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Essa reorganização das profissões foi balizada por dois fatores principais. O primeiro
foi a guarida e o controle advindos da força do paradigma burocrático que nesse
momento se impunha ao Estado e aos negócios como instrumento de eficácia
administrativa.
Por força da racionalidade burocrática, as atividades eram reagrupadas para
corresponder à lógica do conhecimento
científico produzido nas distintas ciências.
Esse reagrupamento promoveu significativa
diferenciação ocupacional que foi dando
corpo à territorialização das atividades em
profissões. O segundo fator foi a reorganização
das profissões que, embora produtos
da burocracia, estimulavam a inovação por
força de novas descobertas nas diversas
áreas do conhecimento científico e das tecnologias
que, por sua vez, enriqueciam o
repertório de recursos técnicos em todas as
esferas da sociedade. O aparecimento dos
testes psicológicos nesse momento é uma
das evidências mais explícitas dessa inovação.
Toda a sociedade se mobilizava para se
ajustar às condições criadas pelo processo
de industrialização, redesenhando ou
adaptando
estruturas e serviços. As profissões
foram um objeto peculiar dessa reorganização
porque ocupavam a função de
ponte entre os problemas da sociedade e o
avanço científico e tecnológico. O conhecimento
científico recebeu significativos investimentos,
foi desenvolvido rapidamente
e aplicado, com certa eficácia, aos incontáveis
e crescentes problemas da sociedade.
As tarefas se tornaram mais complexas e foram
pouco a pouco migrando para as mãos
de pessoas que tinham alguma formação
científica.
Essa reorganização dos serviços
profissionais foi a alvorada da instituição
e
do conceito de carreira que apareceu
na sociedade
por força de trajetórias e regulamentações
criadas pela organização do trabalho
no contexto burocrático e técnico.
Até meados do século XIX, a mobilidade
entre atividades profissionais era reconhecida
e restrita às instituições militares e religiosas.
Até então, a vida profissional não
pressupunha
trajetórias e nem a movimentação
entre cargos e tarefas era um fator
importante,
porque a vida e suas atividades
eram reguladas pelas tradições e pelos sistemas
sociais sem ser alvo de inovações ou
pressionadas
por mudanças. A partir da diferenciação
ocupacional produzida nos distintos
campos de trabalho, como fruto da
arquitetura
burocrática para o aproveitamento
do avanço tecnológico, o exercício de
muitas atividades ocupacionais foi paulatinamente
submetido a controles advindos
da lógica emergente do próprio conhecimento
científico,
reificada no conceito de competência
técnica. Essa condição incitou a criação e
a visibilidade de trajetórias profissionais que
se impunham sobre os indivíduos e sobre os
serviços. Assim, a formação profissional formal,
adquirida em alguma instituição acadêmica
apropriada, tornou-se etapa obrigatória
para o desempenho da grande maioria
das atividades técnicas, já caracterizando a
existência de alguma trajetória. No caso
dos psicólogos, muitos foram buscar essa
formação
nos laboratórios da Alemanha,
que nesse momento era reconhecida como
um centro de referência sobre os estudos em
Psicologia. W. Rivers e H. Watt, embora estivessem
alocados no contexto inglês da Psicologia,
foram estudar na Alemanha, que
nessa época atraía profissionais do mundo
todo por seu avanço na Psicologia Experimental
(Hearshaw, 1964). Essas trajetórias
foram legitimadas pelo engajamento profissional
dos psicólogos em instituições como
hospitais,
fábricas e escolas, e daí, rapidamente
acopladas às estruturas hierárquicas,
ou aos sistemas de status.
Pouco a pouco, a mobilidade profissional
deixou de ser um fato insignificante, ganhando
o status de etapas do aprofundamento
ou do avanço no domínio do conhecimento
e da instrumentalidade, ou do poder
gestionário, fato que reforçou a representação
da carreira como mobilidade entre
atividades profissionais e a territorialização
O trabalho do psicólogo no Brasil 21
das profissões. Dentro dessa lógica, o trabalho
sob o vínculo do emprego e o trabalho
autônomo foram moldados como espaços
substantivos, constituídos por tarefas e instrumentos
específicos e, como tal, tornaram-
se fortes referências para a avaliação
das competências, da remuneração e dos vínculos
dos profissionais com as instituições e
com os clientes. As profissões, tal como hoje
são conhecidas,
nasceram dessa racionalidade
que foi ganhando força e se tornando a base
para a organização ocupacional (McKinlay,
2002). Os dados da pesquisa publicada neste
livro oferecem pistas sobre como, desse ponto,
a profissão
de psicólogo evoluiu para a
condição
atual. Esse conjunto de informações
sobre
a profissão do psicólogo
esclarece aspectos
como a diversidade que caracteriza a inserção
desse profissional, a etapa da formação,
o início da profissão, a identidade profissional
e a abertura para o psicólogo evoluir em distintas
direções dentro
dessa carreira.
O investimento nessa racionalidade foi
generalizado e crescente, impactando sobre
o sentido das estruturas e dos espaços de
ação, remodelando-os dentro de uma racionalidade
que funcionava como cartilha para
a busca de estabilidade e eficácia. Essa remodelagem
foi legitimada e fortemente apoiada
pelas comunidades intelectuais emergentes
nos diversos campos do saber, tornando-se
um paradigma não apenas para as organizações
industriais, mas também para outras
instituições. Fortalecidos pela confiança nessa
racionalidade, os diversos espaços profissionais,
pouco a pouco assumidos
como atividades
técnicas, foram reconfigurados
como
veículos apropriados para
a aplicação
dos conhecimentos científicos tanto aos problemas
mais gerais quanto à rotina da vida
cotidiana. No Brasil, devido ao baixo número
de escolas de formação profissio-nal, e
ao ainda incipiente investimento
em pesquisas,
os jovens interessados no campo da Psicologia
eram enviados à Europa, onde poderiam
cumprir a primeira etapa de suas carreiras.
Em resumo, a profissionalização da aplicação
do conhecimento produzido pela Psicologia
ocorreu na virada do século XIX para
o século XX, em um período aproximado de
50 anos, no qual essas atividades profissionais
foram sujeitadas a trajetórias e controles
crescentemente rígidos e visíveis dentro
das organizações, sob a égide da lógica
administrativa, como também fora destas,
na oferta de serviços profissionais autônomos,
sob a égide da lógica dos mercados. A
profissionalização das chamadas ocupações
tradicionais expressava a aplicação do rigor
exigido da pesquisa científica, no desempenho
dos profissionais. Esse período entre a
modelagem da sociedade pela burocracia
e
a força de produção criada pela tecnologia
eletromecânica (1880) e o término
da primeira
grande guerra (1918) foi o palco para
a formatação e para a viabilização dessas
profissões que assumiam o conhecimento
técnico como instrumento de intervenção
nos problemas da sociedade. A profissão
de
psicólogo integrou e foi produto dessa racionalidade
dentro desse palco. Os psicólogos
foram chamados para contribuir com avaliações
diversas sobre a pessoa e com intervenções
para o ajustamento e o desenvolvimento
dos indivíduos frente aos mais diversos
grupos sociais.
Conclusão
A profissionalização do
psicólogo, como resumidamente analisada
neste capítulo,
ocorreu de acordo com essa
representação.
O atual estágio de desenvolvimento da
sociedade se assemelha a um furacão, ou
seja, criou forças poderosas, imprevisíveis,
impossíveis de serem controladas, que obrigam
todos e tudo a adaptações penosas e
cujos efeitos atingem a função e o sentido
de várias realidades. Diante disso, a questão
que se impõe é: como fica a profissão do
psicólogo frente ao crescimento da multidisciplinaridade,
da invenção de novas formas
de trabalho por projetos, da comodificação
e do fácil acesso ao conhecimento que facilita
o desempenho profissional, mesmo carente
de competência. Sem o devido aprofundamento
do conceito de autonomia é
quase impossível responder a essa questão.
Talvez a autonomia seja uma condição a
ser considerada a partir da intersubjetividade
e da dinâmica da realidade.
O desafio que esse furacão propôs aos
psicólogos é a defesa e a reconstrução de
sua identidade. Tal como ocorre nas carreiras
individuais, os profissionais vivenciam
a condição de nômades, não porque eles
migram, como o faziam os guaranis e os
beduínos, mas porque a sociedade enfrenta
mudanças contínuas que alteram os critérios
de julgamento e os limites entre as atividades.
O nômade é um indivíduo continuamente
desafiado a se readaptar e a se revalidar.
Como se sabe, a identidade não é
uma condição permanente nem uma variável
diante
da qual as pessoas são passivas e
impotentes.
A identidade é manifestada
através
de predicados que são produzidos
ou reproduzidos
através das atividades do
indivíduo e da relação deste com os outros
(Ciampa, 1986). Assim, a identidade dos psicólogos
dependerá de suas atividades e dos
eventos presentes no contexto no qual ela se
desenvolve.
Essa tarefa já foi constatada
pela
Psicologia em outras profissões, como foi
o caso do tipógrafo. Um indivíduo que iniciou
sua vida profissional nesse ofício há 40
anos, enfrentou três metamorfoses, passando
de artesão para digitador, e de digitador para
controlador de máquinas. Por três vezes,
ele teve de reaprender suas ta-refas,
radicalmente
transformadas pelo desenvolvimento
tecnológico
e pela relação com outros profissionais
com os quais suas atividades tinham
fronteiras.
O tipógrafo se constituiu
como um profissional diferente diante da
sociedade.
A profissão de psicólogo, como sujeito
vivo e coletivo, criou e continuará recriando
sua identidade porque não lhe faltam questões
para estudar; seu objetivo é um vir-a-
-ser em contínua reconstrução devido à dinâmica
da sociedade, como outro sujeito
vivo e coletivo com o qual ele tem interação
íntima.
Não se pode prever como será a organização
do trabalho numa sociedade fortemente
robotizada e que variáveis estarão
afetando a subjetividade, mas esta estará
sempre presente nela, demandando cuidados
por parte de quem pesquisa e aplica
os conhecimentos
sobre o ser humano como
sujeito de sua realização e de sua história.
É esse contínuo movimento que faz da
Psicologia uma força autocriadora. Movida
por esse constante desequilíbrio ela se reconstrói,
porque somente descobre quem
ela é a partir do conhecimento que produz,
sobre seu objeto e sobre si mesma, ou seja, a
partir de sua própria ação.