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Amanheceu.

Através das grades da janela, podia ver o


povo, deixando a cidade para ir à periferia assistir ao seu en-
forcamento. Iam todos a correr. Houve até um aprendiz de
sapateiro que, na afobação, perdeu, sem se dar conta, uma das
chinelas, que foi bater contra a parede da prisão, debaixo da
janela do soldado.
— Ei, ei, bom homem! gritou-lhe o condenado, que espia-
va através das grades da cela, à espera de alguém que pas-
sasse.
Mas o outro, sem lhe prestar atenção, prosseguiu em sua
carreira.
— A sua chinela! gritou-lhe de novo o soldado.
Desta vez, foi ouvido. O outro voltou-se e veio em busca
da chinela perdida.
— Muito obrigado, disse, ao enfiá-la, já disposto a sair
correndo.
— .Não se apresse dessa forma, acrescentou o soldado.
— Se não me apresso, interrompeu-o o sapateiro, não al-
canço o enforcamento.
— Detenha-se um instante, sem mim, o espetáculo não co-
meça,
— E por que? indagou o outro.
— Porque sou eu o condenado à forca.
Diante dessa declaração, emudeceu o sapateiro.
— Tenho um favor a pedir-lhe, prosseguiu o soldado. Vá
correndo até o meu hotel, apanhe no quarto o meu candeeiro
e traga-o logo até aqui.
O sapateiro, feliz em poder satisfazer ao último desejo
de alguém prestes a morrer enforcado, saiu na disparada.
Mas, por mais que procurasse ser rápido, só a muito custo
conseguia abrir caminho por entre a multidão que vinha em
sentido contrário.
O soldado, vendo aproximar-se o momento de sua execu-
ção, esperava com ansiedade crescente a volta do sapateiro.
Finalmente, avistou-o, com o candeeiro na mão, e deu
um suspiro de alívio.
•— Muito obrigado, bom homem, salvou-me a vida!
O sapateiro estranhou aquelas palavras. Mas, julgou que,
transtornado pela emoção, o soldado estivesse a dizer coi-
sas sem nexo. Cumprimentou-o e seguiu seu caminho.
Nesse ínterim, fora erguida, nos arredores da cidade, uma
grande forca. Cercavam-na os soldados do rei e mais de cem
mil pessoas. O rei e a rainha estavam acomodados em magní-
fico trono; defronte deles, assentavam-se o juiz e todo o con-
selho da coroa.
O condenado subira já os degraus da forca e o carrasco
estava para rodear-lhe o pescoço com a corda, quando pediu
permissão para formular seu último desejo. Queria fumar e
implorava que lhe fossem concedidas as últimas pitadelas de
sua vida.
O rei não pôde negar-se. Então, o soldado tomou o can-
deeiro, e acendeu-o: uma, duas, três vezes. Imediatamente,
surgiram os três cães: o dos olhos como xícaras, o dos olhos
como rodas de moinho, o dos olhos como torres.
— Socorram-me: estou para ser enforcado! gritou-lhes o
soldado.
Atiraram-se os cães sobre o juiz e os conselheiros da co-
roa. Estes abandonaram o local precipitadamente, em desaba-
lada • corrida, até ultrapassarem os confins da cidade.
- Pois eu não hei de fugir! disse o rei. Todavia, quan-
do o maior dos cães se aproximou dele, rangendo os dentes,
agarrou a mão da rainha e a arrastou para bem longe, em ver-
gonhosa retirada.
l Os soldados, então, e o povo todo romperam em aclama-
ções:
— Soldadinho valente, será você o nosso rei e desposará
a bela princesa!
O soldado não cabia em si de contente. Fizeram-no sen-
tar-se na carruagem do rei. Os três cães iam à frente, abrin-
do caminho. Os soldados apresentavam armas, os moleques
assobiavam em regozijo.
A princesa deixou seu castelo de cobre e foi proclamada
rainha.
Estava realizada a profecia.
Os súditos alegravam-se por saber que a princesa já não
viveria aprisionada. Sua esplêndida beleza a todos fascinou:
A7estia um suntuoso traje bordado de pérolas e miçangas de
ouro. Seu maior encanto, porém, eram o sorriso radiante e os
olhos claros, a refulgir como duas estrelas.
O próprio rei, perante a felicidade que lia no* rosto da fi-
lha, esqueceu que o noivo não pasáava de um soldado. Era um
soldado, é certo, mas possuía um poder superior ao seu!
Celebraram-se as bodas com grande pompa e os festejos
se prolongaram dias a fio: foi uma semana inteira de festan-
ça. Os três cachorros participaram de tudo. Sentados à me-
sa como qualquer outro conviva, esbugalhavam ainda mais os
olhos diante das iguarias.
C. Perraulte
rã uma vez um lenhador e sua mulher. Tinham sete filhos, todos
homens. Sendo paupérrimos, preocupavam-se muito, por não
terem com que sustentar as crianças. E, como o mais velho tinha
dez anos, nenhum deles podia trabalhar para ganhar a vida.
O caçulinha era franzino, de saúde delicada e muito calado. Isso ain-
da mais os confrangia, pois julgavam que fosse tolo. Mas ele de tolo não
tinha nada: era até bem inteligente de muito bom coração. De estatura mí-
nima, ao nascer não media mais do que um polegar, o que lhe valera o ape-
lido de Pequeno Polegar.
Em casa, os irmãos judiavam dele e faziam-no levar sempre a pior. En-
tretanto, era o mais esperto de todos eles. Se era de poucas palavras, em
compensação tinha ouvidos atentos para tudo quanto se dizia ao seu redor.
Chegou um ano de tamanha carestia que o lenhador e sua mulher, à bei-
ra da fome, decidiram abandonar os filhos. Xão era que não os amassem,
pelo contrário: esperavam que alguém os encontrasse e os recolhesse.
Por mais que o marido se em-
penhasse em fazer-lhe ver a extre-
ma pobreza em que viviam, ela não
se convencia: era pobre, irias era
mãe!
Por fim, considerando a dor tre-
menda que havia de sentir se os vis-
se morrer de fome, deixou-se con-
vencer e acabou concordando. E foi
para a cama chorando.
O Pequeno Polegar não perde-
ra uma palavra da conversa dos pais.
Percebendo que se tratava de assun-
to importante, pulara da cama e, pé
ante pé, fora meter-se debaixo do
banquinho de seu pai. E assim, sem
ser visto, escutara tudo.

Certa noite, estando as crianças


na cama, disse o lenhador à mulher,
confrangido de dor:
— Bem vê que já não podemo
alimentar nossos filhos. A ideia de
vê-los morrer de fome aqui, diante
de nossos olhos, me apavora! Tomei
uma decisão: amanhã, levo-os para o
bosque e os deixo lá. Não será difí-
cil; enquanto estiverem entretidos
em catar lenha, nós fugiremos e eles
nem se darão conta.
— Ó, disse a mulher. Não me
diga que tem coragem de abandonar
os seus filhos no bosque!
Voltou para a cama, mas não conseguia conciliar o sono, preocupado
que estava em traçar planos para o dia seguinte.
De manha bem cedinho, levantou-se e foi até à beira do rio. Encheu os
bolsos de pedrinhas brancas e voltou para casa.
A família saiu para o bosque, O Pequeno Polegar ia muito calado, sem
contar nada aos irmãos do que sabia.
Entraram numa floresta tão cerrada que, distanciando-se uns dez pas-
sos uns dos outros, os meninos já não podiam ver-se.
O lenhador principiou a cortar lenha, enquanto os filhos recolhiam ga-
Ihozinhos secos e os juntavam em pequenos feixes. Vendo-os entretidos, os
pais, conforme haviam combinado, foram-se afastando cautelosamente, até
fugirem apressados por uma senda que a galharia escondia.
Ao dar-se conta de que estavam sós, as crianças desandaram a chorar,
aos berros. O Pequeno Polegar deixou-os gritar, bem sabendo que volta-
riam para casa, pois que, na vinda, viera espalhando pelo caminho as pe-
drinhas que trazia nos bolsos.

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— Não é preciso ter medo, disse aos irmãos. Venham comigo.
Os irmãos calaram-se instantaneamente e o seguiram. E ele, orientado
pela trilha de pedregulhos, levou-os de volta para casa.
Ali chegando, não entraram logo: detiveram-se na soleira da porta para
ouvir o que diziam o pai e a mãe, lá dentro.
Voltando do bosque, o lenhador e sua mulher, haviam tido uma surpre-
sa: o senhor da aldeia viera pagar uma dívida antiga que tinha com eles.
Como não comessem há dias, a mulher fora correndo ao açougue e compra-
ra muito mais carne do que seria necessário para duas pessoas.
Comeram, pois, à vontade. Saciada a fome, ela disse:
— Onde estarão as nossas pobres crianças? Como haviam de se regalar
com o que nos sobrou! Bem dizia eu que nos íamos arrepender... O que es-
tarão fazendo, a estas horas, lá na floresta? Meu Deus! com certeza os lo-
bos já os terão devorado. Você é desumano... abandonar os filhos desse
jeito!...
O lenhador perdeu a paciência e ameaçou bater-lhe, se não se calasse.
Pobre homem! Sofria tanto — mais que a mulher, talvez — e ela a ator-
mentá-lo com suas lamúrias e suas perguntas inúteis:
— Ai de mim, sem os meus filhos! Onde estarão agora?
— Estamos aqui, estamos aqui! gritaram em coro as crianças.
Ela correu a abrir-lhes a porta e abraçou-os a todos.
— Que felicidade, ver de novo os meus filhinhos! Como estão can-
sados. . . E que fome devem ter!.. .
Eles sentaram-se à mesa e comeram
com sofreguidão. Entre uma garfada e
outra, foram contando o susto por que
haviam passado na floresta.
Os pais, coitados, não desprendiam
deles os olhos: olhavam-nos comer, com
enlevo, como se não os vissem há anos,
Mas a alegria da família durou en-
quanto durou o dinheiro. Findo este,
voltaram a cair na miséria de antes. No-
vamente, decidiram deixá-los no bosque,
só que, desta vez, em local mais afas-
tado.
E novamente, o Pequeno Polegar,
tendo-os ouvido, pensou em como vencer
as dificuldades.
Na manhã seguinte, logo ao raiar do
dia, estava de pé, tencionando ir ao rio
à cata de pedrinhas. Mas encontrou a
porta trancada com ferrolho, coisa que o
desnorteou. Por fim, depois de muito
matutar, lembrou-se das sobras de pão
do jantar. Resolveu que o esmigalharia
pelo caminho, substituindo as pedrinhas.
Sem perda de tempo, foi buscá-lo e o me-
teu no bolso.
O pai e a mãe conduziram-nos para
o mais cerrado do bosque e ali os aban-
donaram.
O Pequeno Polegar estava despreo-
cupado, pois contava com o rastro das
migalhas para mostrar-lhes o caminho.
Esperava-o, porém, uma triste surpresa: C
as migalhas haviam sido comidas pelos
passarinhos da floresta.
Qual não foi o desespero das crian-
ças! Desta vez, sentiam-se perdidos no
bosque para sempre.
Anoiteceu e um vento frio ergueu-
se, a soprar furioso. Apavorados, pare-
cia-lhes que ouviam os uivos dos lobos.
N"ão ousavam olhar ao redor, nem profe-
rir palavra.

73
Uma chuva pesada pôs-se a cair, en-
sopando-os até os ossos. Escorregavam
a cada passo na lama e se levantavam
pesados de barro.
O Pequeno Polegar teve a ideia de
subir a uma árvore, para tratar de des-
cobrir algum abrigo. Depois de perscru-
tar o horizonte em todas as direções,
avistou lá ao longe, além da floresta, um
lumezinho. Desceu da árvore, mas, as-
sim que tocou terra, já não viu nada, tão
pequenino era. Todavia, orientou os ir-
mãos na direcão da luz que avistara. De-
pois de muito caminhar, à saída do bos-
que, com imensa alegria, avistou-a de
novo.

Finalmente, chegaram à casa ilumi-


nada: assustadíssimos, porque, mais de
uma vez, haviam perdido de vista o lu-
mezinho bruxoleante. Bateram à porta;
veio-lhes abrir uma mulher, que lhes per-
guntou o que queriam. Polegarzinho fa-
lando por todos, explicou que eram po-
bres crianças perdidas na floresta a pe-
dir, por caridade, um abrigo.
Ela, ao vê-los tão pequenos e desam-
parados, compadeceu-se. Com lágrimas
nos olhos, lhes disse:
— Pobrezinhos, onde vieram cair!
Não sabem que esta é a casa de um ogro
que come as criancinhas?
— Ajude-nos, boa senhora! implorou o Pequeno Polegar, que tremia de
medo, como seus irmãos. O que será de nós? Se não nos der asilo, lá fora,
seremos- devorados pelos lobos da floresta. Será preferível arriscar-nos a
sermos comidos pelo ogro. Ele, ao menos, poderá ter compaixão de nós, se
a senhora lhe pedir.
Agora fê-los entrar. Pensava poder escondê-los do marido ao menos
por uma noite. Para que se aquecessem, sentou-os ao pé do lume.
Começavam já a sentir-lhe o calorzinho benéfico, quando ouviram ba-
ter com violência à porta: era o ogro que chegava.
A mulher mandou que se escondessem às pressas debaixo da cama e
foi abrir-lhe.
O ogro entrou, perguntando se esta vá pronto o jantar e foi logo servin-
do-se de vinho. Sentou-se à mesa e devorou o carneiro que a mulher lhe ha-
via preparado. Mas estava inquieto: farejava o ar, afirmando que sentia
cheiro de carne fresca.
— Deve ser a vitela que acabei de cortar, dizia a mulher.
— O que eu sinto é cheiro de carne fresca^ repito! berrava ele, impaci-
ente. Aqui nesta casa deve haver alguma coisa...
Assim dizendo, levantou-se da mesa e foi direto ao quarto espiar debai-
xo da cama.
— Eu não dizia?! vociferou. Então é assim'que você me engana, mal-
dita mulher? Não sei o que me impede de engoli-la viva! acrescentou.
Mas. .. vejamos estas crianças! Irra, que magrelinhas são! É de esperar
que sejam, ao menos, macias de comer. . .
E continuou resmungando com seu vozeirão cavernoso, aterrorizando
ainda mais os sete irmãozinhos.
De repente, lembrou-se que, durante o dia, enquanto caçava, encontra-
ra três ogros amigos seus que se queixavam do mal que comiam de uns tem-
pos para cá.
— Refeição suculenta e farta tem sido coisa rara! Você sim, que está
redondo de gordo! Tem muita sorte em encontrar tão boa caça, nesta épo-
ca em que os animais escasseiam! haviam-lhe dito.
— Pois bem, propusera ele; prometo convidá-los a comer comigo assim
que tiver uns bocados que valham a pena.
Voltava-lhe agora à memória o convite feito. Um a um, foi puxando os
meninos de sob a cama e os examinava complacente, saboreando de ante-
mão a ceiazinha requintada que dariam.
Os pobrezinhos caíram de joelhos, implorando compaixão. Mas, para
sua desdita, tinham calhado coin o mais cruel dos ogros. Com os olhos,
já os devorava e dizia à mulher que, num molho preparado por ela, dariam
bocados de lamber os beiços.
Foi à cozinha e voltou com um facão enorme; afiando-o numa pedra,
foi-se chegando às crianças.
Tinha já agarrado um, quando a mulher lhe disse:
— O que vai fazer a estas horas? Já é tão tarde! Espere, ao menos, até
• amanhã.
— Cale-se. Preparados de hoje para amanhã ficarão mais saborosos.
— Há ainda um mundo de carne: a vitela, os dois carneiros, meio lei-
tão e um porco do mato.

r
-
— Está certo, admitiu ele. Dê-lhes uma boa ceia para que não emagre-
çam e ponha-os na cama.
A ogra, toda satisfeita, procurou os meninos, que se haviam amontoa-
do a um canto, o mais longe possível do ogro. Animou-os em voz baixa pa-
ra não ser ouvida pelo marido e foi preparar-lhes, com todo o esmero, uma
ceiazinha.
Arrumou a mesa, com sete pratinhos, e fê-los sentar. Depois, serviu-
lhes sopa. Eles sentaram-se, trémulos ainda, deitando olhares compridos
para o prato apetitoso que tinham à frente. Mas, por mais que tentassem,
não conseguiam engolir um bocado sequer,
— Agradecemos imensamente, boa senhora, disse o Pequeno tolegar,
falando em nome de todos. Mas não somos capazes de comer. Aquele ogro
terrível nos amedrontou demais!

Entrementes, o ogro tirara do espeto o carneiro e pusera-se a devora-


lo. Fizera longas caminhadas naquele dia, sem encontrar uma nascente on-
de beber , além de cansado, voltara, pois, cheio de sede. Atirou-se à comida
com sofreguidão e bebeu doze copos de vinho mais que de costume. Por
conseguinte, atordoado e sonolento, foi forçado a deitar-se.
O ogro e a ogra tinham sete filhas, todas muito feias, saindo ao pai:
olhos cinzentos, pequeninos e redondos, nariz pontudo e boca enorme, com
dentes pontiagudos, distantes uns dos outros. Tinham, porém, ótima pele
por comerem, como o pai, carne fresca. Não eram ainda completamente
más, mas tudo levava a crer que o seriam. Tinham-se deitado cedo e dor-
miam todas numa mesma cama de proporções avantajadas, tendo, cada uma,
uma coroa de ouro na cabeça. No quarto havia outra cama igual, onde a ogra
fizera deitarem-se os meninos.
— Se eu não tomar alguma providência, certamente o ogro vai arre-
pender-se por não nos ter esfolado logo. O pior é que eu não tenho a míni-
ma ideia do que fazer para salvar as nossas vidas, dizia o Pequeno Polegar
consigo.
Meditava, assim, aflito e inseguro, passeando os olhos pelo quarto. Ao ^9
dar com as filhas do ogro, que dormiam tranquilas, de coroa na cabeça, es-
talou-lhe no cérebro uma ideia portentosa: "Já sei! Vou passar a coroa da
cabeça das meninas para as nossas cabeças e os nossos gorros para as delas!
Assim, o ogro nos tomará pelas filhas e escaparemos à sua fúria..."
Sem perda de tempo, levantou-se para pôr em prática o que engendra-
ra: na pontinha dos pés, sem o menor ruído, aproximou-se da cama das ogra-
zinhas. Agiu com tamanha cautela que nenhuma delas acordou, quando
lhes tirou as coroas para colocá-las na cabeça dos irmãos.
Nem meia hora era transcorrida, quando se deu aquilo que o Pequeno
Polegar previra: por volta da meia-noite, o ogro despertara. Pensando em
voz alta, como todos os bêbados, dissera consigo: "Por que é que eu fui dar
atenção à conversa de minha mulher? Se tivesse agido à minha moda, a es-
ta hora já os franguinhos estavam preparados para a ceia de amanhã..;
Mas... pensando bem... ainda há tempo; se os agarro agora, de surpresa,
durante o sono, não vão nem gritar.. . Grito de criança é coisa tão estriden-
te e enervante!...
O Pequeno Polegar ouviu tudo: pôs-se a tremer qual vara verde.
"Agora pego o facão e vou lá em cima", continuou o ogro.
Mas, procura aqui, procura acolá, e nada de encontrar o facão. A ogra
o escondera na arca de guardar o pão.
Cada vez mais se enfurecia o ogro. Abria todas as gavetas e as arre-
messava ao chão. Cambaleava e, tropeçando a cada passo, derrubava me-
sas, cadeiras e tudo quanto encontrava.
— Quero o meu facão! urrava.

79
A mulher, que acordara alvoroçada,
ao ouvir aquele fim de mundo, apareceu
à porta da cozinha, de camisola e casti-
çal na mão.
Temendo que o marido, em seu de-
satino, a quisesse matar também, sem
dizer palavra, foi direto à arca e lhe en-
tregou o facão.
Ao tê-lo nas mãos, o ogro emitiu gru-
nhidos que queriam exprimir satisfação.
— Espero que as minhas pernas me
sustentem até eu chegar lá em cima, res-
mungou ainda, antes de subir.
Apoiado com uma das mãos ao cor-
rimão da escada, empunhando com a ou-
tra o facão, aos trancos e barrancos, su-
biu até o quarto das filhas.
Aproximou-se da cama onde todos
os meninos dormiam, com exceção de o
Pequeno Polegar, que sofreu um grande
susto, quando sentiu a mão do ogro a
apalpar-lhe a cabeça.
Percebeu a coroa, resmungou:
— Belo desastre ia eu fazendo agora!
Chegou-se, então, à cama onde dor-
miam as filhas e, tocando o gorro que o
Pequeno Polegar lhes colocara à cabeça,
exclamou vitorioso:
— Ah! Aqui estão!
E, resoluto, decapitou uma a uma
suas sete filhas. Depois do que, todo fe-
liz, voltou a deitar-se e adormecei1
O Pequeno Polegar, assim que o ouviu roncar, acordou os irmãos e or-
denou-lhes que se vestissem o quanto antes e o seguissem.
De mansinho, cautelosos, desceram para o jardim, pularam o muro e,
durante o resto da noite, tremendo de medo, correram a esmo, sem saber
para onde fossem.
Logo ao amanhecer, o ogro acordou e disse à mulher:
— Pode ir preparar os frangotes que apareceram aqui ontem.
Ela, julgando que ele a estivesse mandado vesti-los, surpreendeu-se
com tamanha gentileza e subiu rápida as escadas.
Ao abrir a porta, deu com a carnificina armada por seu próprio mari-
do e perdeu os sentidos. Ele, achando que a mulher não iria agir com a de-
vida presteza, seguiu-a para ajudá-la e presenciou, também, aquele espetá-
culo hediondo.
— Ah, desgraçado de mim, o que fui fazer! Aqueles malditos vão pa-
gar bem caro e é já!
Despejou um balde de água no rosto da mulher, para reanimá-la e vo-
ciferou:
— Dê-me logo as minhas botas de sete léguas, mais ligeiras que o ven-
to. Vou agarrá-los em dois tempos; com aquelas perninhas curtas não po-
dem estar longe!...
Pôs-se a caminho e, após correr ao léu, tomou justamente a senda pela
imal seguiram as crianças. Estavam elas a apenas uns poucos passos da ca-
sa do pai, quando o viram aproximar-se, galgando montanhas, atravessando
rios de uma só passada,
Mas nem assim o Pequeno Polegar se deu por vencido: avistando uma
caverna próxima dali, mandou que os irmãos se escondessem nela e entrou
também, sem deixar, todavia, de espiar os movimentos do ogro.
Ele, fatigado por tão longa e infrutuosa pernada (são muito cansativas
as botas de sete léguas) decidiu parar para repousar. Por acaso, foi recos-
tar-se justamente na rocha em cujo côncavo se abrigavam os sete irmão-
zinhos.
Vencido pelo cansaço, em poucos minutos adormeceu e roncava tão fra-
gorosamente que os coitadinhos se encheram de pânico, como quando o ha-
viam visto empunhar o facão.
O Pequeno Polegar estava tão apavorado quanto os irmãos, mas
os mandou correr logo para casa. Não se preocupassem com ele...
Não perdeu tempo: chegou bem perto do ogro, descalçou-lhe devagari-
nho as botas e as calçou. As botas eram altas e compridas, mas, sendo
mágicas, tinham o poder de aumentar ou diminuir, segundo quem as cal-
casse. Nas pernas do Pequeno Polegar, fizeram-se pequeninas, como se exe-
cutadas expressamente para ele. Com elas, correu veloz à casa do pagão e
disse à ogra:
v
— Seu marido foi assaltado por um bando de malfeitores que exigiram
dele tudo o que possui em ouro e prata. Enquanto o ameaçavam com um
punhal, ele me viu e me pediu que viesse correndo dizer à. Sra. que me en-
tregasse tudo o que tem de valor dentro de casa, senão eles o apunhalam.
E — continuou — como a coisa é da maior urgência, ele me fez calçar as
botas de sete léguas, para chegar mais depressa e para provar que não es-
tou dizendo mentira.
A pobre mulher, assustadíssima, pois queria bem ao marido, apesar de
ser ele comedor de crianças, entregou ao Polegarzinho tudo quanto possuía.
E ele, carregado de todas as riquezas do ogro, voltou à casa do pai, on-
de foi jubilosamente recebido.
Há quem diga que o Pequeno Polegar não enriqueceu com prejuízo do
ogro e que só o que lhe roubou foram as botas, para que não pudesse mais
perseguir crianças.
E quem o diz assegura ter sido informado por fonte digna de fé, por
ter-se assentado à mesa do lenhador e comido e bebido com ele. Segundo es-
sa versão da história, o Pequeno Polegar, calçadas as botas do ogro, teria
ido à corte, sabendo que reinava ali muita ansiedade pela falta de notícias
de um exército empenhado em combate a cem milhas de distância. Ter-se-
ia, pois apresentado ao rei, garantindo-lhe trazer notícias antes do anoitecer.
O rei, em troca, ter-lhe:ia prometido enorme soma em dinheiro, caso ti-
vesse êxito em sua missão.
Naquela mesma noite, o Pequeno Polegar chegara com notícias. E,
após aqiiela primeira corrida, tendo-se tornado conhecido, ganhava o que
quisesse, pois o rei lhe pagava regiamente para levar suas ordens ao exér-
cito.
E, só depois de ter exercido durante algum tempo o ofício de estafeta
do rei e juntado muito dinheiro, voltara à casa do pai, para grande alegria
da família.
O Pequeno Polegar conseguira bons cargos para o pai e os irmãos sem,
no entanto, descuidar seus interesses próprios.

84
(antiga fabula popular árabe)

ão formoso era o Príncipe Kamar, filho do riquíssimo sultão Sha-


riman, que os poetas lhe haviam dedicado seus versos e todas as
donzelas do vasto reino viam em sonhos seu semblante que tinha a
do luar e o esplendor das pérolas.
Certa manhã, o mais velho dos vizires, que muito bem conhecia o sul-
tão, notou-lhe um ar tristonho e absorto.
— O que o traz tão meditativo, ó grande sire? perguntou-lhe, cheio de
solicitude.
— Temo pelo reino, respondeu Shariman a suspirar. Meu filho não se
decide a casar-se e, extinguindo-se a nossa família, quem há de reger os des-
tinos do Estado? Peco-lhe que me aconselhe.
^r

— Majestade, vejo uma única Ia, com ordem de não abandonar o


solução capaz de trazer tranquilida- posto, nem de dia nem de noite.
de ao reino: escolha o Sr. mesmo Kamar, vendo-se tão só, deses-
uma noiva tão bela quanto ajuizada perou-se, não tanto por estar prisio-
e obrigue o príncipe a desposá-la. neiro, quanto por temer ter perdido
O sultão aceitou o alvitre de seu o afeto do pai.
fiel vizir e mandou logo vir o filho, Ora, numa das longínquas ilhas
para lhe comunicar a decisão que to- pertencentes à China, algo seme-
mara. lhante acontecia. A formosíssima
— Meu pai, disse Kamar em princesa Budur, filha de poderoso
tom respeitoso, mas com muita fir- monarca, senhor das ilhas e dos ma-
meza; não tenho a menor intenção res, preferira a prisão ao casamento.
de me casar, nem agora, nem nunca. O pai, no intuito de convencê-la,
Essa resposta categórica con- presenteara-a com sete castelos: o
tristou muito o sultão. Todavia, re- primeiro era de cristal; de mármore,
solveu deixar ao príncipe um ano o segundo; de ferro, o terceiro; o
de prazo para que decidisse. Decor- quarto era de ônix, o quinto, de pra-
rido um ano, porém, idêntica foi a ta; de ouro era o sexto; e o último
resposta de Kamar. E assim conti- era de pedras preciosas.
nuou sendo por mais um ano e ou- Nada, porém, demovera a resis-
tro mais... tência de Budur que, fechada num
Por fim, Shariman perdeu a pa- quarto e vigiada por dez governan-
ciência: ordenou aos escravos que tas, vira passar seu primeiro ano de
amarrassem as mãos do filho e que prisão.
o encerrassem numa das torres da
cidadela.
Kamar recebeu um colchão, um ta-
pete, uma almofada, uma lanterna e
uma vela muito grande, pois a cela
era escura, mesmo durante o dia. À
sua porta, foi colocada uma sentine-

86
Certa noite, dois geniozinhos esvoaçavam de fronte da estreita abertu-
ra que arejava a cela do príncipe Kamar. Cheios de curiosidade, entraram.
Kamar dormia. Os geniozinhos pararam, estáticos, a fitá-lo, enlevados com
sua formosura. Quando, enfim, saíram de seu estupor admirativo, um de-
les exclamou:
— Não pode existir no mundo criatura mais bela!
— Engana-se, rebateu logo o outro, com ares de superioridade. Eu vi
uma donzela muito mais formosa do que este que aí está.
— E onde pode tê-la visto? indagou o primeiro, incrédulo.
— Na longínqua China, retrucou entusiasmado o segundo, daquela vez
em que acompanhei o génio dos mares em sua viagem ao redor do mundo.
Acendeu-se entre os dois uma disputa.
— Não pode ser! Está mentindo!

87
— Repito que é verdade e pos- — Nossa rainha, interrompeu-a
so prová-lo! o segundo geniozinho, com olhar su-
Enquanto discutiam, lá fora, plicante. Deve ouvir-me e dar cré-
pela abóboda infinita vagava, em dito ao que lhe vou contar: no ano
plácido voo, Maimuna, filha do rei passado, sobrevoando as ilhas da
dos génios. Ao passar pela torre, ou- China, avistei esplêndido castelo,
vira as vozes estrídulas dos dois ge- cercado de um jardim. Disseram-
niozinhos. Levada pela curiosidade, me tratar-se da residência do rei dos
entrara. mares e das ilhas. Curioso, eu espia-
— Por que esse bate-boca? in- va por todas as janelas, para admi-
dagou. rar os salões deslumbrantes, quan-
Os dois geniozinhos ajoelharam- do me chamou a atenção uma jane-
se logo a seus pés e tentaram expli- linha estranha, a menor de todas, si-
car como nascera a disputa. tuada na torre do castelo. Qual não
— Fale um de cada vez! inter- foi a minha surpresa, quando, ao
rompeu-os Maimuna. olhar com mais cuidado, vi no quar-
— Eu sustento que não pode ha- to uma jovem. Tão inacreditavel-
ver no mundo criatura mais bela do mente formosa era que, comparada
que este rapaz, afirmou o primeiro a ela, o príncipe Kamar deixa de ser
geniozinho, indicando o príncipe belo. Havia, porém, muita tristeza
adormecido. em seu olhar e ela parecia absorta
Maimuna, que ainda não de- em seus pensamentos. Sonhava, tal-
ra pela sua presença, voltou-se e vez, com todas as coisas belas que
viu, também, aquele semblante be- não lhe era dado ver.
líssimo. A sinceridade da narrativa con-
— Realmente, concordo em que venceu Maimuna. E ela perguntou
não possa haver beleza mais perfei- ao geniozinho:
ta do que esta, exclamou, no auge — Está disposto a provar-nos o
da admiração. que acaba de afirmar?
— Mais que disposto, ó podero-
sa Maimuna, desde que este meu
companheiro consinta em ajudar-
me. Voarei com ele até a China e
de lá trarei a princesa Budur.
— Pois bem, vão, ordenou Mai-
muna. Mas seu voo seja tão leve que
a jovem, se estiver adormecida, não
desperte.
Em dois tempos, os dois genio-
zinhos sobrevoaram mares, rios e va-
les e chegaram ao palácio imperial.
Ali foram encontrar a formosa Bu-
dur adormecida. Um de um lado,
outro de outro, apanharam as pon-
tas da coberta bordada de estrelas,
onde repousava, e, de mansinho, sem
despertá-la, ergueram-na e com ela
se afastaram, céleres como o vento.
Mas... o que há de ser um voo,
embora longo, para dois geniozinhos
fogosos? Maimuna mal tivera tem-
po de dejxar a torre que já os tinha
de volta, trazendo a bela princesa.
Maimuna observou com aten-
ção o rosto dos dois jovens adorme-
cidos.
— Têm razão, tanto um como
outro, sentenciou. Esses dois seres
excepcionais equivalem-se em for-
mosura e eu farei com que se des-
cubram e desejem casar-se.
Dito isto, tocou de leve na face de Budur. A princesa abriu os olhos.
— Nade este o meu quarto, exclamou, estupefacta, olhando ao redor.
Talvez eu esteja sonhando ainda. ..
E quis fechar os olhos. Naquele instante, porém, voltando-se no traves-
seiro, um turbante vermelho lhe chamou atenção. Assustada, olhou melhor
e só então deu pela presença de um belíssimo jovem a seu lado.
— Isto é um plano arquitetado por meu pai, para fazer-me conhecer o
noivo que me destina e induzir-me ao casamento! mui-mirou, agastada.
Naquele instante, Kamar voltou-se e ela pôde ver em cheio o seu rosto,
emoldurado de cabelos da cor do ébano.
Ainda irritada, procurava desprender dele os olhos extasiados. Toda-
via, por mais que tentasse adormecer de novo, as feições perfeitas de Kamar
e seu vulto sereno voltavam-lhe à mente.
Pouco a pouco, foi serenando. Voltou a fitar o príncipe e o seu coração
árido, como que por encanto, se enterneceu.
"Aí está o jovem com quem eu gostaria de me casar", pensou consigo
"Arrependo-me da minha teima e seria feliz se pudesse ser sua mulher".
Antes de ceder de novo ao sono, Budur tirou do dedo um anel e o en-
fiou no dedo de Kamar. Depois, com. um suspiro de felicidade, cerrou
os olhos.
Foi então a vez de Kamar, que, sob o toque suave de Maimuna, desper-
tou. Ao ver a princesa, pensou que jamais em sua vida contemplara rosto
mais belo. E, em seu coração, decidiu desposá-la. Tentou fazê-la despertar,
mas o seu sono era profundo.
"Agradeço-lhe, meu pai, por me destinar noiva tão linda. Amanhã, vou
pedir-lhe publicamente perdão", pensou.
Antes de adormecer novamente, enfiou seu próprio anel no dedo afusa-
do da princesa, a quem já amava.
Os geniozinhos, tornados invisíveis, observavam, com um risinho de
complacência, a cena.
Na manhã seguinte, o príncipe Kamar deu enérgicas pancadas na por-
ta de sua cela, para chamar a atenção do guarda. E pediu para ser levado
imediatamente à presença do sultão Shariman.
É de se imaginar a surpresa do rei, ao ouvir do filho o surpreendente
relato de sua aventura. A princípio, receou que tivesse perdido o juízo. To-
davia, ninguém podia negar que falava claro e com firmeza e o anel que lhe
mostrava era uma esplêndida jóia de confecção estrangeira.
Que explicação dar àquilo tudo? Nem o sultão, nem seus ministros,
nem o próprio Kamar foram capazes de deslindar o mistério. Fosse como
fosse, o episódio pôs fim à reclusão do príncipe. Voltou a habitar seu rico
pavilhão à beira-mar, onde passava os dias perdidos em doce cismar, reven-
do em sonhos a princesa de olhos amendoados.
Ao mesmo tempo, na China longínqua, a princesa Budur também des-
pertou naquela manhã querendo ver o pai. Contou-lhe o que se passara e
garantiu-lhe que, sendo o noivo escolhido para ela, o mesmo que vira na-
quela noite, não tinha dúvidas em se casar.
— Mas está bem certa de que tudo não foi um sonho? perguntou o rei,
espantado com o que ouvira e com a felicidade que lia no rosto da filha.
Por toda resposta, Budur mostrou-lhe a jóia que recebera de Kamar.
— Com certeza o jovem que vi esta noite foi quem pôs no meu dedo es-
te anel.
O rei, como soubesse que a princesa possuía escrínios repletos de anéis
preciosos, não fez caso às palavras de Budur. Julgou tratar-se de al-
gum anel que já lhe pertencesse há tanto tempo que já nem se lembrasse
dele. Para maior segurança, porém, decidiu certificar-se se alguém pene-
trara, realmente, no quarto da filha.

*v i**';*T*
V*' í-''*
v
— Mandem vir a minha presen- Budur sentia imensas saudadí
ça todas as governantas da princesa, do jovem que vira. Pensava nele ta
ordenou aos servos. intensamente que lhe falava em vc
Uma a uma, interrogou-as to- alta, confiando-lhe seus pensamei
das, para saber se, em qualquer mo- tos, como se o tivesse a seu lado.
mento, estivera à porta do quarto de Um servo, que a surpreendeu f í
Budur sem vigilância. lando ao seu príncipe invisível, dií
— Se não disserem a verdade, se a uma das damas da corte:
serão condenadas à morte, ameaçou — Como está mudada a princt
o soberano. sã! Mais meiga, mas tão esquis:
Elas porém, embora amedron- ta. , Isso de falar sozinha o dia te
tadas com a ameaça, juraram que a do...
porta estivera a noite inteira tran- — Pois eu a ouvi cantar, cor
cada. De mais a mais, ninguém te- voz igual e monótona; mas era un
ria podido entrar na torre. canto sofrido e cheio de saudades
A janela foi, também, examina- acrescentou outra dama.
da: mas era tão alta que ninguém E assim, diante do comporta
teria sido capaz de a escalar. mento inexplicável de Budur, ao
O rei chegou, por fim, à conclu- poucos, já não foi só o rei, mas tod
são de que tudo não passara de um a corte a tomar por doida a prin
sonho. Não restava senão esperar cesa.
que a princesa o esquecesse. Ela, po- Foi quando o príncipe Marza
rém, insistia, repetindo que o que van, irmão gémeo de Budur, regres
dissera era verdade. E não houve sou de uma longa viagem.
quem a demovesse de suas convic- Nem bem chegou, correu a cum
ções. primentar o pai e a mãe. Ao vê-lo
E então, o soberano, como resul- o sultão estendeu-lhe os braços, nun
tasse vã qualquer tentativa de per- gesto cheio de desconsolo. Sabia <
suasão, principiou a temer que a fi- quanto Marzavan amava a irmã e fo
lha tivesse endoidecido. com infinita tristeza que o pôs £
"Talvez esse longo período de par da desgraça que se abatera só
reclusão lhe tivesse afetado o juízo", bre a família durante a sua prolon
pensava, aflito e arrependido por gada ausência.
tê-la mantido presa tanto tempo.

93
Contou-lhe, também, que fizera convocar todos os astrólogos e sábios de
seus domínios, prometendo a mão da princesa a quem a curasse. E nenhum
deles fora capaz de descobrir a misteriosa enfermidade de Budur, que
transcorria na cama seus dias monótonos e vazios.
Marzavan não se resignou ante o fato de terem sido os astrólogos inca-
pazes de mudar a triste sorte da princesa. Foi ele mesmo à sua presença e
lhe pediu que falasse sem reservas a respeito do que lhe acontecera.
Ela, não querendo outra coisa, mais uma vez mostrou o anel que trazia
no dedo e começou o seu relato. Para grande espanto seu, quando termi-
nou, ouviu o irmão dizer:
— Acredito que o que está a dizer é a verdade. Tranquilize-se. Hei de
partir pelo mundo a fora e só voltarei depois de ter encontrado o jovem que
você viu e por quem se apaixonou.
B, naquela mesma manhã, despediu-se dos pais e
tornou a partir. Durante um mês inteiro, viajou sem
trégua, de cidade a cidade, de ilha a ilha, sem, no en-
tanto, encontrar o que procurava. Por onde quer que
passasse, ouvia contar a lamentável história da prin-
cesa Budur, que endoidecera de repente.
Certo dia, porém, numa cidade chamada Tairab,
notou que o povo já não falava em Budur, mas em
Kamar, filho do sultão Shariman, que perdera, tam-
bém, a razão, em circunstâncias análogas.
Pôs-se, então, a interrogar os cidadãos e veio a
saber que Shariman era rei das ilhas Kalidan, a um
mês de viagem por mar de onde se encontrava. Foi
quanto bastou para que adquirisse uma embarcação
e desse ordem de içar velas e rumar imediatamente
para as ilhas Kalidan. No início, fados e ventos fo-
ram-lhe favoráveis. Ao fim de um mês, porém, a fú-
ria do vento arrancou as velas da embarcação e a fez
soçobrar.
95
De toda a equipagem, o único que se salvou foi Marzavan que, arrasta-
do pela corrente, foi ter a uma costa rochosa.
Sobre os rochedos, erguia-se justamente, o pavilhão onde o príncipe
Kamar, cercado pelo pai e por todos os ministros, continuava a padecer de
um mal sem explicação e sem remédio.
O velho vizir viu de longe qualquer coisa a boiar na superfície das
águas e correu para a beira da praia, seguido pelos escravos. E encontra-
ram Marzavan, já meio morto, e o trouxeram para o pavilhão.
Foi bem cuidado, alimentado e vestido e, ao sentir-se melhor, quis lo-
go saber onde estava.
— Isto que vê, explicou o velho vizir, é o pavilhão habitado por Kamar,
filho do rei Shariman. Não posso levá-lo à sua presença, porque o príncipe
padece de uma enfermidade misteriosa.
Marzavan sentiu acelerarem-se as batidas de seu coração e, ansioso, per-
guntou :
— Por favor, diga-me: como foi que o seu príncipe adoeceu?
O velho vizir contou-lhe a respeito dos sonhos do príncipe e, quando
terminou, Marzavan pediu para vê-lo.
— Posso ver o seu príncipe? Venho de longe e conheço as artes mé-
dicas.
E assim foi que o admitiram à presença de Kamar.
Logo ao vê-lo, Marzavan exclamou:
— Felizes de vocês, que foram feitos um para o outro!
A essas palavras inesperadas, Kamar abriu os olhos e perguntou, com
voz fraca:
— O que quer dizer, estrangeiro?
— Quero dizer que sua noiva, a princesa Budur, espera por você.
Kamar, como que enfeitiçado, ergueu-se na cama, e, completamente ou-
*Jt "t, t tro, pediu ao estrangeiro que lhe dissesse tudo o que sabia.
Ao final da narração, abraçou Marzavan, dizendo-lhe:
— Meu irmão, agradeço-lhe; peco-lhe que me leve sem demora para o
seu país: quero tornar a ver sua irmã Budur e desposá-la.
O mais feliz de todos era o rei Shariman. Abraçou o filho, com os olhos
cheios de lágrimas:
— Não posso impedir que vá, pois o que mais me interessa é a sua fe-
icidade. Só quero que me prometa que voltará assim que puder.

•*

0 Í -í *"*
~^*iL: -.
Após um mês de feliz travessia, os dois príncipes desembarcaram e
Marzavan levou para o palácio o príncipe Kamar, sem contar quem fosse.
Preferiu dizer que, durante sua longa viagem, encontrara um médico es-
trangeiro e o trouxera para ver a irmã.
— Desgraçadamente, disse-lhe seu pai, é tão grave o estado de sua ir-
mã que receamos perdê-la a qualquer momento. Já nenhum médico a
visita.
Confrangido, cheio de angústia, Kamar perguntou:
— Posso escrever-lhe um cartão com uma fórmula mágica?
— Escreva, que lhe será entregue.
Sem perda de tempo, Kamar escreveu numa folha de papel estas pa-
lavras: "Princesa Budur, após tão longa separação, eis-nos finalmente reu-
nidos. Reconheça em mini o seu noivo e permita que eu vá admirar a sua
beleza."
Enrolou no mesmo papel o anel que trazia ao dedo e aguardou.
Ao abrir a carta, a princesa viu cair-lhe no regaço o anel que ela mes-
ma pusera no dedo do formoso príncipe. Com um grito, percorreu as linhas
escritas e, instantaneamente curada, saiu do quarto a correr.
— É ele! Ele que chegou, finalmente!
— Mas você quem é, que se apresentou como simples médico? pergun-
tou espantado o rei ao estrangeiro.

98
— Sou o príncipe Kamar, filho do sultão Shariman.
O príncipe Marzavan deu testemunho de que dizia a verdade e, por sua
vez, narrou como fora que encontrara o noivo de sua irmã.
O rei sentia-se imensamente feliz: a filha estava curada; jamais estive-
ra louca e seu noivo era filho de poderosíssimo soberano. O que mais po-
deria desejar? Por isso, disse:
— A história de vocês será escrita nos livros do reino e será lida por
seus descendentes, por muitos e muitos anos.
E deu ordens para que fossem logo celebradas as bodas.
A cidade foi totalmente embandeirada e, durante sete dias e sete noi-
tes, houve banquetes para todos os súditos. Cantaram e dançaram e esti-
veram todos felicíssimos.
Certa noite, porém, Kamar viu em sonhos o pai, rei Shariman, que, cho-
rando lhe dizia:
— Meu filho, por que se esqueceu de mim?
Levantou-se tristonho e disse à mulher:
— Minha doce amada, eu tinha, prometido a meu pai que voltaria o
mais depressa possível e esqueci a promessa. Arrependo-me agora, porque
está velho e eu sou filho único.
Budur respondeu prontamente:
— A obediência é a mais bela das virtudes. Partamos sem demora pa-
ra as ilhas Kalidan, a fim de ver seu pai.
Os dois príncipes despediram-se do rei e do príncipe Marzavan, prome-
tendo estar de volta dentro de dois anos. *
Grande séquito de homens, cavalos e camelos pôs-se em marcha. Bu-
dur ia recostada na liteira e Kamar ia a seu lado, montando seu esplêndido
corcel branco.
Tiveram seis meses de jornada, antes de alcançar as ilhas Kalidan.
Ali chegados, foram recebidos pelo rei Shariman com abraços e lágrimas de
alegria. Depois, enviaram mensageiros ao rei das ilhas, dos mares e dos se-
te castelos, que ficou muito feliz ao saber que a filha chegara sem transtor-
nos ao reino de seu marido.
Por muitíssimos anos, Kamar e Budur viveram em paz e prosperidade e
frequentemente relembravam a maneira prodigiosa como se haviam encon-
trado.

****• S-
(antiga fábula popular árabe)
;ivia em Bagdá um mercador que
Tora muito rico mas que, aos pou-
•i-os, vinha perdendo a maior parte
<K' soas haveres em negócios mal sucedidos.
Acabrunhava-se, recriminando-se por ter
sido incompetente, privando a família do luxo
a que estava habituada.
Seu palácio de mármore branco, outrora
famoso em toda a cidade por seus esplêndidos
tapetes orientais, suas paredes cobertas de es-
tofos de ouro e de púrpura, suas estátuas de
jade e de marfim, estava agora vazio de todos
aqueles tesouros, despido qual casa desabita-
da. Sua loja, que fora a melhor abastecida
numa área de milhas e milhas ao redor, não
continha agora mais que umas sobras de ma-
deira de sândalo.
Nesse lenho precioso estavam postas todas
as esperanças do mercador: se conseguisse ven-
dê-lo a bom preço, teria um lucro razoável e,
com isso, esperava voltar a fazer fortuna.
Certo dia, ouviu falar num mercador re-
cém-chegado de longuíssima viagem. Diziam-
no ligado ao comércio de todos os países, co-
nhecedor de usos e costumes de terras distan-
tes, além de muito sábio.
Xosso mercador foi, pois, ter com ele para
lhe pedir conselho.
- Se quer colocar bem a sua mercadoria,
disse-lhe o mercador viageiro, deve ir vendê-la
em terras onde seja apreciada.
— É mais do que justo o que diz, irmão.
Mas, conhece um país onde o lenho de sânda-
lo seja mais precioso do que aqui?
— Conheço. Existe uma cidade onde es-
sa madeira é mais valiosa do que o ouro ou a
prata. Mas, tenha cautela: é uma cidade es-
tranha, cercada de montanhas. Ninguém vai
até lá e nem eu mesmo tive a ousadia de fazê-
lo, embora conhecesse o caminho.
— Rogo-lhe que me indique esse caminho
— Terá de cavalgar trinta dias e trint?
noites consecutivos. Por fim, chegará aos péo
dê altíssima montanha. Repouse ali, você e •'
seu cavalo. Depois, comece a subir.
O caminho que leva à cidade é estreito i
ríspido. Por mais que você olhe ao redor, nãc
avistará viva alma, porque os habitantes vi
vem isolados e não transpõem os muros da ci-
dade.
Obtidas as indicações, necessárias, o mer-
cador carregou sua madeira perfumada no lom-
bo de um camelo e partiu.
Dias e noites viajou a cavalo até que des-
cortinou, lá no alto, à luz incerta da aurora, os
muros da cidade que procurava.
Ia a subir pela senda íngreme, quando to-
pou com uma velha que pastoreava o seu re-
banho.
Afastou-se, para lhe dar passagem e sau-
dou-a.
— Que Alá a salve, a você e ao seu reba-
nho, ó mulher!
A velha encarou-o, estupefacta.
— Quem é você? Ninguém nes-
te país teria tido a ideia de dirigir
uma palavra amável a uma pobre
velha.
— Sou um mercador estran-
geiro. 103
— Um mercador?! Pois guar-
de-se dos habitantes deste lugar!
São gente astuta e ladrona, que se
alegra por conseguir ludibriar um
estrangeiro. Faça como achar me-
lhor, estou só querendo aconse-
lhá-lo.
O mercador estranhou aquele
modo de falar. Ficou sem saber se
devia dar crédito à velha, mas não
teve tempo para maiores explica-
ções, porque ela já ia longe, com seus
carneiros.
Ao cair da noite, chegara aos
muros da cidade. Acomodou-se co-
mo pôde: buscou refúgio que o abri-
gasse do vento e, tendo-o encontra-
do, preparou-se para dormir. Mar-
telavam-lhe a mente as palavras da
velha e assim, fosse pelo frio inten-
so, fosse pela insegurança, pelo te-
mor, passou uma noite agitada por
pesadelos.
Apenas raiou o dia transpôs a
porta da cidade, lançando ao redor
olhares desconfiados.
Acercou-se-lhe logo um habi-
tante que, após tê-lo saudado, per-
guntou-lhe:
— De onde vem?
— De Bagdá.
— Que mercadoria traz?
— Pau de sândalo, por ter ouvido dizer que nesta cidade é muito pro-
curado e muito bem pago.
— Quem lhe disse tal coisa? Pois imagine que, para nós, a madeira de
sândalo só serve para acender fogo, na cozinha. E tem menos valor do que
qualquer outra lenha de queimar.
Grande foi o desaponto do mercador. Lembrando-se, porém, do aviso
da velha pastora, ficou sem saber se acreditava ou não. Indeciso quanto ao
que fazer, dirigiu-se a uma hospedaria, onde pediu alojamento para aquele
dia e o seguinte.
Assim que acomodou as bagagens, desceu para o pátio 6 pôde ver o ho-
mem de há pouco que, na companhia de outro mercador, acendia o fogo de-
baixo de uma panela com uma lenha muito semelhante à madeira de sân-
dalo.
Sentiu que se lhe confrangia o coração. Então era verdade! A sua
carga toda não valia mais do que um punhado de moedas de prata!
Os dois homens viram-no aproximar-se e logo lhe propuseram:
— Quer vender a sua carga?
— Quanto me dão por ela?
— Para cada medida de pau de sândalo, terá uma medida do que vo-
cê quiser.
— Está bem, vendo-a. Mas quando é que me pagarão a soma devida?
perguntou ainda o mercador.
— Não se preocupe, bom homem; amanhã, antes do anoitecer, terá o
que você quiser, responderam eles.
Levaram consigo todo o sândalo e o mecador deliberou com seus botões
que haveria de pedir tantas medidas de ouro quantas fossem as medidas
da madeira entregue.
No dia seguinte, passeava pela cidade, quando foi abordado por outro
habitante: era um homem caolho que, após tê-lo fitado demoradamen-
te, agarrou-o por um braço, gritando:

..
w
— É este o ladrão que roubou o meu olho!
O mercador procurava livrar-se e acalmar o outro, que continuava a
berrar como um possesso.
— Sou forasteiro nesta cidade, meu senhor. Como poderia ter roubado
o seu olho, se nunca, antes o havia visto? dizia-lhe, tratando de convencê-
lo. E, de mais a mais, olho não é coisa que se roube!
Já agora um pequeno grupo de pessoas os rodeava e todos pareciam dar
razão ao caolho.
O mercador começou a recear que aquilo fosse unia terra de loucos. Por
fim, para que o deixassem safar-se dali, teve de prometer que, no dia se-
guinte, de um modo ou de outro, teria pago o preço do olho.
O pobre homem sentia-se realmente transtornado. Que mais estaria
para lhe acontecer naquela estranha cidade? O lucro que lhe daria a ven-
da do sândalo iria parar inteirinha no bolso do caolho. Não havia o que fa-
zer: nascera desditado e desditado morreria!
Pensativo, olhou para o chão e percebeu que, naquele alvoroço, um de
seus sapatos se rompera. Procurou a oficina de um sapateiro e com ele dei-
xou o sapato, dizendo:
— Remende-o, e terá com que estar satisfeito.
Com um só pé calçado, não podia ir longe. Na primeira esquina, topou
com um grupo de homens que se entretinham jogando. Para matar o tem-
po e afugentar os pensamentos funestos que lhe passavam pela cabeça, sen-
tou-se junto a eles para sapear o jogo.
Dali a pouco o homem a seu lado convidou-o a jogar também; não pas-
sou muito.tempo antes que perdesse e ficasse devendo a todos eles.
"E agora, como hei de me arrumar para pagar essa .dívida?" pergun-
tava-se, acabrunhado.
— Você tem duas alternativas, disse-lhe o vizinho: ou bebe toda a água
do mar, ou nos entrega todo o seu dinheiro.
— Dêem-me tempo até amanhã, rogou o mercador.
Obtido o adiamento, afastou-se dali. Procurou um recanto solitário,
onde pudesse sentar-se a matutar em paz sobre as suas desventuras.
Lá estava, perdido em seus pensamentos pouco
animadores, quando viu passar a velha que encon-
trara no dia anterior. Ela o reconheceu e acercou-
se dele.
— Meu senhor, disse-lhe, percebo por seu ar afli-
to que os habitantes desta cidade fizeram-no vítima
de suas trapaças. Reanime-se, homem; senteTse aqui
ao meu lado e conte-me o que lhe aconteceu.
Ele contou-lhe tintim por tintim o que lhe sucedera e ela, tendo-o ou-
vido atentamente até o fim, disse-lhe:
— Foi enganado, senhor meu, ignobilmente enganado! A lenha queima-
da debaixo da panela parecia sândalo, mas não era tal, por certo. Aqui essa
madeira vale, realmente, mais do que o ouro. Aqueles que davam razão ao
caolho agiam de má fé: fingiam crer nele para obrigá-lo a lhe entregar di-
nheiro. Quanto aos que o venceram no jogo, eram ladrões, pode crer. De res-
to, eu bem lhe recomendei a máxima cautela, antes que pusesse os pés nesta
amaldiçoada cidade!
— O que não compreendo é por que todos me escolheram para judas.
Dir-se-ia que os diverte fazer-me voltar para casa arruinado e escarnecido.
— Ê isso mesmo, meu senhor, confirmou a velha.
— E por que Mo de ser tão maldosos? Se eu nada lhes fiz! queixou-se
o mercador, cada vez mais acabrunhado e aflito.
— Têm motivo para tanto; e remonta a fatos acontecidos há muito tem-
po. É preciso que saiba que nosso xeque, e corn ele todos os poderosos da
108 -
cidade, têm verdadeira loucura pela madeira de sândalo, rosada como a au-
rora e perfumada como jardim ao pôr do sol. Mas, nestas montanhas ári-
das, não cresce um galho sequer dessa madeira preciosa.
Certo dia, há muito tempo, como já disse, apareceu por aqui um foras-
teiro.
— Conduzam-me à presença do xeque, foi logo dizendo com voz de co-
mando aos guardas, porque eu conheço o segredo capaz de fazer nascer aqui
a árvore do sândalo.
Como única resposta, os soldados, desconfiando dele, algemaram-no e
puseram-no na cadeia. Depois, foram ao xeque informá-lo do acontecido.
— Façam-no entrar no salão de armas! ordenou.
O estrangeiro foi trazido à sua presença e recebido com estas palavras:
:— Não sei quem você é, nem de onde vem.. Prometo-lhe, porém, que, se
me ensinar como fazer nascer aqui a árvore do sândalo, será nomeado meu
ajudante e terá riqueza bastante para viver despreocupado o resto da vida.

O forasteiro, que era um malvado, hesitou bastante antes de responder.


Parecia que estava a querer fazer troça do xeque. Por fim, disse:
— Só posso confiar o meu segredo a um homem que tenha conseguido
olhar fixo para o sol em plena luz do meio-dia. Só assim, Alá soltará a mi-
nha língua.
O nosso xeque olhou para o sol, que lhe secou os humores líquidos dos
olhos. Completamente cego, saiu a correr pelos salões do palácio, aos gritos
e tropeções, enlouquecido de dor.
B o prisioneiro fugiu, deixando atrás de si o dano causado, com tanta
malvadeza e tanto escárnio...
Desde então, todas as noites, o xeque reúne, em local situado perto de
um rochedo, os seus homens e oferece um prémio àquele que melhor tenha
conseguido enganar e prejudicar a um forasteiro. Pensa, assim, estar vin-
gando-se daquele estrangeiro que lhe tirou a luz dos olhos.
— Agora compreendo, comentou o mercador. Não deixa de ser uma
desdita vir ter a uma terra destas!
109
Refletiu por uns instantes, depois disse à velha:
— Sabe indicar-me o local onde se reúnem o xeque e seus homens?
Ela deu-lhe a indicação, recomendando-lhe toda a cautela para não ser
descoberto, se quisesse continuar vivo.
— Obrigado, minha boa mulher, disse-lhe o mercador, mas já a velha
se afastara.
Ao cair da tarde, saiu à procura do local indicado e, depois de muitas
voltas e reviravoltas, finalmente o encontrou.
Lá estava o velho xeque sentado, com as costas apoiadas a uma rocha.
Atrás dela, escondeu-se o mercador. Procurou, no entanto, estar o mais pró-
ximo possível, de modo a não perder uma palavra do que diria o xeque.
Dali a algum tempo, foram chegando os homens da cidade. Aproxima-
vam-se do xeque, saudavam-no, curvando-se profundamente, com muito res-
peito. Depois, iam-se assentando em círculo ao redor dele.
O mercador aguçou a vista e reconheceu os quatro habitantes da cida-
de com os quais tivera que haver-se naquele dia.
— Comam e bebam do que quiserem! disse o xeque, distribuindo co-
midas e bebidas. Depois, irão me informar de tudo o que hoje fizeram.
Deixou-os comer à vontade e, depois de saciarem a fome e a sede, di-
rigiu-lhes novamente a palavra:
— Tive notícia de que um mercador estrangeiro está na cidade. Veja-
mos se foram capazes de o ludibriar e, se desta vez, ao menos, mereceram
o prémio!
E então, um a um, começaram a relatar suas maldades.
O primeiro apresentou-se,
com ar satisfeito de quem se
vangloria:
— Creio ter feito o me-
lhor negócio da minha vida:
esta manhã, encontrei, real-
mente, um estrangeiro. Visto
que trazia excelente madeira
de sândalo, dei-lhe a entender
que aqui entre nós aquilo va-
lia tão pouco que servia de le-
nha para o fogo. E assim pu-
de adquirir a carga toda por
preço conveniente.

- Por quanto? indagou o


xeque.
— O mercador concordou
em receber medidas corres-
pondentes cheias do que qui-
ser.
— Não resta dúvida que o
mercador fez ótimo negócio.
— Como assim?! Se a ma-
deira de sândalo vale dez moe-
das de ouro por cada medida!
— E se pedir medidas
cheias de prata ou de ouro,
dar-lhas-á? -
— Por certo. E estarei
ainda fazendo ótimo negócio.
— E se lhe disser: "Quero
medidas cheias de pulgas, me-
tade machos e metade fê-
meas", você que fará? Na cer-
ta, não vai poder satisfazê-lo.
• * f

A essas palavras, o homem desapontou-se e, mal humorado, foi colocar^


se à parte.
Foi então a vez do caolho, que se adiantou e disse:
— Nobre xeque, vi hoje um mercador estrangeiro. Debandei a calu-
niá-lo, dizendo que tinha roubado o meu olho e discutimos. E o resultado
foi que ele, em troca do olho roubado, vai ter que me dar outro. Do contrá-
rio, terá de me entregar todos os seus haveres.
— Tolo que você foi! disse o xeque. O mercador sairá ganhando sem
esforço.
— Mas como haveria de ganhar?
— Poderia dizer-lhe: "Arranque o olho que tem'e eu arrancarei um dos
meus. Veremos: se tiverem o mesmo peso, eu lhe darei o meu olho, porque
você estará com a razão." E assim, enquanto você ficaria cego de todo, ele
conservaria sempre o uso da vista.
O caolho retirou-se, também contrariado.

---
Entrementes, o sapateiro apresentou-se, para trazer sua história.
— Velho xeque, fui hoje procurado por um mercador estrangeiro, que
me trazia um sapato roto para remendar. Pedi uma remuneração e ele dis-
se que eu teria com que estar satisfeito. Ora, vou dizer-lhe que só estarei sa-
tisfeito com toda a sua fortuna.
— Estúpido! disse o velho xeque. O mercador irá buscar o seu sapato e
retirá-lo-á sem te dar nada. Dirá somente: "O sultão derrotou seus inimi-
gos, suas riquezas crescem, sua prosperidade é infinita. Não lhe basta isto
para estar satisfeito?" Terá que dizer sim, porque se disser o contrário, ele
o acusará de pouco amor pelo sultão.
E eu que pensava ter sido tão ladino! exclamou o sapateiro que se re-
tirou, por sua vez, resmungando.
O último, o jogador que ganhara no jogo, vendo o pouco êxito de seus
companheiros, hesitava em se apresentar para expor seus feitos; por fim,
criou coragem e falou:
— Velho senhor, convidei um mercador estrangeiro a jogar e ele per-
deu. Fiz-lhe a seguinte proposta: ou ele bebe toda a água do mar, ou me
entrega todos os seus bens.
— Você não demonstrou maior sagacidade que os demais, recriminou-o
o xeque. O estrangeiro, se quiser, poderá safar-se com facilidade e superá-
lo em astúcia.
— Certamente não poderá beber toda a água do mar, objetou o jogador.
— Isso não, admitiu o xeque. Mas hãstaria que lhe dissesse: "Beberei
a água do mar; porém, só se for de suas mãos". Que lhe dirá? É assim que
me servem? Ai de vocês se se fizerem enganar por aquele forasteiro!
Encerrou-se a reunião com a saída do xeque, que se retirou desgos-
toso e irado*
Os demais detiveram-se alguns momentos ainda, a trocar ideias. De-
pois, foram-se retirando, também, murmurando contra o xeque.
:— Fazemos tudo para satisfazê-lof mas ele acaba sempre levando a me-
lhor, queixou-se o sapateiro, despeitado.
— Não leve a coisa tão a sério, disse-lhe um dos companheiros.
Há de ver que o mercador não
será tão astuto como o nosso xeque
e vai ser facilmente ludibriado!
— Tem razão, rebateu um ter-
ceiro; a impressão que me deu o es-
trangeiro é que era mais ingénuo
que ladino.
O mercador, que ouvira perfei-
tamente tudo o que fora dito, esguei-
rou-se de seu esconderijo, sem que
ninguém se tivesse dado conta de sua
presença.
No dia seguinte, o primeiro a
visitá-lo foi o jogador. E ele foi lo-
go dizendo:
— Meu amigo, concordo em be-
ber toda a água do mar, mas só se
for das suas mãos.
Ganhou, assim, a primeira apos-
ta.
Chegou, depois, o sapateiro.
— Aqui está o seu sapato. Dê-
me, agora, alguma coisa que me sa-
tisfaça.
— O sultão derrotou seus inimi-
gos; suas riquezas crescem, sua pros-
peridade é infinita. Está satisfeito?
— Sim, estou, retrucou o sapa-
teiro, evidentemente contrafeito.
E saiu, atirando-lhe o sapato.
O mercador apanhou-o, calçou-
o e foi ao encontro do caolho, dizen-
do-lhe:
— Irmão, arranque o seu olho,
que eu arrancarei um dos meus, para
que os pesemos. Se o peso for igual,
é sinal de que você disse a verdade
« eu pagarei o preço do seu olho.
Dê-me tempo para refletir, disse o cao-
lho.
Depois, optou por abraçar o mercador, di-
zendo-lhe:
— Perdoe-me e seja meu amigo!
Por fim, depois de muito andar, encon-
trou os dois que lhe haviam levado a madeira
de sândalo. Eles o abordaram bruscamente, di-
zendo-lhe à queima-roupa:
— O que você quer, ouro ou prata? .,
— Nem ouro, nem prata, respondeu o mer-
cador. Quero medidas cheias de pulgas, meta-
de machos, metade fêmeas.
— Pede o impossível!
— Nesse caso, devolvam-me a madeira de
sândalo.
Não tiveram outro remédio senão concor-
dar e o mercador, que grangeara fama de as-
tuto, pôde vender sua mercadoria a preço ele-
vadíssimo, com lucro apreciável.
Antes de deixar a cidade, foi procurar a
velha e deu-lhe um presente à altura de seus
conselhos. Depois, partiu, com o firme propó-
sito de não voltar a pôr ali os pés para o res-
to da vida.
H. C. Andersen
;ivia uma senhora que não tinha filhos, por mais que, ardentemen-
te, os desejasse. Cansada de esperar em vão a vinda de uma crian-
ça, foi procurar uma velha feiticeira.
que me arranje um filho, disse-lhe.
- .Farei o possível para satisfazê-la retrucou a feiticeira. Aqui tem uma
semente de cevada; mas não é igual às que brotam nos; campos e os cava-
los comem. Plante-a num vaso e verá.
— Obrigada, disse a senhora, entregando à bruxa doze dinheiros.
Voltou para casa e plantou logo a semente de cevada. Bem cedo, viu
despontar da terra uma flor, que parecia uma tulipa ainíia em botão.
— Que, linda flor! exclamou deslumbrada, beijando as pétalas verme-
lhas e amarelas.
117
No mesmo instante, abriu-se a flor. Era realmen-
te uma tulipa. Só que, em seu interior, no fundo ver-
de e aveludado, estava sentada uma meninazinha miú-
da, graciosa e delicada. Não teria mais. que um pole-
gar de altura: daí terem-lhe dado o apelido de Pole-
garzinha.
Teve por berço uma casca de noz bem enverniza-
da; por colchão, folhas de violeta e, por coberta, uma
folha de rosa. Ali dormia durante a noite; de dia, po-
rém, brincava na mesa. Nas águas de um prato en-
feitado de flores, cujas corolas descansavam na borda
e cujas hastes mergulhavam no frescor da água, boia-
. vá uma pétala de tulipa. Era o. barco de Polegarzinha,
que nele navegava mansamente de uma beira à outra.
Serviam-lhe de remos dois fios de crina de cavalo. E
Polegarzinha cantava com voz tão suave e melodiosa
como jamais se ouvira outra igual.
118
Certa noite, um sapo entrou, por um vidro partido da janela. Enorme e
viscoso, saltou para cima da mesa onde Polegarzinha dormia, coberta com
sua folha de rosa.
— Que linda esposa para o meu filho! exclamou o sapo.
E, apoderando-se da casca de noz, fugiu com ela para o jardim.
No jardim, corria um riacho, cuja margem ia dar num lodaçal, onde mo-
ravam o sapo e seu filho.
— Coac! Coac! Brekke-ke-keek, exclamou a hedionda criatura, diante
da formosa pequerrucha que o pai lhe trazia, deitada em sua casca de noz.
— Não fale assim tão alto que é capaz de acordá-la, admoestou-o o ve-
lho sapo. E, se acordasse, poderia fugir, levezinha como é: parece pluma de
cisne! Vamos colocá-la numa folha grande de nenúfar, ali no meio do ria-
cho: estará como numa ilha, de onde não poderá escapulir. E nós dois, va-
mos começando a construir a casinha onde você vai morar com ela.
Assim dizendo, saltou n'água, escolheu uma folha bem grande de ne-
núfar e, com delicadeza surpreendente em animal tão desajeitado, pousou
nela a casca de noz onde Polegarzinha, apesar de todas aquelas mudanças,
continuava serenamente adormecida.
Foi só na manhã seguinte que a pobrezinha, ao despertar,'percebeu on-
de estava. Ao ver-se rodeada de água por todos os lados, sem possibilidade
de evasão, desatou em pranto.
O velho sapo, depois de enfeitar com rosas e outras florinhas amarelas
a casinhola destinada a receber os noivos, navegou, com o filho, em direção
à folha onde estava Polegarzinha. Inclinando-se profundamente diante de-
la, falou-lhe assim:
— Aqui está o seu futuro marido. Estou arrumando eu mesmo para vo-
cê uma esplêndida morada no lodaçal.
— Coac! Coac! Brekke-ke-keek, acrescentou o filho.
Levaram-lhe a caminha e ela ficou só, amedrontada e infeliz, ante a pers-
pectiva de se casar com aquele sapo repelente.
— Nunca! Isso nunca! dizia, relembrando com saudades os dias em que
vivia tranquila em seu pratinho cheio de água e de flores.
Passavam-se os dias. E, a cada dia que passava, crescia a tristeza de Po-
legarzinha.
Os peixinhos do rio, tendo ouvido o que o sapão dissera, encheram-se de
curiosidade. Puseram a cabecinha fora dágua e ficaram a fitá-la. Acharam-
na linda e meiga e logo pensaram na tragédia que havia de ser se, de fato,
tivesse que se casar com aquele sapo tão feio. Não! Não havia de ser! Reu-
niram-se em torno da haste que prendia a folha à planta e, com os denti-
nhos afiados, cortaram-na. A folha, já solta, foi sendo levada, docemente,
pela correnteza e, com ela, Polegarzinha. E navegaram, navegaram, de man-
sinho, até bem longe, lá onde os sapos não podiam chegar.
Em todos os lugares por onde passava, Polegarzinha ia despertando ad-
miração. Os pássaros dos bosques, ao vê-la tão linda e frágil, cantavam-lhe
elogios.

119
A certa altura, formosa borboleta chegou, esvoaçando, rodeou a folha
e acabou pousando nela, para melhor contemplar a formosura de sua
ocupante. E ela, feliz por ter escapado ao horrendo sapo, enchia os olhos
e o coração das belezas da natureza, da transparência da água, onde os
raios do sol punham faíscas de ouro. Desatou o cinto do vestido, e amarrou
uma ponta às antenas da borboleta e outra à folha, de modo a deslizar ainda
mais rápida e leve, sobre as águas plácidas.
De repente, passou por ela um besouro que, notando-a, a enlaçou deli-
cadamente nas patinhas e com ela voou para o cimo de uma árvore.
Qual não foi o susto de Polegarzinha ao ver-se transportada pelos ares!
Além disso, preocupava-a a ideia de que a linda borboleta, não sendo capaz
de soltar as amarras que a prendiam, morresse de fome; pobrezinha!
O besouro acomodou Polegarzinha na folha mais espaçosa da árvore,
trouxe-lhe néctar de flores para comer. E, embora ela não se assemelhasse
absolutamente à raça dos besouros, fez-lhe um mundo de elogios por sua for-
mosura.
Bem cedo, todos os demais besouros moradores da árvore vieram fazer-
lhes visita. As donzelas besouras, ao ver Polegarzinha, sacudiram as ante-
nas e exclamaram, consternadas:

— Pobrezinha! tem só duas pernas! E é magrinha, esguia, parecida


com as mulheres! Ai, que feia ela é!
O besouro, que a raptara, embora estivesse ele próprio enlevado com
sua beleza, deixou-se influenciar e acabou desinteressando-se dela e já não
a quis. Fê-la descer da árvore e a pousou sobre uma margarida. Polegar-
zinha estava livre!
120
Passou todo o verão sozinha, na floresta
imensa. Teceu uma cama de fios de grama e es-
tabeleceu-se debaixo de uma folha, para estar ao
abrigo da chuva. Para comer, tinha o néctar das
flores e, para beber, sorvia as gotinhas de orva-
lho que, de madrugada, cobriam as folhas.
E o outono também se passou assim, como
o verão. Mas o inverno se anunciava rigorobo.
Os pássaros que haviam enchido o ar da música
de seus trinados, aos poucos, iam partindo, em
busca de outros céus, de outros calores. Despi-
ram-se as árvores, morreram as flores e a folha
que lhe servia de abrigo foi-se encarquilhando
junto à haste amarelecida e ressecada.
Logo principiou a nevar. Cada floco de neve,
ao desabar sobre os ombros frágeis de Polegarzi-
nhã, era como que uma avalanche.
Abrigada numa folha seca, não conseguia
aquecer-se e estava arriscada a morrer de frio.
Decidiu, então, abandonar a folha seca.
"Será melhor ir à procura de um refúgio
mais quente e mais seguro. Caminhando, talvez
eu sinta menos o frio", pensou consigo.
Saiu a andar, apressada. Bem cedo, porém,
teve de prosseguir em marcha mais lenta: não
estava calçada e os seus pezinhos, pousando na
terra gelada, foram-se arroxeando.
Próximo à floresta, havia um campo de tri-
go. Agora, porém, só o que se via eram resto-
lhos, despontando da terra coberta de gelo. Por
entre eles, caminhava Polegarzinha, transida de
frio, com a sensação de estar perdida num bos-
que imenso.
Depois de muito andar, certo dia, finalmen-
te, viu no chão um f eixezinho de palha. Curiosa,
aproximou-se e descobriu que, debaixo dele, ha-
via uma fenda no terreno.
Quis entrar por ela e, prestando mais aten-
ção, viu uma portinha semi-aberta. Espiou por
ela e, com grande espanto, descortinou um quar-
to repleto de trigo, uma cozinha ampla e uma
sala de jantar: tudo subterrâneo.
Deduziu que se tratava da habitação de um

121
desses bichinhos do campo. Enchendo-se de coragem, bateu à porta. Foi
atendida por um ratão, de gorro vermelho na cabeça, cachimbo na boca e
bastão nodoso entre as patas.
Polegarzinha apresentou-se como alguém que mendigava um grão de ce-
vada, por estar sem comer há dois dias.
— Pobrezinha! exclamou o velho rato dos campos, que era de bom co-
ração. Entre e venha comer à minha mesa; está quentinho aqui dentro,
Deu-lhe de comer e depois lhe disse:
— Pode passar aqui o inverno, com a condição de manter bem limpi-
nhos os quartos e de me contar alguma história bonita. Sou louco por his-
tórias!
Aceitou a proposta e não teve do que se queixar.
— Teremos hoje uma visita, anunciou certo dia o velho rato. O meu vi-
zinho costuma visitar-me uma vez por semana. É muito mais rico do que
eu. Tem uma casa com diversos salões e usa casaco de veludo. Se quisesse
casar-se com você, teria muita sorte! Conte-lhe as mais belas histórias que
souber.
Polegarzinha. porém, não tinha entusiasmo pela ideia de casar-se com o
vizinho: tratava-se de uma toupeira!
Envolto em seu abrigo de veludo, não tardou em aparecer, para ã cos-
tumeira visita. Falou-se muito em suas riquezas e sua instrução. Porém,
dizia horrores do sol e das flores, sem conhecê-los, pois, como todas as tou-
peiras, vivia debaixo da terra.
Polegarzinha cantou-lhe diversas canções. E ele, fascinado por sua voz
melodiosa, sentiu-se desejoso de-se casar com ela. Porém, avisado e caute-
loso como era, cuidou de não tomar decisões apressadas, das quais pudesse
vir a arrepender-se mais tarde.
Querendo mostrar-se agradável, convidou os vizinhos a passear numa
grande galeria subterrânea que ele próprio cavara, unindo as duas casas.
Preveniu-os, porém, que não se asustassem à vista de um pássaro morto que
ali fo;ra sepultado no início do inverno.
Ia à frente, abrindo caminho aos visitantes. Chegando ao local onde ja-
o pássaro morto, bateu com o focinho na abóbada da galeria escura, fa-
zendo uma brecha, por onde entrou luz. Ali, no meio do corredor, estava o
corpo de uma andorinha, certamente morta de fome, com as asas apertadi-
nhas ao corpo e as patinhas escondidas debaixo das penas. Aquele espetá-
culo feriu o coração de Polegarzinha. Gostava tanto dos passarinhos que nos
dias quentes de verão a haviam alegrado com seu canto!
A toupeira afastou'a andorinha com as patas, dizendo:
— Este é um que já não vai poder cantar. Que desgraça, nascer passa-
rinho! Por sorte, nenhum de meus filhos terá esse triste destino!
— Você é jsábio, aprovou o rato. Isso de cantar nunca serviu para nada.
Polegarziuha não fez comentários, mas quando os outros dois se volta-
ram, inclinou-se sobre a andorinha è deu-lhe um beijo nos olhinhos fe-
chados.
"Pobre avezinha! Talvez ainda neste verão que passou estivesse can-
tando para mini!" pensou.
A toupeira, depois de tapar cuidadosamente o buraco que abrira, acom-
panhou seus vizinhos de volta à casa do rato.
Durante a noite, Polegarzinha levantou-se, teceu um belo tapete de fe-
no, foi até a galeria e o estendeu sobre a andorinha morta, com a intenção
de aquecê-la.
Apoiou-lhe a cabeça no peito e logo retrocedeu, assustada: sentira um
ligeiro bater! Era o coração da avezinha, que não estava morta, como pare-
cia, mas somente entorpecida pelo frio. O calor devolvera-lhe a vida.
Polegarzinha tremia de susto: perto dela, a andorinha tinha proporções
gigantescas. Enchendo-se, porém, de coragem, envolveu-a no feno e cobriu-
lhe a cabeça com uma folha.
Na noite seguinte, quando voltou a visitar a doente, encontrou-a viva,
mas tão debilitada ainda que só por um instante entreabriu os olhos para
ver quem a cuidava.
— Agradeço-lhe, linda menina, disse-lhe com um fiozinho de voz, por
me ter aquecido. Dentro em pouco, recobrarei as forças e voarei pelos céus,
exposta aos raios do sol dourado.
— Faz frio lá fora, disse Polegarzinha; está nevando. Deixe-se ficar
deitadinha na cama que eu cuidarei de você.
Depois, foi buscar água e a trouxe, na pétala de uma flor.
A andorinha bebeu e contou-lhe que, tendo-se ferido na asa, não pude-
ra seguir com as companheiras rumo aos países quentes. Caíra no chão e,
a partir daquele instante, não se lembrava de mais nada do que acontecera.
Durante o resto do inverno, sem que nem o rato nem a toupeira sou-
bessem, Polegarzinha cuidou de sua amiga ave.
Com a chegada da primavera, a andorinha dispôs-se a partir e convi-
dou Polegarzinha a acompanhá-la. Mas ela respondeu que não podia aban-
donar o rato, a quem estava presa por uma divida de gratidão.
— Nesse caso, adeus linda menina!
E lá se foi a andorinha, voando para o calor do sol dourado.
Polegarzinha viu-a partir com lágrimas nos olhos: afeiçoara-se tanto a
ela!
— Neste verão você vai preparar o enxoval, disse-lhe um dia o rato.
(De fato, a toupeira pedira a mão de Polegarzinha). Para se casar com a
toupeira, deve levar roupa branca suficiente e vestidos que cheguem.
Fê-la sentar-se à roca e ajustou quatro aranhas para que fiassem min
terruptamente até que tudo estivesse terminado antes da data marcada.

123
Ao iniciar-se o outono, Polegar-
zinha tinha o enxoval pronto.
— Dentro de quatro semanas se-
rá o casamento, anunciou o rato.
Ela chorou, protestando que não
queria desposar a toupeira enfado-
nha.
— Que tolice I exclamou o rato.
Devia é estar satisfeita por casar
com tão importante personagem e
ter uma casa tão farta.
Chegou o dia do casamento.

A toupeira apresentou-se, para


levar Polegarzinha a viver debaixo
da terra, de onde nunca mais havia
de ver o brilho do sol.
— Adeus, sol de ouro l Disse Po-
legarzinha, com ar aflito. Adeus,
adeus, disse, ao abraçar uma florzi-
nha vermelha. Se, por acaso, vir a
andorinha minha amiga, cumpri-
mente-a por mim, dê-lhe notícias mi-
nhas e diga-lhe que me lembro sem-
pre dela com muito carinho.
124
— Quivit! Quivit! .ouviu gritar naquele mesmo instante.
Ergueu a cabeça: era a andorinha que passava justamente por ali. Deu
mostras da maior alegria ao avistar Polegarzinha. Desceu apressada, re-
petindo os seus alegres quivít e foi pousar ao lado de sua benfeitora,
Polegarzinha contou-lhe que pretendiam forçá-la a casar-se com aquela
toupeira tão feia que vivia debaixo da terra, onde o sol não penetrava nun-
ca. E, falando nessas tristezas, debulhava-se em lágrimas.
— Está chegado o inverno, disse a andorinha. E eu vou de volta para
terras mais quentes. Quer ir comigo? Irá amarrada às minhas costas. Fu-
giremos para bem longe da toupeira e da sua casa escura. Iremos para além

^^^T
das montanhas, onde o sol é mais brilhante do que aqui, onde o verão e as
flores são eternos. Venha comigo, minha querida amiguinha, que me sal-
vou a vida, quando eu estava naquele corredor escuro, a morrer de frio.
— Sim, sim, irei com você! consentiu Polegarzinha desta vez.
E, assim dizendo, sentou-se no dorso do pássaro, amarrando o cinto às
penas mais firmes. Foi transportada através do espaço, sobrevoando a flo-
resta, o mar e as montanhas cobertas de neve.
A princípio, sentiu frio; e então aninhou-se nas plumas mornas, dei-
xando de fora só a cabecinha, para poder admirar as belezas que ficavam
lá embaixo.
125
Chegaram assim às terras quentes, onde as parreiras se carregavam de
cachos vermelhos, onde se estendiam campos imensos de limões e de laran-
jas, onde mil plantas maravilhosas enchiam o ar de seu aroma penetrante,
onde as crianças brincavam nas ruas com borboletas multicores.
Junto a um lago azul, a andorinha deteve-se. Numa das margens, er-
guia-se antigo castelo de mármore, cercado de colunas, que sustinham um
pergolado. Debaixo do telhado, havia uma porção de ninhos: num deles, mo-
rava a andorinha.
— Ali está a minha casa, mas não convém que more comigo, porque não
estou preparada para hospedá-la. Escolha você mesma a flor mais bela pa-
ra fazer nela a sua casa. Levá-la-ei até lá e esforçar-me-ei para que passe
aqui uma, temporada feliz.
126
Polegarzinha estava no auge da felici-
dade. Qual não foi, porém, o seu espanto
quando viu, dentro da flor que escolhera, um
homenzinho branco e transparente como vi-
dro, de estatura mínima. Não era mais alto
do que um dedo polegar. Usava na cabeça
uma coroa de ouro e nas costas tinha asas
de brilhantes. Era o'génio das flores. Cada
flor era o palácio de um homenzinho e de
uma mulherzínha e ele reinava sobre todo
aquele povo.
— Ó que homenzinho mais lindo! disse
Polegarzinha.
à vista do gigantesco pássaro, o prmci-
pezinho assustou-se. A andorinha compre-
endeu que o génio das flores a temia. E dis-
se, então, a Polegarzinha:
— Estou contente por vê-la sorrir de no-
vo. Mas agora tenho que ir. Meu velho ni-
nho está à minha espera. Adeus!
Polegarzinha entristeceu-se. Agradeceu
à andorinha e disse-lhe que voltasse a visitá-
la de vez em quando.
— Como se chama? perguntou-lhe o gé-
nio das flores, assim que a andorinha levan-
tou voo.
— Meu nome é Polegarzinha e venho de
um país muito distante daqui, respondeu ela.
— Você é a criatura mais linda que já vi!
exclamou o pequeno príncipe, enlevado.
E ali mesmo lhe pediu que se casasse
com ele, colocando-lhe na cabeça sua pró-
pria coroa.
Que marido, comparado ao sapinho e à
toupeira de casacão preto! Se o aceitasse,
seria rainha das flores.
Aceitou-o, naturalmente. E logo rece-
beu a visita dos cavalheiros e das damas que
saíam das outras flores para levar-lhe pre-
sentes.
Ganhou um sem-número deles, mas ne-
nhum a agradou tanto como um par de asas
transparentes que lhe pregaram às costas.
Com elas, pôde esvoaçar, feliz, de uma
a outra.

127
Durante os festejos das bodas, a andorinha, lá em seu
ninho, cantava suas canções mais lindas. Mas havia tristeza
em sua voz, porque ia separar-se de sua amiguinha.
— De agora em diante, já não se chamará Polegarzinha,
dizia o génio das flores à noiva. O nome é feio, para alguém
tão formosa: formosa como deve ser a rainha das flores. Cha-
mar-se-á Maia.
— Adeus! adeus! disse a andorinha, e saiu voando, de re-
gresso ao céu cinzento da Dinamarca.
Lá chegando, estabeleceu-se em seu antigo ninho, que fi-
cava justamente em cima da janela, onde o autor desta histó-
ria espera, cada ano, a sua volta.
Quivit! Quivit! Quivit! Quivit! cantou-lhe a avezinha.
— E foi assim que ele ficou sabendo desta história.

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