nos ajudará


sempre a excitar nosso coração cada vez mais e, por isso, Santo
Agostinho também diz que “Rezamos em certas horas e momentos
a Deus incluso com palavras, para que continuemos atentos por
estes sinais sensíveis, e verifiquemos o nosso progresso neste
desejo santo e nos excitemos mais fortemente a isso fazer”.

Baseado nisso, Santo Tomás nos ensina que: sim, é possível


orar sem cessar!

Oramos sem cessar quando mantemos diuturnamente o


desejo vivo e prolongado de estar com Deus, mesmo em outras
ocupações necessárias e, também, após terminar uma oração bem
feita, podemos dizer que continuamos rezando ininterruptamente
pois cresce em nós a devoção, o desejo e a pertença a Deus.

No próximo e último capítulo desta primeira parte do livro,


procuraremos entender se Deus escuta e acolhe a oração do
pecador. Afinal, unir-se a Deus e permanecer no pecado, é
possível?

✽✽✽
Deus escuta a oração do pecador?

Se você esteve atento ao conteúdo apresentado até aqui, já


tem uma primeira resposta para essa pergunta-título deste capítulo.
Isso porque vimos que, sem a Caridade, que é o Amor a Deus,
nossas ações não têm verdadeiro mérito sobrenatural.

Ou seja, precisamos estar em estado de Graça Santificante


para a nossa oração ter algum mérito perante Deus.

A situação se agrava ainda mais quando, aquele que vive em


pecado, aplica-se à oração e levanta súplicas diversas, mas
permanece ainda com o desejo de pecar e manter seu estado de
separação de Deus.

Isso porque, se Deus não deixa de amar a natureza humana,


mesmo no pecado, a própria culpa e o pecado em si não são de
forma alguma agradáveis a Ele e nem podem alcançá-lO.

Ao unir um estado de pecado com a intenção de se manter


nele, aquele que reza causa grande violência contra Deus e a si
mesmo.

Essa situação é o que causa tantas advertências na Palavra


de Deus como “Sabemos que Deus não escuta a oração dos
pecadores” (Jo 9,31) e “Quem desvia os ouvidos para não ouvir a
Lei, até a sua oração será execrável” (Pv 28,9).

Sobre esse comportamento, Santo Tomás lembra que na


Glosa (comentários à Palavra de Deus escritos pelos santos
exegetas do primeiro milênio), referente ao capítulo três da segunda
carta à Timóteo, está anotado que os que querem continuar no
pecado “Apresentam-se simulando piedade, mas na realidade
negam a virtude dela”.
Mas, e o pecador que tem desejo sincero de mudar de vida e
se põe em oração? Mesmo assim sua oração não tem valor perante
Deus?

A oração daquele que quer se aproximar de Deus, se não


tem valor meritório, ou seja, se ele não pode receber o prêmio da
oração pois não está em estado de graça, tem, no entanto, valor
impetratório ou de súplica.

Simplificando, podemos dizer que o que vive em pecado e


não quer mudar, ofende a Justiça de Deus, porque não obedece aos
mandamentos, e ofende ainda Sua Misericórdia querendo, através
da oração, obter benefícios enquanto permanece firme no pecado.

Por outro lado, aquele que ainda está em pecado, mas se


entrega à oração com desejo de mudar de vida, se ainda ofende a
Justiça de Deus (enquanto não se confessa e se converte), por
outro lado, pode ser atendido pela Sua Misericórdia.

Santo Tomás de Aquino desenvolve essa reflexão com


grande clareza dizendo que “A oração do pecador que vem de um
bom desejo da sua natureza, Deus atende não por justiça, porque
ele tal não merece, porém por pura misericórdia, observadas quatro
condições: que peça para si, que o pedido seja de coisas
necessárias à salvação, piamente e com perseverança” (Suma
Teológica, II-II, Q83 A16).

Deste modo, o que não se conquista por mérito, por não


conseguir mover a justiça, pode-se conseguir pela impetração
ou súplica, pois esta move diretamente a misericórdia.

É se referindo a isso que Santo Agostinho comenta que “Se


Deus não atendesse aos pecadores, teria sido inútil ter o publicano
assim orado: ‘Senhor, tende compaixão de mim que sou pecador’”.

Atendeu à súplica porque a oração, embora feita por um


pecador assumido, correspondia às condições propostas por Santo
Tomás e provocou a Misericórdia de Deus.
Dentro desta sutil, mas substancial diferença, também está a
piedade na oração. O pecador não possui o hábito da piedade, pois
excluiu a Graça Santificante de si mesmo através do pecado, mas
pode possuir desejos piedosos na oração.

Assim, o que não se possui por hábito (e merecimento),


pode-se conquistar momentaneamente pelo desejo, e usufruí-lo em
vistas de se firmar na vida de santidade (piedade) posteriormente.

Analisados, nesta primeira parte deste livro, os princípios e


motivos do porquê rezar e o que observar enquanto se reza, vendo
o que é aproveitável ou não neste ato de intimidade com o Senhor,
podemos com muito fruto partir para o ato em si, a “mão na massa”,
e estabelecer uma rotina de oração.

Afinal, essa “refeição espiritual” para alimentar a alma precisa


ser feita diuturnamente como já vimos.

Que o Senhor alimente e renove, Ele mesmo, a sua oração e


vocação contemplativa, afinal, devemos buscar as coisas do alto (Cl
3,1) e, se a colocarmos em primeiro lugar (Mt 6,33), todo o resto nos
será acrescentado em extrema abundância (Mt 13,12).

Mas, não se engane, você não está sozinho neste


maravilhoso caminho. Que tal, agora, aprendermos a viver a oração
na prática?

Se até aqui nos acompanhou Santo Tomás de Aquino, Santo


Agostinho e tantos outros santos e doutores dos primeiros mil e
duzentos anos do cristianismo, recorramos agora à Mestra da
Oração e Doutora da Igreja, Santa Teresa de Jesus, ou Teresa
D’Ávila, e aprendamos a ser cada vez mais íntimos de Deus através
da oração no dia a dia, aprendendo com ela e outros santos e
doutores carmelitas!

Prossigamos decididamente (Fl 3,16) rumo à segunda parte


deste livro, entendendo como a oração vai se aperfeiçoando e
promovendo novas formas de intimidade com Deus.
✽✽✽
PARTE II
A ORAÇÃO
A PARTIR DE SANTA TERESA D'ÁVILA
“(...) para isto é a oração, filhas minhas; para isto serve este
matrimônio espiritual: para que nasçam sempre obras, obras”.

Santa Teresa D’Ávila

✽✽✽
Um jardim fechado chamado alma

Nem mesmo Santa Teresa D’Ávila tem certeza de onde lhe


veio a inspiração de, para explicar como progredir sempre na
oração, comparar a alma de cada cristão a um jardim.

Alguns exegetas tentam decifrá-la e dizem que tomou o


exemplo no “Terceiro Abecedário Espiritual” de Francisco Osuna,
livro chave na vida da santa.

Mas, se nos atentarmos um pouco, encontramos essa


comparação inúmeras vezes na Palavra de Deus e, com veemência
no Cântico dos Cânticos, livro tão amado por essa Doutora da
Igreja: “És um jardim fechado, minha irmã e esposa, jardim fechado
e fonte lacrada” (Ct 4,12).

Fechado, pois Deus nunca o violenta, nunca invade a alma


que não o aceita. Muito pelo contrário, carinhosamente permanece à
porta e bate, esperando que seja aberta (Ap 3,20).

Mas, também fonte lacrada, pois somente Ele pode liberar


em seu interior a água que vivifica a alma; primeiro, purificando-a:
“Derramarei sobre vós águas puras, que vos purificarão de todas as
vossas imundícies e de todas as vossas abominações” (Ez 36,25);
posteriormente, fazendo com que ela mesma seja fonte inesgotável
de água viva (Jo 7,38).

Até que isso ocorra, “Minha alma está sedenta de vós, e


minha carne por vós anseia como a terra árida e sequiosa, sem
água” (Sl 62,2) pois, sem Deus, “ficarei parecendo um carvalho de
copa murcha, um jardim completamente sem água” (Is 1,30).

Vemos, através destes e inúmeros outros exemplos, que


Santa Teresa usou a comparação apropriada: a alma revestida
pela Graça é um jardim de delícias para Deus onde Ele mesmo
habita.

Ele a transforma (Is 51,3), “caminha” neste jardim (Gn 3,8),


quer que seus aromas se espalhem pelo mundo todo (Ct 4,16),
saboreia seus frutos (Ct 5,1), abriga-se às suas sombras (Jo 18,1) e
colhe seus lírios (Ct 6,2).

Em suas próprias palavras a santa de Ávila, mestra da


Oração, relembra que “era para mim grande alegria considerar
minha alma como um horto ou jardim e que o Senhor passeava
nele. Suplicava-lhe que aumentasse o odor das florzinhas das
virtudes que começavam, ao que parecia, querer sair e que fosse
para sua glória e as sustentasse (...) e que cortasse as que
quisesse, pois eu já sabia que depois nasceriam maiores.”

Santa Teresinha, usando da mesma metáfora do jardim,


compara cada alma que se santifica a uma flor: “O mesmo ocorre no
mundo das almas, o jardim de Jesus. Ele quis criar grandes santos,
que podem ser comparados aos lírios e às rosas; mas criou também
outros menores, e estes devem se conformar em ser margaridas ou
violetas destinadas a alegrar os olhos de Deus quando contempla
seus pés. A perfeição consiste em fazer sua vontade, em ser aquilo
que Ele quer que sejamos”.

Deste modo, cada alma é um jardim (Santa Teresa), mas


também o conjunto delas se torna um grande jardim (Santa
Teresinha) onde o Pai, que é o agricultor (Jo 15,1), conduz todas à
perfeição, sob o auxílio atento do irmão e esposo (Ct 4,12) que é
Jesus Cristo.

Devido à necessidade do nosso trabalho ativo em nossa


santificação pessoal, somos também os “vinhateiros” ou os
“trabalhadores da vinha” (Mt 21,33) que precisam prestar contas do
desenvolvimento da própria vida espiritual a Deus.

Assim Santa Teresa, no seu Livro da Vida, lembra-nos para


que “Com a ajuda de Deus procuremos, como bons jardineiros,
fazer com que estas plantas cresçam [as virtudes] e ter muito
cuidado em regá-las para que não morram, muito pelo contrário, que
produzam flores de grande odor [boas obras] para alegria de Nosso
Senhor, para que venha muitas vezes deleitar-se neste jardim e
descansar entre estas virtudes”.

Podemos refletir como é apropriada a imagem do jardim ou


horto para retratar a alma: ele precisa de trabalho constante, de
cuidado, de proteção quando o tempo não é propício, de podas
regulares, de transplantes e de um olhar cuidadoso para ajustar
cada planta ou flor no lugar exato.

Afinal, o mesmo sol que é benéfico para umas é terrível para


outras, a mesma posição no terreno pode ser perfeita ou péssima
para o desenvolvimento de cada vegetação específica.

A vida espiritual também não é uma obra de um único dia ou


de uma empreitada rápida e definitiva. Um muro de tijolos, bem
construído, dura inúmeros anos, mas, a alma é realmente como um
jardim onde, se há um muro, ele é muito mais uma cerca viva;
precisa ser trabalhado, modelado e remodelado e nunca,
absolutamente nunca, pode ser deixado por si só.

A alma ou o jardim, largados por si só, perdem rapidamente


sua forma. Um jardim deixado ao sabor do tempo morre ou
desaparece tomado pelo mato. Inúmeras flores ou plantas
ornamentais se não recebem atenção adequada deixam de produzir.

Assim é nossa alma. Pode ser um “lugar das delícias” ou um


terreno baldio. E, é claro, de todos os cuidados que o jardim
necessita, o principal é receber água suficiente.

Como vimos nas citações acima, um jardim é um lugar onde


a água é abundante: “O Senhor te guiará todos os dias e vai
satisfazer teu apetite, até no meio do deserto. Ele dará a teu corpo
nova vida, e serás um jardim bem irrigado, mina d’àgua que nunca
para de correr” (Is 58,11).
Para Santa Teresa D’Ávila, a água que irriga o jardim de
nossa alma tem um nome e se chama oração.

Assim, se é fundamental acabar com o pecado mortal para


que o verdadeiro agricultor tome posse da alma, para que o próprio
Cristo possa entrar em seu jardim fechado, é através da oração que
a alma é irrigada para produzir seus doces frutos.

Aquele que não reza permanece seco e árido, e se arrisca a


ter as próprias virtudes minguadas arrancadas (Mt 25,29) e ainda
enfrentar um juízo terrível, pois o jardim da nossa alma é chamado a
produzir os frutos do amor (Lc 13,7).

Mas, como rezar bem e frutuosamente? Nesta segunda parte


do livro, seguimos com Santa Teresa D’Ávila para examinar ponto
por ponto os ensinamentos desta Doutora da Igreja sobre a oração.

Faremos com ela o caminho do cuidado do jardim fechado de


nossa alma, preparando-a para ser um lugar de delícias para Deus,
onde Ele mesmo se alegra em permanecer (Pv 8,31).

Antes de prosseguir, convido você a fazer uma rápida revisão


dos princípios da oração que examinamos na primeira parte deste
livro. Agora que já tem uma visão de conjunto, veja o que a oração
pode ser e os caminhos que não devemos percorrer.

Afinal, para começar a crescer em fé, vivendo ativamente a


oração, nada melhor do que ter bem firme, primeiro, a que ela se
refere.

✽✽✽
Produzir frutos agradáveis a Deus

Uma rápida olhada no livro do Cântico dos Cânticos revela


uma profusão de cores, aromas e sabores.

Afinal, se como vimos no capítulo anterior, podemos


comparar a nossa alma a um jardim fechado, o que mais produziria
esse jardim ou horto?

Flores, frutos e folhagens exuberantes! Belezas que levam a


esposa-alma a dizer: “Como és belo amado meu, nosso leito é todo
decorado por flores” (Ct 1,16).

De fato, se o jardim da alma que vive em estado de graça é


verdadeiramente um lugar de repouso para Deus (Gn 3,8), não é
por Ele mesmo necessitar de um lugar assim que proporciona meios
da alma progredir em santidade.

Santa Teresa D’Ávila, além de deixar claro que precisamos


cultivar esse jardim, regando-o através dos diversos graus de
oração, das mais simples às orações místicas, também é categórica
ao dizer que este jardim ou Castelo Interior deve ser preparado para
produzir obras:

“Para isto é a oração, filhas minhas; para isto serve este


matrimônio espiritual: para que nasçam sempre obras, obras” (Santa
Teresa de Jesus, Castelo Interior).

Ou seja, o real objetivo da oração e da altíssima


contemplação, é o serviço à Igreja e ao próximo, a conquista de
almas para Deus e a propagação do Reino de Cristo no mundo.

Não se trabalha o jardim da alma ou se explora o Castelo


Interior em busca de satisfação pessoal ou de um contato com Deus
que se esgote em si mesmo, mas, em última instância, para o bem
da Igreja e a salvação das almas.

Também a Palavra de Deus é plena de passagens onde,


ainda utilizando a metáfora do jardim, horto ou cultivo, demonstra a
necessidade das obras exteriores, além da oração interior.

No Cântico, o esposo é um fruto doce (Ct 2,3), o jardim


produz abundantemente, pois a figueira já dá seus figos e a vinha
está em flor (Ct 2,13). A plenitude do jardim foi alcançada, ele é belo
e produz frutos.

Mas, em outras passagens, podemos entender a


necessidade desta construção interior, podemos ver o jardim que
ainda não cumpre o papel para o qual foi criado e como isso é
grave.

No Evangelho segundo Lucas (13,7), o agricultor fica irado


pois sua figueira não produz figos. Há três anos procura seu fruto e
não o encontra. O responsável pelo horto pede um pouco mais de
tempo, vai voltar a adubar e afofar o terreno em volta da figueira.

Em outra parábola (Mt 21,33-43), o proprietário arrenda a


vinha para os trabalhadores e espera receber parte dos frutos mas,
em vez disso, tem seus funcionários e o próprio filho morto
traiçoeiramente.

Considerando a vida espiritual, podemos entender que o


agricultor ou proprietário é o próprio Deus, autor da vida, criador de
cada alma. É a Ele que devemos prestar contas do que fazemos
com tão grande dom: nossa própria existência.

A orientação é simples: cultive sua alma, ela se tornará bela


pelas virtudes mas, sobretudo, deve produzir frutos, ou obras, que
retornarão ao próprio Deus. Esta é nossa missão como co-
responsáveis pela criação (Gn 2,15) que nos foi confiada.
Hugo de São Vítor (1096-1141), em um de seus sermões,
reflete sobre o início do primeiro Salmo onde se diz, sobre o homem
que procura viver sob os mandamentos do Senhor, que: “ele é como
a árvore plantada junto às águas correntes, dará fruto ao seu tempo
e sua folhagem não murchará jamais” (Sl 1,3).

Ele se pergunta: o que seriam essas águas, essa árvore e


suas partes?

As águas são o próprio manancial do Espírito Santo que flui


sem cessar sobre a vida espiritual que está estreitamente unida a
Cristo, em Graça Santificante.

É por isso que Santa Teresa desenvolveu seu raciocínio


sobre a oração pessoal como “diversas formas de regar um jardim”.
Ela procura mostrar como acessar essa água viva que é o próprio
Espírito, a única capaz de dar sustento e vitalidade para o jardim da
alma.

Mas, voltando a Hugo de São Vítor, a raiz da árvore é a


virtude da Fé. Ela é raiz pois é origem e fundamento de todas as
demais virtudes, é a verdadeira raiz das boas obras. É através da
Fé que estamos “plantados” em Deus e, sem ela é impossível
agradar ao Senhor (Hb 11,6).

O tronco que se eleva para o alto é a virtude da Esperança


que nos faz focar nos bens celestes, tirando o olhar de tudo que
passa e buscando aquilo que é eterno. Para buscar as coisas do
alto (Cl 3,1), precisamos nos erguer para o alto e elevar-nos ao céu
como faz o tronco da árvore.

Para Hugo, os ramos são a virtude da Caridade que se


eleva a Deus, mas também se estende aos lados pelo amor ao
próximo. As folhas são as boas ações, pois como elas recobrem
todo o entorno da árvore, os justos são como que cercados
continuamente por boas obras.
Por isso, a beleza de uma folhagem frondosa se compara a
ação do cristão que busca a santidade. A boa fama que adquire, é
apropriadamente representada pelas flores que, por todo lado,
espalham seu perfume.

Esse perfume de santidade, é relatado pelo Apóstolo Paulo


quando compara os que vivem os mandamentos como portadores
do bom odor de Cristo (2Cor 2,14-15).

Procuremos pois, incansavelmente, essa água que dá vida e


tudo plenifica para que irrigue o jardim de nossa alma, fortaleça a
raiz da Fé, faça crescer o tronco da Esperança e multiplique os
ramos da Caridade que se levantarão e estenderão, produzindo as
folhas das boas obras e espalhando o próprio perfume de Cristo por
todos os lugares. Os frutos serão abundantes e produzirão até cem
por um (Mt 13,23).

Já que vimos a beleza deste jardim da alma e a importância


de que seja bem cuidado e produza frutos agradáveis a Deus, no
próximo capítulo vamos entender, com Santa Teresa D’Ávila, como
podemos providenciar água para este jardim através da oração.
Veremos o primeiro modo de regar o jardim da nossa alma.

✽✽✽
Regar a alma com a oração

Não é de forma arbitrária e gratuita que Santa Teresa


D’Ávila utiliza-se da imagem do jardim para se referir à alma.

Além de estar amplamente fundamentada na Palavra de


Deus, como já vimos, o jardim ou horto mostra de forma clara a
necessidade da água do Espírito Santo para que exista vida e
exuberância.

O Espírito, que é a verdadeira água viva, precisa habitar a


alma para levá-la à sua plenitude, à sua perfeição para a qual foi
criada.

Do mesmo modo que um jardim num lugar desértico, sem


nenhum acesso à água, não sobrevive, assim é a alma humana
longe da graça santificante: morta e estéril.

Mas, com uma pedagogia peculiar, Santa Teresa procura nos


fazer entender que o jardim e a água precisam ser conectados ou,
em outras palavras, faz parte do trabalho sobre o jardim dar-lhe
acesso à água.

A santa nos lembra que esse jardim, que é a alma, possui


uma sede inesgotável de Deus. Paradoxalmente, o contato com Ele
só fará aumentar cada vez mais essa sede! Onde está a vantagem
então?

Essa água, embora aumente ainda mais a sede de Deus,


afoga a vontade das coisas terrenas, dando grande felicidade à
alma pois a retira de um caminho inútil (de querer sentir-se plena
com as coisas do mundo) e a coloca no verdadeiro caminho: o
contato com Deus satisfaz, acalma e mostra que se poderá obter
ainda mais, instigando essa busca por plenitude!
A água ainda possui três propriedades físicas que Santa
Teresa corresponde com necessidades espirituais em seu livro
“Caminho de Perfeição” (cap 19,3-10):

1. A água refrigera. Também à alma, o Espírito Santo é fonte


de refrigério e doçura. E, se no mundo a água apaga o fogo, a água
da oração acende ainda mais o fogo do Amor a Deus.

2. A água limpa. Também essa água celestial promove uma


limpeza contínua e extensa no interior daquele que ama e reza. É a
própria graça que atua purificando a alma.

Embora de forma imperfeita nos primeiros graus de oração,


ao passar para a oração mística da contemplação essa purificação-
limpeza será realizada de forma perfeitíssima pelo próprio Deus.

3. A água satisfaz e tira a sede. Como já explicado mais


acima, também a água da oração provoca a satisfação do contato
com Deus e acaba com a sede das coisas do mundo, embora
aumente ainda mais a sede de Deus.

Mas como obter tão grande bem?

A princípio, esse acesso do jardim à água deve ser feito da


maneira como for possível: com muito esforço, sem habilidade, mais
para manter o jardim vivo.

Só que, aos poucos, este “sistema” precisa ser aprimorado,


resultando em maior irrigação e menor esforço, sendo cada vez
mais eficaz.

Como a oração é a maneira de regar o jardim da alma, tendo


acesso a todo manancial de graças do próprio Deus, a santa de
Ávila nos ensina passo a passo quatro maneiras de regar.

Porém, antes de aprendermos cada um deles, é preciso


lembrar que, além de se aplicar à oração, é necessário desterrar os
pecados do coração.
Eles são as ervas daninhas que corroem a vida espiritual e
tornam a alma terra infrutífera para Deus.

✽✽✽
Primeiro modo de regar o jardim
“Os que começam a vida de oração podemos dizer que são
os que tiram a água do poço, tendo muito trabalho, [estes] hão de
cansar-se em recolher os sentidos, que, como estão acostumados
andar derramados, é farto o trabalho” (Santa Teresa de Jesus, Livro
da Vida).

Regar o jardim tirando, a duras penas, água de um poço.


Esta é a comparação para o início da vida de oração daqueles que
querem se entregar verdadeiramente à intimidade com Deus.

Podemos pensar num trabalho pesado, feito sob o sol


escaldante, em terreno extremamente seco. Mas como isso se
traduz na prática da oração?

É a oração vocal sem consolações, sem deleites, árdua.


Santa Teresa recomenda que se procure a solidão para rezar pois,
dificilmente a concentração vem.

O cristão passa, assim, muito tempo tentando dominar as


distrações e colocar o foco na oração. Como ela deixou claro na
passagem citada acima, os sentidos estão tão acostumados a
estarem dispersos (derramados), movendo-se para um lado e para
o outro em curiosidades e estímulos que, quando a alma se dispõe
a rezar, eles não conseguem ficar quietos.

Embora exista desejo e esforço para o ato da oração, a


pouca água que se retira desse poço acaba se esvaindo no balde
furado da distração.

Santa Teresa salienta que se perde muito tempo tentando


colocar a atenção da inteligência na oração “isto é, começar a tirar
água do poço, e ainda praza a Deus o queira ter”.
Porque é comum que, mesmo com todo esforço do mundo,
ainda assim a oração pareça ser infrutífera, pois é como se o poço
estivesse seco.

Se, nestes momentos, o próprio Senhor do jardim não o


sustentasse com a vida, tudo estaria perdido. São vários os dias de
secura e dissabor, onde a alma reza como se não fosse ouvida,
onde a oração que começa bem, rapidamente é presa de
distrações.

É preciso perseverar e procurar fazer com que a oração,


mesmo que seja pouca, seja bem feita. Enquanto se persevera e se
aprimora a oração, confia-se em Deus, autor e mantenedor de todas
as coisas. Ele mesmo está atento em construir na alma a obra que
previu e desejou.

Trata-se, aqui, de encontrar um equilíbrio e criar um hábito de


oração, insistindo com suavidade, porém, sem nunca desistir:
“Porque já se vê que, se o poço não mana [água], não somos nós
que poderemos pôr a água [nele]. É verdade que não devemos ficar
descuidados para que, quando houver [água], tirá-la.”

Oração Vocal

Este primeiro modo de regar o jardim, Santa Teresa nomeia


mais tarde, em “Caminho de Perfeição'', como oração vocal: “Rezar
o Pai-Nosso e Ave-Maria ou o que quiserdes, é oração vocal.”

Ou seja, toda oração realizada com palavras, sejam de


orações tradicionais, litúrgicas ou espontâneas, é oração vocal.

Não basta repetir as palavras sem entendê-las ou


automaticamente. É fundamental que se saiba o que está dizendo e
o porquê de se estar dizendo cada coisa.

Estar inteiro na oração é buscar água no fundo do poço para


prover o jardim da alma, estimulando-o a crescer e produzir as
virtudes e boas obras.

São conselhos de Santa Teresa para uma boa oração vocal:

1. não se esquecer de iniciar fazendo o sinal da cruz;

2. fazer um exame de consciência e reconhecer suas


faltas, pedindo perdão a Deus;

3. colocar-se na presença de Deus e, até mesmo,


imaginar Jesus ao seu lado, pois de fato ele está;

4. acostumar a “sossegar o pensamento”, trabalhar pouco


a pouco a concentração;

5. buscar colocar o olhar e atenção sobre a paixão de


Cristo ou em outros mistérios, conforme a oração que se
faz determine esta ou aquela reflexão;

6. utilizar um bom livro espiritual para ir acostumando


pouco a pouco a alma a sossegar na oração.

Sobre o último ponto, Santa Teresa alerta àqueles que


finalmente se decidiram a ter uma vida plena de oração para que
“Faça as contas e veja que faz muitos anos que [a alma] tem saído
de junto do seu esposo, e que até que [ela] queira tornar à sua casa
[sua própria vida interior com Deus] é preciso saber negociar muito
para convencê-la, pois assim somos nós os pecadores:
acostumamos tanto nossa alma e pensamento a andar soltos ao
seu próprio prazer, ou pesar, melhor dizendo, que a triste alma não
se entende mais e para que torne a tomar amor [por Deus] e estar
em sua casa é preciso muito artifício, e se não for desse jeito, pouco
a pouco, nunca faremos nada” (Caminho de Perfeição).

Os proveitos futuros, serão incontáveis. Deus não se cansa


de atrair as almas a si e fortalece todo desejo daqueles que
verdadeiramente o querem encontrar. Como a própria Santa Teresa
diz, Deus “nem vos deixará se não o deixardes”.

Sugiro que, antes de seguir adiante, retome o capítulo “As


partes que compõem a oração” e, sob um novo olhar que está
adquirindo agora com os conselhos de Santa Teresa cruze as
informações destes dois capítulos. Qual é o objetivo?

Faça seu próprio roteiro da prática da oração, seu passo a


passo para se colocar em oração e realizar uma oração ordenada e
completa.

Santo Tomás e Santa Teresa oferecem um esquema, o


conteúdo é por sua conta!

Mas, tenho certeza de que colherá muitos frutos e esse seu


roteiro pessoal vai te preparar com eficiência para, mais tarde,
ingressar na oração contemplativa.

No próximo capítulo veremos, num exemplo concreto, o que


Santa Teresa D’Ávila entendia por uma oração vocal bem rezada e
como esse primeiro modo de se regar o jardim pode ser utilizado
para o verdadeiro crescimento espiritual.

✽✽✽
Santa Teresa e a oração do “Pai
nosso”

Para Santa Teresa D’Ávila, a porta que nos leva a encontrar


com Deus e conosco mesmos chama-se oração. Somente rezando
poderemos começar a conhecer a Deus plenamente e acessar
verdadeiramente nossa própria essência, moldando-nos a Cristo,
verdadeiro e único modelo para todo ser humano.

Se, a partir de São Paulo (Cl 3,3), podemos formular a


pergunta: como posso encontrar a minha vida que está escondida
em Cristo? Com Santa Teresa encontramos a resposta: através da
oração! (Livro da Vida, 8,9).

Como já vimos, Santa Teresa usa a imagem do jardim e sua


intrínseca necessidade de água para explicar o modo como nossa
oração precisa se aperfeiçoar e alcançar cada vez maior intimidade
com Deus.

Isso deve evoluir até o ponto de sermos como a cera quente


que recebe docilmente o selo divino (Castelo Interior, 5M, 2,12),
onde a alma passa a ser perfeitamente amoldada à sua nova forma,
sendo “cristificada” progressivamente.

O início desta jornada é a oração vocal, que examinamos no


capítulo anterior, mas já unida com o segundo modo de oração, a
oração mental.

Enquanto a oração vocal é utilizar palavras para rezar, a


oração mental é pensar em Deus, meditar sobre tudo que se refere
a Ele.
A doutora da Igreja é veemente em dizer que não acredita
que a oração vocal, sem a oração mental possa ser considerada
verdadeira oração (Castelo Interior,1M,1,7) e já examinamos a
veracidade desta consideração no capítulo intitulado “Deus escuta
quem reza distraído?”

Esse primeiro modo de regar o jardim fechado da alma,


usando as orações tradicionais, litúrgicas ou não, de fontes bíblicas
(como os Salmos) ou produzidas pelos santos, foi comparado por
ela com “o tirar a água de um poço”.

A consideração, ou meditação sobre o que se está rezando,


mantendo a perfeita atenção enquanto se reza, equivale ao duro
trabalho de jogar um balde num poço profundo e trazer a água para
alimentar o jardim do espírito.

Mas, como fazer isso na prática? Ela o demonstra com a


oração dominical, ou Pai-Nosso, também conhecida como a oração
do Senhor, pois foi o próprio Jesus Cristo que a ensinou aos
apóstolos.

O Pai-Nosso, oração do Senhor

Quem, portanto, quer rezar procurando a santificação pessoal


que a própria intimidade com Deus provoca através da oração,
precisa ter atenção às palavras e aos seus sentidos.

Santa Teresa, ao se referir ao Pai-Nosso, ensina-nos a, em


primeiro lugar, considerar que Pai é esse e quem é esse Filho que
se coloca ao nosso lado para rezar (Caminho de Perfeição, 24,1).

Depois percorre-a ponto por ponto a partir do capítulo 27 do


seu livro Caminho de Perfeição (CP):

“Pai nosso que estais nos céus”: o filho não só se coloca a


nosso lado para rezar ao Pai, mas nos dá sua própria filiação!
Somos um com Ele e, portanto, temos um mesmo Pai. Esse Pai não
está em qualquer lugar, mas “nos céus”. Devemos nos elevar a Ele,
saindo destas preocupações terrenas.

Também devemos entender que onde se encontra Deus, ali


está o céu e, por isso, Deus está “nos céus”, ou seja, onde existe
uma alma em estado de graça, Deus ali está presente.

Deve a alma, então, falar com humildade perante tão grande


Pai, mas com extrema alegria por estar tão próximo e se fazer tão
acessível.

“Santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso


reino”: é um pedido para que a glória de Deus, presente na
eternidade, também irradie sobre nós, trazendo santidade e vida.

Afinal, aqueles que O amam, não conseguem se ocupar de


outra coisa senão amá-Lo completamente, santificando-se e
santificando o Seu nome.

Sendo atraídos e atraindo-O para que traga a santidade de


seu reino espiritual também ao mundo terreno ou material em que
vivemos. Com o reconhecimento da santidade de Deus e que Ele
pode nos dar o seu reino de Amor, é possível dizer:

“Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”:


Santa Teresa explica que “feita da terra um céu, será possível fazer-
se em mim a vossa vontade. Mas sem isto, e em terra tão ruim
como a minha, e tão sem fruto, eu não sei, Senhor, como seria
possível” (CP, 32,2).

Ela também reflete que a vontade do Senhor não se faz logo


em nossa vida, pois antes precisamos criar o Seu reino em nós,
para que a nossa “terra” se transforme num céu onde Deus possa
ser glorificado executando sua vontade sem impedimentos.

Não deixa de alertar também que, quer queiramos ou não, a


vontade de Deus irá se cumprir tanto no céu quanto na terra, isso é
inevitável.
Que possamos, então, transformar o que não se pode evitar
em desejo nosso e ganharmos assim méritos para a vida eterna.

“O pão nosso de cada dia nos dai hoje”: ela reflete sobre a
duplicidade das palavras “nosso” e “nos dai” pois, afinal, se já é
nosso, por que pedimos que seja nos dado? Para Santa Teresa,
esse “pão” celeste se tornou nosso com o sacrifício de Jesus Cristo
em sua paixão e morte na cruz.

Mas, precisamos diariamente pedi-lo para tomar posse dessa


graça e permanecer nela até que chegue o fim de nossos dias ou,
segundo ela mesma: “O dizer ‘hoje’, parece-me que é para um dia,
que é enquanto durar o mundo, não mais” (CP 34,2). Bem como em,

“Perdoai-nos as nossas ofensas assim como perdoamos


a quem nos tem ofendido”: ela ressalta que não se trata de uma
promessa futura, “perdoaremos”, mas que, quem já colocou sua
vontade em Deus e pediu para que seja cumprida no céu e na terra
(ao menos se determinando a isso) precisa ser capaz de perdoar.

Afinal, Jesus poderia ter colocado qualquer condição para


que recebessemos o perdão de Deus: “perdoai-nos Senhor, porque
fazemos muita penitência, ou porque rezamos muito e jejuamos, e
temos deixado tudo por Vós, e vos amamos muito (...) [mas] disse
somente: porque perdoamos” (CP 36,7).

É, portanto, consciente e determinada esta condição para o


perdão que o Senhor nos coloca: seremos perdoados, desde que
antes tenhamos dado também o perdão.

Claro que, embora dar nossa vontade a Deus e perdoar


nossos semelhantes seja obrigação de todos nós, a doutora da
Igreja lembra suas irmãs do carmelo e a nós também que existe
maior e menor capacidade de realizar essas duas coisas.

Os adiantados na vida espiritual ou perfeitos, darão a vontade


e perdoarão com perfeição, nós faremos o que pudermos e
procuraremos sempre melhorar nestas duas determinações:
entregando sempre mais e mais nossa vontade a Deus; perdoando
cada vez mais prontamente e com melhor disposição os erros que
nossos irmãos cometem contra nós (CP 37,3).

Por fim, pedimos:

“E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do


mal”! Santa Teresa de Jesus alerta para que prestemos atenção
neste pedido: não se pede que o Senhor nos livre dos muitos
trabalhos, nem mesmo das tentações, das perseguições ou da luta,
seja ela espiritual ou com as forças deste mundo.

“Os soldados de Cristo, que são os que têm contemplação e


tratam de oração, não veem a hora de lutar; nunca temem muitos
inimigos públicos (...) nunca lhes viram o rosto. Os que temem, e é
correto que se temam e sempre peçam ao Senhor que os livre
deles, são uns inimigos traidores, demônios que se transfiguram em
anjos de luz” (CP 38,2).

Por isso, a súplica é que não sejamos enganados, que


sempre possamos ver onde está a luz e a verdade, não caindo nas
tentações.

Uma das mais graves, segundo a santa, é quando


acreditamos que temos virtudes que na realidade não temos,
principalmente a humildade: “Mas torno a vos avisar que, ainda que
vos pareça que a tendes [a virtude da humildade], temei que vos
enganais. Porque o verdadeiro humilde sempre anda duvidoso em
virtudes próprias, e muito ordinariamente lhe parecem mais certas e
de mais valor as que vê em seu próximo” (CP 38,9).

O objetivo de apresentar este exemplo concreto é para que


possamos entender o que é este “tirar a água do poço” para
alimentar a alma através da oração de que nos fala Santa Teresa de
Jesus.

Um trabalho árduo sim, mas extremamente proveitoso em


prol da nossa santificação pessoal!
Que possamos não só repetir as palavras de cada oração,
mas que tenhamos a graça do Senhor para entender o que pedimos
e desejamos!

Ele, certamente, proporcionará cada vez mais luzes para


aprofundar-nos no Seu próprio mistério.

No próximo capítulo, veremos como a oração pode trazer


mais frutos, com menos dificuldades, no segundo modo de regar o
jardim que é nossa alma, para que ela possa produzir os frutos das
virtudes em nós.

✽✽✽
O segundo modo de regar o jardim
da alma

Em um rápido resumo, lembremos que Santa Teresa


D’Ávila, mestra da oração e doutora da Igreja, ensina que nossa
alma precisa ser um jardim onde Deus encontra suas delícias (Ct
4,16).

Esse jardim será tanto mais agradável a Deus quanto mais


florescer em virtudes, propagando o perfume da santidade, quanto
mais desenvolver os ramos da Caridade e os frutos das boas obras
no mundo.

No caso da alma, a água que rega o jardim ou horto, precisa


ser buscada no próprio Deus. Primeiro, através da graça
santificante!

Ela, por sua vez, trará as virtudes infusas, que ajudará a


formar todas as virtudes morais e intelectuais e os dons do Espírito
Santo que tornará a alma dócil às inspirações divinas.

Como providenciar mais dessa água? Através da oração!

Já vimos nos capítulos anteriores o primeiro modo de rezar:


através da oração vocal atenta.

Também vimos um exemplo concreto deste modo de oração,


dado por Santa Teresa, através da explicação da oração do Senhor,
ou “Pai Nosso”.

Embora cansativa e extenuante, comparada a jogar um balde


com uma corda para tirar água de um poço profundo (e ainda
esperando que ele não esteja seco, que haja água neste poço),
aqueles que persistem na vida de oração, conseguem passar para o
que a santa chamou de segundo modo de regar o Jardim: “com nora
e alcatruzes, que se tira com um torno” (Livro da Vida 11,7).

Este “trabalho de regar” é o esforço da inteligência para, em


primeiro lugar, manter-se atenta à oração, sabendo “com quem fala
e o que pede, e quem é quem pede a quem” (Castelo Interior, 1M-
1,7).

Verdadeiro trabalho que “nos há de custar”, pois estamos


acostumados a permanecer num estado de contínua distração
perante as coisas espirituais, tão preocupados em ser parte do
mundo material que nos cerca.

Graças à ação de Deus e à constância e persistência, pode-


se encontrar ferramentas que ajudam a estar cada vez mais
presente na oração.

O balde não é mais jogado lá de cima e puxado por uma


corda, ele passa a ser amarrado num sistema de tornos e alavancas
que transforma o “tirar a água”.

Basta girar a alavanca e ele começa a subir! As “alcatruzes”


de que fala Santa Teresa, são vários recipientes presos na corda
que descem vazios e sobem cheios, vertendo a água numa calha
quando chegam no alto do poço.

Embora ainda haja o esforço de fazer girar o sistema, o


rendimento é muito maior! Mas como isso se aplica à oração?

Com essa comparação, a doutora introduz o segundo modo


de rezar, mais perfeito que o anterior: a oração mental ou de
meditação.

Muitos se esquecem, ou simplesmente não sabem, que toda


forma de pensar em Deus é, em si mesma, uma oração. Rezar é
elevar a mente a Deus como vimos no primeiro capítulo deste livro.
Ao meditar sobre sua misericórdia, sua bondade, sua justiça,
a obra da salvação, estamos rezando. Da mesma forma, ao ler um
livro como este, que nos leva para as coisas do alto, ou a vida de
um santo, ou seus escritos, estamos também realizando a oração
mental.

Isso ainda cresce e se aprimora se, em determinados


momentos, deixamos a leitura e pensamos, ou melhor, meditamos,
sobre o que estamos aprendendo e deixando o Espírito Santo nos
interpelar em nosso coração.

Talvez, pelas indicações dadas no parágrafo anterior, você já


tenha percebido que a melhor forma de fazer uma oração mental e a
meditação cristã é tendo um programa de estudos diário das
Sagradas Escrituras.

Isso mesmo! A Lectio Divina nada mais é que uma oração a


Deus, a oração mental.

Perceba, então, como as imagens construídas por Santa


Teresa não são somente adequadas, mas reveladoras! Uma coisa
(difícil, mas necessária) é procurar rezar atentamente. Isso é tirar a
água que está no fundo do poço.

Outra coisa, muito superior e com muito menos trabalho, é


pegar um bom livro espiritual, a Bíblia, uma biografia de santo, seus
escritos e se entregar a uma leitura meditativa: sem pressa,
saboreando o que se lê, deixando que Deus fale ao nosso coração e
ouvindo como Ele mesmo nos orienta e guia a partir da leitura
orante.

Isso também é tirar a água de um poço, mas com a ajuda de


roldanas, manivelas, torno e alcatruzes: livros, santas reflexões, a
própria Palavra de Deus!

Esse segundo modo tem uma eficiência tremenda! Faz se


concentrar, esquecer as preocupações e curiosidades do mundo e
colocar-se, realmente e com proveito, na presença de Deus!
Muitos o utilizam na capela, antes da Adoração ao
Santíssimo Sacramento. E é um treino necessário para tudo o que
virá posteriormente e que são modos muito mais altos de oração e
intimidade com Deus.

O que você está esperando para colocar tudo em prática?


Deus tem pressa! Há muitos frutos a se produzir e Ele quis
depender de nós para que essas obras se realizem no mundo.

Para que nosso jardim ou horto seja a videira de Salomão (Ct


8,11), finalmente aberto a todos, precisamos regá-lo e fazê-lo
produzir.

No próximo capítulo, veremos as dicas de São Pedro de


Alcântara para a oração mental ou meditação. Ele foi um daqueles
que muito ajudaram Santa Teresa D’Ávila a reconhecer e
corresponder às iniciativas místicas de Deus em sua alma.

✽✽✽
A Oração de Meditação

Santa Teresa D’Ávila, a partir de sua experiência pessoal


iluminada pelo Espírito Santo, vai além de perceber os diferentes
modos de regar a alma com a oração e acaba reconhecendo
diferentes graus de oração.

Com maestria consegue diferenciá-los e, desejando ajudar


todos a progredir numa crescente intimidade com Deus, passa a
descrevê-los em suas obras.

Já analisamos sua comparação da alma com um jardim e as


duas primeiras formas de regá-lo: a oração vocal e a oração de
meditação ou mental.

Além da descrição da doutora da Igreja sobre cada um


destes tipos de oração, já vimos um exemplo concreto de como ela
vivia a oração vocal sempre em comunhão com a mental na sua
análise do Pai-Nosso, a oração dominical.

No último capítulo, vimos a descrição da oração mental e a


maneira pela qual a santa a considera como um modo muito mais
eficiente de se unir a Deus. Agora, veremos alguns avisos de São
Pedro de Alcântara (1499-1562) para a oração de meditação.

Isto, não só por ele ser contemporâneo de Santa Teresa mas,


principalmente, ser um dos “letrados” a que a Santa constantemente
se referia com gratidão em seus escritos.

Contrariamente aos diretores espirituais inexperientes, que


colocaram muitos obstáculos aos progressos da doutora, São Pedro
foi um farol a conduzi-la.

Meditação cristã e seu objetivo


Logo de início é necessário esclarecer dois pontos
essenciais: a meditação ou oração mental cristã é uma prática
da Igreja vivida há muitos séculos em nada parecida com as
meditações orientais ou esotéricas da “nova era”.

Ela consiste, basicamente, em mergulhar com atenção e


amor nas Sagradas Escrituras e procurar estudar e refletir sobre
seus ensinamentos.

Em outras palavras, aprofundar-se em seus mistérios


investigando-os sem a pretensão de esgotá-los.

Outro ponto importante é que, embora seja um estudo, seu


principal objetivo não é adquirir conhecimentos e tornar-se
especialista nisto ou naquilo.

Mas, elevar a mente a Deus (definição própria da oração) e


crescer na fé e no amor ao Senhor.

Nesse sentido, a oração de meditação fornece base para um


grande desenvolvimento das virtudes teologais: aumenta a Fé à
medida que desenvolve o conhecimento de Deus, fortalece a
Esperança dando-lhe argumentos para se manter firme e inabalável
e, finalmente, promove a Caridade fazendo o coração maravilhar-se
com as obras e realizações do Senhor de todas as coisas e querer
cada vez mais aproximar-se dEle.

É baseado nisso, e entendendo que ela precisa ser um


caminho para o próximo estágio da oração, a oração afetiva, que
São Pedro de Alcântara promove alguns avisos que levam não só a
desenvolver a mente na oração mas, principalmente, aquecer o
coração e prepará-lo para assumir o próximo nível de oração que
trataremos mais à frente, nos próximos capítulos.

Avisos para a meditação


Primeiro aviso: se o objetivo da oração mental é aproximar-
nos de Deus, tudo aquilo que é frio e sem vida no estudo deve ser
deixado de lado.

Por outro lado, quando um trecho específico promove


reflexão e devoção, não devemos abandoná-lo. Não é a quantidade,
mas a qualidade da meditação que deve ser buscada.

Segundo aviso: a meditação só é verdadeira oração quando


se medita para conhecer, não para ensinar. É muito mais um
trabalho do afeto do que do entendimento por ser uma forma de
intimidade com Deus.

É sobre esse tipo de oração que Santa Teresa se referia ao


dizer: “A oração não consiste em pensar muito mas, em amar
muito”.

Separa-se aqui o trabalho dos professores e estudantes da


vivência dos piedosos e contemplativos: a matéria é a mesma, os
objetivos distintos.

Terceiro aviso: embora o afeto deva ser buscado, não é a


partir da violência interior das emoções que se pode obtê-lo.

A oração de meditação deve ser um olhar simples e


sossegado buscando, sobretudo, estar aberto às inspirações do
próprio Espírito Santo que é puro amor.

Se tal não acontecer imediatamente, paciência, não é algo


que possa ser forçado.

Quarto aviso: para corresponder às moções de Deus, a


atenção não só da mente, mas também do coração é primordial.

Vivo, atento, mas nem muito forte, nem muito frouxo. Nem
cansar a mente com concentração exagerada, nem cansar o
coração buscando sentir o que não se sente.
Mas, é claro, nem deixar a mente solta ao ponto de divagar e
o coração insensível a ponto de não se envolver com o que a mente
medita.

Quinto aviso: não desanimar ou desistir facilmente.


Aguardar “Aquele que virá” faz parte de nossa fé e esperança,
devendo gerar amor, não ansiedade.

Se o Senhor, por fim, não vier, ofereçamos a Ele nosso tempo


como um digno sacrifício sabendo que, de forma alguma, poderia ter
sido melhor aproveitado do que se colocando em sua presença.

Na impossibilidade de se meditar da maneira descrita, o


melhor é tomar um livro de espiritualidade e lê-lo com calma e
atenção.

Sexto aviso: é aconselhável que esse tipo de oração não


seja breve ou dentro de um período muito curto de tempo. A razão
disso é que, geralmente, perde-se muito tempo para se preparar a
mente sossegando a imaginação.

Assim, São Pedro recomenda que se utilize duas horas


corridas por dia ou se faça este tipo de oração mental logo após
outras devoções que, por si só, já acalmem e preparem o coração: a
Santa Missa, a Adoração ao Santíssimo Sacramento, a meditação
do Rosário.

Também existem horários mais propícios que outros, como o


período da madrugada, que permitem maiores frutos em menor
tempo.

Sétimo aviso: quando a alma for visitada na oração, ou fora


dela, pelo próprio Senhor, submeter-se de bom grado e
imediatamente.

De fato, Ele mesmo, sem esforço, pode nos visitar e elevar-


nos a mente e o coração. À semelhança dos discípulos de Emaús,
nosso coração passa a arder (Lc 24,32).
Não se deve desprezar essas visitas inesperadas, pois nos
concede imediatamente o que, às vezes, gastamos uma noite inteira
sem sucesso (Lc 5,5).

Oitavo aviso: por último, e citado como mais importante,


deve-se entender que essa oração busca uma primeira
contemplação de Deus.

Ou seja, discorrer com a inteligência para repousar na


sua presença de amor.

Se a devoção já veio, se o amor já se faz presente, se o afeto


está pleno da presença de Deus, todo o discurso intelectual deve
cessar. Pouco se pode investigar sobre Deus, mas muito se pode (e
se deve) amá-Lo.

Essa oração de meditação tem como objetivo revolver a terra


dura do coração para que brote a verdadeira videira do amor.
Usando o mesmo exemplo teresiano, o santo explica sobre isso que

“É assim que faz o jardineiro quando rega a sua terra a qual,


depois de tê-la enchido de água, suspende o jorro da corrente e
deixa empapar e difundir-se pelas entranhas da terra seca o que
esta recebeu e, uma vez feito isto, volta a soltar o jorro da fonte,
para que receba mais e mais e fique melhor regada.

Mas o que então a alma sente, o que goza da luz, da fartura,


da caridade e da paz que recebe, não se pode explicar com
palavras, pois aqui está a paz que excede todo o sentido e a
felicidade que nesta vida se pode alcançar”.

Vislumbra-se aqui o terceiro modo de oração que já começa


a se manifestar e que é a finalidade da busca da oração mental.

Por isso, no próximo capítulo, examinaremos com Santa


Teresa D’Ávila outros desdobramentos deste segundo modo de se
regar o jardim da alma e que é, consequentemente, uma oração
muito mais frutuosa e eficaz: a oração afetiva.
✽✽✽
Novos modos de oração

Para nosso grande proveito, Santa Teresa D’Ávila dedicou


grande parte de seus escritos a explicar a intimidade da alma com
Deus.

Para tornar claro assunto tão difícil de se esclarecer, utilizou-


se abundantemente das metáforas e procurou, como Jesus, utilizar
algumas parábolas a fim de tornar a espiritualidade acessível a
todos.

Já vimos, até aqui, como ela comparou a alma a um jardim,


os frutos que ele deve dar para tornar-se agradável a Deus e como
o próprio ser humano une-se ao Senhor de todas as coisas para
prover a água que fecundará esse horto fechado.

A água é o Espírito Santo, que se deixa alcançar pela oração,


socorrendo a alma sedenta. Nesse ofício de rezar, existem diversos
graus de perfeição que tornam o colocar-se na presença de Deus
cada vez mais fácil.

No primeiro modo de regar o jardim a água deveria ser


retirada de um poço com o esforço de se jogar e recolher o balde “e
ainda praza a Deus o queira ter [água no poço]” e a isto chamamos
oração vocal.

No segundo modo de regar, permanece a necessidade de se


retirar a água do poço, mas, agora, já contando com um sistema de
roldanas, tornos e engrenagens que fazem o trabalho ser mais
eficiente como na oração mental ou meditativa.

Segundo a santa carmelita, esse método deve ir se tornando


paulatinamente mais fácil, pois o ser humano se acostuma e se
aperfeiçoa nesta maneira de se colocar na presença de Deus.
Por outro lado, também o próprio Deus deseja deixar-se
encontrar (Sb 6,12) e colabora para que esse esforço de oração
seja mais facilmente recompensado, produzindo melhores frutos.

É pois, sem deixar o segundo modo de retirar a água, que


esse serviço torna-se mais simples porque “aqui está a água mais
alta e assim se trabalha muito menos que em tirá-la do poço”.

E ela complementa: “Digo que está mais perto a água,


porque a graça dá-se mais claramente a conhecer à alma” (Livro da
Vida 14,2).

Deste modo, revela-se também o maravilhoso dom de Deus


que procura se entregar ao ser humano que O procura.

Não satisfeito em Se deixar encontrar, Ele corre ao encontro


daquele que O deseja com sinceridade de coração.

Na metáfora teresiana, o poço começa a se encher fazendo


com que o trabalho de tirar água seja simplificado. O balde e as
engrenagens rapidamente percorrem e retornam de uma distância
diminuta trazendo muito mais água.

Essa oração de meditação simplificada, que produz mais


resultado em menos tempo, foi classificada como um terceiro grau
de oração: a oração afetiva.

Permanece sendo um trabalho humano, continua como um


esforço do intelecto em se aproximar de Deus, mas retorna com
muito mais frutos sensíveis numa correspondência quase direta do
divino.

Esse sentir e gozar da presença de Deus, a partir deste grau


de oração, a doutora da Igreja chama mais tarde no Livro das
Moradas ou Castelo Interior de contentos.

Nas palavras da santa, “os contentos me parece a mim que


podem ser chamados os que nós adquirimos com nossa meditação
e petições a nosso Senhor, que procede de nosso natural, ainda que
enfim Deus ajude para isso, que se há de entender em tudo que eu
disser que não podemos nada sem Ele; (...) mas parece que
ganhamos com o nosso trabalho” (Castelo Interior, 4M 1,4).

Segundo o padre Juan Arintero, traduz-se por uma “maior


facilidade de conversar com Deus, e a abundância e diversidade de
afetos que então se consegue sentir” (Graus da Oração, artigo IV).

Assim, mais rápido e com muito mais fruto que anteriormente


na oração de meditação, a alma sente-se elevada e acolhida por
Deus, saboreando sua presença e a grandiosidade do seu amor.

Essa prevalecência da vontade e do afeto sobre a inteligência


ou entendimento é o que caracteriza e, por isso nomeia, esse grau
diferente de oração.

Sua melhor explicação vem dos Evangelhos quando os


discípulos de Emaús, após meditar a Palavra de Deus com Jesus
Cristo, exclamam: “Não se nos abrasava o coração quando ele nos
falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?”

Por mais que a oração afetiva provoque esse abrasamento


do coração, seu fundo permanece sendo a meditação, o segundo
modo de regar o jardim.

Mas é o poço muito cheio, quase a transbordar, que faz com


que o trabalho de tirar essa água seja tão rápido que pareça quase
inexistente.

Essa conjunção entre um esforço humano e, portanto,


ascético, mas com uma pronta resposta de Deus e, portanto,
mística, que faz os teólogos classificarem esse grau de oração e o
próximo como graus de transição entre a oração e a contemplação.

Misturam-se e quase se confundem a atuação do homem e


de Deus.
Mas, como veremos nos capítulos futuros, ainda não se
estabeleceu o terceiro modo de regar o jardim, onde a ação de Deus
é maior que a ação do homem.

O quarto grau de oração, um aperfeiçoamento da oração


afetiva, é chamado de Oração de Simplicidade ou Simples vista
amorosa. Aqui a meditação toda se resume a uma lembrança do ser
amado.

Basta o pensamento em um dos atributos de Deus, sua


misericórdia, sua bondade, sua justiça, a lembrança de sua
benignidade ou qualquer que seja o pensamento que faça a alma
lembrar do seu criador e ela, imediatamente, mergulha em sua
presença. É tomada por uma entrega amorosa.

A atenção que era quase impossível com a oração vocal e


que ainda era difícil de se estabelecer na oração mental,
estabelece-se num instante. O coração dilata-se num momento
rápido e os contentos, como os chama Santa Teresa, são imediatos.

Chama-se de simplicidade, pois basta uma lembrança. Mas


também porque o coração se torna instantaneamente cativo desta
primeira lembrança, tornando-se impossível realizar orações vocais
ou mesmo meditações elaboradas.

Um único olhar, abrangendo um único ponto, é suficiente


para essa oração. Usando a linguagem dos Evangelhos podemos
dizer que a alma “se assentou aos pés de Jesus para ouvi-lo falar”
(Lc 10,39).

Sua vista e sua presença bastam e já preenchem


abundantemente o coração.

Como fizemos anteriormente nesta segunda parte do livro,


depois de explicar a teoria que sustenta e descreve o tipo de oração
apresentado, no próximo capítulo nos deteremos nos exemplos
práticos de como se conquistar e viver esses dois graus de oração
que fazem a transição para uma presença ainda mais sublime de
Deus: a contemplação.

Ela comporá o terceiro e o quarto modo de regar o jardim


fechado da alma.

✽✽✽
Amar a Deus é uma forma de
oração?

Embora o amor a Deus, apropriadamente chamado de


Caridade, seja o maior de todos os dons (1Cor 12,31) e a maior das
virtudes teologais, a única que permanece mesmo na eternidade
(1Cor 13,8), é necessário trilhar um caminho para conquistá-la.

Santo Tomás de Aquino nos ensina que uma é a ordem da


dignidade ou perfeição, outra a ordem da criação ou geração (Suma
Teológica I-II,Q62A4).

A Caridade, perfeito dom e perfeitíssima virtude, precisa ser


gerada a partir da Fé e a Esperança, ou seja, na ordem da geração
ela é posterior às outras duas.[1]

Com a oração não poderia ser diferente. Embora a oração


seja uma elevação da mente a Deus para amá-Lo, louvá-Lo e
glorificá-Lo, as suas primeiras manifestações ou primeiros graus da
oração, precisam estar vinculados a conhecer melhor a Deus. Afinal,
não se ama quem não se conhece!

É assim que a oração vocal utiliza as orações passadas de


geração em geração ou as litúrgicas para apreender e reafirmar as
maravilhas de Deus e, assim, nesse hábito didático, aproximar-se
do Senhor de todas as coisas.

Esse método de aproximação e conhecimento se aperfeiçoa


com a oração mental ou meditativa: conhecê-Lo, entendê-Lo,
mesmo que indiretamente através das suas obras, passa a ser o
principal foco. Mas não o verdadeiro.
O verdadeiro objetivo de todo desejo de conhecer a Deus
precisa ser amá-Lo com todas as suas forças, com todo o seu
coração, com todo o entendimento (Lc 10,27 e Dt 6,5).

Em última instância a oração precisa ser a realização deste


mandamento, um ato de amor, um desejo de permanecer
eternamente junto.

Como Deus não é um objeto e também tem a capacidade de


amar, esse amor é recíproco e tende a fusão do amado com o
amante. Mais do que isso, Ele é o próprio Amor.

O que ama e o que é amado unem-se de tal maneira que não


se vê mais nada além do próprio Amor ou, como somente a poesia
de São João da Cruz pode esclarecer: “Amada já no Amado
transformada”… E isso resume toda a bem-aventurança da
eternidade no céu.

É por esse movimento de amor que Deus não fica esperando


a aproximação do ser humano na oração, mas também sai ao seu
encontro. Quanto mais é “encontrado”, mais oferece-Se, buscando
provocar essa união plena e indivisível.

É por isso que Santa Teresa diz, como vimos no capítulo


anterior, que o poço começa a ter a água mais alta, mais próxima da
boca e, por isso, muito mais acessível e fácil de se buscar.

Pelo mesmo motivo, o desenvolvimento normal da oração


meditativa é a oração afetiva: aquele que buscava conhecer, se
começa a conhecer verdadeiramente, ama. Se passa a amar, quer
imediatamente desfrutar desse amor.

Primeiro porque o amar pertence à vontade e é muito mais


deleitável do que o conhecer que pertence à razão. Depois, porque
como bem lembra Santo Tomás, se no começo é necessário
conhecer a Deus para amá-Lo, posteriormente, somente amando-O
é que podemos verdadeiramente conhecê-Lo.
É o amar e ser amado que nos dá acesso a atributos que o
intelecto jamais conseguiria compreender.

Os que não conhecem essas verdades sofrem na transição


entre a oração e a contemplação e correm o risco de permanecerem
eternos adolescentes na fé: procuram dissecar Deus na oração e no
estudo das Escrituras, mas não conseguem perceber que Ele
mesmo quer transformar esse contato superficial em um
relacionamento real e palpável.

Na prática, o costume da oração meditativa feita com o intuito


de conhecer a Deus para amá-Lo vai, cada vez mais profunda e
rapidamente, gerando os contentos de que fala Santa Teresa e
também já explicamos anteriormente.

Esse deleite interior, essa alegria e satisfação de ver Deus se


revelar através da meditação, só pode resultar num intenso amor e
desejo de estar em Sua presença.

Teologicamente falando, essa é característica marcante da


visita do Verbo de Deus: do mesmo modo que o Filho veio ao
mundo e se fez carne em sua missão visível na história, ele continua
a ser enviado pelo Pai em missão invisível, ou seja, trazendo o
conhecimento de Deus para a alma através da graça santificante.
Por isso Santo Agostinho diz que “O Filho é invisivelmente enviado
a cada um, quando é por ele conhecido e percebido”.

Porém, como saber se fui visitado por uma missão invisível


do Verbo? Que percepção seria essa? A missão se dá quando o
conhecimento que foi adquirido não veio sozinho, mas é um
conhecimento com amor.

Santo Tomás de Aquino esclarece que “não há missão do


Filho por um aperfeiçoamento qualquer do intelecto, mas somente
quando ele é instruído de tal modo que irrompe em afeição de amor,
como se diz [...] no Salmo: ‘Em minha meditação, um fogo se
acende’” (Suma Teológica, I-Q43A5).
Pouco antes, Santo Tomás define o Filho como sendo o
Verbo, mas não qualquer um, ou seja, não qualquer conhecimento,
mas o Verbo que expira Amor.

A verdadeira oração meditativa acessa o próprio Filho


enviado em missão invisível e este, se for realmente o Verbo de
Deus, provoca Amor. Não um sentimento, mas O amor, o próprio
Espírito Santo.

No dia a dia da oração meditativa, esse acesso ao amor se


torna cada vez mais rápido e forte. É a “água alta” que chega cada
vez mais facilmente, com menos trabalho, com mais deleite e
satisfação interior.

Embora Santa Teresa D’Ávila ainda mantenha a classificação


de um “segundo modo de regar o jardim”, os teólogos que
estudaram suas obras procuram dar destaque a essas novas
características dizendo que é um novo modo de oração: a oração
afetiva.

Isso porque o afeto rapidamente assume o controle e,


embora tenha sido gerado pelo intelecto, vence-o e o relega a um
segundo plano.

Com o tempo, desdobra-se uma nova etapa da oração: a


oração de simplicidade. Além do que já tratamos em relação a ela
no capítulo anterior, podemos agora esclarecer um pouco mais.

Essa prática ou hábito da oração, aliada a ação cada vez


mais efetiva de Deus, pois encontra um coração disposto, acelera e
simplifica a oração afetiva e por isso ganha um novo nome.

Acelera porque a alma em oração já entendeu que quer se


encontrar com seu criador e receber dele o amor. Não é mais
estudiosa de Deus, mas quer ser esposa.

Qualquer texto, qualquer passagem, qualquer meditação,


deixa de ser importante em si mesma para se tornar somente o
estopim deste fogo de amor.

Assim, num primeiro momento a alma em oração não quer e,


logo depois, não consegue mais desenvolver a meditação discursiva
como fazia.

Como a sulamita do Cântico dos Cânticos, não quer mais


cuidar da vinha ou pastorear os rebanhos, quer saber onde se
encontra o seu amado para correr para os seus braços.

Também simplifica-se, pois não é mais necessário grandes


reflexões para instaurar o amor mas, às vezes, somente uma
palavra, somente um versículo ou, até mesmo, somente a
lembrança de tanto bem que vem recebendo de seu amado.

Por isso, oração de simplicidade: qualquer coisa, mesmo


pequena, por si mesma, provoca essa intensidade de deleite. Na
linguagem do jardim: a água é tão acessível que facilmente é
tomada do poço, é tão doce e refrescante que somente um pouco
dela rega e alimenta a terra sedenta por muito tempo.

É, portanto, esse amor a Deus que se derrama numa forma


ainda mais perfeita de oração.

Muitos, infelizmente por pura ignorância, lutam contra essa


oração querendo restaurar o estudo, a oração discursiva, a oração
vocal, a meditação sobre o Evangelho ou outras formas de pensar
em Deus.

A oração afetiva e, depois, a oração de simplicidade, são


uma espetacular transição para um modo ainda mais perfeito de
estar em união com Deus. Precisam ser aceitas e cultivadas como o
verdadeiro presente que são.

Afinal, se Deus quer derramar o Seu amor sobre você, a sua


meditação ou estudo pode muito bem esperar por um outro
momento, não é mesmo?
Ou você considera normal rejeitar a tão esperada noiva que
se apresenta para o casamento porque está ocupado demais
tentando levantar os dados da sua biografia e entender sua história?

Infelizmente, muitos ainda preferem estudar tudo a respeito


de Deus em vez de estabelecer uma verdadeira relação com Ele,
quando Ele mesmo se apresenta.

No próximo capítulo, avançaremos para o terceiro modo de


regar o jardim: água abundante, com pouco esforço, será que
finalmente o céu desceu sobre a terra?

✽✽✽
Terceiro modo de regar o jardim

A vida interior, ou de oração, tem como objetivo promover


um contínuo contato com Deus. Esse relacionamento entre o ser
criado e o seu criador aprofunda-se através de um crescimento da
graça santificante.

É ela que permite a intimidade de Deus com a alma e a


inabitação da Santíssima Trindade.

Por isso, nesta segunda parte do livro, temos analisado, com


Santa Teresa D’Ávila, os diversos modos deste contato de Deus
com o ser humano em oração e como, segundo a doutora da Igreja,
pode ser comparado ao regar de um jardim ou horto sedento por dar
os frutos das boas obras.

Agora, veremos o terceiro modo de regar o Jardim. Se os


dois primeiros modos equivalem a retirar a água de um poço com
maior ou menor dificuldade, nas palavras de Santa Teresa, o
terceiro modo de irrigação vem “de um rio ou arroio: deste modo se
rega muito melhor, que fica mais farta a terra de água e não se tem
necessidade de regar tão amiúde, e é menos trabalho do hortelão;”
(Livro da Vida, 11,7).

Ou seja, a água é muito mais abundante se utilizarmos um rio


ou riacho para levar água até o horto ou jardim.

O sistema é muito conhecido: cava-se um conjunto de canais


em todo o local e, utilizando-se do próprio desnível em relação a um
riacho, controla-se a entrada de água nos canais com uma pequena
comporta.

As vantagens são evidentes! Se existe um trabalho inicial de


cavar todo o percurso, não há o esforço diário de puxar baldes e
baldes de água manualmente. A vazão da água se torna muito mais
abundante e rápida, percorrendo todo o sistema com fartura e
rapidez e fazendo com que todo o jardim seja contemplado.

Realiza-se aqui a palavra do salmista: “como a árvore


plantada nas margens das águas correntes: dá fruto na época
própria. Sua folhagem não murchará jamais” (Sl 1,3).

Já percebemos como a oração de meditação foi se


sublimando e simplificando cada vez mais. Não são necessários
mais grandes discursos, extensos estudos ou muita preparação. A
alma se habitou a, rapidamente, buscar a presença de Deus e
deleitar-se em sua proximidade. Segundo Santa Teresa, a água já
está alta no poço! É fácil retirá-la!

Este é o máximo que o ser humano pode chegar com seu


próprio esforço, enquanto usufrui da correspondência ativa de Deus.

No entanto, para Deus, isto está muito longe de ser o máximo


possível em possibilidade de união e derramamento de amor. Ele, e
somente Ele, pode proporcionar ainda mais água à terra da alma
que Ele mesmo criou como sedenta.

Até então a fonte da oração era natural: o ser humano em


busca de Deus. Inicia-se aqui as fontes sobrenaturais da oração,
onde Deus age diretamente.

Essa oração sobrenatural, que examinaremos com mais


cuidado nos próximos capítulos, também é conhecida como oração
infusa (pois é “colocada dentro” pelo próprio Deus) ou
contemplação.

Na metáfora do jardim, não é mais necessário buscar a água


por seu próprio esforço, agora existem canais, aquedutos, onde a
água é enviada pelo próprio Deus, verdadeira fonte de toda graça
(Tg 1,17). Ao homem, basta abrir a comporta: colocar-se em oração.
Mais tarde veremos que, sendo Ele mesmo toda a fonte,
Deus assume o comando desta comporta inúmeras vezes,
enchendo a alma mesmo quando esta não está em seus momentos
pré-determinados de oração pessoal.

Santa Teresa trata desta oração de recolhimento infuso em


várias de suas obras, explicando um pouco em cada uma. Escreve
no “Livro das Moradas ou Castelo Interior” (4M 3,9) que “Assim
como se entende claro um dilatamento ou alargamento na alma, à
maneira de como se a água que mana de uma fonte não tivesse
corrente, senão que a mesma fonte estivesse lavrada de uma coisa
que quanto mais água manasse maior se fizesse o edíficio, assim
parece nessa oração”.

Ou seja, essa nova maneira de regar a alma, promovida pelo


próprio Senhor de todas as coisas, não só a enriquece e alimenta,
mas conduz ao seu alargamento e melhoramento.

À medida que a água passa, ela mesma aumenta a


quantidade e abrangência dos canais, promove nossas virtudes,
fortalece as existentes. Ao homem, “já lhe parece que tudo poderá
em Deus”.

Nos escritos das “Relações”, ela explica que “A primeira


oração que senti, a meu parecer, sobrenatural (que eu chamo o que
com minha indústria nem diligência não se pode adquirir ainda que
muito se procure, ainda que se disponha para isso e deva-se fazê-
lo), é um recolhimento interior que se sente na alma, que parece
que ela tem lá outros sentidos, como cá os exteriores, que ela em si
parece querer-se apartar-se dos bulícios exteriores; [...] Aqui não se
perde nenhum sentido nem potência, que tudo está inteiro, mas o
está para empregar-se em Deus” (Relações 5,3).

Essa oração de recolhimento infuso (ou sobrenatural) é,


portanto, um momento onde nota-se que Deus estabelece uma
conexão tão firme com a vontade da alma que ela se sente atraída e
ligada. Recolhida em si mesma, toda atenta a Deus.
Como tão bem esclarece Santa Teresa, não existe aqui
nenhuma forma de inconsciência ou transe, “tudo está inteiro”, todos
os sentidos permanecem ativos e atentos.

Na prática, a alma percebe que está toda recolhida, pronta


para estar na presença de Deus e rezar, enquanto também entende
que isso não é obra dela.

Por mais que sempre tenha se esforçado para estar


concentrada na oração, percebe que agora o conseguiu não por
esforço próprio, mas por graça.

Isso é claramente sentido quando à sua volta os barulhos se


multiplicam, mas nada é capaz de retirar sua atenção amorosa, se
ela não o permite.

Santa Teresa compara nossos sentidos como ovelhas


dispersas que, inesperadamente, escutam o assovio do Bom Pastor
e, ordenadamente, voltam-se com atenção total.

A recomendação feita às suas filhas espirituais (Caminho de


Perfeição 29,7) de procurar assenhorar-se do próprio ser,
ganhando-se para si mesmo, aproveitando-se dos sentidos para o
interior, para se aproximar cada vez mais de Deus, falando com Ele,
ouvindo-O, é agora plenamente realizado, sem esforço, pelo próprio
Deus na oração de recolhimento infuso.

Que fique registrado, porém, o que ela mesma procura


ensinar: Deus dá esses graus de oração àqueles que por muito
tempo se esforçaram e buscaram.

O que, traduzindo para a linguagem que estamos utilizando


aqui, significa que: a oração infusa, embora seja um dom gratuito de
Deus, só é recebida, e recebida frutuosamente, depois de uma boa
preparação nos fundamentos anteriores que exigem o esforço
persistente do homem[2].
Com a atenção atada ou ligada a Deus, o cristão está pronto
para receber grandes coisas. Acabaram-se as distrações pelo
caminho, a água desperdiçada no trajeto entre o poço e o jardim.

Acabaram-se os intervalos de rega, a intermitência entre a


pouca água jogada no terreno e o tempo de enchimento de um novo
balde.

A água é fluente e ininterrupta, ela mesma abre novas


passagens, promovendo o crescimento de áreas no jardim que o
jardineiro nem sequer sabia que existiam!

Diante de tanta novidade trazida por este novo modo de


regar, diante de tanta eficácia percebida, será que ainda pode-se
falar em oração?

Afinal, se a oração é a elevação da mente a Deus, vê-se que


agora é o próprio Deus que desce para protegê-la e incentivá-la. E,
diante de tanta novidade, inicia-se uma nova forma de estar em
oração, tão superior que recebe um novo nome: contemplação.

No próximo capítulo procuraremos examinar com mais


detalhes do que se trata.

✽✽✽
O que é a contemplação?

Santa Teresa D’Ávila não foi a primeira a explicar a oração


dividindo-a em diversos estágios. Desde os padres do deserto no
século IV, passando pelos vitorinos do século X, aos doutores da
Escolástica no século XII, sempre se entendeu e divulgou que
existiam diversos graus na vida espiritual e, portanto, na oração.

A divisão clássica e simplificada expõe sempre 3 graus: os


principiantes, os proficientes (ou experientes) e os perfeitos.

No entanto, como acabamos de ver, em determinado


momento da vida espiritual a oração se altera tão profundamente
que torna-se coisa distinta e, por isso, recebe outro nome:
contemplação.

Na metáfora de Santa Teresa sobre a rega do jardim ou horto


da alma, deixa-se de buscar água no poço e passa-se a recebê-la
de modo muito mais fácil e eficiente por meio de aquedutos ou
canais.

Enquanto a definição tomista de oração nos diz que ela é


todo um trabalho humano, isto é, uma elevação da mente a Deus, a
contemplação, também segundo Santo Tomás é uma “simples
intuição da verdade que termina em um movimento afetivo” (Suma
Teológica II-II Q180A3).

Ou seja, a própria Verdade se apresenta e, se seu ponto de


contato é logicamente o intelecto, ela não pára por aí, mas provoca
a vontade, gerando amor.

Portanto, no caso da contemplação gerada pela vida interior,


é uma ação de Deus que atinge a alma.
Mas, a palavra contemplação também pode se referir a
outras realidades e não somente a essa, que é a mais elevada de
todas, da intervenção de Deus.

Vamos diferenciar então os graus da contemplação para


entendermos melhor esta que particularmente nos interessa e é
sobrenatural.

Pode-se definir como contemplação a observação, com


admiração, de um espetáculo grandioso. Nesse sentido,
contemplamos a imensidão e beleza do mar, das montanhas, ou
contemplamos obras de arte e arquitetura. Este é o nível mais baixo
de contemplação: a estética.

Como diferenças básicas entre olhar e contemplar,


poderíamos dizer que o olhar se detém nisso ou naquilo, enquanto o
contemplar procura abarcar todas as coisas ao mesmo tempo.

No caso da contemplação estética, cada detalhe pode (e


deve) ser interessante ao olhar, mas, de algum modo, a junção de
todos estes detalhes provocam um conhecimento maior do que a
soma das partes. Faz parte da contemplação essa admiração ou
êxtase próprio daquele que abarca muitas coisas ao mesmo tempo.

É por isso que o objeto que é contemplado, seja paisagem ou


obra humana, não pode ser descrito com poucas palavras ou, até
mesmo, não existem palavras que bastem e o abarquem.

O mais próximo da explicação de uma contemplação estética


é, portanto, uma poesia ou música sobre as belezas naturais, ou a
descrição dos sentimentos e sensações levantadas em sua
presença. Descrições que simplesmente não explicam nada, mas
buscam evocar a mesma presença contemplativa em quem ouve ou
vê.

Um segundo grau na contemplação é a contemplação


intelectual. Própria dos filósofos e matemáticos, é aquela obtida
somente por reflexão.
Está relacionada à compreensão de estruturas mentais antes
inacessíveis ou teoremas geométricos e matemáticos. A famosa
exclamação “Eureka!”, “Achei!”, do grego Arquimedes, é seu
principal modelo.

O importante é que a causa (uma visão totalizante,


abrangente) e o efeito (êxtase e alegria) são os mesmos da
contemplação estética, ou de qualquer contemplação.

Acima da contemplação intelectual, temos a contemplação


teológica. Os princípios são os mesmos, a compreensão de algo
abrangente, com o todo muito superior às partes também. Idêntico
são os efeitos quando se estabelece a contemplação.

A diferença está no objeto que a provoca: não é mais a


observação estética ou a intelectual referente a coisas deste mundo,
mas Deus, sua revelação ou ação.

É superior à intelectual pois o “objeto” é muito superior,


passamos do natural para o sobrenatural, do físico para o
metafísico.

Por fim, chegamos àquela que nos interessa: a contemplação


sobrenatural. Esta não só tem como objeto o próprio Deus, mas é
causada por Ele.

Na acepção de Santa Teresa, esta é a água viva do Espírito


Santo que se derrama através de canais e aquedutos, nos
principiantes e proficientes, e como a própria chuva que rega o
jardim, nos perfeitos.

Nas palavras da doutora: “Na mística teologia [...] pára de


trabalhar o entendimento, porque Deus o suspende. [...] De modo
algum devemos pensar em nós mesmos o suspender, digo que não
se faça isso, nem de trabalhar com ele, porque ficamos bobos e
frios [...]. Ocupar as potências da alma e pensar fazê-las estar
quietas é desatino” (Vida 12,5).
Deixa claro que a contemplação sobrenatural, ou infusa, é
obra do próprio Deus e que é mais do que tolice, é perigoso, querer
provocá-la por nós mesmos. O que é e como ela acontece então?

De uma maneira direta, a contemplação infusa é a suspensão


do intelecto diante de uma verdade sobrenatural. Incapaz de
abarcá-la, permanece admirado e travado, e embora não consiga
agir por si mesmo, torna-se passivo desta mesma ação, sendo
movido e, este mesmo movimento, também provoca a vontade pelo
amor.

Complicado? Ajudará se buscarmos mais de suas


definições...

Ricardo de São Vítor, em seu livro “Benjamin Maior” assim


define a contemplação: “Um olhar livre e penetrante do espírito
suspenso de admiração diante dos espetáculos da divina
Sabedoria”.

Coloca-se aqui em relevo que não é obra do próprio intelecto


(por isso livre), que é muito mais profundo que uma mera apreensão
normal das faculdades (penetrante) e que toca a vontade (suspenso
de admiração) provocado pelo próprio Deus ou a divina Sabedoria.

São Francisco de Salles, no seu “Tratado sobre o Amor de


Deus” atesta: “A contemplação é uma visão simples, livre,
penetrante e certa de Deus ou das coisas divinas que procede do
amor e tende ao amor”.

Salienta aqui que é sobre Deus ou sobre as coisas divinas e


que tem o Amor como ponto principal pois provoca o amor. Mas
também lembra que, embora intelectual em sua essência, se é
provocada por Deus, também é provocada pelo Amor em pessoa.

A partir do que vimos, se fôssemos simplificar ao máximo a


definição de contemplação, poderíamos utilizar as palavras de São
Paulo na carta aos Gálatas (Gl 5,6): a contemplação é a Fé
operando através da Caridade.
Ou, como atesta São João da Cruz (Noite II, 18,5): “A
contemplação é ciência de amor, a qual é amorosa comunicação
infusa de Deus e que juntamente vai ilustrando e enamorando a
alma até elevá-la de grau em grau até Deus seu Criador”.

É, pois, uma comunicação de Deus na alma (que se encontra


em estado de graça) porque é motivada pelo Amor e produz Amor,
embora sua operação também passe pelo intelecto.

Mas como é infusa, não passa pelas faculdades naturais do


intelecto, agindo, isto sim, através das virtudes teologais e dos dons
santificantes do Espírito Santo. Devido a essa operação, é
santificante também, aumentando e inflamando a virtude teologal da
Caridade.

Entre seus efeitos, um desejo ardente de se unir a Deus, mas


também grande quietude, paz e contentamento no espírito.

E, por isso, o Beato Maria-Eugênio do Menino Jesus explica


que “da obscuridade do mistério brota, mediante os dons do Espírito
Santo, uma claridade confusa, um não sei quê que faz encontrar
paz e sabor no mistério, que aí atém a fé ou a reconduz, libertando-
a das operações discursivas da inteligência para lhe fazer encontrar
repouso e auxílio neste ultrapassar toda a luz distinta.

Pelos dons do Espírito Santo, produziu-se uma intervenção


de Deus que aperfeiçoou a fé no seu ato teologal, transformou-a em
fé viva e produziu a contemplação sobrenatural.”

São João da Cruz, no segundo livro da “Subida do Monte


Carmelo” (13,2-4) esclarece com três sinais a evidência que Deus
quer mergulhar a alma, que já avançou muito em oração, na
contemplação infusa:

“Primeiro sinal é não poder meditar nem discorrer com a


imaginação, nem gostar disso como antes; ao contrário, só acha
secura no que até então o alimentava e lhe ocupava o sentido.”
Isto é, o intelecto encontra-se bloqueado e insensível às
operações de oração meditativa que fazia com facilidade e
encontrava contentos como os descreveu Santa Teresa D’Ávila.

“Segundo é não ter vontade alguma de pôr a imaginação nem


o sentido em coisas particulares, sejam exteriores ou interiores.”

Neste segundo sinal, São João da Cruz esclarece que, se no


primeiro sinal o intelecto não consegue se aplicar na oração e achar
alegria nisso, também não consegue nada disso em coisas fora da
oração.

Não se trata, então, de uma aridez espiritual que impedia a


oração, mas de um completo e complexo travamento das operações
intelectuais que começam a ser assumidas pela virtude da fé e os
dons santificantes para que a ação de Deus se concretize.

“O terceiro sinal, e o mais certo, é gostar a alma de estar a


sós com atenção amorosa em Deus, sem particular consideração,
em paz interior, quietação e descanso, sem atos e exercícios das
potências, memória, entendimento e vontade, ao menos discursivos,
que consistem em passar de um a outro; mas só com a notícia e
advertência geral e amorosa já mencionada, sem particular
inteligência de qualquer coisa determinada.”

E, finalmente sintetiza com um compêndio do que vimos


neste artigo sobre a contemplação: Deus se comunica à alma, não
com frases ou palavras (Sl 18), mas capturando sua atenção e,
enquanto a impede de se dedicar, mesmo à oração, através de suas
faculdades normais, infunde amor deleitoso que causa paz,
quietação e descanso.

São João da Cruz (2 Subida, 14,2) também chama a


contemplação de comunicação (do latim “notitia”), geral e
amorosa.

Trata-se, evidentemente, de um contato feito por Deus


(comunicação), mas de forma que não é temática, ou específica,
ou direta, mas geral.

E, se é claro que a causa é Deus, embora seu modo seja


confuso (comunicação geral), seu efeito é claríssimo, causando um
aumento no Amor e, por isso, amorosa.

No próximo capítulo, veremos como a contemplação se


desenvolve a partir dos primeiros graus da oração infusa mística,
colocando em prática esse terceiro modo de se regar o jardim da
alma.

✽✽✽
Oração Mística e seus primeiros
graus

Em vinte séculos de cristianismo são muitas as descrições


de orações extraordinárias onde Deus, por Sua iniciativa e vontade,
eleva a alma a um contato e intimidade superiores.

Este estado geral, por ocorrer de forma passiva para a alma,


ou seja, pela ação de Deus e não sua, recebeu o nome de
contemplação.

Santa Teresa D’Ávila, descreveu várias de suas experiências


contemplativas mas, indo mais além, também categorizou e
procurou ordená-las uma a uma.

Deste modo, na metáfora do jardim ou horto que temos


estudado, as duas primeiras formas de regar são as orações, as
duas últimas, as contemplações.

Passemos, agora, a entender esses graus de orações


místicas ou contemplações que se desenvolvem na alma quando
não é mais seu esforço que busca prover o jardim sedento de água,
mas a própria iniciativa de Deus em regá-lo.

O princípio geral da contemplação, como vimos no último


capítulo, permanece. O que muda é sua intensidade. A princípio
suave e quase imperceptível, depois tornando-se um vínculo tão
forte quanto inegável.

É devido a essa suavidade inicial que Santa Teresa (assim


como São João da Cruz) alerta para que aquele que chegou a tal
estado não se engane achando que nada acontece.
De fato, ela diz que “Logo lhes parece ser perda de tempo, e
tenho eu por muito ganho esta perda” (Vida 13,11).

Ou seja, a alma que não consegue mais meditar e realizar


suas orações costumeiras, inebriada por essa presença amorosa de
Deus que, há um só tempo, por um lado a requisita enquanto por
outro a impede de se dedicar a outras coisas, teme estar perdendo
tempo.

Isso acontece pois, nos primeiros graus de oração mística,


embora o cristão perceba a ação de Deus na contemplação, quando
a deixa tem a forte impressão de que pode estar se enganando ou
que pode estar sendo enganado.

Um cálculo rápido sobre todas as práticas espirituais que


realizava e as que agora não consegue realizar, fortalece essa
dúvida.

Um engano que só será desfeito mais para frente, à medida


que a vida espiritual se aprofundar. Chegaremos lá! Comecemos,
por enquanto, pela primeira das orações místicas: a oração de
Recolhimento Infuso.

Segundo Santa Teresa, este é “Um recolhimento que também


me parece sobrenatural, porque não é estar nublado nem fechar os
olhos, nem consiste em coisa exterior, posto que, sem querê-lo, faz-
se isto de fechar os olhos e desejar a solidão: e sem artifício parece
que se vai esculpindo o edifício para a oração que dissemos”
(Castelo Interior 4M 3,1).

De fato, é sobrenatural pois a alma consegue se recolher em


oração de um modo que nunca conseguiu antes e que, claramente,
entende que não seria possível mesmo com muito treino. Por isso
“infuso”, colocado dentro por Deus mesmo.

É perceptível que “sente-se notavelmente um recolhimento


suave no interior” (Castelo 4M 3,2) onde, embora aparentemente
nada tenha mudado, aquele que reza consegue perceber uma total
concentração e permanência no interior de si mesmo.

Aqueles incontáveis momentos (talvez anos) de inquietude ao


se colocar em oração, simplesmente desaparecem e a própria
experiência anterior das tentativas frustradas em se acalmar e
concentrar colaboram para essa percepção de que é uma graça
sobrenatural.

O recolhimento infuso proporciona uma conexão direta com


Deus que, embora possa ser rompido a qualquer momento pela
vontade livre, mostra-se sólido e eficaz.

A contemplação ainda é obscura, árida e insípida. Isto é,


ainda é uma comunicação geral e amorosa como ensina São João
da Cruz, não proporciona um esclarecimento sobre si mesma, não
fornece novos sabores. Só, inegavelmente, está lá e, do mesmo
modo, claramente não poderia ser produzida pelo ser humano.

Essa oração, verdadeira água enviada por Deus num


momento e sem trabalho algum, é o início da união plena que se
formará mais adiante. Nestes primeiros graus ou fase conformativa,
irá anexando uma a uma cada vez mais as faculdades e potências
da alma.

No recolhimento infuso, é a vontade que é atraída por Deus.


Por isso, esse assombro da inteligência ao perceber que, sem a sua
participação, a comunicação aconteceu.

E exatamente por não envolver a inteligência e nem seus


atributos da memória e da imaginação é que é possível uma análise
da mente durante essa primeira contemplação.

Também, ainda é possível as terríveis divagações da


imaginação. Essas “distrações”, se por um lado são ruins, pois faz a
alma se dividir sob si mesma, por outro lado atestam que a origem
desta movimentação-comunicação não é do homem, mas de Deus:
mesmo distraindo-se ou divagando com a mente, a união com Deus
não acaba e nem é interrompida.

Trata-se, portanto, de um convite de Deus para o


recolhimento e o concentrar-se em si mesmo. Convite que Ele
mesmo realiza e que prepara a alma para as orações superiores
que virão.

Como os doutores da Igreja, também o padre e teólogo Royo


Marín alerta que nada disso pode ser produzido pelo esforço
humano e recomenda para quem ainda não recebeu semelhante
graça: “Guarde-se, todavia, de forçar as coisas. Deus chegará em
sua hora” (Teologia da Perfeição Cristã 558).

Os que se tornam dóceis ao recolhimento infuso, Deus


acrescenta um novo grau de contemplação mística: a Oração de
Quietude.

Santa Teresa, trata dessa oração em várias de suas obras. É


a água que finalmente transborda vindo de uma fonte subterrânea e
escondida (Castelo 4M 2,4); é pôr a alma em paz e na presença do
Senhor (Caminho de Perfeição 31).

Ou, como bem explica São João da Cruz (Noite Escura II


2,12) é quando finalmente une-se em contemplação o
entendimento, juntando-se com a vontade que já estava cativa
desde a oração anterior.

Essa é a grande novidade nessa nova contemplação: o


entendimento também começa a se submeter à passividade
proposta por Deus. A noite ativa dos sentidos, como a nomeia São
João da Cruz, se adensa.

Santa Teresa a descreve assim: “Deste recolhimento vem


algumas vezes uma quietude e paz interior muito generosa, que a
alma fica de modo que não lhe parece faltar nada, mesmo assim o
falar lhe cansa, assim como rezar e meditar; não queria senão
amar” (Livro das Relações 1).
Ocupando mais potências, os frutos também se tornam mais
visíveis.

Por isso a santa refere que aquilo que anteriormente era


somente uma concentração (recolhimento infuso), agora provoca
também paz, quietude, repouso, refrigério, fortaleza e felicidade:
“Sente-se grandíssimo deleite no corpo e grande satisfação na
alma” (Caminho de Perfeição 31,2-3).

São Bernardo, ao comentar esse tipo de contemplação diz:


Rara hora, brevis mora!

Quer com isso dizer que, embora breve, grande proveito traz
essa união. Embora curta, é ansiosamente esperada.

Compara-se ao repouso do meio-dia, exercitado


principalmente na Itália e na Espanha, um momento de refazer as
forças antes de voltar à luta cotidiana.

Ou, usando a imagem do Cântico dos Cânticos, após receber


esse influxo de amor divino que produz extremos deleites (Ct 1,1-4),
a alma sente-se ansiosa por encontrar esse amor e gozá-lo plena e
permanentemente, por isso quer saber onde ele está ao sol do
meio-dia (Ct 1,7).

Na oração de quietude, Deus finalmente começa a introduzir


a alma em seu Reino. A alegria e deleite da posse do verdadeiro
amor começa, portanto, a ser sentida. Embora seja por pouco tempo
ainda, é o suficiente para despertar grandes desejos de união e para
não permitir que as divagações da imaginação ou da memória
prejudiquem por demais esta contemplação.

Por último, a contemplação plena, onde todas as potências


estão alinhadas, recebe o nome de oração de união.

A partir daí, como veremos nos próximos capítulos, começará


a fase transformativa, onde não é mais a quantidade de potências
unidas em contemplação que faz a diferença, já que a oração de
união atinge a plenitude delas, mas o tempo de permanência nessa
união.

Essa união total, é assim descrita por Santa Teresa no


“Castelo Interior” (5M, 2): “Fixa Deus a Si mesmo no interior daquela
alma de tal maneira que quando torna a si de nenhum modo pode
duvidar que esteve em Deus e Deus nela”.

Acabaram-se aqui as dúvidas: inteligência e vontade, junto


com todas as demais faculdades interiores, estão unidas.

É o momento em que vida ativa e contemplativa estão em


consonância. Já é possível dedicar-se a todas as obras exteriores
mantendo uma íntima conexão com Deus.

Claro, ao contrário do que ainda virá, essa união é atual mas


não é sensível. Ou seja, a presença de Deus não é sentida
enquanto se exerce outras atividades exteriores, mas basta um
minuto de recolhimento interior para perceber que ela não se
desfez, está presente.

Nos momentos de pura oração de união, é impossível


imaginação ou memória importunarem. Finalmente, aqui, acabam-
se as distrações na oração.

Pouco a pouco a união da inteligência e da vontade irão se


fortalecer no contato com Deus. E, é por isso que este tipo de
contemplação, segundo Santa Teresa “não cansa, refaz” (Livro da
Vida 18,11) e que vemos, na prática, tanto Jesus nos Evangelhos,
como inúmeros santos na história, permanecerem noites inteiras (ou
dias) em oração contemplativa e voltarem completamente
revigorados.

Como temos feito ao longo da segunda parte deste livro,


intercalando a explanação teórica com exemplos práticos, veremos,
no próximo capítulo, como Santa Teresinha do Menino Jesus e da
Sagrada Face pode nos esclarecer melhor sobre essa intensa e
maravilhosa vida mística.
✽✽✽
Santa Teresinha e o abandonar-se a
Deus

Santa Teresa D’Ávila utiliza de forma brilhante o exemplo da


chuva para representar a oração puramente mística.

Para aquele que teve todo o trabalho de cuidar, aprimorar e


purificar o jardim da alma, buscando água no poço através da
oração de meditação ou preparando os canais de irrigação pelas
orações de transição entre natural e sobrenatural, Deus finalmente
envia a água do Espírito Santo, agora sem esforço algum.

Mas, quando se fala em oração mística ou contemplação,


geralmente a imaginação corre para compor coisas espetaculares:
levitações, êxtases, raios de luzes ou visões de anjos à volta
daquele que reza.

Esses fenômenos, raros e pontuais, são manifestações


extrínsecas da vida de oração, ou seja, são acréscimos que podem
ou não ocorrer.

Mais do que isso, são fenômenos que normalmente não


ocorrem e, se ocorrem, em nada acrescentam à presença de Deus
ou à vida de santidade da pessoa.

É a água que cai do céu e não os trovões, o espetáculo dos


raios, nem o barulho do vento, que refresca, sacia e dá vida à terra.

Do mesmo modo, é o contato íntimo com Deus e não as


locuções interiores, as visões intelectuais ou os fenômenos externos
ou extrínsecos que santificam aquele que contempla.
Por isso, e com a finalidade de se trazer um exemplo
concreto desses primeiros graus de contemplação mística de que
tratamos, utilizaremos aqui o exemplo de outra Teresa: Santa
Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face, a doutora do Amor.

Uma santa de uma profundidade excepcional mas,


aparentemente, sem os fenômenos místicos exteriores.

De fato, somente após a sua morte e a divulgação de seus


escritos percebeu-se que, embaixo de uma aparência comum,
escondia-se uma perfeita esposa de Cristo, experiente em viver
unida a Ele em estreita intimidade.

Ao confrontar seus escritos com a de sua fundadora, Santa


Teresa D’Ávila, temos como que um espelho onde aquilo que é
proposto pela “Teresona”, é colocado em prática pela Teresinha.

A título de exemplo, confira a devoção de Santa Teresinha


pela Sagrada Face de Cristo e o conselho de Santa Teresa no
“Caminho de Perfeição” (26,9) sobre se manter sempre à mão uma
imagem de Nosso Senhor.

Ou, no mesmo livro, o capítulo 15 que tem como subtítulo


“Que trata do grande bem que há em não desculpar-se, ainda que
se vejam condenar sem culpa” e a narrativa de Santa Teresinha
sobre o vaso quebrado atrás da janela no “Manuscrito A” (74v) de
“História de uma Alma”.

Por último, não é possível deixar de citar a estreita relação


existente entre a “Pequena Via” de Santa Teresinha e a “segunda
via” ou modo de se cruzar as quintas moradas de Santa Teresa em
seu “Castelo Interior”.

Novamente um paralelo não entre mestra e discípula, mas de


doutora e doutora, duas gigantes da vida espiritual mostrando o
verdadeiro caminho, verdade e vida: Cristo.
Outro fato relevante, que diz muito da extensão da vida
interior de Santa Teresinha, é sua confissão de que entre os 17 e 18
anos não tinha outro alimento espiritual além dos livros de São João
da Cruz, o doutor místico (História de uma Alma, Man A, 83f).

Suas mais de 80 citações de São João da Cruz em seus


escritos alertam para a profundidade desta convivência.

Mas, colocada as bases sólidas de sua espiritualidade e a


sua profunda dimensão interior, como Santa Teresinha pode nos
ajudar a entender as orações místicas?

A Pequena Via e a vida de oração


Dentre as diversas explicações sobre a contemplação mística
que vimos no capítulo “O que é a Contemplação?”, relembro aqui
trechos que falam sobre “uma claridade confusa”, uma “amorosa
comunicação infusa de Deus e que juntamente vai ilustrando e
enamorando a alma” e “uma visão simples, livre, penetrante e certa
de Deus ou das coisas divinas que procede do amor e tende ao
amor”!

Como corresponder a tal comunicação amorosa? Como vivê-


la na prática? Santa Teresinha nos dá algumas dicas concretas.

Afinal, se a contemplação é um influxo divino sobre o ser


humano, como correspondê-la? Como não negá-la? Em suma,
como auxiliar Deus nesse processo de santificação invés de opor-
Lhe resistência?

Em primeiro lugar, entendendo que, se Deus começa a unir a


vontade, a inteligência e a memória é para dignificá-las e não
corrompê-las.

A confiança absoluta em Deus é, portanto, o primeiro traço


de quem se aventura pela contemplação. Ou, nas palavras de Santa
Teresinha, “a esperança cega que tenho em sua misericórdia”
(Obras Completas de Santa Teresinha, Carta 197).
Uma confissão de que, mesmo em meio aos sofrimentos,
nada pode superar ou diminuir a alegria de saber-se nas mãos de
Deus.

Esse júbilo deve ser vivido mesmo quando a oração mística


parece nos afastar de Deus em vez de nos aproximar: “Se nada
mais tiver além de puro sofrimento, se o céu estiver tão escuro que
eu não veja nenhum espaço claro, pois bem! Faço disso minha
alegria…” (Obras…, Caderno Amarelo, 27 de maio,6).

Ou quando a alma percebe que não tem mais possibilidade


de se elevar sozinha e que, em tudo, depende da ação de Deus.

Esse caminho da oração mística através das “noites”


narradas por São João da Cruz, precisa, em segundo lugar, se
revestir de alegria no abandono: “O passarinho quer voar para
esse Sol brilhante (...), porém, não está em sua mínima capacidade!
O que será dele? Morrer de tristeza por se ver tão impotente?... Oh
não! O passarinho nem vai ficar aflito. Com audaz abandono, quer
ficar fitando seu divino Sol; nada poderá assustá-lo (...) sabe que
além das nuvens, seu Sol continua brilhando, que seu brilho não
poderá eclipsar-se” (Obras…, Manuscrito B, 5f).

Da escola de São João da Cruz ela aprendeu que “Obtém-se


de Deus tanto quanto se espera d’Ele” (Noite Escura II, 21) e, por
isso, aprende a esperar tudo.

Mesmo contra todas as evidências exteriores e todos os


sentimentos interiores, a contemplação deve ser vivida em
confiança que se traduz em alegria e gera o abandono.

No entanto, nesse caminho incerto, feito na escuridão, alguns


cuidados sempre são necessários.

Santa Teresinha alerta que, nesse percurso de união, deve-


se sempre estar atento para não buscar a si mesmo, fazendo sua
própria vontade (Obras…, Caderno Amarelo, 25 de julho,13), nem a
própria satisfação (idem, 20 de julho,1).
Sempre insistir na prática das pequenas virtudes (Obras…,
Manuscrito A, 74v) e consumir-se em atos de amor.

Afinal, o que seria mais próprio para o caminho de união


mística? O que mais necessário? Nas palavras de São João da
Cruz, “O mínimo movimento de puro amor é mais útil à Igreja do que
todas as outras obras reunidas” (Cântico Espiritual, XXIX).

Santa Teresinha repetiu essa frase em suas obras e cartas


em diversos lugares e na sua vida intensa e constantemente.

Há ainda a necessidade de citar a vivência da humildade.


Sem ela, não há espaço para a santificação, Teresinha bem o sabia.

Em sua “Oração para conseguir a humildade”, de julho de


1897, abre seu coração e diz: “Senhor, conheceis minha fraqueza: a
cada manhã, tomo a resolução de praticar a humildade, e de noite
reconheço que ainda cometi muitos pecados de orgulho; diante
disso, sou tentada a desanimar, porém - eu sei - o desânimo
também é orgulho” (Obras…, Oração 20).

O que fazer então? Ela sabe que a única forma de


crescimento na humildade é ser humilhado. Por isso, na mesma
oração, pede corajosamente: “Suplico-vos, meu Divino Jesus, que
me envieis uma humilhação cada vez que eu tente elevar-me acima
das outras”.

Por último, aprendemos com a doutora de Lisieux uma


importante distinção sobre esse percurso de união com Deus dos
primeiros graus de oração mística: união não é unidade.

Nesta primeira fase da vida mística, a conformativa, estreita-


se a união para que a última fase, a transformativa, possa ser vivida
em unidade.

Segundo Santa Teresinha, do mesmo modo que resignar-se


ou aceitar a vontade de Deus não é realmente fazer a Sua vontade,
união não é unidade. “Na união, continuamos a ser dois; na
unidade, somos apenas um” (Obras… Caderno Amarelo, 23 de
julho,5).

Para viver esse período de união, buscando a verdadeira


unidade, Santa Teresinha reflete sobre a citação do Cântico dos
Cânticos (1,3): “O que significa então pedir para ser atraído, senão
unir-se de maneira íntima ao objeto que cativa o coração? (...) peço
a Jesus que me atraia nas chamas do seu amor, que me una tão
estreitamente a Si, que seja Ele quem viva e aja em mim” (Obras…,
Manuscrito C, 35v-36f).

No próximo capítulo, examinaremos de perto esse momento


de íntima unidade estudando os últimos graus da oração mística ou
contemplação.

✽✽✽
Oração Mística e seus últimos graus

Quando se fala sobre vida mística, contemplação infusa ou


dons espirituais é muito comum que a confusão reine. Parece que
os fenômenos ditos sobrenaturais (porque de fato são mesmo
sobrenaturais) são subjetivos, inalcançáveis e, até mesmo, irreais.

Este preconceito, estabelecido por aqueles que não


conhecem o assunto e não procuram buscar fontes coerentes e fiéis
ao magistério da Igreja, não é verdadeiro.

Vimos, através dos modos de oração explicados por Santa


Teresa D’Ávila, que existe uma ordem e uma gradação onde,
somente nas aparências, reina o subjetivismo.

E não foi apenas a doutora de Ávila que explicou de forma


didática a sua experiência, mas também São João da Cruz, Santa
Teresinha e tantos outros através dos séculos.

Chegamos, portanto, ao cume da vida espiritual ou vida de


oração: a união transformativa.

Recapitulemos rapidamente o que se passou para que tudo


faça ainda mais sentido e os capítulos anteriores sejam reavivados
na memória.

Existiu um primeiro momento ascético, onde a alma se


esforçou para purificar-se de todos os apetites e vontades e, ao
mesmo tempo, ligar-se a Deus através de um grande esforço de
oração.

Esse trabalho foi comparado por Santa Teresa ao de retirar, à


força de braços, água de um poço profundo que, até mesmo,
poderia estar seco (Vida 11,9).
Num segundo momento, também ascético, a oração de
meditação faz com que “o tirar água do poço” seja um trabalho
menos penoso e mais frutuoso, como se anexasse um sistema de
roldanas e cordas ao balde (Vida 11,7).

E, num terceiro momento, mistura de natural com


sobrenatural, ou de ascético e místico, o próprio poço apresenta
uma “água alta” (Vida 14,2).

O esforço continua mas, misteriosamente, o poço encheu-se


através de uma fonte profunda que fez com que a água subisse e
quase derramasse pelas bordas, facilitando em muito a retirada
desta água.

Finalmente, o jardim da alma passa a ser irrigado por


aquedutos ou canais (Vida 11,7). O rio vivo, que é o Espírito Santo,
está sendo direcionado pelo próprio Deus a inundar a alma.

Não só provê o necessário, não só inunda os canais


preparados pelo treino e esforço da meditação, mas chega até a
criar novos canais e acessar áreas até então desconhecidas.

São os primeiros graus da oração mística ou contemplação.


É o sobrenatural suplantando, conduzindo e conformando o natural
a uma nova maneira de ser.

A esta fase conformativa da vida mística segue-se, agora,


uma fase transformativa.

Todo o trabalho realizado até esse momento pelo Espírito


Santo, através da oração, visava conformar a alma a Cristo.

Chegou, finalmente, o momento dela ser transformada em


outro Cristo. Sem perder nada da sua identidade pessoal, mas
completamente unificada ao seu salvador.

Ocorre aqui um salto tão grandioso que Santa Teresa, sem


dúvida alguma inspirada pelo próprio Espírito, faz uma última
diferenciação quanto ao cuidado e rega deste jardim da alma.

A água não vem mais, nem por esforço humano, nem pelos
meios naturais do desvio e desnível de um rio ou córrego, mas do
próprio céu através da chuva (Vida 11,7).

O hortelão ou jardineiro que somos nós, não possui mais


nenhuma capacidade de controle sobre essa rega. É o verdadeiro e
único hortelão ou jardineiro, o próprio Deus, quem cuida, conserva e
alimenta a alma a Ele dedicada.

Deus, agora que gentilmente conquistou acesso total ao


cuidado da alma, toma-a para Si e realiza o que para o ser humano
é impossível por suas próprias forças: a Cristificação.

Por causa do protagonismo absoluto de Deus nesta última


fase da vida espiritual é que Santa Teresa utiliza a metáfora da
chuva e, seguindo as Escrituras, tanto ela mesma quanto todos os
outros santos também se utilizam da figura da esposa e do esposo,
do matrimônio, coabitação e, por último, união em “uma só carne e
um só espírito”.

Depois dos seis graus de oração já explicados nos artigos


anteriores, surge a oração extática: o influxo de união da alma a
Deus é tão completo e extenso, que não só une a vontade, a
memória e a inteligência (como na oração de união), mas toma
conta de todos os sentidos corporais.

Assim, aquele que é absorvido nesta oração, não vê mais


nada além de Deus, não sente nada exterior e nem tem posse sobre
seu corpo e sentidos. Ocorre uma suspensão onde todo o ser se
volta para Deus e somente para Ele.

Na história da Igreja e dos santos, encontramos várias


narrativas sobre esse fenômeno (ou êxtase) que, após Santa
Teresa, percebeu-se tratar de um tipo especial de oração mística.
Entre outros detalhes, a pessoa se torna insensível a
estímulos sensoriais, podendo ser queimada, espetada, provocada
de diversas formas, sem nenhuma reação aparente.

Pode permanecer horas na mesma posição, sem se mexer e,


por vezes, a temperatura corporal desce muito e até os batimentos
cardíacos passam a ser imperceptíveis.

Que não sejamos enganados: não são fenômenos


espetaculares buscando uma platéia.

Trata-se de um encontro íntimo com Deus que, para


aprimorar e passar a transformar profundamente esta alma em
santidade, faz como um bom cirurgião e suspende as reações do
paciente para melhor operá-lo.

Esta oração traz comunicações intensas e poderosas sobre


Deus, Seus desígnios e Sua vontade. Uma delas reflete um novo
grau de oração mística: o desposório espiritual.

Este é o oitavo grau de oração, onde o próprio Cristo assume


a alma em processo de santificação como noiva e promete prepará-
la para a união plena.

Essa promessa costuma trazer graças especiais e introduzi-la


na última e definitiva purificação, a “Noite Escura da Alma”[3].

Como na parábola das virgens prudentes e imprudentes, ela


precisa esperar pelo noivo no meio da noite, pois ele virá sem hora
marcada.

Finalmente, o último grau de oração que sela todo esse ciclo


propriamente místico é o matrimônio espiritual.

O jardim está finalmente pronto não só para receber o autor


de todas as coisas como visitante, mas como morador e Senhor. A
alma transformada num novo Cristo pode estar em perfeita união
com a Santíssima Trindade.
É um perfeito conhecimento da Trindade, de suas pessoas,
de sua unidade enquanto Deus e diferenças enquanto pessoas, que
a alma finalmente pode saborear. O conhecimento teórico passa a
ser prático, vivido, experimentado.

A partir daí, quanto tempo ainda permaneça viva neste


mundo, permanecerá em contato íntimo e constante com o Pai, o
Filho e o Espírito Santo.

Tão verdadeiro e sensível é esse encontro, essa entrada no


último estágio da vida espiritual, que Santa Teresa também chamou
de sétima morada, que podemos identificar na vida dos santos
exatamente a data em que isso ocorreu com cada um deles.

Trata-se, portanto, de um acontecimento tão real quanto


mensurável. Tão profundo quanto inegável.

No próximo capítulo, veremos um pouco da prática do que é


esse encontro íntimo dos últimos graus de oração através dos
exemplos de outra santa carmelita: Santa Elisabete da Trindade.

Que esta santa que prometeu: “No céu a minha missão


consistirá em atrair almas, ajudando-as a sair de si mesmas para
unirem-se ao Senhor”, possa nos ajudar a sermos cada vez mais
unidos a Deus e preparar um maravilhoso jardim para que ele
encontre suas delícias!

✽✽✽
A Oração de Santa Elisabete da
Trindade

Espiritualidade, vida de oração, união, intimidade… Muitos


são os nomes utilizados para retratar esta aproximação com Aquele
que é o autor de todas as coisas mas, ao mesmo tempo, quer
deixar-Se alcançar e entrar em comunhão com Sua criatura.

Com Santa Teresa D’Ávila, vimos quatro modos de se


aproximar, quatro modos de oração que ela sabiamente resumiu
como “modos de regar o jardim da alma”. Afinal, essa perfeita
comunhão ou união mística não pode ser realizada em qualquer
lugar e de qualquer modo.

Por isso, utilizando-se da metáfora do jardim ou horto,


largamente explorada nas Sagradas Escrituras, a doutora da Igreja
lembra que a alma deve ser um terreno bem cuidado onde seu
Senhor encontrará suas delícias.

Se, de início, a preparação deste jardim é um trabalho árduo,


exaustivo e quase infrutífero, com o tempo, aquele que não deixa de
derramar Sua Misericórdia abundantemente, passa a prover tudo o
que é necessário para que a alma cresça em dignidade e se torne
apta a recebê-Lo.

Vimos estes quatro estágios da rega do jardim ou horto feito


pelo ser humano e por Deus em perfeita harmonia:

1. Tirar água do poço profundo usando um simples balde;


2. Contar com roldanas, arcabuzes e engrenagens para
tirar a água do poço;

3. Criar um sistema de irrigação para o jardim por canais


ou aquedutos;

4. Usufruir do mais perfeito sistema de prover água: a


chuva.

Nos últimos capítulos, debruçamo-nos sobre a oração


mística, aquela onde o próprio Deus começa a derramar sobre a
alma todas as luzes e benefícios extraordinários.

Se os seus primeiros graus são comparados a um sistema de


irrigação completo, os últimos são melhor retratados como a própria
chuva que desce do céu.

Fica claro, portanto, que o ser humano nada mais faz além de
receber o influxo que vem através do Espírito Santo. Sua
participação passa a ser eminentemente passiva, dispondo-se e não
oferecendo obstáculo à ação celeste.

Neste grau extremo de intimidade e união com Deus, tudo


precisa ser provido pelo próprio Criador e Santificador da alma.
Examinamos em detalhes esses graus de oração no último capítulo.

Seguindo a proposta de trazer exemplos concretos sobre


cada uma destas diferentes etapas da oração, utilizamos agora os
conhecimentos de Santa Elisabete da Trindade para entender
melhor esses últimos graus da oração mística ou plena união com
Deus.
Santa Elisabete da Trindade, a mística de Dijon
Com um desejo intenso de se tornar carmelita, mas sendo
submissa à autoridade de sua mãe que só a liberaria para entrar no
mosteiro com 21 anos, Elisabete Catez tomou a decisão de viver
como se o mundo fosse seu Carmelo.

Sua preparação foi tão consciente e verdadeira que, quando


finalmente pôde viver sua vocação como irmã carmelita, teve uma
rápida ascensão à união mística com Deus, em apenas 5 anos.

Os mesmos anos que seriam seus últimos na terra e que


acabariam por formar aquela que agora é conhecida como Santa
Elisabete da Trindade.

Em seu texto intitulado “Último Retiro - Laudem Gloriae”


temos algumas definições e explicações práticas sobre a unidade
com Deus na vida mística.

Esta carmelita descalça da cidade de Dijon, na França, no


ano de seu falecimento (1906), retrata bem o que é a vida que se
encaminha muito à frente da união.

Este é o cume de uma vida de santidade que começa com o


chamado de Deus através do batismo de cada cristão. Escreve
Elisabete em seu “Último Retiro”:

“‘Sede santos porque eu sou santo’: parece-me que é esta a


mesma vontade que se expressa no dia da criação, quando Deus
disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança’. É
sempre o mesmo desejo do Criador, de unir, de identificar a si a sua
criatura” (Último Retiro, Nono Dia, 22).

O trajeto inteiro da santidade é descrito em um único


parágrafo. Todos são chamados a serem santos!

E a santidade só é completa quando a união com Deus é tão


íntima que a união se transforme em unidade como vimos com
Santa Teresinha do Menino Jesus. A alma passa então a identificar-
se com Deus, seu modelo e meta.
O caminho é aquele mesmo que vimos até aqui com Santa
Teresa D’Ávila. Não existem atalhos, precisa ser vivido e
desenvolvido passo a passo, com confiança e determinação.

Por isso, Santa Elisabete, avisa que o modo de se chegar à


unidade é a perfeita conformação com Cristo: único caminho,
verdadeira santidade e única fonte de vida eterna para a alma.

É necessário, portanto, que eu “estude este modelo divino,


para identificar-me tão perfeitamente com ele que eu chegue a
reproduzi-lo continuamente aos olhos do Pai” (UR, Décimo quarto
dia,37).

Não se trata de um estudo teórico, acadêmico, mas


profundamente evangélico, vivo e vivido, onde confrontam-se e
complementam-se as Sagradas Escrituras, as virtudes teologais, os
dons do Espírito Santo, a oração e adoração, bem como a Santa
Eucaristia e os sacramentos.

O objetivo é que eu seja “A alma que penetra e permanece


nestas profundezas de Deus (...) e que, portanto, faz tudo nele, com
ele, por ele e para ele…”

A vivência cotidiana e constante do mistério de Deus nestes


últimos graus de oração, difere em muito dos contatos intermitentes
que se desenvolveram até então na vida espiritual.

Para isso é que serviu toda a purificação vivida até então:


“Eis a condição: é preciso morrer! Sem isto, podemos estar
escondidos em Deus em certas ocasiões, mas não vivemos
habitualmente neste Ser divino, porque as sensibilidades, buscas de
si mesmo e todo o resto nos fazem sair dele” (UR, sexto dia,16).

É assim que essa chuva de graças toma conta da alma e


realiza aquilo que para ela mesma era irrealizável: perfeita
comunhão de vida.
As últimas purificações, muito além da capacidade humana,
são feitas pelo próprio Senhor: “Quando a alma está profundamente
fixada em Cristo, quando as suas raízes penetraram tão
intimamente nele, a seiva divina circula nela abundantemente, e
destrói tudo o que é imperfeito, medíocre e natural que existe em
sua vida” (UR, Décimo terceiro dia, 33).

Esse caminho-meta, também união que tende à unidade, é


largamente explorado em sua maravilhosa oração de 21 de
novembro de 1904, “Elevação à Santíssima Trindade”.

Analisemos alguns trechos:

“Ó meu Deus, Trindade que adoro, ajudai-me a esquecer-me


inteiramente de mim mesma para fixar-me em vós, imóvel e
pacífica, como se minha alma já estivesse na eternidade.

Que nada possa perturbar-me a paz nem me fazer sair de


vós, ó meu Imutável, mas que em cada minuto eu me adentre mais
na profundidade de vosso Mistério.”

Eis a meta: a eternidade! Viver já, o que se viverá


eternamente.

Adentrar-se mais e mais em Deus e Seu mistério buscando


não compreendê-lo, o que é impossível, mas vivenciá-lo o máximo
possível.

Para isso,

“Pacificai minha alma, fazei dela o vosso céu, vossa morada


preferida e o lugar de vosso repouso. Que eu jamais vos deixe só,
mas que aí esteja toda inteira, totalmente desperta em minha fé,
toda em adoração, entregue inteiramente à vossa Ação criadora.”

A santa retrata aqui, novamente, todo o caminho espiritual.


Só Deus pode santificar-nos, fazer de cada um o Seu céu, Sua
inabitação.
Mas ao ser humano compete buscá-Lo com todas as suas
forças, todas as suas capacidades e todo o seu entendimento.

Essa é a finalidade de todo o esforço ascético e místico: ser


dono de si mesmo o máximo possível para poder entregar a Deus o
que possuímos verdadeiramente.

Não somente o que damos da boca pra fora, simplesmente


por não termos o controle verdadeiro sobre nossos atos e vontades.

Ela também pede essa completa transformação em outro


Cristo, própria desta última fase da vida espiritual, expressando o
seu desejo de “revestir-me de vós mesmo… submergir-me, invadir-
me, substituir-vos a mim, para que minha vida seja uma verdadeira
irradiação da vossa.”

E não ignora que este trabalho de “cristificação” é exercido


pelo próprio Espírito Santo:

“Ó Fogo devorador. Espírito de amor, ‘vinde a mim’ para que


se opere em minha alma como que uma encarnação do Verbo: que
eu seja para ele uma humanidade de acréscimo na qual ele renove
todo o seu Mistério”.

Temos, por fim, uma alma perfeitamente transformada e em


unidade com a Santíssima Trindade. O máximo possível enquanto o
véu desta vida presente não é rompido.

Cabe à alma, acolher o dom maravilhoso que é Deus em toda


a sua amplitude e mistério.

O que será então dela? Santa Elisabete responde (UR,


Terceiro dia,8) com uma citação de São João da Cruz (Cântico
Espiritual 36,2) que é a perfeita síntese desta unidade conquistada
e, além disso, encerra todo nosso estudo sobre a oração e os
modos de regar o jardim da alma:
“A tua luz brilhará nas trevas e a escuridão será para ti como
a claridade do meio-dia. O Senhor te dará perpétuo repouso,
encherá a tua alma de resplendor.

Dará vigor a teus ossos. Serás como um jardim sempre


regado, como uma fonte de águas que não se esgotam jamais…
Elevar-te-ei acima do que há de mais elevado neste mundo.”

Esse é o meu desejo pessoal e também meus votos para


você que me acompanhou até aqui: através da oração, uma
completa união com Deus para que, na eternidade, gozemos
perfeitamente o que já começamos a adquirir aqui. Vale a pena!

✽✽✽

[1] Para se aprofundar nesse assunto, importantíssimo para a espiritualidade,


recomendo a leitura de As Virtudes Teologais na Vida Espiritual.
[2] Todo esse caminho de santificação, conhecido como via ascética, foi tratado em
detalhes no livro “Santidade para Todos: Descobrindo as Moradas Interiores”.
[3] Esse fenômeno foi tratado com detalhes em “Santidade para Todos:
Descobrindo as Moradas Interiores”.

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