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Livro de Historias Infantis Parte 2
Livro de Historias Infantis Parte 2
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— Não é preciso ter medo, disse aos irmãos. Venham comigo.
Os irmãos calaram-se instantaneamente e o seguiram. E ele, orientado
pela trilha de pedregulhos, levou-os de volta para casa.
Ali chegando, não entraram logo: detiveram-se na soleira da porta para
ouvir o que diziam o pai e a mãe, lá dentro.
Voltando do bosque, o lenhador e sua mulher, haviam tido uma surpre-
sa: o senhor da aldeia viera pagar uma dívida antiga que tinha com eles.
Como não comessem há dias, a mulher fora correndo ao açougue e compra-
ra muito mais carne do que seria necessário para duas pessoas.
Comeram, pois, à vontade. Saciada a fome, ela disse:
— Onde estarão as nossas pobres crianças? Como haviam de se regalar
com o que nos sobrou! Bem dizia eu que nos íamos arrepender... O que es-
tarão fazendo, a estas horas, lá na floresta? Meu Deus! com certeza os lo-
bos já os terão devorado. Você é desumano... abandonar os filhos desse
jeito!...
O lenhador perdeu a paciência e ameaçou bater-lhe, se não se calasse.
Pobre homem! Sofria tanto — mais que a mulher, talvez — e ela a ator-
mentá-lo com suas lamúrias e suas perguntas inúteis:
— Ai de mim, sem os meus filhos! Onde estarão agora?
— Estamos aqui, estamos aqui! gritaram em coro as crianças.
Ela correu a abrir-lhes a porta e abraçou-os a todos.
— Que felicidade, ver de novo os meus filhinhos! Como estão can-
sados. . . E que fome devem ter!.. .
Eles sentaram-se à mesa e comeram
com sofreguidão. Entre uma garfada e
outra, foram contando o susto por que
haviam passado na floresta.
Os pais, coitados, não desprendiam
deles os olhos: olhavam-nos comer, com
enlevo, como se não os vissem há anos,
Mas a alegria da família durou en-
quanto durou o dinheiro. Findo este,
voltaram a cair na miséria de antes. No-
vamente, decidiram deixá-los no bosque,
só que, desta vez, em local mais afas-
tado.
E novamente, o Pequeno Polegar,
tendo-os ouvido, pensou em como vencer
as dificuldades.
Na manhã seguinte, logo ao raiar do
dia, estava de pé, tencionando ir ao rio
à cata de pedrinhas. Mas encontrou a
porta trancada com ferrolho, coisa que o
desnorteou. Por fim, depois de muito
matutar, lembrou-se das sobras de pão
do jantar. Resolveu que o esmigalharia
pelo caminho, substituindo as pedrinhas.
Sem perda de tempo, foi buscá-lo e o me-
teu no bolso.
O pai e a mãe conduziram-nos para
o mais cerrado do bosque e ali os aban-
donaram.
O Pequeno Polegar estava despreo-
cupado, pois contava com o rastro das
migalhas para mostrar-lhes o caminho.
Esperava-o, porém, uma triste surpresa: C
as migalhas haviam sido comidas pelos
passarinhos da floresta.
Qual não foi o desespero das crian-
ças! Desta vez, sentiam-se perdidos no
bosque para sempre.
Anoiteceu e um vento frio ergueu-
se, a soprar furioso. Apavorados, pare-
cia-lhes que ouviam os uivos dos lobos.
N"ão ousavam olhar ao redor, nem profe-
rir palavra.
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Uma chuva pesada pôs-se a cair, en-
sopando-os até os ossos. Escorregavam
a cada passo na lama e se levantavam
pesados de barro.
O Pequeno Polegar teve a ideia de
subir a uma árvore, para tratar de des-
cobrir algum abrigo. Depois de perscru-
tar o horizonte em todas as direções,
avistou lá ao longe, além da floresta, um
lumezinho. Desceu da árvore, mas, as-
sim que tocou terra, já não viu nada, tão
pequenino era. Todavia, orientou os ir-
mãos na direcão da luz que avistara. De-
pois de muito caminhar, à saída do bos-
que, com imensa alegria, avistou-a de
novo.
r
-
— Está certo, admitiu ele. Dê-lhes uma boa ceia para que não emagre-
çam e ponha-os na cama.
A ogra, toda satisfeita, procurou os meninos, que se haviam amontoa-
do a um canto, o mais longe possível do ogro. Animou-os em voz baixa pa-
ra não ser ouvida pelo marido e foi preparar-lhes, com todo o esmero, uma
ceiazinha.
Arrumou a mesa, com sete pratinhos, e fê-los sentar. Depois, serviu-
lhes sopa. Eles sentaram-se, trémulos ainda, deitando olhares compridos
para o prato apetitoso que tinham à frente. Mas, por mais que tentassem,
não conseguiam engolir um bocado sequer,
— Agradecemos imensamente, boa senhora, disse o Pequeno tolegar,
falando em nome de todos. Mas não somos capazes de comer. Aquele ogro
terrível nos amedrontou demais!
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A mulher, que acordara alvoroçada,
ao ouvir aquele fim de mundo, apareceu
à porta da cozinha, de camisola e casti-
çal na mão.
Temendo que o marido, em seu de-
satino, a quisesse matar também, sem
dizer palavra, foi direto à arca e lhe en-
tregou o facão.
Ao tê-lo nas mãos, o ogro emitiu gru-
nhidos que queriam exprimir satisfação.
— Espero que as minhas pernas me
sustentem até eu chegar lá em cima, res-
mungou ainda, antes de subir.
Apoiado com uma das mãos ao cor-
rimão da escada, empunhando com a ou-
tra o facão, aos trancos e barrancos, su-
biu até o quarto das filhas.
Aproximou-se da cama onde todos
os meninos dormiam, com exceção de o
Pequeno Polegar, que sofreu um grande
susto, quando sentiu a mão do ogro a
apalpar-lhe a cabeça.
Percebeu a coroa, resmungou:
— Belo desastre ia eu fazendo agora!
Chegou-se, então, à cama onde dor-
miam as filhas e, tocando o gorro que o
Pequeno Polegar lhes colocara à cabeça,
exclamou vitorioso:
— Ah! Aqui estão!
E, resoluto, decapitou uma a uma
suas sete filhas. Depois do que, todo fe-
liz, voltou a deitar-se e adormecei1
O Pequeno Polegar, assim que o ouviu roncar, acordou os irmãos e or-
denou-lhes que se vestissem o quanto antes e o seguissem.
De mansinho, cautelosos, desceram para o jardim, pularam o muro e,
durante o resto da noite, tremendo de medo, correram a esmo, sem saber
para onde fossem.
Logo ao amanhecer, o ogro acordou e disse à mulher:
— Pode ir preparar os frangotes que apareceram aqui ontem.
Ela, julgando que ele a estivesse mandado vesti-los, surpreendeu-se
com tamanha gentileza e subiu rápida as escadas.
Ao abrir a porta, deu com a carnificina armada por seu próprio mari-
do e perdeu os sentidos. Ele, achando que a mulher não iria agir com a de-
vida presteza, seguiu-a para ajudá-la e presenciou, também, aquele espetá-
culo hediondo.
— Ah, desgraçado de mim, o que fui fazer! Aqueles malditos vão pa-
gar bem caro e é já!
Despejou um balde de água no rosto da mulher, para reanimá-la e vo-
ciferou:
— Dê-me logo as minhas botas de sete léguas, mais ligeiras que o ven-
to. Vou agarrá-los em dois tempos; com aquelas perninhas curtas não po-
dem estar longe!...
Pôs-se a caminho e, após correr ao léu, tomou justamente a senda pela
imal seguiram as crianças. Estavam elas a apenas uns poucos passos da ca-
sa do pai, quando o viram aproximar-se, galgando montanhas, atravessando
rios de uma só passada,
Mas nem assim o Pequeno Polegar se deu por vencido: avistando uma
caverna próxima dali, mandou que os irmãos se escondessem nela e entrou
também, sem deixar, todavia, de espiar os movimentos do ogro.
Ele, fatigado por tão longa e infrutuosa pernada (são muito cansativas
as botas de sete léguas) decidiu parar para repousar. Por acaso, foi recos-
tar-se justamente na rocha em cujo côncavo se abrigavam os sete irmão-
zinhos.
Vencido pelo cansaço, em poucos minutos adormeceu e roncava tão fra-
gorosamente que os coitadinhos se encheram de pânico, como quando o ha-
viam visto empunhar o facão.
O Pequeno Polegar estava tão apavorado quanto os irmãos, mas
os mandou correr logo para casa. Não se preocupassem com ele...
Não perdeu tempo: chegou bem perto do ogro, descalçou-lhe devagari-
nho as botas e as calçou. As botas eram altas e compridas, mas, sendo
mágicas, tinham o poder de aumentar ou diminuir, segundo quem as cal-
casse. Nas pernas do Pequeno Polegar, fizeram-se pequeninas, como se exe-
cutadas expressamente para ele. Com elas, correu veloz à casa do pagão e
disse à ogra:
v
— Seu marido foi assaltado por um bando de malfeitores que exigiram
dele tudo o que possui em ouro e prata. Enquanto o ameaçavam com um
punhal, ele me viu e me pediu que viesse correndo dizer à. Sra. que me en-
tregasse tudo o que tem de valor dentro de casa, senão eles o apunhalam.
E — continuou — como a coisa é da maior urgência, ele me fez calçar as
botas de sete léguas, para chegar mais depressa e para provar que não es-
tou dizendo mentira.
A pobre mulher, assustadíssima, pois queria bem ao marido, apesar de
ser ele comedor de crianças, entregou ao Polegarzinho tudo quanto possuía.
E ele, carregado de todas as riquezas do ogro, voltou à casa do pai, on-
de foi jubilosamente recebido.
Há quem diga que o Pequeno Polegar não enriqueceu com prejuízo do
ogro e que só o que lhe roubou foram as botas, para que não pudesse mais
perseguir crianças.
E quem o diz assegura ter sido informado por fonte digna de fé, por
ter-se assentado à mesa do lenhador e comido e bebido com ele. Segundo es-
sa versão da história, o Pequeno Polegar, calçadas as botas do ogro, teria
ido à corte, sabendo que reinava ali muita ansiedade pela falta de notícias
de um exército empenhado em combate a cem milhas de distância. Ter-se-
ia, pois apresentado ao rei, garantindo-lhe trazer notícias antes do anoitecer.
O rei, em troca, ter-lhe:ia prometido enorme soma em dinheiro, caso ti-
vesse êxito em sua missão.
Naquela mesma noite, o Pequeno Polegar chegara com notícias. E,
após aqiiela primeira corrida, tendo-se tornado conhecido, ganhava o que
quisesse, pois o rei lhe pagava regiamente para levar suas ordens ao exér-
cito.
E, só depois de ter exercido durante algum tempo o ofício de estafeta
do rei e juntado muito dinheiro, voltara à casa do pai, para grande alegria
da família.
O Pequeno Polegar conseguira bons cargos para o pai e os irmãos sem,
no entanto, descuidar seus interesses próprios.
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(antiga fabula popular árabe)
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Certa noite, dois geniozinhos esvoaçavam de fronte da estreita abertu-
ra que arejava a cela do príncipe Kamar. Cheios de curiosidade, entraram.
Kamar dormia. Os geniozinhos pararam, estáticos, a fitá-lo, enlevados com
sua formosura. Quando, enfim, saíram de seu estupor admirativo, um de-
les exclamou:
— Não pode existir no mundo criatura mais bela!
— Engana-se, rebateu logo o outro, com ares de superioridade. Eu vi
uma donzela muito mais formosa do que este que aí está.
— E onde pode tê-la visto? indagou o primeiro, incrédulo.
— Na longínqua China, retrucou entusiasmado o segundo, daquela vez
em que acompanhei o génio dos mares em sua viagem ao redor do mundo.
Acendeu-se entre os dois uma disputa.
— Não pode ser! Está mentindo!
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— Repito que é verdade e pos- — Nossa rainha, interrompeu-a
so prová-lo! o segundo geniozinho, com olhar su-
Enquanto discutiam, lá fora, plicante. Deve ouvir-me e dar cré-
pela abóboda infinita vagava, em dito ao que lhe vou contar: no ano
plácido voo, Maimuna, filha do rei passado, sobrevoando as ilhas da
dos génios. Ao passar pela torre, ou- China, avistei esplêndido castelo,
vira as vozes estrídulas dos dois ge- cercado de um jardim. Disseram-
niozinhos. Levada pela curiosidade, me tratar-se da residência do rei dos
entrara. mares e das ilhas. Curioso, eu espia-
— Por que esse bate-boca? in- va por todas as janelas, para admi-
dagou. rar os salões deslumbrantes, quan-
Os dois geniozinhos ajoelharam- do me chamou a atenção uma jane-
se logo a seus pés e tentaram expli- linha estranha, a menor de todas, si-
car como nascera a disputa. tuada na torre do castelo. Qual não
— Fale um de cada vez! inter- foi a minha surpresa, quando, ao
rompeu-os Maimuna. olhar com mais cuidado, vi no quar-
— Eu sustento que não pode ha- to uma jovem. Tão inacreditavel-
ver no mundo criatura mais bela do mente formosa era que, comparada
que este rapaz, afirmou o primeiro a ela, o príncipe Kamar deixa de ser
geniozinho, indicando o príncipe belo. Havia, porém, muita tristeza
adormecido. em seu olhar e ela parecia absorta
Maimuna, que ainda não de- em seus pensamentos. Sonhava, tal-
ra pela sua presença, voltou-se e vez, com todas as coisas belas que
viu, também, aquele semblante be- não lhe era dado ver.
líssimo. A sinceridade da narrativa con-
— Realmente, concordo em que venceu Maimuna. E ela perguntou
não possa haver beleza mais perfei- ao geniozinho:
ta do que esta, exclamou, no auge — Está disposto a provar-nos o
da admiração. que acaba de afirmar?
— Mais que disposto, ó podero-
sa Maimuna, desde que este meu
companheiro consinta em ajudar-
me. Voarei com ele até a China e
de lá trarei a princesa Budur.
— Pois bem, vão, ordenou Mai-
muna. Mas seu voo seja tão leve que
a jovem, se estiver adormecida, não
desperte.
Em dois tempos, os dois genio-
zinhos sobrevoaram mares, rios e va-
les e chegaram ao palácio imperial.
Ali foram encontrar a formosa Bu-
dur adormecida. Um de um lado,
outro de outro, apanharam as pon-
tas da coberta bordada de estrelas,
onde repousava, e, de mansinho, sem
despertá-la, ergueram-na e com ela
se afastaram, céleres como o vento.
Mas... o que há de ser um voo,
embora longo, para dois geniozinhos
fogosos? Maimuna mal tivera tem-
po de dejxar a torre que já os tinha
de volta, trazendo a bela princesa.
Maimuna observou com aten-
ção o rosto dos dois jovens adorme-
cidos.
— Têm razão, tanto um como
outro, sentenciou. Esses dois seres
excepcionais equivalem-se em for-
mosura e eu farei com que se des-
cubram e desejem casar-se.
Dito isto, tocou de leve na face de Budur. A princesa abriu os olhos.
— Nade este o meu quarto, exclamou, estupefacta, olhando ao redor.
Talvez eu esteja sonhando ainda. ..
E quis fechar os olhos. Naquele instante, porém, voltando-se no traves-
seiro, um turbante vermelho lhe chamou atenção. Assustada, olhou melhor
e só então deu pela presença de um belíssimo jovem a seu lado.
— Isto é um plano arquitetado por meu pai, para fazer-me conhecer o
noivo que me destina e induzir-me ao casamento! mui-mirou, agastada.
Naquele instante, Kamar voltou-se e ela pôde ver em cheio o seu rosto,
emoldurado de cabelos da cor do ébano.
Ainda irritada, procurava desprender dele os olhos extasiados. Toda-
via, por mais que tentasse adormecer de novo, as feições perfeitas de Kamar
e seu vulto sereno voltavam-lhe à mente.
Pouco a pouco, foi serenando. Voltou a fitar o príncipe e o seu coração
árido, como que por encanto, se enterneceu.
"Aí está o jovem com quem eu gostaria de me casar", pensou consigo
"Arrependo-me da minha teima e seria feliz se pudesse ser sua mulher".
Antes de ceder de novo ao sono, Budur tirou do dedo um anel e o en-
fiou no dedo de Kamar. Depois, com. um suspiro de felicidade, cerrou
os olhos.
Foi então a vez de Kamar, que, sob o toque suave de Maimuna, desper-
tou. Ao ver a princesa, pensou que jamais em sua vida contemplara rosto
mais belo. E, em seu coração, decidiu desposá-la. Tentou fazê-la despertar,
mas o seu sono era profundo.
"Agradeço-lhe, meu pai, por me destinar noiva tão linda. Amanhã, vou
pedir-lhe publicamente perdão", pensou.
Antes de adormecer novamente, enfiou seu próprio anel no dedo afusa-
do da princesa, a quem já amava.
Os geniozinhos, tornados invisíveis, observavam, com um risinho de
complacência, a cena.
Na manhã seguinte, o príncipe Kamar deu enérgicas pancadas na por-
ta de sua cela, para chamar a atenção do guarda. E pediu para ser levado
imediatamente à presença do sultão Shariman.
É de se imaginar a surpresa do rei, ao ouvir do filho o surpreendente
relato de sua aventura. A princípio, receou que tivesse perdido o juízo. To-
davia, ninguém podia negar que falava claro e com firmeza e o anel que lhe
mostrava era uma esplêndida jóia de confecção estrangeira.
Que explicação dar àquilo tudo? Nem o sultão, nem seus ministros,
nem o próprio Kamar foram capazes de deslindar o mistério. Fosse como
fosse, o episódio pôs fim à reclusão do príncipe. Voltou a habitar seu rico
pavilhão à beira-mar, onde passava os dias perdidos em doce cismar, reven-
do em sonhos a princesa de olhos amendoados.
Ao mesmo tempo, na China longínqua, a princesa Budur também des-
pertou naquela manhã querendo ver o pai. Contou-lhe o que se passara e
garantiu-lhe que, sendo o noivo escolhido para ela, o mesmo que vira na-
quela noite, não tinha dúvidas em se casar.
— Mas está bem certa de que tudo não foi um sonho? perguntou o rei,
espantado com o que ouvira e com a felicidade que lia no rosto da filha.
Por toda resposta, Budur mostrou-lhe a jóia que recebera de Kamar.
— Com certeza o jovem que vi esta noite foi quem pôs no meu dedo es-
te anel.
O rei, como soubesse que a princesa possuía escrínios repletos de anéis
preciosos, não fez caso às palavras de Budur. Julgou tratar-se de al-
gum anel que já lhe pertencesse há tanto tempo que já nem se lembrasse
dele. Para maior segurança, porém, decidiu certificar-se se alguém pene-
trara, realmente, no quarto da filha.
*v i**';*T*
V*' í-''*
v
— Mandem vir a minha presen- Budur sentia imensas saudadí
ça todas as governantas da princesa, do jovem que vira. Pensava nele ta
ordenou aos servos. intensamente que lhe falava em vc
Uma a uma, interrogou-as to- alta, confiando-lhe seus pensamei
das, para saber se, em qualquer mo- tos, como se o tivesse a seu lado.
mento, estivera à porta do quarto de Um servo, que a surpreendeu f í
Budur sem vigilância. lando ao seu príncipe invisível, dií
— Se não disserem a verdade, se a uma das damas da corte:
serão condenadas à morte, ameaçou — Como está mudada a princt
o soberano. sã! Mais meiga, mas tão esquis:
Elas porém, embora amedron- ta. , Isso de falar sozinha o dia te
tadas com a ameaça, juraram que a do...
porta estivera a noite inteira tran- — Pois eu a ouvi cantar, cor
cada. De mais a mais, ninguém te- voz igual e monótona; mas era un
ria podido entrar na torre. canto sofrido e cheio de saudades
A janela foi, também, examina- acrescentou outra dama.
da: mas era tão alta que ninguém E assim, diante do comporta
teria sido capaz de a escalar. mento inexplicável de Budur, ao
O rei chegou, por fim, à conclu- poucos, já não foi só o rei, mas tod
são de que tudo não passara de um a corte a tomar por doida a prin
sonho. Não restava senão esperar cesa.
que a princesa o esquecesse. Ela, po- Foi quando o príncipe Marza
rém, insistia, repetindo que o que van, irmão gémeo de Budur, regres
dissera era verdade. E não houve sou de uma longa viagem.
quem a demovesse de suas convic- Nem bem chegou, correu a cum
ções. primentar o pai e a mãe. Ao vê-lo
E então, o soberano, como resul- o sultão estendeu-lhe os braços, nun
tasse vã qualquer tentativa de per- gesto cheio de desconsolo. Sabia <
suasão, principiou a temer que a fi- quanto Marzavan amava a irmã e fo
lha tivesse endoidecido. com infinita tristeza que o pôs £
"Talvez esse longo período de par da desgraça que se abatera só
reclusão lhe tivesse afetado o juízo", bre a família durante a sua prolon
pensava, aflito e arrependido por gada ausência.
tê-la mantido presa tanto tempo.
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Contou-lhe, também, que fizera convocar todos os astrólogos e sábios de
seus domínios, prometendo a mão da princesa a quem a curasse. E nenhum
deles fora capaz de descobrir a misteriosa enfermidade de Budur, que
transcorria na cama seus dias monótonos e vazios.
Marzavan não se resignou ante o fato de terem sido os astrólogos inca-
pazes de mudar a triste sorte da princesa. Foi ele mesmo à sua presença e
lhe pediu que falasse sem reservas a respeito do que lhe acontecera.
Ela, não querendo outra coisa, mais uma vez mostrou o anel que trazia
no dedo e começou o seu relato. Para grande espanto seu, quando termi-
nou, ouviu o irmão dizer:
— Acredito que o que está a dizer é a verdade. Tranquilize-se. Hei de
partir pelo mundo a fora e só voltarei depois de ter encontrado o jovem que
você viu e por quem se apaixonou.
B, naquela mesma manhã, despediu-se dos pais e
tornou a partir. Durante um mês inteiro, viajou sem
trégua, de cidade a cidade, de ilha a ilha, sem, no en-
tanto, encontrar o que procurava. Por onde quer que
passasse, ouvia contar a lamentável história da prin-
cesa Budur, que endoidecera de repente.
Certo dia, porém, numa cidade chamada Tairab,
notou que o povo já não falava em Budur, mas em
Kamar, filho do sultão Shariman, que perdera, tam-
bém, a razão, em circunstâncias análogas.
Pôs-se, então, a interrogar os cidadãos e veio a
saber que Shariman era rei das ilhas Kalidan, a um
mês de viagem por mar de onde se encontrava. Foi
quanto bastou para que adquirisse uma embarcação
e desse ordem de içar velas e rumar imediatamente
para as ilhas Kalidan. No início, fados e ventos fo-
ram-lhe favoráveis. Ao fim de um mês, porém, a fú-
ria do vento arrancou as velas da embarcação e a fez
soçobrar.
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De toda a equipagem, o único que se salvou foi Marzavan que, arrasta-
do pela corrente, foi ter a uma costa rochosa.
Sobre os rochedos, erguia-se justamente, o pavilhão onde o príncipe
Kamar, cercado pelo pai e por todos os ministros, continuava a padecer de
um mal sem explicação e sem remédio.
O velho vizir viu de longe qualquer coisa a boiar na superfície das
águas e correu para a beira da praia, seguido pelos escravos. E encontra-
ram Marzavan, já meio morto, e o trouxeram para o pavilhão.
Foi bem cuidado, alimentado e vestido e, ao sentir-se melhor, quis lo-
go saber onde estava.
— Isto que vê, explicou o velho vizir, é o pavilhão habitado por Kamar,
filho do rei Shariman. Não posso levá-lo à sua presença, porque o príncipe
padece de uma enfermidade misteriosa.
Marzavan sentiu acelerarem-se as batidas de seu coração e, ansioso, per-
guntou :
— Por favor, diga-me: como foi que o seu príncipe adoeceu?
O velho vizir contou-lhe a respeito dos sonhos do príncipe e, quando
terminou, Marzavan pediu para vê-lo.
— Posso ver o seu príncipe? Venho de longe e conheço as artes mé-
dicas.
E assim foi que o admitiram à presença de Kamar.
Logo ao vê-lo, Marzavan exclamou:
— Felizes de vocês, que foram feitos um para o outro!
A essas palavras inesperadas, Kamar abriu os olhos e perguntou, com
voz fraca:
— O que quer dizer, estrangeiro?
— Quero dizer que sua noiva, a princesa Budur, espera por você.
Kamar, como que enfeitiçado, ergueu-se na cama, e, completamente ou-
*Jt "t, t tro, pediu ao estrangeiro que lhe dissesse tudo o que sabia.
Ao final da narração, abraçou Marzavan, dizendo-lhe:
— Meu irmão, agradeço-lhe; peco-lhe que me leve sem demora para o
seu país: quero tornar a ver sua irmã Budur e desposá-la.
O mais feliz de todos era o rei Shariman. Abraçou o filho, com os olhos
cheios de lágrimas:
— Não posso impedir que vá, pois o que mais me interessa é a sua fe-
icidade. Só quero que me prometa que voltará assim que puder.
•*
0 Í -í *"*
~^*iL: -.
Após um mês de feliz travessia, os dois príncipes desembarcaram e
Marzavan levou para o palácio o príncipe Kamar, sem contar quem fosse.
Preferiu dizer que, durante sua longa viagem, encontrara um médico es-
trangeiro e o trouxera para ver a irmã.
— Desgraçadamente, disse-lhe seu pai, é tão grave o estado de sua ir-
mã que receamos perdê-la a qualquer momento. Já nenhum médico a
visita.
Confrangido, cheio de angústia, Kamar perguntou:
— Posso escrever-lhe um cartão com uma fórmula mágica?
— Escreva, que lhe será entregue.
Sem perda de tempo, Kamar escreveu numa folha de papel estas pa-
lavras: "Princesa Budur, após tão longa separação, eis-nos finalmente reu-
nidos. Reconheça em mini o seu noivo e permita que eu vá admirar a sua
beleza."
Enrolou no mesmo papel o anel que trazia ao dedo e aguardou.
Ao abrir a carta, a princesa viu cair-lhe no regaço o anel que ela mes-
ma pusera no dedo do formoso príncipe. Com um grito, percorreu as linhas
escritas e, instantaneamente curada, saiu do quarto a correr.
— É ele! Ele que chegou, finalmente!
— Mas você quem é, que se apresentou como simples médico? pergun-
tou espantado o rei ao estrangeiro.
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— Sou o príncipe Kamar, filho do sultão Shariman.
O príncipe Marzavan deu testemunho de que dizia a verdade e, por sua
vez, narrou como fora que encontrara o noivo de sua irmã.
O rei sentia-se imensamente feliz: a filha estava curada; jamais estive-
ra louca e seu noivo era filho de poderosíssimo soberano. O que mais po-
deria desejar? Por isso, disse:
— A história de vocês será escrita nos livros do reino e será lida por
seus descendentes, por muitos e muitos anos.
E deu ordens para que fossem logo celebradas as bodas.
A cidade foi totalmente embandeirada e, durante sete dias e sete noi-
tes, houve banquetes para todos os súditos. Cantaram e dançaram e esti-
veram todos felicíssimos.
Certa noite, porém, Kamar viu em sonhos o pai, rei Shariman, que, cho-
rando lhe dizia:
— Meu filho, por que se esqueceu de mim?
Levantou-se tristonho e disse à mulher:
— Minha doce amada, eu tinha, prometido a meu pai que voltaria o
mais depressa possível e esqueci a promessa. Arrependo-me agora, porque
está velho e eu sou filho único.
Budur respondeu prontamente:
— A obediência é a mais bela das virtudes. Partamos sem demora pa-
ra as ilhas Kalidan, a fim de ver seu pai.
Os dois príncipes despediram-se do rei e do príncipe Marzavan, prome-
tendo estar de volta dentro de dois anos. *
Grande séquito de homens, cavalos e camelos pôs-se em marcha. Bu-
dur ia recostada na liteira e Kamar ia a seu lado, montando seu esplêndido
corcel branco.
Tiveram seis meses de jornada, antes de alcançar as ilhas Kalidan.
Ali chegados, foram recebidos pelo rei Shariman com abraços e lágrimas de
alegria. Depois, enviaram mensageiros ao rei das ilhas, dos mares e dos se-
te castelos, que ficou muito feliz ao saber que a filha chegara sem transtor-
nos ao reino de seu marido.
Por muitíssimos anos, Kamar e Budur viveram em paz e prosperidade e
frequentemente relembravam a maneira prodigiosa como se haviam encon-
trado.
****• S-
(antiga fábula popular árabe)
;ivia em Bagdá um mercador que
Tora muito rico mas que, aos pou-
•i-os, vinha perdendo a maior parte
<K' soas haveres em negócios mal sucedidos.
Acabrunhava-se, recriminando-se por ter
sido incompetente, privando a família do luxo
a que estava habituada.
Seu palácio de mármore branco, outrora
famoso em toda a cidade por seus esplêndidos
tapetes orientais, suas paredes cobertas de es-
tofos de ouro e de púrpura, suas estátuas de
jade e de marfim, estava agora vazio de todos
aqueles tesouros, despido qual casa desabita-
da. Sua loja, que fora a melhor abastecida
numa área de milhas e milhas ao redor, não
continha agora mais que umas sobras de ma-
deira de sândalo.
Nesse lenho precioso estavam postas todas
as esperanças do mercador: se conseguisse ven-
dê-lo a bom preço, teria um lucro razoável e,
com isso, esperava voltar a fazer fortuna.
Certo dia, ouviu falar num mercador re-
cém-chegado de longuíssima viagem. Diziam-
no ligado ao comércio de todos os países, co-
nhecedor de usos e costumes de terras distan-
tes, além de muito sábio.
Xosso mercador foi, pois, ter com ele para
lhe pedir conselho.
- Se quer colocar bem a sua mercadoria,
disse-lhe o mercador viageiro, deve ir vendê-la
em terras onde seja apreciada.
— É mais do que justo o que diz, irmão.
Mas, conhece um país onde o lenho de sânda-
lo seja mais precioso do que aqui?
— Conheço. Existe uma cidade onde es-
sa madeira é mais valiosa do que o ouro ou a
prata. Mas, tenha cautela: é uma cidade es-
tranha, cercada de montanhas. Ninguém vai
até lá e nem eu mesmo tive a ousadia de fazê-
lo, embora conhecesse o caminho.
— Rogo-lhe que me indique esse caminho
— Terá de cavalgar trinta dias e trint?
noites consecutivos. Por fim, chegará aos péo
dê altíssima montanha. Repouse ali, você e •'
seu cavalo. Depois, comece a subir.
O caminho que leva à cidade é estreito i
ríspido. Por mais que você olhe ao redor, nãc
avistará viva alma, porque os habitantes vi
vem isolados e não transpõem os muros da ci-
dade.
Obtidas as indicações, necessárias, o mer-
cador carregou sua madeira perfumada no lom-
bo de um camelo e partiu.
Dias e noites viajou a cavalo até que des-
cortinou, lá no alto, à luz incerta da aurora, os
muros da cidade que procurava.
Ia a subir pela senda íngreme, quando to-
pou com uma velha que pastoreava o seu re-
banho.
Afastou-se, para lhe dar passagem e sau-
dou-a.
— Que Alá a salve, a você e ao seu reba-
nho, ó mulher!
A velha encarou-o, estupefacta.
— Quem é você? Ninguém nes-
te país teria tido a ideia de dirigir
uma palavra amável a uma pobre
velha.
— Sou um mercador estran-
geiro. 103
— Um mercador?! Pois guar-
de-se dos habitantes deste lugar!
São gente astuta e ladrona, que se
alegra por conseguir ludibriar um
estrangeiro. Faça como achar me-
lhor, estou só querendo aconse-
lhá-lo.
O mercador estranhou aquele
modo de falar. Ficou sem saber se
devia dar crédito à velha, mas não
teve tempo para maiores explica-
ções, porque ela já ia longe, com seus
carneiros.
Ao cair da noite, chegara aos
muros da cidade. Acomodou-se co-
mo pôde: buscou refúgio que o abri-
gasse do vento e, tendo-o encontra-
do, preparou-se para dormir. Mar-
telavam-lhe a mente as palavras da
velha e assim, fosse pelo frio inten-
so, fosse pela insegurança, pelo te-
mor, passou uma noite agitada por
pesadelos.
Apenas raiou o dia transpôs a
porta da cidade, lançando ao redor
olhares desconfiados.
Acercou-se-lhe logo um habi-
tante que, após tê-lo saudado, per-
guntou-lhe:
— De onde vem?
— De Bagdá.
— Que mercadoria traz?
— Pau de sândalo, por ter ouvido dizer que nesta cidade é muito pro-
curado e muito bem pago.
— Quem lhe disse tal coisa? Pois imagine que, para nós, a madeira de
sândalo só serve para acender fogo, na cozinha. E tem menos valor do que
qualquer outra lenha de queimar.
Grande foi o desaponto do mercador. Lembrando-se, porém, do aviso
da velha pastora, ficou sem saber se acreditava ou não. Indeciso quanto ao
que fazer, dirigiu-se a uma hospedaria, onde pediu alojamento para aquele
dia e o seguinte.
Assim que acomodou as bagagens, desceu para o pátio 6 pôde ver o ho-
mem de há pouco que, na companhia de outro mercador, acendia o fogo de-
baixo de uma panela com uma lenha muito semelhante à madeira de sân-
dalo.
Sentiu que se lhe confrangia o coração. Então era verdade! A sua
carga toda não valia mais do que um punhado de moedas de prata!
Os dois homens viram-no aproximar-se e logo lhe propuseram:
— Quer vender a sua carga?
— Quanto me dão por ela?
— Para cada medida de pau de sândalo, terá uma medida do que vo-
cê quiser.
— Está bem, vendo-a. Mas quando é que me pagarão a soma devida?
perguntou ainda o mercador.
— Não se preocupe, bom homem; amanhã, antes do anoitecer, terá o
que você quiser, responderam eles.
Levaram consigo todo o sândalo e o mecador deliberou com seus botões
que haveria de pedir tantas medidas de ouro quantas fossem as medidas
da madeira entregue.
No dia seguinte, passeava pela cidade, quando foi abordado por outro
habitante: era um homem caolho que, após tê-lo fitado demoradamen-
te, agarrou-o por um braço, gritando:
..
w
— É este o ladrão que roubou o meu olho!
O mercador procurava livrar-se e acalmar o outro, que continuava a
berrar como um possesso.
— Sou forasteiro nesta cidade, meu senhor. Como poderia ter roubado
o seu olho, se nunca, antes o havia visto? dizia-lhe, tratando de convencê-
lo. E, de mais a mais, olho não é coisa que se roube!
Já agora um pequeno grupo de pessoas os rodeava e todos pareciam dar
razão ao caolho.
O mercador começou a recear que aquilo fosse unia terra de loucos. Por
fim, para que o deixassem safar-se dali, teve de prometer que, no dia se-
guinte, de um modo ou de outro, teria pago o preço do olho.
O pobre homem sentia-se realmente transtornado. Que mais estaria
para lhe acontecer naquela estranha cidade? O lucro que lhe daria a ven-
da do sândalo iria parar inteirinha no bolso do caolho. Não havia o que fa-
zer: nascera desditado e desditado morreria!
Pensativo, olhou para o chão e percebeu que, naquele alvoroço, um de
seus sapatos se rompera. Procurou a oficina de um sapateiro e com ele dei-
xou o sapato, dizendo:
— Remende-o, e terá com que estar satisfeito.
Com um só pé calçado, não podia ir longe. Na primeira esquina, topou
com um grupo de homens que se entretinham jogando. Para matar o tem-
po e afugentar os pensamentos funestos que lhe passavam pela cabeça, sen-
tou-se junto a eles para sapear o jogo.
Dali a pouco o homem a seu lado convidou-o a jogar também; não pas-
sou muito.tempo antes que perdesse e ficasse devendo a todos eles.
"E agora, como hei de me arrumar para pagar essa .dívida?" pergun-
tava-se, acabrunhado.
— Você tem duas alternativas, disse-lhe o vizinho: ou bebe toda a água
do mar, ou nos entrega todo o seu dinheiro.
— Dêem-me tempo até amanhã, rogou o mercador.
Obtido o adiamento, afastou-se dali. Procurou um recanto solitário,
onde pudesse sentar-se a matutar em paz sobre as suas desventuras.
Lá estava, perdido em seus pensamentos pouco
animadores, quando viu passar a velha que encon-
trara no dia anterior. Ela o reconheceu e acercou-
se dele.
— Meu senhor, disse-lhe, percebo por seu ar afli-
to que os habitantes desta cidade fizeram-no vítima
de suas trapaças. Reanime-se, homem; senteTse aqui
ao meu lado e conte-me o que lhe aconteceu.
Ele contou-lhe tintim por tintim o que lhe sucedera e ela, tendo-o ou-
vido atentamente até o fim, disse-lhe:
— Foi enganado, senhor meu, ignobilmente enganado! A lenha queima-
da debaixo da panela parecia sândalo, mas não era tal, por certo. Aqui essa
madeira vale, realmente, mais do que o ouro. Aqueles que davam razão ao
caolho agiam de má fé: fingiam crer nele para obrigá-lo a lhe entregar di-
nheiro. Quanto aos que o venceram no jogo, eram ladrões, pode crer. De res-
to, eu bem lhe recomendei a máxima cautela, antes que pusesse os pés nesta
amaldiçoada cidade!
— O que não compreendo é por que todos me escolheram para judas.
Dir-se-ia que os diverte fazer-me voltar para casa arruinado e escarnecido.
— Ê isso mesmo, meu senhor, confirmou a velha.
— E por que Mo de ser tão maldosos? Se eu nada lhes fiz! queixou-se
o mercador, cada vez mais acabrunhado e aflito.
— Têm motivo para tanto; e remonta a fatos acontecidos há muito tem-
po. É preciso que saiba que nosso xeque, e corn ele todos os poderosos da
108 -
cidade, têm verdadeira loucura pela madeira de sândalo, rosada como a au-
rora e perfumada como jardim ao pôr do sol. Mas, nestas montanhas ári-
das, não cresce um galho sequer dessa madeira preciosa.
Certo dia, há muito tempo, como já disse, apareceu por aqui um foras-
teiro.
— Conduzam-me à presença do xeque, foi logo dizendo com voz de co-
mando aos guardas, porque eu conheço o segredo capaz de fazer nascer aqui
a árvore do sândalo.
Como única resposta, os soldados, desconfiando dele, algemaram-no e
puseram-no na cadeia. Depois, foram ao xeque informá-lo do acontecido.
— Façam-no entrar no salão de armas! ordenou.
O estrangeiro foi trazido à sua presença e recebido com estas palavras:
:— Não sei quem você é, nem de onde vem.. Prometo-lhe, porém, que, se
me ensinar como fazer nascer aqui a árvore do sândalo, será nomeado meu
ajudante e terá riqueza bastante para viver despreocupado o resto da vida.
---
Entrementes, o sapateiro apresentou-se, para trazer sua história.
— Velho xeque, fui hoje procurado por um mercador estrangeiro, que
me trazia um sapato roto para remendar. Pedi uma remuneração e ele dis-
se que eu teria com que estar satisfeito. Ora, vou dizer-lhe que só estarei sa-
tisfeito com toda a sua fortuna.
— Estúpido! disse o velho xeque. O mercador irá buscar o seu sapato e
retirá-lo-á sem te dar nada. Dirá somente: "O sultão derrotou seus inimi-
gos, suas riquezas crescem, sua prosperidade é infinita. Não lhe basta isto
para estar satisfeito?" Terá que dizer sim, porque se disser o contrário, ele
o acusará de pouco amor pelo sultão.
E eu que pensava ter sido tão ladino! exclamou o sapateiro que se re-
tirou, por sua vez, resmungando.
O último, o jogador que ganhara no jogo, vendo o pouco êxito de seus
companheiros, hesitava em se apresentar para expor seus feitos; por fim,
criou coragem e falou:
— Velho senhor, convidei um mercador estrangeiro a jogar e ele per-
deu. Fiz-lhe a seguinte proposta: ou ele bebe toda a água do mar, ou me
entrega todos os seus bens.
— Você não demonstrou maior sagacidade que os demais, recriminou-o
o xeque. O estrangeiro, se quiser, poderá safar-se com facilidade e superá-
lo em astúcia.
— Certamente não poderá beber toda a água do mar, objetou o jogador.
— Isso não, admitiu o xeque. Mas hãstaria que lhe dissesse: "Beberei
a água do mar; porém, só se for de suas mãos". Que lhe dirá? É assim que
me servem? Ai de vocês se se fizerem enganar por aquele forasteiro!
Encerrou-se a reunião com a saída do xeque, que se retirou desgos-
toso e irado*
Os demais detiveram-se alguns momentos ainda, a trocar ideias. De-
pois, foram-se retirando, também, murmurando contra o xeque.
:— Fazemos tudo para satisfazê-lof mas ele acaba sempre levando a me-
lhor, queixou-se o sapateiro, despeitado.
— Não leve a coisa tão a sério, disse-lhe um dos companheiros.
Há de ver que o mercador não
será tão astuto como o nosso xeque
e vai ser facilmente ludibriado!
— Tem razão, rebateu um ter-
ceiro; a impressão que me deu o es-
trangeiro é que era mais ingénuo
que ladino.
O mercador, que ouvira perfei-
tamente tudo o que fora dito, esguei-
rou-se de seu esconderijo, sem que
ninguém se tivesse dado conta de sua
presença.
No dia seguinte, o primeiro a
visitá-lo foi o jogador. E ele foi lo-
go dizendo:
— Meu amigo, concordo em be-
ber toda a água do mar, mas só se
for das suas mãos.
Ganhou, assim, a primeira apos-
ta.
Chegou, depois, o sapateiro.
— Aqui está o seu sapato. Dê-
me, agora, alguma coisa que me sa-
tisfaça.
— O sultão derrotou seus inimi-
gos; suas riquezas crescem, sua pros-
peridade é infinita. Está satisfeito?
— Sim, estou, retrucou o sapa-
teiro, evidentemente contrafeito.
E saiu, atirando-lhe o sapato.
O mercador apanhou-o, calçou-
o e foi ao encontro do caolho, dizen-
do-lhe:
— Irmão, arranque o seu olho,
que eu arrancarei um dos meus, para
que os pesemos. Se o peso for igual,
é sinal de que você disse a verdade
« eu pagarei o preço do seu olho.
Dê-me tempo para refletir, disse o cao-
lho.
Depois, optou por abraçar o mercador, di-
zendo-lhe:
— Perdoe-me e seja meu amigo!
Por fim, depois de muito andar, encon-
trou os dois que lhe haviam levado a madeira
de sândalo. Eles o abordaram bruscamente, di-
zendo-lhe à queima-roupa:
— O que você quer, ouro ou prata? .,
— Nem ouro, nem prata, respondeu o mer-
cador. Quero medidas cheias de pulgas, meta-
de machos, metade fêmeas.
— Pede o impossível!
— Nesse caso, devolvam-me a madeira de
sândalo.
Não tiveram outro remédio senão concor-
dar e o mercador, que grangeara fama de as-
tuto, pôde vender sua mercadoria a preço ele-
vadíssimo, com lucro apreciável.
Antes de deixar a cidade, foi procurar a
velha e deu-lhe um presente à altura de seus
conselhos. Depois, partiu, com o firme propó-
sito de não voltar a pôr ali os pés para o res-
to da vida.
H. C. Andersen
;ivia uma senhora que não tinha filhos, por mais que, ardentemen-
te, os desejasse. Cansada de esperar em vão a vinda de uma crian-
ça, foi procurar uma velha feiticeira.
que me arranje um filho, disse-lhe.
- .Farei o possível para satisfazê-la retrucou a feiticeira. Aqui tem uma
semente de cevada; mas não é igual às que brotam nos; campos e os cava-
los comem. Plante-a num vaso e verá.
— Obrigada, disse a senhora, entregando à bruxa doze dinheiros.
Voltou para casa e plantou logo a semente de cevada. Bem cedo, viu
despontar da terra uma flor, que parecia uma tulipa ainíia em botão.
— Que, linda flor! exclamou deslumbrada, beijando as pétalas verme-
lhas e amarelas.
117
No mesmo instante, abriu-se a flor. Era realmen-
te uma tulipa. Só que, em seu interior, no fundo ver-
de e aveludado, estava sentada uma meninazinha miú-
da, graciosa e delicada. Não teria mais. que um pole-
gar de altura: daí terem-lhe dado o apelido de Pole-
garzinha.
Teve por berço uma casca de noz bem enverniza-
da; por colchão, folhas de violeta e, por coberta, uma
folha de rosa. Ali dormia durante a noite; de dia, po-
rém, brincava na mesa. Nas águas de um prato en-
feitado de flores, cujas corolas descansavam na borda
e cujas hastes mergulhavam no frescor da água, boia-
. vá uma pétala de tulipa. Era o. barco de Polegarzinha,
que nele navegava mansamente de uma beira à outra.
Serviam-lhe de remos dois fios de crina de cavalo. E
Polegarzinha cantava com voz tão suave e melodiosa
como jamais se ouvira outra igual.
118
Certa noite, um sapo entrou, por um vidro partido da janela. Enorme e
viscoso, saltou para cima da mesa onde Polegarzinha dormia, coberta com
sua folha de rosa.
— Que linda esposa para o meu filho! exclamou o sapo.
E, apoderando-se da casca de noz, fugiu com ela para o jardim.
No jardim, corria um riacho, cuja margem ia dar num lodaçal, onde mo-
ravam o sapo e seu filho.
— Coac! Coac! Brekke-ke-keek, exclamou a hedionda criatura, diante
da formosa pequerrucha que o pai lhe trazia, deitada em sua casca de noz.
— Não fale assim tão alto que é capaz de acordá-la, admoestou-o o ve-
lho sapo. E, se acordasse, poderia fugir, levezinha como é: parece pluma de
cisne! Vamos colocá-la numa folha grande de nenúfar, ali no meio do ria-
cho: estará como numa ilha, de onde não poderá escapulir. E nós dois, va-
mos começando a construir a casinha onde você vai morar com ela.
Assim dizendo, saltou n'água, escolheu uma folha bem grande de ne-
núfar e, com delicadeza surpreendente em animal tão desajeitado, pousou
nela a casca de noz onde Polegarzinha, apesar de todas aquelas mudanças,
continuava serenamente adormecida.
Foi só na manhã seguinte que a pobrezinha, ao despertar,'percebeu on-
de estava. Ao ver-se rodeada de água por todos os lados, sem possibilidade
de evasão, desatou em pranto.
O velho sapo, depois de enfeitar com rosas e outras florinhas amarelas
a casinhola destinada a receber os noivos, navegou, com o filho, em direção
à folha onde estava Polegarzinha. Inclinando-se profundamente diante de-
la, falou-lhe assim:
— Aqui está o seu futuro marido. Estou arrumando eu mesmo para vo-
cê uma esplêndida morada no lodaçal.
— Coac! Coac! Brekke-ke-keek, acrescentou o filho.
Levaram-lhe a caminha e ela ficou só, amedrontada e infeliz, ante a pers-
pectiva de se casar com aquele sapo repelente.
— Nunca! Isso nunca! dizia, relembrando com saudades os dias em que
vivia tranquila em seu pratinho cheio de água e de flores.
Passavam-se os dias. E, a cada dia que passava, crescia a tristeza de Po-
legarzinha.
Os peixinhos do rio, tendo ouvido o que o sapão dissera, encheram-se de
curiosidade. Puseram a cabecinha fora dágua e ficaram a fitá-la. Acharam-
na linda e meiga e logo pensaram na tragédia que havia de ser se, de fato,
tivesse que se casar com aquele sapo tão feio. Não! Não havia de ser! Reu-
niram-se em torno da haste que prendia a folha à planta e, com os denti-
nhos afiados, cortaram-na. A folha, já solta, foi sendo levada, docemente,
pela correnteza e, com ela, Polegarzinha. E navegaram, navegaram, de man-
sinho, até bem longe, lá onde os sapos não podiam chegar.
Em todos os lugares por onde passava, Polegarzinha ia despertando ad-
miração. Os pássaros dos bosques, ao vê-la tão linda e frágil, cantavam-lhe
elogios.
119
A certa altura, formosa borboleta chegou, esvoaçando, rodeou a folha
e acabou pousando nela, para melhor contemplar a formosura de sua
ocupante. E ela, feliz por ter escapado ao horrendo sapo, enchia os olhos
e o coração das belezas da natureza, da transparência da água, onde os
raios do sol punham faíscas de ouro. Desatou o cinto do vestido, e amarrou
uma ponta às antenas da borboleta e outra à folha, de modo a deslizar ainda
mais rápida e leve, sobre as águas plácidas.
De repente, passou por ela um besouro que, notando-a, a enlaçou deli-
cadamente nas patinhas e com ela voou para o cimo de uma árvore.
Qual não foi o susto de Polegarzinha ao ver-se transportada pelos ares!
Além disso, preocupava-a a ideia de que a linda borboleta, não sendo capaz
de soltar as amarras que a prendiam, morresse de fome; pobrezinha!
O besouro acomodou Polegarzinha na folha mais espaçosa da árvore,
trouxe-lhe néctar de flores para comer. E, embora ela não se assemelhasse
absolutamente à raça dos besouros, fez-lhe um mundo de elogios por sua for-
mosura.
Bem cedo, todos os demais besouros moradores da árvore vieram fazer-
lhes visita. As donzelas besouras, ao ver Polegarzinha, sacudiram as ante-
nas e exclamaram, consternadas:
121
desses bichinhos do campo. Enchendo-se de coragem, bateu à porta. Foi
atendida por um ratão, de gorro vermelho na cabeça, cachimbo na boca e
bastão nodoso entre as patas.
Polegarzinha apresentou-se como alguém que mendigava um grão de ce-
vada, por estar sem comer há dois dias.
— Pobrezinha! exclamou o velho rato dos campos, que era de bom co-
ração. Entre e venha comer à minha mesa; está quentinho aqui dentro,
Deu-lhe de comer e depois lhe disse:
— Pode passar aqui o inverno, com a condição de manter bem limpi-
nhos os quartos e de me contar alguma história bonita. Sou louco por his-
tórias!
Aceitou a proposta e não teve do que se queixar.
— Teremos hoje uma visita, anunciou certo dia o velho rato. O meu vi-
zinho costuma visitar-me uma vez por semana. É muito mais rico do que
eu. Tem uma casa com diversos salões e usa casaco de veludo. Se quisesse
casar-se com você, teria muita sorte! Conte-lhe as mais belas histórias que
souber.
Polegarzinha. porém, não tinha entusiasmo pela ideia de casar-se com o
vizinho: tratava-se de uma toupeira!
Envolto em seu abrigo de veludo, não tardou em aparecer, para ã cos-
tumeira visita. Falou-se muito em suas riquezas e sua instrução. Porém,
dizia horrores do sol e das flores, sem conhecê-los, pois, como todas as tou-
peiras, vivia debaixo da terra.
Polegarzinha cantou-lhe diversas canções. E ele, fascinado por sua voz
melodiosa, sentiu-se desejoso de-se casar com ela. Porém, avisado e caute-
loso como era, cuidou de não tomar decisões apressadas, das quais pudesse
vir a arrepender-se mais tarde.
Querendo mostrar-se agradável, convidou os vizinhos a passear numa
grande galeria subterrânea que ele próprio cavara, unindo as duas casas.
Preveniu-os, porém, que não se asustassem à vista de um pássaro morto que
ali fo;ra sepultado no início do inverno.
Ia à frente, abrindo caminho aos visitantes. Chegando ao local onde ja-
o pássaro morto, bateu com o focinho na abóbada da galeria escura, fa-
zendo uma brecha, por onde entrou luz. Ali, no meio do corredor, estava o
corpo de uma andorinha, certamente morta de fome, com as asas apertadi-
nhas ao corpo e as patinhas escondidas debaixo das penas. Aquele espetá-
culo feriu o coração de Polegarzinha. Gostava tanto dos passarinhos que nos
dias quentes de verão a haviam alegrado com seu canto!
A toupeira afastou'a andorinha com as patas, dizendo:
— Este é um que já não vai poder cantar. Que desgraça, nascer passa-
rinho! Por sorte, nenhum de meus filhos terá esse triste destino!
— Você é jsábio, aprovou o rato. Isso de cantar nunca serviu para nada.
Polegarziuha não fez comentários, mas quando os outros dois se volta-
ram, inclinou-se sobre a andorinha è deu-lhe um beijo nos olhinhos fe-
chados.
"Pobre avezinha! Talvez ainda neste verão que passou estivesse can-
tando para mini!" pensou.
A toupeira, depois de tapar cuidadosamente o buraco que abrira, acom-
panhou seus vizinhos de volta à casa do rato.
Durante a noite, Polegarzinha levantou-se, teceu um belo tapete de fe-
no, foi até a galeria e o estendeu sobre a andorinha morta, com a intenção
de aquecê-la.
Apoiou-lhe a cabeça no peito e logo retrocedeu, assustada: sentira um
ligeiro bater! Era o coração da avezinha, que não estava morta, como pare-
cia, mas somente entorpecida pelo frio. O calor devolvera-lhe a vida.
Polegarzinha tremia de susto: perto dela, a andorinha tinha proporções
gigantescas. Enchendo-se, porém, de coragem, envolveu-a no feno e cobriu-
lhe a cabeça com uma folha.
Na noite seguinte, quando voltou a visitar a doente, encontrou-a viva,
mas tão debilitada ainda que só por um instante entreabriu os olhos para
ver quem a cuidava.
— Agradeço-lhe, linda menina, disse-lhe com um fiozinho de voz, por
me ter aquecido. Dentro em pouco, recobrarei as forças e voarei pelos céus,
exposta aos raios do sol dourado.
— Faz frio lá fora, disse Polegarzinha; está nevando. Deixe-se ficar
deitadinha na cama que eu cuidarei de você.
Depois, foi buscar água e a trouxe, na pétala de uma flor.
A andorinha bebeu e contou-lhe que, tendo-se ferido na asa, não pude-
ra seguir com as companheiras rumo aos países quentes. Caíra no chão e,
a partir daquele instante, não se lembrava de mais nada do que acontecera.
Durante o resto do inverno, sem que nem o rato nem a toupeira sou-
bessem, Polegarzinha cuidou de sua amiga ave.
Com a chegada da primavera, a andorinha dispôs-se a partir e convi-
dou Polegarzinha a acompanhá-la. Mas ela respondeu que não podia aban-
donar o rato, a quem estava presa por uma divida de gratidão.
— Nesse caso, adeus linda menina!
E lá se foi a andorinha, voando para o calor do sol dourado.
Polegarzinha viu-a partir com lágrimas nos olhos: afeiçoara-se tanto a
ela!
— Neste verão você vai preparar o enxoval, disse-lhe um dia o rato.
(De fato, a toupeira pedira a mão de Polegarzinha). Para se casar com a
toupeira, deve levar roupa branca suficiente e vestidos que cheguem.
Fê-la sentar-se à roca e ajustou quatro aranhas para que fiassem min
terruptamente até que tudo estivesse terminado antes da data marcada.
123
Ao iniciar-se o outono, Polegar-
zinha tinha o enxoval pronto.
— Dentro de quatro semanas se-
rá o casamento, anunciou o rato.
Ela chorou, protestando que não
queria desposar a toupeira enfado-
nha.
— Que tolice I exclamou o rato.
Devia é estar satisfeita por casar
com tão importante personagem e
ter uma casa tão farta.
Chegou o dia do casamento.
^^^T
das montanhas, onde o sol é mais brilhante do que aqui, onde o verão e as
flores são eternos. Venha comigo, minha querida amiguinha, que me sal-
vou a vida, quando eu estava naquele corredor escuro, a morrer de frio.
— Sim, sim, irei com você! consentiu Polegarzinha desta vez.
E, assim dizendo, sentou-se no dorso do pássaro, amarrando o cinto às
penas mais firmes. Foi transportada através do espaço, sobrevoando a flo-
resta, o mar e as montanhas cobertas de neve.
A princípio, sentiu frio; e então aninhou-se nas plumas mornas, dei-
xando de fora só a cabecinha, para poder admirar as belezas que ficavam
lá embaixo.
125
Chegaram assim às terras quentes, onde as parreiras se carregavam de
cachos vermelhos, onde se estendiam campos imensos de limões e de laran-
jas, onde mil plantas maravilhosas enchiam o ar de seu aroma penetrante,
onde as crianças brincavam nas ruas com borboletas multicores.
Junto a um lago azul, a andorinha deteve-se. Numa das margens, er-
guia-se antigo castelo de mármore, cercado de colunas, que sustinham um
pergolado. Debaixo do telhado, havia uma porção de ninhos: num deles, mo-
rava a andorinha.
— Ali está a minha casa, mas não convém que more comigo, porque não
estou preparada para hospedá-la. Escolha você mesma a flor mais bela pa-
ra fazer nela a sua casa. Levá-la-ei até lá e esforçar-me-ei para que passe
aqui uma, temporada feliz.
126
Polegarzinha estava no auge da felici-
dade. Qual não foi, porém, o seu espanto
quando viu, dentro da flor que escolhera, um
homenzinho branco e transparente como vi-
dro, de estatura mínima. Não era mais alto
do que um dedo polegar. Usava na cabeça
uma coroa de ouro e nas costas tinha asas
de brilhantes. Era o'génio das flores. Cada
flor era o palácio de um homenzinho e de
uma mulherzínha e ele reinava sobre todo
aquele povo.
— Ó que homenzinho mais lindo! disse
Polegarzinha.
à vista do gigantesco pássaro, o prmci-
pezinho assustou-se. A andorinha compre-
endeu que o génio das flores a temia. E dis-
se, então, a Polegarzinha:
— Estou contente por vê-la sorrir de no-
vo. Mas agora tenho que ir. Meu velho ni-
nho está à minha espera. Adeus!
Polegarzinha entristeceu-se. Agradeceu
à andorinha e disse-lhe que voltasse a visitá-
la de vez em quando.
— Como se chama? perguntou-lhe o gé-
nio das flores, assim que a andorinha levan-
tou voo.
— Meu nome é Polegarzinha e venho de
um país muito distante daqui, respondeu ela.
— Você é a criatura mais linda que já vi!
exclamou o pequeno príncipe, enlevado.
E ali mesmo lhe pediu que se casasse
com ele, colocando-lhe na cabeça sua pró-
pria coroa.
Que marido, comparado ao sapinho e à
toupeira de casacão preto! Se o aceitasse,
seria rainha das flores.
Aceitou-o, naturalmente. E logo rece-
beu a visita dos cavalheiros e das damas que
saíam das outras flores para levar-lhe pre-
sentes.
Ganhou um sem-número deles, mas ne-
nhum a agradou tanto como um par de asas
transparentes que lhe pregaram às costas.
Com elas, pôde esvoaçar, feliz, de uma
a outra.
127
Durante os festejos das bodas, a andorinha, lá em seu
ninho, cantava suas canções mais lindas. Mas havia tristeza
em sua voz, porque ia separar-se de sua amiguinha.
— De agora em diante, já não se chamará Polegarzinha,
dizia o génio das flores à noiva. O nome é feio, para alguém
tão formosa: formosa como deve ser a rainha das flores. Cha-
mar-se-á Maia.
— Adeus! adeus! disse a andorinha, e saiu voando, de re-
gresso ao céu cinzento da Dinamarca.
Lá chegando, estabeleceu-se em seu antigo ninho, que fi-
cava justamente em cima da janela, onde o autor desta histó-
ria espera, cada ano, a sua volta.
Quivit! Quivit! Quivit! Quivit! cantou-lhe a avezinha.
— E foi assim que ele ficou sabendo desta história.