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Trilhando Caminhos Metodológicos: Uma Abordagem para Compreender a Identidade e o

Consumo das 'Farmetes'

Gabriela Valle Garcia


Serafim

Resumo:
O artigo abordará a pesquisa de dissertação que desenvolverei ao longo do Mestrado
com foco na discussão sobre a construção do objeto e metodologia a qual utilizarei.
Pesquisarei sobre consumo e construção de identidade de consumidoras da marca de
acessórios e vestimentas femininas chamada FARM. Um aspecto relevante da cultura da
marca é o senso de pertencimento existente entre as consumidoras que se identificam como
‘Farmetes’ ou ‘Meninas da Farm’. O termo faz menção a estas consumidoras que usam os
produtos da marca na maior parte do tempo. A intenção da pesquisa é entender como se
constitui a identidade e estilo de vida entre este grupo que aumenta e se diversifica ao passar
do tempo, de maneira que pessoas pertencentes a grupos que não faziam parte da estratégia
da marca como consumidoras passam a comprar peças das lojas. Subsidiariamente, é
importante compreender as implicações decorrentes dessas mudanças. Além da diversificação
do público consumidor, surge um mercado paralelo de revenda e compra de roupas usadas da
marca, através de brechós. Ademais, lojas passam a confeccionar roupas e acessórios a partir
de tecidos descartados pela FARM, tornando as peças mais acessíveis em termos de preço. 1
Isso resulta na criação de lojas com um estilo semelhante ao da marca.

Palavras- chave: Consumo, Identidade, Transformações de Comportamento.

Introdução

Em uma pesquisa que visa centralizar o consumo é necessário entender como se dá


seu processo. Marx ao falar sobre a mercadoria menciona sobre sua efetividade em satisfazer
uma necessidade básica de sobrevivência ou a uma necessidade mais subjetiva. É a partir do
consumo que um objeto se torna mercadoria. Mas, diferente do autor que se debruça sobre
uma perspectiva a fim de discutir sobre a produção capitalista, a intenção aqui é se debruçar

1 Na parte de Metodologia será abordado alguns dos preços da loja, bem como os materiais que comercializa.
sobre o que é a mercadoria a partir do consumo. Appadurai (1989) aborda que as mercadorias
não são simplesmente objetos físicos com valores econômicos, mas sim entidades sociais
carregadas de significados culturais, simbólicos e políticos. Ou seja, as mercadorias têm uma
"vida social" que vai além das transações comerciais, elas desempenham papéis fundamentais
na formação de identidades e na configuração das relações sociais.
Segundo Douglas e Isherwood, o consumo é o que “acontece aos objetos materiais
quando deixam o posto varejista e passam para as mãos dos consumidores finais” Nesse
contexto, o consumo, se humaniza e adquire uma dimensão cultural significativa à medida
que é adquirido por pessoas. A compra e venda não são apenas transações econômicas, mas
são enraizadas em sistemas simbólicos que conferem significado aos produtos e serviços.
Esses sistemas de classificação são cruciais para a compreensão do consumo como uma
prática cultural.
Compreender quais são os significados atribuídos ao objeto são relevantes pois as
decisões e ocasiões de consumo são pautadas de acordo com contexto cultural do momento.
O que as pessoas consomem pode ser uma expressão de filiação a determinados grupos
culturais, e essas escolhas podem refletir e reforçar relações de poder dentro da sociedade. A
ideia de que o consumo é a "arena" em que a cultura é moldada implica que a cultura não é
estática, mas sim fluida e sujeita a mudanças. As disputas no âmbito do consumo contribuem
para a transformação contínua da cultura, refletindo as tendências, valores e conflitos
emergentes em uma sociedade (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004).
O consumidor é retratado como alguém que busca construir um "universo inteligível"
por meio das escolhas de bens. Isso implica que as preferências de consumo não são apenas
sobre a posse de objetos físicos, mas sobre a criação de um mundo compreensível e
significativo. Mas as escolhas não estão pautadas somente na individualidade, Bourdieu
(1970) argumenta que os gostos são moldados pelas posições sociais das pessoas na estrutura
de classes. Os gostos são vistos como marcadores simbólicos que diferenciam grupos sociais.
O que é considerado esteticamente agradável ou culturalmente valioso em uma classe pode
ser diferente em outra. No entanto, ao decorrer deste trabalho, examinaremos as decisões de
consumo de grupos específicos a partir de um contexto brasileiro, especialmente no século
XXI, onde a globalização exerce uma forte influência sobre a dinâmica e as escolhas de
consumo.

Cultura e Moda Tropical


Para poder entender o grupo de consumidoras de maneira mais clara é preciso
conhecer mais sobre a marca FARM e sobre sua história, bem como a marca foi construída
a partir de uma estratégia que visava um tipo ideal de consumidoras. A FARM é reconhecida
como uma marca que personifica a essência do Rio de Janeiro. A narrativa é construída em
torno da ideia de pertencimento à cidade e ao estilo de vida carioca, com referências a pontos
específicos da cidade, como a Zona Sul, praias e paisagens características (BARROS;
PEREIRA, 2012). Ela é uma marca que vende peças e acessórios femininos característicos
pela estamparia colorida com flores, frutas e animais tropicais, refletindo a descontração,
cores vibrantes associadas à cultura do Rio de Janeiro.
A publicidade surge como uma forma fundamental desse discurso, conforme afirmado
por Rocha (2010), sendo considerada a narrativa do consumo que confere significado aos
bens e marcas. Ao mesmo tempo, a publicidade codifica os valores de uma sociedade de
maneira idealizada, criando um universo perfeito e mágico, onde tudo é impecável. Assim, ao
decodificar a linguagem e as mensagens por trás de um anúncio, podemos entender melhor as
complexidades das relações sociais e os valores que são promovidos e reforçados pela
publicidade.
A empresa não é a única a vender e disseminar a ideia de um lugar descontraído,
colorido e estereotipado do Brasil. Leitão (2007) discorre sobre a exotização tropical de
marcas de moda brasileiras em Paris. Nesse processo, ocorre uma complexa interação entre a
moda brasileira e a busca por uma "autenticidade brasileira". Surge um fenômeno de
"exotismo à moda da casa", onde a moda é associada a elementos exóticos, os quais
estimulam a imaginação, oferecendo a quem o consome a possibilidade de experimentar,
mesmo que de forma imaginada, paisagens, povos e culturas de maneira idealizada.
A FARM, é uma marca carioca estabelecida em 1997 na Babilônia Feira Hype, a
qual é um evento que ocorre periodicamente na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de uma
feira de moda, arte, design e cultura alternativa, que reúne uma variedade de expositores
independentes, desde estilistas e designers de moda até artistas plásticos, artesãos e músicos
com o intuito de valorizar o trabalho de pequenos empreendedores e artistas locais. No
evento, a FARM emergiu como protagonista, uma vez que seu stand2 se destacou como o
mais cobiçado, e seis meses depois, a marca celebrou a quebra de recordes de vendas.3

2 "Stand" é uma estrutura temporária, geralmente montada em eventos, exposições, feiras ou convenções, com
o propósito de representar uma empresa, marca.
3 Essas informações foram obtidas a partir do site da FARM: farmrio.com.br
Impulsionada por esse sucesso, a FARM inaugurou sua primeira loja em 1999,
localizada no Posto 6, em Copacabana. Em 2001, a segunda loja foi aberta, situada no Fórum
de Ipanema. De acordo com a Revista Exame, hoje a empresa transcende fronteiras e se
tornou a principal marca de moda brasileira internacional. Análises ressaltam que outras
marcas brasileiras com presença global não alcançaram o mesmo patamar em termos de
volume e receita. A Farm Global projetava alcançar R$300 milhões em vendas no ano de
2021, enquanto a Farm Brasil estima atingir aproximadamente R$900 milhões. A marca
possui atualmente 70 lojas no Brasil, uma em Nova York, além de pontos de venda em
diversas cidades dos Estados Unidos, Canadá e Europa. A empresa, buscando expansão
global, tem direcionado investimentos significativos na abertura de novas lojas no exterior.
Juntamente com essas transformações, há também a consolidação da marca no país e o
desejo entre novos públicos de consumidoras.

O que é ser “Farmete”?

Ao mencionar “novas consumidoras” é necessário evidenciar que, de acordo com uma


estratégia de marca, que é da zona Sul, e que é impulsionada em vender a essência de um Rio
de Janeiro estereotipado, sempre evidenciou o recorte de interesse de consumidoras. A
aversão a dias nublados e a preferência por um estilo de vida ensolarado destacam-se na
estratégia da marca, que claramente busca promover não apenas produtos, mas um ideal de
consumo associado a uma imagem específica. A Farm, ao criar uma imagem direcionada a
um grupo específico, está, de certa forma, sugerindo um conjunto particular de gostos e
valores associados a esse estilo de vida, estabelecendo uma distinção simbólica. Barros e
Pereira, no artigo “Cariocas não gostam de dias nublados: comunicação, consumo e lifestyle
no discurso da FARM” apresentam como exemplo uma das palestras do Diretor de
Marketing da Marca:

A FARM procura manter a imagem de uma marca para meninas de vinte e poucos
anos, que morem em determinados bairros, que tenham um determinado estilo. As
mulheres mais velhas que compram lá buscam o ‘espírito jovem’ que a marca
propõe.

Essa ideia também está presente na comunicação do site:


[...]Em bom carioquês, a Farm é menos salto e mais pé na areia, menos maquiagem e
mais bronzeado. menos chapinha e mais cabelo secando ao vento depois de um
mergulho no mar. menos espelho e mais olho no olho [...]

No entanto, com o crescimento da marca há uma expansão da divulgação dos


produtos, portanto, maior conhecimento de meninas ou mulheres que não são típicas da
idealizada zona sul e que passam a consumir e fazer parte do grupo de “Farmetes”, mesmo
que não tenha sido o intuito inicial da marca. Essa mudança se apresenta a mim a partir de
análises exploratórias nas redes sociais sobre consumidoras da marca. No Instagram4,
especificamente, diversas contas são voltadas para a venda online das próprias vendedoras da
marca, como se fossem influenciadoras digitais5, anunciando descontos das roupas e
ensinando a “comprar FARM mais barato”, além de influenciadoras digitais também
cumprirem esse papel. Portanto, na rede social há presença de contas, uma conta de usuário
na plataforma de mídia social, permite aos usuários compartilhar fotos, vídeos e outros
conteúdos, além de interagir com outros usuários, voltadas para a venda de roupas novas,
bem como as vestimentas utilizadas, como uma espécie de brechós online, além de vendas de
peças com estampas que remetem a marca e são anunciadas em publicação feita por imagens
pela plataforma de mídia social acompanhada de um texto: “para as que amam a FARM”.
Um reels,o qual é um recurso da plataforma que permite aos usuários criar e compartilhar
vídeos curtos, com duração de até 60 segundos, especificamente chama minha atenção, nele
uma mulher relata sobre o fato de “Ser pobre e gostar de FARM”, sobre como ao se “deparar
com roupas e objetos da marca é criada uma necessidade de compra”, o que ela relata, de
certa forma, como um vício. O que, possivelmente, apresenta um novo cenário de “Meninas
da Farm” e revela um cenário com dinâmicas internas repleta de nuances, mais complexo do
que foi planejado inicialmente pela marca. Abaixo seguem algumas das imagens 6 capturadas
pelas análises feitas pela rede social.

4 O Instagram é uma popular plataforma de mídia social e compartilhamento de fotos e vídeos.


5 Os influenciadores digitais são conhecidos por criar conteúdo autêntico em áreas específicas, como moda,
beleza entre outros. Eles compartilham suas experiências, recomendações e até mesmo promovem produtos e
serviços de marcas em suas postagens.
6 A primeira imagem corresponde ao reels mencionado, a imagem da influenciadora digital foi cortada ao meio
com intuito de preservar sua imagem; a segunda foto é sobre propagandas que aparecem sobre lojas que são
“parecidas” com a marca; e, por último, a postagem de uma das vendedoras da loja em que aborda as
consumidoras com a promessa de compras mais baratas.
Arnould e Thompson (2005) elaboram uma perspectiva contrária à ideia de que os
consumidores simplesmente aceitam passivamente as mensagens e imagens publicitárias. Em
vez de concordar com o poder do marketing, os consumidores se apropriam das mensagens
para seus próprios propósitos. Essa nova abordagem conceitua os consumidores como
agentes interpretativos, em oposição à visão de meros receptores passivos. Nesse contexto, as
consumidoras realizam uma espécie de "bricolagem" ao reunir elementos culturais,
experiências pessoais, e influências diversas para construir significados personalizados em
torno dos produtos e da marca.
Diante desse fenômeno, é necessário entender como o grupo de consumidoras da
Farm se apresenta em sua diversidade: qual é a percepção e comportamento entre as
“Farmetes” ideais e as “Farmetes” que não foram idealizadas pela marca? Bem como as
“Farmetes” idealizadas reagem a transformação de público que consome a marca. É crucial
entender as mudanças no processo de consumo da marca. Agora, cabe discutir como a
metodologia será desenvolvida para que corresponda às necessidades e esteja de acordo com
especificidades do objeto de pesquisa.

Construção de Metodologia

Para discutir sobre os métodos que utilizarei, é necessário, primeiro, discutir sobre o
que é o’ campo’. Autores como Gupta e Ferguson (1997) contribuíram significativamente
para esse debate, ressaltando a importância que o trabalho de campo tem na antropologia,
pois o conhecimento da disciplina é em grande parte “baseado” na experiência a partir deste.
Assim, a diferença fundamental da matéria não é apenas a expertise na compreensão da
diversidade, mas também a metodologia particular para descobrir e entender essa diversidade.
O trabalho de campo, além de ser uma técnica de pesquisa, torna-se a "experiência
constituinte básica" que contribui para definir a antropologia como disciplina. No entanto,
deve haver uma reflexão em relação à adequação dos métodos etnográficos tradicionais em
um mundo globalizado com constantes mudanças, uma vez que o método foi desenvolvido
para estudar sociedades em pequena escala e os interesses de pesquisa, assim como a
pesquisa em questão, passam a não ser os mesmos interesses de pesquisa da antropologia
clássica.
A relação intrínseca entre globalização e antropologia não é exclusiva da era
contemporânea. A antropologia, se desenvolveu, inclusive, a partir da expansão colonial do
século XIX e, o interesse pelos povos primitivos marcou seu surgimento. No entanto, mesmo
que a disciplina sempre tenha lidado com aspectos da globalização, a consolidação dessa
dinamicidade parece não ser refletida por pressupostos estabelecidos, como ideais do que é
considerado o fazer antropológico segundo a antropologia clássica, que persistem nos dias
atuais. A clássica imagem malinowskiana do "etnógrafo solitário, homem branco, vivendo
entre os nativos" é mencionado segundo Gupta e Ferguson como um arquétipo que ainda
influencia a disciplina, uma vez que a partir dessa imagem criou-se uma hierarquização do
que é o "campo", onde estudos em contextos considerados “exóticos” são valorizados mais
do que aqueles próximos de "casa".
O texto, então, sugere que os métodos desenvolvidos para estudar sociedades em
pequena escala precisam ser ajustados para enfrentar os desafios das complexidades
contemporâneas. Fazer o 'campo' exige desvincular-se de pressupostos tradicionais,
considerando contextos específicos ao abordar fenômenos transcendentais com uma
abordagem mais flexível e contextualizada. O modelo tradicional de cultura, baseado na
separação entre sociedades, enfrenta dificuldades diante da complexidade e interconexão
crescente do mundo contemporâneo, marcado por intensos fluxos transnacionais de
informações, pessoas e práticas culturais, o qual é disseminado pelo desenvolvimento das
tecnologias de comunicação e informação, especialmente a internet, o que demonstra a
urgência de repensar o 'campo' na antropologia.

Impactos sobre a Dinamicidade do Consumo

Diante desse cenário, questiona-se o binômio etnografia/local, e a partir da análise


sobre a pesquisa que será desenvolvida proponho uma abordagem mais ampla para lidar com
os complexos domínios envolvendo os circuitos do consumo. O desafio é construir um
'campo' que reflita as nuances dessa realidade, alinhando-se aos aparatos teóricos e ao
contexto específico da pesquisa. O fenômeno da globalização impacta diretamente as práticas
de consumo, desencadeando uma série de transformações notáveis. A rápida disseminação de
informações, facilitada pela internet e pelas tecnologias de comunicação, expõe os
consumidores a uma variedade sem precedentes de produtos, estilos de vida e ideias.
A evolução da indústria culminou na ascensão do fenômeno conhecido como fast
fashion (CIETTA, 2011). Essa mudança permitiu que as tendências originárias de
prestigiadas passarelas globais, como Paris, Milão, Nova Iorque e Londres, chegassem
rapidamente ao público em questão de semanas. Esse processo representou uma significativa
alteração em relação à demora anterior, quando as informações sobre moda eram
disseminadas principalmente por meio de revistas especializadas. A rápida adesão da
sociedade a esse modelo de negócios, impulsionada pela globalização, trouxe consigo uma
transformação radical nos hábitos de consumo. Diante desse panorama, torna-se crucial
estudar o grupo estudado levando em consideração os espaços que essas consumidoras
frequentam e acessam. Essa abordagem busca explorar a complexidade dos circuitos de
informação de consumo, de modo que se valerá de estudos que permeiam espaços físicos,
como espaço de compras, locais de entrevista e análises em espaços virtuais como postagens
em redes sociais, onde contas de Instagram, grupos de WhatsApp, bem como análise de
postagens de consumidoras nestas redes sociais, o que já tem sido feito na pesquisa. A partir
destas análises, de espaços físicos e virtuais frequentados pelo grupo que se terá maior
entendimento da dinâmica interna.
Portanto, assim como Gupta e Ferguson elaboram, o campo de pesquisa em
antropologia não deve ser entendido apenas como um local físico onde os pesquisadores
estabelecem relações com as pessoas que estão sendo estudadas, comumente chamadas de
"nativos". Em vez disso, o campo é concebido como um espaço aberto, não necessariamente
geográfico, mas sim um domínio de interação e observação. A expressão "transparência
enganadora" sugere que a aparência clara e direta do campo pode mascarar a complexidade
subjacente dos processos envolvidos na sua construção.
Pierre Bourdieu (1999) desenvolve uma discussão crucial acerca da necessidade de
uma construção metodológica robusta para atender de maneira mais eficaz aos objetivos de
pesquisa. O autor destaca a importância da reflexão metodológica, considerando as condições
e limitações das técnicas, para avaliar a validade e adequação dessas técnicas em relação ao
objeto de estudo e à teoria que o embasa.
Além disso, ele ressalta que a teoria desempenha um papel fundamental na
interpretação dos fenômenos observados, pois organiza sistematicamente conceitos,
princípios e relações de forma lógica. Essa estrutura teórica fornece um arcabouço conceitual
que permite uma compreensão mais profunda e abstrata dos fenômenos, transcendendo os
aspectos empíricos isolados. A presença de uma teoria robusta também permite a ruptura com
paradigmas antigos, a partir da construção de novos entendimentos. Assim, a teoria não é
estática; ela é reformulada conforme novas descobertas são incorporadas, desafiando e
expandindo constantemente o conhecimento existente.

Essas revisões são frequentemente motivadas pela consideração do contexto cultural e


social nas pesquisas. A referência a análise das situações enfrentadas pelos grupos estudados
são fundamentais para estudos aprofundados. Um exemplo notável é a abordagem de Pierre
Bourdieu (1970), que conduziu uma análise da sociedade francesa no século XX. Sua
pesquisa meticulosa destacou as maneiras pelas quais as classes sociais se distinguem umas
das outras por meio de suas práticas culturais, incluindo o consumo. Bourdieu observou como
a distinção social era estabelecida com base em gostos, estilos de vida e urgências temporais
de acordo com a trajetória social dos indivíduos. Esse enfoque ofereceu análises valiosas para
estudos sobre consumo, assim como foi apontado acima.

No entanto, ao conduzir minha pesquisa, é essencial considerar uma variedade de


questões. Em primeiro lugar, é crucial examinar a ideia de democratização na moda,
explorando como as tendências e os padrões de consumo passam a ser declarados como
“acessíveis”. É importante contextualizar as mudanças temporais e as transformações nas
formas de distinção social, considerando como esses aspectos impactam os padrões de
consumo. Por fim, deve-se levar em conta o contexto brasileiro, analisando como as
dinâmicas culturais e sociais específicas do país influenciam os comportamentos de consumo
e as práticas relacionadas à moda nos comportamentos de consumo.

Bourdieu, na obra “O ofício do Sociólogo”, enfatiza que a compreensão dos


fenômenos sociais não são simplesmente dados prontos, mas são moldados pela abordagem
do pesquisador. No contexto do objeto em questão, é essencial que a teoria não se limite a
uma mera submissão aos fatos, mas sim participe ativamente de uma abordagem reflexiva
dos conceitos teóricos e na interpretação dos dados coletados. Isso se justifica pelo
entendimento de que os discursos coletados não devem ser encarados como explicações
objetivas, mas sim como partes do comportamento humano que demandam compreensão.
Indivíduos nem sempre compreendem completamente as razões subjacentes ao seu
comportamento. Assim, ao abordar entrevistas e análises de postagens em redes sociais, nas
quais tenho me dedicado, é imperativo fundamentar-me em teorias. Isto assegura que os
dados sejam construídos de modo a evitar a reprodução de preconceitos ou interpretações
simplistas do senso comum do grupo estudado. A abordagem deve ser antropológica,
reconhecendo que os dados, por si só, não têm o poder de comunicar de forma autônoma,
necessitando de uma lente teórica para uma análise mais aprofundada.

Essa crítica pode ser relacionada à ideia de que, ao analisar diferentes "culturas"
dentro de uma mesma sociedade estratificada, é crucial evitar a projeção de valores ou
julgamentos externos. Em vez disso, busca-se compreender cada uma das práticas culturais
dentro de seu próprio contexto social, considerando as relações de poder e dinâmicas internas
de cada grupo. Isso significa que, ao estudar o grupo de consumidoras e sabendo sobre sua
diversificação, é importante compreender as nuances por meio das dinâmicas internas que
permeiam o grupo, o que pode envolver a investigação das influências sociais, diferenças e
semelhanças de comportamento e de percepções das pessoas que compõem o grupo, bem
como investigar as relações de poder presentes.

Outra contribuição significativa do autor surge quando ele enfatiza que a criação do
objeto de estudo, sem ignorar preconcepções, é inevitável e requer uma ruptura com o
realismo ingênuo. Portanto, o desenvolvimento do conhecimento antropológico demanda
uma abordagem cuidadosa e consciente. Pensando sobre tal aspecto, meu interesse pela
pesquisa se deu de acordo com conhecimento prévio sobre a marca a partir da visualização da
divulgação em redes sociais. Admiro estéticamente as peças da FARM, mas nunca consumi
ou tive acesso aos produtos da marca devido aos preços que são considerados elevados,
segundo minha concepção. A partir de uma análise sobre o preço de algumas das peças 7 da
coleção atual da marca, por exemplo, o preço de um vestido longo varia de R$ 390,00 à R$
1.500,00; enquanto blusas variam de R$ 278,00 à R$ 750,00; sapatos e sandálias de R$
265,00 à R$ 818,00. Para mim, pensando no contexto do país em situação de crise financeira,

7Segundo informações do site a marca vende: vestimentas femininas como:saias, shorts, vestidos, conjuntos,
macacões, camisas, bodys,calças, sobreposição, kimonos, casacos, peças de carnaval, praia e roupas íntimas.
Entre acessórios vende: garrafas, carteiras, calçados, bolsas, capas de laptop, fones de ouvido e acessórios de
decoração para casa.
e com inflação alta o preço da marca conversaria mais com o planejamento financeiro de
pessoas mais privilegiadas economicamente, o que conversa talvez com a ideia da
consumidora ideal ser possivelmente a garota carioca da zona sul; no entanto, é uma visão
simplista considerar tal pressuposto, uma vez que a vida social é composta por
complexidades.

Vale ressaltar que a pesquisa desenvolvida será pensada conforme o contexto do


objeto: uma marca que criou um senso de pertencimento entre as consumidoras por meio de
divulgação de um estilo de vida, comunicação midiática e interação nas redes sociais. Esse
modo de interação só pode se desenvolver devido à sociabilidade virtual criada pelo
ciberespaço, o qual ganha uma centralidade, modifica relações socioculturais nas quais
surgem subjetividades, agências e habitus (FREITAS; GOMES, 2015. Assim, pretendo
realizar o ‘campo’ por meio de entrevistas, as pessoas com as quais conversarei serão
acionadas através do contato que tenho com algumas das consumidoras da marca em um
grupo de WhatsApp, o grupo é administrado por uma vendedora da marca que divulga
descontos de peças e acessórios todos os dias por meio de um Código do Vendedor, o que
significa que a vendedora compartilha um código exclusivo com suas clientes para que elas
possam receber descontos em suas compras no site da Farm. Outra forma de entrar em
contato com o grupo é através do Instagram, onde a presença de consumidoras se faz
presente, e onde já tenho feito análises que continuarão a fazer parte do escopo da pesquisa
(MARINS, 2020). Além da observação dos percursos online e acionamento por meio de
contato por redes sociais, pretendo fazer um acompanhamento junto das consumidoras em
compras (MILLER, 1998), isto para entender os significados atribuídos aos produtos e às
práticas de consumo. Em geral, pretendo entender quais são as percepções e comportamento
das consumidoras ideais da zona sul e quais são das “novas consumidoras”sobre a marca?
Bem como entender a partir de que momento as consumidoras que não são da zona sul
passam a vislumbrar as compras na marca? Pretendo fazer uma observação “de perto e de
dentro” (MAGNAMI, 2002) como uma estratégia para identificar as práticas de consumo e
uma observação mais próxima das interações dos atores sociais em seus espaços de
circulação específicos.

Comparação de um Grupo Diverso


A ideia central fundamentada nos princípios metodológicos a serem empregados é
que o comportamento social não pode ser compreendido de forma isolada, mas deve ser
analisado considerando-se o contexto mais amplo dos recursos disponíveis e da posição
social do indivíduo. As respostas sociais são influenciadas e moldadas por diversos fatores,
resultando em uma ampla variedade de comportamentos. Nesse sentido, o método
comparativo, como exemplificado na obra de Barth (2000) é aplicado. Em seu trabalho de
campo entre os Baktaman, o autor destaca a importância de analisar a diversidade dentro de
contextos específicos buscando entender nuances e variações do grupo estudado. Ele realiza
comparações "internas" para entender melhor as dinâmicas da comunidade, enquanto também
realiza análises "externas", que segundo ele não foram tão profundas quanto a primeira,
investigando os rituais de outras comunidades locais que têm contato com os Baktaman.
Embora seu foco principal seja na análise do grupo Baktaman, ele reconhece a importância
de examinar também rituais de outras comunidades para entender as particularidades dos
Baktaman.

Ele enfatiza a dinamicidade e interconectividade dos fenômenos sociais,


argumentando que a complexidade dos fenômenos torna difícil distinguir análises internas de
comparações transculturais. Ou seja, o autor enfatiza sobre ser necessário deixar a ideia de
que sociedades e culturas são reificadas. Diferente do autor que compara diferentes
comunidades, farei uma análise a partir da comparação de grupos sociais de pessoas que
passam a fazer parte de um mesmo grupo de consumidoras: as “Farmetes”. No entanto, a
forma com que a comparação é atribuída nas análises de Barth é que me inspiram, quero
fazer análises antropológicas pensando o consumo como um aspecto da cultura, que passa
por alterações e se dá de diversas formas tendo como premissa a dinamicidade das relações
sociais e culturais de contextos específicos.

Outra contribuição valiosa no texto é quando o pesquisador relata sobre a evolução do


foco de pesquisa ao realizar trabalho de campo em Bali em que ele refletiu sobre a ontologia
dos fenômenos estudados diante da diversidade observada. Assim, ele dá ênfase a
importância de não apenas descrever a diversidade, mas também compreender os processos
subjacentes que a geram. Ele destaca em suas análises como percebeu a influência dos
processos de reprodução e fluxo do conhecimento na moldagem da diversidade cultural. Esse
entendimento pode ser aplicado à minha pesquisa, uma vez que a abordagem comparativa
não apenas descreve as diferenças superficiais entre os grupos das consumidoras
contrapondo-as como as consumidoras tradicionais ou da zona sul e consumidoras recentes
ou que não são da zona sul, mas busco entender os processos subjacentes a essas variações,
considerando como essas pessoas empregam suas percepções e escolhas de consumo. O
autor reconhece e explora a diversidade cultural em vez de tentar simplificá-la, o que é uma
contribuição significativa para os estudos antropológicos. Essa abordagem permite uma
compreensão mais profunda das complexidades culturais e sociais em jogo, indo além de uma
análise comparativa convencional.

Barth não se limitou a descrever as diferenças entre os grupos estudados, mas também
se dedicou a compreender como essas diferenças surgiram e se desenvolveram ao longo do
tempo. Essa abordagem é fundamental para minha pesquisa, pois pretendo analisar a
ascensão da marca Farm desde sua origem em uma feira de moda até se tornar uma das
marcas de roupas femininas mais populares no Brasil. Durante esse percurso, sabendo que
este não é meu foco principal e que devido ao tempo estabelecido de pesquisa não farei
análises profundas sobre tais aspectos, contudo é crucial entender se a estratégia inicial da
marca de se dirigir exclusivamente à garota da zona sul era apenas uma idealização ou se
realmente teve início dessa forma. Além disso, é importante investigar a partir de qual
momento a marca começou a ser percebida por outros grupos sociais e como isso influenciou
sua imagem e posicionamento no mercado.

Em concordância com alguns dos aspectos mencionados ao longo do texto,


Geertz(1998) ao abordar sobre o objeto de sua análise propõe discussões sobre método. O
autor inicia o texto destacando a mudança de foco na antropologia, que anteriormente se
dedicava ao estudo de sociedades tradicionais, mas que antropólogos começam a repensar
suas abordagens metodológicas e conceituais para além dos limites tradicionais, isto porque
as sociedade antigas passam a interagir com sociedades modernas. Nesse percurso, o autor
coloca que estudos para demarcar quais diferenças existiam entre essas sociedades, para além
da ideia do primitivismo que vai sendo deixada de lado.

Nesse contexto, Geertz sugere que a chave para entender as diferenças entre essas
sociedades reside nos sistemas de pensamento presentes nas sociedades modernas. Ele busca
compreender essa diferença reconhecendo a complexidade e profundidade em ambas as
expressões culturais, propondo uma análise mais abrangente sobre como diferentes culturas
organizam e estruturam seus aspectos culturais, com ênfase no papel fundamental do senso
comum nesse processo. Sob essa perspectiva, o senso comum é considerado uma dimensão
crucial para entender as nuances culturais, abrangendo um vasto território de crenças
influenciadas pela cultura e historicamente construídas ao longo do tempo. Ao examinar
várias culturas simultaneamente a partir de análises de questões específicas, o pesquisador
deve identificar elementos estilísticos distintivos do senso comum transcultural. Esses
elementos se manifestam através de características como praticidade, leveza e acessibilidade,
variando significativamente de lugar para lugar e de período para período.

Dessa forma, mesmo que Geertz esteja olhando para outro objeto de pesquisa, ele traz
reflexões necessárias para se pensar como realizar metodologicamente uma pesquisa.O
consumo faz parte de uma prática cultural e se manifesta de forma diferente entre diferentes
contextos sociais, assim como Geertz classifica o senso comum. Devido ao fato destes
aspectos da cultura serem construídos a partir da história e contextos diferentes, é
interessante a partir do método comparativo, investigar como se manifesta entre diferentes
grupos. Contudo, ao estudar diferentes dinâmicas, é necessário traçar elementos estilísticos
que compõem tal aspecto cultural para identificá-lo melhor. No caso da pesquisa que
desenvolverei, o consumo se dá de forma diferente entre um grupo que não é homogêneo;
portanto, deve-se compreender quais são os aspectos que compõem alguns padrões dentro de
uma diversidade de nuances. É importante ressaltar que diferente da abordagem de Geertz, a
qual é realizada por meio da comparação entre diferentes locais, farei essa distinção entre
diferentes pessoas de diferentes grupos sociais que passam a compor um grupo em comum,
as “Meninas da Farm”.

Conclusão

Em suma, este artigo oferece uma contribuição significativa para uma compreensão
mais aprofundada e contextualizada do fenômeno do consumo. Destaca-se a importância de
considerar a diversidade cultural e as dinâmicas sociais subjacentes que influenciam as
práticas de consumo em diferentes contextos de grupos sociais que passam a fazer parte de
uma comunidade de consumidoras. Ademais, é discutido sobre a necessidade de desenvolver
metodologias de pesquisa que atendam aos objetivos e especificidades do campo de estudo.
Pensando no trabalho em questão, isto implica em investigar os circuitos percorridos pelas
consumidoras, tanto no mundo físico quanto no virtual, dada a relevância desses dois
aspectos para o grupo, bem como investigação das nuances de comportamento de consumo a
partir de análises comparativas que capturem a complexidade e a riqueza das experiências
vivenciadas pelo grupo em estudo, neste caso, as "Farmetes".
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