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Helena Solberg: Trajetória de uma


cineasta brasileira
Mariana Tavares

Helena Solberg: trajetória de uma cineasta brasileira.

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Helena Solberg: From Cinema Novo t o Cont emporary Document ary. (Full book)
Mariana Tavares

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Escola de Belas Art es HELENA SOLBERG: Trajet ória de um…
Mariana Tavares

Helena Solberg, from Cinema Novo t o Cont emporary Document ary (Chapt ers 6, 7 and 8)
Mariana Tavares
AVANCA | CINEMA 2016

Helena Solberg: Trajetória de uma cineasta brasileira.


Mariana Ribeiro da Silva Tavares
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Brasil

Abstract fiscais públicos ao cinema brasileiro, Helena Solberg


volta a trabalhar com temas brasileiros. Nesse
This research analyses the films of the brazilian contexto, lança o documentário Carmen Miranda,
filmmaker Helena Solberg, consisting of twelve Bananas Is My Business (1994) sobre a cantora luso-
documentaries and three fictions produced in the brasileira, realizado em co-produção entre Brasil,
United States and in Brazil in the last 50 years. We have Portugal e Estados Unidos. Após o lançamento,
identified several different phases of the filmmaker’s retorna ao seu país natal, inaugurando uma nova
career – Cinema Novo; The Women Trilogy, the fase, onde as manifestações artísticas brasileiras –
Political Phase and Brazilian Art in her current phase literatura, música, poesia, teatro e dança – ganham o
to demonstrate that Helena Solberg has a singular primeiro plano.
and coherent body of work in the context of brazilian Esta trajetória será abordada visando demonstrar
documentary and fiction production and that she que o estilo e os temas da cineasta se fazem
remains faithful to the thematic and stylistic elements presentes desde os primeiros filmes. A predileção
that inform her directorial universe without losing sight pelas personagens femininas em confronto à realidade
of the transformations in documentary film language social, política e econômica no continente americano
and international tendencies in the last five decades. conformam uma trajetória única e coerente no contexto
da produção brasileira.
Keywords: Film, Documentary, Helena Solberg,
Feminist Film, Political cinema. Desenvolvimento: Primeiras imagens:
Cinema Novo
Introdução: Um cinema que nasce moderno.
Helena Solberg ingressou na Universidade Católica
A cineasta brasileira Helena Solberg tem uma do Rio de Janeiro em 1957 para cursar Línguas
trajetória coerente que parte de questões pessoais Neo-Latinas. Na Universidade conheceu estudantes
para tentar compreender, num primeiro momento, como Arnaldo Jabor, Carlos Diegues, Davi Neves
sua identidade como mulher e a decisão entre seguir e Gilberto Santeiro. Jovens unidos pelo desejo de
a carreira profissional ou a vida familiar, temas discutir e praticar um novo cinema, diferente da
presentes em seu primeiro filme, o curta documental A narrativa clássica hollywoodiana, dos estúdios,
Entrevista, 1966. Nesse filme, o uso do modo reflexivo das câmeras pesadas, dos roteiros rígidos. Eram
de representação, a encenação, a ambiguidade, as estudantes expoentes da geração do Cinema Novo
elipses temporais, a ausência de narração em off, no Brasil que tinham como referência internacional, o
a quase ausência de entrevistas em som direto e a Neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. As
oposição de significados entre sons e imagens fazem referências brasileiras eram filmes como Rio 40 graus
com que seu cinema nasça moderno. (1955), primeiro longa de Nelson Pereira dos Santos
As questões presentes em A Entrevista se estendem e Os Cafajestes (1961), primeiro longa do diretor
para a condição das mulheres no espaço doméstico e moçambicano recém chegado ao Brasil, Ruy Guerra.
no trabalho e a cineasta viaja para a Argentina, Bolívia, Ambos traziam inovações técnicas e de linguagem,
México e Venezuela, a fim de acompanhar o cotidiano como o uso de câmeras mais leves, o uso às vezes,
de mulheres trabalhadoras nesses países. Essas de atores não profissionais, de iluminação e cenários
inquietações geram, na década de 1970 – auge do naturais, câmera na mão, temáticas sociais etc.
movimento feminista e das ditaduras latino-americanas A Universidade possuía um cineclube, uma pequena
–, uma trilogia que denominamos Trilogia da Mulher. revista sobre cinema e um papel político importante
As investigações sobre a condição das mulheres se naquele contexto. Helena Solberg se articulou com
ampliam para as relações políticas entre os Estados esses jovens, entrou para o grupo e para o universo
Unidos e a América Latina na década de 1980. de criação do Cinema Novo.
Identificamos esta Fase Política que compreende Seu primeiro filme, A Entrevista (1966) investigou
seis documentários que foram exibidos em Rede a condição da mulher de classe média, no Rio de
Nacional de Televisão nos Estados Unidos, pela Public Janeiro, no início da década de 60. Equipada com
Broadcasting Service (Serviço Público de Teledifusão) um gravador Nagra que ela mesma operou, Helena
(PBS): Nicarágua Hoje (1982); Chile, pela razão ou entrevistou 70 mulheres entre 19 e 27 anos de idade,
pela força (1983); que haviam sido suas contemporâneas de colégio.
A Conexão Brasileira, A luta pela democracia (1982- As entrevistas foram gravadas ao longo do ano de
1983); Retrato de Um Terrorista (1985); Berço dos 1964 e giraram em torno das aspirações dessas
Bravos (1986) e A Terra Proibida (1990). mulheres na adolescência e suas atitudes em relação
Após esgotar a temática política e social latino- a decisões importantes para as mulheres na época,
americana, com o fim das ditaduras na região e como frequentar a universidade, casar, o significado
impulsionada pelo período da retomada dos incentivos da virgindade e a submissão ao marido.

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Capítulo II – Cinema – Cinema

A concepção do filme foi compartilhada em escolhe um tema pouco explorado e seu interesse
conversas com o cineasta Glauber Rocha que, é pela mulher de “mesma classe” e não pelo “outro
inclusive, avalizou o projeto para a obtenção de de classe” ou “o povo” na acepção do pesquisador
financiamento junto à Carteira de Auxílio à Industria Fernão Pessoa Ramos (Ramos 2008, 373), como era
Cinematográfica (CAIC), que apoiava as produções comum nos filmes do Cinema Novo.
do novo cinema que surgia no Brasil. Ao final do documentário Glória Solberg tira o véu
A fotografia foi assinada por Mário Carneiro que de noiva. Esse gesto revela que a sequencia da noiva
já havia fotografado O Padre e a Moça, 1965, de havia sido encenada, uma presença da ficção no filme.
Joaquim Pedro de Andrade, e Arraial do Cabo, 1959, No início de A Entrevista , ela se arruma para o passeio,
dirigido por ele e Paulo César Saraceni, dois filmes caminha pelas ruas de Ipanema no Rio de Janeiro,
referenciais para o grupo. A montagem foi assinada observa a vitrine de uma loja, vai à praia. A consciência
pelo então jovem Rogério Sganzerla, que também ou não de que sejam situações encenadas não traz
participou do Cinema Novo e que viria a ser um dos prejuízo para a compreensão do documentário, faz
nomes fundamentais do Cinema Marginal no Brasil. parte do jogo da mise en scéne, que cria uma atmosfera
As entrevistas com suas contemporâneas de ambígua para provocar reflexão e dúvida sobre o que
colégio foram montadas em voz over sobre belas se vê. Solberg não traz discurso pronto. É como se
imagens em preto-e-branco, do ritual de uma mulher quisesse lembrar que “cinema é construção”. Cabe ao
- Glória Solberg - se vestindo e sendo maquiada para espectador tirar suas próprias conclusões.
o casamento. A imagem da noiva é construída: ela é
penteada, maquiada e veste a roupa branca e o véu Trilogia da Mulher
(ideal de pureza). É a construção de uma imagem
que será perpetuada em outros filmes da cineasta Em 1971, Helena Solberg muda com seu marido e
(Simplesmente Jenny, 1977) e The Emerging Woman filhos para os Estados Unidos. A família se estabelece
(A mulher emergente, 1974). Enquanto essa imagem em Washington-D.C., onde Helena conhece um grupo
é construída, as falas em over das entrevistadas de diretores independentes ligados ao cineasta italiano
expressam suas insatisfações, angústias e dúvidas a Roberto Faenza que estava na cidade para conhecer
respeito do casamento. As falas desconstroem a ideia a tecnologia do vídeo e de que forma esta tecnologia
de casamento romântico, de pureza da mulher, do papel poderia ser utilizada pelo cinema militante.
de esposa ideal, enquanto as imagens da noiva dizem o O grupo estava envolvido com as manifestações do
contrário. Essa oposição gera clima de estranhamento. May Day 1971, a última grande manifestação antibélica
da era Vietnã, quando milhares de pessoas de várias
regiões do país dirigiram-se para a capital, para tentar
interromper o trabalho do governo federal, em protesto
à Guerra do Vietnã. O slogan era “se o governo não
parar a guerra, o povo vai parar o governo”.
O grupo de Faenza se organizou para filmar as
manifestações mas a equipe foi presa no dia das
manifestações e conduzida, ao lado de milhares de
manifestantes, para o estádio RFK em Washington-
D.C. Esta experiência repercutiu no primeiro filme
que Helena dirigiu nos EUA. Durante sua prisão no
estádio, conheceu grupos de mulheres feministas.
Esse encontro despertou o desejo de realizar um
documentário que contasse a história do movimento
feminista nos EUA. Assim nasceu The Emerging
Figura 1 – A Entrevista (1966) Dir: Helena Solberg. Fonte: Woman (A Nova Mulher, 1974), que percorreu 170
Arquivo Radiante Filmes (Brasil) anos de história do movimento feminista no país e na
Inglaterra, de 1800 até 1974, quando o filme foi lançado.
Nessa relação de oposição, Solberg dá os primeiros Para realiza-lo, Helena procurou em universidades,
passos na criação de um estilo próprio, singular, que pessoas que conhecessem a história que queria
vai emergir em filmes posteriores. A cineasta articula contar. Chegou aos nomes de Melanie Maholick,
elementos temáticos e estilísticos que farão parte de Roberta Haber e Lorraine Gray. Estava formado o
seu universo como criadora. A Entrevista representa a núcleo do International Women’s Film Project, coletivo
gênese de seu cinema. de mulheres que passou a realizar filmes sobre
A autonomia na escolha do tema – a condição da temáticas feministas, com direção de Helena Solberg.
mulher brasileira de classe média, nos anos de 1960 O filme narra a história do movimento feminista
– contraria os temas recorrentes nos filmes do Cinema no país, com 300 imagens fixas. São fotografias,
Novo que com frequência elegiam “a miséria de uma ilustrações e gravuras de ativistas norte-americanas e
massa camponesa, sofredora e apática, não só do inglesas em diversas situações: em casa, no trabalho,
Nordeste brasileiro, como do campesinato latino- nas ruas e em manifestações públicas. O filme também
americano e do Terceiro Mundo em geral”, como referiu apresenta trechos de cinejornais e fragmentos de
Jean-Claude Bernadet (Bernadet 2003, 240). Helena filmes antigos.

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Para dar vida a diários, manifestos, reportagens, interior da Bolívia; operárias em fábricas no México; e
cartas e livros deixados pelas ativistas em mais de ativistas em reuniões de mulheres na Venezuela. Elas
150 anos de história, foram utilizadas dezesseis vozes falam dos problemas que enfrentam no trabalho e em
diferentes que interpretaram os textos selecionados. casa, revelando sua dura realidade, notadamente para
São vozes femininas (em sua maioria) e masculinas, as bolivianas.
escolhidas de acordo com a faixa etária, o sotaque e O filme foi montado para estrear na sessão de
a entonação que Helena Solberg imaginou ideais para abertura da Primeira Conferência Internacional da
cada texto. Essas interpretações conferem dinamismo Mulher, sediada na cidade do México em 1975. Um
e emoção ao filme. Representam uma marca na ficção, documentário ideal para aquele momento, pois
já que podemos perceber que as vozes foram dirigidas apresentou ao público presente (composto, em
em busca de interpretações verossímeis para os textos. grande parte por mulheres - sociólogas, antropólogas,
The Emerging Woman tornou-se referência a psicólogas e jornalistas latino-americanas e de outros
ponto de ter sido um dos filmes oficiais da Comissão países) um panorama da mulher na região. O filme
Bicentenária Americana em 1976. Foi distribuído no foi, posteriormente, distribuído na Bolívia, Venezuela
mercado de 16 mm nos EUA, que abrangia escolas, e Colômbia para instituições e organizações voltadas
universidades e bibliotecas, tornando-se referência às mesmas questões e é apontado por pesquisadores
para as pesquisas e cursos sobre a condição da mulher. como o primeiro filme a abordar a condição da mulher
Foram vendidas, na época, cerca de 400 cópias do latino-americana.
filme no país e a equipe chegou a ser convidada para
uma visita de honra à Casa Branca, em Washington
D.C., por ter percorrido, ao que parece, pela primeira
vez no cinema norte-americano, 170 anos de história
do movimento feminista naquele país.
Um ano depois do lançamento de The Emerging
Woman, 1975 foi declarado o “Ano Internacional da
Mulher”. Uma série de conferências e workshops
seria realizada em vários países a esse respeito. Um
momento ideal para ampliar o tema de The Emerging
Woman para a América Latina e obter financiamento
para um projeto maior: The Double Day (A Dupla
Jornada, 1975), primeiro longa-metragem da cineasta.
O filme surgiu como um desdobramento de The
Emerging Woman e do interesse de Solberg em
conhecer a realidade de suas contemporâneas na
América Latina, com olhar especial para as mulheres Figura 2 – Helena Solberg e Christine Burrill nas filmagens
de baixa renda. de The Double Day. Bolívia, 1975. Fonte: Arquivo Radiante
O desenvolvimento econômico das metrópoles Filmes (Brasil)
latino-americanas estaria trazendo mudanças para a
posição social das mulheres? Haveria desigualdades O filme que encerra a Trilogia da Mulher,
salariais entre homens e mulheres no continente? Simplesmente Jenny (1977) foi realizado com parte
Quais seriam as condições de trabalho das mulheres do material bruto de The Double Day. O documentário
no interior e nas grandes cidades? E a situação das se estrutura nos depoimentos de três adolescentes
empregadas domésticas? E o que dizer das mulheres presas num Reformatório para meninas na Bolívia:
que trabalhavam nas minas? Essas foram algumas Marly, Jenny e Patricia. As três haviam sido estupradas
das questões do documentário que também foi aos 13 anos de idade.
realizado pela equipe do International Women’s Film Os depoimentos das três permeiam o documentário
Project, com fotografia do brasileiro Affonso Beato. - que é intercalado à imagem “ideal” da mulher vendida
The Double Day parte de uma tese: de que nos pela mídia. Embora a realidade das três adolescentes
países subdesenvolvidos há necessidade de ligar seja dura, elas mantêm ideais, como casamento, sair
a opressão da mulher a uma análise econômica da do reformatório e ter uma profissão, enriquecer e ter
sociedade. A maioria das mulheres da América Latina filhos. O reformatório onde se encontram não oferece
é oprimida duas vezes: compartilham com os homens saídas. O psiquiatra da instituição diz que, embora
a opressão de classe e, ao mesmo tempo, sofrem a elas recebam tratamento, elas saem da mesma
opressão por serem mulheres. Essa dupla opressão maneira como entraram. Nas palavras do psiquiatra,
serve para a manutenção de um sistema econômico não há perspectivas, pois a situação socioeconômica
chefiado por homens, que favorece os chamados, na do país não oferece condições.
época, países de Primeiro Mundo, em detrimento dos Mesmo com a falta de perspectivas, Patrícia, Marly e
países do Terceiro Mundo.. Jenny revelam consciência de sua situação e o desejo
O documentário é articulado para comprovar esta de seguirem vivendo da maneira que gostariam. Elas
tese com depoimentos de mulheres em diferentes falam sobre seus sonhos e o que gostariam de fazer
situações: empregadas domésticas em busca de se não estivessem ali. É quando uma das meninas diz:
trabalho na Argentina; esposas de mineradores no “Eu gostaria de ser simplesmente Jenny”. Assim como

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Capítulo II – Cinema – Cinema

The Double Day, o nome do filme é extraído de uma vitória da Frente Nacional de Libertação (FNL) seriam
de suas falas. igualmente investigados.
O filme reverbera os temas de The Double Day, mas As contradições do novo regime, as relações com
diferencia-se ao focar as três personagens e relacionar os Estados Unidos e os esforços na reconstrução
seus sonhos, fantasias e ideias com a imagem da Nicarágua provocaram profundas mudanças no
reiterada pela mídia, sempre com modelos europeias povo nicaraguense, que já não se encontrava coeso
ou norte-americanas, assim como as influências da como no período da Revolução. O novo regime, de
formação cristã no ideal de pureza que nada tem a inspiração marxista, coexistia com uma estrutura
ver com a realidade e as origens pré-colombianas de econômica ainda capitalista, gerando tensões entre o
onde vieram. setor privado, os trabalhadores e o governo.
O fato de ser considerada feminista ou uma cineasta Helena Solberg decidiu investigar esse panorama
feminista passou a incomodar Helena Solberg que tendo como ponto de vista o olhar de uma família
temia ficar presa em um rótulo que a impedisse de nicaraguense.
realizar outros projetos e enfrentar novos desafios Com o apoio da Organização de Mulheres da
do ponto de vista temático e de linguagem. Depois Nicarágua na pesquisa de campo para encontrar a
do mergulho nas temáticas feministas, nos EUA e na família na capital Manágua, após algumas semanas,
América Latina, Helena Solberg estava pronta para Helena encontrou uma família de seis integrantes: o
percorrer outros caminhos. pai José Chavarría, sapateiro, trabalhava em casa.
A mãe, Clara, também contribuía nas despesas da
Fase Política: Nicarágua Hoje (1982): casa com pequenos trabalhos de costura. O casal
Polêmica no New York Times tinha quatro filhos: Elis, de dezenove anos; Gladys, de
dezesseis; Damaris, de quatorze; e o caçula, Melvin,
O documentário From The Ashes...Nicaragua com nove anos de idade.
Today (Nicarágua Hoje, 1982) percorre as raízes Pela voz over da própria cineasta que não se
históricas do Movimento Nacional de Libertação da identifica no filme, é apresentado, no início, o tema
Nicarágua, na América Central, que leva à Revolução central: acompanhar os sobreviventes da Guerra
Sandinista e à derrubada da ditadura de Anastásio Revolucionária um ano após o conflito que resultara em
Somoza Debayle, em 1979, depois de 45 anos de 50 mil mortos. O conflito havia provocado profundas
poder da família Somoza. Também são investigadas mudanças para o povo nicaraguense cuja vida era
as relações internacionais entre os Estados Unidos e a influenciada pelas relações políticas entre a Nicarágua
Nicarágua, partindo das sucessivas invasões de tropas e os EUA. Esse era o panorama geral do documentário.
americanas de fuzileiros navais ao país, ao longo do São acompanhadas as transformações na
século XX, até os antagonismos da administração do Nicarágua, pelo olhar dessa família em seu cotidiano.
Presidente Ronald Reagan em relação ao governo Essas imagens foram filmadas ao longo de um ano. São
nicaraguense, em 1981. presenciados momentos do dia-a-dia dos Chavarrías:
O filme aborda os esforços do povo nicaraguense no trabalho; em reuniões políticas e familiares; na
e da Junta de Governo na reconstrução da preparação das meninas para irem à escola; em
economia, política e sociedade do país, após a situações de lazer (ouvindo música americana – John
Revolução, e acompanha ações, como a campanha Travolta – pelo rádio; assistindo à televisão, tomando
de Alfabetização dos trabalhadores no campo e nas banho de mar etc.). Essas situações possibilitam que
cidades; as cooperativas dos trabalhadores rurais os espectadores percebam que se trata de uma família
no interior do país; as mudanças nas relações entre comum, com os mesmos sentimentos de qualquer
homens e mulheres; a revisão do papel da Igreja família. E que, apesar de todos os problemas advindos
Católica; a reforma agrária; as divergências internas com os conflitos políticos, os Chavarrías se mantinham
entre pequenos agricultores, executivos e o governo unidos, com forte sentimento de solidariedade entre
sandinista; os impactos da Revolução no setor de eles. Desta forma, a identificação dos espectadores
negócios privados e as ameaças à vitória da Revolução norte-americanos com a família tornou-se inevitável.
Sandinista com a política violenta de países vizinhos, Essa identificação constituiu-se num dos traços
como El Salvador, Guatemala e Honduras. marcantes do desempenho do filme em festivais de
From the Ashes... Nicaragua Today nasce da cinema e também nos Estados Unidos quando foi
indignação da cineasta com a cobertura dada pela exibido em rede nacional de televisão pela PBS – Public
mídia norte-americana aos conflitos políticos na Broadcasting Service (Serviço Público de Teledifusão).
América Central, no início da década de 80, auge da Se era possível aos espectadores se identificarem-
Guerra Fria. se com uma família nicaraguense que apoiara a
Dessa forma, surgiu o projeto de realizar um Revolução Sandinista, também seria possível sua
documentário que ouvisse as diferentes vozes e identificação com o povo nicaraguense. Um sentimento
versões sobre a Revolução Sandinista – pequenos ameaçador aos olhos do governo Reagan, que
agricultores, operários, políticos, representantes do preferia associar os nicaraguenses à eterna imagem
governo, civis, bem como opiniões de políticos norte- perpetuada pela mídia norte-americana, de “rebeldes”
americanos –, na tentativa de compor um painel que colocavam em risco a liberdade da Nicarágua.
sobre a situação no país. Os motivos que levaram à Temerário também, seria perceber o apoio dos EUA à
Revolução em 1979 e as mudanças no país a partir da ditadura Somoza e à ação violenta da Guarda Nacional

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do ditador no assassinato de 50 mil nicaraguenses em (A Dupla Jornada, 1975), somada à parceria com o
bombardeios e ações militares durante os conflitos que produtor norte-americano David Meyer (que já havia
envolveram a Revolução Sandinista. trabalhado na Rede de Televisão Americana ABC e
Helena Solberg não voltou à Nicarágua para filmar se juntado à categoria dos cineastas independentes),
um possível reencontro com os Chavarrías, mas From possibilitou a obtenção de financiamento para
The Ashes... Nicaragua Today marcaria sua trajetória os dois filmes junto à Rede Pública de Televisão
de maneira decisiva. A exibição do documentário em Americana PBS.
cadeia nacional nos EUA, no dia 08 de abril de 1982, Em 1982, a crise da dívida externa brasileira com
pela PBS, provocou uma reação inesperada por parte valor estimado em 90 bilhões de dólares era pauta
de William Bennet, diretor do National Endowment for constante, na época, na mídia norte-americana. O não
the Humanities que havia financiado parte do filme. Na pagamento da dívida e o caos econômico que resultaria
primeira página do New York Times Bennet acusava com a moratória, preocupavam a opinião pública do
o filme de “propaganda, de realismo socialista sem- país. O ano também marcou as primeiras eleições
vergonha”. William Bennet ficou contrariado pelo fato diretas do Brasil desde o Golpe Militar de 1964.
de a seção do Endowment pertencente ao estado de The Brazilian Connection (A Conexão Brasileira,
Wisconsin ter contribuído com 45 mil dos 210 mil dólares 1982/1983) inicia-se com depoimentos do então
gastos para fazer o documentário. A associação dos embaixador americano para o Brasil, Anthony Motley,
cineastas independentes entrou na controvérsia: teria e de William Cline, representante do Instituto para
o governo norte-americano o direito de usar os fundos Assuntos Econômicos Internacionais nos Estados
públicos para controlar a liberdade de expressão? Unidos, falando sobre as consequências do não
A polêmica colocou em questão o próprio pagamento da dívida brasileira para os EUA e para o
financiamento dos filmes independentes, e repercutiu sistema econômico internacional. Seguem-se imagens
em outras instituições apoiadoras, provocando a gerais do Brasil: pessoas tocando pandeiro nas ruas,
manifestação de pessoas como Joseph Duffey, que praias, um estádio de futebol lotado, o carnaval
havia presidido o National Endowment antes de carioca e o centro da cidade de São Paulo. Sobre
William Bennet, e também de representantes da PBS, essas imagens, são inseridos os créditos do filme:
que havia veiculado o documentário em rede nacional. The Brazilian Connection, a struggle for democracy (A
Repercutiu também em outros jornais como The Conexão Brasileira/A luta pela democracia). Imagens
Washington Post, Los Angeles Herald Examiner, The panorâmicas do país são inseridas apresentando a
Daily Cardinal e no próprio New York Times, ao longo diversidade geográfica e cultural brasileira: o Pantanal
de várias semanas. mato-grossense, cidades históricas como Ouro Preto
Todos esses elementos fazem de From the Ashes... e Congonhas etc. Sobre essas imagens são inseridos
Nicaragua Today um dos grandes documentários de os créditos: Host and Narrator (Âncora e narrador):
Helena Solberg – reconhecido pelo público e pela Warren Hoge.
crítica em importantes prêmios internacionais, além do Com habilidade, a cineasta introduziu, no início do
Emmy da televisão norte-americana em 1983. filme, as informações que despertariam o interesse
Este reconhecimento viabilizou seus documentários dos norte-americanos. Cativou a audiência e pôde,
seguintes e a colocaram numa situação privilegiada: bem ao seu estilo, desenvolver outros assuntos
a de uma latino-americana vivendo e trabalhando correlatos à questão da dívida externa brasileira
nos Estados Unidos, com acesso a mecanismos que interessavam-lhe para compor amplo painel das
internacionais de financiamento e com liberdade circunstâncias políticas e econômicas por que passava
de expressão difícil de encontrar entre seus o Brasil no início da década de 80. O Golpe Militar de
contemporâneos latino-americanos que sofriam a 1964 foi apresentado através de imagens de arquivo e
censura dos regimes totalitários no continente. da narração (voz off) do âncora.
Após a realização de The Brazilian Connection,
Chile, by reason or by force (Chile, pela Helena Solberg e sua equipe partiram para o Chile
razão ou pela força, 1983) e The brazilian para a cobertura do 10º aniversário do governo do
connection (A conexão brasileira, 1982-1983) General Augusto Pinochet. A cobertura deu origem
ao documentário Chile, By Reason or By Force
O diálogo entre o Cinema Militante e a grande (Chile, pela razão ou pela força, 1983) realizado
reportagem televisiva para investigar as relações nas mesmas condições de The Brazilian Connection
internacionais entre os Estados Unidos e a América (cronograma apertado e interferências da PBS
Latina inaugurado em From The Ashes... Nicaragua quanto à linguagem do filme).
Today (Das Cinzas... Nicarágua Hoje), teve sequência Entre as exigências da Rede Pública Americana,
em dois documentários subsequentes de Helena está a presença do âncora-narrador em ambos os
Solberg: The Brazilian Connection, a struggle documentários. Para o filme realizado no Brasil,
for democracy (A Conexão Brasileira, a luta pela Helena Solberg e David Meyer convidaram o editor-
democracia, 1982/1983) e Chile, by Reason or by chefe do New York Times, Warren Hoge, que havia
Force (Chile, pela razão ou pela força, 1983). trabalhado do Rio de Janeiro. Para o documentário
A repercussão do filme sobre a Nicarágua e de sobre o Chile, o jornalista John Dinges, que já tinha
trabalhos anteriores da cineasta como The Emerging grande experiência na cobertura de matérias sobre
Woman (A Nova Mulher, 1974) e The Double Day a América Latina e já havia trabalhado no jornal The

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Capítulo II – Cinema – Cinema

Washington Post e também na conhecida revista identifica) que procura Carmen por trás da máscara de
Time. Ambos os profissionais deram credibilidade aos sempre, por arquivos internacionais, por museus etc.
filmes e, embora fossem uma exigência da Rede de Esse tom reflexivo questiona e expõe as fragilidades e
Televisão, observa-se que por intermédio deles está a dúvidas do processo de realização do filme.
voz da própria diretora. São as ideias, as análises, e as Ao expor as fragilidades do processo fílmico e suas
informações pesquisadas pela cineasta que estão por incertezas, o filme lembra que cinema é construção.
trás das informações apresentadas pelos âncoras. Em Por trás do “fetiche” do que vemos e ouvimos na tela,
última análise, o ponto de vista do âncora-narrador é o existem pessoas que pensam e articulam o material
ponto de vista da cineasta. fílmico e isto está colocado, de forma sutil, pela
A cineasta tinha, naquele momento, liberdade e narração em voz over.
condições de filmar que eram difíceis de encontrar Uma segunda questão que emerge a partir da
entre os cineastas brasileiros e latinos residentes voz over reflexiva é a relação de proximidade entre
no Hemisfério Sul, naquele momento. Esses a cineasta e seu objeto, Carmen Miranda. Ambas
documentários da Fase Política questionavam as partiram do Brasil para os Estados Unidos e lá
ditaduras no continente, e lançavam luz na capacidade se impuseram no mercado de trabalho. Isso, sem
de mobilização dos civis e grupos políticos (marcas do deixarem de ser latino-americanas. Ao falar de Carmen
Cinema Militante), bem como no papel do governo Miranda, Helena Solberg fala de si mesma.
norte-americano na implantação e sustentação dos
governos ditatoriais na América Latina.
Vivendo nos Estados Unidos, a diretora pôde
trabalhar com orçamentos com base no mercado
de documentários norte-americanos – de antemão
superiores aos orçamentos para filmes do gênero
no Brasil e ainda atuar num país com liberdade de
imprensa, situação oposta ao Brasil e aos demais
países latino-americanos na primeira metade da
década de 1980.
Após a realização dos filmes da fase militante,
Helena irá investigar a trajetória da cantora luso-
brasileira Carmen Miranda. O contexto político ainda
será analisado para compreender as circunstâncias
que propiciaram a emergência da cantora no Brasil
e no âmbito internacional. A contextualização de
Carmen na política da boa vizinhança do pós-
guerra, como um “produto” útil para ambas as
partes - Estados Unidos e Brasil - será investigada,
na tentativa de compreender a perda da identidade
cultural da cantora nos Estados Unidos.

CARMEN MIRANDA

Carmen Miranda, Bananas Is My Business (Carmen


Miranda, Meu Negócio É Bananas, 1994) percorre a
vida e obra da cantora luso-brasileira Carmen Miranda, Figura 3 – Cartaz do filme Carmen Miranda, Bananas Is My
Business (1994). Dir: Helena Solberg.
de seu nascimento, em 1909, em Marco de Canaveses Fonte: Radiante Filmes (Brasil)
(Portugal), até sua morte precoce, em 1955, com
apenas 46 anos de idade, em sua casa em Bervely Como a cineasta não se identifica no filme como
Hills, no estado da Califórnia - Estados Unidos. narradora da voz over (apenas ao final surpreende-nos
O envolvimento emocional de Helena Solberg com a nos letreiros: “Dirigido e narrado por Helena Solberg”),
história de Carmen Miranda cresceu ao longo dos anos o espectador tem a impressão de que se trata da
chegando a envolver o processo de realização do filme, voz de uma amiga, alguém que conheceu Carmen
a ponto da cineasta começar a sentir a necessidade Miranda. Mais do que identificar essa voz, o importante
de expressar, ela própria, seus sentimentos em relação é a dimensão que ela traz para o conteúdo fílmico,
ao que descobria. Foi nesse processo que surgiu um sugerindo um outro plano – o da memória afetiva, da
dos grandes diferenciais do documentário: a utilização subjetividade de quem narra e da própria Carmen; do
da voz over da cineasta, num tom extremamente imaginário coletivo (norte-americano e brasileiro) sobre
confessional, íntimo, para expressar seu conflito como Carmen Miranda e do desejo da diretora em identificar
diretora latino-americana sobre a identidade perdida de a mulher por debaixo da máscara e do rosto que perdia
Carmen e o que ela representava. seu frescor e autenticidade ao longo dos anos.
Numa articulação sofisticada, o tom confessional da Fotografias, artigos de jornal, cartas escritas pela
voz over da cineasta insere no filme uma dupla questão: cantora, imagens de nove filmes que ela realizou
numa primeira camada é uma voz afetiva (que não se para a 20th Century Fox, Cinédia, Columbia Pictures

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AVANCA | CINEMA 2016

e Republic Pictures Corporation estão impressos econômicas à sua volta, Alice Dayrell/ Helena Morley
em Carmen Miranda, Bananas Is My Business. escreve com humor e perspicácia sobre o que vê e
Entre as raras imagens de arquivo, a chegada do sente nas relações familiares e sociais que presencia.
caixão de Carmen Miranda ao Brasil, em agosto de Ao publicar seu diário, Alice Dayrell Caldeira Brant,
1955, e a multidão que acompanhou seu enterro que pertencia a uma família tradicional da região,
pelas ruas do Rio de Janeiro; arquivos pessoais em escreve na nota da 1ª edição de 1942 que nenhuma
película de Carmen com a família e amigos; além de alteração havia sido feita na transcrição de seu diário
cenas de outros filmes que ajudaram a reconstruir de menina para o livro, apenas “pequenas correções”
sua história, como desenhos animados e comédias e “substituições de alguns nomes”.
que a parodiavam. Para a personagem-título do livro, Alice Dayrell
O documentário apresenta, ainda, depoimentos criou um pseudônimo, um alter-ego que batizou de
raros de dezesseis pessoas que conviveram com Helena Morley. Um nome de origem grega – “Helena”,
a cantora: o antigo namorado, Aloysio de Oliveira, acompanhado por um sobrenome inglês, “Morley”
diretor do Bando da Lua (que a acompanhou –, numa síntese de sua formação, já que havia sido
aos Estados Unidos) e também responsável pelo educada por uma mãe brasileira e um pai inglês. Bem
repertório de seus shows; Aurora Miranda, irmã seis ao gosto das personagens de Solberg, Helena Morley
anos mais nova, que em vários momentos dividiu o era uma personagem fragmentada e dividida entre
palco com Carmen e que com ela morou em Bervely duas formações (uma ibérico-cristã e outra inglesa-
Hills; a governanta colombiana de Carmen Miranda protestante) e entre a infância e a adolescência.
nos Estados Unidos, Estela Romero; o jornalista O tom confessional da escrita de Alice Dayrell
e amigo de Carmen Miranda, Caribé da Rocha; os em seu diário foi preservado no filme. E também, o
compositores que criaram canções especialmente mesmo humor frente à hipocrisia moral; ao peso da
para ela: Synval Silva e Laurindo Almeida; o primeiro religiosidade e às convenções da Diamantina em “fins-
namorado de Carmen Miranda, Mário Cunha; além de-século”. Helena Solberg quis ser fiel à intenção da
de amigos e atores. Um elenco precioso de pessoas, autora, interpretada pela atriz Ludmila Dayer.
a maioria na casa dos oitenta anos de idade, Na condução da narrativa, Helena Solberg fez a
que trouxeram frescor, veracidade e, sobretudo, opção pela voz off de Helena Morley/Ludmila Dayer. O
informações importantes para o filme. filme foi dividido em episódios do diário, comentados
Todos esses elementos somados ao intenso por essa voz off como se estivesse lendo em voz alta
trabalho de pesquisa de imagens ao longo de três anos seus escritos.
de realização, às vozes dos dezesseis entrevistados A partir da escrita, a personagem Helena Morley se
que deram seu último testemunho a respeito da construiu, ela interpretou os acontecimentos no dia-
convivência artística e afetiva que tiveram com a a-dia da província e desenvolveu um olhar de fora,
cantora e ao trabalho de reconstrução da identidade estrangeiro, a respeito do cotidiano da cidade. Morley
perdida de Carmen Miranda, como uma artista latino- narrou os episódios que a envolviam e, também, a seus
americana que difundiu a canção brasileira no exterior, familiares. A escrita possibilitou que ela tivesse um
com estilo único, fazem de Carmen Miranda, Bananas distanciamento em relação a esses acontecimentos e
Is My Business um dos relevantes documentários os compreendesse melhor.
brasileiros da década de 90, assim como um dos Em 2004, Vida de Menina recebeu seis kikitos
filmes do período da chamada retomada do cinema no Festival de Gramado (Melhor Filme pelos Júris
brasileiro. O filme conduz à fase seguinte na qual a Oficial e Popular, Melhor Roteiro para Elena Soárez
arte brasileira em suas diversas manifestações – e Helena Solberg, Melhor Fotografia para Pedro
literatura, dança, música etc – estará no centro das Farkas, Melhor Direção de Arte para Beto Mainieri
atenções da diretora. e Melhor Música para Wagner Tiso). No mesmo ano
foi premiado como Melhor Filme pelo júri popular no
ARTE BRASILEIRA: VIDA DE MENINA (2004) Festival do Rio. Em 2005 foi a vez do 15º Festival
de Cinema de Natal onde recebeu 5 prêmios (Melhor
O longa-metragem ficcional Vida de Menina Filme – Júri Oficial e Júri Popular, Melhor Atriz para
(2004) é uma adaptação do Diário de Helena Morley, Ludmila Dayer, Melhor Música para Wagner Tiso e
Minha Vida de Menina, de Alice Dayrell Caldeira também Melhor Roteiro para Helena Solberg e Elena
Brant. Publicado pela primeira vez em 1942, o livro Soárez. E em 2006, no Cineport – Portugal recebeu o
é o diário da autora nos tempos de menina-moça, prêmio de Melhor Figurino.
escrito na cidade de Diamantina/MG, no período de
1893 e 1895, quando tinha entre treze e quinze anos PALAVRA (EN) CANTADA, 2009
de idade. Uma época de grandes transformações
políticas, econômicas e sociais no Brasil, com o fim Palavra (En)cantada, 2009, é um documentário
da Monarquia e a Proclamação da República (1889), que investiga a relação entre a poesia, a literatura
com a abolição da escravatura (1988) e, no plano e a canção brasileira, para traçar um panorama da
regional, com o esgotamento das antigas jazidas música popular no país, em momentos importantes – a
de diamante, o que provocou a decadência e o conformação do samba nos anos 30; os antecedentes
empobrecimento de várias famílias da região. Atenta da bossa nova; o tropicalismo; o rock nos anos 80; o
às transformações nas relações sociais, políticas e rap e o hip hop a partir da década de 90 e a diversidade

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Capítulo II – Cinema – Cinema

de estilos encontrados na música popular brasileira amplo panorama da música popular no Brasil. Como
contemporânea. Para traçar esse percurso, Helena defende José Miguel Wisnik em um dos depoimentos:
Solberg conta com os depoimentos e performances “Em um país com uma forte cultura oral como o Brasil,
artísticas de dezoito artistas entre músicos, poetas, a música popular pode ser a grande ponte para a
intérpretes e pensadores da música brasileira. poesia e a literatura.” Essa ideia de Wisnick é reforçada
Participam do filme Adriana Calcanhotto, Antônio por outros depoimentos, pelas performances musicais
Cícero, Arnaldo Antunes, BNegão, Black Alien, Chico e raras imagens de arquivo, tornando Palavra (En)
Buarque, Ferréz, Jorge Mautner, José Celso Martinez cantada fundamental para a compreensão da história
Correa, José Miguel Wisnik, Lirinha (Cordel do Fogo do cancioneiro no Brasil.
Encantado), Lenine, Luiz Tatit, Maria Bethânia,
Martinho da Vila, Paulo César Pinheiro, Tom Zé e CONCLUSÃO: O CINEMA DE HELENA
Zélia Duncan. A maioria das entrevistas foi realizada SOLBERG
em suas residências, sendo que alguns deles
cantaram e tocaram canções especialmente para o A partir da análise e convivência com os filmes
documentário, fato que realça a atmosfera intimista documentários de Helena Solberg ao longo dos anos,
do longa-metragem. foi possível observar determinados procedimentos,
A relação da música com a palavra é reiterada nas abordagens e interesses que se fazem presentes em
questões que a cineasta estabelece para os artistas, seus filmes como a predileção por temas amplos e sua
como uma espécie de leit-motiv do filme, incitando-os repercussão na individualidade dos personagens: a
a refletir sobre o lugar da literatura em seus processos exploração da força de trabalho da mulher na América
criativos. A ideia do documentário nasceu de uma Latina (The Double Day, A Dupla Jornada, 1975); a
proposta do produtor cultural Marcio Debellian, que tensão entre a ala progressista da Igreja Católica no
procurou a cineasta sugerindo a realização de um Brasil na década de 1980 (Teologia da Libertação) e o
filme que abordasse a relação entre a música e a Vaticano (The Forbidden Land, A Terra Proibida, 1990)
poesia no Brasileira. ou a relação da poesia com a música popular brasileira
No encontro com os músicos e artistas Solberg (Palavra (En)cantada, 2009).
parte da relação de cada um deles com a literatura São temas amplos nos quais a perspectiva humana
para propor questões a respeito de sua formação está sempre presente. O geral é contraposto ao
cultural, linguagem, estilo e influências, sem perder particular para investigar de que forma a conjuntura
de vista o mote da literatura. Nesses encontros política, econômica e social repercute no indivíduo –
surgem histórias como a infância de Maria Bethânia e personagens que ela aborda em seus documentários.
as escolas públicas em Santo Amaro, na Bahia; sobre Observamos também o interesse da cineasta
a relação de Chico Buarque com o escritor João pela palavra falada que estrutura seus filmes. Os
Cabral de Melo Neto quando realizou a adaptação documentários são pontuados por entrevistas que
musical para o teatro, do auto de Natal de João constituem o corpo de muitos filmes, definidas pela
Cabral, Morte e Vida Severina; sobre a infância da cineasta como “encontros”, em que conversa com
compositora Adriana Calcanhoto em Porto Alegre, no seus entrevistados na busca de conceitos e ideias
Rio Grande Sul, etc. a respeito das circunstâncias sociais, políticas e
Em alguns momentos, ouvimos a voz de Solberg econômicas que vivenciam.
realizando uma ou outra pergunta que foram mantidas A palavra cantada manifesta na interpretação
na montagem final, para uma melhor compreensão de canções como expressão única, particular, das
dos assuntos tratados. A voz over da cineasta personagens surge em filmes como Carmen Miranda
recorrente em filmes como Nicarágua Hoje (1982) e (Carmen Miranda, Bananas Is My Business, 1995) e
Carmen Miranda, Bananas Is My Business (1995) não Palavra (En)cantada (2009) onde diversos cantores/
está presente em Palavra (En) cantada. compositores como Adriana Calcanhoto, Lenine e
Quem fala no documentário são os músicos/ Tom Zé realizam performances musicais que agregam
pensadores. O filme propõe, a partir da montagem de conteúdo ao filme.
Diana Vasconcelos e Helena Solberg, um desenho da O uso de canções sobre os países latino-
trajetória da música popular brasileira no século XX. americanos abordados nos filmes de militância -
Se a expressão artística de cada músico/compositor é feminista ou política - como no início de The Double
alvo do interesse de Helena Solberg, essas expressões Day (A Dupla Jornada, 1975), em que a canção
que constituem uma polifonia de vozes, canções e introduz informações sobre a exploração dos minerais
performances artísticas foram articuladas em função na América Latina pelos espanhóis, ou a canção
desse desenho, que é construído na montagem, com Managua, Nicarágua, no início de From The Ashes...
atenção especial aos momentos de transformação da Nicaragua Today, que canta a histórica relação da
música popular brasileira. colonização norte-americana na Nicarágua.
Para enriquecer a discussão sobre o amplo A imagem da mulher é muitas vezes associada
painel da canção no Brasil, em Palavra (En)cantada às imagens de bonecas, de marionetes, de
a cineasta pede aos entrevistados que interpretem manequins em vitrines e mulheres vestidas de
canções de sua autoria que falem de seu processo noivas (Carmen Miranda, Bananas Is My Business,
criativo, bem como de sua relação com a palavra. 1995; The Emerging Woman, A Nova Mulher, 1974;
Palavra (En)cantada acaba por apresentar um Simplesmente Jenny, 1977). Frequentemente em

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AVANCA | CINEMA 2016

seus documentários, notadamente nos da Trilogia da Burton, Julianne. 1986. Helena Solberg-Ladd, Cinema
Mulher, essa associação é utilizada para manifestar a and Social Change in Latin America. Austin Texas:
crítica da cineasta quanto à educação tradicional da University of Texas Press.
mulher, criada e preparada para ser esposa e mãe. DA-RIN, Sílvio Pirôpo. 2004. Espelho partido: tradição e
Essas imagens são inseridas em momentos transformação no documentário. Rio de Janeiro: Azougue.
Nichols, Bill. 2005. Introdução ao documentário.
oníricos, com poemas e trilha sonora. Surgem como
Traduzido do inglês por Mônica Saddy Martins. Campinas,
um elemento surpresa na montagem, quebrando o SP: Papirus.
ritmo e surpreendendo o espectador. MORLEY, Helena. 1998. Minha vida de menina. São
Surge também, em alguns documentários, a crítica Paulo: Companhia das Letras.
à imagem da mulher sensual, de traços europeus Penafria, Manuela.1999. O filme documentário: história,
ou norte-americanos, distante dos traços da mulher identidade, tecnologia, Lisboa: Cosmos.
latino-americana. Esse modelo ideal veiculado pela Ramos, Fernão Pessoa. 2008. Mas afinal... O que é
mídia – revistas femininas, fotonovelas, propagandas mesmo documentário? São Paulo: Senac.
de televisão, filmes aparece em documentários como Tavares, Mariana. 2014. Helena Solberg: do Cinema
Simplesmente Jenny, 1977; The Emerging Woman, Novo ao Documentário Contemporâneo, São Paulo:
1974; Carmen Miranda, Bananas Is My Business, Imprensa Oficial SP.
1994 e A Entrevista,1966.
A ficção encontra-se na representação de alguns Filmografia
personagens, como o ator transformista Erick Barreto,
Palavra (En) cantada. 2009. De Helena Solberg. Brasil:
na representação de Carmen Miranda adulta (Carmen
Biscoito Fino. DVD.
Miranda, Bananas Is My Business, 1995), ou da atriz Vida de Menina.2004. De Helena Solberg. Brasil:
Letícia Monte na representação de Carmen Miranda Europa Filmes. DVD
adolescente. Nesse filme, a cineasta utilizou, também, Carmen Miranda: Bananas Is My Business. 1994. De
a locução encenada de atores na interpretação de Helena Solberg. Brasil: Radiante Filmes. DVD
notícias radiofônicas e do jornalismo impresso a The Forbidden Land . 1990. De Helena Solberg. EUA:
respeito de Carmen, que foram veiculados pela mídia International Cinema Inc. DVD
norte-americana e brasileira nos anos de 1940 e 1950. Portrait of a terrorist. 1985. De Helena Solberg e David
A locução encenada também foi utilizada no primeiro Meyer. EUA: International Cinema Inc. DVD
filme da cineasta, realizado nos EUA, The Emerging Chile: By Reason or by Force. 1983. De Helena Solberg
Woman (A Nova Mulher, 1974). O documentário em e David Meyer. EUA: International Women Film’s Project.
DVD
média-metragem apresentou locuções gravadas com
The Brazilian Connection, a Struggle for Democracy.
diferentes vozes femininas na interpretação de textos 1982/1983. De Helena Solberg e David Meyer. EUA: The
escritos por mulheres norte-americanas e inglesas International Women’s Film Project Incorporation. DVD
que se manifestaram publicamente contra séculos From the Ashes… Nicaragua Today. 1982. De Helena
de exploração da mulher no espaço doméstico e no Solberg Ladd. EUA: International Women’s Film Project.
trabalho. Sobre essas locuções, a cineasta insere DVD
fotografias, desenhos e gravuras com os rostos ou Simplesmente Jenny.1977. De Helena Solberg Ladd.
representações dessas mulheres, o que proporciona EUA: International Women’s Film Project. DVD
verossimilhança ao documentário. The Double Day.1975. De Helena Solberg Ladd. EUA:
Seus principais personagens, via de regra, são International Women’s Film Project. DVD
personagens femininos. Mesmo num documentário The Emerging Woman. 1974. De Helena Solberg Ladd.
EUA: International Women’s Film Project. DVD
como Palavra (En) cantada, 2009, em que 18 artistas e
A Entrevista. 1966. De Helena Solberg Ladd. Brasil.
pensadores dão seu testemunho sobre a presença da
literatura e da poesia em suas criações, percebemos
um peso maior na entrevista/filmagem com a cantora
Adriana Calcanhoto que abre e fecha o documentário.
Ao longo deste percurso de cinco décadas pelo
processo criativo, temáticas, condições de produção
e fases de Helena Solberg, percebe-se uma trajetória
única e coerente, em sintonia com as tendências
internacionais, mas sem perder os aspectos
essenciais, particulares de seu cinema.
A experiência internacional adquirida em 32 anos
nos EUA, somada à militância política e feminista, à
convivência com o cinema direto norte-americano e com
a geração do Cinema Novo aliam-se a um repertório
audiovisual e a uma atuação profissional singulares.

Bibliografia

Bernadet, Jean-Claude. 2003. Cineastas e imagens do


povo, São Paulo: Companhia das Letras.

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