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Ileio - Psicologia Na Europa
Ileio - Psicologia Na Europa
1.2. Uma das narrativas possíveis – três forças que marcam o desenvolvimento da
psicologia
Uma das narrativas possíveis descreve três forças que têm sido destacadas na história inicial da psicologia ocidental; são elas, a)
inauguração do laboratório de psicologia experimental em Leipzig em 1879; b) as duas Grandes Guerras; c) e as discriminações e
preconceitos (sobre mulheres, afro-americanos, judeus, ...).
a. O laboratório de Leipzig, como dissemos, representa, na história da psicologia, a possibilidade da concretização do estudo
controlado das sensações e perceções, garantindo o papel da psicologia no campo das ciências.
b. As Grandes Guerras deixam os efeitos dos traumas em muitas vidas, levando ao estudo das neuroses, e assistindo-se,
com Freud, à proposta de diferenciação entre a neurose tout court, e a neurose traumática, como é, por exemplo, a
originada pela Guerra; a diferenciação entre ambas justifica-se pela qualidade do trauma, sendo, segundo Freud,
estruturante a primeira, e não estruturante a neurose de guerra, pois os excessos vividos nos campos de batalha
dificilmente conseguem ser (re)elaborados pelo sujeito, repetindo-se nos sonhos, numa tentativa infrutífera de lidar com a
emoção excessivamente intensa associada à experiência dos campos de batalha. “A noção de neurose de guerra está
ligada ao conceito de trauma derivado da violência do outro”, e foi analisada por Freud e outros psicanalistas, como Ferenzi;
defendo Freud que esse trauma é diferente, dependendo de outros, mesmo que em todos eles tenda a existir um “ponto de
fixação traumático”.
Como referem vários historiadores, o impacto da Grande Guerra teve grande influência na convicção de Freud de que as
tendências destrutivas são tão significativas como as tendências sexuais para o comportamento dos sujeitos. Destacamos
aqui a batalha de La Lys, na Flandres em 2018, pela participação portuguesa; tendo essa sido uma das mais mortíferas
batalhas na nossa história militar; reportando-se mais de 7.000 baixas portuguesas, entre mortos, feridos e prisioneiros,
tendo sido homenageados no 100º aniversário da sua morte (i.e., em 2018) com um vitral numa igreja em Londres.
De destacar também o contributo do médico e pedagogo português – António Aurélio da Costa Ferreira (formado em 1905
na nossa Universidade de Coimbra), nos esforços de intervenção e recuperação dos traumas físicos e psicológicos dos
nossos combatentes na GG.
c. As discriminações, e preconceitos, referidas na obra de Shultz e Shultz, dizem respeito a diversos tipos de objeções
colocados a quem poderia tornar-se psicólogo nos Estados Unidos, tendo sido excluídos durante décadas os afro-
americanos, os judeus e as mulheres. E, embora o estudo da história sirva também para refletir acerca dos erros passados,
continuamos a assistir, no início deste novo século, a novas discriminações, de grupos étnicos, raciais, religiosos, entre
outros; parecendo recuar-se à posição de Platão quando escreveu “A medicina e a jurisprudência cuidarão apenas dos
cidadãos bem formados de corpo e alma, (...)” – posição perigosa pois qualquer um pode argumentar que poucos caberão
nessa categoria.
Questão de auto-avaliação
Justifique descrevendo sucintamente a influência das “três forças” referidas, que contribuem para o desenvolvimento da psicologia
na sua afirmação científica.
Questão de auto-avaliação
Justifique a importância dos estudos de psicofísica na psicologia inicial, referindo exemplos de trabalhos e métodos de psicofísica
utilizados para avaliar os limiares de sensação estudados.
Diversos campos de estudo surgem assim influenciados pelas tendências biológicas, e também alguns excessos especulativos serão
patentes, como por exemplo, os de Romanes (1848-1894), que aderindo à teoria evolucionista propôs-se avaliar capacidades mentais
nos animais de diversas espécies, publicando o livro Animal Intelligence, que apresentava detalhes do comportamento em espécies
diferentes, não obstante esses relatos serem antropomórficos, fantasistas e acríticos.
Os relatos dos excessos do antropomorfismo e das histórias narradas por Romanes foram criticados por outro naturalista britânico –
Loyd Morgan – que travou conhecimento com o evolucionista Thomas Huxley, um grande defensor da teoria de Darwin. Por influência de
Huxley, Morgan interessou-se pela zoologia e geologia, ficando conhecido pelos trabalhos de psicologia comparada.
Morgan é atualmente mais conhecido pela defesa da tese de que as explicações do comportamento animal devem ser “as mais simples
possíveis”; isto é devem ser parcimoniosas – “não devemos interpretar uma ação como resultado de uma faculdade psíquica superior se
ela puder ser interpretada como resultado do exercício de uma faculdade que se situa abaixo na escala psicológica”. O apelo às
explicações parcimoniosas é, ainda hoje, conhecido por “cânone de Lloyd Morgan”, ou “lei da parcimónia” – com efeito dever-se-á optar
pela explicação mais simples, antes de adotar uma mais complexa – com isto pretende-se evitar excessos dos naturalistas que se
tornavam demasiado antropomorfistas (procurando similitudes de recursos a processos mentais superiores em espécies “inferiores”),
Morgan apenas alertava assim para a necessidade de cautela metodológica.
É ainda nos anos de 1800, como sabemos, que em 1879 surge a criação do laboratório de psicologia experimental em Leipzig seguindo
os passos de Weber e de Fechner e tornando-se um símbolo da autonomização da psicologia (com casa própria).
Se Wundt (1832-1920), afirmara não serem possíveis estudos experimentais de processos mentais superiores, Ebbinghaus (1850-1909),
na mesma época, contrariou essa tese mostrando ser exequível estudos experimentais sobre a memória e aprendizagem, alargando
assim o leque de possibilidades experimentais nos estudos psicológicos.
Em França, na mesma época (1889), surge o primeiro laboratório de psicologia fisiológica, dirigido, sucessivamente por Binet, Piéron e
Fraisse. Embora o pendor dos estudos psicológicos do séc. XIX em França se centrasse mais na psicopatologia. Pinel (1745-1826), fora
o primeiro médico a tentar descrever e classificar perturbações mentais como a demência precoce ou a esquizofrenia, e foi inovador ao
defender cuidados compassivos aos doentes mentais, em lugar de os acorrentarem e violentarem; fica na história por ter iniciado uma
verdadeira revolução no tratamento dos alienados, ao substituir as correntes que os prendiam, dando-lhes liberdade de movimentos,
alimentação e ocupação com trabalhos vários. Pinel foi ainda pioneiro na compilação de histórias clínicas (como hoje as entendemos).
Charcot (1825-1893), destaca-se também em França com estudos psicopatológicos, e as suas demonstrações hipnóticas com
pacientes histéricas eram tão populares que se tornaram públicas. No hospital da Salpêtrière, – na época um grande hospital público no
qual se recebiam pobres com doenças do sistema nervoso, ou mentais – e que viria a tornar-se um dos maiores centros de neurologia –
o autor diferenciou diagnósticos vários (e.g., entre a gota e artrite reumatoide crónica) – mas destacou-se particularmente na
interpretação que fez da histeria como uma neurose que se manifesta em indivíduos predispostos por traumas físicos; recorrendo
Charcot em 1878 à hipnose no acompanhamento desses casos histéricos. Contribuiu também para o tratamento da histeria ao mostrar
que as pacientes podiam ser libertadas através da sugestão hipnótica, o que punha em dúvida a anterior abordagem exclusivamente
orgânica da psiquiatria. Essas observações de Charcot causaram grande impacto em Freud que foi a Paris, em 1885, para assistir às
aulas de Charcot, tendo ficado muito impressionado com a técnica hipnótica para tratar neuróticos. A clínica da Salpêtriére foi
considerada o “berço da neurologia mundial, a meca da neurologia europeia e palco do nascimento da neurologia científica” – sendo
pintado (por Brouillet) um quadro sobre uma das famosas lições de Charcot – mantendo-se assim a recordação dessas históricas lições.
Nesse final do séc. XIX, Breuer e Freud “atribuem à histeria o estatuto de doença psíquica com uma etiologia específica, em
contraposição à conceção neurológica da origem dessa neurose” (Castiel, Sibemberg, Firpo, & Silva (2012). Quer Freud (1856-1939)
como Breuer acreditavam que na origem da histeria havia uma experiência real traumática, sendo que a defesa do ego ocorreria pelo
esquecimento (i.e., por um recalcamento). Mas para Freud, ao contrário de Breuer, a natureza traumática será de cariz sexual; e o facto
dessas vivências ocorrerem antes da puberdade, i.e., numa fase de desenvolvimento na qual ainda não seria possível compreender
verdadeiramente o cariz sexual dessa ação, contribuiria para o recalcamento das lembranças. Sales (2012), sugere, com Laplanche e
Pontalis, e discursando sobre as questões da fantasia em Freud, que estas fantasias se situam na oposição entre o princípio do prazer
(que visa a satisfação pela ilusão) e o princípio da realidade (que corresponde às relações do sujeito no mundo, respeitando as suas
restrições).
Quase ao mesmo tempo em que Breuer praticava a talking cure (cura de conversão) com a sua paciente, começava o grande Charcot, em Paris
com as doentes histéricas da Sâlpetrière, as investigações de onde havia de surgir nova conceção da enfermidade. (...), (“segunda lição” in Livro
1 – Cinco lições de psicanálise. Contribuições à psicologia do amor).
Após as observações de Charcot a causa da neurose, até aí justificada por fatores orgânicos, mostra-se uma nova face, que traduz um
trauma psíquico que desencadeia afetos aflitivos, como angústia, vergonha, ou dor física, referiria Freud em 1893.
Na fantasia, dirá Freud, “o sujeito perpetua uma certa sensação de liberdade à qual teve que renunciar em função da realidade” (Sales,
p.323). Freud refere três tipos de fantasia, a observação da relação sexual entre os pais, a sedução por um adulto, e a ameaça de
castração. Para Freud essas fantasias típicas decorrem de uma ‘psicologia coletiva’ que não é difícil de aceitar, se tivermos em conta os
relatos frequentemente confirmados ao longo dos tempos sobre os abusos sexuais, desde a antiguidade à nossa contemporaneidade.
Em 1896 Freud envia um ensaio à Sociedade Psiquiátrica e Neurológica de Viena, no qual defende que a etiologia da histeria se encontra
em abusos/experiências de natureza sexual infantil. Freud relatará a Fliess que teve uma receção muito negativa, pois os seus pares não
aceitaram a causalidade psíquica sexual que Freud atribuíra à histeria.
Quanto à atribuição do significado do ato da sedução, esta só fará sentido real após a puberdade, i.e., quando o sujeito pode
compreender realmente o seu significado, e nessa altura, “suscita associações que remontam à lembrança da primeira cena, e é aí, que
se encontra o seu poder, pois a excitação sexual agora surpreende o eu exigindo que aquela lembrança seja recalcada.
Para Laplanche e Pontalis, a interpretação da cena de sedução terá efeitos diversos consoante o timing do sujeito, (i.e., “entre o cedo
demais e o tarde demais do evento”). Sabemos que Freud “abandonou” a teoria da sedução, justificando dificuldades em chegar à origem
do acontecimento patogénico inicial; e também, segundo alguns relatos, pela dificuldade em garantir-se a veracidade dos factos, bem
como a dificuldade em garantir com certezas, a origem do evento patogénico. Como refere Sales, Freud “redime” os adultos perversos
passando a afirmar que a cena da sedução não possui correspondência na realidade externa (...), mas que se trata de uma construção
fantástica, de uma “realidade psíquica” – porém, na nossa ótica, esta reelaboração torna-se bastante perigosa pois que permite
interpretações dúbias, e eventualmente refutar o acontecido, ou seja, penalizar a vítima pela recusa em aceitar a veracidade do seu relato.
(...) não há saber do sujeito ao qual se possa recorrer no que lhes diz respeito, não há testemunhas que possam atestar as impressões do
sujeito. Freud precisa utilizar aqui uma nova categoria conceitual: a fantasia. Esta está ligada à lembrança, à percepção de acontecimentos
passados reais, mas não é inteligência nem enunciação da lembrança (cit por Huot, 1887/1991, in Sales, 2002).
A obra de Freud implica conceitos distanciados da experiência empírica, o que permite aos seus críticos elaboração de objeções
variadas. No entanto, como refere Loureiro (2011), ele observa em si, e nos seus pacientes, esses mesmos processos psíquicos,
descrevendo-os com detalhes, por exemplo nos atos falhados, nos sonhos, nas lembranças da infância, nas variações de humor, ou nas
inibições intelectuais. A interpretação dos seus próprios sonhos – editados em 1900 – pretende evidenciar uma estrutura, e forma, de
parte do funcionamento psíquico. Na visão de Freud, o facto de ser judeu, e embora se considerasse agnóstico, essa origem terá
marcado a psicanálise.
“(...) é sobretudo pelo lugar de destaque no repertório afetivo de Freud que o judaísmo é considerado um ingrediente fundamental da psicanálise.
A educação judaica lhe proporcionou um sólido conhecimento da Bíblia como um todo (...) bem como a familiaridade com procedimentos e
técnicas de interpretação dos textos sagrados” (cit in Loureiro, 2011).
Quanto “à noção de neurose de guerra, ela está ligada ao conceito de trauma derivado da violência do outro”, admitindo Freud que esse
trauma é diferente de outros – embora em todos os casos tenda a existir um “ponto de fixação traumático”. As neuroses de guerra serão
traumáticas pois são resultado de um perigo real mortal; as outras neuroses são potencialmente traumáticas pois derivam também de
ameaças externas ou internas ao sujeito. Como o que se verificou na II G.G., ao evacuar as crianças das cidades inglesas para o campo
para as proteger, pois que se sabia as cidades viriam a ser bombardeadas. Ora essa evacuação tornou-se um dilema, pois que se se
protegeu a vida das crianças, por outro lado, a separação abrupta relativamente à família (ao seja ao meio que conheciam) viria a
provocar um efeito adverso da separação brusca, gerando a “depressão” nas crianças. Esses factos impulsionaram o reconhecimento
da importância das relações de vinculação e sua qualidade.
Como questiona Danziger, poderá a história da psicologia – ou qualquer outra história – diríamos nós, ser mais do que uma série de
histórias particulares?
Hoje podemos dizer que a história da psicologia tem um objeto uno, mas não diríamos que terá uma única história. Em termos
académicos essa diversidade não será problemática, pois cada um pode selecionar áreas de eleição ou de especialidade, e teríamos
uma história da psicanálise freudiana; uma história piagetiana, uma história Kleiniana, etc.; mas também poderíamos escolher outra
organização e teríamos histórias sobre tratamento de conceitos específicos (e.g., estudos da memória, da aprendizagem, da motivação,
da sugestionabilidade, ...). Neste texto trata-se de histórias de movimentos ou escolas psicológicas, com o propósito de propor um texto
simples sobre o desenvolvimento da psicologia moderna no contexto ocidental.
Questão de auto-avaliação
Descreva sucintamente o movimento estruturalista na psicologia.
1.4.2. Influências do naturalismo britânico
A tendência funcionalista que emerge por volta dos anos 1850 na psicologia teve grandes nomes da história do desenvolvimento das
ciências a contribuir para uma “nova” postura sobre o desenvolvimento científico em termos latos. Os naturalistas Charles Darwin (1809-
1882) e Alfred Wallace (1823-1913), propuseram nessa época, embora de modo independente, a ideia da seleção natural, tendo
comunicado conjuntamente os seus resultados em 1858 à Lennean Society de Londres. A discussão e aceitação desta teoria
impulsionaria uma abordagem mais naturalista na psicologia, no sentido de colmatar as lacunas que derivavam da preponderância dos
estudos laboratoriais controlados (que, note-se haviam sido essenciais para a afirmação da própria psicologia no meio científico).
Se Titchener, como vimos, não parece ter-se interessado pela psicologia aplicada, nem pelo estudo de animais, nem pela consideração
das diferenças individuais, ou pelo estudo das crianças e insanos, pelo contrário, muitos outros psicólogos britânicos, e norte-
americanos, por volta dos meados dos anos 1850s, estavam atentos aos desenvolvimentos científicos, nomeadamente às influências
das implicações das observações de Charles Darwin (1809-1882) e de Francis Galton (1822-1911), ambos netos de Erasmus Darwin,
que se destacara ao aderir às ideias evolucionistas. Aplicando os pressupostos da teoria da seleção natural à compreensão do
desenvolvimento do ser humano, Galton terá cunhado o termo eugenia em 1883 (embora não se dominassem ainda os mecanismos
precisos da transmissão das caraterísticas que passariam para a prole). As posições eugênicas eram interpretadas como
preconceituosas por alguns, mas Galton apresentou-a como uma ciência que daria as bases teóricas para compreender os mecanismos
de transmissão dos carateres entre gerações, o que permitiria selecionar as “melhores” caraterísticas (como fazemos hoje, por exemplo,
para aperfeiçoar orquídeas, entre tantos outros casos). O intuito da eugenia preconizaria o favorecimento pelo Estado, “da formação de
uma elite genética”, visando basicamente o aperfeiçoamento da raça.
Note-se que na época – i.e., na segunda metade do séc. XIX – o processo de transmissão de caraterísticas entre gerações era
fundamentalmente especulativo, compreendendo-se que para muitos, a obra de Darwin – A origem das espécies (1859) – não fosse
acolhida com simpatia, nomeadamente pela Inglaterra vitoriana que dificilmente aceitaria a explicação de que “(...) os seres humanos
obedeciam, em termos biológicos, aos mesmos requisitos impostos às plantas e demais animais” (Del Cont, 2008).
O contributo de Galton nessa matéria surge em dois artigos publicados 1865, num trabalho intitulado “Talento e caráter hereditários” e
recorre a várias biografias familiares de pessoas que se haviam destacado em gerações de casamentos sucessivas (e.g., poetas,
artistas, intelectuais, ...). Será curioso lembrar que Galton criou um laboratório antropométrico, pagando aos voluntários para serem
avaliados. Nesse laboratório registava caraterísticas físicas e intelectuais dos sujeitos, constando que terá conseguido seguir alguns dos
seus voluntários por dez anos consecutivos.
Em 1953, Galton publicou o seu primeiro livro – Narrativa de um explorador no sul da África tropical – mas o autor destaca-se
particularmente pelo seu interesse pelas medidas; desenvolvendo uma série de projetos, tendo, por exemplo sido dos primeiros a
desenvolver medidas sobre condições atmosféricas, usando descrições como “altas pressões”, e “baixas pressões”, procurou medir a
eficácia da oração (concluindo que não era eficaz), mediu o grau de aborrecimento nas conferências científicas, e muitas outras
avaliações. Como sabemos, destaca-se particularmente nas medidas sobre a inteligência, sugerindo que se trata de uma questão de
“agudeza sensorial”, uma vez que só podemos conhecer o mundo através dos sentidos; sendo que quanto mais agudo o sentido, mais
inteligente o sujeito. Em 1869 publica o Génio hereditário: uma investigação sobre suas leis e suas consequências.
No Congresso Demográfico de 1894, Galton terá chamado a atenção para a “decadência racial inglesa”, alertando que as classes menos
dotadas suplantariam em fertilidade as classes melhor dotadas. O programa de Galton para melhorar a espécie humana “ (...) foi ao
ponto de propor um esquema de incentivos monetários, oferecendo a importante soma, para a altura, de quinhentas libras a cada casal
que fosse constituído com base nos seus critérios de seleção” (Jesuíno, 1994, p.34).
Por contraposição à ideologia de Galton, Alphonse de Candolle publica uma obra na qual defende que é a educação e o ambiente social
que contribuem fundamentalmente para o desenvolvimento das capacidades intelectuais dos indivíduos, “negando o fundamento da
herança da genialidade defendida por Galton” (in Del Cont, 2008).
O problema de Galton, digamos assim, foi atribuir apenas às caraterísticas inatas as origens das suas mazelas, não considerando
variáveis como a alimentação, higiene, frio e contágios múltiplos, entre outras condições adversas que influenciam particularmente o
desenvolvimento dos menos favorecidos económica e socialmente. Mas o que importa destacar são as influências que levam ao
desenvolvimento (com avanços e recuos) das caraterísticas humanas, e que constituem o percurso do desenvolvimento da história da
psicologia ao longo do tempo, independentemente do conhecimento científico validado.
Dizia Darwin, nos anos 1800:
If no organic being excepting man had possessed any mental powers, or if his powers had been of a wholly different nature from those lower
animals, then we should never have been able to convince ourselves that our high faculties had been gradually developed. But it can be clearly
shown that there is no fundamental difference of this kind (1871/1873, cit in Glickman, 1992).
Retomando as palavras de autores nossos contemporâneos, como Schultz e Schultz, encontramos na obra de Darwin sobre a teoria da
evolução a abertura para uma série de estudos naturalistas e experimentais com animais, com o intuito de analisar competências (ou
caraterísticas funcionais) de diferentes espécies. Algumas dessas experiências iniciais não teriam forçosamente validade ecológica –
pois o meio artificial em que ocorriam não permitiam o recurso às competências naturais dos animais, como vemos em algumas das
experiências de Thorndike com gatos presos em gaiolas rudimentares, das quais teriam de escapar. Todavia, os erros desses estudos
constituem mais um passo que levaria às vantagens das observações próximas das condições dos contextos naturais. Com efeito, a
teoria evolutiva de Darwin, justifica que os psicólogos se interessassem pelo estudo animal e humano numa perspetiva que interpreta a
funcionalidade adaptativa dos seus comportamentos.
É interessante considerar que se Darwin viveu bem antes de existir a psicologia científica, alguns conceitos do autor, como a ideia de que
embora haja uma base genética para os traços dos humanos, os traços adquiridos podem complementar os herdados pela seleção ao
longo do tempo, era reconhecida. A metodologia naturalista do autor, a par com a recolha de recursos oriundos de áreas diversas como a
geologia, a arqueologia, bem como observações de animais domésticos versus em meio natural, e experiências sobre criação de
animais, contribuiu para o estudo do desenvolvimento das espécies, numa vertente funcionalista que analisaria as vantagens adaptativas
para cada espécie, num meio particular.
Um dos exemplos mais conhecidos de Darwin consistiu nas observações nas ilhas Galápagos (no Oceano Pacífico), onde o autor
comparou a variedade de tendilhões que diferiam pelas caraterísticas do seu bico. A necessidade de justificar essas diferenças nos
tendilhões levou Darwin a compreender que as diferentes populações dos tendilhões deviam-se ao facto de cada ilha ter recursos
alimentares diferentes (e.g., insetos, e frutos como nozes, ou outros), justificando-se que nas ilhas em que predominam insetos
sobrevivam os tendilhões com bicos estreitos e afiados; e nas ilhas em que predominam árvores de frutos com casca dura (como nozes)
sobrevivam os tendilhões com bicos robustos e perecem os tendilhões com bico estreito, sendo que com o passar dos anos cada ilha
assumiria a sua particularidade de fauna e flora.
Não será de negar que explicações teológicas se mantinham na época, a par com o desenvolvimento da atitude científica do
desenvolvimento animal e humano. Uma implicação significativa do avanço científico foi – nos meios intelectuais esclarecidos – o
questionamento das interpretações literais que se faziam da versão bíblica da origem da vida (animal e vegetal).
As descrições de Darwin sobre o desenvolvimento dos seus filhos (publicadas em 1877), descrevem ainda minuciosamente emoções
como a raiva, o medo, a curiosidade, o sentido moral, e a capacidade de aceder às intenções/estados mentais de outros (i.e., ao que hoje
designamos de “teoria da mente”), entre outras capacidades. Com efeito, Darwin foi também pioneiro no estudo do bebé, numa época na
qual a “importância” dos bebés/crianças pequenas era reduzida (o que se justificaria face à elevada taxa de mortalidade dos bebés da
época).
Como refere Jesuíno (1994), a obra de Darwin influenciou profundamente a psicologia. Ao regressar da grande viagem no Beagle, Darwin
trouxe um diário com mais de 770 páginas de zoologia e geologia, e caixas várias com ossos, aves, corais, etc.
Após a morte da sua filha mais velha, a sua crença no cristianismo – abalada já anteriormente pelas observações naturalistas – levou-o a
rejeitá-lo.
Enfim, a obra Origem das espécies é produto de vinte anos de observações e reflexões. Nas ilhas Galápago, no oceano Pacífico
observou e catalogou uma série de espécies incomuns para os europeus. Simultaneamente, o testemunho dos fósseis, de ossos de
espécies desconhecidas, ou outros artefactos obrigavam ao questionamento de variáveis inerentes ao desenvolvimento das espécies, no
animal e no homem.
Na verdade, embora a função da viagem de Darwin fosse “(...) a vigia das costas da América do Sul (para o Almirantado Britânico) o Beagle
também navegou à volta do mundo, tendo visitado o Taiti, a Nova Zelândia, a Austrália, as Ilhas Keeling e o Cabo da Boa Esperança (in A
Viagem do Beagle, tradução segundo a edição de 1860, por Diniz Lopes e Miguel Serra Pereira, ed. Relógio d’Água, 2009).
18 de Março 1831– Partimos da Bahia. Alguns dias depois, não muito distante dos ilhéus de Abrolhos, a minha atenção foi dirigida para a
aparência vermelho-acastanhada do mar. A totalidade da superfície da água, (...), parecia coberta de pequenos pedaços de feno a que tinham
cortado as pontas. Tratavam-se de minúsculas confervae (i.e., algas verdes) (...) Mr. Berkeley informou-me que estas algas pertencem à mesma
espécie que aquelas encontradas nos grandes espaços do mar Vermelho, e que o nome deste mar derivaria destas algas (in A Viagem do
Beagle, ed., 2009, p.30-31).
14 de Abril 1831 – (no brasil) – Durante esta nossa estada, por pouco não testemunhei uma daquelas atrocidades que só podem ter lugar num
país esclavagista. Devido a um conflito que acabou em tribunal, o patrão esteve prestes a apartar todos os escravos homens das mulheres e
crianças para proceder à sua venda em leilão (...) (in A Viagem do Beagle, ed., 2009, p.39).
As ilhas Galápago foram para Darwin uma fonte inestimável de observações que confirmaram a lei da sobrevivência da espécie “os mais
aptos/capazes” para a tarefa “sobrevivem”, os “menos aptos perecem”.
Darwin fica na história também pelos estudos sobre as expressões emocionais em humanos e animais, sugerindo que as várias
posturas típicas dos estados emocionais podem ser interpretadas em termos evolutivos. Escrevendo um diário sobre o desenvolvimento
do filho “A biographical sketch of an infant” (1877), foi precursor da psicologia do desenvolvimento.
Após a publicação da Origem das espécies, o tópico da inteligência animal (e humana) foi empolado, e uma série de relatos fantasistas
também emergiu, com casos anedóticos a serem expostos, nomeadamente em feiras, acerca das supostas capacidades dos animais.
Francis Galton, primo de Darwin, cunhou o termo eugenia (bem nascido), sugerindo a pretensão de desenvolver uma ciência sobre a
hereditariedade humana que pudesse identificar os “melhores membros” (como se fazia com os restantes animais).
Poderemos dizer que no final do século XIX, foram ultrapassadas, pelo menos em alguns meios intelectuais, asreservas à teoria da
evolução. O método usado por Darwin é empírico, e não experimental, estando próximo dos trabalhos mais recentes de etologistas como
Konrad Lorenz e Niko Tinbergen, autores que, pelo início dos anos 1930, se destacaram na europa com uma ciência interdisciplinar, a
etologia, ao chamarem a atenção para as condições de observação do comportamento (humano ou animal), que deverá ser realizada em
meio natural, i.e., nas condições usuais de vida do sujeito. Embora já nos anos 1920, os trabalhos de Jacob von Uexküll defendessem
que cada espécie possui um mundo percecionado que lhe é próprio – surgindo o conceito de Umwelt.
Lorenz (1903-1989), e Tinbergen (1907-1988) representam uma revolta contra as condições de experimentação laboratorial com animais,
pois que ao deturparem-se as condições de vida, induzem-se comportamentos que não ocorreriam na natureza, podendo impedir os
comportamentos adaptativos de se manifestarem; ou seja, compromete-se a validade ecológica das observações. Assim a formação de
base dos primeiros etologistas, que são zoólogos, será determinante na orientação desta disciplina, insurgindo-se contra as condições
habituais (artificiais) de observação.
Lorenz define a etologia como o ramo do saber que surge quando se aplicam ao estudo do comportamento animal e humano, questões e
métodos que a partir de Darwin se usavam de modo óbvio e obrigatório em todos os ramos da biologia. A formação base dos autores – a
zoologia – é determinante na direção seguida nesta disciplina. Tinbergen foi particularmente crítico quanto à forma como a psicologia
americana do seu tempo usava o método experimental com animais.
A etologia, no sentido lato, representa o estudo biológico do comportamento, atribuindo-se o termo a Geoffrey Saint-Hilaire em 1851,
designando o que um outro biólogo do século XIX chamava de ecologia, isto é, o estudo dos comportamentos animais nas condições do
meio natural.
Mas foi no princípio do séc. XX que o naturalista Julian S. Huxley (1887-1975), biólogo evolucionista e acérrimo apoiante da seleção
natural, e figura destacada da Sociedade zoológica de Londres que, a par com Oscar Heinroth e Charles Whitman se dedicaram ao
estudo da conduta, atitudes e movimentos dos vertebrados, mostrando que os comportamentos são particulares a cada espécie;
podendo destacar-se indicadores taxonómicos fiáveis. Deste modo, pode afirmar-se que o comportamento de cada uma “resulta de um
processo funcional inscrito no genótipo e atualizado por cada membro da espécie, como o são os indicadores morfológicos utilizados
pela zoo-sistemática” (Lencastre, 2011, p.153).
Quanto à força decisiva da afirmação da etologia, Tinbergen afirmara já nos anos 1930, que um novo impulso tinha sido dado ao estudo
do instinto, quando Lorenz abriu novos horizontes sobre o problema sempre atual do comportamento inato. Quatro questões colocadas
por Tinbergen em 1953 orientam os estudos etológicos:
1. Quais as causas imediatas do comportamento, o que leva o animal a produzir tal resposta nesse momento?
2. Como se desenvolve ontogeneticamente tal comportamento? Como se processou o desenvolvimento do indivíduo singular
até ali, para que ele possa produzir precisamente essa resposta?
3. Qual a função do comportamento executado? Ou seja, qual o seu valor adaptativo?
4. Qual a sua causalidade remota, referida à filogénese? (cit in Machado, 1993).
Questão de auto-avaliação
Descreva a importância do darwinismo para os estudos psicológicos, concretize com exemplos concretos.
1.4.3. O funcionalismo norte-americano
Em síntese, como refere Santamaría (2001), o funcionalismo surge como uma versão filosófica e sociocultural inspirada na teoria da
seleção natural de Darwin, ideias introduzidas nos EUA por Herbert Spencer (1820-1903), que cunhou a expressão “sobrevivência dos
mais aptos”, adaptando as conceções evolucionistas biológicas, ao estudo da sociedade. A ideia pode ser encarada como perigosa na
medida em que, por facilitismos (ou por interesses ideológicos), poderá incentivar alguns a equiparar as diferenças de oportunidades,
com diferenças de capacidades.
Em termos históricos, o movimento funcionalista norte-americano na psicologia terá surgido, na viragem para o século XX, destacando-
se William James como fonte primária do movimento. Outros, com distintas ideias, como os já referidos anglo-saxónicos Charles Darwin,
ou Francis Galton, interessados no estudo do comportamento animal, serão fontes importantes para o florescimento do funcionalismo
nos EUA. Referem Hattori e Yamamoto (2012), que “a ideia de uma psicologia com uma vertente evolucionista não é nova – e, como
vimos, nasceu com a própria teoria da evolução de Darwin.
Nos finais do século XVII Erasmus Darwin publicou as suas ideias sobre a transformação das espécies, embora seja o seu neto – Charles
Darwin – que justificaria a ideia da “ancestralidade comum: há cerca de 100 milhões de anos, microrganismos e plantas começaram a ocupar a
superfície da terra, abrindo caminho para alguns invertebrados e anfíbios; a partir dos anfíbios, surgiram répteis, aves e mamíferos; entre os
mamíferos, os primeiros primatas surgiram em torno de 55 milhões de anos atrás; a partir desses ancestrais primatas surgiram os grupos
recentes de prossímios, macacos, grandes macacos e nossa espécie; o primeiro humano moderno de que se tem registo data de 150 mil anos
atrás, e foi encontrado em África.
Quanto ao darwinismo social, este pode ser visto como uma postura ideológica que na época se associou a ideologias eugenistas e
racistas; que visava o aperfeiçoamento da raça. Darwin também terá descrito uma hierarquia de raças, classificando os humanos em
intelectualmente superiores e intelectualmente inferiores. Para além de defender os ideais eugenistas considerava que não se deveriam
casar pessoas portadoras de inferioridades (no corpo e/ou no espírito). O darwinismo social surge nos finais do século XIX e usa o
conceito de “sobrevivência do mais apto” para legitimar a eliminação de indesejáveis.
Quanto à questão da seleção artificial, nos Estados Unidos, entre os anos 1900 e 1940, e que se viria a alargar, na Europa, por exemplo
no período antecedente à segunda Guerra Mundial, consistia na legitimação do extermínio de raças por motivos ideológicos e racistas –
vindo a ser praticado em larga escala sob o comando de Hitler (Bolsanello, 1996).
Refere ainda a história que em nome da eugenia, terão sido esterilizados aproximadamente 36 mil indivíduos nos Estados Unidos entre
1900 e 1940, incluindo doentes mentais, os “marginais”, e os “vadios” (Bolsanello, 1996).
Como vimos, enquanto que a psicologia experimental estava bem estabelecida nos anos 1910, particularmente no que dizia respeito aos
estudos de psicofísica, nos tempos que se seguiram a dispersão de trabalhos foi a norma.
Wundt tinha treinado a primeira geração de psicólogos americanos, estes, quando voltaram aos EUA imprimiram uma nova direção aos
estudos psicológicos. O zeitgeist pragmático donde vinham privilegiava a funcionalidade, i.e., almejavam uma orientação pragmática, com
cariz utilitário; “precisamos de uma psicologia usável”, terá escrito Stanley Hall (cit., in Schultz & Schultz, 1981), e, com efeito, muito do
trabalho experimental pós-1900, nos EUA será funcionalista, segundo a designação atribuída por Dewey, (Richards, 2010).
Esse funcionalismo deve ser entendido como uma atitude global partilhada por um conjunto de autores que tinham o mesmo interesse
pela “utilidade” dos processos (mentais) e não sob uma perspetiva meramente descritiva de conteúdos mentais, tendo em conta a
aplicabilidade desses mesmos processos na adequação do comportamento ao meio. Destacam-se, neste contexto de ideias dois
termos: a adaptação (ou adequação) e a aplicação (ou funcionalidade) dos processos psicológicos. Esse interesse foi movido
simultaneamente pelos naturalistas britânicos, e pelas condições económicas e sociais dos EUA na época, nomeadamente face ao
movimento de grande afluxo de emigrantes de diferentes origens que chegavam aos Estados Unidos da América.
Convirá particularizar o período seguinte à Guerra Civil nos EUA (1861-1865), considerando os progressivos movimentos que lidavam
com as diferenças entre os estados do Norte e do Sul – (os estados do Sul a seguirem uma espécie de sistema colonial recorrendo
predominantemente a mão de obra escrava – enquanto que os estados do Norte praticavam uma economia mais industrial e livre).
Esse contraste entre norte-sul terá contribuído também para o despoletar da Guerra Civil, levando, à posteriori, à reconstrução do Sul, e à
reconstrução de infraestruturas que desenvolveram nesses estados os caminhos de ferro, a instalação do telefone, e a industrialização
em grande escala. Se tais progressos introduziam melhorias tecnológicas, é verdade, também, que o faziam à custa da exploração das
populações indígenas, e da expropriação em grande escala das suas terras, expulsando-os, ou eliminando-os para que outros
ocupassem os seus espaços.
Quanto aos operários, estes eram sujeitos a duras condições de trabalho, enquanto que as mulheres e minorias raciais eram
consideradas mentalmente inferiores.
Todavia, a Guerra Civil pode ser vista, apesar das desgraças associadas, como uma janela de oportunidades para a emancipação de
“quase quatro milhões de pessoas e da destruição do sistema de plantações no Sul (...)”. Não obstante as violências cometidas, a derrota
do Sul influiu no desenvolvimento econômico, pela necessidade das reconstruções e pela mudança nos padrões de comportamento –
apesar da infâmia da conivência com grupos extremistas como o Ku Klux Klan – que reuniam veteranos que haviam lutado pelos estados
do Sul na Guerra Civil.
Digamos que o reverso positivo da Guerra Civil foi a contenção e progressiva abolição da escravatura, permitindo sedimentar raízes para
a expansão dos direitos de todos; como, por exemplo, as implicações da 14.ª emenda que renovavam os esforços para que, entre outros
factos, as “(...) mulheres negras pudessem determinar quando e com quem consentiriam ter relações sexuais”. De recordar essa triste
história que justificava uma cultura de violações comum quer aos senhores sulistas, como aos soldados do exército da União (Downs &
Masur 2015).
Nos anos de 1800s, o movimento funcionalista nos EUA, composto por psicólogos como James Baldwin (1831-1934), Stanley Hall (1844-
1924), James Cattell (1860-1944), e William James (1842-1910), entre outros, destaca o interesse por uma psicologia que justifique a
adaptação ao meio e as possibilidades de desenvolvimento das capacidades mentais.
Posições variadas na história da psicologia consideram que o projeto da psicologia funcional não surgiu propriamente como oposição às
orientações experimentalistas dos estudos de Leipzig dos anos 1879, mas foi sobretudo influenciado pela divulgação dos interesses dos
trabalhos, já referidos, dos naturalistas britânicos. Entre esses naturalistas da época encontrámos já Darwin (1809-1882), Galton (1822-
1911), e Romanes (1848-1894); mas outros, como Angell (1869-1949), e Carr (1873-1954), este último filósofo e pedagogo que defendia,
para além do método da introspeção, também o contributo da observação naturalista.
Uma outra influência da teoria de Darwin na psicologia é o interesse e consideração das questões sobre diferenças individuais entre
sujeitos. Com efeito, como refere Jesuíno, em contraponto com a psicologia alemã de Leipzig, centrada nos “princípios universais que
governam a mente, as ideias de Darwin incidem na exploração das diferenças, ou variações entre sujeitos da mesma espécie, e/ou de
espécies diferentes; diferenças que se constatariam e revelariam a sua pertinência adaptativa em meio natural (seja esse qual for) – e.g.,
o meio natural de um estudioso universitário será o seu meio académico.
Também, Bain, defendia a pertinência da observação das pessoas em situações de vida quotidiana (e não em laboratório), interessando-
se simultaneamente pelo estudo do comportamento animal, reconhecendo o interesse das áreas da psicologia infantil, e da psicologia
social, e estando bem ciente dos trabalhos dos naturalistas do século XIX. Os funcionalistas assumiram assim uma dimensão prática
que responderia à abrangente questão fundamental “Para que serve?”.
Em suma, o espírito pragmático americano adere e legitima o projeto funcionalista na psicologia. Ora um dos autores precursores nessa
posição foi, como refere Boring, o próprio William James (1842-1910), quando refere “o objetivo da Psicologia não é a descoberta dos
elementos da experiência, mas o estudo das pessoas vivas na sua adaptação ao ambiente” (cit in Shultz & Shultz, 1981, p. 152). A sua
teoria da emoção – publicada em 1884 na revista Mind – mesmo que tenha sido esquecida durante algum tempo, suscita interesse ainda
hoje (encontrando-se em 2013 uma tradução em português do brasil):
O objetivo das páginas seguintes é mostrar (...) que os processos emocionais do cérebro não só se assemelham aos seus processos sensoriais
usuais, mas na grande verdade, nada mais são do que a combinação de tais processos de forma variada. (...). Devo dizer, em primeiro lugar, que
as únicas emoções que expressamente me proponho a considerar aqui são aquelas que têm uma expressão corporal distinta. (...) (in Clínica &
Cultura, V.II, 1), jan-jun, 2013, 95-113).
William James foi considerado pelos seus pares, nomeadamente por Dewey e por Watson, como o mais brilhante psicólogo que o
mundo já conheceu”. O autor representa a transição entre a psicologia europeia e a psicologia norte-americana. Ferreira e Gutman
(2011), dividem a obra de James em dois momentos, sendo que o primeiro representa a criação de um laboratório de psicologia na
Universidade de Harvard (embora conste que o autor não lhe terá devotado grande interesse); e o ponto culminante seja a publicação em
1890 (após 12 anos de trabalho) da obra Os princípios de psicologia – um tratado com mais de mil páginas sobre tópicos vários como a
“atenção”, “hábito”, “fluxo de pensamento”, e “self”, entre outros conceitos que lhe ficam associados. A metáfora de W. James sobre a
vida subjetiva fica na história e é familiar aos estudantes de psicologia, representada como um “fluxo de um rio”, que no seu percurso
constante vai incorporando novos elementos à medida da sua corrente.
Mas é pertinente a observação de Kinouchi (2009), quando refere que quando consideramos a posteridade de autores como Freud,
Piaget ou Skinner, reconhecemos imediatamente os contributos como a psicanálise (com Freud), o construtivismo (em Piaget), e a
análise do comportamento em Skinner – identificando-se rapidamente os seus legados; enquanto que o mesmo não parece acontecer
relativamente à obra de W. James; referindo Kinouchi, James, não ter deixado “(...) algum tipo de “descendência’ intelectual claramente
assinalável”.
O próprio James terá tido consciência da dificuldade de divulgação das suas ideias no tratado – Os Princípios – face aos seus extensos
vinte e oito capítulos, publicando entretanto uma versão abreviada (Psychology: the briefer course) que terá divulgado as suas ideias para
um público não académico, ajudando a psicologia a popularizar-se nos Estados Unidos.
Na frase inicial de Os Princípios, James define a psicologia como a “ciência da vida mental, dos seus fenómenos e condições”; entre
esses fenómenos, encontraríamos os sentimentos, os desejos, cognições, raciocínios, e decisões; quanto às condições, James referia-
se aos processos que acompanham esses fenómenos, como, por exemplo, as circunstâncias sociais, pessoais e ambientais.
James defendera que a psicologia devia envolver-se nas questões com implicações sociais; o objetivo da psicologia deveria orientar
regras de ação que ajudassem os sujeitos na concretização dos seus propósitos. Para James, as investigações mais promissoras
seriam as da biologia – dando como exemplo a doutrina (da época) sobre a afasia (tema também tratado por Freud) (Kinouchi, 2009). A
partir de 1894 deu uma série de palestras itinerantes sobre psicologia, em escolas, associações, igrejas, tendo como público
professores, profissionais de saúde, estudantes, etc., contribuindo para que a psicologia se popularizasse nos Estados Unidos.
Com a obra o Apelo, James tenta conciliar a clivagem entre o interesse pelos aspetos práticos versus os interesses filosóficos. O Apelo,
de James, consiste na defesa da psicologia como ciência natural; admitindo o autor, na época, que não se poderia ainda afirmar que a
psicologia seria de facto uma ciência natural.
Terá razão Kinouchi, quando comenta que são os autores de manuais de psicologia que, basicamente, contribuíram para fazer perdurar
uma dada fama de James ao longo dos tempos. Kinouchi refere ainda o encontro que terá ocorrido entre William James e Freud, em
1909 (segundo Ernest Jones), na Universidade de Clark; referindo Ernest Jones, que James terá afirmado que os trabalhos do grupo de
Freud haviam sido muito bem recebidos, e que James teria afirmado “o futuro da psicologia pertence ao seu trabalho” (cit in Kinouchi,
2009). Apesar das diferenças entre James e Freud, eles partilham a formação académica, sendo ambos médicos especialistas em
temas neurológicos e psicológicos.
Em síntese, o funcionalismo, como refere Santamaría (2001), nasceu “como uma versão filosófica e sociocultural da teoria da seleção
natural de Darwin” (p.69). As ideias de Darwin impulsionaram, como vimos, uma mudança de paradigma, afirmando-se uma nova direção
nos focos de interesse da psicologia. Mas é Spencer (1820-1903) quem desenvolve uma interpretação das ideias evolutivas no estudo
das sociedades, interessando-se pelas questões sociais, e abordando temas como o bem-estar social e suas condições, bem como
escrevendo uma série de textos sobre os princípios de evolução biológica e psicológica.
Santamaría refere ainda que o facto de ter sido um sociólogo – i.e., Spencer – e não um biólogo a defender as ideias de Darwin, terá
facilitado a disseminação e aceitação do darwinismo social nos EUA nos finais do século XIX. Note-se que a ideologia do darwinismo
social defendia que sendo as forças evolutivas naturais, qualquer tentativa dos seres humanos para as alterar seria infrutífera e
perniciosa; postura que justificava o status quo estabelecido, implicando que forças externas, como apoios sociais do governo, não
deviam acontecer. A ideia subjacente implicava que se os sujeitos fracassavam na vida, era porque não seriam suficientemente
“capazes”; se vingavam na vida, acumulando méritos ou riquezas seria porque eram “mais aptos”.
A maioria dos psicólogos norte-americanos interessados na avaliação mental eram favoráveis ao darwinismo social. A orientação
evolucionista leva-os a interessarem-se pelo estudo das diferenças individuais do desenvolvimento, do comportamento animal, e do
comportamento anormal, alargando as possibilidades nos estudos da psicologia.
O funcionalismo norte-americano fica associado na história basicamente a duas escolas, a de Chicago e a de Columbia. No final do
século XIX Chicago era uma cidade em pujante crescimento (com somas atribuídas por Rockfeller para a criação de uma universidade
batista, que foi também apoiada financeiramente por essa igreja, tendo sido inaugurada em 1892), e composta por várias faculdades.
Um dos professores que aí se destaca é John Dewey (1859-1952), contrariando a ideia de que o conceito de arco reflexo era subdividido
em três componentes, numa conceção elementarista composta pelo estímulo que produzia a sensação, pelo processamento que
produzia uma ideia, e pelo ato, ou reação motora. Dewey considera essa subdivisão artificial, propondo que um reflexo consiste num todo
integrado contínuo, que serve a função de adequar o organismo ao meio. Dewey fica na história como um dos líderes da educação
progressista nos EUA, no início do séc. XX, particularmente no que diz respeito à educação infantil. Se hoje as teses da educação
centradas no aluno são corriqueiras, na época, a proposta de Dewey parece-nos extremamente atual, quando o autor discorre, por
exemplo, acerca dos conceitos desenvolvimentais de imaturidade versus maturidade do aluno; ou sobre implicações da dependência da
criança, que podem contribuir para mudanças desenvolvimentais perniciosas que são, afinal, respostas a pressões externas que inibem
a sensibilidade da resposta genuína da criança em desenvolvimento. Para o autor, “uma experiência educativa deve ser atrativa e não
repulsiva, mas também não pode ser encarada como um fim em si mesma” (cit, in Branco, 2010).
Em síntese, Dewey defendia a liberdade de pensamento enquanto instrumento para a maturação emocional e intelectual da criança. No
campo da pedagogia, a teoria de Dewey inscreve-se no movimento da educação progressista – salientando a importância em educar a
criança como um todo, respeitando as suas facetas físicas, emocionais e intelectuais; considerando o autor que seria necessária uma
reforma na educação, sobretudo tendo em conta as necessidades urbanas industriais da América da época. Nesse projeto de reforma
também se contemplava a necessidade de ajustar os imigrantes (com línguas e costumes diversos) à sociedade americana – i.e., em
termos simples visava-se “americanizar” as crianças – para que se viessem a encaixar no mundo do trabalho industrial, não se ficando
pelo mundo rural (Leahey, 1980).
Questão de auto-avaliação
Descreva sucintamente o movimento funcionalista na psicologia
Compreende-se que o funcionalismo definisse, como temos vindo a ver, a psicologia como uma “ciência dos processos e operações
mentais”, interessando-se não prioritariamente pelos conteúdos (e.g., sensações, perceções, emoções...), mas pelas implicações do
funcionamento da mente; considerando que as estruturas e funções orgânicas dos sujeitos se desenvolvem e mantêm, desde que os
sujeitos sobrevivam e deixem descendência. Para os norte-americanos, estas ideias foram bem aceites, valorizando a ideia da
“sobrevivência dos mais aptos” que justificava a estratificação social, constatando-se que entre os emigrantes que chegavam, todos eles
em situações muito adversas de pobreza, uns alcançariam a riqueza, e outros não.
Na verdade, o darwinismo social tornar-se-ia num movimento que se terá associado a ideologias eugenistas e racistas, nos finais do
século XX. Por exemplo, nos EUA entre 1900 e 1940 estima-se que 36 mil indivíduos foram esterilizados para não deixarem
descendência, (muitos deles sem o saberem). Mas mais recentemente, entre os anos 1960s e 1970s, também nos EUA se reporta a
esterilização forçada mulheres índias norte-americanas, manipulando-se assim a regeneração versus aniquilamento de povos.
Embora alguns dos Estados nos quais se praticou a esterilização tenham pedido formalmente desculpa às populações, só o Estado da
Carolina do Norte compensou as vítimas com indeminizações financeiras. A história reporta que 32 Estados norte-americanos terão
adotado essa medida.
Não esquecendo, a Europa dominada por Hitler, na qual se assistiu, em várias ocasiões, como entre 1938 e 1945 ao genocídio
programado de cerca de seis milhões de judeus, e entre os não-judeus, reporta a história o genocídio de ciganos, polacos, comunistas,
homossexuais, deficientes físicos e deficientes mentais. Com o intuito de não se negar a história – em 2007 – entrou em vigor uma lei
sancionada pela União Europeia que pune com prisão quem negar o Holocausto; embora continuemos a assistir a relatos de tentativas de
extermínios, como ocorreu em Ruanda entre abril e junho de 1994, no qual se reportou a morte de entre a 500.000 a 800.000 pessoas.
Acresce que o recurso a violações como “arma de guerra” provocou uma disseminação de infeções de HIV, incluindo em bebés nascidos
de mães infetadas.
1.4.4. A psicologia aplicada
A designação de psicologia aplicada pode parecer, de certa forma redundante, pois que a grande maioria dos autores visavam há muito
(e visam ainda) a utilidade das suas aplicações – mas, por definição, a designação pretende salientar a utilidade do saber psicológico que
cria soluções direcionadas a problemas concretos que ocorrem no dia-a-dia, direcionando-se intencionalmente para a resolução de
soluções práticas, e reais, para o ser humano transformar os cenários vários no intuito de melhorar os seus ambientes e,
consequentemente, a qualidade de vida.
A designação de psicologia aplicada é herdeira do movimento funcionalista, sendo que nos anos 1920 a psicologia norte-americana
investiu, como vimos já, nas aplicações, referindo o historiador John O’Donnell, que esse movimento terá sido uma questão de
sobrevivência de oportunidades de trabalho, pois que nem todos os psicólogos poderiam ingressar num laboratório de psicologia; para
além de que que os salários dos académicos eram baixos. Mas, mais do que isso, os psicólogos entenderam que poderiam – e deveriam
– envolver-se nas questões sociais, políticas, e nas controvérsias intelectuais inerentes à sociedade americana.
De acordo com Leahey (1994), três questões atraíram então a atenção dos psicólogos: a) as avaliações das capacidades intelectuais
realizadas para a seleção de postos militares, que mostravam rapidamente as disparidades culturais e cognitivas dos sujeitos; e
salientaram, sobretudo, a pobreza intelectual dos mesmos, levando à necessidade de criar testes psicológicos para sujeitos letrados os
(Army Alpha), e para os sujeitos iletrados, que seriam cerca de 30% dos recrutas, assim como para os sujeitos que não falavam inglês
surgiram os Army Beta; b) um novo interesse pelas questões da eugenia, face ao grande número de baixos resultados encontrados nos
testes intelectuais; e c ) e a necessidade de repensar as funções da família. Com efeito, a entrada na IGG marcará o final de duas
décadas de grandes transformações sociais, impulsionando os EUA à industrialização.
Os testes de seleção para o exército foram protótipos dos muitos que se lhe seguiriam, surgindo com o intuito de selecionar e treinar os
sujeitos para tarefas específicas dos militares na primeira Grande Guerra. O primeiro grupo desses trabalhos terá sido orientado sob
supervisão de um grupo de psicólogos liderados por Robert Yerkes (1876-1956) e por Terman (1877-1956), referindo-se que terão sido
passados aproximadamente a 1.750.000 recrutas num só ano (sendo que os testes e seus resultados foram mantidos secretos até ao
final da Guerra). Os Army Alpha (compostos por oito subestes) incluíam os primeiros testes de analogias, completamento de números,
identificação de sinónimos e de antónimos; os Army Beta, destinados aos iletrados, (composto por sete subtestes) apresentando os
primeiros testes de completamento de figuras, e código, todos eles sujeitos a um tempo de resolução limitado.
A década de 1920 ficou conhecida como o apogeu do movimento de testes mentais, movimento que alastrou às universidades, para
seleção dos candidatos, estendendo-se às escolas, industrias e comércio. Entretanto instalaram-se debates entre os “pós e contra” dos
testes mentais, e acerca da natureza da inteligência. As questiúnculas sobre o tema eram empoladas pelas divergências (entre autores)
sobre a preponderância da “herança genética” versus o “efeito do ambiente” – mantendo-se até hoje para muitos, pois que a questão se
torna sensível a preconceitos individuais que tolham a razão.
Um dos autores que se destaca, nesses anos de 1920 é James Cattell (1860-1944), tendo contribuído para a psicologia aplicada
analisando as capacidades humanas, e interessando-se particularmente pelas diferenças individuais, e suas implicações. Tornou-se
conhecido na comunidade científica americana, inicialmente por ser editor da prestigiada revista Science. Por volta dos anos 1900,
Cattell, que fora aluno de Wundt, e criado num ambiente académico (o seu pai era reitor), doutorou-se em Leipzig, e seria o psicólogo
norte-americano mais conhecido na época, tendo sido presidente da Associação Americana de Psicologia (APA). Nos seus estudos
mediu os tempos de reação necessários à identificação de letras, estudou o efeito de drogas no comportamento e na consciência
(descrevendo minuciosamente os seus efeitos), estudou os efeitos da atenção, da prática, e da fadiga, entre outras variáveis; e foi
pioneiro na psicologia na área do testemunho, sendo o primeiro psicólogo a publicar os resultados de uma experiência sobre fiabilidade
nos testemunhos – uma dessas experiências consistia em pedir aos alunos para desenhar um plano da entrada do edifício onde tinham
aulas – e para seu espanto, Cattell observa que os desenhos variavam imenso uns dos outros.
Os testes criados por Cattell estão próximos das medições de Galton, e traduzem a influência dos trabalhos que efetuara em Leipzig.
Como exemplo desses testes temos a “pressão do dinamómetro” – uma medida de força muscular – que Cattell afirmava ser também
uma medida de concentração e de esforço mental; quanto ao teste sobre o número de letras repetidas depois de ouvidas, pode ser visto
como uma versão inicial de um teste de memória a curto prazo.
O tipo de testes usados por Cattell para avaliar uma panóplia de capacidades, difere bastante dos testes desenvolvidos posteriormente
para avaliarem capacidades cognitivas (lidando, como vimos, basicamente com medidas sensoriais elementares como a pressão no
dinamômetro, discriminação na sensibilidade entre dois pontos da pele, diferenças na avaliação de pesos, tempo de reação a um som,
velocidade de nomeação de cores, etc.). Por volta de 1901, Cattell terá conseguido testar correlações entre os resultados nesses testes
e medidas de desempenho académico, mas essas correlações foram muito baixas. Como esses resultados foram também próximos
dos testados no laboratório de Titchener, concluiu-se que não seriam preditores válidos do desempenho académico.
Enfim, embora o projeto de Cattell não tenha obtido sucesso, ele é visto como precursor da avaliação psicológica, divulgando a psicologia
nas suas palestras, editando jornais e promovendo aplicações no terreno.
Recorde-se, a este propósito, que também um português – Alves dos Santos – em 1923, na sua obra “Psicologia experimental e
pedologia” apresenta resultados de um estudo sobre sugestibilidade, efetuado em 1913, com raparigas de escola primária entre os 9-13
anos, avaliando tamanhos de desenhos de linhas, de pesos, de cores, e de indução capciosa. Alves dos Santos, mostrou, com esses
trabalhos, que a sugestionabilidade é um facto determinado por influências que tanto podem derivar do indivíduo, como podem vir de
causas externas, que diminui com a idade, e que se manifesta em razão inversa à inteligência e à autonomia da vontade do sujeito
(Santos, 1923).
Ainda sobre o tema da sugestibilidade no testemunho, Münsterberg, há cerca de cem anos atrás, questionara a confiança das
testemunhas oculares (baseado numa sua própria experiência) – o seu trabalho foi porém recebido com ceticismo, pois falhava o suporte
teórico. Todavia conseguiu-se mostrar o efeito do “foco da atenção”, e o efeito das “questões enganadoras” (leading questions),
nomeadamente em testemunhas mais vulneráveis (como crianças, sujeitos com incapacidades, ou testemunhas intimidadas) (cf., Pinho,
2008).
Se as investigações de Galton e/ou de Cattell consistiam basicamente em medidas físicas de tarefas sensoriais simples,
simultaneamente, na Europa na década de 1890 afirmava-se a psicologia francesa com nomes como Charcot (1825-1895), Binet (1857-
1911), ou Pierre Janet (1859-1947), entre outros, como vimos anteriormente.
Entretanto, um “mau exemplo” da história da psicologia pode ser dado pelas interpretações de Goddard (1866-1957), nos EUA, quando o
autor deturpou a conceção de Binet, ao sugerir que a sua escala media “uma entidade independente e inata”, propondo-se identificar
indivíduos deficientes para lhes impor limites (de reprodução e livre circulação, para evitar os crimes que supostamente provocariam).
Ora, podemos aceitar que essa atitude desvirtuaria a intenção original que defendia que as crianças com idade mental inferior à idade
cronológica seriam selecionadas para programas de educação especial – pois que se visava a integração, e não a segregação. Com
efeito, os piores receios de Binet – de que o seu teste servisse para segregar aconteceram nos EUA a dada altura. De salientar que o uso
incorreto dos testes não pode, nunca, ser invocado como limite para o seu uso (cf. Gould, 1981).
Questão de auto-avaliação
Refira, entre os temas tratados, estudos que mostram como a psicologia aplicada se afirma.
1.4.5. O behaviorismo
The time seems to have come when psychology must discard all reference to counsciousness; when it need no longer delude itself into thinking
that it is making mental states the object of observation (Watson, 1913).
Como já referimos, a psicologia no início do século XX, expande-se nos EUA, assumindo uma vertente radicalmente diferente das
perspetivas psicológicas europeias.
É Watson, num artigo publicado em 1913, com o título “A psicologia como um behaviorista a vê” que defende que a psicologia deve ser
um ramo experimental da ciência natural. O objetivo teórico dessa ciência será a capacidade de prever e controlar o comportamento. Os
behavioristas estavam determinados a mudar o curso da psicologia norte-americana. Não será estranho a ênfase na necessidade de
objetividade, pois que já outros, muito antes, como por exemplo Comte, haviam defendido que só a capacidade para controlar a natureza
seria uma prova de que esta tinha sido compreendida.
Também fora da europa, Pavlov (1849-1936), havia desenvolvido uma série de investigações experimentais no campo da fisiologia (sobre
digestão), tendo sido distinguido com um prémio Nobel, não sendo no entanto essa a área em que mais ficaria conhecido; pois que as
investigações dos reflexos condicionados, durante as quais aperfeiçoou técnicas cirúrgicas de recolha de secreções digestivas são as
mais recordadas periodicamente.
Em 1924 Pavlov deu uma série de palestras acerca dos seus trabalhos (de 25 anos) sobre o condicionamento, sendo interessante
recordar que o autor inicia essas palestras reconhecendo o contributo dos trabalhos de Darwin e de Thorndike para a sua própria
formação.
Pavlov apresenta, de modo simples, o processo de aquisição de um reflexo condicionado: esse reflexo deriva do emparelhamento entre
um estímulo que produz uma dada reação (e.g., a comida), com um estímulo neutro (e.g., um som); dessa associação resulta que o
estímulo incondicionado (no caso o som), se associa à apresentação da comida, ou seja, nesse caso, o condicionamento resulta da
associação entre o som e a apresentação de comida. Pavlov descreve os seus procedimentos, explicitando o processo de generalização
– i.e., quando um dado estímulo semelhante (um som parecido) desencadeia uma resposta semelhante; ou respostas de diferenciação
(quando o som é distinto num grau significativo para o animal). Os ensaios de Pavlov provocaram (inadvertidamente) a neurose
experimental nos cães ao variar, em pequenas nuances, as características do estímulo, de tal modo que a distinção entre suas variações
eram mínimas; um resultado adicional da observação da neurose experimental nos animais mostra que as manifestações eram
diferentes consoante os animais – ou seja, alguns eram mais excitáveis do que outros, mostrando que os animais (tal como os humanos)
apresentam diferenças de “temperamento”.
Goodwin (2005), refere que os psicólogos norte-americanos teriam conhecido Pavlov pelo prémio Nobel, e não pelo seu impacto das
investigações sobre os processos do condicionamento.
O trabalho de Pavlov teve grande impacto sobre Skinner, levando-o a estudar o comportamento, após ter lido “Os reflexos condicionados”
de Pavlov. Refere Jesuíno (1994), que Pavlov terá trabalhado à luz de archotes durante a guerra, e em plena revolução de 1917,
repreendeu um colaborador seu que se atrasara por ter ficado preso nos conflitos de rua, o que sugere o cariz do autor.
Sensivelmente pela mesma época, i.e., no início do século XX, mais precisamente em 1903, Watson apresenta no seu doutoramento,
uma série de investigações com ratos, descrevendo o contributo de cada órgão dos sentidos (privando os animais sucessiva, e
diferencialmente, de cada um) para a aprendizagem do percurso de um labirinto (Jesuíno, 1994). Esses trabalhos mostravam a
possibilidade de se usarem métodos objetivos, como já anteriormente se haviam visto nos de Pavlov, cujo impacto na psicologia
americana se terá destacado nos anos 1920-1940, após terem sido traduzidos para inglês.
Em síntese, nesse início do século XX a psicologia norte-americana, como já encontráramos, por exemplo com Cattell, defendia a adoção
de metodologias objetivas que se afastassem da introspeção. Na mesma senda, Watson (1878-1958), defendia, também, o recurso a
metodologias mais objetivas do que a clássica introspeção usada na psicologia inicial; referindo os textos históricos que Watson não se
interessava pela psicologia introspetiva, mas tinha especial interesse pela psicologia comparada.
Refere Kendler (1992), criticamente num capítulo de um livro de história da psicologia, que Watson, foi o fundador do behaviorismo em
parte porque tinha as qualidades necessárias para um pensamento revolucionário – i.e., era um orador fácil, um pensador original, um
escritor lúcido e enérgico, para além de ser polémico.
O behaviorismo clássico, pode ser descrito por cinco características, ou orientações básicas; (1) o objetivismo; (2) uma orientação
estímulo-resposta; (3) posição periférica; (4) ênfase na aprendizagem associacionista; (5) ambientalismo.
A ideia básica partilhada por todos os behavioristas é (de acordo com Kendler), um compromisso metodológico que os primeiros
behavioristas descrevem como defendendo uma psicologia objetiva, e uma aversão ao exame direto da consciência.
A tese de doutoramento de Watson incidiu sobre o estudo da relação entre o desenvolvimento cortical e a aprendizagem em ratos
brancos jovens, depressa descobrindo que esses animais faziam facilmente associações, e que essas se correlacionavam com esse
mesmo desenvolvimento. Watson tinha já observado estudos de outros, como Carr (1873-1952), e juntos eliminaram sucessivamente “a
possibilidade de os animais usarem os sentidos” para sair do labirinto. Com técnicas de remoção dos olhos dos animais, dos ouvidos,
e/ou do bolbo olfativo, observaram que mesmo sem os sentidos, os ratos aprendiam a percorrer e sair do labirinto. Por sucessivas
eliminações das variáveis, Watson e Carr, concluíram que os únicos fatores significativos para as associações aprendidas eram as
“impressões cinestésicas”.
Refere Leahey que, se é verdade que o behaviorismo radical tenha sido confinado a um gueto, não será verdade que tenha desaparecido.
Pela década de 1950 o contributo de Skinner (1904-1990) tornar-se-ia visível nos EUA no campo da psicologia, assumindo-se como um
destacado comportamentalista, com inúmeros seguidores. Não deixa de ser estranho ter ficado na história (também) por ter criado um
berço com temperatura regulada no qual as crianças ficavam contidas, berço que utilizou com o seu filho mostrando as “vantagens” da
possibilidade de controlo das condições físicas mais adequadas ao bem estar da criança; daí dizer-se que o sistema de psicologia de
Skinner será em vários aspetos um reflexo das suas próprias experiências de vida.
Skinner foi encarregue do treino de pombos para seguirem bombardeiros durante a segunda Guerra Mundial, mostrando com os treinos
das aves como os comportamentos reforçados perduravam, enquanto que os comportamentos não reforçados desapareciam.
De notar que algumas das posições do autor eram bastante criticadas, nomeadamente a que defendia que as pessoas não têm livre
arbítrio, o que justificaria (talvez) a sua ideia da possibilidade (ou vantagem?) do controlo dos comportamentos por efeito de reforços.
Refere a história que Skinner construiu na cave de sua casa a sua própria “caixa de Skinner”, i.e., um ambiente controlado que lhe
proporcionava tranquilidade (como tantas outras pessoas terão pelo mundo fora as suas garagens privadas/ seus sótãos isolados, seus
bunkers secretos).
A tese fundamental de Skinner é de que a vida resulta de um produto de reforços passados, assumindo ele que a sua própria vida fora
fortemente predeterminada.
Em 1948 Skinner escreve uma novela “Walden Two” que retrata uma visão utópica para a promoção da justiça social e bem-estar para
todos; já anteriormente (em 1945) escrevera um conto “The sun is but a morning star”. Skinner, entretanto estacionado num navio ao
alargo do Oceano Pacífico nos finais da II GG., interrogava-se sobre o futuro possível para os militares desmobilizados, referindo:
“What a shame” he said, “that they would abandon their crusading spirit and come back only to fall into the old lockstep American life – getting a
job, marrying, renting an apartment, making a down payment on a car, having a child or two” (Skinner, 1979, p.319, cit in Altus & Morris, 2009).
[…]
Quando lhe perguntaram o que deveriam fazer em lugar disso, terá respondido Skinner:
“They should do experiment; they should explore new ways of living, as people had done in the communities of the nineteenth century” [… ]
(Skinner, 1979, p.319, cit in Altus & Morris, 2009).
No conhecido texto de Leahey (1991) sobre história da psicologia, encontramos uma afirmação que refere que o mais conhecido e mais
influente behaviorista é Burrhus Skinner cujo behaviorismo radical foi aceite (Leahey, p. 261).
Skinner terá defendido que as ligações mentais não acrescentam nada ao comportamento, pelo contrário, só complicariam pela
necessidade de criar explicações para essas mesmas ligações. O modelo mecanicista bastaria para explicar os acontecimentos pela
força da ação causal de forças várias, no tempo e no espaço. A interpretação de Skinner – inspirada no discurso de Darwin – argumenta
que o organismo está constantemente a produzir traços variados de comportamentos, sendo que uns desses atos serão reforçados e
outros não; os atos que não são reforçados tendem a não se repetir, e os atos que levam a consequências favoráveis tenderão a manter-
se.
Baseando-se na obra Walden de David Thoreau (ensaísta, poeta, filósofo, e abolicionista americano que, entre outros papéis, defendeu a
desobediência civil) Skinner retrata uma reflexão sobre a vida simples cercada pela natureza, publicando, em 1948, um conto utópico –
Walden two – no qual as personagens falam acerca da possibilidade de constituírem uma comunidade numa zona rural na qual
desenvolveriam uma vida simples e auto suficiente em termos materiais, como emocionais, semelhante a muitos americanos de classe
média dos anos 1940. Nesse conto – utópico – apresenta uma comunidade rural de mil membros na qual cada aspeto da vida estaria
controlado pelo reforço positivo. Referem Schultz e Schultz (1981), que esse livro terá surgido num período de depressão de Skinner e a
personagem narra (terá admitido Skinner), os seus próprios problemas pessoais.
Skinner sugeriu cinco interessantes princípios de vida no seu livro:
Outros autores, como Ardila (2008), também inspirado por Skinner escreveu – Walden III – obra na qual destaca a importância do papel
das crianças, da família, do trabalho, da reforma, da educação , ... .
Sinteticamente, o que se tenta mostrar, ou criar, recorrentemente, é a incessante procura de respostas para a preservação do bem-estar
social e justiça para todos. O que para Skinner poderia ser exemplificado com a sociedade de Los Horcones, criada no méxico em 1971,
por um pequeno grupo de pessoas, algumas delas psicólogos comportamentalistas que buscavam a prevenção e resolução dos
problemas sociais, através da construção de uma sociedade comunitária planeada.
A comunidade Los Horcones viria a criar um centro para crianças com deficiências de comportamento, com uma experiência já de 30
anos de incentivo e treino de competências, para que essas crianças desenvolvam maior autonomia, e possam ter uma vida satisfatória.
Voltando a Skinner, a história refere que se envolvia em interesses vários e utópicos, já desde a sua juventude, sendo particularmente
crítico dos sistemas baseados no lucro, e no excesso de trabalho. A sua postura viria a influenciar pensamentos políticos de nomes como
Mahatma Gandhi e Martin Luther King Junior.
Questões de auto-avaliação
Refira o contributo de autores como Watson ou Skinner para o desenvolvimento da psicologia.
Distinga as caraterísticas do condicionamento clássico e do condicionamento operante (particularizando com exemplos).
Refere Richard Sennett, (1971), com pertinência, e certo humor, (1971), a ideia de que poderíamos dizer que existem três “Skinners” (e
não um): a) o Skinner experimentalista, que ao longo de mais de trinta anos terá estudado o modo como animais e humanos criam
hábitos (i.e., comportamentos) por efeitos de reforços (como, já encontráramos antes com Pavlov ou Thorndike, entre outros); b) o
Skinner da novela “Walden Two”, na qual se aspira à possibilidade de criar uma sociedade altruísta e livre; c) e o Skinner como filósofo
moral (que poderia ser questionado).
Consta na história que Skinner terá aderido ao comportamentalismo após a leitura do artigo de Watson de 1913 (Augusto & Sampaio,
2005).
É curioso encontrarmos a ideia de que um dos marcos da afirmação da psicologia científica possa ser – não o laboratório de Leipzig –
mas a posição de Skinner sobre o comportamentalismo radical; chegando o autor a ser considerado o “psicólogo mais eminente do
século XX” (cit. in Augusto & Sampaio, 2005, p. 372).
No ensaio de Skinner – Beyond Freedom and Dignity (1971) – o autor defende que apenas desenvolvendo uma tecnologia científica do
comportamento o homem conseguirá conceber um futuro seguro. Defende ainda o poder da ciência para conter a explosão da natalidade,
refere-se às ameaças nucleares, à melhoria das condições sanitárias, e comenta os avanços da tecnologia que permite controlar o
mundo físico e biológico. Skinner parece espantar-se perante a ideia de como, apesar de todos os progressos a que vimos assistindo,
como se justificará que as práticas de governação, as questões da educação, e as questões económicas não apresentem melhorias?.
Refere ainda o autor:
For more than twenty-five hundred years close attention has been paid to mental life, but only recently has any effort been made to study human
behavior as something more than a mere by-product (sublinhados nossos).
The conditions of which behavior is a function are also neglected. The mental explanation brings curiosity to an end.
1.4.6. O movimento da Gestalt
A psicologia da gestalt, ou psicologia da forma, assume-se como um campo de estudos interessado nas questões da perceção e do
pensamento, recorrendo paralelamente ao método experimental, e estudos de campo com animais, ou com sujeitos humanos.
Os gestaltistas estavam interessados em compreender os processos psicológicos envolvidos nas ilusões de ótica – ilusões como as que
permitiram rodar os primeiros filmes nas décadas dos anos 1910-1920 – que conhecemos particularmente bem através dos clássicos
filmes rodados por Charles Chaplin) – nos quais se consegue ainda perceber a sucessão rápida da projeção de posições sucessivas,
que induzem a perceção de movimento – tendo sido em 1895 que os irmãos Lumière exibiram pela primeira vez o cinema.
Não podemos deixar de recordar que algumas dessas películas de Chaplin (nascido em Londres em 1889), ao retratar com um humor
subtil, outras vezes bem mordaz e certeiro, suscitaram boicotes ao autor que retratava nos seus filmes as condições miseráveis de vida
da classe operária, e dos mais pobres. Embora essas críticas fossem “suavizadas” pelo humor das descrições nos filmes, o facto é que
Chaplin foi obrigado a refugiar-se na Suíça, tanto mais que o governo americano confiscara os seus bens e proibira a sua entrada nos
EUA.
Em 1910, outro psicólogo – Max Wertheimer – estaria a viajar num comboio de Viena quando olhou para um sinal ferroviário que tinha
duas lâmpadas, uma acendia-se e logo se apagava, e assim sucessivamente – o que os passageiros “viam”, não eram lâmpadas a ligar-
apagar (num intervalo de mais ou menos 60 milissegundos), mas antes um movimento que ficou chamado de “movimento aparente”.
Wertheimer ficou empolgado e resolveu estudar experimentalmente esse “fenómeno”, que partilhou com Köhler, e mais tarde com Koffka,
entre outros (Engelmann, 2002).
Encontramos assim o contexto da teoria da gestalt na Áustria e Alemanha, voltando ao berço da psicologia científica, e afastando-se das
metáforas elementaristas que haviam sido úteis nos primeiros tempos da psicologia laboratorial.
Surgem novas posições, que refutam a ideia de que uma simples adição de elementos possa levar à compreensão dos fenómenos
complexos da consciência. E desenvolvem-se novas interpretações que mostram como combinações variadas de elementos sensoriais
originam novos padrões, ou seja, novas configurações – daí poder-se dizer que uma gestalt é anterior à existência das partes, pois que o
que percecionamos em primeiro lugar é um todo (e.g., quando vejo um carro vejo-o como ele é na sua totalidade, não recorro à soma
detalhada das suas componentes para conseguir perceber que é um automóvel).
É muito curioso recordar que já Aristóteles – no longínquo século IV a.c. referia “o todo é, com efeito, necessariamente anterior à parte...”
significando que o importante é sempre a forma total e não os elementos” (Engelmann, 2002).
Também como antecedentes dessa posição, teríamos, por exemplo, a influência de Kant (1724-1804) quando este refere que a perceção
não resulta de uma soma de elementos, mas antes, que ela utiliza juízos a priori; ou seja, a perceção imediata resulta da organização que
a mente atribui aos elementos constituintes da totalidade, que cria uma dada forma, seja ela física, sonora, ou outra (e.g., a marca que a
base de um copo gelado deixa numa superfície lisa, é “vista” por alguém como o desenho de um “smile”).
Os gestaltistas mostram que quando os elementos sensoriais são percecionados, eles são “vistos” consoante um padrão que o sujeito
constrói através da sua interpretação pessoal imediata (i.e., não mentalizada), acerca da organização dos elementos que observa. Se os
elementos percebidos não apresentarem determinadas caraterísticas – como, e.g., o equilíbrio, a simetria, a estabilidade, simplicidade e
regularidade, não se obtém a “boa-forma” – i.e., não se obtém uma gestalt.
Diz-se que o movimento da Gestalt surge de uma investigação de Max Wertheimer, em 1910, acerca da observação do movimento
aparente, ou “fenómeno phi” – fenómeno que consiste no facto de que quando olhamos para pontos de luz que em pequenas frações de
segundo mudam de posição, o que observamos objetivamente é um movimento da luz (quando na realidade são sucessivos pontos de
luz a surgir e apagar-se, numa sequência rápida). Este fenómeno (que todos conhecemos no Natal com as luzes das árvores e das ruas
da cidade), ocorre fruto da organização de elementos parcelares, envolvendo questões de distância e frequência com que se ligam e
apagam as lâmpadas. O mesmo se passa quando escutamos uma melodia; i.e., para que uma melodia, ou mesmo um texto escrito (ou
oral) seja harmonioso e compreensível, tal depende não apenas dos elementos constituintes (notas musicais, ou palavras), mas da forma
como são dispostos esses mesmos elementos – daí dizer-se que uma totalidade é mais do que a soma das suas partes; ou seja uma
Gestalt resulta de uma dada organização dos seus elementos.
A teoria da gestalt surge assim, de certa forma, de um questão acerca da perceção no século XIX – i.e., “se toda a perceção é composta
por elementos sensoriais, como muitos proeminentes psicólogos afirmavam, quais serão os elementos responsáveis pelo espaço, ou
tempo? Christian von Ehrenfels (1859-1932) sugere-nos que “formas-de-espaço”, ou “formas de melodias” são definidos como “uma
totalidade, e se tentarmos particularizar/separar os elementos, destruímos essa mesma totalidade. Uma gestalt, e.g. uma melodia, não
pode ser decomposta em parcelas sem se destruir a si mesma.
Autores como Wertheimer (1880-1943), Koffka (1886-1941), Köhler (1887-1967), entre outros situam-se nesta perspetiva teórica, da
escola de Berlim. Mas outras fações do movimento da gestalt surgiriam.
As investigações de Köhler nas ilhas de Tenerife (ao longo de sete anos) levam, Santamaría (2001), a afirmar que Köhler se torna o autor
mais proeminente entre os psicólogos gestaltistas, ao demonstrar nos seus trabalhos o papel da perceção/reestruturação cognitiva, na
interpretação de uma gestalt; por exemplo, quando um chimpanzé tem à disposição um ramo comprido que manuseia e consegue –
inadvertidamente – alcançar as bananas, esse mesmo ramo torna-se, subitamente, um “instrumento com significado útil”; isto é, o
campo (a situação) passa a ter um novo significado, pelas possibilidades que agora o animal atribui a esse mesmo bastão, que passa a
ser encarado como instrumento útil. A reestruturação súbita do modo como o sujeito passa a ver o objeto (com um novo significado – ou
como uma nova gestalt) contribui para ultrapassar as metáforas associacionistas e elementaristas dos primeiros momentos da
psicologia experimental.
Koffka sugere que gestalten, não se aplica apenas a uma imagem, mas também às ações dos indivíduos, como o conjunto de
movimentos que cada um faz para um dado ato-ação, e que cada um de nós executa de forma peculiar (e.g., todos andamos, mas cada
um tem a sua forma particular de andar, de tal modo que quando vemos ao longe o movimento de uma figura familiar, identificamos quem
é, não por a ver detalhadamente, mas, muitas vezes, apenas pela forma como se move). Seguindo o modelo teórico da gestalt as nossas
perceções mais imediatas não são um conjunto de atividades/dados separados, mas antes um sistema dinâmico no qual os elementos
se conjugam entre si formando uma totalidade significativa. De notar que os princípios gestaltistas estavam em oposição com grande
parte da tradição académica da psicologia de então na Alemanha.
Terá dito Köhler, “estávamos eufóricos com o que descobríamos (...), e mais ainda com a perspetiva de descobrir mais factos
reveladores”.
Os psicólogos gestaltistas estavam fascinados com o que descobriam – sendo essa descoberta a refutação da conceção elementarista
da perceção – i.e., a perceção não poderia ser explicada apenas por uma “reunião de elementos sensoriais”, pois que diversos outros
fenómenos, como o próprio modo como se organizam esses mesmos fenómenos, é que darão o significado final.
Compreende-se também que o termo gestalt tenha causado dificuldades, pois que não indicava diretamente o que significaria para o
comum dos estudiosos – com efeito encontramos vários equivalentes, como seja, “forma”, “totalidade”, “configuração”.
As afirmações a partir das premissas observadas por Köhler, sugeriam assim algo muito diverso das anteriores premissas da
aprendizagem (por ensaios e erros) definida por Thorndike e outros. A partir da apreensão de uma nova gestalt – por exemplo quando
olhamos “com novos olhos” para alguém que acabámos de descobrir que nos enganara, e que nunca nos havia passado pela ideia que
tal ocorresse, dificilmente conseguimos aceitar confiar como anteriormente, pois que lhe atribuímos novo significado que não
conseguimos negar (e.g., como a namorada que confiava piamente no seu parceiro e descobre subitamente que foi enganada).
Um outro gestaltista se destaca entretanto – i.e., Kurt Lewin (1890-1947), que aplica uma certa visão da física do seu tempo à noção de
“força do campo” – o que significa esse conceito? Lewin sugere que a personalidade pode ser encarada como um “campo de forças”, de
valências positivas e valências negativas, sendo então que as pessoas tentarão gerir essas forças de forma equilibrada para anular
tensões no seu comportamento e/ou desenvolvimento. O equilíbrio é encontrado quando as suas necessidades são satisfeitas – todas as
variáveis que influem na manutenção do equilíbrio do sujeito num dado momento, constituem o que o autor designa de espaço vital.
Podemos dizer que esse espaço vital é composto por fatores pessoais como as crenças, as necessidades, as metas, e por fatores
ambientais que são variáveis externas ao sujeito e percecionadas por ele de forma única. Também o próprio timing das condições desse
espaço no qual se move o sujeito serão, obviamente, significativas (e.g., o ter um bebé é, em princípios latos, algo muito bonito, porém o
ter um bebé na adolescência não é desejável... .
Compreende-se assim que para entender, ou prever comportamentos, o meio no qual se move o sujeito é fundamental, uma vez que a
constelação de fatores desse contexto influi no sujeito. A noção de campo de Lewin remete, e visa explicar, para os aspetos individuais
relacionados com o ambiente próximo, as condições que influenciam o comportamento, e o timing dessas mesmas condições. Lewin
falava da importância de caraterizar a atmosfera (i.e., o clima emocional) da situação, bem como do nível de liberdade presente nessa
mesma situação, para que a possamos compreender. Sendo, seguindo Lewin, que o comportamento do sujeito resulta quer de fatores
externos a si próprio, como a fatores internos, em constante relação, o campo, em si mesmo pode ser definido como a totalidade dos
factos/acontecimentos coexistentes, e modo como são apreendidos. Com efeito – no mesmo campo – exemplo uma biblioteca, uns
sentem-se bem pela sua tranquilidade, outros sentir-se-ão claustrofóbicos temendo não se podendo mexer!
Em síntese, a teoria da gestalt surgiu, como vimos, como uma resposta à posição elementarista de Wundt, e de outros. Mas para alguns
autores, as proposições dessa teoria pecavam pela especulação.
Questão de auto-avaliação
Refira dois exemplos/estudos ou situações que retratem investigações que comprovam a teoria da Gestalt (pode dar exemplos
pessoais).
1.4.7. Psicanálise e psiquiatria incipientes
A psicanálise é uma escola de pensamento que, como refere Santamaría (2001), de certa forma, se desenrola paralelamente (ou mesmo
à margem) da história tradicional da psicologia. Com efeito parece-nos que nalguns meios académicos de estudo da psicologia, a
psicanálise parece, ainda hoje proscrita. Como se justifica essa posição? A resposta pode ser por a psicanálise (eventualmente com
exceções de países como a Argentina), não se ter infiltrado verdadeiramente no meio académico, pois que esse meio não lhe atribui o
controlo exigido pelo método científico. Ora, as escolas que temos vindo a descrever sedimentam-se nos esforços de cumprirem as
exigências científicas, recorrendo ao “controlo”, “experimentação”, “refutação”, e “raciocínio hipotético-dedutivo” baseado em
experimentações. Mas, periodicamente reencontramos a questão A psicanálise é científica? (Legrand, 1980), referindo o autor que pode
ser que apenas existam práticas científicas distintas umas das outras.
Entre os finais do século XVIII e início do século XIX, segundo Goodwin (2005), verificam-se tentativas diversas de humanizar o tratamento
dos doentes mentais. O mais conhecido autor desse movimento foi, provavelmente, e como vimos anteriormente no início destas
páginas, o francês Phillip Pinel (1745-1826), que se destacou na psiquiatria francesa ao introduzir cuidados sensíveis, alimentação
adequada, e trabalhos leves para ocupar os alienados na clínica de Bicêtre (para homens) e na clínica da Salpêtrière (para mulheres). O
livro de Pinel, “Traité sur la manie”, pode ser considerado, segundo Lopes (2001), “a publicação número um da psiquiatria” (p.28).
No seu Traité Médico-Philosophique sur l’Aliénation Mentale (1801), Pinel terá afirmado que “os alienados, longe de serem culpados a
quem se deve punir, são doentes cujo doloroso estado merece toda a consideração devida à humanidade que sofre e para quem se deve
buscar pelos meios mais simples restabelecer a razão desviada” (Pereira, 2004).
Quando Pinel escreve o segundo livro, abandona o conceito global de mania, considerando a loucura como uma manifestação global e
especial que se relacionará com o sistema nervoso. Será Griensinger, psiquiatra alemão, que dirá: “doenças mentais são doenças
cerebrais”, defendendo que a desordem mental, a perturbação mental, e a doença mental são uma coisa única (Lopes, 2001). Entretanto
diversos autores vão descrevendo diversas formas de loucuras.
Em Inglaterra, nos anos 1790, encontramos a iniciativa e contributo de William Tuke, (1732-1822), um comerciante de chá filantropo que
pertencia ao grupo religioso conhecido como os Quakers – que, embora pouco numerosos, se envolveram, ao longo da história, em
movimentos significativos, como a abolição da escravatura, a luta pela igualdade de direitos das mulheres, e a promoção da paz. Outros
dos seus contributos encontram-se no incentivo e divulgação da educação, e na defesa de tratamentos sensíveis para os doentes
mentais, bem como para os prisioneiros; para além de ter impulsionado as reformas dessas mesmas instituições.
Dedicado aos Quakers que sofriam de doenças mentais e projetado num ambiente rural – o York Retreat fundado em 1792 – abriu, em
1796 prestando um tratamento humanizado que se tornaria modelo para outros países. Os pacientes que se comportavam bem eram
recompensados com maior liberdade e podiam aceder a oportunidades de trabalho e de recreação. O ambiente protegido onde viviam
serviu de modelo para a organização de vários outros hospícios privados dos Estados Unidos nos primeiros 25 anos do século XIX
(Goodwin, 2005). Ao contrário de outras instituições mentais da época, não se utilizavam as correntes nem punições físicas, mas antes
introduziram a terapia ocupacional, incluindo passeios, e trabalhos no campo, num ambiente também trespassado pela religiosidade. O
modelo de cuidados de William Tuke ficou conhecido sob a designação de “tratamento moral”. E a filosofia subjacente ao Retreat
continua presente nos hospitais psiquiátricos da atualidade; procurando-se respeitar e promover a dignidade dos pacientes, não obstante
as suas fragilidades.
Ainda nos finais do século XVIII, inícios do XIX, impôs-se o francês Itard (1775-1838), ao interessar-se pelo estado e desenvolvimento de
um rapaz que ficou na história como L’enfant sauvage (o menino selvagem) – e cujo comportamento seria alvo de especulações diversas
na época.
As explicações acerca da doença mental, ou desvios de desenvolvimento, têm sido várias e diversas ao longo da história, sobressaindo;
a) as explicações biológicas, defendendo que todas as doenças mentais derivam de um mau funcionamento de alguma parte do corpo;
b) explicações sobrenaturais que prevaleceram sensivelmente desde a queda do Império Romano, (embora os médicos gregos como
Hipócrates tivessem já na época uma conceção naturalista da perturbação mental); c) explicações psicológicas, sugerindo que são
processos como o medo, ansiedade, frustração, culpa, etc., que estão na base do comportamento anormal. Terá sido
Quanto a Pinel (1745-1826) a sua nomeação como médico para diretor da secção dos “alienados”, assume um significado muito
importante pelo reconhecimento oficial do cariz médico da alienação. Defende o autor que se pode aprender acerca da natureza humana
através do estudo das doenças mentais, e o seu contributo abre as portas para a ideia de que a loucura pode ser tratada como uma outra
qualquer enfermidade.
Os cuidados aos doentes mentais foram muito tempo negligenciados, e ainda hoje assistimos a preconceitos acerca das doenças da
mente, pelo que continua premente o estudo de causas das perturbações psicológicas. Não podendo ignorar-se que para os insanos
mais pobres, a probabilidade de mais frequentemente que os outros, serem abandonados pelas famílias, vagueando e mendigando, ou
sendo recolhidos em asilos foi sempre maior.
Também, ainda no século XVIII, encontramos uma das histórias clássicas da psicologia do desenvolvimento que despoleta as questões
acerca da influência do meio no desenvolvimento; refere-se ao menino selvagem de Aveyron, narrado no filme de 1969, dirigido por
Truffaut, que se inspira numa história real passada em 1797. Trata-se da descoberta de um rapaz (entre os 11 e 12 anos) que é
encontrado num bosque, no sul de França, aparentando não ter tido contactos com a sociedade humana (cf. in Malson, 1978; ou Pereira
e Galuch, 2012). A questão a saber seria se as limitações do rapaz (que não sabia falar, andar ou expressar-se compreensivelmente),
derivavam do reduzido, ou nenhum, contacto com humanos, ou se de anomalias inatas.
O filme de Truffaut retrata o empenho de um médico – Itard – (discípulo de Pinel), que se responsabiliza pela guarda do menino e da sua
recuperação educativa para que pudesse vir a integrar-se na sociedade. Com ajuda da sua governanta, Itard demonstrará que as
dificuldades do desenvolvimento da criança (a que a governanta chamou de Victor) seriam sensíveis à estimulação pela socialização. De
salientar que a hipótese de Itard sobre o efeito da influência social no desenvolvimento cognitivo era inovadora na época.
O estudo do caso do menino de Aveyron (1788-1828) mostra a possibilidade de mudanças após condições de desenvolvimento muito
adversas, e incentiva a reflexão sobre a interferência de aspetos biológicos e sociais no desenvolvimento humano, sugerindo a
responsabilidade coletiva dos contextos envolventes (i.e., negligências versus cuidados sensíveis), e da responsabilização individual dos
cuidadores; temas esses que são intemporais.
Ainda no século XIX, destaca-se o contributo Dorothea Dix (1802-1887) que viria a afirmar-se como uma grande educadora e reformista
social nos EUA (terá saído de casa aos 12 anos para evitar o clima do lar, no qual terá sido negligenciada, e começando aos 14 anos a
dar aulas a raparigas pequenas, criando o seu próprio programa, que incluía ciências naturais e responsabilidades éticas de vida). Dix
contribuiu para a melhoria das condições nos hospícios, manicómios e demais instituições públicas (como escolas). Impulsionou a
alteração das condições de mais de 30 hospitais para doentes mentais, e liderou movimentos que alteraram a ideia de que os doentes
mentais não poderiam ser curados ou ajudados. Criou ainda uma escola básica em 1821, em casa da sua avó, e publicou vários livros de
religião, poesia, e textos ficcionais acerca de questões morais, o que a aproximou de vários pensadores influentes do seu tempo. Em
1841 Dix voluntariou-se para dar aulas na prisão de East Cambridge a mulheres condenadas, tendo aí observado as condições
desumanas, negligentes e de doença mental que proliferavam. O modelo de cuidados – “tratamento moral” – baseava-se no trabalho de
Pinel, e nas práticas hospitalares mais recentes. Embora Dix tivesse bastante influência política e promovesse a educação das mulheres,
nunca defendeu o movimento feminista da época (Dix, 2006). Em Novembro de 1948 a Hygiene Society and N. C. Neuropsychiatric
Association atribuiu a Dix o mérito de “forgotten Samaritan”.
Como outros reformistas do século XIX, Dorothea Dix fica na história, e deixa o significativo contributo da criação de 47 hospitais e
escolas para os mentalmente deficientes (Goodwin, 2005). Em 1845 publicou “Remarks on prisons and prison discipline in the United
State”. A determinação de Pinel para humanizar o tratamento das perturbações mentais abrira a porta a muitos seguidores. Entretanto as
tentativas de tratamento das doenças mentais recorriam a estratégias como as sangrias – prática corrente ainda no início do século XIX –
ou a formas de “tratamento moral” sob recompensas e castigos.
Mesmer apresenta a teoria do magnetismo, constatando que aplicando imanes em diferentes partes do corpo o sujeito sentir-se-ia
melhor. Depressa se constatou que o alívio dos pacientes se devia mais à indução do relaxamento, que levaria a um estado semelhante
ao do sono, estado que se chamou de neuro-hipnose. Duas posições diversas surgem então visando explicar esse fenómeno; a escola
de Nancy encabeçada por Liébault, e Bernheim, que consideraram o transe hipnótico natural (e não patológico); e a escola da Salpêtrière,
de Charcot (1825-1893), que defendia que a hipnose estava relacionada com o transtorno histérico, induzindo sintomas, e também
conseguindo removê-los por sugestão hipnótica. Bastaria dizer “o seu braço vai ficar paralisado” e ao despertá-la, o braço permanecia
paralisado sem que a paciente soubesse como. A paralisia induzida por sugestão assemelhava-se a uma paralisia histérica, pois não
tinha causa fisiológica.
Freud (1856-1939), trabalhou algum tempo com Charcot desenvolvendo uma teoria própria sobre a histeria, teoria que daria origem à
psicanálise. A primeira obra de Freud sobre a psicanálise foi realizada juntamente com Joseph Breuer (1842-1925), recorrendo ao
método catártico. Esse método consistia em levar o paciente – sob hipnose – a reviver uma experiência traumática que teria originado a
perturbação. Referira Freud acerca de uma paciente:
Durante a hipnose, convido-a a falar, conseguindo-o depois de leve esforço. Fala em voz baixa e reflete um pouco antes de cada resposta. Sua
expressão muda de acordo com o conteúdo do relato, serenando-se por fim, por sugestão, à impressão que o mesmo lhe causa (Freud, In
Obras Completas, Edições Standard brasileira, v.XI, Rio de Janeiro: Imago [1905] 1996b).
Questão de auto-avaliação
Recorde a importância das clínicas da Salpêtrière e de Nancy para o avanço dos tratamentos mentais (não descurando a descrição
dos excessos cometidos, reconhecendo que se devem ao espírito da época).
Questão de auto-avaliação
Refira o contributo de Dorothea Dix e de Pinel para o avanço da psicologia (concretize com exemplos).
Foi a dificuldade com que se deparou para remover sintomas das pacientes pela sugestão, que levou Freud a alterar para o método
catártico, seguindo o exemplo que Breuer usara no caso de Anna O (nome fictício para a proteger, vindo a saber-se que se tratava de
Bertha Pappenheim) (1859-1936). Bertha era instruída, recebera instrução religiosa, fizera estudos hebraicos, estudara os textos bíblicos,
e dominava três línguas estrangeiras, costura, piano, equitação; porém sufocava no seu meio, refugiando-se na doença, sendo
diagnosticada por Breuer como padecendo de histeria. Por várias vezes Bertha foi internada, mantendo-se sempre o diagnóstico, e
continuando a ser seguida pelo método que consistia em levar a paciente a recordar, verbalizando, os sentimentos reprimidos numa dada
situação a que estivessem associados.
É no livro de Borch-Jacobsen (2011), obra que narra alguns dos destinos de pacientes de Freud, que seguimos o percurso de Bertha.
Terá sido ao envolver-se ativamente em obras sociais judaicas, e fazendo trabalho de beneficência em sopas dos pobres para imigrantes
da Europa Oriental, e num orfanato feminino no qual chegou a ser diretora em 1895, que se terá sentido realizada, encarando o seu
trabalho social como uma mitzvah, ou seja, uma boa ação.
O método da talking cure, de que falava, ficou conhecido como “ab-reação”, pela exteriorização de emoções associadas. Entretanto,
verificou-se que um fator significativo para o efeito terapêutico seria o relacionamento especial com o médico, e não a técnica hipnótica;
constatação que justifica a importância do fenómeno da transferência (i.e., o deslocamento para o médico/analista de pensamentos ou
sentimentos originalmente associados a outras figuras que teriam sido significativas no passado dos sujeitos). Compreende-se que
Freud tenha referido, em 1905, “(...) não é o medicamento que cura esses doentes psiconeuróticos, mas antes o médico, i.e., a
personalidade do médico, pois é através dele que se exerce a influência psíquica” (Aguiar, 2016).
Ao longo desse processo, Freud compreendeu que a hipnose não encorajava a aprender sobre a origem dos sintomas, (mas antes a
agradar ao hipnotizador). Também a resistência que muitos pacientes tinham à hipnose apressou o fim do recurso ao método.
Ao longo da sua carreira Freud apresentou ainda um modelo do desenvolvimento da sexualidade que permanece como referência
significativa até hoje.
Em termos simples, os estádios de desenvolvimento da sexualidade comportam cinco etapas: 1) Fase oral – sendo que a satisfação,
e/ou acalmia é reposta pela boca (i.e., pela alimentação); 2) Fase anal – abarca o período desde o ano e meio até sensivelmente os três
anos, e associa-se ao treino do controlo dos esfincteres; 3) Fase fálica – quando a criança descobre os órgãos genitais como fonte de
prazer, ou acalmia; 4) Complexo de Édipo – etapa na qual os rapazes desenvolveriam uma atração “sexual” pela figura materna; 5) Etapa
genital – na adolescência.
Essa sequência desenvolvimental é descrita de forma sensível e compreensiva por Pedro Strecht (2001), pelo que recorreremos ao seu
texto para uma descrição mais detalhada: A fase oral representa a amamentação e a dependência fundamental do bebé relativamente
ao(s) cuidador(es), criando-se, idealmente, uma relação significativa corporizada no pegar ao colo, embalar, lavar, vestir, amamentar, etc.
Independentemente de quem cuida do bebé a(s) variáveis significativas são nesse início as sensações (não mentalizadas de forma
consciente) de que “está a ser cuidado”, “acalmado”, “satisfeito fisiologicamente”, e sem tensões corporais extremas. A fase anal implica
a necessidade de controlo, no caso, a necessidade de controlo dos esfíncteres, mas não só, pois que introduz essa dimensão
fundamental que dará à criança a noção de poder controlar-se, e opor-se, para se afirmar. Todavia o excesso do controlo pode levar a
traços obsessivos, ou a tendências demasiado perfeccionistas, e a ausência de controlo pode contribuir para criar adolescentes frágeis,
com estruturas psíquicas pouco sólidas.
A fase fálica é marcada, segundo Strecht (2001), pelas repercussões psicológicas da consciencialização da diferença entre os sexos.
Aguça-se a curiosidade sobre a diferença, sendo a “idade dos porquês”. A criança questiona, quer saber, necessita de explicações. As
respostas devem ser adequadas às vivências da sua idade, e não imiscuir-se em conteúdos de cariz sexual que não possam assimilar, e
que possam levar a bloqueios pela incapacidade da compreensão do ato.
A fase da latência é típica do início da puberdade. Se tudo correu bem anteriormente, o desejo de conhecer (saber), fazer coisas,
desporto, coleções, organizar atividades várias, é desenvolvido. É também a altura de se envolverem em questões mais transcendentes,
como a religião, ou espiritualidade. Um ponto importante desta fase são as questões da identidade de sexo.
A adolescência é definida pelo aparecimento da puberdade, i.e., das transformações corporais, sendo o ponto fulcral o desenvolvimento
sexual, nomeadamente “pelas repercussões da possibilidade real de reprodução” (in, Strecht, 2001, p.76).
Quanto ao desenvolvimento da psicanálise, o facto é que Freud deixou uma profunda influência na cultura ocidental (Goodwin, 2001). Ao
longo da sua carreira apresentou inúmeras palestras, curtos relatos de psicanálise, para além dos seus escritos; alguns no formato de
“pequenas lições” – como o extrato que aqui deixamos de uma das suas palestras proferida nos EUA:
Quarta lição
(...) o exame psicanalítico relaciona com uma regularidade verdadeiramente surpreendente os sintomas mórbidos a impressões de vida erótica
do doente; mostra-nos que os desejos patogénicos são da natureza dos componentes instintivos eróticos: e obriga-nos a admitir que as
perturbações do erotismo têm maior importância entre as influências que levam à moléstia, tanto num como noutro sexo.
Bem sei que não se acredita de boa mente nesta afirmação. Mesmo os investigadores que me seguem solícitos (...), são inclinados a julgar que
eu exagero a participação etiológica do fator sexual (...) (cit in Freud, Livro 1 – Cinco lições de psicanálise – contribuições à psicologia do amor).
Questão de auto-avaliação
Descreva três dos estádios de desenvolvimento psicossexual, tendo em conta as descrições proferidas por Pedro Strecht.
Entretanto, face aos acontecimentos da I Grande Guerra, Freud não poderia ignorar as tendências agressivas a que se assistiam, e
nesse contexto o autor – já com cerca de 70 anos – desenvolveu a convicção de que as tendências destrutivas e não apenas as pulsões
sexuais, exercem uma motivação significativa sobre o comportamento. Nesse âmbito, em 1920, publica “Para além do princípio do
prazer” onde reflete acerca do instinto da vida (eros), expresso na motivação sexual, e na pulsão de morte (tânatos), expressa nos
comportamentos de agressividade e/ou autodestruição. Deste modo se compreende a ideia de que o comportamento humano será
movido simultaneamente por “pulsões que fomentam a vida (sexuais) e pulsões que a destroem (agressivas) (Goodwin, 2001, p.432).
Para Freud, dir-se-á, que “a Grande Guerra é, antes de tudo, a vivência do abismo de uma forte desilusão, que decorre da perda de
sentido do processo civilizador”.
Para fundamentar a teoria do recalcamento, Freud recorrera à teoria da sedução, pois que esse acontecimento – a sedução – suscitava
a necessidade de defesa, no sentido de proteger o ego de representações ligadas à vida sexual. Essa noção precursora do
recalcamento, levaria ao afastamento de Freud relativamente a Charcot. Referem Netto e Cardoso (2012), que a noção precursora da
teoria do recalcamento, marca o ponto de cisão entre Charcot e Breuer. Se Freud recorrera à hipótese da sedução para justificar o
recalcamento (de atentados sexuais perversos sofridos passivamente na infância), Freud terá de aceitar a realidade da pulsão sexual na
criança pois que ela justificará que precocemente “o corpo infantil seja acometido por pulsões parciais autoeróticas” (Netto & Cardoso,
2012), que os cuidadores reconhecem nas experiências precoces de exploração do corpo pelos seus filhos. No pensamento freudiano
encontramos duas teorias das pulsões; a primeira refere-se à dualidade entre pulsão de autoconservação e pulsão sexual, e a segunda é
marcada pela dualidade entre pulsão de vida e pulsão de morte.
Em síntese, podemos dizer que na transição para o século XX, Freud atraía a atenção de outros médicos, e nas “famosas noites de
quarta feira” discutiam-se num grupo em Viena questões várias relativas à psicanálise. O grupo alargar-se-ia, o que propiciou o
surgimento de desacordos que levariam à sua cisão, mas também a novas posições teóricas.
Outros conceitos foram surgindo, e mantendo-se desde então, como a análise estrutural da personalidade em id, ego e superego; bem
como as questões inerentes aos mecanismos de defesa do ego, sendo que estes foram formulados por sua filha Anna Freud (1895-
1982), que se dedicou à psicanálise infantil. Esta é diferente da análise de adultos, pois que esses procuram-na por vontade própria,
enquanto as crianças são levadas pelos pais, e frequentemente, não têm consciência de que estão “doentes” (talvez de facto nalguns
casos não o estejam), mas são os seus pais que se ressentem dos seus comportamentos.
Os mecanismos de defesa propostos por Freud são, a repressão, que é tida como o mecanismo fundamental, sendo usado para
defender contra a angústia (associada, para os freudianos ortodoxos a desejos sexuais inaceitáveis para o sujeito); de notar que a
repressão não implica que os desejos (inquietantes) desapareçam, apenas que foram reprimidos. A regressão é a defesa que protege o
e u (ou ego) da ansiedade, levando o sujeito a estados anteriores, menos exigentes, e a atitudes passadas nas quais se sentiram
seguros, ou a memórias gratificantes que se tornam recorrentes. A projeção, compreende-se se pensarmos que quando o ego é
ameaçado pelo id projeta a ansiedade nos outros, embora não tenha forçosamente consciência disso; por exemplo, o namorado que
acusa a namorada de lhe ser infiel, quando é ele próprio que deseja enganá-la, assim podemos dizer que a projeção é a atribuição de
impulsos e/ou sentimentos indesejáveis a outra pessoa; a negação ocorre quando o sujeito recusa aceitar uma verdade, ou a realidade
de um facto, ou experiência que lhe causa ansiedade (note-se que a curto prazo, é protetora pois que prepara o sujeito para a realidade a
enfrentar (e.g., face à morte súbita de um amigo). O deslocamento, consiste no redirecionar de um pensamento ou sentimento para um
outro sujeito (digamos menos forte do que aquela pessoa a quem seria de facto atribuído), e.g, o marido que grita com a mulher, quando
foi ele que chocou com o carro. Quer Sigmund Freud, como Anna Freud consideravam osmecanismos de defesa como indicadores de
problemas de ajustamento psicológico – i.e., traduzindo neuroses – sendo que apenas a sublimação remete para soluções socialmente
aceitáveis, cumprindo realizações produtivas (e.g., uma pessoa agressiva torna-se soldado). A racionalização sugere uma distorção da
realidade de forma a que essa se torne mais aceitável para a própria pessoa (e.g., uma pessoa que não conseguiu entrar num dado
curso académico e que diz que também não era o que queria).
Freud encarava o seu método terapêutico como forma de reduzir a ansiedade neurótica e o sofrimento, auxiliando as pessoas a lidar
melhor as tendências emocionais dentro de si. Dos meios usados nas análises clássicas com adultos – i.e., lembranças de factos
importantes – interpretação de sonhos; associação livre de ideias; e transferência; só a interpretação dos sonhos pode ser usada na
infância, pois que está focada no presente, e a sua memória, sem auxílio, não tende a voltar-se para o passado.
Como refere Goodwin (2001), “a psicanálise freudiana pode não ter tido uma boa repercussão no mundo acadêmico, mas exerceu um
forte impacto na prática psiquiátrica e cativou a imaginação do público em geral” (p.436). Temos assim duas linhas diferentes.
Questão de auto-avaliação
Descreva três mecanismos de defesa de acordo com o modelo freudiano clássico.
1.4.8. A importância dos cuidados próximos na infância
Por volta de 1958, destacam-se as experiências do psicólogo americano Harlow, sobre a privação materna e social em macacos
Rhesus, demonstrando a importância dos cuidados e contacto físico, nas primeiras fases do desenvolvimento dos mamíferos. Como
muitas vezes na história das ciências, essa observação foi fortuita, pois o afastamento dos pequenos macacos para outra jaula deveu-se
ao facto de alguns dos animais estarem infetados e terem de ser isolados, o que obrigou os tratadores a conceberam um dispositivo de
arame que dispensaria o leite aos bebés macacos (isolados). Substituindo o dispositivo de arame por um revestido de panos “felpudos”,
os tratadores constataram que os pequenos chimpanzés se anichavam quase todo o tempo nesse novo dispositivo macio, que
mimetizava o contacto com o pelo natural de outros símios; só se dependurando no dispositivo de arame para se alimentarem. A partir
dessas observações Harlow considerou que o contacto físico próximo é uma necessidade básica para os mamíferos, e em 1959 surge o
seu texto “A natureza do amor”, publicado na American Psychologist, texto que desafiava a posição behaviorista prevalecente na época.
1.4.9. A posição humanista
A psicologia humanista surge nos finais da década de 1950 e início dos anos 1960, nos Estados Unidos, num período de pós-guerra.
Compreende-se que o clima geral fosse de desesperança e de crise de valores. Compreende-se também que as duas correntes
psicológicas preponderantes – i.e., o behaviorismo e a psicanálise – suscitassem insatisfação, pelas suas caraterísticas reducionistas e
deterministas. Impunha-se um novo fôlego, que visaria resgatar o interesse pelo estudo do ser humano (Bezerra & Bezerra, 2012).
A psicologia humanista norte-americana, designada de “3ª força”, por contraponto às duas anteriores posições do behaviorismo, e da
psicanálise, propunha uma nova alternativa, sugerindo o estudo da experiência consciente; algo que ambos os movimentos anteriores
tinham descurado. Dois autores se destacam particularmente, são eles Carl Rogers (1902- 1987) e Abraham Maslow (1908-1970).
Rogers deixou cerca de 16 livros publicados, para além de uma série de artigos, abordando questões sobre o desenvolvimento da
personalidade, no sentido de mostrar como impulsionar o desenvolvimento saudável.
Relativamente ao behaviorismo, os humanistas diriam que o homem seria encarado apenas “como um conjunto de respostas a
estímulos”, e reagem ao behaviorismo opondo-se a quatro pontos fundamentais: 1) não concordam com a pesquisa com animais ( i.e., o
ser humano não é um rato de laboratório); 2) querem que os temas de investigação sejam escolhidos pela sua importância para o ser
humano, e não pela adequação à metodologia experimental; 3) opõem-se à conceção mecanicista, defendendo uma conceção proativa
da natureza humana, pois reconhecem que a motivação é intencional e auto motivada; 4) e referem que “se fosse possível ao
behaviorismo realizar um catálogo de comportamentos humanos, “tal nunca daria uma visão acurada da natureza humana pois, segundo
a sentença gestaltista, a pessoa é mais do que a soma das partes. Para os humanistas, o homem é indivisível (i.e., é o homem é uma
gestalt) (Castañon, 2007).
Refere o autor:
(...) da mesma maneira que muitos psicólogos se interessaram pelos aspetos constantes da personalidade, os aspetos invariantes da
inteligência, do temperamento, da estrutura da personalidade – também eu me interessei, desde há muito tempo, pelas constantes que intervêm
na modificação da personalidade. (...) . Qual é o processo em que essas modificações ocorrem? (Rogers, 1961).
Na primeira fase encontramos uma atitude na qual predomina a recusa de comunicação pessoal – isto é, o sujeito não consegue
verdadeiramente consciencializar a necessidade de falar sobre si próprio, com intuito de melhor se compreender. Encontraríamos
seguindo Rogers, (1961), uma série de sete processos que levariam o indivíduo a mudar de uma posição de fixidez para a fluidez
desejada, na medida em que cada um pudesse abrir-se à mudança.
Rogers, começou a interessar-se pela psicologia em 1928, ao trabalhar com crianças e com adolescentes com carências. Embora os
conceitos que desenvolveu tenham sido influenciados pelo pensamento psicanalítico, a sua posição como terapeuta distinguir-se-ia
bastante da dos analistas ortodoxos. Com efeito, nesta perspetiva, os bloqueios ou conflitos do sujeito são analisados no plano da
realidade objetiva, e sob uma conceção cognitiva. De notar que a terapia rogereiana – chamada de “não diretiva” – é aberta a um conjunto
de técnicas que se caraterizam pela atitude de aceitação dos conteúdos discutidos, e pela posição de “consideração positiva
incondicional”. Neste modelo, os sujeitos são encarados essencialmente como voltados para o crescimento (Nye, 2002).
A focalização no sujeito que pede ajuda é um ponto fulcral da terapia centrada no cliente, sendo esse cliente um sujeito considerado são,
e não doente. O método fenomenológico põe a ênfase no respeito (e esforço de compreensão) da experiência subjetiva de um outro.
Rogers refere que o terapeuta deverá “ver através dos olhos da outra pessoa”, ou seja, deve tentar aceder ao quadro de referência desse
outro que se lhe entrega, para que o esclareça. A existência de uma tendência natural para o crescimento e para a socialização mostra,
segundo Rogers, “o verdadeiro fator curativo” (Santos, 2004).
A consulta psicológica eficaz consiste numa relação permissiva, estruturada de uma forma definida que permite ao paciente alcançar uma
compreensão de si mesmo num grau que o capacita para progredir à luz da sua nova orientação (Rogers, 1942, in edição portuguesa de 1979).
Recorda Mota (2014), como a conceção não diretiva na terapia rogeriana se afirmou nos anos 40 do século XX, individualizando-se do
movimento psicanalítico, sendo um ponto forte do seu método o respeito pela não-diretividade, e considerando o método como um
envolvimento pessoal. A presença do terapeuta é estruturante, sem que este tenha, à priori, objetivos específicos para o cliente, e a
ausência de diretividade implica uma resposta empática e congruente com a experiência subjetiva do cliente.
Ainda seguindo Mota (2014), Rogers consideraria que, mais do que a “não-diretividade” da terapia, a importância do método como um
envolvimento pessoal, seria o ponto estruturante para o desenvolvimento pessoal do cliente. O facto de o cliente entender a atitude do
terapeuta, era para Rogers fundamental, projetando-se de certa forma, nas atuais posturas das terapias não diretivas do século XXI. “Não
existe nenhum caminho certo para uma “realidade verdadeira” terá dito Rogers (Ney, 2002, p.107).
A originalidade de Rogers talvez se possa compreender considerando que o autor, enquanto cientista, “reconheceu a utilidade da visão
determinista”; mas “enquanto terapeuta, a sua ênfase foi diferente”, incentivando a importância de que os pacientes no relacionamento
terapêutico pudessem agir com ampla liberdade de escolha (Ney, 2002).
Rogers defendia que as pessoas mal ajustadas são menos livres, pois que tendem a seguir modelos mais rígidos. O surgimento de uma
orientação não-diretiva em psicoterapia terá constituído um marco significativo na psicologia aplicada, como refere Ruth Sheeffer (1969),
no texto no qual reatualiza ideias veiculadas por Rogers nas décadas de 1940 e 1950.
Refere Sheeffer que Rogers terá mostrado como a orientação não-diretiva era útil no tratamento de crianças, podendo ser concretizado
com a ludoterapia não-diretiva. A terapia de grupo não-diretiva mostrava funcionar bem com adolescentes e adultos; e as mesmas
metodologia eram aplicadas com sucesso nas áreas industriais, administrativas e militares, mostrando melhorias nas relações humanas
(Sheeffer, 1969).
Terá afirmado Rogers:
Numa década vimos a terapia-centralizada no cliente (não-diretiva) desenvolver-se de um método de aconselhamento para se tornar um método
no campo das relações humanas. (...) tanto tem aplicação ao problema da admissão de um nôvo funcionário, ou à decisão a respeito de quem
deva ser promovido na empresa, quanto ao cliente perturbado pela sua incapacidade de enfrentar as situações sociais.
[...]
A alienação fundamental do ser humano é ocasionada pela falta de fidelidade para consigo próprio (in, Sheeffer, 1969).
Para Rogers, o mundo íntimo do sujeito parecia ter influência mais poderosa na determinação do comportamento, do que os estímulos
externos. A abordagem centrada na pessoa, de Rogers, assume uma atitude humanista ao interessar-se pelos significados atribuídos
pelas pessoas às suas vivências.
Para os behavioristas, o homem é uma máquina complexa, mas compreensível, que se pode chegar a manipular com maior ou menor perícia
(...). Para os freudianos, o homem é um ser irracional, produto do seu passado, ao qual irrevogavelmente estará preso pelo seu inconsciente.
Rogers não nega a validade dessas afirmações mas ressalta que há uma terceira (...): a existencial – fenomenológica (in, Sheeffer, 1969).
Com Rogers (1965), a mais significativa caraterística do ser humano “é a sua imensa potencialidade (in, Sheeffer, 1969 p. 15). Embora o
autor tivesse tido uma formação determinista, quando conheceu outros modelos de ciência integrou a vertente cientista com a vertente
vivencial. O estabelecimento de uma relação terapêutica, terá Rogers compreendido a dada altura, implica uma espécie de fusão entre os
sentimentos e os conhecimentos, sendo que o terapeuta é mais um participante do que um observador (Bezerra & Bezerra, 2012).
Um conceito fundamental em Rogers é a ideia da tendência à atualização do ser humano, defendendo que o sujeito tende inerentemente
à sua atualização (Nye, 2002). A abordagem centrada na pessoa é uma das correntes identificadas com a terceira força em psicologia,
afirmando-se como reação à insatisfação das explicações behavioristas, bem como como às da psicanálise clássica.
Como diversos conceitos de Freud, também os conceitos de Rogers podem ser considerados demasiado amplos e vagos, referindo Nye
(2002), que, eventualmente, “(...) talvez o único leitor que ele consegue alcançar é aquele que já concorda com ele” (p.167). Nye é crítico
relativamente ao modelo de Rogers, afirmando:
(...) a crítica feita anteriormente com relação ao foco intrapsíquico de Freud também pode ser feita em relação ao foco de Rogers em
experiências subjetivas. Importantes variáveis ambientais podem ser ignoradas se a atenção for primariamente direcionada para as experiências
internas da pessoa (in Nye, 2002, p.167).
A importância de Rogers ter-se-á afirmado nos EUA pela oposição que fez relativamente à preponderância da atividade psicoterapêutica
exclusiva de médicos e psiquiatras. A sua proposta rompe com métodos behavioristas de controlo, bem como se afasta dos métodos da
psicanálise. A ideia de que cada sujeito se aceite a si mesmo como é, mas tendendo a desenvolver-se e aperfeiçoar-se, será um dos
seus princípios de vida. Nas suas palavras, o ter entrado para o Union Theological Seminary (uma instituição cristã, de Nova York,
conhecida pela orientação presbiteriana), foi muito enriquecedor, levando-o a experimentar práticas pedagógicas não diretivas, que o
levariam a questionar o ensino tradicional.
Rogers trabalhou doze anos com crianças delinquentes, assistindo a inúmeros fracassos que lhe mostraram que os métodos usados
não seriam os adequados. O que se sugere sob a inspiração de Rogers é a possibilidade de experimentar uma série de situações
diversas, para com elas poder aprender. Para tal o papel do professor dever-se-á pautar pela autenticidade e congruência, ou seja, não
forçar o indivíduo a deformar-se; pela empatia, que pressupõe que o mundo do outro possa ser entendido; pela atenção positiva
incondicional, na qual o indivíduo reconhece o outro enquanto sujeito válido, mesmo que diferente de si próprio; e pela autenticidade e
congruência, significando que sendo um indivíduo autêntico, ele não deforma as suas convicções, e apenas espera ser aceite como é
(Miranda, 2001).
No livro “Tornar-se pessoa” encontramos a descrição das sete fases do processo de Rogers, 1) num primeiro momento, é expectável
que o sujeito se encontre num estado ainda de rigidez que o leva a não se abrir ao diálogo interno, comunicando predominantemente
acerca de assuntos exteriores a si próprio – seria, por exemplo, o sujeito que relata:
Pois bem, dir-lhe-ei que sempre me pareceu um bocado idiota falar sobre si próprio, a não ser em caso de extrema necessidade (cit. in Rogers,
1983, 115).
Numa segunda fase do processo, um número maior número de pacientes expressa-se mais fluentemente, mas ainda
preponderantemente acerca de tópicos que não são pessoais, como no caso do cliente que diz:
Suspeito que o meu pai sempre se sentiu pouco seguro nas suas relações de negócios (cit. in Rogers, 1983, 116).
Se passarmos para uma quarta fase desse processo terapêutico de Rogers, na qual o cliente se sente compreendido, i.e., sente-se
aceite como é, encontramos já uma consciencialização menos defendida daquilo que sente realmente, e que consegue descrever. Por
exemplo, como quando um cliente relata:
Pois bem, foi realmente um golpe duro para mim.
(ou) Fico desanimado por me sentir dependente, porque isso quer dizer que não acredito em mim mesmo (cit. in Rogers, 1983).
Rogers fica conhecido pela terapia centrada na pessoa, ou terapia centrada no cliente; para ele, todo o sujeito terá uma tendência inata
para atualizar as suas capacidades e potenciais do eu.
O desenvolvimento das ideias de Rogers surgiram a partir do estudo de pessoas emocionalmente perturbadas que recorriam à terapia
centrada na pessoa, e o autor defende que “a atualização do eu” consiste na principal força motivadora da personalidade, mas defende
também que embora esse impulso seja inato, ele pode ser impulsionado ou prejudicado por experiências infantis, nomeadamente pelas
experiências das relações precoces. Ou seja, a mãe que satisfaz as “necessidades de amor” – i.e., de estima positiva incondicional –
segundo os termos de Rogers, é a que facilita o desenvolvimento saudável, sendo que esse desenvolvimento se justifica pelo sentimento
de ser apreciado pelos cuidadores.
É curioso encontrarmos nos anos 60, no Brasil, reflexões sobre movimentos políticos e culturais que, ao questionarem a desumanização
dos poderes em geral, denunciavam opressões, tendo incentivado o sentimento crítico dos intelectuais. Refere Campos (2005), que
apesar do clima militar, nessa época de 60, no Brasil, as psicoterapias ganharam força, talvez por terem sido entendidas como um
refúgio psíquico para problemas sociopolítico-emocionais. A contestação “em escala mundial” comum nessa época torna-se significativa
ao recordar-nos como inquietações diversas se repercutiam nas famílias, “contribuindo para a desestruturação do núcleo da família
burguesa brasileira (mas não só), levando cada um a procurar uma nova definição para suas identidades”; ou seja os conteúdos e
movimentos políticos ao longo dos tempos são também influentes no desenvolvimento psicológico e eventualmente na patologização de
atitudes.
Se para os jovens de classe média, já que não era possível mudar o mundo, que se mudassem então individualmente (cit. in Campos, 2005,
p.13).
Compreende-se assim que a adesão a psicoterapias como a rogeriana, se tenha instalado nesses anos de 1960, sobretudo com a
adesão de pessoas tidas de vanguarda (algumas delas envolvidas nas lutas contra a ditadura militar no Brasil) (Campos, 2005). Com
efeito, vários foram os países ocidentais que se orientaram para movimentos políticos para a esquerda, como centro-esquerda em Itália
em 1963, ou os trabalhistas no Reino Unido em 1964. Essa década retrata o fenómeno cultural “anti-establishment”, inicialmente nos
EUA, no Reino Unido, e que se alastrou a outros meios.
De notar que a divulgação do que se passou com a intervenção militar dos EUA no Vietname, terá propiciado um sentimento de revolta
e/ou incompreensão que levaria ao movimento dito de “contracultura”, promovendo atitudes antiautoritárias.
Por outro lado, o choque perante o assassinato do presidente John F. Kennedy, em 1963, propiciaria um rastilho para minar a confiança
no governo e fomentar movimentos dos ativistas contracultura. Nas faculdades e universidades os estudantes lutavam por direitos
fundamentais como liberdade de expressão e liberdade de reunião. Refere Greening, (1985), que as primeiras reuniões formais para
discutir acerca da psicologia humanista ocorreram em Detroit em 1957 e 1958, sendo que o mote consistia em organizarem a publicação
de um livro sobre o Self.
O movimento humanista foi formalizado pela publicação do Journal of Humanistic Psychology, fundado por Abraham Maslow e Anthony
Suttich em 1961.
Diriam os partidários da corrente humanista, “a psicologia humanista foi uma grande experiência, (...), mas é basicamente uma
experiência fracassada” (in Shultz & Shultz, 1981) – pois que não se fundamentava em nenhuma teoria consistente.
Em termos latos, poder-se-á dizer que o humanista “(...) tem uma visão e pressuposição positivas acerca da natureza humana e suas
potencialidades de autorrealização em qualquer ambiente, seja ele sadio ou não, desde que o seu comportamento esteja motivado e
regulado para satisfazer suas necessidades básicas” (Branco & Silva, 2017, p.190).
Questão de auto-avaliação
Mostre a riqueza do pensamento e atitude terapêutica de Rogers, contextualizando o seu meio de influência vivencial.
Maslow, teve uma infância humilde, um pai que o desvalorizava, e uma mãe descompensada que o privava de comida sem razão; só
quando se autonomizou, e foi convidado como professor para a Universidade de Wisconsin, passando de seguida para a Universidade de
Columbia, na qual trabalhou com Thorndike, se terá realizado. Diz-se que Thorndike aplicara um teste de inteligência a Maslow, obtendo
um QI de 195, (o que o levou a reconhecer as suas potencialidades). A motivação de Maslow para o seu empenho na psicologia
humanista terá sido impulsionada como uma espécie de ersatz, que compensaria a falta de amor de sua mãe, descrita como uma
mulher hostil, que quase levara os filhos à loucura (Hergenhahn, 2001).
Terá dito Maslow acerca da sua infância:
Fui um garoto tremendamente infeliz... Minha família era miserável, a minha mãe uma criatura horrível (...) . Cresci dentro de bibliotecas e sem
amigos (...). Com a influência que tive, é difícil de compreender que não me tenha tornado um psicótico.
Eu era um menino judeu no bairro não-judeu. Foi um pouco como ser o primeiro negro matriculado numa escola só de brancos”.
Maslow foi aluno de doutoramento de Harlow, o que não deixa de ser curioso se considerarmos que os estudos experimentais de Harlow
ficam conhecidos como “investigações sobre a natureza do amor”, enquanto que mãe de Maslow é retratada como uma mulher
descompensada e cruel (Hergenhahn, 2001).
Insatisfeito quer com as explicações comportamentais, como com as psicanalíticas, Maslow contactou diversos outros psicólogos –
eventualmente também insatisfeitos – vindo a conseguirem agregar uma série de colaboradores, que lhes permitiu editarem uma revista
– o Journal of Humanistic Psychology – da qual faziam parte nomes como o próprio Maslow, Kurt Goldstein, Rollo May, Erch Form, entre
outros que permanecem na história da psicologia (Branco & Silva, 2017). As necessidades humanas são descritas por Maslow numa
hierarquia que deveria ser satisfeita segundo uma “ordem decrescente de premência”, iniciando-se pelas necessidade fisiológicas (fome,
sede, sexo); necessidade de segurança (proteção face a perigos inesperados, dor); afiliação (refere-se ao sentimento de amor e
propriedade, compartilhar a vida com alguém apropriado); estima (e.g., contribuir para o bem estar dos outros mais próximos), e
autorrealização (neste nível os desejos estão direcionados para a possibilidade de concretização do potencial do sujeito.
A motivação dominante num dado momento de vida dependerá da satisfação na realização das necessidades mais baixas da hierarquia.
A privação das necessidades superiores (e.g., como a autoestima) não produzirá uma reação de premência ou desespero, tão forte,
como a privação de uma necessidade inferior na hierarquia (Hesketh & Costa, 1980).
A psicologia humanista defende uma série de princípios que retratam que o seu propósito de estudo, encontrando afirmações como: a) o
que podemos aprender sobre os seres humanos, não pode ser recolhido pela observação dos comportamentos animais, b) a realidade
subjetiva pode ser um guia para o comportamento humano; c ) estudar os indivíduos singulares será mais instrutivo do que estudar
grupos de indivíduos; d) dever-se-ia fazer maior esforço para descobrir as coisas que permitam enriquecer a experiência humana; e) a
investigação deveria centrar-se na busca de informação que ajude a resolver os problemas humanos; f) o objetivo da psicologia deve
contemplar uma descrição do que significa um ser humano (Hergenhahn, 2001). Por fim, encontramos a peculiar afirmação atribuída a
Maslow (1966):
(...) los psicólogos a menudo utilizan, un método científico para distanciarse de los aspectos poéticos, románticos y espirituales de la naturaleza
humana (...) (Hergenhahn, 2001, p.601).
(...) En pocas palabras, a mí me parece que la ciencia y todo lo científico se puede utilizar (y a menudo es así) como una herramienta al servicio
de una Weltanschauung (visión del mundo) distorsionada, estrecha, sin humor, sin erotismo, sin emoción, desacralizada y no santificada. Esta
desacralización se puede utilizar como defensa para no ser inundado por la emoción, especialmente las emociones de humildad, reverencia,
dominio, admiración y sobrecogimieto (Hergenhahn, 2001, p.601).
O argumento de Maslow não era, obviamente que a psicologia deveria deixar de ser científica, ou que deveria deixar de ajudar os que
tinham problemas psicológicos, mas, defendia o autor que a psicologia deveria tentar, também, entender todos aqueles que estão prestes
a alcançar o seu potencial – “necessitamos saber como pensam essas pessoas e o que as motiva” (Hergenhahn, 2001, p.602).
1.4.10. O movimento cognitivo
A psicologia cognitiva foi influenciada pelo surgimento do computador digital, ficando, também os psicólogos, encadeados pelo avanço
tecnológico que se adivinhava no ano de 1956. O primeiro texto que se destaca acerca da psicologia cognitiva é o de Ulrich Neisser em
1967, com o livro Cognitive Psychology. A definição de Neisser dizia que a “psicologia cognitiva é a “psicologia que se refere a todos os
processos pelos quais um input (entrada) sensorial é transformado, reduzido, elaborado (...), e usado” – definição que convenhamos,
dificilmente esclarece o leitor (in Neufeld, Brust, & Stein, 2011).
A ciência cognitiva – em termos latos – foi criada almejando estudar o processo da cognição quer de seres humanos como de máquinas
(embora referirmos cognição para máquinas nos pareça desadequado). O que se passava nesse movimento pode ser descrito como um
novo interesse, i.e., um retorno ao estudo da consciência. Esse retorno é concretizado por diferentes autores, com as suas
particularidades. Reencontra-se por exemplo, a referência a Tolman – considerando-o como um dos precursores do movimento cognitivo
(in Shultz & Shultz, 2001, p.402), ao propor, como vimos anteriormente neste texto, a noção de mapas mentais, com base nas
experiências de labirintos com ratos; experiências que sugeriam que o facto dos animais percorrerem um labirinto várias vezes – mesmo
sem um reforço – levava a uma aprendizagem latente, aprendizagem essa, que se tornava rapidamente efetiva após a apresentação de
um reforço, como se poderia constatar pela maior facilidade com que os animais que tinham previamente explorado o labirinto
conseguiam sair mais rapidamente do que os que não tinham tido esse treino prévio (necessitando de mais ensaios para escapar do
labirinto). Tolman, diria que os ratos criaram um mapa cognitivo, que os leva, após um reforço, a serem mais rápidos no percurso do
labirinto até à saída.
Esta ideia da aprendizagem latente, formulada nos anos 1920, mostra como ao expor um organismo a uma dada situação-problema,
mesmo sem apresentação de recompensa, ainda assim pode ocorrer aprendizagem; sendo que esta se torna mais efetiva, quando num
novo ensaio, se apresenta uma recompensa. Tendo em conta esse cenário, Tolman questiona a lei do efeito de Thorndike sugerindo que
não é (apenas) a recompensa ou reforço que justifica a aprendizagem, mas também uma explicação cognitiva, como o efeito da
repetição do desempenho da tarefa. Para Tolman o comportamento entende-se como um fenómeno molar (i.e., global), pois só o
podemos compreender se, se comportar enquanto uma totalidade, o que leva a compreender a posição de Lopes, quando refere que “o
desafio de uma psicologia científica não é traduzir o comportamento em termos físico-químicos, mas antes, descrever as propriedades
emergentes do comportamento, sendo que essas propriedades são “o propósito e a cognição” (Lopes, 2009). É interessante considerar
que muitos psicólogos terão visto o movimento da Gestalt como uma influência sobre o movimento cognitivo.
Para Shultz e Shultz outro antecedente do movimento cognitivo é representado pelo o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980). A
referência justifica-se pela teoria desenvolvida sobre o desenvolvimento infantil, abordando-se então, não estádios psicossociais ou
psicossexuais, como os apresentados por seus contemporâneos como Erikson (1902-1994), ou Freud (1856-1939), mas estádios de
desenvolvimento cognitivo.
Piaget concebeu o sujeito como um ser ativo que aprende e se desenvolve pelas suas ações. A questão essencial para o autor pode ser
formulada nos seguintes termos: “como é possível passar de um conhecimento mais simples para um mais complexo? Ou, “como se
forma o conhecimento?” A proposta de investigação de Piaget foi, recorrer a crianças e adolescentes para os questionar nas formas
como interpretam o meio físico.
Para o autor, é pela interação entre o sujeito e o objeto que o desenvolvimento acontece, sendo que em diferentes períodos (idades), o
sujeito tem possibilidades diferentes de entender esse mesmo meio. Em Piaget não encontramos conhecimentos inatos, nem estruturas
preformadas, embora não baste apenas a experiência para construir conhecimentos lógico-matemático.
Pode dizer-se que a tese central de Piaget defende que “o processo evolutivo da filogenia humana tem origem biológica, que é ativada
pela ação e interação do sujeito com o meio ambiente físico e social” (Freitas, 2000).
Em 1926 Piaget começou a publicar investigações sobre o desenvolvimento cognitivo, tendo escrito mais de cinquenta livros e
monografias sobre o desenvolvimento da inteligência, para além de centenas de artigos, tendo escrito, apenas com 11 anos o texto “On
sighting an albino sparrow” (Ao avistar um pardal albino), o que chamou a atenção do curador do museu de história natural, que o
convidou para trabalhar em part-time, aos sábados. Estudou biologia e filosofia, e em 1918, completou o doutoramento sobre adaptações
de molúsculos em águas rasas, nos lagos suíços. Ainda em 1918, parte para Zurique, onde estudou psicologia experimental. Assistiu a
aulas de Jung e outros psicanalistas, e leu as obras de Freud.
Para Piaget (1970), “o principal objetivo da educação é criar homens que sejam capazes de fazerem coisas novas, não simplesmente
repetir o que as outras gerações fizeram” (in, Pascual, 1999). O modelo piagetiano do desenvolvimento carateriza um sujeito epistémico,
isto é um sujeito ideal que representaria o desenvolvimento normativo ao longo do ciclo de vida. As etapas de desenvolvimento (ou
estádios) são construídas pela ação de cada sujeito particular, ou sujeito psicológico.
A primeira obra de Piaget surge em 1923, tratando o tema da linguagem, pela importância da sua função de comunicação – esse livro
surge com prefácio de Claparède, no qual este destaca a pertinência do método de Piaget, que viria a dar resultados muito fecundos e
originais. Era o designado método clínico que consistia na arte de interrogar as crianças, com auxílio de materiais simples, facilmente
disponíveis, baratos, e familiares às crianças, que não estranhavam a sua presença. As observações ocorriam na classe da manhã, na
Maison des Petits do Instituto J. J. Rousseau. Piaget narra várias dessas atividades, nas quais as crianças desenham, ou brincam
enquanto descrevem o que fazem, em monólogos coletivos, sem preocupação de estarem ou não a ser escutadas, usando os colegas
como mote para o seu monólogo, mas sem grande preocupação de serem entendidos. Essa liberdade de ação (se assim se pode dizer)
permitia à criança criar os seus entretenimentos, ou seja, tornar-se inventiva, o que impulsiona o desenvolvimento, a exploração, os
ensaios e erros, que contribuem para o desenvolvimento ativo. Tememos que hoje algumas pré-escolas sejam demasiado diretivas e
prescritivas nas tarefas que propõem, não dando azo à criação por cada criança.
O desenvolvimento, sob os termos de Piaget, associa-se à ideia de mudança, bem como à ideia de idade, sendo esses os aspetos mais
prementes que encontramos, no que Orlando Loureço designa de uma epistemologia ingénua do desenvolvimento. Refere Lourenço
(1997), que em vez de se falar em “mudanças associadas à idade”, o modelo piagetiano fala em “mudanças associadas à passagem do
tempo”, querendo o autor mostrar a relevância de existir um dado tempo para permitir explorações, atividades, nas quais as crianças
possam criar conceitos, a partir das suas próprias ações (ou seja, é necessário tempo e é necessária a experimentação), duas ideias
que parecem negligenciadas na educação contemporânea. Por exemplo, a oportunidade da criança que pode observar atentamente a
água a infiltrar-se rapidamente numa poça de areia grossa, e a água a infiltrar-se mais demoradamente numa poça de areia compacta,
descobre propriedades físicas de materiais, através das suas próprias ações; i.e., torna-se um sujeito construtor ativo, que cria,
verdadeiramente, conhecimentos por si própria.
No início – i.e., no período sensório motor (sensivelmente até aos dois anos), encontramos a capacidade de representação na criança,
seja através da construção de uma imagem mental, um gesto simbólico, um jogo de faz-de-conta, a linguagem, o desenho, um gesto,
etc., (Piaget & Inhelder, 1966). O jogo simbólico é fundamental para o desenvolvimento livre (se assim podemos dizer), referindo-se ao
jogo que cada criança constrói e reconstrói por si própria por sucessivas experimentações, tal qual um cientista que testa hipóteses. Daí
a importância de experimentarem por si mesmas, livres para as construções e explorações. O desenho livre, por exemplo, contribui para
o ensaio da representação escrita, de forma lúdica e satisfatória, e desse modo se incentiva a exploração cognitiva pelo grafismo, e pela
escolha do que será representado, (forçosamente dependente do que se conhece).
A questão fundamental do desenvolvimento cognitivo, será, como referem Montangero e Maurice-Naville (1994) “como é que o
pensamento se torna progressivamente mais coerente criando explicações do real cada vez mais adequadas?” A resposta piagetiana é
que a inteligência se modifica constantemente pela ação do sujeito, recorrendo a funções como a assimilação e a acomodação – funções
invariantes que atuam ao longo do desenvolvimento. Piaget dizia que o modo como as crianças aprendem, nomeadamente as ideias
científicas, mostram paralelismos com o processo histórico da ciência (Harris & Butterworth, 2002).
Ao deparar-se com novas situações, a criança procura enquadrá-las em conhecimentos anteriores que lhe são próximos (assimilação).
Ou seja busca semelhanças com situações/objetos/seres que conhece, podendo atribuir-lhes um significado, e incorporando essa nova
informação nos modos de pensamento (estruturas), já existentes.
Quanto ao processo de acomodação, implica modificações numa estrutura cognitiva existente, originando mudanças de ideias prévias
(por reinterpretação, ou novas informações). Outro conceito significativo para o modelo piagetiano é, a equilibração que resulta da
interação entre a acomodação e a assimilação, originando novos estados de equilíbrio, entre esquemas prévios que a criança domina e
novas experiências. São conhecidos os quatro estádios de desenvolvimento operatório: 1) o sensoriomotor – do nascimento até cerca
dos dois anos, no qual a criança ensaia a coordenação de perceções e de movimentos e/ou comportamentos motores simples; no final
deste estádio a criança reconhece a existência de um mundo exterior a si própria e inicia interações deliberadas com outros, ou com
objetos; 2) pré-operatório – inicia-se a interiorização das ações, pode recorrer a símbolos, imagens mentais, gestos, palavras, entre os
dois e os seis/sete anos; sendo que tende a centrar-se predominantemente nas caraterísticas mais salientes da situação, estando ainda
“presa” pela aparência mais imediata; ainda surgem confusões entre o ponto de vista próprio e o de outro, é facilmente “enganada” pelas
aparências, e confunde relações causais; 3) operatório concreto – entre os seis/sete anos aos onze/doze, a criança pode recorrer ao
raciocínio lógico para resolver problemas, traduzindo o pensamento operatório que lhe permite fazer operações, como, combinar,
separar, ordenar, classificar, etc; essas operações são denominadas de “concretas” pois que é necessário ainda um suporte físico (ou
seja, concreto, para o apreender) 4) operatório formal – seria o estádio final para Piaget, a partir dos 11/12 anos até diante, sendo possível
os jovens envolverem-se em raciocínios hipotético-dedutivos complexos. Neste período, os adolescentes desenvolveram a capacidade
para pensar de modo sistemático acerca da lógica das relações de um dado problema; acresce que nesse período os jovens tendem a
desenvolver interesses variados, ideias abstratas e um pensamento autónomo (Cole, Cole, & Lightfoot, 2005; Piaget & Inhelder, 1966).
Piaget considerava que os três primeiros estádios seriam universais – i.e., todos os sujeitos com desenvolvimento normal os atingem.
Entretanto sabemos que durante o período inicial do desenvolvimento a exposição fatores externos como malnutrição, stress materno,
ausência de estimulações, são particularmente comprometedoras do desenvolvimento adequado, como se constatou com as
observações das crianças recolhidas nos orfanatos da Roménia – sob o regime de Ceausescu (divulgados após a queda do regime).
Hoje sabemos também valorizar a importância da estimulação precoce em capacidades básicas, como o tocar, cheirar, ouvir, ver,
saborear, (...).
Esther Thelen (1995), refere como, tradicionalmente, a sequência típica do desenvolvimento sensoriomotor era concebida como
praticamente apenas programada geneticamente – digamos cumprindo uma série de passos preordenados sob influência da maturação
do cérebro. Entretanto muitos cientistas reviram essa visão simplista, constatando que – também o desenvolvimento motor – resulta de
um processo contínuo de interação entre o bebé e o meio. É de facto interessante consciencializar-mos a necessidade/vantagens da
estimulação em diversas áreas do desenvolvimento – particularmente, nos estádios mais precoces. Dificilmente podemos aceitar hoje
que a maturação é única causa do desenvolvimento (Thelen & Fisher, 1982). Na mesma linha, Thelen mostra, de forma muito
compreensiva, como o desenvolvimento não tem uma única causa, sendo que, bebé e ambiente, formam um sistema interligado e
dinâmico que inclui a motivação da criança, a sua força muscular, e sua posição no ambiente num momento particular (cit., in Papalia,
Olds, & Feldman, 2008, p.163). Note-se que falamos aqui de desenvolvimento e não de aprendizagens, que podem, é verdade, incentivar
o desenvolvimento cognitivo e/ou psicossocial, mas que não se confundem com eles.
O desenvolvimento da noção de objeto permanente é gradual ao longo do sensório-motor, traduzindo a possibilidade de uma realização
cognitiva fundamental – i.e., mostra a emergência (precoce) da capacidade de representação – ao mostrar que o bebé sabe que o objeto
existe, mesmo quando desaparece do seu alcance. Como constatamos esse conhecimento? Pela satisfação que manifesta face ao
aparecimento do objeto (note-se que o objeto pode ser a cara da mãe que se escondera, etc. Para Thelen, “o importante não se trata de
observarmos o que o bebé sabe, mas constatarmos o como é que faz e porquê”; isso sim, remete-nos para a essência do processo
universal de exploração pela curiosidade de descobertas, ou seja, pela construção cognitiva (in, Papalia, Olds, & Feldman, p.190).
Esse movimento de satisfação pela descoberta do “objeto” é universal e representado muitas vezes, pela também universal, brincadeira
dos pais taparem a sua cara com as mãos, à frente do seu bebé, e assistirem ao sorriso com que o bebé os brinda ao aparecer cara
familiar. Esse “jogo” (peekaboo) serve vários propósitos, considerando, os psicanalistas, que ele ajuda os bebés a dominar a ansiedade
quando a mãe desaparece; os cognitivistas, dirão que é uma forma dos bebés exercitarem (pelas brincadeiras espontâneas) o
desenvolvimento do conceito de objeto permanente; e podemos ainda considerar que se trata de uma rotina que incentiva a
aprendizagem das regras de conversação (como alternar a vez de cada um falar).
O modelo piagetiano teve um grande impacto no pensamento psicológico do século XX. Embora Piaget tenha morrido em 1980, a
tradição piagetiana mantém-se até hoje. De ressalvar que algumas ideias foram atualizadas, como, por exemplo, a constatação (por
recurso a técnicas de observação mais finas) de que os bebés são mais precocemente “competentes” do que Piaget pressupusera,
valorizando-se hoje também a importância da perceção para o desenvolvimento e para a aprendizagem. Outra nuance é a ideia de que a
aquisição de conhecimentos é melhor entendida enquanto “conhecimento por domínios específicos”; ou seja, por áreas particulares de
conhecimento. Mesmo se Loureço (1997), sugere que “o que se desenvolve com o desenvolvimento cognitivo é uma competência geral e
estrutural do sujeito para pensar e raciocinar sobre o mundo físico e lógico-matemático, sob uma perspetiva científica” (p.61). Com efeito,
os quatro estádios piagetianos do desenvolvimento cognitivo mostram formas sucessivamente mais complexas de raciocínio, e de
organizar a realidade (Chapman, 1988). Piaget sugere que o desenvolvimento cognitivo se inicia com a capacidade inata para nos
adaptarmos ao meio.
Questão de auto-avaliação
Especifique o contributo da teoria piagetiana, dando exemplos do estádio de desenvolvimento operatório concreto e suas
caraterísticas – pode especificar recorrendo à descrição de provas operatórias usadas por Piaget.
Um outro autor se destaca neste domínio – é Lev Vygotsky (1896-1934), nascido na extinta União Soviética, no seio de uma família judia
com condições económicas que lhe permitiram o acesso a um ambiente bastante intelectualizado. O seu pai contratou um tutor privado
que educou Vygotsky, na tradição clássica socrática, através de discussões e diálogos sociais. Após desistir do curso de Medicina,
estudou Direito, História, Filosofia e Literatura. Consta que terá sido um grande orador, falando fluentemente várias línguas. Enquanto
Piaget se preocupou em explicar o desenvolvimento da inteligência, Vygotsky, nascido no mesmo ano de Piaget, teve igualmente
significativa influência na psicologia do desenvolvimento. Pouco se saberá acerca dos seus primeiros anos, exceto que seria o segundo
entre oito irmãos.
Vygotsky iniciou a sua carreira como professor, numa época revolucionária na Rússia, durante a qual se procurava encontrar um sistema
educativo adequado para todas as classes sociais. De recordar que até os anos 1960, os textos de Vygotsky não tinham sido traduzidos
para inglês, sendo o clássico Pensamento e Linguagem publicado nos EUA apenas em 1962.
Por outro lado, pouco após a morte de Vygotsky em 1934, a sua teoria foi banida na União Soviética por cerca de vinte anos. Só na
segunda metade do século XX se gerou um novo interesse pela sua obra.
Sob a influência da orientação marxista de seu tempo e local, Vygotsky encarara a cultura e as organizações sociais, como forças
históricas que moldam a sociedade. Vygotsky interessou-se por identificar os aspetos históricos e sociais que moldam o comportamento
tornando cada sujeito único, afirmando que cada cientista é produto do seu tempo e ambiente. Trabalhou com Luria e Leontiev com intuito
de construir uma “nova psicologia”, estudou a obra de diversos pedagogos e cientistas, como Binet, Janet, Köhler, Claparède, Montessori
e Piaget – sendo que esse interesse por autores ocidentais não seria pacífico no seu meio, tendo em conta as opiniões do estado
soviético que “(...) considerava a psicologia ocidental como burguesa, a-histórica, abstrata e reacionária”, o que levou o autor a ser
colocado sob suspeita, culminando com a proibição de publicar a sua obra. Apenas após a sua morte os seus estudos foram
recuperados (Miranda, 2005).
Um dos conceitos fundamentais de Vygotsky é o conceito de zona de desenvolvimento proximal (que o autor apresenta no livro
Pensamento e linguagem em 1934), e que remete para a relevância desenvolvimental das potencialidades da criança, ou seja, a
possibilidade de desenvolver novas construções mentais, sob influência/auxílio externo, mediadas por outros sujeitos (por exemplo,
quando a mãe ajuda a criança a conseguir fazer um bolo). A noção de ZDP pressupõe uma interação numa dada tarefa entre um sujeito
“menos competente” e um “sujeito mais competente”, de modo que o sujeito menos competente pode tornar-se mais proficiente (Chaiklin
(2011).
Vygotsky foi crítico relativamente aos testes de inteligência, na medida em que estes sugerem um nível de desenvolvimento “real”
(momentâneo), mas não permitiam aferir as potencialidades do desempenho do sujeito em desenvolvimento (Miranda, 2005).
Vygotsky distingue o ensino votado ao desenvolvimento integral da criança, e o ensino de capacidades ou técnicas particulares (e.g.,
andar de bicicleta; aprender a nadar, ...), podendo salientarmos, com Chaiklin (2011), que o conceito de ZDP não se deve associar a um
desenvolvimento de competências particulares, mas antes ao desenvolvimento em sentido lato. O conceito, obviamente, não se refere a
nenhuma criança em particular, antes reflete as exigências e espectativas do desenvolvimento normativo numa dada etapa de
desenvolvimento.
Podemos dizer que os investigadores inspirados em Vygotsky, encaram a aprendizagem como um processo colaborativo, de interações
sociais informais, que promovem competências diversas, por interações partilhadas. Essa partilha induz a aprendizagem por
internalização dos resultados das interações ente criança e adulto, sendo mais provável a aprendizagem quando ocorre na zona de
desenvolvimento proximal. Isto é, quando a criança está prestes a dominar a tarefa/competência em causa. Se acrescentarmos o
conceito de scaffolding (andaimes – no sentido de suporte), percebemos que os professores ou cuidadores que recorrem a esse suporte
incentivam o desenvolvimento autónomo da criança, sem contudo, deixar de a acompanhar de perto, e assumindo que quanto menos
hábil é o sujeito, mais suporte necessitará de alguém experiente. Ou seja, a ZDP refere-se aos desempenhos que o sujeito não consegue
ainda completar sozinho, mas consegue concretizá-los em cooperação com parceiros mais competentes.
Nesta ótica, poder-se-á entender a potencialidade do método, pois, capacitando as crianças a monitorizarem os seus processos
cognitivos, e a reconhecerem quando necessitam de ajuda, os pais/educadores podem ajudar as crianças a responsabilizarem-se pela
sua própria aprendizagem. Por exemplo, num estudo com 289 famílias com crianças entre os 2 anos e 3 anos e meio, aprendizagens
partilhadas com mães que ajudam a manter o interesse da criança numa tarefa, (colocando-lhes questões, ou fazendo sugestões, ou
apresentando escolhas), as crianças demonstram maior independência social e cognitiva a resolver os problemas, bem como a iniciarem
interações sociais (Landry, Smith, Swank, & Miller-Loncar, 2000). Referem ainda Newman e Holzman (1993), que Vygotsky contribuiu de
forma significativa para a reestruturação do Instituto de Psicologia de Moscovo, criando laboratórios de investigação nas maiores cidades
de Moscovo. Na última parte do século XX o interesse pelas ideias de Vygotsky terá recrudescido (Verenikina, 2010).
Questão de auto-avaliação
Explicite a noção de desenvolvimento proximal de Vygtosky e sua relevância para o desenvolvimento da criança.
Confrontando rapidamente e de modo simples, ideias dos dois autores, diríamos que em Piaget teremos uma ênfase reduzida no efeito
do meio sociocultural no desenvolvimento cognitivo (e, em Vygotsky uma ênfase forte), em Piaget encontramos estádios de
desenvolvimento delineados, (em Vygosky não se definem estádios), no modelo piagetiano encontramos os processos-chave de
equilibração, esquema, adaptação, assimilação e acomodação, (em Vygosky encontramos o conceito de zona de desenvolvimento
proximal, a importância da linguagem/diálogo e dos instrumentos culturais), em Piaget o suporte à exploração ativa da criança é
destacado para o desenvolvimento, (em Vygosky encontramos a importância de fornecer oportunidades para as crianças aprenderem
com pares ou tutores mais competentes). Ambos os autores apresentam pontos de vista importantes sobre o desenvolvimento cognitivo
da criança, sendo que ambos destacam pontos diferentes, mas igualmente significativos. Digamos que “Piaget seria um tutor menos
diretivo”, na medida em que a criança ganha em descobrir por si (e.g., ao experimentar o meio físico, com reduzido apoio de um tutor), e
“Vygosky seria um tutor mais diretivo dando pistas e apoio para as descobertas” da criança. Enfim, ambos os modelos apresentam
importantes perspetivas do desenvolvimento cognitivo na criança.
Um interesse particular de Vygosky refere-se ao papel do jogo no desenvolvimento da criança, tendo o autor escrito bastante sobre o
tema, mostrando que as brincadeiras das crianças criam oportunidades para experimentar e ensaiar atividades diversas. Newman e
Holzman (1993), referem como, na ótica de Vygotsky, jogo está associado a uma série de conceitos e atividades, como a imaginação, a
representação simbólica, o jogo de faz-de-conta, a satisfação, etc. Vygotsky, especifica ainda como qualquer situação imaginária criada
pela criança contém regras na sua elaboração, não regras criadas de antemão, mas que se vão formulando à medida que a criança vai
criando novas situações. Para o autor, o jogo precoce está ligado muito estreitamente à realidade; i.e., a situações próximas da vida real.
Quando a criança brinca “às mães e aos pais”, recria situações reais, por exemplo, com bonecas fingindo que estão doentes, dando-lhes
de comer, ralhando-lhes, etc., ou seja recria objetos numa nova função (e.g., o pau de gelado que se “transforma” em colher para dar
sopa à boneca, etc.). Como diria Vygotsky, “uma criança ao brincar livremente determina as suas próprias ações, mas de forma a que
cumpram os propósitos a que pensou nas suas brincadeiras. O jogo permite assim à criança a liberdade de determinar e ensaiar ações
próprias (Vygotsky, 1978, p.103); i.e., o jogo propicia uma zona de desenvolvimento proximal, na qual a criança ensaia comportamentos
com liberdade; mostrando Vygotsky que “no jogo a criança comporta-se acima da sua idade média, acima do seu comportamento usual
diário” (Vygotsky, 1978, p.102).
“O ato de criar uma situação imaginária, independentemente do seu conteúdo, é uma atividade revolucionária” referem Newman e
Holzman (1993), acerca do jogo livre, tal como interpretado por Vygotsky.
Acresce que o desenho e o jogo são, em Vygotsky, atos que preparam estádios ulteriores da linguagem escrita na criança, pois que para
o autor o jogo simbólico faz a ponte entre o gesto e a passagem à escrita.
Ao contrário de Piaget, para Vygotsky, o discurso egocêntrico não deve ser visto como uma forma primitiva, ou associal, que
desapareceria gradualmente, pois para ele a criança é intensamente social; e o discurso egocêntrico é fundamental para o
desenvolvimento do discurso social.
Num dado sentido, podemos aceitar que “a criança ao brincar é livre para determinar as suas próprias ações. Mas, num outro sentido,
essa liberdade é ilusória pois que essas ações estão, de facto, subordinadas aos significados das coisas, e dos seus atos” (in, Vygotsky,
1978, p.98). Pode, não parecer atual, mas é de facto muito interessante a elaboração de Vygotsky, acerca do papel do jogo livre no
incentivo do desenvolvimento da criança, e só podemos lamentar que não colha hoje o interesse dos educadores, o incentivo a esse
espírito livre e inventivo que qualquer criança deveria poder explorar.
In play – the creation of an imaginary situation – the child emancipates her/himself from situational constraints, such us the immediate perceptual
field (Newman & Holzman, 1993, p.99).
Para Vygotsky, a imitação é o que torna possível à criança desenvolver capacidades, ao tentar fazer o que ainda não consegue dominar
totalmente, por exemplo, quando experimenta pegar num lápis de forma a conseguir desenhar, e aprimorar o seu traço; compreende-se
que possamos dizer – com Newman e Holzman (op.cit.) – que no início da infância, a atividade conjunta verdadeiramente revolucionária
que ocorre na zona de desenvolvimento proximal é a imitação. É curioso reconhecermos, com os autores, a ideia já esquecida por nós,
de que a imitação – no início da vida – é uma atividade fundamental e complexa para cada novo bebé que descobre o mundo.
Mothers, fathers and others adults relate to infants and babies as capable of far more than they could possible do – they relate to them as
speakers, feelers and thinkers (Newman & Holzman, 1993, p.151).
Estamos de acordo, com Hélio Teixeira, quando este refere como Vygotsky, numa vida tão curta, criou uma obra tão interessante e
inspiradora com conceitos bem delineados. Sendo Wertsch um dos mais destacados divulgadores do pensamento de Vygotsky,
aceitamos com o autor, que três ideias se destacam no seu contributo intelectual, são elas, o recurso ao método genético, ou de
desenvolvimento; a ideia de que as funções mentais mais elevadas do sujeito emergem de processos sociais; e que esses processos
sociais e psicológicos se formam através de artefactos culturais que medeiam as relações entre indivíduos, e entre eles e os seus
envolvimentos físicos. Para Vygotsky não faria sentido estudar o desenvolvimento do indivíduo separadamente do seu envolvimento
social, sendo que o desenvolvimento cognitivo deve ser entendido enquanto um processo de aquisição cultural (Fino, 2001).
Questão de auto-avaliação
Justifique a relevância da observação naturalista e exemplifique com três exemplos de diferente natureza.