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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA

CHRISTIAN DOUGLAS KESKOSKI

TERAPIA GERMINATIVA EM HUMANOS


E SEUS REFLEXOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

CURITIBA
2020
CHRISTIAN DOUGLAS KESKOSKI

TERAPIA GERMINATIVA EM HUMANOS


E SEUS REFLEXOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Monografia apresentado como requisito parcial


para à obtenção do grau de Bacharel em Direito, do
Centro Universitário Curitiba.

Orientador: Roosevelt Arraes.

CURITIBA
2020
CHRISTIAN DOUGLAS KESKOSKI

TERAPIA GERMINATIVA EM HUMANOS


E SEUS REFLEXOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção


do grau de Bacharel em Direito do Centro Universitário
Curitiba, pela Banca Examinadora formadas pelos
Professores:

Orientador: _________________________

__________________________
Prof. Membro da Banca

Curitiba, de de 2021
AGRADECIMENTOS

Cordialmente, venho deixar meus agradecimentos primeiramente aos meus


pais Lia do Rosário Keskoski e Gildo Keskoski, minha base que me possibilitaram
essa jornada acadêmica, oportunidade que espero um dia poder lhes retribuir.

Agradeço ainda os meus amigos acadêmicos Henrique Guerios Pereira, Iury


Teixeira de Carvalho, João Victor Pereira Comazzetto,
Mateus Barbieri e Paula Braz, e a minha querida companheira Kassandra de
Souza da Silva. Me acompanharam desde o início da minha que fizeram desta etapa
uma das melhores fases da minha vida.

Também deixo um agradecimento especial aos meus professores que


compartilharam seus conhecimentos, principalmente ao meu orientador Roosevelt
Arraes, quem me ajudou de perto e foi fundamental para a elaboração deste projeto.
RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo examinar as problemáticas e as benesses da


terapia germinativa em embriões humanos que tenham o propósito de curar, e os
novos desafios colocados por esses avanços biotecnológicos perante a sociedade e
no ordenamento jurídico brasileiro. Devido aos crescentes progressos das pesquisas
nessa área, esse procedimento vem se tornando cada vez mais comum. Buscou-se
evidenciar as questões que estão em jogo, sobretudo, na proposta da chamada
eugenia, no patrimônio genético da humanidade e na dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, pretende-se demonstrar da importância em não impedir o livre
desenvolvimento de uma tecnologia voltada a valorização da dignidade da pessoa
humana, sem vulnerar princípios fundamentais que impliquem a própria manutenção
do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Avanços biotecnológicos. DNA. Manipulação embrionária. Terapia


germinativa. Evolução Humana.
ABSTRACT

The present work aims to examine the problems and benefits of germline therapy in
human embryos that have the purpose of curing, and the new challenges posed by
these biotechnological advances before society and in the Brazilian legal system. Due
to the increasing progress of research in this area, this procedure is becoming more
and more common. We sought to highlight the issues at stake, above all, in the
proposal of the so-called eugenics, in the genetic heritage of humanity and in the
dignity of the human person. Thus, it is intended to demonstrate the importance of not
preventing the free development of a technology aimed at enhancing the dignity of the
human person, without violating fundamental principles that imply the maintenance of
the Democratic Rule of Law.

Keywords: Biotechnological advances. DNA. Embryonic manipulation. Germline


therapy. Human evolution.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO. ........................................................................................................ 7

2 BIOTECNOLOGIA E A EVOLUÇÃO HUMANA. ..................................................... 8

2.1 A EUGENIA ......................................................................................................... 10

2.2 A TERAPIA GÊNICA. .......................................................................................... 12

3 PROTEÇÃO DA PESSOA HUMANA. ................................................................... 16

3.1 PRINCÍPIOS BIOÉTICOS ................................................................................... 16

3.1.1 Princípio da Beneficência e da Não-maleficência. ........................................... 19

3.1.2 Princípio da Justiça. ......................................................................................... 21

3.1.3 Princípio da Autonomia. ................................................................................... 22

3.2 VALORES CONSTITUCIONAIS EM FACE DAS INTERVENÇÕES GENÉTICAS.


.................................................................................................................................. 23

3.2.1 Princípio da liberdade ....................................................................................... 25

3.2.2 Princípio da igualdade. ..................................................................................... 29

3.2.3 Princípio da integridade psicofísica. ................................................................. 30

3.2.4 Princípio da Solidariedade................................................................................ 33

4 OS LIMITES DA TERAPIA EUGENICA PERANTE O EMBRIÃO. ........................ 38

4.1 ADI 3510-0/DF DE 2008...................................................................................... 43

4.2 APLICAÇÕES ATUAIS DA TERAPIA GÊNICA GERMINATIVA. ........................ 47

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 51

REFERÊNCIAS......................................................................................................... 53
7

1 INTRODUÇÃO.

A medicina tem dentre os seus objetivos a restauração e a manutenção da


saúde com o tratamento e prevenção de doenças, possibilitando dessa forma, uma
vida mais tranquila, saudável e digna. Caminhando ao lado das inovações
tecnológicas, traz técnicas para tratamentos e diagnósticos cada vez mais precisos e
eficazes. Percebe-se sua evolução com o aumento da expectativa de vida do último
século, coincidente com o momento em que a humanidade deu seu grande salto com
as suas novas tecnologias contemporâneas.
Não há dúvidas que a exponencial evolução tecnológica reflete-se na evolução
humana. O Aprimoramento constante das novas inteligências artificiais e das técnicas
de edição do genoma humano na engenharia genética, leva-nos a cogitar desses dois
feitos como um pontapé de uma nova era totalmente distinta do qual se conhece
atualmente, uma era em que a sociedade será composta por robôs que tomarão suas
próprias decisões e por pessoas geneticamente modificadas.
Se trata de um futuro admirável e ao mesmo tempo assustador, é aí que entra
o dever da ciência jurídica em regular esses novos conhecimentos na tentativa de se
evitar abusos. Entretanto, o direito detém suas dificuldades ao acompanhar os
progressos da ciência e seus novos conceitos.
Diante disso, através de pesquisas bibliográficas e estudos com o método
hipotético-dedutivo de natureza descritiva e comparativa, o presente trabalho tem por
objetivo trazer reflexões sobre a manipulação do genoma humano no ordenamento
jurídico brasileiro, analisando quais seriam seus limites e fatores de legitimação, com
a finalidade de se alcançar a adequada prestação jurisdicional.
Pessoas geneticamente modificadas ainda não é uma plena realidade, se trata
de um procedimento ainda em estudos, contudo destaca-se a importância e a
preocupação em discutir esse tema de modo a evitar futuros riscos para a sociedade.
Antes de adentrar em qualquer mérito jurídico, é necessário compreender a atuação
da terapia gênica dentro da biomedicina e das possíveis consequências sociais.
8

2 BIOTECNOLOGIA E A EVOLUÇÃO HUMANA.

Como qualquer ser vivo em nossa Biosfera, o homem precisou se adaptar a


mais variados condições para sobreviver, esse foi o fator determinante para sua
evolução, é o que Charles Robert Darwin chama de “o princípio da tentativa e do erro”.
Em 1835, Darwin observou que de alguma forma as espécies de animais sofriam
mutações e repassavam essas características a sua prole. Mesmo não sabendo
explicar como ocorriam essas mutações, ele sabia que os organismos mais adaptados
ao meio têm maiores chances de sobrevivência do que os menos adaptados,
deixando um maior número de descendentes1.
A principal arma na evolução do homem sem dúvida foi a sua inteligência
cognitiva, que permite interpretar os estímulos do ambiente em sua volta, e assim
poder tomar as melhores decisões para sua sobrevivência. Essa capacidade foi
adquirida ao longo de milhares de anos, a partir disso foi se dando passos cada vez
mais largos na evolução humana. E agora, com a Biotecnologia, é possível realizar a
mutação artificial, com esse conhecimento o homem está à beira de um salto nunca
antes conhecido, isso significaria se automanipular a fim de se melhor adaptar.
Essa técnica ao mesmo tempo pode ser uma proposta delirante quanto temida.
Seja pelas suas finalidades, como a eugenia e a clonagem, ou seja pelas suas
incertezas das consequências que nos obrigam a estudar tanto as suas benesses
quanto os seus males, e até mesmo os novos conceitos do ser humano. É daí que
surgem os movimentos do Transumanismo e Pós-humanismo.
Os pensamentos trazidos por esses movimentos visam um melhoramento dos
corpos humanos, não se limitando apenas na manipulação do genoma humano. Se
aplicam também por exemplo ao hibridismo, como corpos humanos-robotizados, uma
espécie de Ciborgue. Também há os denominados Teriomorfos, hibridização do
homem com o animal, o que se compararia a uma besta de um contexto mitológico.
Obviamente em seu extremo, a hibridização de homens com animais não é aceita
pela comunidade científica por se tratar de técnicas absolutamente antiética, perigosa
e cruel.
Embora muitos tratem o Transumanismo e Pós-humanismo como sinônimos,
esses movimentos apresentam uma breve diferença. Para o Rudiger, “Entende-se o

1WIKIPÉDIA. Seleção Natural. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Seleção_natural>. Acesso


em: 16 setembro 2020.
9

transumanismo como um processo para o pós-humanismo, sendo o indivíduo pós-


humano aquele que teria total controle de seu corpo e, potencialmente, imortal”2. Em
outras palavras, trata-se um transumano aquele que detém características não
humana, mas que ainda é considerado um ser humano. Já o Pós-humano é aquele
que pode ser uma pessoa, ou uma entidade que não é mais possível determinar como
uma pessoa, que possuam características superiores ou avançadas que os demais
humanos.
Umas das principais críticas a esses movimentos, dentre outras, é que o
aprimoramento genético pode trazer novas e graves consequências para a
desigualdade social, o mais cruel já vista. Aqui estaria se falando em uma nova
“casta”, formada por pessoas da alta elite econômica e agora geneticamente
privilegiada, dando novas habilidades ao transmutado a qual uma pessoa comum não
tem. Não é difícil imaginar inúmeras injustiças desse cenário, um exemplo seria a
competição no mercado de trabalho em face de famílias com baixa renda, que não
conseguem sequer acesso à um curso técnico e alguns casos nem mesmo a
educação básica.
Com as mudanças provocadas pela era Transumanista e Pós-humanista
implicariam na essência da natureza e dignidade humana. O que obrigaria nosso
ordenamento jurídico rediscutir conceitos da justiça, da autonomia, da igualdade, da
liberdade, da vida, da dignidade, da intimidade, da privacidade, dentre outros. Os
defensores desses movimentos advogam radicalmente nos preceitos dos direitos
humanos ao argumentar que cada cidadão é um ser autônomo, e que cabe a si e
somente a si, as decisões sobre quais modificações deve submeter seu cérebro, DNA
e corpo.
Contudo, o ser humano sempre se encontraria a mercê das novas tecnologias
e estaria em um estado perpétuo de evolução ao se modificar ou melhorar-se por
conta própria cotidianamente, ou seja, o homem do futuro sempre passaria a ser uma
versão beta de si mesmo, em constante update. Além disso, o aperfeiçoamento de
uma parcela da raça humana, levaria a supressão dos mais fracos ao focar no
aperfeiçoamento individual de cada ser. Isso é apenas mais um dos espectros que
ronda as discussões transumanistas, a eugenia.

2RUDIGER, Francisco. Cibercultura e Pós-humanismo: Exercícios de arqueologia e criticismo. 1.ed.


Porto Alegre: Edipuc, 2008, p. 142.
10

2.1 A EUGENIA

A eugenia é a seleção dos seres humanos com base em suas características


hereditárias com objetivo de melhorar gerações futuras. Essa teoria surge no ano de
1869 com Francis Galton, primo de Charles Darwin, que se dedicava aos estudos na
transmissão de características pela hereditariedade. Galton define a eugenia como:
“O estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as
qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”3.
Essa técnica chamada de reprodução seletiva ou melhoramento genético, já
era utilizada em espécies de plantas e animais na época. Esse processo consistia em
selecionar os melhores indivíduos de uma espécie, e manipulá-los para que se
reproduzissem, enquanto outros eram evitados para que a sua linhagem não
continuasse.
Esse tipo de melhoramento das espécies acompanha a evolução humana, ela
existe desde a domesticação do lobo pelos homens primitivos, há mais de 20 mil anos
atrás. Uma das teses mais aceitas é que os lobos menos ariscos se aproximaram de
grupos de caçadores humanos para se alimentar dos restos deixados por eles.
Criando a partir de então uma relação mútua, os homens os alimentavam e os lobos
os protegiam. Partir de então os filhotes das gerações seguintes deixaram de caçar
sozinhos e passaram a se alimentar em cooperação ao ser humano. Desses lobos
surgiram uma nova espécie, Canis Lupus Familiaris, o cão, que nos fazem companhia
até os dias de hoje.4
Com a eugenia, ideia de Galton era a reprodução de gênios e de espécies
melhores na sociedade. Em seu famoso livro publicado “Hereditary Talent and Genius”
propõe:

As forças cegas da seleção natural, como agente propulsor do


progresso, devem ser substituídas por uma seleção consciente e os homens
devem usar todos os conhecimentos adquiridos pelo estudo e o processo da
evolução nos tempos passados, a fim de promover o progresso físico e moral
no futuro.5

3 GALTON, 1869 apud GOLDIM, José Roberto. Eugenia. Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, abril. 1998. Disponível em <https://www.ufrgs.br/bioetica/eugenia.htm>. Acesso em:
17. Set. 2020.
4 BOTELHO, José Francisco. Como o homem transformou lobos em cachorros. Super interessante.

Maio. 2019. Disponível em: <https://super.abril.com.br/ciencia/como-o-homem-transformou-lobos-em-


cachorros/>. Acesso em: 17. Set. 2020.
5 GALTON, 1869 apud GOLDIM, 1998, s.p.
11

Para Noberto Bobbio, a eugenia tem uma grande relação com as teorias racistas:

Este conceito materialista se desenvolve no século XIX, tanto com a


teoria da hereditariedade dos biólogos raciais, como com a livre interpretação
do pensamento de Darwin: a seleção natural, que permite a sobrevivência a
quem se adapta ao ambiente, se transforma em sobrevivência da raça
favorecida por fatores hereditários. Estas teorias científicas dão origem a
práticas que depois serão utilizadas pela política racista: a eugenia (ou
higiene racial) que há de servir para combater a degeneração racial e para
melhorar a qualidade da raça, para tornar mais pura. No racismo, o perigo da
mistura das raças torna-se uma obsessão.6

Política racista que levou a maior atrocidade na história. Foi através do regime
nacional socialista de Adolf Hitler que aconteceram os abusos nazistas, ocasionando
o maior genocídio de todos os tempos, com perseguições principalmente aos Judeus,
pessoas negras, e deficientes físicos ou mentais. Tempos obscuros com graves
violações de direitos humanos que após a segunda guerra mundial levou 50 países
criar a Organização das Nações Unidas (ONU).
Atualmente, deslumbra-se o nascimento de uma “nova eugenia”, não o da
seleção e reprodução de uma espécie com determinadas características do indivíduo,
mas sim da possibilidade na intervenção direta no genoma humano objetivando o bem
comum da coletividade. Em 1990 o Projeto Genoma Humano foi criado com o objetivo
de mapear, descrever, e identificar genes relacionados a doenças hereditárias. Seja
em vida ou seja em fase embrionária, com esses estudos é possível saber se uma
pessoa vai apresentar algum comprometimento em sua saúde no futuro. O discutível
aqui é, até que ponto se poderia intervir no genoma humano na fase embrionária?
Antes de oferecer alguma resposta a essa pergunta, é preciso compreender melhor a
eugenia positiva, a eugenia negativa e a eugenesia.
Em termo geral a eugenia positiva exige uma postura direcionada ao
nascimento de pessoas que apresentam características desejáveis, enquanto a
eugenia negativa promove a eliminação dos seres dotados de alguma anomalia. Na
distinção definida pela Maria Helena Diniz, trata-se a vertente positiva, o objetivo de
aperfeiçoamento das habilidades humanas, traços de caráter ou de personalidade, e
da negativa se volta para a obtenção de cura ou a prevenção de doenças e
malformações genéticas.7

6 BOBBIO, Noberto. Dicionário de Política. Brasília: Universidade de Brasília, 2016. p. 1060-1061.


7 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 417.
12

Dentro do campo genético com o encontro da eugenia surge-se um novo termo,


a eugenesia. Diniz explica que a eugenesia positiva implicaria na intervenção
direcionada à otimização dos traços genéticos embrionários, já a negativa
corresponde à seleção embrionária, derivadas pela escolha dos pais8. Contudo, essa
capacidade de decisão dos pais configuraria o uso irracional da técnica, razão pela
qual não pode prevalecer.
É com eugenesia que se apresentaria um dos maiores avanços da terapia
gênica dentro da biomedicina. Através da reprodução assistida que se possibilita o
diagnóstico genético de um possível embrião doente, e sua intervenção para que a
futura criança se desenvolva e cresça de forma saudável. Com isso, o diagnóstico
genético e a terapia gênica possuem entre si um sólido vínculo.
Entretanto, essa técnica, por ora, ainda não é viável. A comunidade científica
ainda não tem conhecimento suficiente para realizá-lo de maneira eficaz e segura,
muito menos se sabe das suas consequências para as gerações futuras. Mas de
qualquer forma seus estudos estão evoluindo, mesmo não sendo segura, a sua prática
já é possível. Não há dúvidas que a terapia gênica, mais cedo ou mais tarde, será
uma realidade cada vez mais presente. Daí surge a importância de se discutir desde
já, os limites da sua intervenção. Porém, antes de qualquer análise, é necessário
compreender as modalidades da terapia gênica e suas implicações.

2.2 A TERAPIA GÊNICA.

Na terapia gênica, o primeiro passo se condiciona à obtenção do perfil genético


nos pais, caso os resultados demonstrarem alto risco de o bebê herdar alguma grave
doença, surge ao casal a opção de seguir com o planejamento de conceber um filho
ou não. Nos dias de hoje, há estudos visando a possibilidade de intervir diretamente
ao código genético do embrião em caso de enfermidades genéticas, nas quais um
gene está defeituoso ou ausente. A terapia gênica visa transferir a versão funcional
do gene para o embrião, e assim reparar a anomalia. Técnica que por ora apresenta
vários obstáculos pela incerteza da eficiência e da segurança do procedimento.
Conforme expõe Amelia Martín Uranga, as anomalias genéticas podem
apresentar as mais diversas fontes, podendo ser herdadas através dos genes dos

8 DINIZ, 2002, p. 418.


13

pais, no erro de formação das células sexuais ou decorrente de mutações genéticas


no decorrer do desenvolvimento embrionário9. Não há como simplesmente ignorar das
benesses que a terapia gênica pode trazer na qualidade de vida de diversas pessoas,
até porque, pelos dados da geneticista Mayana Zatz:

Os nossos genes, quando defeituosos, são responsáveis por mais de


7.000 doenças genéticas que nos afetam direta ou indiretamente. Elas
atingem 3% das crianças nascidas de pais normais e são responsáveis, nos
países do primeiro mundo (onde as doenças sociais já estão controladas),
por 50% das mortes no primeiro ano de vida. Além disso, cerca de 10% das
doenças de adultos (como diabetes, doenças psiquiátricas, vários tipos de
câncer, entre outras) tem um componente genético importante. Compreender
é o primeiro passo para poder prevenir e tratar tais doenças, o que constitui
ao mesmo tempo o maior interesse e o maior desafio do Projeto Genoma
Humano para os geneticistas que trabalham com doenças humanas. 10

Dentro da terapia gênica é preciso diferenciar duas modalidades, a primeira é


a terapia gênica somática, como o próprio nome já diz, corresponde na intervenção
das células somáticas, essas já são células diferenciadas e por isso seu conteúdo
genético não será herdado pelos descendentes. Já a segunda modalidade se trata da
terapia gênica germinativa que intervém nas células denominadas de totipotentes,
células não diferenciadas que compõe o embrião, e por isso haverá transmissão de
seu conteúdo aos descendentes.
A terapia gênica somática contém um viés aceitável do ponto de vista ético e
pela comunidade científica, desse modo há mais aceitação desta técnica em face da
terapia gênica germinativa. Com isso Amelia Martín corrobora tal afirmativa a partir do
exame da doutrina espanhola através do professor J. F. Higuera Guimerá “a terapia
gênica nas células somáticas não deve ter relevância alguma de caráter jurídico, já
que se trataria de mais um caso de terapia médica curativa”11.
Um exemplo aplicável e estudado na Europa, seria no tratamento da deficiência
da lipoproteína lipase, causador de graves crises de pancreatite. Para esse problema
pode ser utilizado um medicamento chamado Glybera, que contém um vírus
modificado que introduzirá seu gene para o interior das células do paciente, corrigindo
e garantindo a correta produção da lipase. Esse vírus modificado não consegue

9 URANGA, Amelia Martín. O Quadro Geral da Terapia Gênica na Espanha. In: ROMEO CASABONA,
Carlos María (Org.). Biotecnologia, Direito e Bioética. Belo Horizonte: Del Rey/PUC Minas, 2002. p.
86.
10 ZATZ, Mayana. Genética e Ética. Revista CEJ. Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos

Judiciários, Brasília, n. 16, p.24, mar. 2002.


11 J. F. Higuera Guimerá, 2002 apud Uranga, 2002, p. 88.
14

espalhar-se pelo organismo, e também não é capaz de desencadear problemas de


saúde no usuário12.
Aqui no Brasil, em agosto de 2020 a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância
Sanitária) autorizou pela primeira vez, o registro de uma terapia gênica somática no
país. Estudado há décadas, esse procedimento tem por objetivo de tratar a Distrofia
Hereditária da Retina (DHR), um problema raro que causa perda de visão e está
associado a mutações no gene RPE65. Assim como a Glybera, nessa terapia são
utilizados vírus modificados para não causarem doenças, que introduzem o novo
material genético produzido em laboratório, corrigindo dessa forma, o gene defeituoso.
Notícia que traz aos ares, novas esperanças para futuros tratamentos de doenças
raras causadas por distúrbios genéticos13.
Resalta-se a importância dessa técnica, uma vez que persegue o tratamento
de raras doenças para pessoas nascidas. No entanto, se trata de um tipo de
procedimento aplicada a pouco tempo em humanos, e não se sabe ao certo dos seus
efeitos e consequências. Portanto, deve-se ter em mente a ponderação dos riscos que
comporta e dos benefícios que dela advêm. Porquanto, a sua utilização estará reserva
para pessoas com quadros de difíceis tratamentos convencionais.
Já na terapia gênica germinativa propõe a intervenção nas células
indiferenciadas, o que implica a alteração de todo genoma do indivíduo de forma
definitiva. E essa alteração pode ser repassada de geração em geração, motivo o qual
essa técnica recebe críticas ferrenhas e vem sendo reprovada pela comunidade
científica. Além disso, essas críticas também se justificam em razão do
desconhecimento dos efeitos gerados para o patrimônio genético da humanidade
diante de alguma modificação definitiva em algum gene. Nesse contexto há que se
falar ao direito das gerações futuras, da não manipulação do genoma herdado, e de
resguardar a diversidade humana genética, com isso Amelia Martín explica:

O problema que encontramos aqui é o da herança, no sentido dos


direitos das gerações futuras (direito à vida e à preservação da espécie
humana, direito a conhecer suas origens e sua identidade – Art. 3º e 4º,
respectivamente, da Proposta de Declaração Universal dos Direitos
Humanos das Gerações Futuras). Tampouco deve-se entender como um

12 EUROPEAN MEDICINES AGENCY. Glybera, [s.l.], Disponível em:


<https://www.ema.europa.eu/en/documents/overview/glybera-epar-summary-public_pt.pdf>. Acesso
em: 22 set. 2020.
13 PINHEIRO, Chloé. Anvisa aprova primeira terapia gênica no Brasil. O que isso significa? Abril, [s.l.],

Agosto. 2020. Disponível em: < https://saude.abril.com.br/medicina/anvisa-aprova-primeira-terapia-


genica-no-brasil-o-que-isso-significa/>. Acesso em: 25 Ago. 2020.
15

absoluto não-intervencionismo de nossa parte, mas como a necessidade de


um amplo consenso na sociedade ante qualquer ingerência que se vá
praticar14.

Diante disso, infere-se que da intervenção realizada somente poderá se reputar


legitimada se visar a finalidade terapêutica, jamais o aperfeiçoamento genético, de
modo a preservar o patrimônio genético. No entanto, mesmo as intervenções
terapêuticas encontram barreiras, pois atualmente não se recomenda a atuação sobre
as células reprodutivas.
É na terapia gênica germinativa que o presente trabalho debruçará em discutir
quais seriam os limites e os fatores que autorizariam a intervenção terapêutica,
buscando o desenvolvimento mais saudável do embrião e da futura criança.
Entretanto, por ora, a terapia gênica na linha reprodutiva deveria ser vedada, isso para
recolherem mais informações sobre os reais riscos e efeitos que esse procedimento
traz ao patrimônio genético da humanidade, em respeito à integridade física e à
identidade genética do ser humano. Porém, mesmo com a escassez de informação,
essa técnica está sendo aplicado de forma cada vez mais corriqueira pelos cientistas,
principalmente em animais, mas também em humanos.

14 URANGA, 2002, p. 88.


16

3 PROTEÇÃO DA PESSOA HUMANA.

A nossa Constituição Federal (CF) promulgada em 1988, teve como base a


Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, trouxe em seu Título II os
Direitos e Garantias Fundamentais. Cuja finalidade principal é o respeito à dignidade,
com proteção ao poder estatal e a garantia de condições mínimas de vida e
desenvolvimento do ser humano.
Dessa forma, no que abrange ao estudo da evolução dos direitos fundamentais,
a doutrina costuma dividi-los em gerações ou dimensões, subdivididas em cinco.
Dentro disso, a evolução da engenharia genética, dentre outras, é considerada como
aquelas decorrentes aos direitos fundamentais de quarta geração. A qual tem a estrita
relação à manipulação do patrimônio genético, um processo que pode colocar em
risco a existência humana.
Com a quarta dimensão o Biodireito vem se tornando um ramo cada vez mais
autônomo dentro das Ciências Jurídicas. Cabendo a ele a importante função de impor
limites, bem como legitimar as práticas biomédicas dentro da terapia gênica, sempre
visando a proteção da pessoa humana.
Portanto, os princípios Bioéticos e Constitucionais serão os principais
norteadores que legitimarão as práticas e os limites da engenharia genética.
Harmonizar todos esses princípios é uma tarefa árdua, porém necessária, pois é dela
que derivará a promoção da justiça social sem prejuízo da liberdade do ser humano.

3.1 PRINCÍPIOS BIOÉTICOS

Em resposta aos avanços científicos, nações se juntaram para elaborar


diversos documentos internacionais em prol da proteção da pessoa humana,
ratificando a preocupação mundial dos riscos quanto a instrumentalização do ser
humano. Dentre esses documentos se encontra o Relatório de Belmont, que trouxe
em 1979 princípios como respeito às pessoas, beneficência e justiça nas pesquisas
que envolvam seres humanos. Nesse sentido, o Relatório de Belmont ressaltou da
obrigatoriedade do consentimento informado do voluntário sob a avaliação dos riscos
e benefícios da investigação.
Quase duas décadas depois foram estimuladas reflexões quanto aos impactos
originados pelo desenvolvimento científico e tecnológico no ramo da genética
17

humana, no ano de 1996 a Declaração Ibero-Latino-Americana sobre ética e genética,


juntamente com a Declaração de Manzanillo de 1998, complementaram o campo da
bioética ao trazer princípios como o respeito à dignidade, à integridade e aos direitos
humanos. O genoma humano passou a ser considerado como patrimônio da
humanidade, com isso sintetizou-se da importância da proteção da privacidade dos
dados genéticos. Além disso, ainda salientou-se sobre as diferenças sociais e
econômicas entre as populações, reforçando da necessidade de se buscar a
igualdade de acesso aos serviços independentemente da capacidade econômica
individual.
Ainda nesse período, em 1997 a UNESCO através da Declaração Universal do
Genoma Humano e dos Direitos Humanos, positivou diversas disposições visando a
promoção da autonomia e da dignidade da pessoa humana, além de condenar
discriminações por motivos genéticos. No mesmo ano, países integrantes do
Conselho da Europa promulgaram a Convenção dos Direitos do Homem e da
Biomedicina que proibiu as práticas de clonagem, as discriminações por motivos
genéticos, as manipulações genética que alterem o patrimônio genético da
descendência, a fabricação de embriões humanos para pesquisa, e a seleção de
embriões de acordo com o sexo, sob ressalva para evitar doença relacionada ao
gênero. Ainda trouxeram a obrigatoriedade do consentimento livre e esclarecimentos
para qualquer intervenção no indivíduo e da privacidade das informações sobre a
saúde da pessoa. O documento também estipula sobre a intervenção no genoma
humano, ressaltando que esse procedimento somente será autorizado sob finalidades
preventivas, seja elas terapêuticas ou de diagnóstico.
Já no ano de 2000, a Declaração de Helsinque expôs os objetivos primordiais
da pesquisa médica em seres humanos, dentre elas o aprimoramento dos
procedimentos de prevenção, diagnose e terapia, e buscar a melhor compreensão da
etiologia e patogênese das anomalias.
Mesmo que esses documentos internacionais apresentem princípios já
internalizada pela nossa constituição, ainda são uma peça-chave para a descoberta
dos limites necessários e para o desenvolvimento de normas jurídicas mais
consistente no ordenamento jurídico brasileiro. Por ora, as regulamentações
alternativas presentes em nosso País apresentam-se como ineficazes e
antidemocráticas, Maria Celeste Cordeiro Leite Santos também segue essa linha de
raciocínio.
18

Duas seriam basicamente as críticas que poderiam se levantar contra


estas alternativas. Primeiro, essas regulamentações são ineficazes, são
destituídas de qualquer cogência, podem ser facilmente contornáveis e,
portanto, não permitem se atingir o objetivo visado. [...] São destituídas de
juricidade e, pois, não abrem especo a reais recursos perante a ordem
jurídica. Um paciente pode até questionar a conduta de um médico perante o
Conselho Federal de Medicina, por exemplo, mas a queixa formalizada
produzirá, no máximo, uma sanção de ordem disciplinar. [...] Num segundo
momento, as críticas se direcionam em outro sentido: além de ineficazes, as
regulamentações seriam antidemocráticas. Ou seja, estas regulamentações
impostas determinados seguimentos profissionais não representariam o
interesse do corpo social como um todo, não corresponderiam a proposta
tiradas de um debate político.15

Dentre essas normas regulamentadoras, pode-se citar a resolução nº 2217/18


do Conselho Federal de Medicina (CFM), que veda ao médico participar de qualquer
tipo de experiência envolvendo seres humanos com fins bélicos, políticos, étnicos,
eugênicos ou outros que atentem contra a dignidade. Assim como também é vedado
ao profissional deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante
legal, ou deixar de esclarecer sobre o procedimento a ser realizado, ressalvando
casos de risco iminente de morte.
Ao mesmo tempo a resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde
também traz da obrigatoriedade do consentimento livre e esclarecido dos indivíduos,
além de oferecer proteção dos grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes. Além
do mais, a resolução 2168/17 do CFM que trata da reprodução humana assistida exige
consentimento informado tanto dos pacientes inférteis quanto dos doadores. O CFM
ainda determina que as técnicas de reprodução assistida não podem ser aplicadas
com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do
futuro filho, exceto para evitar doenças no possível descendente.
Como visto das convenções internacionais e das resoluções nacionais, a
bioética foi desenvolvida como uma resposta mais célere perante as exigências
morais da própria comunidade científica e da sociedade em geral. Assim como os
demais ramos do conhecimento científico, a ética teve de formular leis válidas
universalmente, aplicável em todo o mundo, dando origem aos princípios bioéticos
que buscam o respeito à vida, a solidariedade, a responsabilidade e o respeito à

15SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Biodireito, ciência da vida, os novos desafios. São Paulo:
Revistas dos Tribunais, 2001, p. 109-110 e 116.
19

autodeterminação da pessoa. Quanto a história do principialismo bioético, relata o


André Ruger:

O principialismo teve como marco inicial o Relatório Belmont, que


agrupou os chamados princípios bioéticos em três categorias: beneficência,
autonomia e justiça. Em sua obra Principles of Biomedical Ethics, Beuchamp
e Childrees distinguiram o princípio da beneficência do que chamaram
princípio da não-maleficência16.

Esses são os quatros princípios bioéticos que será aprofundado um pouco, eles
têm por objetivo carregar esperanças de humanização aos avanços científicos,
marcados na história pela irrupção de conflitos morais. Apresentam um enorme
avanço quanto à regulamentação da ciência, são normas universais que se moldam
diante da temporalidade, pluralidade e diversidade de concepções morais nas
sociedades. Sendo essas, de fundamental aplicação dentro da engenharia genética.

3.1.1 Princípio da Beneficência e da Não-maleficência.

O princípio da Beneficência segundo Léo Pessini, tem respaldo ao longo dos


séculos em diversas tradições: na ética cristã, na filosofia utilitarista britânica, nos
rigorismos kantianos do imperativo categórico, no conceito marxista de solidariedade
e até mesmo no anarquismo de ajuda mútua de Kroptkin.17 Frequentemente utilizado
na área de saúde, o princípio da beneficência tem por objetivo evitar danos e
maximizar os benefícios, nesse sentido as ações sempre devem visar o benefício do
paciente. Essa é a manifestação da benevolência, que favorece a qualidade de vida.
Em outras palavras, há o dever de impedir ou remover danos, e de promover
benefícios presentes ou futuros perante o paciente ou pesquisado. Trata-se, portanto,
de uma visão naturalista, é considerado como fim primário da Medicina, ponderando-
o diante aos riscos da ação ou omissão do médico ou do pesquisador.
A controvérsia na aplicação desse princípio estaria na subjetividade da
determinação do que seria fazer o bem. Mesmo tendo o dever do melhor zelo, o
médico tem que ter uma decisão muito pessoal de quais ações a serem tomadas para

16 RUGER, André. Conflitos familiares em genética humana: O profissional da saúde diante do


direito de saber e do direito de não saber. 2007. 220f. Dissertação. (Mestrado em Direito). Belo
Horizonte, p. 59.
17 PESSINI Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Fundamentos da bioética. 2a ed. São

Paulo: Paulus,2002.
20

se alcançar o melhor auxílio para o paciente. Essa carga moral em cima do profissional
debilita o princípio da beneficência, e essa decisão não pode ser tomada
individualmente para resolver alguma situação. Para solucionar esse problema, Gama
apresenta:

Diante da constatação quanto aos perigos do emprego único do


princípio da beneficência, reconheceu-se a existência de limites: atualmente,
a beneficência é limitada por quatro fatores: definição sobre o que é “bem do
paciente”; não aceitação do paternalismo contido tradicionalmente na
beneficência; aparecimento e desenvolvimento do critério de autonomia;
novas perspectivas e preocupações na área da saúde. 18

Frente aos perigos e aos limites mencionados no enunciado, o princípio da


beneficência deve orientar a norma jurídica, sendo aplicada em situações específicas.
Apesar de não haver consenso sobre o conceito do que é fazer o bem, esse princípio
tem uma grande utilidade ao ser usado como parâmetro dentro da terapia genica,
como por exemplo, do prejuízo que poderia ser causado ao indivíduo perante a
divulgação aleatória dos dados genéticos. Ou ainda, quanto à manipulação genética,
do qual tanto os genitores quanto os geneticistas devem embasar suas atitudes em
prol do interesse da criança por nascer.
A partir do princípio da beneficência que envolve ações positivas, alguns
doutrinadores criaram um novo, denominado de não-maleficência, que decorre de
ações ou omissões negativa. Aqui se trata de uma obrigação de não causar dano
intencional, sejam eles presentes ou futuros. Assim, sempre que um biomédico
assumir algum tipo de risco é necessário que seus objetivos sejam legais e
moralmente justificáveis, sempre com o intuito da preservação da vida e do
melhoramento de sua qualidade. Sobre esse princípio Brunello Stancioli aponta:

Este princípio está associado com a máxima Primum non noncere, ou


seja, sobretudo não causar dano. [...] Em geral, o dever de não-maleficência
é mais preciso que o de beneficência. Não se confundem: a não-maleficência
implica não infligir mal ou dano, enquanto a beneficência impõe o dever de
prevenir e remover males e danos, além de promover o bem do paciente. 19

A conceituação e aplicação do princípio da não-maleficência é profundamente


interligado ao princípio da beneficência, o qual um prolonga o outro. Diante disso,

18GAMA, 2003, p. 63.


19STANCIOLI, Brunello Souza. Relação jurídica médico-paciente. Belo Horizonte: Del rey, 2004, p.
101.
21

levantam-se dúvidas quanto a terapia gênica germinativa, como por exemplo, será
que seria válido manipular um embrião para retirar os genes defeituosos com o intuito
de trazer uma melhor qualidade de vida para a futura criança? Ou seja, deve
prevalecer o princípio da beneficência em razão do princípio da não maleficência?
Dúvidas em afronto ao direito a saúde com o direito ao patrimônio genético não
manipulado. Ainda não existe uma resposta concreta para essa questão, uma vez que
há insuficiência de dados que determine as consequências para o indivíduo, para as
suas futuras gerações e ao patrimônio genético.

3.1.2 Princípio da Justiça.

A ideia por trás desse princípio é a condição de equidade, com obrigação ética
de tratar cada indivíduo o que é moralmente correto e adequado. Dessa forma, o
médico deve atuar com imparcialidade e os recursos distribuídos de forma equilibrada,
alcançando toda a sociedade. Apresenta forte caráter social e humanista que busca
garantir a todos os cidadãos igualdade de condições de acesso e a fornecimento de
benefícios na saúde, independente da sua capacidade econômica.
Adequado ao princípio da isonomia, o princípio da justiça traz consigo a
imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios, com uma prestação de
saúde justa, funcional e eficiente. Entretanto, em termos práticos essa não é uma
realidade da sociedade brasileira, pois primeiramente há dificuldade de acesso, seja
em comunidades isoladas e afastadas, ou seja pela demanda de pacientes no
atendimento, ao ponto de ser necessário passar a noite, de um dia a outro, para
conseguir ser atendido por um profissional. Ainda há demanda nos procedimentos
médicos, sendo alguns de caráter fundamental para qualidade ou continuidade da
vida. Diante desses fatos que favorecem a desigualdade, levante-se a questão, quem
será merecedor do serviço à saúde na falta de recurso para todos? Não é difícil
imaginar o mesmo cenário ao se tratar da terapia gênica.
Além disso, outro exemplo da nossa realidade seria quanto a obtenção das
informações genéticas do indivíduo, como aduz Ruger “Uma concepção de justiça
pode ser útil para resolver possíveis conflitos de interesses entre o paciente e demais
afetados pela atuação médica, como no caso de informações genéticas que
22

transcendem a subjetividade do paciente”20. Não há de duvidar das benesses ao obter


o próprio mapeamento genético, com o conhecimento das propensões dos riscos
genéticos será possível trabalhar de forma preventiva para não desencadear certas
doenças. Também auxiliará com tratamentos, em que será possível determinar o
melhor remédio a ser ministrado a partir do conhecimento das falhas, necessidades e
reações orgânicas individuais. Porém, esse é outro exemplo que será fácil de prever
a desigualdade na utilização de tais recursos, já que eles estarão atrelados ao poder
econômico individual.

3.1.3 Princípio da Autonomia.

A Declaração Universal do Direito Humano da UNESCO, de 1997, aponta a


necessidade de limites na utilização do corpo humano na realização de experimentos.
Dessa forma, atrelada aos princípios da liberdade e da dignidade, a autonomia tem
como objetivo principal delimitar esses estudos de acordo com a vontade do
voluntário. O princípio da autonomia permite ao paciente de ser visto como uma parte
ativa da relação médico-paciente, complementando o princípio da beneficência, que
por sua vez, relega apenas ao médico decisões que repercutem na esfera individual
de terceiros. Para Kant a autonomia é um aspecto essencial para a configuração do
ser racional, que deriva do agir do indivíduo e sempre deve estar ligada ao imperativo
categórico da consciência moral.
Na biogenética por exemplo, esse princípio permite que o indivíduo tenha a
liberdade de escolha de se submeter ou não a testes genéticos, bem como decidir se
quer ter acesso às informações obtidas. Uma implicação desse princípio seria quanto
à proibição da intervenção no embrião, sendo que não há como obter o prévio
consentimento da pessoa por nascer. Essa proibição confronta o direito da pessoa de
se autodeterminar, de se compreender como responsável por seu próprio destino.
Nesse sentido Habermas aponta:

As intervenções eugênicas de aperfeiçoamento prejudicam a liberdade


ética na medida em que submetem a pessoa em questão a intenções fixadas
por terceiros, que ela rejeita, mas que são irreversíveis, impedindo-a de se
compreender livremente como o autor de sua própria vida. Somente no caso
de se evitar males extremos e altamente generalizados é que surgem bons

20 RUGER, 2007, p. 66.


23

motivos para se aceitar o fato de que o indivíduo afetado concordaria com o


objetivo eugênico21.

Diante o exposto contribuído por Habermas, surge a concluir pela legitimidade


da intervenção embrionária, presumindo seu consentimento para fins terapêuticos.

3.2 VALORES CONSTITUCIONAIS EM FACE DAS INTERVENÇÕES GENÉTICAS.

A Carta Magna é uma fonte que detém uma vasta quantidade de princípios
norteadores do Direito. E é na consagração ao princípio da dignidade humana se
perfaz na funcionalização de todos os institutos jurídicos, sempre visando à promoção
do desenvolvimento do ser humano. No entanto, há outros princípios da nossa
constituição que merecem destaque aqui, tais como os da autonomia, à intimidade,
da liberdade da pesquisa, da igualdade, da solidariedade, da privacidade, da liberdade
do planejamento familiar, da paternidade responsável, princípio da integridade
psicofísica e o princípio do melhor interesse da criança. Todos extremamente
relevantes na discussão sobre os limites da pesquisa e aplicação dos avanços
genéticos.
É impossível de antemão apontar todas as soluções dos possíveis conflitos
entre os princípios provocados pelos avanços científicos. Desse modo, há de se
verificar a cada caso concreto qual decisão trará a maior proteção para a dignidade
da pessoa humana. Esse princípio sempre foi um tema muito debatida, já incitou
diversas discussões religiosas, filosóficas, científicas, jurídicas e ganhou destaques
internacionais após a Segunda Guerra Mundial. Serviu como base na elaboração da
Declaração Universal dos Direitos Humanos e para a nossa Constituição Federal em
seu artigo 1°.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união


indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana22;

21 HABERMAS, Jurgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 88.
22 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 1º.
24

Há diversos conceitos referente ao princípio da dignidade da pessoa humana,


dentre elas o conceito kantiano, para ele, esse direito subjetivo diferentemente dos
objetos, não é passível de valoração patrimonial: “quando uma coisa está acima de
todo o preço e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade”23.
Segundo Abbagnano, para Kant a pessoa sempre deve ter a dignidade humana como
um fim de si mesma, que não pode ser dado em troca de algo, se refere a alguém que
por sua natureza possui um valor não relativo, mas intrínseco, e por isso não tem
equivalente24.
A visão kantiana, de que a dignidade humana deve ser valorada por cada
indivíduo, se mostra problemática quando se trata da engenharia genética, pois o mal
uso dessa área se torna apta a prejudicar toda a coletividade, colocando em risco toda
a espécie humana, uma vez que as novas possibilidades com a manipulação genética
não é uma ameaça pontual e limitada a indivíduos isolados. Diante disso, a dignidade
humana passa a ter uma dupla perspectiva: a subjetiva, relativo ao ser humano
individual; e objetiva, relativo à humanidade com um todo, titular de um patrimônio
genético.
Atualmente, no Brasil, esse princípio se mantém no topo do ordenamento,
refletindo por todo o texto constitucional. Nesse contexto, o embrião humano precisa
ter a sua dignidade respeitada, uma vez que é detentor de tutela jurídica. Esse é o
princípio de maior relevância ao tratar das limitações dos experimentos científicos,
devendo sempre haver a justificativa da pesquisa, respeitando a dignidade humana.
E assim evitar as manipulações libidinosas que beiram ao absurdo ético, e legitimar
pesquisas com finalidades terapêuticas.
É com base nessa ideia que se alcançará a qualidade física e psíquica desejada
a futura criança. Por óbvio, a terapia gênica somente será cogitada de legitimação
após o aprimoramento das técnicas de edição de gene pela ciência, para isso se deve
trazer a segurança jurídica de se ter o direito à vida comum e digna. E assim libertar
o indivíduo de doenças antes ditas incuráveis, permitindo o desenvolvimento de
tratamentos genéticos. Portanto, esse tipo de finalidade poderia ser considerado
aceitável a fim da valorização da dignidade do ser humano, porém delinear esses

23 KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Tradução de Lourival de Queiroz


Henkel. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993, p.77.
24 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 276.
25

limites de atuação com base a esse princípio detém suas dificuldades, como
destacado pela Maria Celina Bodin de Moraes:

O valor da dignidade alcança todos os setores da ordem jurídica. Eis a


principal dificuldade que se enfrenta ao buscar delinear, do ponto de vista
hermenêutico, os contornos e os limites do princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana. Uma vez que a noção é ampliada pelas
numerosíssimas conotações que enseja, corre-se o risco da generalização,
indicando-a como ratio júris (razão jurídica) de todo e qualquer direito
fundamental. Levada ao extremo, essa postura hermenêutica acaba por
atribuir ao princípio um grau de abstração tão intenso que torna impossível a
sua aplicação25.

É possível desprender da citação que a aplicação do princípio da dignidade da


pessoa humana deve ser criteriosa, evitando o esvaziamento do seu conteúdo.
Moraes alça a dignidade humana como um macro princípio e a subdivide em quatro,
as quais se passará a analisar a partir de agora.

3.2.1 Princípio da liberdade

Quando tratar-se sobre o princípio da liberdade é necessário ter em mente duas


referências, a liberdade positiva e a liberdade negativa. Esta última, em simples
explicação, cabe ao indivíduo a liberdade de auto escolha sem que haja interferência
alheia a sua vontade. Enquanto a liberdade positiva também dá ao indivíduo uma
margem de escolha, porém há presença de condições para alcançar seus objetivos.
Esse direito fundamental é consagrado em nossa Constituição Federal no inciso II do
artigo 5º.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer


natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:

[...]

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa


senão em virtude de lei26;

25 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos
morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.84.
26 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 5º.
26

Em se tratando da engenharia genética, a liberdade e a autonomia se fazem


presente na discussão da legitimação e dos limites de aplicação. Em sua tese de
doutorado, Brunello Stancioli entende que esses princípios, assim como o da
dignidade, mostram a direção correta a ser seguida pela ciência.

A intervenção no corpo pode ser feita, desde que se respeite, como


parâmetro, as outras dimensões estruturais da pessoa: sua autonomia, sua
abertura à alteridade e o auto-reconhecimento da sua dignidade. [...] Em
outras palavras, qualquer intervenção no corpo humano não lhe pode retirar,
em definitivo, a própria condição de se auto-realizar como pessoa, seja por
meio de terapia genética, seja pela medicina intra-uterina ou qualquer outro
meio. A manipulação não pode elidir a capacidade de autorreferência, em
especial quando se trata de seu nível mais elementar: o orgânico 27.

A legitimidade de tais práticas deve assegurar o respeito à autonomia, a


liberdade e à dignidade de pessoa por nascer. Contudo, as pesquisas científicas não
acarretam apenas benefícios, implicam também riscos para a pessoa humana. Nesse
sentido, há um largo campo para práticas de abusos gênicas, tanto por parte dos
cientistas quanto por parte dos usuários das biotecnologias. Com isso há de se
disciplinar os limites à liberdade de pesquisa como expõe Stela Marcos de Almeida
Neves Barbas:

Há, pois, que se disciplinar os avanços da ciência no domínio da


genética, acolhendo, claro, como bênçãos os seus resultados positivos, mas
não tolerando que se ponham em causa os grandes princípios e valores que
definem a nossa civilização28.

Desprende-se dessa citação, que a liberdade da ciência para investigação é


garantida constitucionalmente, porém, isso não significa que esta não possa ser
submetida a limites lógicos derivados da exigência de se tutelarem outros valores
constitucionais. Valores expressos na constituição que podem ser objeto de balanço,
em caso de confronto aparente das garantias.
Dentro disso, deslumbra-se o conjunto de valores na Declaração Universal do
Genoma Humano e dos Direitos Humanos de 1997, em plena harmonia com a
liberdade de pesquisa científica. Pois ressalte em seu artigo 12, b, a liberdade de

27 STANCIOLI, Brunello Souza. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade ou como


alguém se torna o que quiser. 156 f. (Tese de doutorado) – Direito, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2007. p. 139-140.
28 BARBAS, Stela Marcos de Almeida Neves. Direito ao património genético. Coimbra: Almedina,

1998. p. 206.)
27

pesquisa, “que é necessária para o progresso do conhecimento, e faz parte da


liberdade de pensamento”29, a mesma declaração adverte, em seu artigo 10, que:

“nenhuma pesquisa ou aplicação de pesquisa relativa ao genoma


humano, em especial nos campos da biologia, genética e medicina, deve
prevalecer sobre o respeito aos direitos humanos, as liberdades
fundamentais e a dignidade humana dos indivíduos ou, quando for o caso, de
grupo de pessoas”30.

Ignorar essa valoração trata-se de reduzir a pessoa humana à condição de


coisa, retirando-lhe a sua dignidade. Principalmente em uma era com sofisticadas
técnicas de engenharia genética. Expondo não só o perigo da integridade física, mas
também moral do homem.
Portanto, há que se falar da tutela do embrião diante das possibilidades da
manipulação ou implantação de embriões para fins não terapêuticos. Contudo, com a
escassez de regulamentação no Brasil surge a necessidade da edição de normas que
indiquem quais casos seriam legítimos de terapia gênica, bem como regras efetivas
de caráter obrigatório que estipulem limites à liberdade de pesquisa na utilização da
engenharia genética.
O Princípio da Liberdade sempre terá o Princípio da Paternidade Responsável
como um fator limitador. Mencionado no §7º do artigo 226 da Constituição Federal, a
Paternidade Responsável começa na concepção e se estende até quando seja
necessário e justificável o amparo dos pais para os filhos. Esse princípio adentra ao
direito de reprodução e a liberdade sexual, entretanto, se trata de uma
responsabilidade inescusável do titular. Conforme Villela, “a liberdade não exclui a
responsabilidade. Ao contrário: é esta que não tem como exercitar-se onde falta
aquela”31. Dessa forma, a Constituição prevê o livre planejamento familiar e ao mesmo
tempo impõe restrições, como a responsabilidade parental.

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[...]

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da


paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,

29 UNESCO, Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos (1997). Artigo 12, letra
b.
30Ibid. Artigo 10.
31 VILLELA, João Baptista. Liberdade e família. Revista da faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v.3, n.2, 1980, p.19.
28

competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o


exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de
instituições oficiais ou privadas32.

Vale destacar quanto às críticas trazidas pela expressão “paternidade


responsável”, segundo Guilherme Gama, esse significado induz que a
responsabilidade estaria apenas estrita ao pai, enquanto a mãe poderia ser
irresponsável. O autor sugere a substituição por “parentalidade responsável”,
representando assim o compromisso assumido por ambos os genitores 33.
Contudo, a ideia prevalecida na paternidade responsável é o exercício da
autonomia reprodutiva acarreta o dever por ambos, seja a mãe ou o pai, irrenunciável
que se perdura no tempo. Quanto a essa responsabilidade, destaca Gama:

A consciência a respeito da paternidade e da maternidade abrange não


apenas os efeitos posteriores ao nascimento do filho, para o fim de gerar a
permanência da responsabilidade parental principalmente nas fases mais
importantes de formação e desenvolvimento da personalidade da pessoa
humana: a infância e a adolescência, sem prejuízo logicamente das
consequências posteriores relativamente aos filhos na fase adulta - como, por
exemplo, os alimentos entre parentes. Tal deve ser a consideração a respeito
do sentido da parentalidade responsável, o que de certo modo se associa aos
princípios da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança
e do adolescente, dentro de uma perspectiva mais efetiva e social do que
puramente biológica.34

Diante do exposto, a decisão do casal por ter um filho, além da imensa


responsabilidade pela formação de um indivíduo atinge também o próprio projeto de
vida. Com isso essa liberdade deve sempre ser acompanhado de uma profunda
reflexão para que haja plena consciência do compromisso assumido.
Esse princípio deve ser aplicado em quaisquer meios de reprodução humana,
seja natural ou artificial, sempre com o bom uso da ciência, evitando assim a
manipulação injustificada do embrião como se a liberdade à procriação fosse absoluta.
A utilização abusiva das técnicas germinativas pode iniciar uma nova era de
discriminação genética, em que os pais passarão a desejar um bebê desenhado.
Diante disso, destaca-se da importância da paternidade responsável quanto a
responsabilidade das novas técnicas de reprodução assistida.

32 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 226, §7º.


33 GAMA, 2003, p. 452-453.
34 Ibid, p.455.
29

3.2.2 Princípio da igualdade.

Além de previsto no caput do artigo 5º, o princípio da igualdade constitui como


objetivos fundamentais da República.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do


Brasil:

[...]

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades


sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,


cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação 35.

No Compreendimento pelo constitucionalismo atual, subdivide-se o princípio


em igualdade formal e igualdade material. O primeiro tem por objetivo de tratar os
iguais de forma igual, enquanto na igualdade material tem por objetivo de tratar os
desiguais de forma desigual, conforme a sua desigualdade. Esse é um entendimento
também compreendido pelo Boaventura de Sousa Santos, “temos o direito a ser iguais
quando a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes quando a
igualdade nos descaracteriza36”. Nesse sentido, há igualdade quando se reconhece o
direito há diferença. Apesar de contraditórios, ambas devem se articular. Promovendo
assim, a integralidade da tutela do ser humano bem como a sua diversidade. Também
contribui para essa ideia Maria Celina Bodim Moraes:

Ao princípio da igualdade, deve ser integrado o princípio da


diversidade, ou seja, o respeito à especificidade de cada cultura. A identidade
da cultura de origem é um valor que deve ser reconhecido, e o respeito da
identidade e da diferença cultural encontra-se na base do próprio princípio da
igualdade, que justamente o funda e o sustenta. O paradoxo é aparente.
Cabe distinguir igualdade como estado de fato e igualdade como regra ou
princípio. A diferença é o contrário da igualdade como estado de fato (se duas
coisas são diferentes é porque não são iguais); todavia, quanto à igualdade
como princípio, seu oposto não é a diferença, mas a desigualdade 37.

Portanto, essa ideia de igualdade se encaixa perfeitamente na sociedade


contemporânea, caracterizada pela existência de vários grupos étnicos e culturais.

35 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 3º.


36 SANTOS, Boaventura de Souza. Uma Concepção multicultural de Direitos Humanos. Revista de
Cultura e Política. 1997, São Paulo, Lua Nova, n. 39, p.115.
37 MORAES, 2003, p. 124.
30

Esse princípio desperta uma importante função diante das possibilidades


discriminatórias oriundas das descobertas genéticas. Por exemplo, ao traçar o perfil
genético individual, deve-se receber a proteção para o fim de evitar a equivocada
utilização por empregadores e companhias de seguro de saúde. Sem essa proteção
desencadeia-se uma nova era discriminatória, em que o indivíduo pode carregar
genes que indiquem propensão a certa doença, que não necessariamente virá a
evoluir em virtude de fatores ambientais, comportamentais e genéticos.
Diversos documentos internacionais têm se preocupado em respeito às
diferenças inerentes ao patrimônio genético individual. A Declaração Universal sobre
o Genoma Humano e os Direitos do Homem, declara em seu artigo 6º:

Nenhum indivíduo deve ser submetido à discriminação com base em


características genéticas que vise a violar ou que tenha como efeito a
violação de direitos humanos, de liberdades fundamentais e da dignidade
humana.38

Além de tudo isso, ressalta-se o direito de identidade a cada pessoa, mantendo


suas características naturais que o diferenciam do meio em que vive. A proteção
isonômica em combate a discriminação é o que garantirá a diversidade genética do
ser humano e afastará cada vez mais a eugenia social. Vários autores entendem que
esse é um meio que promove o enriquecimento da própria humanidade. Autores como
o Roberto Andorno, “a diversidade genética não é um fardo para a humanidade, sendo
uma riqueza que se deve proteger”39, e a Stela Marcos de Almeida neves Barbas,
“cada ser humano tem o direito de ser diferente de todos os outros e é nesta diferença
que se constrói o equilíbrio social”40.

3.2.3 Princípio da integridade psicofísica.

Esse direito constitui uma defesa da personalidade contra ameaças e


agressões que se traduzam em lesões da integridade física e psíquica das pessoas.
Inclui a esse princípio aspectos da vida moderna, principalmente na saúde e ao
biodireito. Proteção de dados genéticos, reprodução assistida, atos de disposição do

38 UNESCO, Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos (1997). Artigo 6.
39 ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidade de la persona. Madrid: tecnos, 1998. p. 74-75. Tradução
livre. No original: “La diversidad genética no es um fardo para la humanidad, sino uma riqueza que debe
protegerse”.
40 BARBAS, 1998, p.18.
31

próprio corpo, entre outras situações novas que não encontram tutela satisfatória em
nosso direito, mesmo prevista no artigo 5º da nossa Constituição Federal nos incisos
III, XLVII (alíneas “c” e “e”) e XLIX.
Com à má aplicação das novidades científicas na história da humanidade,
como na segunda guerra mundial, há o constante temor de que a tutela do princípio
da integridade psicofísica seja violada com as novas aplicações genicas. Com o
objetivo de uma maior garantia da tutela da pessoa humana, foram editados vários
documentos internacionais como o Código de Nuremberg (1947), a Declaração
Universal de Direitos Humanos (1948), a Declaração de Helsinque (1964), a
Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), a Declaração de Valencia (1990),
a Declaração Universal sobre o Genoma Humano (1997) e os Direitos do Homem
(1997).
O direito à saúde é inerente a esse princípio, de modo que integra aos direitos
sociais previstos no artigo 6º da Constituição. Cabendo ao estado o dever de prover
esse direito através do artigo 196:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido


mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação 41.

Com os novos métodos de terapia advindas da engenharia genética, traz um


grande e importante passo na evolução da medicina e na saúde do cidadão. Devida
a essa técnica personalizada, será possível contornar doenças antes ditas incuráveis.
Dentro disso, Maria Helena Diniz aponta que “as novas técnicas de engenharia
genética têm capacidade para detectar mais de 3 mil patologias congênitas, entre elas
a anemia falciforme, a anencefalia, a doença de Tay-Sachs, a talassemia e a miopatia
de Duchenne”42.
Quando se falar em terapia germinativa, tais técnicas também deverão sempre
levar em consideração o Princípio do Melhor Interesse da Criança, que adveio com a
promulgação da Constituição da República em 1988. Dentro dos vários direitos
advindos com a Carta, o movimento da criança e do adolescente obteve uma grande
valoração, retirando-o da posição de objeto que antes ocupava. Com o novo

41 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 196.


42 DINIZ, 2002, p. 468.
32

entendimento trazido pelo artigo 227, o ordenamento jurídico brasileiro passou a


enxergá-los como um vulnerável merecedor de tratamento prioritário. Passando a
receber absoluta tutela em função do melhor desenvolvimento psicofísico deles.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à


criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão43.

Deste artigo identifica-se como um vínculo normativo capaz de assegurar a


integridade psicofísica da criança e do adolescente. Segundo o Luiz Edson Fachin
esse princípio é um:

“critério significativo na decisão e aplicação da lei. Isso revela um modelo que,


a partir do reconhecimento da diversidade, tutela os filhos como seres
prioritários nas relações paterno-filiais e não mais apenas a instituição familiar
em si mesma.”44

Desse modo, para uma maior tutela desses menores, dois anos após a
promulgação da Carta Magna, foi aprovado também “O Estatuto da Criança e do
Adolescente”, sedimentando ainda mais as mudanças voltadas para a proteção
infanto-juvenil. Desde então, houve uma radical mudança na forma de lidar com eles,
tornando-os os principais personagens nas decisões que estejam envolvidos,
inclusive valorizando a sua manifestação de vontade, seja no dia a dia ou no judiciário.
O estatuto apresenta vários artigos voltado à proteção fundamental da criança e do
adolesce, evitando assim, qualquer ato abusivo que comprometa sua formação
psicofísica, inclusive nas manipulações gênicas. Dessas normas destaca-se:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos


fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral
de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas
as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de
dignidade.

Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade


física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a

43BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 227.


44FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996,
p.98.
33

preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e


crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do


adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,
aterrorizante, vexatório ou constrangedor 45.

É importante destacar que o princípio do melhor interesse da criança visa


também proteger as crianças futuras, sendo este entendimento crucial na reprodução
artificial, afastando a utilização desmotivada da engenharia genética com embriões
humanos. Sobre esses futuros indivíduos o Guilherme Calmom Nogueira da Gama
aponta:

Pode-se considerar que o espectro do melhor interesse da criança não


se restringe às crianças e adolescentes presentes – na adjetivação
normalmente adotada na legislação brasileira – mas abrange também as
futuras crianças e adolescentes frutos do exercício consciente e responsável
das liberdades sexuais e reprodutiva de seus pais. Trata-se de uma
reformulação do conceito de responsabilidade jurídica – no mais amplo
sentido do termo – para abranger as gerações futuras, e, nesse contexto, é
fundamental a efetividade do princípio do melhor interesse da criança no
âmbito das atuais e próximas relações paterno-materno-filiais46.

Como observado, tal princípio constitui um fundamental limite ao exercício dos


direitos reprodutivos, ainda mais com as novas técnicas genéticas. Nessa evolução,
é de extrema importância a conciliação do princípio da integridade psicofísica dentro
dos tratamentos terapêuticos perante a engenharia genética. Para que se possa
usufruir das benesses, trazendo uma maior promoção à saúde e limitando
manipulação arbitrária dos genes, sem perder o equilíbrio entre a biotecnologia e o
princípio da dignidade humana.

3.2.4 Princípio da Solidariedade.

A solidariedade por base, decorre das obrigações recíprocas o qual se tem uns
com os outros. Dessa forma, quando o ato solidário é dotado de gentileza e menos
racional, mecanizado, maior será a liberdade de cada um. Nesse sentido, no presente

45 BRASIL. Artigo 3º, 17 e 18 da lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da
Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 13 julho 1990.
46 GAMA. Guilherme Calmom Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o

estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio


de Janeiro: Renovar, 2003, p. 462.
34

tema busca-se a dignidade social, de forma a reconhecer o princípio da dignidade


como aliada à autonomia individual. Nesta toada, o constituinte dispôs como o
primeiro objetivo da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; 47

Na reciprocidade, o indivíduo não pode agir com uma autonomia absoluta


dentro de uma sociedade multicultural, cujos interesses por vezes conflitantes, são
igualmente tutelados. No entendimento da Taísa Maria Macena de Lima, os
componentes da solidariedade devem estar integrados na sociedade, e não à sua
margem:

O relacionamento baseado na solidariedade é mais que uma questão


de moralidade social ou preceito religioso. No âmbito da normatividade
jurídica, pode-se falar do direito-dever de solidariedade social: todo ser
humano é, ao mesmo tempo, credor e devedor dessa solidariedade social 48.

É possível determinar de Lima, que a visão individualizada está fadada ao


insucesso, uma vez que é na interação com o próximo que a dignidade se faz. O
princípio da solidariedade como um conteúdo humanista, possibilita o alcance da
tutela do ser humano como um limitador das práticas genéticas. Ou seja, há de haver
a redução da autonomia de um indivíduo para se resguardar a dignidade de outro,
principalmente na manipulação embrionária que depende das condicionantes para a
melhor solução do caso concreto.
Com os avanços científicos nas técnicas de reprodução assistida, garantiu para
as pessoas antes inférteis, o exercício ao seu direito reprodutivo e no planejamento
familiar. Nesse procedimento se permite a fertilização com os gametas dos próprios
pais ou de terceiros, bem como a utilização da barriga da própria mãe ou a
denominada “barriga de aluguel”. Com esse progresso, os casais homossexuais
também passaram a ter oportunidade de conceber e criar os seus próprios filhos. No
conjunto desses fatores refletiram nos conceitos clássicos de paternidade e

47BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 3º, inciso I.


48 LIMA, Taisa Maria Macena de. O uso de amostras biológicas humanas para fins de pesquisa e
identificação: uma breve reflexão. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno
Torquato de Oliveira (Coord.). Direito Civil: atualidades II. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 162.
35

maternidade, promovendo a necessária atualização desses termos. São conceitos


que se encontram em constante renovação nas palavras de Heloisa Helena Barboza:

As contínuas transformações sofridas pela família fizeram com que


deixasse de ser uma unidade de caráter religioso, econômico e social, para
se firmar especialmente como um grupo de afetividade e companheirismo.
[...] Nem na antiguidade, nem em tempos mais próximos se pode dizer que a
relação biológica foi toda a base da relação paterno-filial. O conceito de
paternidade não é, historicamente, imutável49.

No que toca a lei federal 9.263/96, o planejamento familiar é direito de todo o


cidadão e se caracteriza pelo conjunto de ações de regulação da fecundidade que
garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher,
pelo homem ou pelo casal. Em outras palavras, planejamento familiar é dar à família
o direito de ter quantos filhos quiser, no momento que lhe for mais conveniente, com
toda a assistência necessária para garantir o seu direito integralmente.

Art. 1º O planejamento familiar é direito de todo cidadão, observado o


disposto nesta Lei.

Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o


conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais
de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou
pelo casal.

Art. 9º Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão


oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção
cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das
pessoas, garantida a liberdade de opção.50

A lei 9.263/96 foi promulgada com o intuito de trazer uma maior executividade
ao direito consagrado no §7º do artigo 226 da Carta da República:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do


Estado.

[...]

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da


paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,
competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o

49 BARBOZA, Heloisa Helena. Novas relações de filiação e paternidade. In: PEREIRA, Rodrigo da
Cunha. Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del rey, 1999, p. 139.
50 BRASIL. Artigo 1º, 2º e 9º da lei Federal nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regula o §7º do

artigo 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá
outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 12 janeiro 1996.
36

exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de


instituições oficiais ou privadas.51

Para além das possiblidades já ofertadas atualmente, o desenvolvimento da


genética busca a atender não somente pessoas estéreis. Como já trabalhado, é
possível recorrer à tal medicina reprodutiva para o fim de evitar transmissão de
doenças hereditárias através de correção de defeitos genéticos. Diante de tantas
finalidades possíveis com a manipulação do DNA, advém a necessidade de estipular
limites aos direitos reprodutivos, e assim atender aos princípios já abordados.
Evitando dessa forma, a utilização desarrazoada das técnicas assistidas. Nesse
sentido, Gustavo Tepedino defende a busca pelo melhor desenvolvimento da criança:

Parece oportuno sublinhar, contudo, que as técnicas de procriação


assistida, para serem compatíveis com a ordem constitucional, devem se
desassociar de motivações voluntaristas ou especulativas, prevalecendo
sempre, ao contrário, quer como critério interpretativo – na refrega de
interesses contrapostos – quer como premissa de política legislativa, o melhor
desenvolvimento da personalidade da criança e sua plena realização como
pessoa inserida no núcleo familiar52.

Parte-se dessa colocação como um aspecto controverso a liberdade


reprodutiva, pois a engenharia genética é cercada de incertezas e há o temor da
eugenia. Porém há de se usufruir de benefícios oriundos dessa área com a devida
regulamentação jurídica para a finalidade terapêutica, o problema reside na precisão
desse conceito. Cada indivíduo apresenta uma compreensão distinta do que seria um
problema a ser corrigido no seu filho, razão pela qual se torna necessária a definição
de limites de intervenção no embrião.
A plena autonomia individual poderia causar um grande impacto na seara
pública, além da eugenia, há o risco de um aumento populacional desenfreado. Razão
pela qual o Estado possui uma dupla função no que compete ao planejamento familiar,
ambas previstas na Lei n. 9.263/96. A primeira seria a função promocional, prevista
no artigo 9º já mencionado, que representa o emprego de recursos e técnicas
científicas que garantam o acesso e o exercício do direito reprodutivo dos cidadãos.
Já a segunda função seria o da prevenção, previsto no artigo 4º, traz a essencialidade
em educar, informar e conscientizar as pessoas dos métodos de concepção e

51
BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 226, §7º.
52TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares. In: TEPEDINO,
Gustavo. Temas de direito civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 472).
37

contracepção, possibilitando ao indivíduo de optar por ter filhos ou não: “O


planejamento familiar orienta-se por ações preventivas e educativas e pela garantia
de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a
regulação da fecundidade53”.
Percebe-se que apesar do Estado não pode influenciar na decisão reprodutiva
do casal, ele não deve se afastar por completo pelo interesse social. Nesse contexto,
os cientistas na manipulação discricionária do gene, ou o usuário da biotecnologia em
busca de um aperfeiçoamento a sua prole, não podem agir com a autonomia absoluta
sob pena da violação ao princípio da solidariedade e por consequente à dignidade
humana. Até porque, além dos preceitos já citados, estão inseridos em uma sociedade
a qual se deve respeitar o interesse dos demais, mesmo que a matéria envolva seres
ainda não concebidos.

53 BRASIL. Artigo 4º da lei Federal nº 9.263/96.


38

4 OS LIMITES DA TERAPIA EUGENICA PERANTE O EMBRIÃO.

É essencial que o ordenamento jurídico estabeleça em que momento uma


pessoa passa a ser revestido pelos direitos irrenunciáveis e intransmissíveis da
personalidade. Porém, estabelecer esse critério acarreta diversas controvérsias e que
levanta outras questões polêmicas, como determinar em que momento se daria o
início da vida, se haveria o direito à mulher de abortar ou não, ou até mesmo quanto
a legalidade das pílulas do dia seguinte. A Constituição Federal mesmo garantindo a
inviolabilidade da vida humana, não determinou em que momento ela se inicia.
Tendo em vista que esse se trata de um tema ainda não pacificado atualmente,
existem diversas correntes na tentativa de se traçar um momento temporal, definindo
em que momento um indivíduo passará a exercer seus direitos fundamentais como
pessoa. Dentre essas teorias se encontram a teoria ecológica, neurológica, do
cristianismo, metabólica, dentre outras. Entretanto, aqui serão abordados as três mais
suscitadas e discutidas, que são as teorias: natalista, personalidade condicionada e a
concepcionista.
A primeira se baseia na interpretação literal do artigo 2º do Código Civil, “a
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo,
desde a concepção, os direitos do nascituro”. De acordo com Pereira:

O nascituro não é ainda pessoa, não é um ser dotado de personalidade


jurídica. Os direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado
potencial. Se nasce e adquire personalidade, integram-se na sua trilogia
essencial, sujeito, objeto e relação jurídica; mas, se se frustra, o direito não
chega a constituir-se, e não há falar, portanto, em reconhecimento de
personalidade ao nascituro, nem se admitir que antes do nascimento já ele é
sujeito de direito.54

Nessa linha de pensamento, não confere a personalidade jurídica ao nascituro


e sim, somente com o nascimento com vida. Desse modo, o nascituro aqui não recebe
o status de pessoa perante o ordenamento jurídico, com isso não há de se falar em
direitos fundamentais na fase embrionária. Sem personalidade jurídica, o embrião não

54PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família. Vol. V. 16ª edição.
Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 153 apud SILVA, Filipe Aquino da; JUNIOR; Josceli Rodrigues da
Fonseca. O nascituro e a sua personalidade jurídica. Âmbito Jurídico, [s.l.], Jan. 2017. Disponível em:
<https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/o-nascituro-e-sua-personalidade-juridica/>. Acesso
em: 17. Nov. 2020.
39

possuí direitos, motivo a qual estaria desprovido de tutela inerente à sua


personalidade diante das intervenções genéticas.
Já a personalidade condicionada defende a personalidade jurídica do nascituro
com a condição do nascimento com vida, ou seja, sem o nascimento com vida não
haverá aquisição da personalidade. Essa teoria tem sua eficácia subordinada a um
evento futuro e incerto, Pussi aponta que:

A teoria da personalidade condicional é a que mais se aproxima da


verdade, mas traz o inconveniente de levar a crer que a personalidade só
existirá depois de cumprida a condição do nascimento, o que não
representaria a verdade visto que a personalidade já existiria no momento da
concepção.55

Contudo, se houver o fato condicional que é o nascimento com vida, os direitos


retroagirão desde à data da concepção, adere a essa corrente doutrinária o Arnold
Wald:

O nascituro não é um sujeito de direito, embora mereça a proteção


legal, tanto no plano civil como no plano criminal. A proteção do nascituro
explica-se, pois nele há uma personalidade condicional que surge, na sua
plenitude, com o nascimento com vida e se extingue no caso de não chegar
o feto a viver.56

A terceira e a última teoria é a concepcionista, a qual defende a garantia dos


direitos inerentes à personalidade do nascituro como status de pessoa humana desde
a concepção, ou seja, da união dos gametas. Nesse sentido, aponta Pamplona Filho
e Araújo:

A doutrina concepcionista tem como base o fato de que, ao se proteger


legalmente os direitos do nascituro, o ordenamento já o considera pessoa, na
medida em que, segundo a sistematização do direito privado, somente
pessoas são consideradas sujeitos de direito, e, consequentemente,
possuem personalidade jurídica. Dessa forma, não há que se falar em
expectativa de direitos para o nascituro, pois estes não estão condicionados
ao nascimento com vida, existem independentemente dele.57

55 PUSSI, William Artur. Personalidade jurídica do nascituro. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2008, p. 87.
apud SILVA, Filipe Aquino da; JUNIOR; Josceli Rodrigues da Fonseca, 2017, s.p.
56 WALD, Arnold. Curso de direito civil brasileiro: Direito Civil, Introdução e Parte Geral. 9. ed. São

Paulo: Saraiva, 2002, p. 118.


57 PAMPLONA FILHO, Rodolfo; ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles. A tutela jurídica do nascituro à luz

da Constituição Federal. [s.l.], Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, v. 18, p. 48,
maio/jun 2007 apud SILVA, Filipe Aquino da; JUNIOR; Josceli Rodrigues da Fonseca, 2017, s.p.
40

Diante dessa linha, não há que se falar em titularidade dos direitos do nascituro,
pois ela é inegável. Cabe somente analisar seus efeitos, principalmente no que tange
ao patrimônio que depende do nascimento com vida. Argumenta nesse sentido a
Silmara Chinelato e Almeida, “a personalidade do nascituro não é condicional; apenas
certos efeitos de certos direitos dependem do nascimento com vida, notadamente os
direitos patrimoniais materiais, como a doação e a herança”58.
Por mera curiosidade, caso a corrente concepcionista fosse adotada de forma
plena pelo nosso ordenamento jurídico, a mulher que fizesse o uso de alguns
contraceptivos, como o DIU e a pílula do dia seguinte, poderia incidir no crime de
aborto previsto no artigo 124 do Código Penal. Pois estaria violando ao direito à vida
contra o embrião, que estaria protegido desde a sua concepção.
No íntimo da nossa legislação, é possível perceber algumas normas que
relativizam a corrente natalista do nosso sistema jurídico. Pois além do aborto em que
o STF considera crime já a partir do terceiro mês de gestação, há aqueles de caráter
patrimonial, como trazida pelo artigo 542 do Código Civil, “a adoção feita ao nascituro
valerá, sendo aceita pelo seu representante legal”. Poderá também receber legado ou
herança nos termos do artigo 650 do Código de Processo Civil, “se um dos
interessados for nascituro, o quinhão que lhe caberá será reservado em poder do
inventariante até o seu nascimento”.
Além desses, outro exemplo que é cada vez mais comum chegar às portas dos
Tribunais são os alimentos gravídicos trazida pela lei 11.804/08, derivadas para
garantia da sobrevivência do nascituro durante a sua vida intrauterina. Vale destacar
que não são todas situações jurídicas referente ao nascituro que ensejará o dever de
reparação, e sim aquelas lesivas à sua saúde ou à sua moral, com a devida análise
do Poder Judiciário.
Dentre os principais fundamentos da teoria concepcionista, está a de que desde
a concepção há um ser humano dotado de patrimônio genético completo e autônomo
daquele que dispõe dos seus genitores. Partir de então, há uma série de eventos
biológicos naturais que dão progresso ao desenvolvimento do embrião, que culmina
em seu nascimento. Nesse sentido, não haveria como determinar em que momento o
embrião passaria a ter status de pessoa humana. Desse modo, o embrião deixaria de

58 ALMEIDA, Silamra J. A. Chinelato e. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 81.
41

ser um produto, um bem, uma coisa e passaria a ser uma pessoa. Neste ponto afirma
Barbas:

Desde a Concepção até a velhice, é sempre o mesmo ser vivo que se


desenvolve, amadurece e morre. As suas particularidades tornam-o único e
insubstituível. [...] O nascimento é somente o início de uma nova fase. Outras
se seguirão a esta como a puberdade, a idade adulta, a velhice. [...] Assim
como ninguém põe em causa que o recém-nascido, o bebe de três meses, a
criança de cinco anos, a mulher de trinta ou o idoso de oitenta anos é uma
pessoa, também o zigoto, o embrião e o feto constituem etapas do
desenvolvimento de um ser humano que deve ser desde logo respeitado. 59

No Brasil, mesmo com o Código Civil dotado da teoria natalista em seu artigo
2º, não há como negar que o ordenamento jurídico considera o nascituro como uma
pessoa na medida em que tutela seus direitos. Nesta toada, argumenta Maria Helena
Diniz:

Uma vez tendo o Código Civil atribuído direitos aos nascituros, estes
são, inegavelmente, considerados seres humanos, e possuem personalidade
civil. Ademais, entende que seus direitos à vida, à dignidade, à integridade
física, à saúde, ao nascimento, entre outros, são muito mais decorrência dos
direitos humanos guarnecidos pela Constituição Federal do que da
determinação do Código Civil.60

Não há um posicionamento concreto no direito brasileiro a respeito do


nascituro, mesmo afirmando que a personalidade tem início a partir do nascimento
com vida, também resguarda vários direitos desde a concepção. Ou seja, o nascituro
possui direitos de personalidade elencados pela teoria concepcionista. Nesse cenário,
diversos casos já foram julgados no âmbito jurídico brasileiro em relação à
personalidade do nascituro, dos quais serão apresentados três.
Primeiro caso se trata de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça no ano
de 2002, em que reconheceu ao nascituro o direito aos danos morais pela morte do
pai:

DIREITO CIVIL. DANOS MORAIS. MORTE. ATROPELAMENTO.


COMPOSIÇÃO FÉRREA. AÇÃO AJUIZADA 23 ANOS APÓS O EVENTO.
PRESCRIÇÃO INEXISTENTE. INFLUÊNCIA NA QUANTIFICAÇÃO DO
QUANTUM. PRECEDENTES DA TURMA. NASCITURO. DIREITO AOS
DANOS MORAIS. DOUTRINA. ATENUAÇÃO. FIXAÇÃO NESTA
INSTÂNCIA. POSSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I -

59BARBAS, 1998, p. 75.


60DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 36-37 apud SILVA, Filipe
Aquino da; JUNIOR; Josceli Rodrigues da Fonseca, 2017, s.p.
42

Nos termos da orientação da Turma, o direito à indenização por dano moral


não desaparece com o decurso de tempo (desde que não transcorrido o lapso
prescricional), mas é fato a ser considerado na fixação do quantum. II - O
nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas
a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação
do quantum. III - Recomenda-se que o valor do dano moral seja fixado desde
logo, inclusive nesta instância, buscando dar solução definitiva ao caso e
evitando inconvenientes e retardamento da solução jurisdicional. 61

Outro caso é de 2015, em que a justiça reconheceu a presença de danos


morais ao nascituro, isso devido a uma piada grosseira feita em rede nacional pelo
humorista Rafinha Bastos no programa “CQC”, proferindo a seguinte frase: “Eu
comeria ela e o bebê, não tô nem aí! Tô nem aí!”. Ao recorrer para o Tribunal de
Justiça de São Paulo foi alegado em preliminar a ilegitimidade ativa do nascituro, o
pedido foi recusado e a decisão foi também mantida pelo STJ. Ele foi condenado a
pagar indenização na quantia de 10 salários mínimos a cada um dos autores da ação,
sendo eles: Wanessa Camargo, seu marido Marcus Buaiz e o filho do casal que estava
por nascer, representado pelos seus pais:

RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS


MORAIS - COMENTÁRIO REALIZADO POR APRESENTADOR DE
PROGRAMA TELEVISIVO, EM RAZÃO DE ENTREVISTA CONCEDIDA
POR CANTORA EM MOMENTO ANTECEDENTE - INSTÂNCIAS
ORDINÁRIAS QUE AFIRMARAM A OCORRÊNCIA DE ATO ILÍCITO ANTE
A AGRESSIVIDADE DAS PALAVRAS UTILIZADAS E, COM FUNDAMENTO
NO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DETERMINARAM
A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DO RÉU PELOS DANOS MORAIS
SUPORTADOS PELOS AUTORES, APLICANDO VERBA INDENIZATÓRIA
NO MONTANTE DE R$ 150.000,00 (CENTO E CINQUENTA MIL REAIS).62

Último caso se refere ao pagamento de indenização do seguro obrigatório por


acidente de trânsito pela morte do nascituro, com base ao princípio da dignidade da
pessoa humana, a decisão do STJ em 2011 considerou o feto como pessoa humana
no seguinte processo julgado:

61 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Recurso Especial nº 399.028/SP. Recorrente:
Antônio Nival Leonidas e outros. Recorrido: Companhia Brasileira de Trens Urbanos. Relator: Ministro
Sálvio de Figueiredo Teixeira. 2002. Disponível em:
<https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/IMG?seq=18388&nreg=200101473190&dt=20020
415&formato=PDF>. Acesso em: 17. Nov. 2020 apud SILVA, Filipe Aquino da; JUNIOR; Josceli
Rodrigues da Fonseca, 2017, s.p.
62 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Recurso Especial nº 1.487.089/SP. Recorrente:

Rafael Bastos Hocsman. Recorrido: Marcos Buaiz e Wanessa Godoi Camargo Buaiz. Relator: Ministro
Marco Buzzi. 2015. Disponível em:
<https://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/REsp%201487089.pdf>. Acesso em:
17. Nov. 2020.
43

RECURSO ESPECIAL. DIREITO SECURITÁRIO. SEGURO DPVAT.


ATROPELAMENTODE MULHER GRÁVIDA. MORTE DO FETO. DIREITO À
INDENIZAÇÃO.INTERPRETAÇÃO DA LEI Nº 6194/74. 1 - Atropelamento de
mulher grávida, quando trafegava de bicicletapor via pública, acarretando a
morte do feto quatro dias depois comtrinta e cinco semanas de gestação. 2 -
Reconhecimento do direito dos pais de receberem a indenizaçãopor danos
pessoais, prevista na legislação regulamentadora do seguroDPVAT, em face
da morte do feto. 3 - Proteção conferida pelo sistema jurídico à vida intra-
uterina,desde a concepção, com fundamento no princípio da dignidade
dapessoa humana. 4 - Interpretação sistemático-teleológica do conceito de
danospessoais previsto na Lei nº 6.194/74 (arts. 3º e 4º).5 - Recurso especial
provido, vencido o relator, julgando-seprocedente o pedido.63

Diante desses aspectos referentes à personalidade jurídica do nascituro,


destaca-se sua importância perante a terapia gênica. Podendo o embrião receber do
ordenamento jurídico, a tutela plena (teoria concepcionista), ou o tratamento de mera
expectativa de direito (teoria natalista). Dessa forma, a depender da teoria que irá se
aplicar em algum caso concreto, irá atender a tutela desejável do embrião ou o
reduzirá a mero objeto, dando margem para abusos na engenharia genética. Daí
surge a necessidade de uma análise responsável da teoria a se adotar pelo nosso
ordenamento.
Diante dos julgados expostos, fica evidente a visão dicotômica no Poder
Judiciário, em que a teoria natalista não predomina de forma absoluta, fato
considerado positivo ao se tratar da engenharia genética embrionária. Como visto, as
decisões jurisprudenciais, bem como o sistema normativo impõe diversas garantias
aos direitos dos nascituros, sendo esse um importante passo para se evitar práticas
genéticas abusivas. É atendendo o interesse do embrião e da pessoa por vir que se
deve determinar os limites para a regulamentação das técnicas da terapia gênica
germinativa, procedimento o qual poderá trazer os primeiros bebês transgênicos
brasileiros.

4.1 ADI 3510-0/DF DE 2008.

Não há de se duvidar que para muitos o embrião deve ser dotado de dignidade,
em respeito a pessoa por vir, titular de um patrimônio genético único, inédito e

63BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial nº 1.120.676/SC.


Recorrente: Nivaldo da Silva e outro. Recorrido: Liberty Paulista Seguros S/A. Relator: Ministro
Massami Uyeda. 2011. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/feto-morto-acidente-transito-
nao.pdf >. Acesso em: 17. Nov. 2020 apud SILVA, Filipe Aquino da; JUNIOR; Josceli Rodrigues da
Fonseca, 2017, s.p.
44

irrepetível merecedora da tutela jurídica. Para a ministra Cármen Lúcia, não resta
dúvida do embrião como um ser humano, “se a proteção constitucional do direito à
vida refere-se ao ser humano, ao humanum genus, nem se há duvidar que o embrião
está incluído na sua proteção jurídica. O embrião é ser e é humano”64.
Com a promulgação da Lei 11.105 em 2005, devido ao seu artigo 5º, trouxe
para o Supremo Tribunal Federal a discussão sobre o tema. Debatendo assim, se o
embrião seria um sujeito de direito e se aplicaria ou não, os direitos da personalidade
para embriões excedentários das fertilizações in vitro:

Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-


tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por
fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as
seguintes condições:65

Após a promulgação da lei, não demorou muito para que uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI 3510-0/DF) fosse proposta pelo então Procurador Geral da
República da época, Cláudio Lemos Fonteles. Segundo ex-Procurador, o referido
artigo 5º seria uma afronta ao direito inviolabilidade da vida, previsto no caput do artigo
5º da Constituição Federal. Com isso, destaca-se da importância desse julgamento
para o presente trabalho, sem adentrar no mérito da decisão, será destacado
relevantes pontos do entendimento da corte no que se refere nas teorias do nascituro
e nos direitos da personalidade.
Aos ares da teoria natalista, o relator da ação, Ministro Carlos Ayres Britto,
alegou que a tutela constitucional do direito à vida não abrange o embrião fertilizado
in vitro, isso pela Constituição ser silente sobre o início da vida humana:

Numa primeira síntese, então, é de se concluir que a Constituição


Federal não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado
bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque
nativiva e, nessa condição, dotada de compostura física ou natural. É como
dizer: a inviolabilidade de que trata o artigo 5° é exclusivamente reportante a
um já personalizado indivíduo (o inviolável é, para o Direito, o que o sagrado
é para a religião). E como se trata de uma Constituição que sobre o início da

64 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Coord.). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p.47.
65 BRASIL. Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º do art.
225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de
atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o
Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei nº
8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória nº 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts.
5º , 6º , 7º , 8º , 9º , 10 e 16 da Lei nº 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências.
Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 24 março 2005.
45

vida humana é de um silêncio de morte (permito-me o trocadilho) , a questão


não reside exatamente em se determinar o início da vida do homo sapiens,
mas em saber que aspectos ou momentos dessa vida estão validamente
protegidos pelo Direito infraconstitucional e em que medida. 66

Britto também se manifestou quanto a disposição do artigo 2º do Código Civil,


em sua interpretação, o ministro entendeu que o embrião se configura como
expectativa de pessoa, mas não pessoa de fato, ou seja, possui expectativas de
direitos, mas não direitos propriamente ditos. Nesse sentido, a inviolabilidade do
direito à vida restaria garantida a partir do nascimento com vida, sendo que somente
neste momento se falaria em pessoa capaz de contrair direitos e deveres no
ordenamento jurídico. Portanto, segundo Britto, o embrião não deve ser detentor da
mesma tutela jurídica que goza uma pessoa adulta, o que não significaria o
impedimento do ordenamento jurídico de prover proteção ao embrião:

Isso não impede que nosso ordenamento jurídico e moral possa


reconhecer alguns estágios da Biologia humana como passíveis de maior
proteção do que outros. É o caso, por exemplo, de um cadáver humano,
protegido por nosso ordenamento. No entanto, não há como comparar as
proteções jurídicas e éticas oferecidas a uma pessoa adulta com as de um
cadáver. Portanto, considerar o marco da fecundação como suficiente para o
reconhecimento do embrião como detentor de todas as proteções jurídicas e
éticas disponíveis a alguém, após o nascimento, implica assumir que:
primeiro, a fecundação expressaria não apenas um marco simbólico na
reprodução humana, mas a resumiria a euristicamente ; uma tese de cunho
essencialmente metafísico.67

No que se trata sobre o embrião excedentário fertilizado in vitro, o relator


entende de não existir nem mera potencialidade de se tornar uma pessoa, uma vez
que não possui cérebro. Esse entendimento pelo Britto foi tomado a partir do artigo 3º
da Lei 9.434/97, que permite a retirada dos órgãos ou tecidos do corpo humano após
a confirmação da morte cerebral. Com esse entendimento, o embrião in vitro se
encontra desacompanhado de personalidade e da tutela jurídica que levaram a
autorizar a utilizar células-tronco embrionárias para fins de pesquisas científicas.

O embrião ali referido não é jamais uma vida a caminho de outra vida
virginalmente nova. Faltam-lhe todas as possibilidades de ganhar as
primeiras terminações nervosas que são o anúncio biológico de um cérebro
humano em gestação. Numa palavra, não há cérebro. Nem concluído nem

66 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Tribunal pleno. ADI nº 3510-0. Requerente: Procurador-Geral
da República. Requerido: Presidente da República e o Congresso Nacional. Relator: Min. Ayres Britto.
2008. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em: 12. Nov. 2020.
67 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 3510-0/DF.
46

em formação. Pessoa humana, por conseqüência, não existe nem mesmo


como potencialidade. Pelo que não se pode sequer cogitar da distinção
aristotélica entre ato e potência, porque, se o embrião in vitro é algo valioso
por si mesmo, se permanecer assim inescapavelmente confinado é algo que
jamais será alguém. Não tem como atrair para sua causa a essencial
configuração jurídica da maternidade nem se dotar do substrato neural que,
no fundo, é a razão de ser da atribuição de uma personalidade jurídica ao
nativivo.68

Mesmo na esteira do entendimento de que o embrião constitui uma vida


humana, esse fato não é suficiente para configuração da tutela jurídica integral como
a de uma pessoa adulta. Porém, há de se haver proteção, principalmente ao embrião
in vitro antes da sua implantação, e evitar práticas gênicas voluntarista e abusiva
violadores da dignidade da pessoa que está por nascer, devendo ser autorizada e
justificada qualquer intervenção pretendida, sempre atendendo o interesse do
embrião. Nesse ponto a Jussara Maria Leal de Meirelles aborda:

É preciso lembrar que os embriões de laboratório podem representar


as gerações futuras, e, sob a ótica oposta, os seres humanos já nascidos
foram também embriões, na sua etapa inicial de desenvolvimento (e muitos
deles foram embriões de laboratório). Logo, considerados os embriões
humanos concebidos e mantidos in vitro como pertencentes à mesma
natureza das pessoas humanas nascidas, pela via da similitude, a eles são
perfeitamente aplicáveis o princípio fundamental relativo à dignidade humana
e à proteção do direito à vida. Inadmissível dissociá-los desses que são os
fundamentos basilares de amparo aos indivíduos nascidos, seus
semelhantes.69

A discussão sobre em que momento o indivíduo adquire os direitos da


personalidade é um dos temas mais complexos do direito contemporâneo, envolvendo
questões éticas, religiosas, filosóficas, morais e políticas. Contudo, desde dessa
decisão do STF em 2008, em que não reconheceu como sujeito de direito os embriões
excedentários das fertilizações in vitro, até os dias de hoje, há de se reconhecer a
relativização da teoria natalista dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Assim como
demonstrado pelos julgados no tópico anterior, o Poder Judiciário vem concedendo
direitos de caráter personalíssimo aos nascituros em alguns casos.
É nítido a divergência doutrinária e jurisprudencial no que se refere ao lapso
temporal para aquisição dos direitos inerentes à sua personalidade, cabendo ao juízo
analisar sua aplicabilidade a cada caso concreto. Diante disso, entende-se que ao

68BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 3510-0/DF.


69MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A vida humana embrionária e sua proteção jurídica. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000, p.451.
47

abordar e analisar sobre a legalidade das técnicas de manipulação dentro da terapia


gênica germinativa, deve-se levar em conta o interesse do embrião e os princípios
nesse trabalho abordados, inclusive as de caráter personalíssimo.

4.2 APLICAÇÕES ATUAIS DA TERAPIA GÊNICA GERMINATIVA.

Outra preocupação na manipulação germinativa nos dias hoje, são as


consequências dos efeitos gerados por esse procedimento. Atualmente ao tentar
manipular o código genético do futuro bebê, qualquer mudança ou mutação em algum
gene afetará todas as partes do corpo, podendo comprometer gravemente a sua
saúde. Contudo, esse procedimento é uma realidade extremamente próxima que já
ganham destaque em algumas reportagens.
Um exemplo seria sobre um estudo liderado por Shoukhrat Mitalipov, voltado a
edição genética para prevenção de doenças hereditárias. Esse pesquisador no ano
de 2007 criou o primeiro clone de macacos do mundo, e em 2013 clonou embriões
humanos como uma forma de criar células-tronco específicas para cada paciente70.
Mitalipov e sua equipe conseguiram pela primeira vez no ano de 2017, reparar
mutação de um gene nas primeiras fases do desenvolvimento de embriões humanos.
Mesmo a técnica ainda precisando ser aprimorado, este estudo se mostrou seguro
em relação aos efeitos sobre outras partes do DNA e ao mosaicismo, quando o
embrião é composto por células com dois ou mais genomas diferentes71.
Também virou manchete um debate feito por geneticistas russos, que ganhou
maiores proporções após o cientista Denis Rebrikov propor a criação de bebês
geneticamente modificados utilizando a técnica CRISPR-Cas9. A intenção de
Rebrikov por meio da edição de genes, é impedir que futuro filho de um casal surdo
ganhe a condição auditiva. Além de trabalhar com o casal surdo, ele também
demonstrou interesse em mexer no gene CCR5, criando bebês imunes ao vírus HIV,
causador da Aids.72

70 MATSUURA, Sérgio. Primeira edição genética de embriões humanos nos EUA causa polêmica. O
Globo. Julho.2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/primeira-edicao-
genetica-de-embrioes-humanos-nos-eua-causa-polemica-21637400>. Acesso em: 23 Set.2020.
71 MATSUURA, Sérgio; Baima, Cesar. Pela primeira vez, edição genética em embriões previne doença

hereditária. O Globo. Ago.2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/pela-


primeira-vez-edicao-genetica-em-embrioes-previne-doenca-hereditaria-21659646>. Acesso em: 23
Set.2020.
72 KATCHBORIAN, Pedro. Rússia está debatendo bebês por edição genética, mas por que isso

importa?. UOL. Out.2019. Disponível em:


48

Quando se fala da prevenção através da terapia gênica, outra notícia com a


utilização promissora dessa técnica é voltada para pessoas que possuem a síndrome
de Down. Em geral, os seres humanos nascem com 23 pares de cromossomos,
incluindo os dois cromossomos que definem o sexo (XX ou XY), num total de 46 em
cada célula. As pessoas com síndrome de Down têm três, em vez de duas, cópias do
cromossomo 21. Este terceiro cromossomo provoca sintomas como dificuldade de
aprendizado, o surgimento precoce de doenças como o mal de Alzheimer e um risco
maior para problemas circulatórios e cardíacos. E foi justamente esse cromossomo
"extra" que em 2013 os cientistas da Escola de Medicina da Universidade de
Massachusetts conseguiram "desligar" em laboratório através da terapia genética. A
experiência mostrou que o gene é capaz também de silenciar a cópia extra do
cromossomo 21, ajudando a corrigir os padrões irregulares de crescimento das células
dos portadores da síndrome, demonstrando que tal perspectiva é possível ainda que
leve mais algumas décadas de estudos.73
Essas notícias trazem ares esperançosos quando se trata da prevenção de
deficiências e das doenças. Afinal fala-se em uma vida digna, com uma maior
eficiência na efetivação aos direitos à saúde, igualdade, e na integridade psicofísica
do indivíduo, que exaltam um melhor interesse da futura criança. Porém, ao adotar
esse procedimento sem um mínimo de cautela, ou ignorar os riscos dos efeitos
colaterais trará reais probabilidades de se obter resultados totalmente contrárias ao
esperado, ferindo diretamente à dignidade humana.
Diante disso, os estudos que buscam por um método mais eficaz e segura na
edição do genoma ganham cada vez mais reconhecimento na comunidade científica,
com isso demonstrando uma maior confiança na aplicabilidade da terapia germinativa
dentro da medicina. Como é o exemplo do reconhecimento pelo desenvolvimento do
método de edição do genoma, a francesa Emmanuelle Charpentier e a norte-
americana Jennifer A. Doudna receberam em 2020 o prêmio Nobel de Química por
descobrirem ferramentas “mais afiadas” de tecnologia do gene: as tesouras genéticas
CRISPR/Cas9. Segundo a fundação Nobel, “Essa tecnologia, que tem tido um impacto

<https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2019/10/23/super-humanos-por-que-a-russia-quer-tomar-
dianteira-na-edicao-de-genes.htm>. Acesso em: 23 Set. 2020.
73 O GLOBO. Cromossomo responsável pela síndrome de Down é “desligado” em laboratório.

Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/cromossomo-responsavel-pela-sindrome-


de-down-desligado-em-laboratorio-9072321>. Acesso em: 23 de abril de 2021.
49

revolucionário nas ciências da vida, está contribuindo para novas terapias de câncer
e pode tornar realidade o sonho de curar doenças hereditárias”74.
Contudo, o uso irracional dessa técnica sempre será o maior risco dessa nova
biotecnologia. Dentro disso, esta última década já foi marcada por uma das notícias
mais polêmicas da dentro da ciência, um resultado demarcado por abuso e
irresponsabilidade que trouxe ferrenhas críticas ao cientista chinês He Jiankui após
anunciar os primeiros bebês geneticamente modificados da história. Em novembro de
2018, o geneticista afirmou que utilizou a técnica CRISPR/Cas9, conhecida como as
“tesouras do genoma”, que permite remover e substituir partes indesejáveis do
genoma. Segundo o cientista, as gêmeas nasceram após uma fertilização in vitro, a
partir de embriões modificados antes de serem implantados no útero da mãe 75.
Após essa polêmica, em dezembro de 2019 a justiça chinesa condenou o
cientista a três anos de prisão e multa de três milhões de yuanes (1,73 Milhão de
reais). As duas gêmeas, chamadas Lulu e Nana (pseudônimos), permanecem
anônimas e seu paradeiro é desconhecido. Além disso, as autoridades chinesas
anunciaram em janeiro de 2019 que outra mulher estava grávida de uma criança com
o DNA modificado, mas o nascimento deste bebê não foi confirmado 76.
Portanto, percebe-se as duas faces da terapia germinativa, as benesses de
uma pessoa poder viver dignamente, bem como os males do uso irracional da técnica.
Infelizmente, casos como das gêmeas tendem a ser cada vez mais comuns, é possível
desde já temer mercados clandestinos para edição genética, as pessoas vão querer
uma criança perfeita e saudável, e estarão dispostas a pagar. Também há grandes
discussões, como os receios de se surgir uma nova espécie do ser humano, não há
dúvidas que a comunidade científica buscará estudos para se ter o menor impacto
possível desse procedimento. Além disso, o sistema jurídico brasileiro deverá buscar
uma atualização mais efetiva da sua legislação, demonstrando fatores que

74 OTOBONI, Jéssica. Nobel de Química 2020 vai para dupla de cientistas por pesquisa sobre genoma.
CNN Brasil. São Paulo. Out.2020. Disponível em:
<https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/2020/10/07/nobel-de-quimica-2020-vai-para-dupla-de-
cientistas-por-pesquisa-sobre-genoma>. Acesso em: 13.Out.2020.
75 Cientista chinês que anunciou bebês geneticamente modificados suspende testes. Globo. Disponível

em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2018/11/28/cientista-chines-que-anunciou-bebes-
geneticamente-modificados-suspende-testes.ghtml>. Acesso em: 23.Set.2020.
76 Cientista chinês que criou bebês geneticamente modificados é condenado a três anos de prisão.

Globo. Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/12/30/cientista-chines-que-


criou-bebes-geneticamente-modificados-condenado-a-tres-anos-de-prisao.ghtml>. Acesso em:
23.Set.2020.
50

autorizariam a intervenção terapêutica bem como os seus limites, com uma


punibilidade mais severa por eventuais abusos.
51

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos casos apresentados, é nítido os avanços dos atuais estudos quando
se fala da manipulação do DNA. Não há de se duvidar da sua futura aplicação de
forma preventiva e terapêutica contra as graves doenças, seja ela hereditária ou
transmissível, se utilizando dessa técnica com ênfase a prevenção da surdez, das
consequências da síndrome de Down, ou ainda, que a futura criança crie anticorpos
para a prevenção de alguns vírus, como o da HIV.
Diante dos possíveis abusos demonstrados e riscos provenientes da
manipulação gênica, ao cogitar sua aplicação no território brasileiro, apontou-se a
necessidade da intervenção do sistema jurídico de forma a limitar e legitimar tais
práticas. O trabalho aqui desenvolvido não tem por objetivo em finalizar, mas sim em
destacar a importância desse debate. O intuito é de instigar e inflamar essa discussão
de forma a promover seu amadurecimento crítico, sempre em busca de uma justa
regulamentação, coerente, clara e eficaz, a fim de trazer a aceitação social e científica
para a nova terapia gênica.
Antes de tudo, ressalta-se que qualquer prática da engenharia genética,
cogitar-se-á legitima somente após a conclusão dos estudos, após seus devidos
testes para a aprovação e da sua legalização.
Não há como ignorar a relevância de tal procedimento impactada na vida de
uma pessoa, seja de forma positiva ou negativa. Devido a precariedade dos estudos
que envolvam a manipulação nas células indiferenciadas, por ora deve ser evitada.
Porém quando for possível sua aplicação de forma eficaz e segura, deverá ser
analisada de forma minuciosa para graves doenças que inexistam tratamentos
convencionais ou que sejam inviáveis pela medicina atual. Nessa conjuntura,
possibilitará para as futuras pessoas, a garantia de viver dignamente como uma
pessoa comum. Prevalecendo dessa forma, a duas maiores primazias da carta
constitucional, a Dignidade da Pessoa Humana e o Direto à vida.
Como qualquer intervenção em uma célula embrionária, o código genético
modificado será transmitido de geração a geração. Portanto, foi abordado no presente
trabalho, o risco que esse fator traz ao patrimônio genético da humanidade. Ainda não
há conclusões concretas dos possíveis efeitos, porém qualquer prática ilegal e
abusiva no genoma humano deve ser altamente repudiada, refletindo em severas
consequências penais.
52

Ao gerar uma vida humana geneticamente modificada, deve-se garantir desde


a sua concepção a devida tutela embrionária. Evitando dessa forma, qualquer tipo de
abuso ou instrumentalização do ser humano. Prevalece então não somente a
dignidade do embrião e da futura pessoa, mas também da autonomia do livre
planejamento familiar dos pais, respaldado na paternidade responsável com o direito
de gerar um filho saudável.
Essa nova técnica trazida pela biomedicina poderá impactar diretamente na
evolução humana, uma vez que transmitirá o genoma modificado para futuras
gerações. Desde o surgimento do primeiro homem a evolução humana é constante,
esse progresso é inevitável. Contudo, esse procedimento terá de ser utilizada de
forma responsável para que não afaste o homem de sua natureza, e sim o aproxime.
53

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