Você está na página 1de 11

CAPfTULO IV

O FATO VALORIZADO:
CELEBRAÇÃO E PRÁXIS

A festa tem sempre seu motivo. Motivo tirado da vida, da


práxis. Assim o primeiro elemento da festa, o fato valorizado,
abre a uma compreensão integrada de festa e práxis, que es-
pelha a realidade do ser humano como "faber" e "ludens",
ser da práxis e ser da festa.

1. O SENTIDO DA FESTA

Hoje em dia, para falar do sentido da festa, é preciso con-


trapô-la ao trabalho. Essa contraposição, dando primazia total
ao trabalho e desprezando a festa, não foi sempre percebida
como atualmente. Tampouco é patrimônio de todas as cultu-
ras. Há culturas que privilegiam a festa. 1 Mas na civilização
do trabalho não é assim. Pelo contrário. Nela se considera
toda atividade festiva, lúdica, gratuita, como "preguiça". O
esquema ideológico fundamental é "trabalho/preguiça". Tudo
quanto não é trabalho, é preguiça. Por isso os índios e os
escravos africanos foram considerados preguiçosos pelo euro-
peu colonizador e escravista.
A ideologia do trabalho é tão forte que chega a englobar
no trabalho até o esporte, a arte e a festa. O esporte tomou-
se objeto de consumo para as multidões. Produzi-lo é traba-
lhar. O jogador de futebol profissional "trabal•ha", quando
1. Um bom exemplo disso nos dá Pedro de Velasco. La flesta y el trabajo. La
oposición entre conquistadores y conquistados. Em Christus (México) 47 (1982), n.
557, 25-33. Estudando e cultura Rarámuri ou Tarahumar, no México, o autor
mostra como essa cultura está centrada na festa. Tradicionalmente o colonizador
considerou preguiçoso esse povo; na realidade eles trabalham - e muito - mas
trabalham para poder festejar!

50
TAOOMA, francisco. Sacramentos, práxiS e ta. Para uma
tebtogfi"i mtin<hamericana dos saaament(}S. 4. ed,
P1trópofls: Vozes, 1998. 50 60.
joga. Também a produção artrstica tornou-se trabalho. E as
festas igualmente. Correspondentemente essas atividades são
analisadas como "produção de bens simbólicos", destinados ao
consumo. A civilização do trabalho destruiu a festa, transfor-
mando-a em "trabalho". Daí a perda do sentido do simbóli-
co, do sacramental, do festivo, do gratuito. 2
Ao caracterizar a festa em relação ao trabalho, é preciso
ter consciência desse condicionamento ideológico em que se
labora. Daí a necessidade de justificar a festa frente ao mundo
do trabalho. Não é que tenha sido sempre assim e deva ser
sempre assim. l! uma necessidade epocal, da mesma forma
que a caracterização da fé como práxi-s é epocal. Na consci-
ência dessa limitação, procura-se agora o sentido da festa.
A festa supõe que seus participantes vivem num chão co-
mum de valores reconhecidos e crêem importante dedicar tem
pos de convivência, livres de toda urgência, para expressar a
alegria que encontram nesses valores. A fosta é assim um
distanciamento do dia-a--dia que permite olhar o conjunto (e
com isto o sentido do cotidiano). Ê uma vivência de totali-
dade, pois expressa dimensões abrangentes da experiência e
da esperança humana: aspirações, temores, tensões, conflitos,
vitórias, utopias. Desta forma a festa tematiza a pessoa, sua
existência, sua ação, sua práxis. Representa a vida e assim
permite que seja assumida; mas ao mesmo tempo a relati-
viza e assim retira da vida seu caráter de destino trágico e
fatal para permitir que se considere e viva como história de
liberdade e libertação. Interrompe a rotina e monotonia da
vida e contrasta com o ritmo diário da existência. Significa
que o mal pode ser superado - e o próprio momento da
festa é disso amostra. A festa não só significa pausa no tra-
balho, ela está em alternância com o trabalho diário, que
não é capaz de assumir nem de expressar tudo o que a pessoa
humana vive, e menos ainda suas aspirações e ideai'S. Daí a
necessidade de festejar.
A festa é um "perder tempo" e nisso se opõe ao trabalho.
Na festa o homem não rende, não produz. Ela pertence ao
2. Cf. José Comblin. O tempo da ação: ensaio sobre o Espírito e a história.
Petrópolis, Ed. Vozes, 1982, 223-239; especialmente 232-234.

51
domínio do inútil, do não-funcional e, portanto, do estético
e do simbólico. Ela é encantamento, expressão de outra al-
ternativa de vida que não o dia-a-dia cinzentó, antecipação
de um futuro sem o peso e a preocupação do presente, ne-
gação das cargas que sobrecarregam nossos ombros. Negação
de que elas sejam definitivas, preponderantes. Festa é espe-
rança.
Justamente esse contraste com o trabalho mostra a impor-
tância da festa. O trabalho e a práxis têm em vista outra
coisa que não eles próprios: têm em vista o mundo novo a
ser criado. A festa é antecipação desse mundo renovado. Por
isso mesmo ela tem fim em si mesma. Quem pensasse estar
perdendo tempo com a festa, teria perdido - isso sim -
algo de essencial da vida humana: o sentido da gratuidade.
A festa faz dar--se conta do papel essencial que o "inútil" tem
na vida do homem, para que seja plenamente humana. O tra-
balho é produção, é conduzir algo para a frente. A festa, ao
contrário, não é uma atividade produtiva: é uma parada. Não
se "fabrica" uma boa festa. Ela acontece. O ápice da festa
não é programável, pode ser quando muito invocado, espe-
rado, aguardado. Não depende dos preparativos. Brota quan-
do menos se espera. Os preparativos podem ajudar a que
aconteça, mas não o causam. O ápice da festa é gratuito. Jus-
tamente por isso a festa tem algo a ver com o mistério da
1

vida que o ser humano não pode subjugar. B o oposto da


magia. Por esta, ,a pessoa desejaria dominar o desconhecido;
na festa o mistério da vida emerge inesperadamente, gratui-
tamente. Por ,sua gratuidade, a festa faz descobrir a gratui-
dade da vida humana, a gratuidade da práxis histórica. Dela
emerge a vida como mistério e comunicação do Mistério e
com o Mistério. Não em vão a festa wmpre esteve ligada à
religião. A festa é expressão de gratuidade e faz descobrir que
a própria práxis é graça pela mediação do outro que a pro-
voca.
A alternância entre festa e trabalho é também expressão da
historicidade humana. O distanciamento do dia-a-dia que se dá
na festa permite ver melhor a continuidade e o sentido da
história e da práxis histórica. A expressão isignificativa acen-

52
tua a vIVencia do presente, sem pensar que amanhã será pre-
ciso levantar cedo para trabalhar. A valorização do aconteci-
mento liga a pessoa ao passado, sob a forma de memória,
ou/e ao futuro, sob a fonna de esperança. Assim o ser his-
tórico do homem (ou seja: sua práxis como expressão mais
contundente de sua historicidade) é o tema da festa. E ao
mesmo tempo a estrutura de gratuidade, própria da festa, pro-
clama que a pessoa humana é algo mais do que o que ela
produz, mais do que a história que ela consegue ou não di-
rigir: vale por si mesma, vale também quando não produz.
E também isso significa historicidade: a tarefa histórica é
dom, não é algo que a pessoa se dê, ela recebe - através
do rosto do outro - , recebe-o do desafio que lhe apresenta
a situação de seus irmãos e ·sua.
Mas a festa não celebra em geral a vida como um todo, e
sim o todo da vida condensado num momento decisivo, numa
encruzilhada. Há momentos desses que são universalmente re-
conhecidos e festejados como tais, em praticamente todas as
culturas. São momentos de transição, de "passagem": o nas-
cimento, a morte, a adolescência, o amor conjugal que se
inaugura, a nomeação de um chefe do povo, as decisões im-
portantes, os acasos felizes . . .
Esses momentos densos da vida contêm sempre tensões.
Festejá-los não é ocultar as tensões, mas ao contrário é um
meio de assumi-las e superá-las. A festa ajuda a enfrentar as
dificuldades da situação nova, surgida do acontecimento que
se festeja. Uma cultura que desaprendeu festejar, precisará
m,sses momentos recorrer aos técnicos, como os psicólogos e
administradores, para que ajudem a abrandar as tensões.
Quando ainda se sabe festar, a comemoração tem esse efeito
de solver as tensões. A festa de casamento, bem celebrada,
contribui em todas as culturas para que os pais trabalhem
interiormente a separação dos filhos e para que o novel casal
enfrente a situação nova. A passeata comemorativa da vistó-
ria da greve, celebrando a união da classe, alivia as tensões
subseqüentes provindas, por exemplo, de uma avaliação, onde
se mostre que se poderia ter conseguido mais, se não se ti-
vessem cometido determinados erros estratégicos.

53
As tensões propnas a esses momentos nodais têm que aflo-
rar na festa que os celebra. Quando são camufladas, a festa
acaba perdendo seu sentido e sua profundidade. A festa só
reconforta, quando toca as contradições existentes nos indiví-
duos e nas comunidades. Mas evidentemente o modo de abor-
dar as tensões, próprio à festa, não é abrir as chagas doloro-
samente, sem anestesia, mas curá-las com a alegria e a es-
perança.
Se a festa aborda a,s tensões, é porque está intimamente li-
gada à práxis, que é feita de conflitos e tensões.

2. NÃO HA PRÁXIS SEM FESTA

Convencidos de serem criadores de ihistória, os humanos po-


deriam pensar que festejar é ócio e até mesmo ópio, e o que
importa é realizar na prática, produzir.
Nada mais errado. O perigo de uma "práxis" (que então
será entre aspas) sem festa consiste em que ela mata, leva a
nova escravidão, não é libertadora, atira ao desespero. Perde-.se
o sentido da práxis, porque se perdeu o sentido da gratuidade.
As lutas históricas são sérias, graves, pesadas. É preciso de
quando em quando interrompê-las pelo regozijo tranqüilo na
própria existência, pois a alegria de existir traz consigo a exi-
gência de que a vida seja vida e não morte, escravidão. Traz
a exigência de transformar uma realidade de morte. A práxis,
só, enlouquece, porque pouco a pouco o homem se vê pequeno
demais diante das tarefas. À práxis, só, é inerente uma "se-
riedade bestial". A festa, porém, como o riso tem o dom de
mediar entre a magnitude ingente das tarefas históricas e a
limitação das forças do agente. A práxis que quer transfor-
mar o mundo e, portanto, a ele se acha ligada, encontra rele-
vância no regozijo, na dança, no canto, no lúdico. Ê o que
faz da práxis algo gozoso.
De fato, os valores humanos (inclusive a transformação da
história), para serem humanos, devem sim ser realizados na
práxis, mas também devem ser perceptíveis no plano intersub-
jetivo da significação e da expressão, no plano da emotivi-

54
dade que se comunica. E isto só acontece quando se dá tempo
às expressões que oulminam na festa. Em outras palavras: o
tema da festa é o sentido da vida. Ou ainda: o tema da festa
é a espiritualidade da práxis histórica.
A práxis precisa do arranque da experiência e da esperan-
ça, para existir. B sua espiritualidade. "Só quem é capaz de
alegrar-se pode sentir dor por seu sofrimento e pelo dos
outros". 3 Só quem sabe rir, sabe de verdade chorar. Só quem
tem esperança, está capacitado para carregar o fardo de um
mundo a transformar. Porque alegria, riso, esperança - tudo
isso que aparece na festa - , são manifestações de liberdade.
E a proximidade da liberdade enfraquece as cadeias.
f: assim que da festa emerge, vem à tona o sentido da vida.
Ela é uma instância educativa, forma o horizonte interpreta-
tivo de quem dela participa, possibilita assimilar vivencial-
mente a espiritualidade da práxis. De fato, a experiência de
que a vida pode ter sentido não é algo espontâneo, natural,
quase biológico. Só se descobre como expressão de um signi-
ficado que as coisas e os acontecimentos adquirem na medida
em que a pessoa os vive e comunica à maneira humana. Ora,
isso acontece na convivência 'humana e os primeiros a expres-
sá-los são os poetas e os narradores (contadores de casos).
Foi assim em Israel, quando eram narrados nas festas os fatos
decisivos da história do povo. Foi assim na Grécia, onde os
aedos cantavam nas festas os feitos dos heróis. E em nossas
festas populares é a função do trovador ou do repentista. Sem
povo e sem festa, isto é, sem que se deixem de lado os inte-
resses e urgências de cada dia, não haveria poetas nem nar-
radores; sem poetas não se descobriria o sentido da vida. A
festa abre a possibilidade de viver num horizonte de sentido.
Em resumo: A fosta é essencial à práxis, porque nela se
elabora e se assimila vivencialmente a espiritualidade da prá-
xis. Nela se acolhe, afirma e celebra em regozijo as causas e
motivos que vão fazendo a vida possível, plena e livre. " A
festa é o lugar onde a vida se faz não só consciente (em seu
mais amplo sentido), mas também querida e saboreada, e onde
3. Jiirgen Moltmann, op. cit., nota 1 da introdução à II parte, 31.

55
tudo isso ise manifesta e se . 4 Sem festa, a prax1s se
deteriora em legalismo ou moralismo, em pretensão totalitária,
em nova escravidão. Por isso não há práxis sem festa. Mas
também sem aceitar sobre si a carga da transformação polí-
tica, econômica, social do mundo, a liberdade do canto, da
dança, do regozijo, da celebração, não mais é que gesto vazio.
Vale, pois, também o inverw: não há festa sem práxis.
A práxis é o "não" à sociedade que aí está e precisa ser
transformada. Os militantes correm o perigo de dizer com
tanta força esse "não" que não se escuta mais o "sim" que
ele contém: "sim" a uma vida digna, "sim" a um mundo sem
opressão, "sim" a uma sociedade simétrica. A festa tem jus-
tamente a função de mediar "sim" e "não", de mostrar que
só se pode denunciar o mal, porque já existe hoje, em germe,
o bem que se anuncia, porque se é capaz de antecipar o fu-
turo na alegria da festa.

3 . NÃO HA FESTA SEM PRÁXIS


Celebrar não significa, portanto, infantilismo, ingenuidade,
entUiSiasmo vazio. Festa não é superficialidade. Pelo contrário,
" a habilidade de celebrar descontraidamente é mais encontra-
diça entre as populações a quem não é estranho o sofrimento
nem a opressão". 5 A verdadeira celebração se dá não fugindo
da realidade de injustiça e opressão, mas reconhecendo-a e su-
perando-a na esperança. Festa não é frivolidade, mas manifes-
tação do mais profundo da vida.
Na festa se celebra a práxis. A celebração é uma releitura
da práxis, pela qual se revela o sentido do que se vive e do
que se espera. A festa revela o sentido do cotidiano, tira-lhe
a monotonia alienante, provoca à construção do futuro, revela
as utopias que fazem visíveis e modificáveis as realidades co-
tidianas. A festa não tem sentido sem o cotidiano. Por isso
meJSmo, não há festa verdadeira sem práxis.
A festa sem práxis seria na verdade "festa" entre aspas,
pseudofesta, antifesta. Antifesta, porque o sentido que nelas
4. Pedro de Velasco, art. cit., nota l da introdução à II parte, 34.
5. Harvey Cox, op. cit., nota I da introdução à l i parte, 29.

56
se tcmatiza é o sem-sentido de uma existência ou a ideologia,
o sentido qúe outros querem impingir à existência alheia. A
antifosta é alienada e alienante. Seu tema, em vez de ser a
pessoa humana e sua vida, é a destruição do humano, seja a
autodestruição, seja a destruição induzida pelos poderosos. E
nesse sentido a antifesta é essencialmente ideológica (no sen-
tido de ideologia dominante).
Talvez se possam classificar em três categorias as antifestas:
1) A "festa" como manifestação do vazio. Nela aparecem
despreocupação e falta de respeito. O vácuo na vida leva ao
desrespeito do próximo. A "festa" destina-se a esquecer-ise o
dia-a-dia para vencer o enfado por uma vida sem sentido. As
"festinhas" em que se consomem drogas para provocar "via-
gens" ao país maravilhoso dos sonhos, pertencem a este tipo.
Nessa categoria cabe ainda, para dar exemplo bíblico, a orgia
desenfreada descrita em Sb 2,1-20. Quando a "festa" é assim,
é sem esperança e ·sem graça.
2) A "festa" como afirmação de poder. Aqui o sentido da
vida é a opressão do outro. :É fazer história desrespeitando o
outro. Com relação ao passado a "festa" ditatorial quer glo-
rificar o que se alcançou; ao futuro, proclamar as metas de
poder. O ser humano é tema desse tipo de festa, enquanto
objeto que -serve aos poderosos e seus sonhos, enquanto objeto
através do qual os poderosos se auto-incensam. Ap 17 ilustra
esse tipo de antifesta. As inaugurações de obras faraônicas,
como Itaipu, exemplificam-no. Esquecem-se ali os milhares de
peS'soas que morreram e foram sepultadas vivas no cimento
armado da barragem. São acidentes de percurso, com os quais
se precisa contar. Esquece-se a depredação da natureza, a des-
truição da flora e da fauna, as terras férteis inundadas para
a produção de uma energia senão supérflua, em todo o caso
alcançável com menos perdas humanas e ecológicas. Festeja-
se o poder de construir a maior barragem do mundo, o único
lago artificial que se pode ver desde a lua, as realizações
da "revolução" de 64. Também as inaugurações de obras em
vésperas de eleições, com a presença dos governantes e seU's
protegidos, têm pelo menos algo desse tipo de "festa". Mas
nossas ditaduras latino-americanas nunca conseguiram promo-

57
ver com êxito pleno esse tipo de manifestações. Protótipo his-
tórico de tais "festas" eram as colossais manifestações de
massa na Alemanha de Hitler. Entre nós quem chegou mais
perto numa ocasião foi Galtieri, na Argentina, ao convocar
o apoio popular a sua política militar nas Malvinas. Mas aí
não era o puro tipo da antifesta: o povo apoiava uma causa
nacional; só secundária e indiretamente o projeto pessoal do
ditador.
3) A "festa"· como "circo", no sentido da expressão antiga
do Império Romano, quando, para acalmar o povo excitado
ou revoltado, ofereciam-'Se "pão e circo" à ,plebe: "pão" para
atenuar a fome; "circo" para distrair o espírito. Esse tipo de
"festa" desvia o povo de assumir a história, engambela, não
leva a nada, não desperta na consciência o sentido da vida,
não faz emergir uma espiritualidade para a práxis transfor-
madora. Antes afasta a atenção do povo da tarefa de trans-
formar a sociedade. 2Sm 16,15-23 menciona o espetáculo que
Absalão ofereceu ao povo de Jerusalém, acasalando-se com a'S
concubinas de Davi em pleno terraço do palácio. Enquanto o
povo se divertia com as façanhas do rapaz, esquecia de re-
voltar-se contra sua usurpação do trono. O filme "Pra frente
Brasil" mostra o futebol transformado em "circo": enquanto
o país estava sob a mais arbitrária repreissão de sua história,
todo o povo era atraído pela Copa do Mundo, como se o des-
tino do Brasil estivesse em jogo lá e não aqui.
Além disso é possível instrumentalizar uma festa popular,
espontânea, sem dono, festa dos dominados, diminuindo o es-
paço para o povo expressar-se ou reorientando sua expressão
ao gosto dos dominadores. É o que aconteceu ao carnaval,
quando se tornou interessante ao Poder e passou a constar
das programações turísticas da cidade. O povo não é mais o
dono da festa. Tem que festar da forma como possa atrair
mais público (preferentemente de fora e do estrangeiro) . E
não tem mais lugar nem para assistir ao desfile em arquiban-
cadas ou sambódromos só acessíveis a ·pessoas de alto poder
aquisitivo. 6
6. Cf. Jorge Cláudio Noel Ribeiro Júnior, op. cit., nota l da introdução à II
parte, 46-50, baseando-se nas pesquisas de José S. Leopoldi. Escola de Sa ba, ri·
tuul e sociedade. Petrópolis, Ed. Vozes, 1978. Roberto da Matta. Carnavais, ma-
landros e heróis. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1979.

58
Todas essas antifestas em seus diversos tipos são festas sem
alienadas e alienantes. Como são sem práxis não levam
a transformar o mundo, mas a conservar tudo como está, seja
porque de qualquer forma não tem sentido a vida, seja por
interesse de poder, seja por desviar a atenção dos verdadeiros
problemas. Vazias de práxis, as antifestas camuflam as tensões
existentes na realidade. São feitas para esquecê-las, mascará-
las ou dissimulá-las. Por isso mesmo são conservadoras, não
abrem para o futuro (nem mesmo o segundo tipo acima elen-
cado: nele o futuro é apenas o presente continuado; não há
nada de novo). As festas verdadeiras, legítimas festas, pelo
contrário, ofüam de frente as tensões, iluminam o presente a
partir do futuro, contestam o presente opressor e alienante,
são questionamento frente a uma realidade que se agüenta
mas não se pode nem se deve aceitar.
Vista dentro dessa perspectiva, a festa é algo sumamente
importante e sério, pois é afirmar a convicção de que a vida
vale a pena. Situa o trabalho no seu devido lugar: lugar su-
bordinado. Sugere que o trabalho, por mais rendoso que seja,
a práxis, por mais eficaz que seja, não é a meta final de vida.
A meta final é a realização do ser humano. Trabalho e práxis
estão a serviço dessa meta. A festa, sim, é um fim em si, por-
que antecipa e anuncia a meta final. 7 A perda da dimensão
festiva é assim perda das raízes do ser humano no passado e
da esperança de futuro, entorpecimento da sensibilidade psí-
quica e espiritual. A festa verdadeira é subversiva. Nasce da
práxis e remete à práxis, a ela retorna. "Antes da luta inten-
sa, a festa mobiliza o povo; durante a luta, a festa comemora
vitórias parciais e antecipa a Utopia; após o aceso da luta, a
festa revive a memória e aprofunda a Paz. O fim da luta é
a festa". 8 A articulação de festa e práxis, longe de descarac-
terizar a festa, é o que lhe permite ser verdadeira festa.
Entretanto, a festa pode perder a sã força subversiva e ser
domesticada pela civilização do trabalho e da práxis, assumin-
do a função de mero parêntese festivo que suspende tempo-
7. Teologicamente seria de recordar aqui a reflexão da Epístola aos Hebreus
sobre o sábado (cf. Hb 4). O sábado de que fala o AT (no caso o SI 95) evoca
o "sábado" do repouso em Deus na eternidade.
8. forge Cláudio Noel Ribeiro Júnior, op. cit., nota 1 da introdução à II par-
te, 77.

59
rariamente as leis mundo do trabalho e se torna válvula
- descarga - compensação frente à dureza do trabalho. A
festa permite então que a dominação continue, pois nos mo-
mentos em que poderia haver uma explosão social ou psico-
lógica, a festa pennite descarregar inocentemen e as agressões
acumuladas, aliviar as tensões e compensar as lacunas de uma
vida padronizada por momentos em que reina o imaginário e
o irreal.
Situada num mundo assimétrico, como o nosso, que valo-
riza o homem quantitativamente e mede a humanização pelo
acúmulo de bens, a festa concreta pode deturpar-se. Importa,
pois, vigiar para que ela não se torne instrumento da ideolo-
gia dominante. É preciso lançar sobre a festa a suspeita ideo-
lógica. Não pela curiosidade teórica de saber o que é viven-
ciado "exatamente" por alguém, quando a festeja, pois neste
caso a resposta é impossível, porque cerebrina e discursiva,
destruidora do essencial na festa. O juízo crítico sobre a festa
só poderá ser realizado, verificando todo o processo da festa.
Afirmar a relação mútua entre práxis e festa é negar a "festa
factual", punctiforme, e ressaltar a "festa-processo" que inclui
preparação, execução e efeitos. PoiiS, se é verdade que não
há práxis sem festa, vale também a inversa.
Aprofundando o significado do primeiro elemento da festa,
o fato valorizado, aflorou com mais força a conexão essencial
entre festa e práxis. Toda festa verdadeira requer que se tenha
algo a festejar. Quanto mais importante na vida é esse fato,
mais imprescindível é a festa. Os seguintes capítulos desta
II parte tratarão de aprofundar os outros dois elementos cons-
tiJJutivos da festa: a expressão significativa e a intercomunhão
-Solidária.

60

Você também pode gostar