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COMPORTAMENTO

O consumo como
forma de expressão
e de pertencimento
Foto: Michal Jarmoluk / pixabay.com

Danielle Kiffer da FAPERJ, ele é Coordenador do principal personagem do livro,


de Pesquisa do Departamento de que é o “grande magazine” – tra-

V
ocê é o que você consome, Comunicação Social e professor dução de “grand magasin”, como
queira ou não, sendo con- do Programa de Pós-Graduação são chamadas as lojas de departa-
sumista ou não. Dentro da em Comunicação da Pontifícia mento na França. O livro, lançado
lógica capitalista, a exemplo da fra- Universidade Católica do Rio de em outubro de 2016, pela Editora
se dita pelo poeta Paulo Leminski Janeiro (PUC-Rio). Em sua traje- Mauad, e escrito por Rocha em
“Repara bem o que eu não digo”, tória, Rocha já publicou mais de parceria com Marina Frid e William
você é até aquilo que deixa de con- vinte livros, sendo o mais recente Corbo, ambos seus orientandos de
sumir. Quem faz essa afirmação é o título O Paraíso do Consumo: doutorado na PUC-Rio, faz uma
o antropólogo Everardo Rocha, Émile Zola, a magia e os grandes análise da expansão das lojas de
que há cerca de 40 anos estuda a magazines, que explora a força da departamento no século XIX e mos-
Antropologia do Consumo e da narrativa do romance O Paraíso das tra como ocorreu a consolidação
Mídia. Contemplado no programa Damas, de Zola, escrito em 1882, do consumo na modernidade. “Os
Cientista do Nosso Estado (CNE) e avalia os impactos socioculturais grandes magazines foram, de fato,

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De acordo com a virada fundamental que reuniu


diversas potencialidades para fazer
medida, de acordo com suas práti-
cas de consumo. “Fazemos parte de
estudo realizado do consumo um fenômeno central
da nossa cultura”, afirma o antro-
grupos urbanos que se formam de
acordo com gostos, estilos e poder
na PUC-Rio, pólogo. aquisitivo; os bens de consumo
De acordo com Rocha, passados podem ser uma ponte ou um muro
as práticas de mais de um século e meio desde entre as pessoas. Nossas escolhas
e possibilidades de consumo, por
consumo podem a inauguração do primeiro grande
magazine em Paris, diversas carac- exemplo, as marcas de roupas que
costumamos usar, o tipo de carro
moldar das terísticas desse modelo de negócios
continuam atuantes na cultura de que dirigimos, etc., tanto refletem
expressões de consumo que vivemos hoje. Por quanto viabilizam nossas relações
sociais”, diz o antropólogo. “Pes-
exemplo, as lojas de departamentos
afeto à identidade do século XIX impulsionaram ino- soas podem ser classificadas pelas
vações no comércio da época que roupas que estão vestindo ou pela
de cada indivíduo permanecem no nosso cotidiano decoração de suas casas, pelos ser-
presente, tais como: a exposição viços que contratam, pelas comidas
na sociedade dos produtos em vitrines, a fixação que gostam, pelas viagens que fa-
e exibição de preços em etiquetas, zem durante as férias ”.
a criação de datas comemorativas e Quem nunca viu um carro popular
promocionais, a incorporação de fe- com o símbolo do Audi ou da BMW
riados religiosos e cívicos ao calen- colado à carroceria? Ou, então,
dário de compras e a transformação roupas e utensílios de moda sendo
das visitas às lojas em momentos de vendidos com preços bem mais
entretenimento. “Esses empreendi- em conta por serem “réplicas”? O
mentos contribuíram para dar forma porquê disso pode ser resumido a
ao sistema de consumo moderno. uma só questão: a vontade de per-
Criaram espaços de sociabilidade e tencer a um nicho social diferente.
ciclos que ritualizam as práticas dos Não basta ser, é preciso ter, e, se
consumidores, fomentando datas possível, mostrar que tem. Rocha
especiais como o ‘dia das mães’, menciona um filme que, na sua
‘dia dos namorados’, as liquida- opinião, exemplifica bem essa si-
ções, a Black Friday, e assim por tuação: “Amor por contrato”. Nele,
diante”, explica o antropólogo. O uma família aparentemente perfeita,
professor e pesquisador lembra ain- os Jones, são bonitos, populares,
da que “as atividades de consumo, confiantes e têm uma casa luxuosa
até mesmo compras corriqueiras, e repleta de aparelhos e objetos
são revestidas de carga simbólica. de ponta, o que provoca a inveja
Expressam afeto, materializam sta- dos vizinhos. E é exatamente isso
tus e hierarquias sociais, estabele- o que os Jones querem, já que, na
cem relacionamentos e a obrigação verdade, não são uma família, e
de reciprocidade”. sim funcionários da empresa que
Para o antropólogo, tanto as expres- fornece os bens de consumo que
sões de afeto podem ser moldadas exibem em casa. “Esse filme mos-
com as práticas de consumo, como tra, igualmente, que as distinções,
também as nossas próprias identi- dentro de um segmento social, não
dades na sociedade. Para Rocha, são apenas pecuniárias. No filme,
na vida moderna, as pessoas são mesmo dentro de uma vizinhança
identificadas e se reúnem, em larga que está, praticamente, no mesmo

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Foto: Divulgação/PUC-Rio
certo sentido, todas essas publi- hoje funcionam as mensagens em
cações são um prolongamento da redes sociais on-line”.
‘vitrinização’ da vida social levada
As diferenças, de acordo com o
a efeito pelos grandes magazines
antropólogo, estão na diversificação
do século XIX”.
e acentuada ampliação da oferta de
Em uma passagem do livro “O bens de consumo. “Na época dos
paraíso do consumo”, os autores meus pais, você entrava no banho,
comentam uma anedota, que circu- por exemplo, com uma limitada
lou nas mídias sociais recentemente gama de produtos. Havia o sabonete
e traduz, com humor, a importância e pronto. Hoje, há uma diversidade
dessas ferramentas de comunicação imensa de produtos a serem uti-
como produtoras de status: “Estou lizados no banho como xampu e
tentando fazer amigos fora das creme condicionador para os cabe-
redes sociais. Saio na rua e vou di- los. Sem falar na fragmentação do
zendo para todo mundo o que comi, nosso corpo, principalmente o das
Everardo Rocha: estudo das práticas de
consumo, presentes já na França do séc. XIX
como me sinto, para onde viajei, o mulheres. Agora, há cremes para a
que eu estou fazendo e o que farei área dos olhos, para a testa, para os
mais tarde. Escuto as conversas dos braços, para as pernas, mãos, para
outros e grito: ‘curti’. Até agora já diferentes idades, tipos de pele,
segmento social, existem diferenças tenho três seguidores: dois policiais cabelo etc.”
no que diz respeito ao consumo”. e um psiquiatra...”.
Quando perguntado sobre o futuro
Se consumir é importante para Analisando o fenômeno do consu- do nosso consumo, Rocha diz que,
ser e se estabelecer na sociedade mo desde a época da inauguração como antropólogo, seria inconse-
moderna, dispositivos que tornam dos primeiros grandes magazines, quente tentar predizer o que vere-
isso particularmente evidente são no século XIX, Rocha afirma que, mos ao longo dos próximos anos:
as mídias sociais, que servem como apesar do avanço tecnológico e “Apesar da celeridade tecnológica,
vitrines das vivências e experi- da aceleração da globalização, os processos de mudança cultural
mentações de cada um. “Nas redes muitos dos rituais e valores de são bem mais lentos do que se ima-
sociais, o ritual é esse: usuários hoje já eram partilhados, de certa gina. Em vários aspectos da cultura,
editam a sua própria imagem, de maneira, naquela época e até antes podemos ver mudanças rápidas
forma mais ou menos consciente, dela. “As técnicas e veículos de quando olhamos, por exemplo, as
para construir e manter relações comunicação mudaram, mas não tecnologias ou os conteúdos de um
naquele ambiente virtual. Em certos hábitos, formas de expressão filme ou uma novela. Porém, se
conjunto, as fotos e status com- e de relacionamento. Por exemplo, olharmos pelo plano da estrutura
partilhados devem significar o um artigo de um pesquisador de narrativa dessa novela ou filme, po-
que, em sociedade, geralmente se história da arte mostra como, desde demos ver a permanênica de valores
considera adequado e interessante. o início da modernidade, a pintura que já estavam em filmes e novelas
Inclusive, é comum ouvir alguém de retratos e autorretratos se torna bem mais antigos. Os conteúdos
na ‘vida real’ se queixar do excesso uma prática difundida não só entre podem mudar em ritmo muito mais
de felicidade que todos parecem monarcas e membros da nobreza, rápido do que os modelos que os
exibir ali. Essa aparente perfeição mas também entre os burgueses em sustentam”.
é elaborada através de recorrentes ascensão, que, através dessa forma Pesquisador: Everardo Pereira
posts de pés descalços na praia, de divulgar a si mesmos, queriam Guimarães Rocha
reuniões com família e amigos, demonstrar poder, prestígio e cone- Instituição: Pontifícia Universidade
festas, infinitas viagens, shows de xões sociais. Em um tempo menos Católica do Rio de Janeiro (PUC-
música, check-in em restaurantes, distante, na minha juventude, não Rio)
cinemas, pontos turísticos, aeropor- havia ainda a Internet, mas podí- Fomento: programa Cientista do
tos, e assim por diante. Retratos e amos fazer amigos por correspon- Nosso Estado
selfies existem para o outro e, em dência, em trocas de cartas, como

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