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A profissionalização dos psicólogos

uma história de promoção humana


1
Sigmar Malvezzi
18 Bastos, Guedes e colaboradores

A profissionalização dos psicólogos: uma história de promoção humana.


Sigmar Malvezzi1
O trabalho do psicólogo no Brasil
A Psicologia criou um campo fértil de conhecimento sobre a pessoa, largamente
evidenciado em seu visível e contínuo desenvolvimento
ao longo dos últimos 150 anos, amplamente reconhecido por inegáveis
contribuições para o progresso da ciência (Machado et al., 2000; Bastos e Rocha, 2007)
e para a construção de uma sociedade mais justa e humanizada (Baró, 1998; Zemelman,
2002). A conscientização das pessoas sobre a vida pessoal e comunitária, sobre a saúde,
sobre o bem-estar e sobre a própria participação na construção do futuro pessoal e da
sociedade como um todo, observada nos últimos 100 anos, é fruto das teorias e dos
conceitos sobre os processos psíquicos, e do trabalho dos psicólogos que, oferecendo
explicações sobre o funcionamento psíquico do ser humano, inspirou e fundamentou
projetos e atividades que contribuíram para o desenvolvimento da qualidade de vida.
Dominando o campo dos processos psíquicos, os psicólogos mergulharam em ações
afirmativas que construíram estruturas e modelaram processos diversos de intervenção,
elaboraram e publicaram críticas e denúncias às injustiças e às desigualdades, criaram
instrumentos estratégicos para o funcionamento das comunidades e apoiaram o trabalho
de outros profissionais.
Investindo na compreensão da pessoa, no desenvolvimento das potencialidades da vida,
no ajustamento indivíduo/ambiente e na superação do sofrimento, a Psicologia integra
os instrumentos requeridos pela construção consciente e responsável da sociedade.
A criação da profissão do psicólogo é um dos resultados mais Positivos e promissores
do desenvolvimento da Psicologia no Brasil.
A profissão de psicólogo é, hoje, um patrimônio onipresente em toda a sociedade,
largamente reconhecida em sua potencialidade de serviços, como revelado
empiricamente nos diversos capítulos deste livro.
A origem dessa profissão como espaço técnico e especializado de conhecimentos e de
serviços está evidenciada em incontáveis atividades nos campos acadêmico, jurídico,
social, da saúde, do trabalho e da educação, desde a segunda metade do século XIX.
Sua aceitação e sua consolidação ocorreram muito rapidamente pela atratividade das
questões implicadas na pesquisa do psiquismo humano, pela importância dos problemas
que dependiam da compreensão do comportamento do sujeito, pela funcionalidade e
pela eficácia de técnicas oriundas do conhecimento dos processos psíquicos e pela
confiança que mereceu das pessoas e das instituições. Em espaço inferior a 50 anos, a
identidade do psicólogo tornou-se presença marcante em diversos países, largamente
integrada ao repertório profissional dos serviços técnicos requeridos por quase todos os
setores da sociedade. Hoje, início do século XXI, a profissão do psicólogo é um
território ocupacional regulamentado, institucionalizado e integrado à dinâmica da
sociedade por significativa e crescente demanda comercial em quase todos os campos
de atividades em que as pessoas atuam, como sujeito e como objeto de atenção e de
estudo. O nascimento, o crescimento e a consolidação da Psicologia e da profissão do
psicólogo no Brasil ocorreram em concomitância com os mesmos fenômenos nos países
mais desenvolvidos do planeta.
A pesquisa sobre a profissão do psicólogo no Brasil, publicada neste livro, oferece uma
cartografia da realidade brasileira sobre a profissionalização do conhecimento científico
focado no comportamento humano e, como tal, propicia subsídios para o
enriquecimento da reflexão crítica sobre a própria sociedade brasileira. O dinamismo, as
peculiaridades e os contrastes presentes na sociedade brasileira seriam dificilmente
compreendidos sem a contribuição dos conhecimentos produzidos pela pesquisa no
campo do comportamento e pelos serviços prestados pelos psicólogos.
Os dados aqui revelados evidenciam a participação dos psicólogos nos mais diversos
setores da sociedade brasileira e, explicitando como essa participação ocorre, revelam a
convergência das atividades para a definição da missão dos psicólogos no Brasil.
Esses profissionais contribuem para a realização e para o bem-estar de todo o povo por
meio do fortalecimento do indivíduo como sujeito e da comunidade como espaço de
vida.
O leitor deste livro, ao enxergar melhor a inserção do psicólogo na sociedade brasileira,
além de enriquecer sua capacidade para colaborar com o desenvolvimento e a
convivência entre as profissões, estará mais apto a identificar e a criar soluções maduras
para os problemas que circundam todos os brasileiros. Agregando valor a essa tarefa,
este capítulo oferece algumas reflexões sobre o conteúdo e a construção dessa profissão.
Essa reflexão poderá estimular a sensibilidade do leitor para os desafios enfrentados na
manutenção e no desenvolvimento de uma profissão no contexto que se globaliza, se
volatiliza e, por isso, reabastece o combustível dos conhecimentos e serviços sobre os
processos psíquicos. A profissão do psicólogo é um espelho desse mundo, porque com
ele interage o profissional, aceitando
estudar seus problemas e se comprometendo com a transformação
requerida para a construção da justiça e do bem-estar, bem como com o reconhecimento
da dignidade das pessoas. Para realizar essa tarefa, este capítulo tentará responder a
quatro questões: como a Psicologia foi institucionalizada na profissão de psicólogo?
Como o conhecimento sobre o comportamento evoluiu em nossa profissão? Quais os
problemas que desafiam o desenvolvimento dessa
Profissão no século XXI? Por que a Psicologia e os psicólogos merecem confiança?

A profissio nalização do psicólogo


O trabalho do psicólogo no Brasil 19

A produção e a aplicação de conhecimentos sobre os processos psicológicos existem


desde os primórdios da história humana, mas somente em meados do século XVI
aparece pela primeira vez o vocábulo Psychologia, na língua latina, para designar “o
estudo ou a ciência da alma, que era um campo do saber integrado à Teologia e à
Anatomia”. A palavra Psychologia aparece em textos escritos
por pensadores como Filip Melanchton, Johann-Thomas Fregius e Rodolphe Goclénius,
docentes nas universidades protestantes de Marburg, na Alemanha, e de Leyde, na
Holanda (Carroy, Ohayon e Plas, 2006). Bem diferentemente daquilo que ocorre hoje,
os fenômenos e os eventos compreendidos nesse neologismo do século XVI incluíam
questões como os fantasmas, a transmissão do pecado original, a ação da alma sobre o
corpo e a possessão demoníaca. A alma era assumida como um elemento essencial da
vida e inspirava as explicações sobre o funcionamento psíquico.
A atribuição de um vocábulo específico para o conjunto de conhecimentos sobre a
pessoa foi apenas uma das etapas importantes na construção que revelou a necessidade
de um campo autônomo do saber dedicado aos processos psicológicos. As questões
sobre a natureza da realidade psíquica e sobre a arquitetura de seus processos, ainda são
motivos de importantes debates que mantêm a Psicologia na fronteira com outras
ciências, como a Fisiologia (Poldrack e Wagner, 2008) e a Filosofia (McMahon, 2006).
Naquele momento, a delimitação de um campo do conhecimento não foi de imediato
correspondida ao desenvolvimento de um conceito.
O vocábulo Psicologia representava um conjunto de eventos a serem estudados mais do
que um sistema conceitual sobre a “alma humana”. Como conceito, a Psicologia foi
surgindo, pouco a pouco, a partir das contribuições dos filósofos como Descartes,
Malbranche, Leibnitz e Locke, entre tantos outros pensadores, que investigavam os
processos psíquicos, por meio da busca de critérios do conhecimento, das condições
produtoras das certezas, da explicação da consciência e da avaliação das transgressões.
A evolução dessas ideias alicerçou a constituição de um campo do conhecimento que
somente foi reconhecido como autônomo na segunda metade do século XIX. Tal
reconhecimento foi uma etapa importante porque abriu o espaço necessário para a
criação da profissão do psicólogo. No Brasil, a Psicologia foi construída a partir do
território da Medicina. Ainda no século XIX, nas Faculdades de Medicina da Bahia e
do Rio de Janeiro, já eram discutidas questões comportamentais como parte da
ampliação do conceito de sáude para os problemas de higiene, prevenção e bem-estar
individual e social (Massini, 1990), como evidenciado na tese de doutorado do médico
baiano Eduardo E. F. França, na Faculdade de Medicina de Paris, 1834.
Os primeiros sinais de uma profissão emergente, alicerçada no conhecimento sobre o
comportamento humano, apareceram ainda no final do século XIX, em concomitância
com a reorganização de outras ocupações já tradicionais, como aquelas dos médicos,
engenheiros, administradores e advogados. Todas essas profissões foram
institucionalizadas nesse mesmo momento histórico, como parte do movimento inercial
de formação do Estado moderno e da adaptação da sociedade como um todo ao modo
de produção industrial. Espaços, papéis e fronteiras profissionais foram redefinidas para
se ajustarem às novas demandas de recursos institucionais, ao imperativo de problemas
inéditos à vida quotidiana e à disponibilidade de tecnologias que ofereciam esperança
de controle de muitas adversidades.
Ainda no final do século XIX, já eram encontrados, em diversos países, laboratórios,
revistas, disciplinas acadêmicas, congressos, associações e serviços profissionais
que levavam o nome de “Psicologia” (Hearshaw, 1964; Koppes, 2007; Carroy, Ohaton e
Plas, 2006). Esse conjunto de instrumentos oriundos da Psicologia foram expandidos e
constituíram o repertório de atividades que veiculava a divulgação, o ensino e a
aplicação de conhecimentos no campo da Psicologia.
Tais atividades fomentaram a representação de um novo profissional dedicado
à aplicação dos conhecimentos sobre os processos psíquicos aos problemas existentes
na sociedade.

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Essa reorganização das profissões foi balizada por dois fatores principais. O primeiro
foi a guarida e o controle advindos da força do paradigma burocrático que nesse
momento se impunha ao Estado e aos negócios como instrumento de eficácia
administrativa.
Por força da racionalidade burocrática, as atividades eram reagrupadas para
corresponder à lógica do conhecimento
científico produzido nas distintas ciências.
Esse reagrupamento promoveu significativa
diferenciação ocupacional que foi dando
corpo à territorialização das atividades em
profissões. O segundo fator foi a reorganização
das profissões que, embora produtos
da burocracia, estimulavam a inovação por
força de novas descobertas nas diversas
áreas do conhecimento científico e das tecnologias
que, por sua vez, enriqueciam o
repertório de recursos técnicos em todas as
esferas da sociedade. O aparecimento dos
testes psicológicos nesse momento é uma
das evidências mais explícitas dessa inovação.
Toda a sociedade se mobilizava para se
ajustar às condições criadas pelo processo
de industrialização, redesenhando ou
adaptando
estruturas e serviços. As profissões
foram um objeto peculiar dessa reorganização
porque ocupavam a função de
ponte entre os problemas da sociedade e o
avanço científico e tecnológico. O conhecimento
científico recebeu significativos investimentos,
foi desenvolvido rapidamente
e aplicado, com certa eficácia, aos incontáveis
e crescentes problemas da sociedade.
As tarefas se tornaram mais complexas e foram
pouco a pouco migrando para as mãos
de pessoas que tinham alguma formação
científica.
Essa reorganização dos serviços
profissionais foi a alvorada da instituição
e
do conceito de carreira que apareceu
na sociedade
por força de trajetórias e regulamentações
criadas pela organização do trabalho
no contexto burocrático e técnico.
Até meados do século XIX, a mobilidade
entre atividades profissionais era reconhecida
e restrita às instituições militares e religiosas.
Até então, a vida profissional não
pressupunha
trajetórias e nem a movimentação
entre cargos e tarefas era um fator
importante,
porque a vida e suas atividades
eram reguladas pelas tradições e pelos sistemas
sociais sem ser alvo de inovações ou
pressionadas
por mudanças. A partir da diferenciação
ocupacional produzida nos distintos
campos de trabalho, como fruto da
arquitetura
burocrática para o aproveitamento
do avanço tecnológico, o exercício de
muitas atividades ocupacionais foi paulatinamente
submetido a controles advindos
da lógica emergente do próprio conhecimento
científico,
reificada no conceito de competência
técnica. Essa condição incitou a criação e
a visibilidade de trajetórias profissionais que
se impunham sobre os indivíduos e sobre os
serviços. Assim, a formação profissional formal,
adquirida em alguma instituição acadêmica
apropriada, tornou-se etapa obrigatória
para o desempenho da grande maioria
das atividades técnicas, já caracterizando a
existência de alguma trajetória. No caso
dos psicólogos, muitos foram buscar essa
formação
nos laboratórios da Alemanha,
que nesse momento era reconhecida como
um centro de referência sobre os estudos em
Psicologia. W. Rivers e H. Watt, embora estivessem
alocados no contexto inglês da Psicologia,
foram estudar na Alemanha, que
nessa época atraía profissionais do mundo
todo por seu avanço na Psicologia Experimental
(Hearshaw, 1964). Essas trajetórias
foram legitimadas pelo engajamento profissional
dos psicólogos em instituições como
hospitais,
fábricas e escolas, e daí, rapidamente
acopladas às estruturas hierárquicas,
ou aos sistemas de status.
Pouco a pouco, a mobilidade profissional
deixou de ser um fato insignificante, ganhando
o status de etapas do aprofundamento
ou do avanço no domínio do conhecimento
e da instrumentalidade, ou do poder
gestionário, fato que reforçou a representação
da carreira como mobilidade entre
atividades profissionais e a territorialização
O trabalho do psicólogo no Brasil 21
das profissões. Dentro dessa lógica, o trabalho
sob o vínculo do emprego e o trabalho
autônomo foram moldados como espaços
substantivos, constituídos por tarefas e instrumentos
específicos e, como tal, tornaram-
se fortes referências para a avaliação
das competências, da remuneração e dos vínculos
dos profissionais com as instituições e
com os clientes. As profissões, tal como hoje
são conhecidas,
nasceram dessa racionalidade
que foi ganhando força e se tornando a base
para a organização ocupacional (McKinlay,
2002). Os dados da pesquisa publicada neste
livro oferecem pistas sobre como, desse ponto,
a profissão
de psicólogo evoluiu para a
condição
atual. Esse conjunto de informações
sobre
a profissão do psicólogo
esclarece aspectos
como a diversidade que caracteriza a inserção
desse profissional, a etapa da formação,
o início da profissão, a identidade profissional
e a abertura para o psicólogo evoluir em distintas
direções dentro
dessa carreira.
O investimento nessa racionalidade foi
generalizado e crescente, impactando sobre
o sentido das estruturas e dos espaços de
ação, remodelando-os dentro de uma racionalidade
que funcionava como cartilha para
a busca de estabilidade e eficácia. Essa remodelagem
foi legitimada e fortemente apoiada
pelas comunidades intelectuais emergentes
nos diversos campos do saber, tornando-se
um paradigma não apenas para as organizações
industriais, mas também para outras
instituições. Fortalecidos pela confiança nessa
racionalidade, os diversos espaços profissionais,
pouco a pouco assumidos
como atividades
técnicas, foram reconfigurados
como
veículos apropriados para
a aplicação
dos conhecimentos científicos tanto aos problemas
mais gerais quanto à rotina da vida
cotidiana. No Brasil, devido ao baixo número
de escolas de formação profissio-nal, e
ao ainda incipiente investimento
em pesquisas,
os jovens interessados no campo da Psicologia
eram enviados à Europa, onde poderiam
cumprir a primeira etapa de suas carreiras.
Em resumo, a profissionalização da aplicação
do conhecimento produzido pela Psicologia
ocorreu na virada do século XIX para
o século XX, em um período aproximado de
50 anos, no qual essas atividades profissionais
foram sujeitadas a trajetórias e controles
crescentemente rígidos e visíveis dentro
das organizações, sob a égide da lógica
administrativa, como também fora destas,
na oferta de serviços profissionais autônomos,
sob a égide da lógica dos mercados. A
profissionalização das chamadas ocupações
tradicionais expressava a aplicação do rigor
exigido da pesquisa científica, no desempenho
dos profissionais. Esse período entre a
modelagem da sociedade pela burocracia
e
a força de produção criada pela tecnologia
eletromecânica (1880) e o término
da primeira
grande guerra (1918) foi o palco para
a formatação e para a viabilização dessas
profissões que assumiam o conhecimento
técnico como instrumento de intervenção
nos problemas da sociedade. A profissão
de
psicólogo integrou e foi produto dessa racionalidade
dentro desse palco. Os psicólogos
foram chamados para contribuir com avaliações
diversas sobre a pessoa e com intervenções
para o ajustamento e o desenvolvimento
dos indivíduos frente aos mais diversos
grupos sociais.

A elabo ração do saber


ocupacio nal do psicólogo
Embora haja sinais esparsos, porém visíveis,
de serviços profissionais focados no
comportamento humano, ainda no final do
século
XIX, somente nos anos que se seguiram
à Primeira Guerra (1919), a Psicologia
aparece claramente configurada no repertório
de atividades ocupacionais já sob o
formato de profissão institucionalizada. As
inúmeras associações profissionais já consolidadas,
as demandas regulares por parte do
mercado e a oferta de soluções propostas
para tais problemas (que pouco a pouco se
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tornavam generalizadas e poderiam ser aplicadas


em distintas situações) indicavam sinais
de um território profissional autônomo.
Nesse momento, profissionais que portavam
o nome de psicólogos estavam presentes e
visíveis nos hospitais, nas universidades, nas
fábricas e nas escolas e cuidavam de vasta
amplitude de problemas que desafiavam a
sociedade, como as questões de saúde e
bem-estar, de marketing (Munsterberg) e
das atividades militares (Yerkes). Além disso,
a partir dos conhecimentos que produziam,
os psicólogos se faziam visíveis nesses
diversos campos, ora criticando trincheiras
tradicionais de outras ciências, como se
constata
no trabalho pioneiro de Gabriel
Tarde (1898) na esfera da Psicologia Social
frente às ideias de E. Durkheim, ora contribuindo
com as políticas públicas, como
ocorreu
na influência dos trabalhos de Ferdinand
Buisson sobre o Ministro da Educação
Jules Ferry na “elaboração das leis escolares
que instituíram a escola obrigatória e gratuita”
(Carroy, Ohayon e Plas, 2006, p. 99).
No Brasil,
as atividades de diversos profissionais,
no início do século XX, revelam o alinhamento
com o avanço da Psicologia na
Europa
e nos Estados Unidos.
Diversas obras evidenciam estudos e
atividades
profissionais, indicando que, no
Brasil, da mesma forma que em outros países,
a profissão de psicólogo também se formatava.
Na área da saúde mental, a tese de
Maurício Medeiros, intitulada Métodos em
Psicologia, apresentada no Rio de Janeiro
em 1907; o laboratório de Psicologia do
Hospital
Eugênio de dentro, fundado em
1923 por Gustavo Riedel, igualmente no Rio
de Janeiro; os trabalhos de Psicologia desenvolvidos
por Francisco Franco da Rocha,
na difusão das teorias psicanalíticas, desde
1918, em hospitais e na Faculdade de Medicina
de São Paulo; as atividades e as publicações
de Ulisses Pernambucano, em Recife,
mostram a existência de um grupo ativo
de profssionais, já dispersos pelo território
brasileiro. O projeto de lei, proposto por
Paulo
Egídio à Câmara legislativa da Província
de São Paulo, em 1892, ao reorganizar a
formação do magistério primário, previa
criação
da disciplina de Psicologia para a
formação dos futuros professores de Escolas
Normais, indicando a diversidade da reflexão
da Psicologia ao atingir também a esfera
da Educação.
Essa visibilidade, já inegável no Brasil e
na Europa, se tornou ainda mais clara quando
o desempenho dos psicólogos passou a
criar instrumentos que poderiam ser generalizadamente
aplicados aos problemas da sociedade.
O artigo de Max Freyd, publicado
em 1923, no Journal of Personnel Research e
seu impacto sobre as atividades dos psicólogos
que atuavam no campo da então denominada
Psicologia da Indústria, revelam um
caso emblemático
de padronização de soluções
técnicas
criadas pelos psicólogos para
responder a uma demanda regular e específica
da sociedade
de seleção técnica de
trabalhadores, para
as fábricas de telefonia e
de automóveis que se expandiam rapidamente
nos dois lados
do Atlântico. Situações como
essa, nos campos da saúde e da educação,
foram os principais elementos que organizaram
o saber
ocupacional na profissão.
Nesse texto, Freyd oferece uma análise
científica e técnica da seleção de pessoal e
propõe uma sequência de atividades para
ser realizada quando da seleção de novos
trabalhadores, fundamentada na lógica da
mensuração do comportamento disponível
na época. Essa proposta era um modelo de
trabalho técnico, como outros que foram
criados na mesma ocasião nos campos do
diagnóstico psicológico, da terapia e da formação
escolar fundamental. Além de criar
categorias, análises e o processo ritualizado
de avaliação dos trabalhadores para compreensão
e realização das atividades de seleção,
Freyd instituiu os testes psicológicos
como
instrumentos específicos e seguros para
a aferição das habilidades humanas de
candidatos. Essa sequência de atividades
proposta
por Freyd foi generalizadamente
O trabalho do psicólogo no Brasil 23
reconhecida como um caminho racional e
seguro para ser aplicado como uma espécie
de paradigma a todos os processos de seleção.
A inovação contida nesse modelo de
resposta a demandas da sociedade, por parte
das ciências aplicadas, fortaleceu o conceito
de profissão como uma forma de agir
fundamentada no conhecimento científico
que poderia ser regulamentada e controlada
pela própria sociedade. Assim como na área
de seleção e de recrutamento de pessoal era
possível criar soluções técnicas aplicáveis
aos problemas, nas outras áreas, os rituais e
os instrumentos eram desenvolvidos com
igual empenho e esperança. Essa fé na eficácia
técnica legitimava a lógica e a ideologia
burocráticas e, assim, se transformava em
elemento vital na modelagem da Psicologia
como profissão. O reconhecimento e a legitimação
dos serviços técnicos oferecidos pelos
psicólogos por parte das organizações,
foram fatores políticos que contribuiram de
modo significativo para o desenvolvimento
e para a legitimidade dessa profissão. Esse
casamento entre demanda de serviços e
oferta de soluções técnicas padronizadas ganhou
espaço e se consolidou de modo contínuo
e consistente, modelando o trabalho
de profissionais nos campos da saúde, da
educação, da engenharia e dos negócios. Pode-
se assumir que, nesse momento, no qual
muitas soluções padronizadas para as questões
comportamentais eram visíveis e eficazes,
a profissão do psicólogo já era uma atividade
com os elementos básicos previstos
pela institucionalização de uma profissão.
No final dos anos de 1920, os psicólogos já
tinham
um rosto, uma certidão de nascimento
e um espaço para construir suas carreiras.
Essa
etapa não significa que problemas
e desafios
estavam superados, como será
analisado
na próxima seção deste capítulo.
Embora seja difícil delimitar uma fronteira
para a existência plena da profissão de
psicólogo no Brasil, não há como negar que
em meados do século XX, essa profissão,
mesmo
ainda não reconhecida em alguns
países, já apresentava regularidades nos papéis
profissionais, representações de sua
identidade
na literatura científica, diversidade
de subculturas em campos distintos
como saúde e indústria, alguns padrões de
conduta e farta base bibliográfica decorrente
de pesquisas experimentais e de propostas
teóricas. Essa massa patrimonial técnica,
mercadológica
e política alimentou a demanda
de novos conhecimentos a serem pesquisados
no campo do comportamento, estimulou
a necessidade de novos profissionais para
o mercado, fomentou o aprofundamento das
soluções criadas para os problemas e fortaleceu
o capital político para o ajustamento
das fronteiras com outras profissões. Dinamizada
pelos problemas que tornavam a sociedade
mais complexa e pelo desenvolvimento
do conhecimento científico sobre o comportamento
humano, a Psicologia ampliou
seu espaço
de atuação e sua legitimação como profissão,
tornando sua institucionalização,
desse
momento em diante, um fato irreversível
em todos os países do planeta. Hoje,
como
atestam os dados empíricos da pesquisa
publicada
neste livro, o Brasil conta com 150
mil psicólogos para uma população
de quase
200 milhões de habitantes, situação que
permite concluir que o psicólogo é uma profissão
necessária, legitimada
e motivadora,
embora ainda em contínuo
processo de reformatação
interna e de definição
de suas
fronteiras com outras profissões.

Dificuldades que ainda rondam a profissão do psicólogo

Embora consolidada de forma irreversível,


a profissão de psicólogo não esteve livre
de obstáculos externos e de desafios internos
que dificultaram (e ainda dificultam) sua
caminhada,
ao mesmo tempo que a ajudaram
a se enriquecer e se fortalecer. Algumas
dessas
dificuldades são analisadas a seguir.
Por força da diversificação das demandas,
desde seus primórdios, a profissão de
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psicólogo foi institucionalizada na forma de
identidade polivalente. O psicólogo é um
profissional
da pessoa humana, onde quer
que esta esteja e a qual atividade se dedique.
Seu objetivo de trabalho é promover e resgatar
o indivíduo como sujeito. Essa identidade
é em parte explicada pela origem
igualmente
múltipla da Psicologia, como
produto da junção dos campos da Filosofia e
da Medicina (Plas, 2000). Interessados em
explicar o comportamento humano, os pioneiros
da Psicologia, mesmo imaginando
realizar algo diferente daquilo que já faziam,
integravam as teorias oferecidas pela Filosofia
ao avanço do conhecimento experimental
fomentado pelo estudo das neuroses em
hospitais,
pelos experimentos laboratoriais
na esfera da biologia, como foi o caso da fadiga
nas fábricas e a pesquisa sobre a eficácia
das atividades educacionais. Theodule
Ribot,
pioneiro da Psicologia na França pode
ser aqui colocado como um dos casos em
que essa polivalência é predicado identitário
do psicólogo. Ainda em pleno século
XIX, Ribot oferece claras evidências. Era
filósofo
por formação e provavelmente por
interesse, em 1876, ele fundou a Revue Philosophique
de la France et de l´Étranger; assumiu
e atuou por muitos anos na primeira
cátedra de Psicologia do Collège de France,
na disciplina intitulada “Psychologie Expérimental
et Comparée”. Ao longo de sua carreira,
Ribot publicou diversos artigos sobre
enfermidades,
como “Les maladies de la mémoire”,
em 1881, e “Les maladies de la personalité”,
em 1885. A experiência polivante
de Ribot não foi a única e revela o alcance
da própria Psicologia, que diante da dificuldade
de definir e pesquisar seu objeto, não
oferece resistência alguma para examiná-lo,
ainda hoje, sob diferentes olhares como é o
caso da Filosofia, da experimentação e da
pesquisa-
ação. Dentro da inércia dessa polivalência,
a Psicologia abrigou a produção de
instrumentos
que poderiam ser aplicados
em muitas
situações, como é o caso dos testes
e do aconselhamento psicológicos. Os
testes permitiram
e fomentaram a generalização
do conceito de diagnóstico psicológico
como uma das atividades mais identificadas
com a profissão de psicólogo.
Esse caráter polivante alimentou o dinamismo
advindo de fontes distintas de reflexão,
de grande amplitude de problemas e de
distintos critérios de avaliação do desempenho.
Esse alargamento de fronteiras foi
sustentado, legitimado e fomentado pela
crescente demanda de informações sobre o
comportamento humano, não somente na
esfera das patologias, em hospitais, sanatórios
e clínicas, mas também na estruturação
das rotinas de serviço, como constatado nos
territórios das fábricas e das escolas. Os
psicólogos dessa época foram solícitos, eficazes
e rápidos na oferta de repostas a todas
as demandas. Não eram eles que selecionavam
as demandas, mas eles eram selecionados
dentre outros profissionais e outras
instituições disponíveis no mercado, como
especialistas em comportamento humano,
para cuidar de problemas diversos que se
espalhavam por todos os rincões da sociedade.
Essa flexibilidade de atuação estava
em parte associada às origens do estudo da
pessoa humana. Não havia consenso entre
os intelectuais se a Psicologia seria uma
ciência autônoma, um ramo da Fisiologia ou
se seria um dos braços da Filosofia. Johann
F. Herbart, um dos pioneiros da Psicologia
na Alemanha, publica, em 1825, um texto
intitulado “A Psicologia como ciência nova
fundada sobre a experiência, a metafísica e
a matemática”, no qual ele situa a Psicologia
nesses distintos campos. Um pouco mais
tarde, Charcot funda a Societé de Psychologie
Physiologique, em 1885, demonstrando a
dificuldade de delimitação de fronteira entre
distintos fenômenos. Paul Janet publica em
1888 um texto na Revue des Deux Mondes,
no qual defende a existência de uma “psicologia
objetiva” que complete a “psicologia
subjetiva”, mais uma vez evidenciando a
dificuldade de delimitação e de compreensão
do objeto da Psicologia. Em todos esses texO
trabalho do psicólogo no Brasil 25
tos, e em muitos dos que foram publicados
anos depois, sobram evidências da polivalência
e da ambiguidade identitárias da Psicologia
que se refletia na institucionalização
da própria identidade do psicólogo. Ainda
dentro dos anos de 1920, os psicólogos legitimaram
as adjetivações diversas em suas
especialidades, e as associações começaram
a aceitar a departamentalização interna como
forma de acomodar a diferenciação promovida
pela polivalência do trabalho
dos
psicólogos. Esse predicado identitário está
evidenciado em diversos dados da pesquisa
publicada neste livro. A Psicologia é uma
profissão que transcende as fronteiras institucionais
porque seus conhecimentos são
requeridos
sempre que é demandada alguma
explicação sobre a pessoa e seus comportamentos.
Além da polivalência e de seu sucesso
na sociedade, essa jovem profissão enfrentou
dias difíceis devido ao dinamismo interno
do próprio conhecimento sobre o comportamento
humano que diferenciava os profissionais,
alocando-os em caminhos epistemológicos
radicalmente distintos, como aqueles
trilhados por Freud e por Watson. Essa
diferenciação teórica e epistemológica foi,
ao mesmo tempo, uma fonte de riqueza e de
dificuldades para os psicólogos. Essa diferenciação
foi exacerbada em alguns momentos
e angustiou muitos psicólogos, como
se pode
verificar no livro de Daniel Lagache,
L’Unité de la Psycholgie publicado em 1949,
no qual ele intitula o primeiro capítulo de “A
psicologia e as ciências psicológicas”. A
questão
que Lagache apresenta como tema
desse livro – “existiria a possibilidade de
universalização
dos critérios epistemológicos
para a Psicologia?” – ainda está em pé e sem
uma resposta. Hoje, tais diferenças continuam
existindo, mas a preocupação com
elas é menor, no sentido de que todos aprenderam
a reconhecer e a conviver com as limitações
de sua própria epistemologia, como
evidencia o estudo seminal de Michael
Mahoney (1991) sobre a eficácia das psicoterapias.
Nesse estudo, Mahoney demonstra
as distâncias que separam os psicólogos dos
pontos de vista técnico e epistemológico, e
como eles se unem pela utilização comum
do bom-senso. Apesar das diferenças abismais,
o trabalho deles se aproxima no reconhecimento
das limitações de suas técnicas
e da incerteza que os move a ser prudentes
e respeitosos com outras abordagens. Desse
fato, pode-se concluir que a ambiguidade
identitária da Psicologia não se mostra como
um obstáculo, mas, antes, como um testemunho
da complexidade da pessoa humana.
Seguramente, a Psicologia é uma ciência
mais rica por causa dessa diversidade, assim
como os psicólogos dispõem de mais recursos
técnicos e são instados a agir com prudência
diante da diversidade de opções que
a própria Psicologia lhes oferece.
Além da polivalência e da diversidade
criadas pela interface com outros campos do
conhecimento, outra dificuldade visível no
exercício da profissão de psicólogo advém
da abertura da Psicologia a muitas atividades
para as quais os conhecimentos teóricos podem
ser aplicados. Assim, as dezenas de teorias
de motivação podem ser aplicadas na
compreensão e na solução de problemas na
esfera do trabalho, da educação, das relações
sociais, do cuidado consigo mesmo,
entre muitos outros. Essa abertura decorreu
de seu próprio objeto, que era o estudo dos
processos psíquicos, não importando onde
estes ocorriam. Tal amplitude de campo de
aplicação criou problemas, como foi o caso
da introdução de categorias de análise da
patologia na seleção de pessoal, da qual resultaram
dificuldades sérias, até mesmo de
natureza ética. Aos poucos, os psicólogos
aprenderam a questionar se o conhecimento
sobre o comportamento poderia ser considerado
fora de qualquer contexto. Como
fruto
desse aprendizado, os psicólogos adquiriram
experiência sobre o valor das decisões
táticas e, consequentemente, diferenciaram,
em um mesmo objetivo e em um
mesmo
problema, as nuanças de sincronia

26 Bastos, Guedes e colaboradores

geradas pela força do contexto. Uma ilustração


dessa dificuldade e do aprendizado
que se seguiu ao seu enfrentamento foi o
afastamento da Psicanálise dos problemas
da Psicologia aplicada
ao trabalho. A profundidade
do diagnóstico produzido dentro
da abordagem psicanalítica complicava a
possibilidade de administração do desempenho
e tornava quase
impossível a participação
de outros profissionais das empresas na discussão
dos problemas. A gestão do desempenho
carecia de conhecimentos e de instrumentos
para inserir o inconsciente na
rotina
de capacitação
e ajustamento das tarefas.
Essa situação
foi superada recentemente
a partir de inúmeros estudos (Menzies,
1971; Enriquez,
1992; Pagés et al.,
1979) que evidenciaram
como a reflexão
psicanalítica pode também ser aplicada às
condições estruturais,
enriquecendo a compreensão
do jogo estratégico e, por conseguinte,
a compreensão do papel do desempenho
individual
dentro dos processos sociais
e políticos.
O estudo de Steffy e Grimes
(1992), comparando três diferentes epistemologias
e suas consequências
práticas, evidenciou
como a polivalência da Psicologia
permite a acomodação da ação dos psicólogos
a diferentes
ideologias e como
estas
contribuem para a legitimação das decisões
profissionais. Essas questões revelam
como
o trabalho profissional
do psicólogo
é complexo,
exigindo
dele não somente conhecimentos
de sua ciência, mas também do contexto
no qual ele atua. Essa condição aloca
a
profissão de psicólogo,
em si mesma, como
atividade multidisciplinar.
Ainda outra dificuldade enfrentada pelos
psicólogos para “administrar” sua profissionalização
advém do avanço do conhecimento
e da crescente complexidade da
sociedade, contingências que dificultam a
alocação de fronteiras, de critérios e de padrões
de análise. Desde o final da segunda
guerra, mais particularmente a partir de
1950, a contínua adaptação a constantes
mudanças que, a cada ano se tornam mais
rápidas e mais profundas na sociedade, tem
sido um crescente desafio para todos, sobretudo
para os psicólogos. As alterações que
têm ocorrido desde a disseminação da telefonia
celular e da rede eletrônica de informação
sugerem, como assume Guillebaud
(1999), um processo de refundação do mundo
e, portanto, de refundação da profissão
do psicólogo. A certeza que se tem sobre
essa questão é a de que tarefas, funções,
fronteiras e categorias de análise estão sob
revisão. No contexto atual, é quase impossível
a oferta de soluções como aquela oferecida
por Freyd em 1923 para a seleção de
pessoal. Poucos procedimentos podem ser
generalizados, como Freyd propôs, para a
seleção
de pessoal. Essa volatilidade da sociedade
e da profissionalização dos conhecimentos
tem sido crescentemente intensificada
pela diferenciação de tecnologias e
estimulada por ideologias emergentes como
é o caso da absolutização dos resultados e
da busca por inovação que caracterizam a
cultura do presente momento histórico.
Nessas condições criadas na sociedade
atual, administrar e regulamentar uma profissão
mostram-se tarefas necessárias, porém
quase impossíveis diante da volatilidade e
da fragmentação que enfraquecem as estruturas
e os vínculos tanto dos indivíduos
quanto das instituições. Um sintoma desses
problemas é a crescente demanda de interdisciplinaridade
como paradigma para a
atuação
profissional. Nos diversos campos
nos quais os psicólogos atuam, essa integração
de especialidades e de desempenhos
profissionais tem sido incentivada pelo crescimento
da oferta dos serviços e pela sua
diferenciação em atividades subespecializadas,
duas condições que forjaram as ambiguidades
em todas as fronteiras, seja na divisão
de tarefas, seja na territorialização
entre as diversas profissões, isto é, nos limites
entre os campos do conhecimento,
como fartamente evidenciados nas atividades
profissionais oriundas dos campos da Psicologia,
da Medicina, da Pedagogia, da AdmiO
trabalho do psicólogo no Brasil 27
nistração e da Sociologia. É comum que um
profissional de administração, de saúde ou
de educação tenha dúvidas se as atividades
que ele realiza pertencem ao território desta
ou daquela profissão. A regulamentação de
uma profissão que abriga a responsabilidade
sobre problemas que varrem todas as áreas
da vida humana – do nascimento ao envelhecimento,
do lazer ao trabalho, da guerra e
da paz, da saúde e da educação, das identidades
e das instituições – é uma tarefa
para a própria sociedade como um todo e
não para uma profissão em particular. Essas
condições têm estimulado e justificado a diferenciação
de papeis profissionais, hoje difíceis
de serem analisados e categorizados,
porque as atividades que constituem seus
conteúdos são complexas e podem ser interpretadas
partir de diferentes contextos. Na
prática, tais atividades têm sido mais controladas
pela expectativa de valor agregado
pela ação do profissional do que por uma
base teórica específica, ou por uma regulamentação
específica. Essas condições têm
desestimulado os antigos ideais de profissionalismo
e, assim, submetido
a ação profissional
aos ventos do mercado. A evolução
da psicoterapia é um caso emblemático
dessa
dinâmica.
O trabalho psicoterapêutico foi inicialmente
uma atividade territorializada na
profissão
médica, que se estendeu para os
psicólogos, já no início do século XX, por
força dos conhecimentos que eles apresentavam
sobre os processos psíquicos. A diversidade
de problemas de ajustamento social e
de integração psíquica cresceu significativamente
a partir dos anos de 1980, diferenciando
a psicoterapia em atividades distintas
– como o aconselhamento, o coaching,
a Ioga, o acompanhamento terapêutico, o
mentoring, a psicopedagogia e o tutoramento
–, condição que abriu espaço para que
essa atividade fosse gradativamente estendida
a outras profissões. Hoje, não é tarefa
simples diferenciar a psicoterapia dessas outras
atividades. Não há consenso sobre as
diferenças entre esses distintos serviços e,
consequentemente, sobre os critérios de territorialização
dos mesmos dentro das distintas
ocupações que abrigam tais atividades.
Situação análoga ronda a territorialização
dos testes psicológicos. Administradores, sociólogos,
pedagogos, engenheiros e psicólogos
têm produzido farta diversidade de
instrumentos de diagnóstico em suas atividades
profissionais, tornando difícil a identificação
de critérios para diferenciar quando
esses instrumentos focam os processos
psíquicos
e o território ao qual eles poderiam
pertencer. A interdisciplinaridade, a inovação
e a ideologia de busca por resultados
têm dificultado essa tarefa.
Essas relações de fronteira, sejam internas
na atividade dos psicólogos, sejam na
relação com outras ocupações igualmente
institucionalizadas,
(como a medicina, a
educação
e a administração que, concomitantemente
à Psicologia, construíram a profissionalização
de suas tarefas e de seus espaços
de trabalho dentro da racionalidade
burocrática ou do mercado), não aparecem
na pesquisa relatada neste livro mas não
deixam de merecer alguma reflexão. Plas
(2000) escreve que as relações de vizinhança
no início da profissionalização da Psicologia
foram difíceis. Segundo seu testemunho,
durante
o período inicial de desenvolvimento
da Psicologia, os filósofos se mantinham informados
dos progressos da Psicologia científica,
não propriamente para enriquecer
suas análises sobre a pessoa através dos novos
dados produzidos, mas para poder criticar
o trabalho experimental dos psicólogos.
Esse fato mostra as tensões e a não legitimação
entre diferentes campos profissionais,
as relações nem sempre foram amigáveis,
tal como ocorre hoje nas fronteiras da profissão
do psicólogo com algumas profissões.
Ao longo de toda a história da profissão
de
psicólogo, ocorreram disputas com médicos,
administradores, pedagogos e sociólogos.
No momento da reorganização profissional,
espaços e tarefas específicos, embora dispu28
Bastos, Guedes e colaboradores
tados por distintas profissões, começaram a
ser previstos e realizados como
forma de
viabilização da aplicação de conhecimentos
particulares a problemas presentes
na vida
humana em seus diferentes aspectos. Desse
momento em diante, os espaços
profissionais
emergentes no campo da Psicologia foram
fortalecidos por causa do aprofundamento e
da expansão do conhecimento
e pela eficácia
das soluções que eram nele inspiradas e legitimadas.
A elaboração
de testes psicológicos
sustentados por teorias específicas da
Psicologia
contribuí-ram muito para a identificação
do território profissional
dos psicólogos,
como especialistas
em diagnósticos e
na intervenção para trabalhar
a adaptação e
a integração psíquicas.
O desenvolvimento
científico e tecnológico
agravou essa situação.
Hoje, é difícil
delimitar
onde termina
uma profissão e uma outra começa. Os problemas
já não cabem
dentro do território de
uma ciência, demandando
a contribuição de
outras, como essenciais.
Para ilustração dessa
dificuldade, tem-se, nos Estados Unidos, a legislação
de três estados permitindo aos psicólogos
a prescrição
de medicamentos, abertura
que põe mais combustível na interface
com os médicos
e os farmacêuticos, assim como
as ambiguidades
nos limites entre psicoterapias
e diversas formas
de aconselhamento
borram os limites dos psicólogos com outras
profissões.
Uma solução emergente para essas questões
que têm crescido em alguns países é a
criação de comunidades especializadas em determinados
serviços profissionais, hoje
abrigadas
sob a alcunha de consultorias, empresas
de serviço profissional ou, simplesmente,
de comunidades de ação. Esses grupos
apresentam
concentração em uma profissão particular,
como psicólogo ou advogado,
mas são
enriquecidos por profissionais de diversas áreas
do saber que trabalham juntos
e se completam
nas informações e nas tarefas requeridas
para o enfrentamento dos problemas
(Faulconbridge
e Muzio, 2008). Nesses grupos,
a fluidez das fronteiras é exponenciada,
tornando mais dificil a diferenciação
das
identidades profissionais e, por conseguinte,
a regulamentação e o controle sobre as atividades
dos trabalhadores que oferecem
serviços
profissionais. A regulamentação
de algumas
profissões, como é o caso
do jornalismo,
tem sido significativamente
dificultada
pelo direcionamento da evolução
da sociedade
(Aldridge e Evetts, 2003).
Se a identidade do psicólogo foi construída
e consolidada pela clara demanda de
conhecimentos especializados sobre a pessoa
e a conduta humanas, aplicados em ampla
diversidade de problemas, fato que estimulou
a oferta de diversas tarefas a esses
profissionais, hoje ocorre um processo inverso.
Dentro dessas empresas de consultoria e
comunidades de serviços, a identidade do
psicólogo
é diluída pelo baixo reconhecimento
da existência de fronteiras entre as
profissões e pela consequente atribuição de
tarefas a diversos profissionais, não importando
sua trajetória profissional formal, mas
suas competências
atuais. O critério para a
atribuição de tarefas se resume na competência
que o problema em questão exige. A
integração entre demandas da sociedade
que apresentam
problemas aos profissionais
e a criatividade
técnica por parte destes já
não formata
papéis e espaços que diferenciam
tais profissionais de diversos ramos do saber
entre si. No trabalho através de projetos que
tem sido modelo crescente de atuação profissional,
a distribuição de tarefas tem ocorrido
por meio das competências aferidas na
equipe e não em critérios de profissionalização
do conhecimento. Por isso, os profissionais
não mais aparecem, a exemplo dos
anos de 1920, como mediadores necessários
entre o conhecimento científico e as necessidades
humanas da sociedade. Johnson
(1972) identifica nessa mediação o germe
do controle ocupacional que caracterizou as
profissões ao longo do século XX e que hoje
não está mais rigidamente circunscrita ao
indivíduo portador do diploma, mas se estende
àquele que revela competência para a
O trabalho do psicólogo no Brasil 29
tarefa. Dentro dessa dinâmica da ação por
projetos, a mediação preconizada por Johnson
entre o mercado e o conhecimento, os psicólogos
já não controlam com exclusivida-
de métodos, valores, critérios, referenciais,
procedimentos
e condições que constituem
os elementos visíveis que modelam e institucionalizam
sua profissão. Como Guillebaud
acredita, tal como o mundo e as outras profissões,
a profissão de psicólogo sofre algum
tipo de refundação. Essa tendência é reforçada
pela diversidade e pela ampliação dos
cursos de especialização e pós-graduação.
Programas de pós-graduação em Administração,
em Psicologia Social admitem engenheiros,
historiadores e médicos, assim como
cursos de medicina e engenharia admitem
outros profissionais. O conceito de fronteira
foi alterado, de um elemento que divide
e diferencia, para um elemento que
integra. A brilhante análise desenvolvida
por Amin Maalouf (1998) sobre as identidades
é uma ilustração contundente sobre o
desafio da alocação de fronteiras no mundo
atual. Se um indivíduo é psicólogo, trabalhador
social, educador, ou agente de saúde
depende da articulação do contexto onde
ele está alocado. Igualmente, a análise de
Nicole Aubert (2003) sobre a influência da
valorização do tempo (rotina, imediato, urgência,
prioridade) sobre os limites do poder
e da legitimidade da ação profissionais revela
a relativização da territorialização ocupacional
diante dos imperativos do contexto
oriundos da ideologia dos resultados.

Conclusão

A pesquisa divulgada neste livro oferece


uma visão da institucionalização das atividades
profissionais dos psicólogos a partir da
qual se pode compreender a dinâmica que
caracteriza as fronteiras interna e externa
dessa profissão e do processo de diferenciação
de atividades necessário para a sua caracterização
como um território autônomo na
sociedade.
As mudanças que surgiram através
do processo de globalização complicaram
os critérios de conceituação da autonomia e,
consequentemente, a profissionalização do
psicólogo tornou-se uma questão permanentemente
aberta. A evolução dos eventos indica
que o futuro da profissão do psicólogo
(como ocorre com outras profissões) dependerá
menos da regulamentação existente do
que do desempenho dos psicólogos (e de
outros
profissionais) no enfrentamento das
dificuldades que a refundação de sua(s)
profissão(
ões) exige.
Desde as reflexões pioneiras de Parsons
(1939), as profissões têm sido conceituadas
como grupos de pessoas definidos pela fundamentação
de suas atividades em algum
conhecimento específico, cuja forma de atuação
é caracterizada por certa autonomia que
a coloca à margem do controle puramente
burocrático e significativamente diferenciado
do agir com base apenas no conhecimento
intuitivo das pessoas (como ocorria antes da
era das profissionalizações). Balizados
por
esses dois fatores, tais grupos são reconhecidos
na sociedade pelas tarefas especializadas
que
desempenham, pela instrumentalidade
específica
que utilizam e pela forma colegiada de
agir para organizar suas tarefas e controlar a
própria atuação. A possibilidade
desse controle
tem origem em algumas
constantes que,
segundo Freidson (2001), criam o tipo ideal
de profissional para cada ocupação, facilitando
sua identificação.
Tais constantes estão
materializadas no corpo de conhecimentos
oficialmente reconhecidos
como a base da
legitimidade do desempenho técnico daquela
profissão, na organização de categorias de
prática da qual resultam a divisão de trabalho
e suas fronteiras
com outros campos profissionais
e no conjunto de normas, valores e
padrões éticos que regem a aplicação do conhecimento
específico
daquele grupo. Além
disso, o desempenho
profissional ocorre através
da aplicação
de habilidades complexas
que são adquiridas
a partir do aprendizado
sistemático de uma ciência, através de longa formação acadêmica.

30 Bastos, Guedes e colaboradores

A profissionalização do
psicólogo, como resumidamente analisada
neste capítulo,
ocorreu de acordo com essa
representação.
O atual estágio de desenvolvimento da
sociedade se assemelha a um furacão, ou
seja, criou forças poderosas, imprevisíveis,
impossíveis de serem controladas, que obrigam
todos e tudo a adaptações penosas e
cujos efeitos atingem a função e o sentido
de várias realidades. Diante disso, a questão
que se impõe é: como fica a profissão do
psicólogo frente ao crescimento da multidisciplinaridade,
da invenção de novas formas
de trabalho por projetos, da comodificação
e do fácil acesso ao conhecimento que facilita
o desempenho profissional, mesmo carente
de competência. Sem o devido aprofundamento
do conceito de autonomia é
quase impossível responder a essa questão.
Talvez a autonomia seja uma condição a
ser considerada a partir da intersubjetividade
e da dinâmica da realidade.
O desafio que esse furacão propôs aos
psicólogos é a defesa e a reconstrução de
sua identidade. Tal como ocorre nas carreiras
individuais, os profissionais vivenciam
a condição de nômades, não porque eles
migram, como o faziam os guaranis e os
beduínos, mas porque a sociedade enfrenta
mudanças contínuas que alteram os critérios
de julgamento e os limites entre as atividades.
O nômade é um indivíduo continuamente
desafiado a se readaptar e a se revalidar.
Como se sabe, a identidade não é
uma condição permanente nem uma variável
diante
da qual as pessoas são passivas e
impotentes.
A identidade é manifestada
através
de predicados que são produzidos
ou reproduzidos
através das atividades do
indivíduo e da relação deste com os outros
(Ciampa, 1986). Assim, a identidade dos psicólogos
dependerá de suas atividades e dos
eventos presentes no contexto no qual ela se
desenvolve.
Essa tarefa já foi constatada
pela
Psicologia em outras profissões, como foi
o caso do tipógrafo. Um indivíduo que iniciou
sua vida profissional nesse ofício há 40
anos, enfrentou três metamorfoses, passando
de artesão para digitador, e de digitador para
controlador de máquinas. Por três vezes,
ele teve de reaprender suas ta-refas,
radicalmente
transformadas pelo desenvolvimento
tecnológico
e pela relação com outros profissionais
com os quais suas atividades tinham
fronteiras.
O tipógrafo se constituiu
como um profissional diferente diante da
sociedade.
A profissão de psicólogo, como sujeito
vivo e coletivo, criou e continuará recriando
sua identidade porque não lhe faltam questões
para estudar; seu objetivo é um vir-a-
-ser em contínua reconstrução devido à dinâmica
da sociedade, como outro sujeito
vivo e coletivo com o qual ele tem interação
íntima.
Não se pode prever como será a organização
do trabalho numa sociedade fortemente
robotizada e que variáveis estarão
afetando a subjetividade, mas esta estará
sempre presente nela, demandando cuidados
por parte de quem pesquisa e aplica
os conhecimentos
sobre o ser humano como
sujeito de sua realização e de sua história.
É esse contínuo movimento que faz da
Psicologia uma força autocriadora. Movida
por esse constante desequilíbrio ela se reconstrói,
porque somente descobre quem
ela é a partir do conhecimento que produz,
sobre seu objeto e sobre si mesma, ou seja, a
partir de sua própria ação.

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