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HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA
E DA SAÚDE MENTAL
Joao Carlos Machiori de Claudio
Rafael Lustosa Ribeiro

HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA E DA
SAÚDE MENTAL
1ª edição

Londrina
Editora e Distribuidora Educacional S.A.
2020

2
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reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio,
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Beatriz Meloni Montefusco
Gilvânia Honório dos Santos
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Mariana de Campos Barroso
Paola Andressa Machado Leal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


__________________________________________________________________________________________
Ribeiro, Rafael Lustosa
R484h História da psiquiatria e saúde mental/ Rafael Lustosa
Ribeiro,Joao Carlos Machiori de Claudio –
Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A. 2020.
43 p.

ISBN 978-65-86461-25-1

1. Reforma psiquátrica. 2. Saúde mental I. Ribeiro, Rafael


Lustosa. II. Claudio, Joao Carlos Machiori de. Título.

CDD 616.89
____________________________________________________________________________________________
Jorge Eduardo de Almeida CRB 8/8753

2020
Editora e Distribuidora Educacional S.A.
Avenida Paris, 675 – Parque Residencial João Piza
CEP: 86041-100 — Londrina — PR
e-mail: editora.educacional@kroton.com.br
Homepage: http://www.kroton.com.br/

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HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA E DA SAÚDE MENTAL

SUMÁRIO
História da saúde mental e a reforma psiquiátrica __________________ 05
_

Legislações e políticas nacionais de saúde mental __________________ 21


_

A influência da reforma psiquiátrica na mudança do paradigma da


assistência em saúde mental _______________________________________ 37
_

Competências necessárias à equipe multiprofissional para assistência


em saúde mental e psiquiatria ______________________________________ 51
_

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História da saúde mental e a
reforma psiquiátrica
Autoria: Rafael Lustosa Ribeiro
Leitura crítica: Carolina Pasquote Vieira

Objetivos
• Entender como a doença mental era compreendida
pelos homens nos primórdios da civilização.

• Entender a história da saúde mental no Brasil.

• Compreender os motivos que levaram à reforma


psiquiátrica.

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1. A doença mental nos primórdios da
humanidade

Inicialmente, os fenômenos que trouxeram os significados da


loucura foram relatados nos impérios greco-romanos, somados com
uma gama de outras patologias descritas a partir das explicações
fornecidas pela mitologia. Em suma, os gregos acreditavam, por serem
panteístas, que todas as causas tinham a ver com manifestações
sobrenaturais influenciadas e/ou manipuladas por deuses e demônios
(FOUCAULT,1978).

Há cerca de 2.500 anos, na Grécia, existiam apenas alusões à loucura


como doença mental, referenciada como comportamentos estranhos,
personalidades incomuns ou desagradáveis e mesmo “possessões
demoníacas”.

Em muitos povos e culturas politeístas, como a do povo grego, a


relação entre suas crenças religiosas e espiritualidade era diretamente
ligada com alguns fenômenos que afligiam a mente humana. Desse
modo, por exemplo, se uma pessoa estivesse com sintomas de euforia
e demonstrando sexualidade exacerbada, de maneira a parecer
apaixonada, com comportamentos exibicionistas, tentando chamar
atenção, ou ainda, avançando para a conquista, os Gregos acreditavam
que essa pessoa estaria sob a influência de Afrodite, a Deusa do Amor
e da Beleza e/ou teria sido flechada por Eros, também conhecido como
Cupido, o Deus da paixão.

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Figura 1–Afrodite/Vênus

Fonte: ZU_09/iStock.com.

Figura 2 - Eros/Cupido

Fonte: Louiza Antoniou/iStock.com.

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Naquela época, era comum as pessoas acreditarem que acontecia
uma “batalha entre o bem e o mal” durante um “manifesto” patológico-
mental, em cada cultura e civilização isso era interpretado de forma
diferente, e na civilização grega, politeísta, isso naturalmente seguia a
mesma linha.

Segundo Foucault (1978), as possessões foram uma das formas mais


significativas usadas para explicar comportamentos considerados
desviantes, o energúmeno (o possesso) representava uma gama
de sentimentos ruins ou males que afligiam a mente humana, que
descontrolado não conseguia obter equilíbrio, causando sofrimento a si
mesmo e aos demais.

Então, o possesso era o louco? No entendimento daquela época, para


aquele tempo, sim. No entanto, ainda fica a questão: como chegamos ao
termo “louco”, tão utilizado na língua portuguesa contemporânea?

O termo “louco”, trazido aqui para o português, é de origem controversa:


malus – mal, que traria a ideia de “maluco” em português, pode ter
sofrido uma redução no sufixo para “luco”, depois dialetado para “louco”.
Dessa forma, “loucura”, tida como mal patológico, pode vir do étimo de
“maluco”, embora não esteja ligado diretamente ao latim malus.

“Malos” é um derivado de “malo”, em espanhol, que significa “mal”, em


português. Esse, por sua vez, a “malus”, explica Viaro (2011), assim, a
palavra “maluco” passou a significar ‘mal da cabeça’, em português.

Segundo Vasconcellos (2000), pensadores como Platão, Aristóteles e


Hipócrates (considerado o pai da medicina ocidental) demonstraram
interesse em classificar os manifestos de loucura, considerando
conceitos como histeria, melancolia, anedonia, manias, fobias e outros,
que mais tarde viriam a ser compreendidos com o avançar da ciência
médica.

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Após a ascensão das ideias filosóficas dos grandes pensadores
gregos, como Platão e Aristóteles, e da evolução da medicina e da
compreensão das doenças, com classificação de sinais, sintomas,
construção nosológica, e composição de prontuários nas definições de
teorias etiológicas, pelos estudos de Hipócrates, temos uma sequência
evolutiva acerca da visão da doença mental e da loucura nas civilizações
(FOUCAULT, 1978).

Esses pensadores observaram pessoas apresentando comportamentos


que seriam analisados a partir de uma perspectiva sequencial de:

• Classificar/diagnosticar e dar prognósticos.

• Iniciar terapêuticas/tratamentos.

• Considerar o passar do tempo de evolução patológica a partir das


perspectivas de casualidade e as teorias adaptativas humorais.

Com essas perspectivas hipocráticas, o conceito de patologias, inclusive


as psíquicas, foi se ampliando. Alguns séculos depois, a estruturas de
exclusão social passam a ser ocupadas pela figura do louco, o dito
maníaco, assim, estava para nascer como marco negativo da história da
doença mental, a era manicomial.

Apesar de já existirem mecanismos de exclusão do patológico psíquico,


ainda não era o tempo em que a loucura seria compreendida como um
fenômeno que requeira um saber específico, tanto que os primeiros
estabelecimentos criados para encarcerar doentes mentais eram
destinados a retirar do convívio social as pessoas consideradas inaptas
para esse convívio.

O primeiro manicômio com essa função, que se tem registro, foi


construído em Valência, Espanha, dirigido pelo Frei Juan Gilberto Jofre,
em 1409. Segundo Nogales Espert (2001), essa estrutura funcionou até
1808.

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No século XVI, alguns movimentos começam a se destacar na busca por
compreender a mente dos indivíduos que viviam em isolamento. Nesse
contexto, destaca-se o nome de Philippe Pinel, (Saint André, 20 de abril
de 1745 — Paris, 25 de outubro de 1826) médico francês, considerado
por muitos o pai da psiquiatria. Segundo Teixeira (2019), seu nome
se destacou por ter considerado que os seres humanos que sofriam
de perturbações mentais eram doentes e que, ao contrário do que
acontecia na época, deviam ser tratados como doentes e não de forma
violenta.

2. Histórico da reforma psiquiátrica no Brasil:


crítica ao modelo hospitalocêntrico

No Brasil a história não difere tanto em relação a evolução europeia,


onde houveram épocas em que os tidos como loucos eram
maltratados, mortos, presos e isolados.

Segundo Miranda-Sá Jr. (2007), segue-se o momento nas épocas


coloniais, em meados dos anos de 1800, em que os asilos e
manicômios foram criados com as mesmas tendências europeias.
Dessa forma, os doentes mentais eram isolados do contexto social,
sem tratamentos dignos, segregados em locais que não atendiam
as necessidades que são exigidas quando uma perturbação se
estabelece de forma psíquica.

Posteriormente, passou-se à pratica dos cuidados com o doente


mental de formas específicas conforme seus “manifestos”, isso
fez com que a saúde mental fosse vista de uma forma distinta do
paradigma anterior. Juliano Moreira (Salvador, 6 de janeiro de 1873
— Rio de Janeiro, 2 de maio de 1932) foi médico e um dos pioneiros
da psiquiatria brasileira. Segundo Almeida (2008), ele foi o primeiro
professor universitário a citar e incorporar a teoria psicanalítica no

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seu ensino na Faculdade de Medicina. Entre os anos de 1903 a 1930,
no Rio de Janeiro, ele dirigiu o Hospício Nacional de Alienados. Nesse
hospício, embora não fosse professor da Faculdade de Medicina do
Rio, recebia internos para o ensino de psiquiatria.

Ainda, segundo Almeida (2008), uma figura tão importante como


Carlos Chagas, ou Oswaldo Cruz, na época em que viveu em pleno
auge da transição higienista para as reformas sanitárias, fez várias
mudanças no modo como a psiquiatria deveria ser conduzida dentro
dos asilos, entre elas: instalou laboratórios de anatomia patológica e
de bioquímica no hospital; remodelou o corpo clínico, com entrada
de psiquiatras/neurologistas e outros especialistas; aboliu o uso de
coletes e camisas de força, retirou grades de ferro das janelas; cuidou
para que houvesse registros administrativos, estatísticos e clínicos, e
reorganizou a “Assistência aos Alienados”.

Seguindo a Lógica manicomial, Francisco Franco da Rocha (Amparo,


23 de agosto de 1864-1933), médico psiquiatra, foi o pioneiro no uso
de técnicas modernas no tratamento de doenças mentais no Brasil.
Entretanto, ele ainda mantinha os moldes manicomiais da época,
em 1898 foi fundador do Asilo de Alienados do Juqueri, que em 1928
passou a se denominar Hospital e Colônias de Juqueri e, mais tarde,
Hospital Psiquiátrico do Juqueri, localizado no atual município de
Franco da Rocha (ALMEIDA, 2008). Nesse sentido, em meados do
século XX, esse chegou a ser o maior hospital psiquiátrico da América
Latina. Desse modo, Franco da Rocha contribuiu com ideias de
terapia ocupacional para os doentes mentais, porém houve tempo
em que essas ideias foram distorcidas e o trabalho dos internos
era utilizado com produção não remunerada, além disso, corruptos
obtinham lucro com essa ação, o que gerou diversas denúncias,
que, por sua vez, fizeram com que as práticas de ocupação para os
doentes mentais fossem mal vistas na época.

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Segundo Almeida (2008), em 1958, o hospital chegou a ter mais de 14
mil internados. Um pavilhão para menores foi inaugurado em 1922 e
em 1957, do total de doentes 3.520 eram crianças. O Juqueri perdeu
o controle e o propósito na década de 1920, semelhante a outros
asilos, com a adoção de práticas bárbaras, devido à falta de gestão e
fiscalização desses espaços de confinamento. Segundo Arbex (2013),
as práticas manicomiais eram das mesmas correntes cruéis que
ocorreram em Barbacena (MG), no Hospital Colônia: superlotações;
contenções como punição e castigo, não visando a segurança do
paciente, muitas vezes, sem uso de sedativos; falta de roupas, em
que muitos ficavam nus; e, uso de instrumentos não esterilizados em
procedimentos.

O supracitado manicômio, na época, chamado de “hospício”,


no Brasil, em Barbacena (MG), no ano de 1958 recebeu suas
primeiras denúncias sobre o segregar seres humanos em condições
deploráveis. Nessa época, havia um padrão da lógica manicomial
brasileiro preestabelecido, no qual muitos pacientes internados
sofreram com os atrasos do país em relação a inexistência de
políticas sérias que tratassem de forma digna as pessoas com
doenças mentais.

No entanto, asilos similares ao Juqueri e ao Hospital Colônia de


Barbacena marcaram a era manicomial brasileira, em que não havia
perspectivas para melhora do quadro psíquico ou, até mesmo, nas
condições em que os internos viviam, tão pouco, de um dia, para a
maioria deles, sequer receber alta. Segundo Arbex (2013), em 1966,
em Barbacena, no Hospital Colônia, eram 4.800 internos e em média
700 mortes por ano.

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Figura 3–Paciente tomando água do esgoto no Hospital Colônia

Fonte: Arbex (2013, [s.p.]).

Com isso, a justificativa formal era que, por causa do aumento do


número de “alienados” no Estado de Minas Gerais, as Santas Casas e os
hospitais gerais tinham elevados gastos com a manutenção dos doentes
mentais e, na época, o Convênio Nacional de Saúde Brasileira investia
todos os seus custos em sanitarismo, no auge dos pós Revolta da Vacina,
com as campanhas de Carlos Chagas.

Em sua concepção alienista das práticas psiquiátricas da época, o


hospital funcionou bem, durante os primeiros 20-30 anos, ele era visto
como centro de referência para internar pacientes de várias regiões do
Estado mineiro, desde Belo Horizonte até o interior.

Com o crescimento da demanda, foram necessárias reformas para se


adequar a quantidade de internos, chegando a abrigar mais de quatro
mil doentes com patologias mentais diversas.

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Desse modo, por receber essa demanda tão peculiar, a cidade de
Barbacena ficou conhecida como “cidade dos loucos”. Com o passar dos
anos, a gestão e a logística foram se perdendo, e os pavilhões em estado
precário de conservação não comportavam mais o excessivo número de
pacientes que estavam alocados de forma depositária, convivendo com
a inexistência de tratamento, falta de medicamentos e alimentos.

Segundo Peron (2013), o Hospital Colônia revelou ser o maior em muitos


números: em tamanho, com 8 milhões de m²; em tempo de existência,
funcionando entre os anos de 1903 a 1980; e em maior dado trágico,
pois 60.000 pessoas morreram nas dependências do hospital.

Um livro descreve muito bem essa tragédia, inclusive com acervo


fotográfico de reportagens jornalísticas, sendo organizado em torno das
histórias pessoais e entrevistas com trabalhadores do local, médicos
e pacientes sobreviventes. No total, restaram 200 sobreviventes e a
maioria deles está relatava no livro.

“Todo o simples cenário necessário para a presença da banalidade do mal,


que está sempre entre nós: “O fato é que a história do Colônia é a nossa
história. Ela representa a vergonha da omissão coletiva que faz mais e mais
vítimas no Brasil” (ARBEX, 2013, p. 255).

A luta antimanicomial europeia, que mais tarde influenciou as ideias de


reforma psiquiátrica brasileira, começou no século XX, em que Franco
Basaglia (1924-1980) foi um dos principais precursores na Itália. Segundo
Silveira (2005), em Trieste, ele promoveu a substituição do tratamento
hospitalar e manicomial por uma rede territorial de atendimento, da
qual faziam parte os serviços de atenção comunitários, emergências
psiquiátricas em hospital geral, cooperativas de trabalho protegido,
centros de convivência e moradias assistidas, chamadas por ele de
“grupos-apartamento”, destinados aos loucos.

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Basaglia visitou o Brasil algumas vezes e conheceu as grandes
instituições asilares, chegou a compará-las aos campos de concentração
da segunda Guerra Mundial (SILVEIRA, 2005).

Segundo Peron (2013), após esse destaque negativo observado no Brasil


e levado para o mundo na visão de Basaglia, de 1960 a 1970, a imprensa
começou a divulgar reportagens denunciando os maus-tratos aos
internos e as condições em que viviam, mobilizando a opinião pública
sobre a situação de Barbacena (MG).

Em meio à existência persistente da lógica manicomial, após denúncias


de profissionais da saúde e depoimentos de familiares de internos sobre
como era a vida dentro do manicômio, movimentos pró-reformistas
começam a ganhar impulso, com isso, em 1975, o Brasil começou a luta
antimanicomial.

A partir disso, vários movimentos seguiram por parte de profissionais


de saúde e de familiares de portadores de transtornos mentais, bem
como de pessoas que foram internadas e sentiram na pele os percalços
da vida asilar, na busca por reformar o modelo de internação vigente na
época.

Em 1987 ocorreu a primeira Conferência Nacional de saúde


mental, que apresentou temáticas sobre tratamentos psiquiátricos
mais humanizados, focando na reforma em relação ao modelo
hospitalocêntrico, que é modelo de internações baseado em hospitalizar
as pessoas e mantê-las internadas, o movimento oposto propunha
a criação de atendimentos que substituíssem e rompessem esse
paradigma, a fim de combater as práticas manicomiais e reinserir as
pessoas com patologias mentais na sociedade, ao invés de isolá-las
afastando-as.

Com a Constituição Federal (1988), somados com o advento do Sistema


Único de Saúde (SUS) nos anos 90, passou a ser direito de todos a

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participação na gestão do SUS, dessa forma, foi possível a criação de
garantias legais para manter as reivindicações a respeito da reforma
psiquiátrica.

Todo movimento pautado em uma legislação é aceito pela sociedade


com mais facilidade, no geral, o movimento da reforma psiquiátrica não
visava uma revolta social, mas uma mudança estruturante.

Essas garantias legais foram o reforço que o movimento reformista


precisava, pois, com a possibilidade de participação na gestão do
Sistema único de saúde, as pessoas poderiam se organizar em blocos
populares, formando eventos com movimentos políticos e reivindicando
direitos e melhorias para qualquer necessidade ou demanda de saúde
mais emergente. A seguir, trataremos esse tema melhor quando
falarmos sobre a Declaração de Caracas.

2.1 A implementação de uma rede extra: hospitalar

Em 1992, a segunda Conferência Nacional de Saúde mental utilizou


o evento para compor a reforma psiquiátrica junto com a reforma
sanitária, que ocorria após a implementação do SUS. A necessidade de
combater a lógica manicomial era iminente e a Luta antimanicomial
ganhou força em 1995, com uma aderência social, principalmente, por
parte das famílias e profissionais de saúde que discordavam das práticas
existentes.

A partir da conferência, são criados os primeiros NAPS, chamados


de núcleos de apoio psicossociais e depois os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) e as
Unidades Psiquiátricas em Hospitais Gerais (UPHG).

Segundo Bezerra Jr. (2004), com os programas da Saúde da Família


consolidados, foi possível cobrir áreas e mapear melhor as necessidades
de atenção específica de saúde mental, esse binômio (Reforma

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psiquiátrica e Sistema Único de Saúde) foi uma parceria bem-sucedida
para possibilitar a reforma em escala nacional.

Os serviços substitutivos foram se ampliando em vários Estados


brasileiros, que foram aderindo as ideias reformistas, de forma distinta,
criando uma rede de atenção psicossocial (RAPS). Porém, haviam
muitos interesses econômicos de setores privados que desejavam a
manutenção do Sistema institucionalizante e da psiquiatria fechada,
assim, opondo-se à reforma psiquiátrica (BEZERRA JR., 2004).

A Reforma Psiquiátrica Brasileira foi um movimento social e político


que aconteceu em concomitância com a saúde pública, conforme
mencionamos anteriormente. Outro fator que reforçou o Brasil avançar
com a reforma, foram os movimentos em toda América Latina após
a Declaração de Caracas, denominada: “A reestruturação da atenção
psiquiátrica na América Latina: uma nova política para os serviços de
Saúde Mental”, em 1990. O Brasil aderiu a essa Declaração, e a ela se
articulou um longo e conturbado movimento de trabalhadores de saúde
mental, movimento legalizado e garantido pela Constituição Federal
(1988) e pelas legislações do SUS (1990).

Nesse sentido, uma legislação que marcou a legalização em nível


nacional de uma psiquiatria aberta, que ordenava o fechamento de
instituições manicomiais de psiquiatria só surgiu mais tarde, em 2001,
junto com a Terceira Conferência Nacional de Saúde mental (BRASIL,
2001).

3. A Reforma Psiquiátrica depois da lei Nacional


(2001-2005)

Após todos os movimentos pró-reformistas, a lei 10.216, que dispõe


sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos

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mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, criada
em 6 de abril de 2001, garantia um passo importante para o fechamento
dos hospitais psiquiátricos e das práticas manicomiais (BRASIL, 2001).

Como ponto de partida, em 2002 foram criados (formalizados via


Portaria nº 336 de 2002) os Centros de Atenção Psicossocial, que
passaram a atuar como porta de entrada reguladora do Sistema.

Mas, antes de falar de CAPS, vale citar o programa “De volta para casa”
(PVC). No dia 31 de julho de 2003 foi criada a Lei n. 10.708, instituindo
o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes acometidos de
transtornos mentais, egressos de internações. Essa lei, por sua vez,
garante o auxílio social e financeiro para aqueles usuários do Sistema
que viveram durante muitos anos confinados nos hospitais psiquiátricos
nos tempos de prática manicomial.

Dessa forma, todos os portadores de sofrimentos psíquicos que tem


paradeiro de familiares, ou responsáveis para tutorá-los, podem receber
auxílio financeiro mensal para manutenção do seu tratamento em rede
aberta. Esse programa foi importante para sucesso do planejamento e
ampliação da RAPS, bem como a criação de centros de convivência e as
Residências Terapêuticas.

Para aqueles que não têm essas condições, foram criadas as residências
terapêuticas, prevendo que muitos usuários da rede de atenção
psicossocial não teriam paradeiro familiar ou lugar para viver após
saírem da condição asilar, que viviam anteriormente nos hospitais
psiquiátricos. Assim, todos os casos seguiriam tratamento nos CAPS
(BRASIL, 2001).

Segundo Miranda Sá-Jr. (2004), em 2005, foi retomada a “Declaração


de Caracas”, sob a forma de um documento intitulado “Princípios
Orientadores para o Desenvolvimento da Atenção em Saúde Mental nas
Américas”, com o objetivo de avaliar os resultados obtidos desde 1990.

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Dessa forma, os organizadores reconhecem avanços importantíssimos
que se produziram nos últimos quinze anos para reestruturar as práticas
psiquiátricas, como: a ampliação de serviços substitutivos e estruturação
de uma rede de tratamento psiquiátrico aberta, visando a reinserção do
portador de sofrimento psíquico na sociedade; observando experiências
que deram certo e foram desenvolvidas em diferentes países, assim
como desafios que foram encontrados nos últimos anos, as dificuldades
e todo o processo que precisava de melhorias.

Além disso, reafirmou-se a validade dos princípios contidos na


“Declaração de Caracas” em relação à proteção dos direitos humanos,
da cidadania dos portadores de transtornos mentais e a necessidade da
construção de redes de serviços alternativos aos hospitais psiquiátricos.

As práticas em saúde mental desenvolvidas ao longo do tempo, para


chegar no modelo de psiquiatria aberta instituído após 2001, passaram
por refinamentos e pela participação de uma série de movimentos
políticos, bem como reajustes legislativos e a revisão de pactuações
constantes.

O CAPS é o ponto chave para que a reforma se mantenha no


Brasil, utilizando de equipes multiprofissionais e interdisciplinares,
esses serviços substitutivos podem dar um suporte terapêutico
individualizado, tratando caso a caso.

Encerramos nosso processo histórico sobre saúde mental por aqui,


espero que, com essa tema, você tenha obtido os conhecimentos
necessários para sua vida pessoal e para sua vivência profissional.

Em verdade, há muitos detalhes a serem desvelados na vastidão


histórica que compreende a evolução das doenças mentais, e você está
diante de uma porta de entrada convidativa ao buscar um curso na
busca por especializar-se nessa área.

19
Que essas reflexões acerca da loucura, do sofrimento psíquico e dos
males que acometem a mente humana desde sempre, bem como as
tantas experiências e suas possibilidades de tratamento, possam ter
lhe trazido compreensão desse universo complexo, porém curioso e
profundo, que é a história da psiquiatria.

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, F. M. de. O Esboço de psiquiatria forense de Franco da Rocha. Revista
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 137-
150, mar. 2008.
ARBEX, D. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
BEZERRA JR., B. O cuidado nos CAPS: os novos desafios. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Saúde, 2004.
BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos
das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial
em saúde mental. Brasília, DF: Presidência da República, [2001]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm. Acesso em: 15 abr.
2020.
FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva,
1978.
MIRANDA-SÁ JR, L. S. de. Breve histórico da psiquiatria no Brasil: do período colonial
à atualidade. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 29, n. 2,
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NOGALES ESPERT, A. La enfermería y el cuidado de los enfermos mentales en el s.
XV. Cultura de los cuidados, Alicante, ano 5, n. 9, p. 15-21, 1 sem. 2001.
TEIXEIRA, M. O. L. Pinel e o nascimento do alienismo. Estudos e Pesquisas em
Psicologia, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, 2019.
VASCONCELLOS, J. Filosofia e loucura: a ideia de desregramento e a filosofia. In:
AMARANTE, P. (org.). Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade [online]. Rio
de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. p. 13-23. (Coleção Loucura & Civilização)
VIARO, M. E. Etimologia. São Paulo: Contexto, 2011.

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Legislações e políticas nacionais
de saúde mental
Autoria: Rafael Lustosa Ribeiro
Leitura crítica: Carolina Pasquote Vieira

Objetivos
• Elucidar o respaldo do Sistema Judiciário para o
movimento da reforma psiquiátrica brasileira.

• Compreender a lei que garante os tratamentos e


direitos aos portadores de doença mental no Brasil.

• Estudar os dispositivos que ofereçam infraestrutura


aos serviços substitutivos dos hospitais psiquiátricos.

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1. Evolução jurídica da saúde mental no Brasil

No Brasil colonial, a doença mental era motivo de cerceamento,


encarceramento e segregação do meio social, foi a partir desse ponto
que as práticas asilares para tratamento da loucura tiveram início no
país.

O estabelecimento de manicômios, asilos para alienados e hospitais


de grande porte para internar pessoas com doenças transmissíveis,
como leprosos, sifilíticos, tuberculosos ou os considerados loucos, era
a tendência nos anos de 1850 em diante, até meados dos anos 1960,
mesmo quando o Brasil se tornou uma república. Esse modelo de
saúde é conhecido como Hospitalocêntrico.

Nesse sentido, Mansanera e Silva (2000) afirmam que não existiam


políticas específicas para atender esse tipo de situação em especial,
como as doenças mentais, assim, vigoravam no Brasil, como ocorria
na Europa, a medicina higienista e as linhas alienistas, que visavam
higienizar as cidades por meio da remoção coercitiva de pessoas que
apresentassem problemas de saúde, isolando e prendendo essas
pessoas em locais distantes para acompanha-las em seu processo
patológico, muitas vezes, sem condições de tratamento ou cura.

O alienismo, por sua vez, tratava dos alienados, pessoas com


problemas de ordem mental, aqueles que estavam alheios as normas
da sociedade. As ideias de psiquiatria e tratamentos psiquiátricos
só chegaram ao Brasil com o advento do ensino dessa disciplina nas
universidades, um dos pioneiros foi João Carlos Teixeira Brandão
(Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1854 — Rio de Janeiro, 3 de
setembro de 1921) e Juliano Moreira (Salvador, 6 de janeiro de 1872
—1933), frequentemente considerado como o fundador da disciplina
psiquiátrica no Brasil (ODA; DALGALARRONDO, 2000).

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Ambos influenciados pelas ideias e os feitos de Phillipe Pinel e Jean
E. Esquirol, na França, que durante o século XIX buscavam compor
a psiquiatria como ciência, classificando diagnósticos e tratando os
pacientes no Asilo Feminino de Bicetrê, de maneira diferenciada da
tendência ao isolamento. Dessa forma, demonstrando diagnósticos
e prognósticos para os pacientes, eles realizaram muitos estudos
importantes que contribuíram para firmar a disciplina de psiquiatria
como ramo das ciências médicas (SILVEIRA; BRAGA, 2005).

Desse modo, os estudos das doenças mentais e sofrimentos psíquicos


foram evoluindo com o tempo e, devido aos comportamentos
desviantes da norma preceita socialmente, os doentes mentais,
chamados de alienados, não tinham ainda uma distinção de
tratamento sobre sua patologia.

A ação de implantar uma lei relativa aos doentes mentais brasileiros


surgiu do pioneiro docente de psiquiatria da Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro o, então, deputado e professor doutor, João Carlos
Teixeira Brandão.

Segundo Macedo (2006), Brandão foi relator do Decreto n. 1.132


de 1903, promulgado no governo do presidente Rodrigues Alves,
que reorganizou a assistência aos doentes mentais que ainda eram
chamados de “alienados”.

Ainda segundo o autor, a influência decorrente da lei francesa


de 1838, que se referia a como deveriam ser as condições para
tratamentos dos alienados e, como deveriam ser construídas as
estruturas manicomiais, nesse momento histórico da sociedade
francesa, a psiquiatria já estava estabelecida como ciência e os
manicômios já separavam pacientes por sexo, patologias e gravidade
da patologia (MACEDO, 2006).

23
Segundo Macedo (2006), era evidente nesse decreto, que impediu
o intento de unificação da assistência psiquiátrica no Brasil, o
estímulo à construção de asilos estaduais e a proibição definitiva do
cerceamento de doentes mentais em prisões. Além disso, definia a
tratamentos mais humanos em relação à época. A doença mental,
como em outras partes do mundo ocidental, permaneceu ligada a
três dimensões: médica, jurídica e social.

O decreto em questão também é o responsável por firmar a ideia de


que o doente mental não possui a imputabilidade e a capacidade de
gerir seus bens e a si mesmo, devendo se submeter a uma tutoria
ou curador, que também é o responsável pela guarda provisória
dos bens do doente. Assim, o paciente não teria direito de causa
para interferir ou opinar sobre o seu tratamento, ou sobre suas
terapêuticas.

Segundo o trabalho de Macedo (2006), quando foi aprovado o Código


Civil de 1916 o Decreto n. 1.132 ainda estava em vigor, seguindo o
caminho determinado por ele em alguns aspectos que se referem
à capacidade civil dos doentes mentais, mas, em contrapartida,
determinando-os de “loucos de todo o gênero” em vez de “alienados
de qualquer espécie”, como estava no projeto original.

Não houve, inclusive, a preocupação de definir rigidamente, de


forma clara ou singular, os que fossem alienados mentais, então,
no entendimento apresentado na época, todos “aqueles que”,
por organização cerebral incompleta ou moléstia localizada no
encéfalo, lesão somática ou vício de organização, não gozam de
equilíbrio mental e clareza de razões suficientes para se conduzirem
socialmente nas várias relações da vida (MACEDO, 2006).

Em 1927, o Decreto n. 17.805 estabeleceu a distinção entre


“psicopata”, como todo e qualquer doente mental, e “alienado”, que
se referia ao doente mental perigoso, sujeito à incapacidade penal e

24
civil. Dessa forma, a internação do alienado passou a ser obrigatória
(SOARES FILHO; BUENO, 2016).

Em 1934, sob o governo getulhista, entrou em vigor o Decreto n.


24.559, assim, revogando o anterior de 1903. Nesse decreto, o
termo alienado foi retirado do ordenamento jurídico, que passou a
referir-se somente ao “psicopata”. A incapacidade do doente mental
foi reafirmada, sendo facilitado o recurso à internação, válido por
qualquer motivo que torne incômoda a manutenção do psicopata
em sua residência com os familiares, meio social ou tutores (SOARES
FILHO; BUENO, 2016).

Atualmente, por exemplo, a psicopatia ou o termo “Psicopata”


determina um comportamento antissocial, no sentido de ser anti as
regras sociais, geralmente, com que os criminosos e os foras da lei
são designados com esses tipos de transtornos da personalidade,
e apresentam comportamentos irregulares, com baixa capacidade
de empatia, ausência de remorso, com atitudes de dominância ou
parasitárias em relação a outras pessoas ao seu redor (SOARES
FILHO; BUENO, 2016).

O entendimento para a época era que a internação era considerada


o tratamento padrão, recomendado a todo e qualquer indivíduo
portador de qualquer tipo de transtorno mental. Sendo assim,
o tratamento extra-hospitalar era e exceção, em que, segundo
o trabalho de Macedo (2006), a mínima suspeita de sintomas ou
instaurar de doença mental bastava para que o indivíduo fosse
cerceado em situação asilar, seus direitos civis seriam suprimidos e
ele seria submetido à tutela do Estado.

Não haviam garantias, segundo o trabalho de Macedo (2006) e Soares


Filho e Bueno (2016), contra a medida de internação compulsória.
Novamente a saúde mental e segurança pública estavam interligadas
em uma conexão de Justiça e Psiquiatria, com o tratamento, que

25
deveria ser pensado de forma biomédica, sendo associado ao aspecto
legal. Em razão do potencial de periculosidade, o psicopata passou a
ser visto em um misto dos enfoques jurídicos e médicos, na medida
em que sua mera existência era uma questão de ordem pública.

Em meados da década de 1960, o saber psiquiátrico foi confrontado


pelo surgimento da corrente antipsiquiátrica, a qual questionava a
psiquiatria convencional enquanto conhecimento científico, propondo
serem frágeis as próprias bases que fundamentam a existência da
doença mental. A loucura, portanto, passa a não ser vista como
doença, mas um reflexo do desequilíbrio social e familiar do meio
onde o indivíduo se encontra inserido, devendo o empenho em sua
cura se localizar nessas causas, excluindo as disfunções orgânicas tão
propagadas anteriormente (MACEDO, 2006).

Na mesma década, na cidade italiana de Trieste se originou o


movimento da Reforma Psiquiátrica europeia, que então, atingiria
muitos países nas décadas subsequentes. Segundo Macedo (2006),
seu fundamental precursor foi Franco Basaglia que não optou por
negar a ideia de patologia, como os antipsiquitras, todavia, propôs
que o saber da psiquiatria fosse repensado.

O texto de Macedo (2006), ainda faz com que pensemos quantos


estigmas o dito “louco” teria em sua perda de identidade quando
internado:

“[...] perderia sua identificação enquanto cidadão, trabalhador,


proprietário, pai e tantas outras que lhe foram retiradas quando do
início de seu tratamento em instituição asilar, quando adquiriu o
estigma de incapaz, perigoso ou antissocial. A inovação da metodologia
empregada se fez com o recurso ao hospital-dia, que permitia a
continuidade da inserção do indivíduo em seu meio social e familiar na
constância do tratamento”. (MACEDO, 2006, p. 5)

26
Figura 1 – Franco Basaglia

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:1979_-_BasagliaFoto800.jpg. Acesso em: 16


abr. 2020.

Sob as influências advindas da Europa e as visitas do psiquiatra Franco


Basaglia, a realidade brasileira vivenciou o processo da Reforma
Psiquiátrica a partir da década de 1970, a partir de várias manifestações
de setores distintos da sociedade, visando a redução do cerceamento da
liberdade individual na forma de manicômios e asilos.

No fim dos anos 80, por sua vez, surgiu o Movimento dos Trabalhadores
em Saúde Mental, lançando o lema “Por uma sociedade sem
manicômios” e estimulando a produção legislativa de vários estados, no
sentido de proceder à desistitucionalização (SILVEIRA; BRAGA, 2005).

27
2. A Lei n. 10.216/01 e a reforma psiquiátrica

Após todos os movimentos pró-reformistas, a Lei n. 10.216, que dispõe


sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos
mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, criada em
6 de abril de 2001, garantiu um passo importante para o fechamento
dos hospitais psiquiátricos e para o fim das práticas manicomiais.

A lei 10.216 (BRASIL, 2001, [s.p.]) traz em seu texto jurídico, nos dois
primeiros artigos:

“Art. 1º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno


mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de
discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção
política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de
gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra.

Art. 2º Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a


pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados
dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo”.

Dessa forma, são direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I–ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às


suas necessidades;

II–ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de


beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na
família, no trabalho e na comunidade;

III–ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

IV–ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V–ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a


necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;

28
VI–ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII–receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de


seu tratamento;

VIII–ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos


possíveis;

IX–ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde


mental”. (BRASIL, 2001, [s.p.])

É fundamental analisar esse texto jurídico para ter conhecimento da


importância das garantias contidas nele, principalmente no parágrafo
único do artigo 2º, os nove direitos que uma pessoa portadora de
doença mental deve ter.

No artigo 3º, o texto diz que “… o desenvolvimento da política de saúde


mental é de responsabilidade do Estado…” (BRASIL, 2001, [s.p.]).

O contexto do artigo 4º indica que as internações só são indicadas se os


serviços substitutivos, extra-hospitalares não forem suficientes para o
caso e, seus parágrafos procuram individualizar o tratamento.

Para cada indivíduo portador de doença mental é construído um Projeto


Terapêutico Singular, uma PTS, isso confere a pessoa um tratamento
personalizado para atender sua demanda.

Vamos para uma análise literal do art. 6º:

“Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo


médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação


psiquiátrica:

I–internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

29
II–internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do
usuário e a pedido de terceiro; e

III–internação compulsória: aquela determinada pela Justiça”. (BRASIL,


2001, [s.p.])

Esse artigo define quais são os três tipos de casos de internação, uma
informação importante para todos os profissinais da saúde conhecerem
e saberem suas diferenças na prática.

O artigo 8º, por sua vez, falará sobre como é determinada a autorização
voluntária, mas seus parágrafos tratam de compreender sobre a
involuntária também, afirmando que todas as internações involuntárias
devem ser comunicadas ao ministério público, e os familiares ou
responsáveis legais têm poder de decisão caso desejem encerrar o
processo de internação do paciente.

Essa análise pode ser aprofundada com a leitura do texto legislativo


deixado como referencial.

Agora, é importante conhecer os dispositivos que tornam a reforma


psiquiátrica possível complementando leis com os serviços substitutivos
aos manicômios.

Como é a base do Sistema Único (SUS), a saúde mental é incorporada


nas políticas públicas de saúde a partir de 2001 e, assim, o Governo
tem toda a responsabilidade e poder de fazer cumprir a legislação. Para
tanto, cabe a ele fiscalizar para que as práticas manicomiais não sejam
novamente incorporadas na lida com pacientes usuários da rede de
apoio psicossocial.

Desse modo, é de responsabilidade de todos cultivar perspectivas de


manutenção dos serviços abertos de saúde mental, acessíveis, com
envolvimento familiar no tratamento individualizado dos usuários

30
desses serviços, visando a reinserção social do portador de doença
psíquica.

3. Dispositivos substitutivos e infraestrutura da


rede de apoio psicossocial

Como ponto de partida, em 2002 foi criado como serviço substitutivo


principal o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que passou a atuar
como porta de entrada reguladora do Sistema.

Mas antes de falar de CAPS, vale a pena citar o programa “De volta para
casa”, que garante auxílio social e financeiro para aqueles usuários do
sistema que viveram durante muitos anos confinados nos hospitais
psiquiátricos durante os tempos de prática manicomial.

Esse programa é abarcado no artigo 5º da Lei n. 10.216/01 (BRASIL,


2001). Todos os portadores de sofrimentos psíquicos que tem paradeiro
de familiares, ou responsáveis para tutorá-los, podem receber auxílio
financeiro mensal para manutenção do seu tratamento em rede
aberta. Para os que não tem essas condições, em 2001 foram criadas
as residências terapêuticas, prevendo que muitos usuários da rede de
atenção psicossocial não teriam paradeiro familiar ou lugar para viver
após saírem da condição asilar que viviam anteriormente nos hospitais
psiquiátricos.

Além de atender aos indivíduos que não tem família, os serviços de


residências terapêuticas são casas que acolhem de maneira temporária
ou permanente os pacientes que viveram em situações manicomiais
durante muitos anos e perderam a orientação e/ou não tem condições
para se manterem sem cuidados tutorados.

31
Todos os casos, tanto os que tem familiares e/ou tutores, quanto os
residentes em casas terapêuticas, deverão seguir seu tratamento nos
CAPS, conforme orienta a lei.

Esse serviço é diferenciado de acordo com o público que o frequentam e


o contingente populacional presente na região. Frente a quantidade de
pessoas, a divisão do CAPS é feita como:

• CAPS I para regiões de até 15 mil habitantes.

• CAPS II atende regiões até 70 mil habitantes.

• CAPS III regiões até 150 mil habitantes, onde, esse último tem
como diferencial o acolhimento noturno e em finais de semana.

• CAPS AD, os que apresentam cuidado especializado a dependentes


químicos.

• CAPS i, os que apresentam cuidado especializado a crianças em


sofrimento psíquico.

• CAPS AD IV, o que apresenta cuidado aos pacientes em quadros


graves ocasionados pelo uso de substâncias psicoativas (BRASIL,
2011; BRASIL, 2017).

3.1. Estruturação legal de rede com dispositivos para


apoio nos casos de uso de álcool e drogas

Não menos importante e em consonância com a segurança pública, o


Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), sob a Lei
n. 13.840/19 e instituído em 2006 pela Lei n. 11.343, visando proteger a
população do tráfico e do uso ilícito de drogas (BRASIL, 2019).

32
Analisamos a seguir os objetivos do SISNAD, em que a citações
apresentadas estão, resumidamente, com os pontos-chave.

“Artigo 8º–São objetivos do Plano Nacional de Políticas sobre Drogas,


dentre outros:

I–promover a interdisciplinaridade e integração dos programas, ações,


atividades e projetos dos órgãos e entidades públicas e privadas nas
áreas de saúde, educação, trabalho, assistência social, previdência social,
habitação, cultura, desporto e lazer, visando à prevenção do uso de drogas,
atenção e reinserção social dos usuários ou dependentes de drogas;

II–viabilizar a ampla participação social na formulação, implementação e


avaliação das políticas sobre drogas;

III–priorizar programas, ações, atividades e projetos articulados com os


estabelecimentos de ensino, com a sociedade e com a família para a
prevenção do uso de drogas;

IV–ampliar as alternativas de inserção social e econômica do usuário ou


dependente de drogas, promovendo programas que priorizem a melhoria
de sua escolarização e a qualificação profissional;

V–promover o acesso do usuário ou dependente de drogas a todos os


serviços públicos;

VI–estabelecer diretrizes para garantir a efetividade dos programas, ações


e projetos das políticas sobre drogas;

VII–fomentar a criação de serviço de atendimento telefônico com


orientações e informações para apoio aos usuários ou dependentes de
drogas;

VIII–articular programas, ações e projetos de incentivo ao emprego,


renda e capacitação para o trabalho, com objetivo de promover a
inserção profissional da pessoa que haja cumprido o plano individual de
atendimento nas fases de tratamento ou acolhimento;

33
IX–promover formas coletivas de organização para o trabalho, redes
de economia solidária e o cooperativismo, como forma de promover
autonomia ao usuário ou dependente de drogas egresso de tratamento ou
acolhimento, observando-se as especificidades regionais;

X–propor a formulação de políticas públicas que conduzam à efetivação


das diretrizes e princípios previstos no art. 22;

XI–articular as instâncias de saúde, assistência social e de justiça no


enfrentamento ao abuso de drogas; e

XII–promover estudos e avaliação dos resultados das políticas sobre


drogas”. (BRASIL, 2019, [s.p.])

Assim, surgiu uma nova ética no cuidado, sem o isolamento e a


classificação, mas com a inclusão, o acolhimento, a compreensão e a
ampliação da consciência social.

De fato, para acontecer a inclusão dos portadores de sofrimento


psíquico como parte de um todo social, como cidadãos, no processo
terapêutico e na sociedade, é necessário ir além da reorganização da
rede de serviços e da substituição de técnicas terapêuticas, é necessário
o estabelecimento de vinculos permanentes.

Nesse sentido, é preciso que os trabalhadores de saúde mental


conheçam sua corresponsabilidade como cidadão e se enxerguem como
sujeitos integrantes de um quadro institucional, com conhecimentos e
habilidades, articulando saberes e práticas de saúde, que carregam o
estigma de representarem na história um mecanismo de controle social,
com a reforma, tem a missão de otimizar e individualizar os processos
terapêuticos.

Assim, cada pessoa é agente da mudança no aspecto social. Ao


professional da saúde, distinto do leigo, perante a necessidade
da manutenção de uma psiquiatria saudável e aberta, cabe a
responsabilidade, não só dentro de sua atuação profissional, mas

34
também na missão de informar pessoas, esclarecendo pontos
importantes aos leigos e ajudando cada um a ir além de seus
preconceitos e tabus acerca da saúde mental.

As doenças psíquicas não são contagiosas, todavia a cultura de


segregação e isolamento social pode ser nociva e, potencialmente,
encontrar eco na lembrança de tudo o que houve no processo
histórico pré-reformista. É preciso ecoar outra história e construir uma
nova cultura, nessa perspectiva de uma psiquiatria diversificada na
individualidade de cada sujeito e, na permanência dos que possuem
sofrimentos psíquicos em meio a sociedade, não mais em instituições
fechadas e asilares.

Referências Bibliográficas
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a Alienados. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, [1903]. Disponível em: https://
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em saúde mental. Brasília, DF: Presidência da República, [2001]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm. Acesso em: 25 abr.
2020.
BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de
Políticas Públicas sobre Drogas–Sisnad; prescreve medidas para prevenção do
uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas;

35
estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito
de drogas; define crimes e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da
República, [2006]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 17 abr. 2020.
BRASIL. Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019. Sistema Nacional de Políticas
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36
A influência da reforma
psiquiátrica na mudança do
paradigma da assistência em
saúde mental
Autoria: João Carlos Marchiori de Claudio
Leitura crítica: Carolina Pasquote Vieira

Objetivos
• Apresentar uma breve retomada histórica dos
modelos de assistência a pacientes com transtornos
mentais, dando foco em aspectos etiológicos da
doença e seus respectivos tratamentos.

• Apresentar os precursores que contribuíram para a


estruturação da reforma psiquiátrica atual.

• Apresentar a reforma psiquiátrica, expondo seus


conceitos base, sua formação e seus principais fatos.

• Realizar um comparativo entre a assistência


prestada ao paciente com transtorno mental antes e
após a reforma psiquiátrica.

37
1. Uma breve resenha sobre a assistência
psiquiátrica

Há muitos anos, tem-se estudando a respeito de qual assistência é mais


adequada ao paciente com transtorno mental. Pode-se notar que desde
os povos primitivos, uma “assistência” foi criada para o cuidado dessas
pessoas, contudo, com o avanço da civilização e a descoberta de células,
como os neurônios, e de substâncias, como os neurotransmissores,
os tratamentos foram mudando com o passar do tempo, saindo
de um tratamento com base alimentar e humoral a um tratamento
farmacológico e cognitivo (SILVA; FONSECA, 2003; MENDONÇA, 2005;
MILLANI; VALENTE, 2008).

Junto aos tratamentos, o olhar sobre o que esse paciente representava


na sociedade foi alterado, passando de uma figura mágica, que teria
o poder de entrar em contato com os deuses por meio de vozes em
sua cabeça, apresentando um caráter positivo na época, para uma
possessão demoníaca, onde essas vozes trocam de lugar para um
ser demoníaco que assombra a alma do paciente, com o objetivo de
disseminar o mal a toda a população, sendo de caráter negativo nesse
período.

Observa-se que muito foi estudado e, com isso, diversas práticas foram
descartas pela falta de evidência que comprovaram sua eficácia no
tratamento (ex.: insulinoterapia–aplicação de doses de insulina com o
intuito de gerar uma convulsão por hipoglicemia–ou crioterapia–banho
em água com temperatura abaixo de zero, com a intenção de gerar um
desmaio por queda de temperatura), em contraponto, foi demonstrada
a melhora de pacientes para práticas que uniam o convívio social com
outras práticas (ex.: farmacologia e terapia cognitiva comportamental).

Essas práticas, que tiveram sua eficácia comprovada, foram adotadas


na nossa atual reforma psiquiátrica, a qual observam o cuidado do

38
paciente como fundamental, tendo como princípio básico a reinserção
social, pois as práticas que a antecedem tem um conturbado período
entre manicômios/prisões. A proposta que a reforma psiquiátrica
atual se baseia, é na reintegração do paciente para o meio social e,
utilizando como meio de cuidado o território em que ele frequenta e
seus lugares de convívio social. Ainda, esse cuidado agrega práticas
secundárias a medicalização, terapias cognitivas e terapias integrativas
complementares, sempre com o intuito de prestar o melhor cuidado ao
indivíduo, a fim de integra-lo da melhor forma na sociedade.

Frente a isso, essa leitura digital tem como objetivo apresentar a


mudança do paradigma da assistência ao paciente de saúde mental,
apresentando as raízes dos cuidados que antecederam a atual reforma
psiquiátrica e, por fim, demonstrar um comparativo entre as visões
frente a esse paciente e sua doença antes e após a reforma psiquiátrica.

1.1 Tratamento da loucura: uma breve caminhada

Quando nos debruçamos frente ao cuidado do paciente com


transtorno mental, muito nos questionamos sobre os modelos de
assistência que foram utilizados antigamente para exercer o cuidado.
Filmes clássicos, como “Uma mente brilhante”, que retrata um
personagem que apresenta uma esquizofrenia paranoide e que quando
descoberto é levado ao manicômio e esse e submetidos a uma série
de procedimentos ditos terapêuticos, como a insulinoterapia ou a
eletroconvulsoterapia para fazê-lo retornar a “realidade” e acabar com
seu delírio. Segundo Winterling (2012), ainda, se observa na antiguidade
a diferenciação da assistência a pacientes com transtornos psiquiátricos,
como os imperadores Nero e Marco Aurélio, historicamente
reconhecidos por seus feitos no império Roma. Além de seus grandes
feitos, há discussões no meio acadêmico sobre suas atitudes frente a
seus discípulos e cidadãos, o que os diagnosticam, atualmente, com
transtornos mentais.

39
Quando observamos ambos, notamos a diferença no entendimento da
loucura, em que no primeiro exemplo é visto como algo ruim e deve
ser tratado, mas no caso dos imperadores, a loucura e tida como algo
positivo e digno, pois eles entram em contato com os deuses.

De fato, o cuidado no passar do tempo foi alterado de forma diversa,


assim como a visão perante a doença mental foi alterada e, ambos
mencionados, continuam em constante mudança.

Com isso, nos próximos tópicos destrinchamos mais detalhadamente


os cuidados prestados para os indivíduos nessas condições e a visão
dessas patologias perante a sociedade, com o objetivo, no final, de
realizar o comparativo da reforma psiquiátrica atual com o contraste dos
paradigmas antecedentes.

1.1.1 Tratamento da loucura: povos primitivos

A sociedade começou a se organizar a partir de vários motivos e,


junto a eles, o entendimento da cultura e aspectos em comum, como:
linguagem, localidade e religião, foram motivos em favor da união de
povos. Um exemplo de união atual desses povos primitivos pode se
observar nos povos indígenas de nosso país (SILVA, FONSECA, 2003).

Em sequência, o entendimento da doença perante ao paciente


foi guiado, logicamente, pelo conhecimento de causas espirituais.
Esse pensamento de causas mágico-religiosas tem como fator de
identificação do adoecimento a possessão do indivíduo por um espírito
maligno, no caso, o desenvolvimento do transtorno mental e uma
possessão de uma força do mal (MILLANI; VALENTE, 2008).

Em decorrência desse fato, o modelo de cuidado prestado para esse


indivíduo era expulsão desta força maligna por um xamã/curandeiro/
sacerdote através de um ritual. Atualmente, podemos observar que
esse processo não caiu em desuso, mesmo com o avanço da tecnologia,

40
quantas vezes não ouvimos que grupos religiosos entendem que
pessoas com depressão ou outros transtornos não foram possuídas por
“espíritos do mal” e para se livrar deles necessitam rezar e/ou ir a algum
ritual místico?

1.1.2 Tratamento da loucura: Roma, Grécia e a medicina


humoral

Com o passar do tempo, com da evolução da sociedade, a criação de


comunidades maiores e sistemas políticos diferentes, houve, também,
a evolução/mudança do sistema de cuidado e entendimento das
patologias no geral. Um dos pais da medicina, Hipócrates (460-356
a.C.), principal médico greco-latino, entendia as doenças através de sua
teoria dos quatro humores corporais (bílis negra, bílis amarela, sangue
e flegma/pituita), em que o desequilíbrio presente entre esses quatro
humores expressava a doença ou dor no corpo do indivíduo (SILVA;
FONSECA, 2003).

Para além do desequilíbrio, Hipócrates foi um dos primeiros a classificar


as doenças mentais em quatro grupos: epilepsia, mania, melancolia e
paranoia. E, para cada uma delas, ele apresentou um tratamento voltado
para as bases do cuidado vigente na época–o natural–como: massagens
corporais, dietas, passeios, viagens, fumigação de ervas (incenso em
partes do corpo), aromatização do ambiente, entre outros.

1.1.3 Tratamento da loucura: Idade Média

Passando da época antecessora a Cristo, chegamos na Idade Média


ou, também conhecida, Idade das Trevas. Devemos relembrar um
fato muito importante neste período, a grande influência da Igreja
Católica nas grandes decisões da época, o que retorna a uma grande
influência da visão místico-religiosa para o cuidado e o entendimento
das patologias que existiam. Esse meio de cuidado vem junto de

41
um aspecto hierárquico, no qual o grau de hierarquia social que o
indivíduo com transtorno mental se encontrava daria um determinado
encaminhamento para seu cuidado. Para os estavam em um alto grau
hierárquico (alta nobreza e cleros), o pagamento de caridade já era
uma forma de cuidado, pois a oração feita pelos cleros daria o cuidado
necessário para o indivíduo doente.

Em contraponto, para os que não apresentavam um alto grau na escala


hierárquica (escravos, camponeses entre outros) a erradicação por meio
do isolamento em conventos distantes ou, ainda mais desumano, a
imposição de velejar sem rumo no conhecido Nau dos loucos era tido
como o cuidado para essas almas (SILVA; FONSECA, 2003; MENDONÇA,
2005; MILLANI; VALENTE, 2008).

Ainda, vale ressaltar, os falsos “diagnósticos” dados pela igreja para


pessoas que não tinham transtornos mentais, pois iam contra os
pensamentos vigentes da época. Nesse sentido, podemos constatar esse
fato quando observamos a história das bruxas que eram perseguidas
por acusação de usar ervas para cuidar de pessoas, o que remetia
a uma heresia frente à igreja. Com isso, pessoas como anatomistas,
astrólogos, cantores, artistas e outros foram taxados como hereges, pois
confrontavam a ideia vigente da época.

1.1.4 Tratamento da loucura: Renascimento

Após a era conhecida pela obscurescência da ciência–Idade Média–em


meados do século XVI, a visão da loucura foi novamente reformulada,
considerando o louco como um indivíduo que não estava apto para
o processo de urbanização que vinha ocorrendo na civilização–vale
relembrar que as cidades estavam em expansão, criando um movimento
de êxodo rural na Europa. Ainda, é importante recordar, que nesse
período a retomada das navegações marítimas, expansão geopolíticas

42
e afastamento da grande influência da Igreja católica são fatores que
moldaram essa época (MENDONÇA, 2005).

Esse indivíduo, que já foi visto por diversas óticas, agora é visto como
um ser sem razão, pois esse período foi banhado pelo Racionalismo
moderno e, assim, a criação de uma ideia nova do ser humano, a qual
é o homem da razão. Esse conceito é entendido pela diferenciação
do homem “humanizado”–o portador de razão–o que o fez liberto da
regência divina, sendo aquele que não possui razão e um homem louco
ou com transtorno mental, pois mais se aproxima da animalidade.

Devido a essa forma de pensamento, o modelo de assistência aos


pacientes com transtorno mental era focado no isolamento e controle
social, pois eles não eram aptos a viver em comunidade. Desse modo,
a criação de hospitais gerais–como o primeiro fundado em Paris em
1656–tinha como finalidade “acolher” todos as pessoas que eram tidos
como excluídos da sociedade (loucos, pedófilos, mendigos, prostitutas,
órfãos e outros). Ainda, como prática de cuidado, a contratante vigilância
e punição por métodos baseados na imposição vinga, como rodas de
banhos frios, acorrentamento, isolamento em solitárias e supressão da
luz solar (SILVA; FONSECA, 2003).

1.1.5 Tratamento da loucura: Revolução Francesa,


Revolução Industrial e o Iluminismo (Revolução Pineliana)

Após a época Renascentista, a chegada da Revolução Francesa, no


ano de 1789, junto com a Revolução Industrial, apresentou o fim da
transição do modelo feudal para o capital, o que carregou consigo o
fim da hierarquização feudo (senhor feudal–escravo/camponês) para
a implantação do modelo capital (patrão, proprietário do meio de
produção–empregado, proprietário da força de trabalho). Com isso,
o entendimento da loucura ganhou uma nova face moldada por esse
novo sistema, a qual era associada a falta de adequação dele para fazer

43
parte do novo mundo, o qual era produtivo e baseado no consumo e na
acumulação de bens, colocando-o no papel errôneo de preguiçoso.

Uma outra vertente da época guiada pelo Iluminismo, a qual seguia os


princípios de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, surgiu em 1793, com
Philippe Pinel. Após a indicação para ser o médico chefe do Hospital
de Bicêtre, na França, ele apresentou um novo pensamento sobre a
loucura, o qual saia da animalização e da improdutividade dos seus
portadores para uma visão mais clínica deles, dando luz a uma visão
onde a loucura era gerada por tensões sociais e psicológicas em grande
escala, podendo ser causada por hereditariedade ou originada pelo
ambiente.

Com isso, ele fundou a psiquiatria como campo da medicina moderna,


instituiu a medicalização da loucura como uma das formas de cuidado,
apresentou um lugar de cuidado para o paciente, que o afastaria do que
podia fazê-lo piorar ou confundir os sintomas (manicômio) e apresentou
a ideia classificatória das doenças psiquiátricas (nosografia das doenças).
Como forma de cuidado desses novos indivíduos, foram realizadas:
a prescrição baseada no contato próximo e amigável com o paciente,
discussão das dificuldades pessoais e um programa voltado a atividades
exercidas na instituição (SILVA; FONSECA, 2003; MENDONÇA, 2005;
MILLANI; VALENTE, 2008).

Contudo, mesmo que a visão de Pinel seja inovadora e apresente


aspectos diferentes para as loucuras, deve-se observar a quem esse
modelo servia–a burguesia. Essa classe social, que tinha a necessidade
de obter mais de força de trabalho/mão de obra, abraçou a ideia de
Painel sobre a terapia do cuidado através das atividades e impôs ao
louco regras com o objetivo de usá-lo como ferramenta de trabalho.
Ainda, deve-se entender que o arquétipo da liberdade que Pinel deu
aos loucos não foi uma conquista a eles de um espaço libertário de fato,
mas um espaço para a medicina estudá-los e catalogá-los frente às suas
loucuras.

44
1.1.6 Tratamento da loucura: Reforma Psiquiátrica
(Revolução Basaglia)

Após o passar dos anos e o estabelecimento do modelo manicomial de


Pinel como referência, a transformação dele começou a ser solicitada.
Eventos como a Segunda Guerra Mundial, o crescimento econômico e
populacional e movimentos civis que eram intolerantes as diferenças
e minorias, os profissionais desses serviços começaram a mudar o
mesmo. A mudança foi embasada na busca de uma sociedade mais
livre, igualitária e solidária que, por meio da adoção da descoberta
dos psicotrópicos, da psicanálise e das estratégias de saúde pública
vingaram a reconstrução das instituições psiquiátricas, dando base para
os movimentos precursores da reforma psiquiátrica no mundo (SILVA;
FONSECA, 2003; MILLANI; VALENTE, 2008).

No entanto, esse movimento não foi igualitário em todos os países, pois


dependia da força políticas e sociais dos profissionais da área para a
mudança do sistema manicomial vigente. Contudo, um dos precursores
desse movimento foi Franco Basaglia, médico psiquiatra, que em
1961 assumiu a direção do hospital de Gorizia, na Itália, e focou na
transformação do antigo manicômio em uma comunidade terapêutica.
Entretanto, segundo Amarante (1996), conforme conduzia sua mudança,
ele ia de encontro aos obstáculos que ultrapassavam as competências
da psiquiatria, o que junto com a leitura da obra História da Loucura
na Idade Clássica, de Michel Foucault, observou que a transformação
não era apenas no modelo psiquiátrico, mas, também, no modelo
socioeconômico de visão frente ao paciente louco.

Com isso, Basaglia formulou o discurso e prática da “negação da


psiquiatria”, a qual tinha como objetivo não acabar com a psiquiatria
como ela é, mas de apresentar que ela por si só não dava conta desse
fenômeno que era a loucura. Segundo Amarante (1996), para isso,
Basaglia promoveu em Trieste um novo modelo de assistência ao
indivíduo, que era embasado em uma rede territorial de atendimento,

45
focando em um serviço de atenção comunitária, cooperativas de
trabalho, centros de convivência, moradia assistidas e, quando
necessário, o serviço de emergência psiquiátrica em hospitais gerais.

Esse modelo de assistência à saúde mental foi decretado, em 1973, pela


Organização Mundial de Saúde (OMS), como referência para o cuidado
de pacientes com transtorno mental no mundo (AMARANTE, 1996).

1.2 A chegada da reforma psiquiátrica: conceitos, bases


de pensamento, formação e modelos de assistência aos
pacientes

O modelo que foi decretado para o cuidado dos pacientes com


transtornos mentais foi o inspirado por Franco Basaglia, na Itália.
Segundo Kyrillos Neto (2003), esse modelo é pautado na reinserção
social do paciente na sociedade, o que, como foi visto, vai na contramão
dos modelos de cuidado anteriormente utilizados, pois apresentavam
práticas higienistas e de exclusão.

Sua base de pensamento foi a luz do filósofo Michel Foucault, com o


livro História da Loucura na Idade Clássica. Essa obra tem como estudo
a exclusão das pessoas e as tecnologias usadas, para isso, Foucault
estudou a loucura por meio da história e as ferramentas de “cuidado”
utilizadas (FOUCAULT, 2008). Ainda, o sociólogo Erving Goffman, com
o livro Manicômios, prisões e conventos, teve papel fundamental na
reforma psiquiátrica. De acordo com Goffman (2008), ele retratou as
relações de poder estabelecidas em instituições totais–termo dado
ao estabelecimento onde os indivíduos passam parte da vida por
algum motivo–e seus “atores”–internados (pessoas que estão no local
por diversos motivos, como: presos, pacientes psiquiátricos, freiras,
soldados, entre outros) e a equipe dirigente (pessoas que trabalham na
instituição total ou estão em um nível alto na hierarquia da instituição,

46
como: agentes penitenciários, freiras antigas em conventos, sargentos,
médicos e enfermeiros psiquiatras).

Somando-se a isso, para criar o modelo comunitário, Basaglia se baseou


em experiências que visavam a interação da comunidade frente ao
paciente e, também na sua reinserção social na comunidade. Segundo
Kyrillos Neto (2003), um dos principais focos desse modelo do cuidado
através da comunidade e a busca dos direitos cidadãos dos pacientes,
assim como a busca dos espaços comunitários e a reinclusão na
comunidade, e aceitação dessa para com o paciente.

1.3 Um novo caminho para se seguir: a assistência e a


visão do paciente com transtorno mental antes e após a
reforma psiquiátrica e suas implicações

Por meio da história, pudemos aprender sobre a concepção das causas


da loucura, assim como a forma de cuidado foi mudando. Essas causas
eram embasadas, em sua maioria, por questões políticas, sociais,
econômicas e organizacionais. Para fins didáticos, apresentamos a seguir
as principais características dos modelos de assistências oferecidos
durante a história, junto a seus entendimentos de adoecimento da
doença e seu principal pensador.

Quadro 1–Períodos históricos representados por suas principais


características frente ao sujeito com transtorno mental

Entendimento do Modelo de Principal


Época temporal
adoecimento cuidado pensador

Adoecimento a A Traves de reza, Xamãs,


Povos Primitivos traves de forças benzimentos, Curandeiros,
sobrenaturais rituais Sacerdotes

47
Reequilíbrio dos 4
humores através
Povo greco- Desequilíbrio de massagens,
Hipócrates
romano humoral banhos,
vaporização de
odores, viagens

Cura através
do pagamento
para os padres,
Possessão que rezam para
Idade Media Igreja Católica
demoníaca acontecer a cura ou
o isolamento social
para quem não
podia pagar

Isolamento social
Não adaptação ao em manicômios e
Renascimento Racionalismo
modelo urbano utilização da força
para impor cuidado

Programas
e atividades
Entendimento
Revolução exercidas na
medico clinico, visto Philippe Pinel
Pineliana instituição
como uma patologia
baseadas no
paciente

Rede territorial
Revolução Doença como causa de atendimento
Franco Basaglia
Basaglia por múltiplos fatores e reinserção do
paciente no mundo

Fonte: elaborado pelo autor.

48
Contudo, devemos questionar quais as contribuições da reforma
psiquiátrica para o paciente com transtorno mental? A importância
dela consegue englobar diversas esferas, porém começaremos
com a mais básica, a esfera etiológica, ela muda o entendimento da
doença mental como algo místico ou unicausal, dando uma vertente
multifatorial. Essa vertente, como já explicado, dá a doença mental
uma explicação possível de solução e cuidado para o doente.

Passando para outra esfera, a do cuidado/assistência, sendo diferente


das suas antecessoras pois adquire um caráter de não isolamento
social do paciente. O cuidado e feito no território onde o paciente vive
e compreende como casa, utilizando as redes sociais que o indivíduo
tem como forma de cuidado. Além disso, a reinserção social e a
busca pelos direitos cidadãos do paciente são diferentes das antigas
abordagens, fazendo que ele seja visto como indivíduo da sociedade.

1.4 Conclusão

Como abordamos nesta unidade, tanto o entendimento quanto o


modelo de assistência ao paciente louco mudaram durante séculos
na história, onde foi influenciado sempre pela política, sociedade,
cultura e religião vigente. Atualmente, o modelo que o Brasil segue
é o da Reforma Psiquiátrica, mas correntes atuais estão surgindo, as
quais podem ter grande influência no futuro do cuidado do paciente.

Contudo, mesmo que grande progresso tenha sido conquistado com


a reforma psiquiátrica, muito ainda deve-se obter, pois ainda existem
preconceitos e estigmas por parte da população com esse paciente,
o que dificulta muitas coisas para os pacientes, como a conquista
de emprego e conseguir viver uma vida digna, sem preconceitos e
exercendo sua cidadania.

49
Referências Bibliográficas
AMARANTE, P. O Homem e a Serpente: outras histórias para a loucura e a
psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.
FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva,
2008.
GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2008.
KYRILLOS NETO, F. Reforma psiquiátrica e conceito de esclarecimento:
reflexões críticas. Mental, Barbacena, v. 1, n. 1, p. 71-82, dez. 2003. Disponível
em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-
44272003000100006&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 13 fev. 2020.
MENDONÇA, J. L. de. Breve história da psicossomática: da pré-história à era
romântica. Revista Médica de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 15, n. 2, p. 119-125,
abr./jul. 2005.
MILLANI, H. de F. B.; VALENTE, M. L. L. de C. O caminho da loucura e a
transformação da assistência aos portadores de sofrimento mental. SMAD. Rev.
Eletrônica Saúde Mental Álcool Drogas, Ribeirão Preto, v. 4, n. 2, ago. 2008.
Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-
69762008000200009&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 13 fev. 2020.
SILVA, A. L. A. e; FONSECA, R. M. G. S. da. Os nexos entre concepção do
processo saúde/doença mental e as tecnologias de cuidados. Revista Latino-
americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 11, n. 6, p. 800-806, dez. 2003.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
11692003000600015&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 13 fev. 2020.
WINTERLING, A. Loucura imperial na Roma antiga. História, Franca, v. 31, n. 1,
p. 4-26, jun. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0101-90742012000100003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 13 fev. 2020.

50
Competências necessárias à
equipe multiprofissional para
assistência em saúde mental e
psiquiatria
Autoria: João Carlos Marchiori de Claudio
Leitura crítica: Carolina Pasquote Vieira

Objetivos
• Revisar, brevemente, a criação do Sistema Único de
Saúde e apresentar as Redes de atenção à saúde
existentes.

• Apresentar a Rede de Apoio Psicossocial (RAPS),


os serviços que a compõem, abordando o
funcionamento do Centro de Apoio Psicossocial
(CAPS) e da enfermaria psiquiátrica no hospitalar.

• Associar as atuais políticas referentes ao cuidado em


saúde mental com as Bases da Educação Nacional
dos profissionais de saúde.

• Definir o que é competência e discorrer,


brevemente, sobre as competências de profissional
nos serviços de saúde mental e psiquiatria.

• Apresentar as competências de uma equipe


multiprofissional como um todo e frente aos
aparatos de saúde mental.

51
1. Uma breve introdução ao tema

Com o avanço do sistema de saúde vigente, o SUS (Sistema Único de


Saúde), as políticas educacionais tiveram que apresentar mudanças
em suas bases curriculares, chamadas de diretrizes de bases
da educação nacional, as quais moldam o currículo dos futuros
profissionais embasando-se nas necessidades e competências que
deverão exercer em seu futuro ambiente de trabalho.

Entendendo que o conceito de competência é composto por três


eixos que o sustentam em sua formação–habilidades, atitudes
e conhecimento -, o profissional de saúde deve apresentar esse
conjunto para ter êxito frente ao seu trabalho em qualquer área.
A referida leitura digital contemplará brevemente o entendimento
da formação do SUS, com foco nos serviços de saúde mental,
junto as diretrizes curriculares que apresentaram mudanças
conforme as mudanças das ocupações e aparatos de saúde. Por fim,
apresentaremos um olhar sobre a prática multiprofissional, em que
esses profissionais necessitam para melhor atender e proporcionar o
melhor cuidado para o paciente que frequenta os serviços de saúde
mental–CAPS e unidade de internação psiquiátrica em hospitais
gerais.

1.1 O Sistema Único de Saúde: uma breve retomada na


história

O sistema de saúde atual, Sistema Único de Saúde (SUS), apresenta


uma ampla cobertura de serviços. Muitas vezes, nem imaginamos
sua abrangência, passando desde a vigilância sanitária–a qual
presta serviços de controle e inspeção de alimentos–até a saúde e o
cuidado básico do cidadão–abrangendo a esfera dos cuidados básicos
(Unidade Básica de Saúde) e cuidados especializados (Hospitais

52
de grande porte) -, seguindo os princípios básicos do sistema:
universalização do acesso, equidade e integralidade.

Sua formação ocorreu na Constituição Federal de 1988, após várias


manifestações de resistência ao Estado, que foi implantado pós
golpe civil militar no ano de 1964, em que os movimentos de reforma
sanitária construíram as bases do SUS no final da década de 1970,
possibilitando a conquista da saúde como um direito a todos e um
dos deveres do Estados.

Com a grande complexidade desse sistema, que abrange todo


território nacional, estratégias foram adotadas, com a criação das
Regiões de Atenção à Saúde (RAS), que têm como objetivo contornar e
superar a fragmentação da atenção à saúde que podem surgir devido
à grande abrangência do Sistema no território Nacional. O conceito
das RAS é a existência de organizações que visam a realização
de serviços de saúde, diferenciando em si por complexidades de
tecnologias utilizadas na assistência. Das diversas RAS elaboradas
no decorrer do tempo, as pioneiras são a Rede Cegonha, Rede
de Atenção às Urgências e Emergências (RUE), Rede de Cuidado a
Pessoas com deficiência e a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)
(BRASIL, 2011).

1.2 RAPS: criação, abrangência e serviços que as


englobam

Frente à essa grande rede existente no SUS, devemos destacar a Rede


de Atenção Psicossocial (RAPS). Essa rede foi criada pela portaria GM/
MS 3.088/2011, junto com a reforma sanitária e psiquiátrica brasileira
realizada entre as décadas de 1970 e 1980, eventos importantes
que moldaram os padrões atuais do SUS e, ainda, a última
reforma mencionada obteve a conquista da mudança do modelo
hospitalocêntrico e manicomial que vigorava nas RAPS. Desse modo,

53
esse serviço atua através da demarcação em territórios, oferecendo
o melhor cuidado ao paciente, o qual não é restrito apenas por uma
visão geográfica, mas engloba o lugar onde esse paciente desenvolve
relações sociais, afetivas, culturais e históricas.

A RAPS apresenta, igualmente ao SUS, preceitos que guiam os seus


profissionais para a melhor prestação dos cuidados necessários,
sendo eles: o respeito aos direitos humanos, o cuidado em liberdade,
o combate a estigmas e os preconceitos, o cuidado integral, a
diversificação das estratégias de cuidado, a promoção da autonomia
do paciente, as estratégias de redução de danos, o controle social dos
usuários e de seus familiares, as estratégias de educação permanente
e construção do projeto terapêutico singular (PTS), o qual daremos
foco brevemente.

Ainda, a RAPS conta com diversos aparatos de saúde para garantir


o funcionamento por completo de seus princípios, contudo, além
de utilizar elementos contidos no SUS como: Estratégia Saúde da
Família ou Serviços hospitalares, ela apresenta em sua estrutura
equipamentos de saúde especializados, como: Centro de Apoio
Psicossocial (CAPS I/ II/ III/ IV/ álcool e drogas (AD)/ AD III/ AD IV/
Infantil), consultório na rua, Serviços de Residencial terapêutico (SRT),
Programa de Volta pra Casa, Programa de desinstitucionalização,
hospitais psiquiátricos e, atualmente, leitos hospitalares em
hospitais gerais de grande porte para atender os pacientes que são
transferidos desses serviços para o tratamento de comorbidades
clínicas (ex.: cirrose hepática e ferimentos ou automutilações graves).

Frente à quantidade de serviços formadores da RAPS, é importante


ressaltarmos dois deles, devido ao seu papel base no cuidado dos
usuários desta rede, os quais são de grande importância saber sua
diferenciação e sua funcionalidades: o CAPS e os leitos em hospitais
gerais.

54
Segundo Tenorio (2002), o CAPS foi uma alternativa adotada após a
mudança do modelo vigente, modelo manicomial e hospitalocêntrico.
Esse serviço de saúde visa a inserção social do sujeito na comunidade
local, falando sobre isso, você já viu um CAPS em sua cidade? Eles
podem até passar despercebidos, mas normalmente estão localizados
em regiões centrais da cidade e são, geralmente, construções civis
comuns, como casas e sobrados. Nesse aparato de saúde, o principal
instrumento utilizado é o Projeto Terapêutico Singular (PTS), que é
um instrumento que visa organizar as atividades que o usuário fará
frente ao seu cuidado, esse é acordado entre o usuário do serviço
junto ao profissional de referência. Para a organização desse serviço,
conta com a proposta de “profissionais referências”, o qual um
trabalhador da unidade, independente da sua área de formação, será
a referência no cuidado de um determinado paciente.

Esse serviço é diferenciado de acordo com o público que o frequenta


e o contingente populacional presente na região. A partir da
quantidade de pessoas, a divisão do CAPS é realizada, da seguinte
forma: o CAPS I para regiões de até 15 mil habitantes, o CAPS II
atende regiões até 70 mil habitantes e CAPS III regiões até 150 mil
habitantes, em que esse último tem como diferencial o acolhimento
noturno e de finais de semana. Ainda, sobre a especificidade do
serviço, apresentam-se como CAPS AD os que apresentam cuidado
especializado aos dependentes químicos, CAPS i os que apresentam
cuidado especializado à crianças em sofrimento psíquico e o CAPS AD
IV aos que apresentam cuidados com os pacientes em quadros graves
ocasionados pelo uso de substâncias psicoativas (BRASIL, 2011;
BRASIL, 2017).

Ainda, devemos mencionar a nova inclusão de enfermarias


psiquiátricas em hospitais gerais, conforme a atual Portaria n.
3.588/19, que ressalva a presença de uma equipe multiprofissional
e deve apresentar no mínimo de oito leitos por unidade, tendo o
intuito de prestar o cuidado ao paciente em sofrimento psíquico no

55
momento em que estiver apresentando quadros clínicos graves e/
ou estando em estado de crise (em que não se consegue estabilizar
o quadro psíquico clínico do paciente no serviço básico, sendo
encaminhado para um serviço de maior complexidade) (BRASIL,
2019).

1.3 A influência do SUS nas bases curricular

Apresentado uma breve visão do SUS e de seus eixos no tratamento


de pacientes em sofrimento psíquicos, devemos nos questionar como
os profissionais são formados para o cuidado desses pacientes. Nesse
sentido, a partir do momento que foi firmado em constituição que a
saúde é um direito universal, o Estado apresentou-se como responsável
pelo processo de formação desses profissionais, dando abertura a
uma nova elaboração para criação de recurso humanos necessário que
seguiram as normas e princípios para a implementação do SUS.

Esse processo de formação foi realizado a partir de meios legais, os


quais estão explícitos nas Lei de Diretrizes de Bases da Educação
Nacional específica para cada área de graduação. Essa lei apresenta a
formação superior dos estudantes voltados para o desenvolvimento
de competências e habilidades do aluno, somando-se com a
implementação de currículos e projetos pedagógicos voltados para
os moldes do sistema de saúde vigente, o SUS. Assim, a mudança
se apresentou de forma gradual e constante, passando por diversas
instâncias jurídicas para a formação de currículos que atendiam os
requisitos necessários, como o currículo que o fez chegar a esta pós-
graduação.

Por exemplo, uma das diferenças de currículo dos profissionais anterior


e posterior a reforma, são os conteúdos ministrados em ambas as
grades em disciplinas de saúde mental. Antes da reforma das bases
curriculares, as grades tinham o paciente em sofrimento psíquico como

56
alguém que deveria ser ignorado ou não tinha capacidade de fazer
nada corretamente, assim, optando por excluí-lo do meio comum,
em manicômios ou em prisões jurídicas–como é mencionado no livro
Holocausto Brasileiro (ARBEX, 2013) -, contudo, após a implementação das
novas diretrizes curriculares, teve-se início a sua inclusão na sociedade,
pois um dos eixos formadores da RAPS é, além do respeito dos direitos
humanos, promover a autonomia (BRASIL, 2011).

1.4 Competência, do conceito ao indivíduo

Até o momento, abordamos a criação do SUS, uma de suas redes, a


RAPS e seus respectivos aparatos de saúde, e como a formação dos
profissionais foram moldadas após a reestruturação do sistema de
saúde vigente para esses seguirem seus princípios. Contudo, quando
nos debruçamos sobre as bases curriculares, observamos a necessidade
da formação das competências incumbidas por esses futuros
profissionais em seu ambiente de trabalho, seja geral ou específico.

Diante disso, observa-se, como um objeto de muito estudo pela


literatura especializada, a definição de competência. Ela apresenta como
conceito formador três outros conceitos: conhecimento, habilidades e
atitudes, sendo específicos para uma determinada tarefa ou situação
que necessite os conhecimentos adquiridos em particular. Além disso,
entende-se a competência como algo além de um saber teórico,
que engloba também o conhecimento vivido pelo indivíduo frente à
experiência atual (FLEURY, FLEURY, 2001).

Desse modo, podemos entender de forma sucinta os conceitos


formadores de competência, assim, sua formação deve ser entendida
quando o profissional na área apresenta um entendimento técnico/
teórico na realização de uma função frente à necessidade do ambiente,
como quando um enfermeiro necessita realizar a troca de curativo
em um paciente, pois esse procedimento é de competência dessa

57
classe profissional. A habilidade, como outro formador do conceito
competência, é apresentada pela execução do conhecimento para
o meio prática, expressando algo que se aprendeu em teoria para a
atuação clínica. Pode-se utilizar o mesmo exemplo anterior, quando um
enfermeiro tem que realizar um curativo, ele deve ter conhecimento
da técnica para realizar – aprendido também a teoria–e a habilidade de
operar os instrumentos–a qual é adquirida com a execução na prática
(FLEURY; FLEURY, 2001).

Por último, as atitudes apresentas como um dos conceitos formadores


de competência, são entendidas por um saber comportamental do
profissional diante das situações, agindo eticamente e autonomamente.
A recepção das atitudes por meio do trabalho pode ser positiva ou
negativa, moldando o comportamento do profissional. Elas podem se
demonstrar positivamente ou negativamente frente a uma situação,
como atitude negativa podemos observar um psicólogo saindo
de seu serviço na UBS e, quando avista um morador de rua caído
no chão exalando odor de álcool, pensa que esse indivíduo é uma
pessoa sem moral ou, até mesmo, está nessa situação lastimável pois
intencionalmente. Em contraponto, esse profissional apresenta atitudes
positivas quando se depara com a mesma situação, mas pensa em todas
as complexidades e dificuldades passadas por esse indivíduo.

1.5 As competências dos profissionais de saúde


nos serviços de saúde mental: o enfermeiro e suas
competências

Entendida a definição das competências, junto aos exemplos, você


deve estar se perguntando: quais são as competências do profissional
de enfermagem? E, também, a do mesmo profissional nos serviços de
saúde mental? Entendendo que o profissional de enfermagem é um
dos profissionais do serviço que mais tem contato com o paciente e,
ao mesmo tempo, carrega consigo o saber do cuidado e das relações

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de saúde, consideremos pensar que as competências dos enfermeiros
se demonstram amplas. Contudo, devemos observar as competências
gerais do enfermeiro, a fim de conseguimos realçar as competências
mais necessárias em um serviço de saúde mental. Estas competências
são: atenção à saúde, tomada de decisões, comunicação, liderança,
administração e gerenciamento e educação permanente (BRASIL, 2001).
Devemos realçar a importância de todas as competências listadas,
contudo, daremos atenção em quatro delas. Em primazia, a atenção
à saúde ao paciente em sofrimento psíquico deve ser observada pelo
vasto conhecimento por parte do profissional de enfermagem no
cuidado do paciente na esfera biopsicossocial, como exemplo de um
cuidado de um enfermeiro, apresenta-se na esfera bio o conhecimento
dos efeitos adversos medicamentosos, o se o paciente estiver tomando
um antidepressivo pode ser evitado a futura prisão de ventre com a
recomendação de uma dieta pastosa por esse profissional. Na esfera
psico, observa-se a relação terapêutica desenvolvida pelo profissional,
o qual, por exemplo, quando aborda o paciente deve entender as
situações dele como indivíduo único e suas complicações. Por fim, em
análise social, o entendimento desse paciente como parte de um grupo,
ocorrendo quando esse enfermeiro entende a situação do paciente em
casa, identificando o que o fez entrar em depressão.

Não menos importante, a tomada de decisões desse profissional deve


ser realçada, pois, como dito, ele apresenta um conhecimento vasto
sobre as esferas do cuidado clínico e psicossocial. Desse modo, ele
consegue observar o paciente como um todo e, possivelmente, tomará a
melhor decisão para o paciente.

Ainda, a competência da comunicação deve ser mencionada, pois


em um serviço de saúde mental, onde, muitas vezes, a comunicação
entre profissional e paciente é dificultada pela patologia do usuário,
o entendimento dessa limitação como algo natural e que deve ser
superado, é um dos entendimentos que o enfermeiro deve carrega
consigo.

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Nesse sentido, a liderança por parte do enfermeiro de uma equipe
multiprofissional é um cargo de grande responsabilidade, o qual durante
o curso de graduação de enfermagem ele já é preparado para lidar com
conflitos e resolvê-los o quanto antes, sem maiores danos.

Entre todas as competências citadas, não devemos enaltecer o


entendimento do enfermeiro como o único que deve fazer isso, pois
uma competência é aguçada pela experiência vivida pelo profissional.
Com isso, nada impede um profissional com uma grande experiência na
área apresentar todas essas competências e não ser um enfermeiro, o
que acha?

1.6 Quais são as competências da equipe


multiprofissional para contribuir na assistência aos
pacientes nos serviços de saúde mental?

Um serviço de saúde mental não é composto apenas por profissionais


de uma área específica de atuação, logo, a presença de diversos
profissionais é concreta nos serviços de saúde, devido aos conceitos
formadores do SUS. Esse conceito é elaborado para melhor abranger as
necessidades dos usuários e, assim, melhorar o atendimento.

Nós serviços de saúde mental, esse conceito também se aplica, pois,


como mencionado, além desses serviços fazerem parte do SUS e
cumprirem o que estabelecido por lei, há, também, a necessidade de
um cuidado mais amplo para ajudar a reinserção desse paciente na
sociedade e/ou melhorar as condições de vida dele para que, assim, ele
consiga exercer seus direitos de cidadão.

Para isso, uma equipe multiprofissional deve ser criada, a qual deve
apresentar um quantitativo mínimo de profissionais para a execução
dessas tarefas. Conforme a lei vigente da RAPS, os CAPS apresentam
em sua fundação um número mínimo, com base no CAPS I, de
nove profissionais–um médico especializado em saúde mental, um

60
profissional de enfermagem, três profissionais de nível superior que
ajudem a compor as atividades do PTS e quatro tecnólogos de mesma
função. Esses profissionais, por sua vez, apresentam um limite de
atendimento por turno de 20 a 30 pacientes. Ainda, o CAPS III apresenta
um contingente profissional maior, sendo 16 profissionais o número
total para o contingente mínimo por plantão–dois médicos psiquiatras,
um enfermeiro com formação em saúde mental, cinco profissionais
de nível superior para a composição do PTS e oito tecnólogos para o
mesmo serviço.

Não diferentes, as unidades de internação psiquiátrica nos hospitais


gerais apresentam um número mínimo de cinco profissionais, sendo
que eles devem ser: dois técnicos/auxiliares de enfermagem, dois
profissionais de saúde mental de nível superior e um médico psiquiatra
(BRASIL, 2017).

Para além do quantitativo pessoal, há a necessidade do entendimento


das competências dessa equipe frente ao paciente e ao serviço deve
ser pensada. Desse modo, como as competências de cada profissional
que compõe o serviço, são baseadas nos preceitos que criaram a RAPS.
Frente a isso, apresenta-se primeiramente o entendimento de respeito
aos direitos humanos, em que o entendimento dessa competência se
faz como um lembrete de não realizar ações anteriormente realizadas,
como nas décadas de 1940 a 1980 o qual maltratavam o paciente e o
isolavam da sociedade em hospitais psiquiátricos.

Introduzindo o assunto das competências, devemos mencionar a


competência do profissional em continuamente estimular o usuário
desse serviço para exercer seu papel como cidadão e, de forma
semelhante, exercer sua autonomia no mundo. Na qual, embasada pela
RAPS, o paciente deve ser um sujeito ativo na sociedade, participando de
programas que agreguem suas competências.

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Ainda, como fator de inclusão desses pacientes no meio social, o
combate ao estigma e preconceitos vigentes na sociedade deve ser um
ponto importante para os profissionais em saúde mental, pois para uma
população que tem dificuldade de aceitar o diferente e o preconceito
criado e enaltecido pela mídia eletrônica atual, faz-se uma barreira
importante na conquista de inclusão (GUARNIERO; BELLINGHNI; GATTAZ,
2012). Desse modo, é de grande importância que os profissionais
desses serviços ajudem a cair os preconceitos e os estigmas criados pela
população, por meio de ações educativas e contato da população com o
serviço, através de estratégias como economia solidária.

Somada a essa vertente, está o cuidado e o papel da família, que é de


grande valor em todo esse processo. Os familiares dos pacientes em
sofrimento psíquico podem ser um fator de grande importância na
ajuda ao cuidado para o usuário do serviço. Estar sempre em contato
da família, quando possível, esclarecendo dúvidas, acolhendo angústias
vividas por esses e reforçando atitudes e estímulos para o cuidado é de
grande importância e ajuda para a assistência ao cuidado do paciente
(MARTINS; GUANAES-LORENZI, 2016).

Da mesma forma, a criação e a diversificação de estratégias de cuidado


disponibilizada pelo serviço, junto a formação do PTS pelo usuário
e o profissional, é de grande valor. Primeiramente, o oferecimento
de diversas estratégias de cuidado, como diferentes oficinas, grupos
e atividades ajudam o paciente melhor escolher o que ele mais se
sente confortável de fazer e, assim, o coloca como papel ativo do seu
cuidado. Em consonância, a criação de um PTS junto ao paciente pela
profissional referência do serviço é de grande valor, pois ele saberá os
gostos e desejos do usuário e poderá, futuramente, elaborar estratégias
melhores para o cuidado ele (BRASIL, 2009).

O entendimento de um cuidado integral para o paciente pelo serviço


também é importante, pois, deve-se entende-lo como um ser completo
e complexo, com necessidades fisiológicas, psicológicas e sociais. Para

62
isso, a constante busca por apresentar uma via de acesso entre o
paciente e o profissional deve ser feita, para sempre saber entender
suas demandas quando necessário.

Por fim, no serviço de tratamento especializado em adições–CAPS AD,


CAPS III AD, CAPS IV AD -, o oferecimento das estratégias de redução
de danos para o consumo/uso de drogas deve ser oferecido sempre. A
não imposição por parte do profissional deve ser uma atitude buscada
e trabalhada sempre, com foco na vontade e a realidade do sujeito em
questão. Isso ocorre pois quando o sujeito faz algo por sua vontade
e não devido a imposição, ele se engaja mais no cumprimento de sua
ação. Logo, podemos associar isso com nossos objetivos, pois quando
fazemos algo que queremos, buscamos fazer do melhor jeito possível e
nos interessamos em fazer, por outro lado, quando alguém nos impõe
algo, apenas buscamos cumprir a tarefa.

Contudo, quando o profissional se depara com um caso que mesmo


com estímulos para a execução da autonomia do sujeito, ele não
apresenta nenhum resultado, devemos pensar em apresentar um
plano em que o profissional tem papel mais ativo na elaboração de um
cuidado. Entretanto, ele não deve ultrapassar os princípios da RAPS.

1.7 A finalidade das equipes multiprofissionais e


suas competências vigentes

Desse modo, no decorrer do texto, entendemos a formação das


competências multiprofissionais, começando pela criação da
necessidade com a formação do SUS até o conceito de competência.
Nesse sentido, devemos entender que uma equipe multiprofissional
tem como a síntese de suas competências o caminho da melhora do
cuidado ao paciente, sempre buscando seguir os princípios do SUS e,
especificamente em saúde mental, os da RAPS.

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A compreensão de competência formada por habilidades, conhecimento
e atitudes, visa o questionamento por parte do profissional, quando
for prestar atendimento a um paciente, quais conhecimentos ele deve
prestar com base na sua formação que vão de encontro com a RAPS e
que ajudariam o paciente da melhor forma? Esse questionamento deve
ser contínuo e renovado a cada encontro, pois sempre que um encontro
é encerrado, uma mudança é ocasionada no paciente e no profissional.

Logo, o entendimento de que nos serviços de saúde mental a ajuda é


multidirecional, pensando que o cuidado deve ser agregado de paciente-
paciente, paciente–profissional referência, paciente–profissional não
referência e profissional referência–profissional não referência. Em
síntese, o entendimento de agregação de conhecimento e experiência
por diversos eixos com a finalidade de melhorar o cuidado prestado é
sempre uma boa solução.

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Consolidação no 3 e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre a Rede
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FLEURY, M. T. L.; FLEURY, A. Construindo o conceito de competência. Revista de
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BONS ESTUDOS!

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