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Resumo Este artigo registra a contribuição histórica para a reflexão bioética trazida pela
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), aprovada em 2005 pela
Unesco. Concentrando-se nos aspectos relativos à vulnerabilidade e à responsabilidade social, são
destacados e interpretados fatores orientadores para o Brasil. Em primeira mão é apresentado
um histórico dos encontros que precederam a consolidação da Declaração e sua promulgação.
O artigo conclui mostrando que a DUBDH trouxe valiosa contribuição ao âmbito das pesquisas
científicas e tecnológicas, reafirmando que embora devam gozar de liberdade criativa, sejam
orientadas por princípios éticos que respeitem claramente a dignidade humana, os direitos
humanos e as liberdades fundamentais, dispensando especial atenção aos vulneráveis.
94 A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco – contribuições ao Estado brasileiro
declaração (ainda que sem a pretensão de se ou de sua visão restritiva permeia na atualida-
tratar de narrativa histórica exaustiva e com- de o debate sobre vulnerabilidade 4.
pleta; assumindo a tangibilidade de tal emprei-
tada), bem como destacar e interpretar dois Entretanto, é ponto de concordância que a
temas específicos – a saber, a vulnerabilidade vulnerabilidade não é necessariamente a mesma
e a responsabilidade social – que exprimem entre todos os seres humanos, existindo indi-
concordância geral e irrestrita quanto à rele- víduos, grupos de pessoas ou mesmo países
vância para a sociedade brasileira. mais expostos por apresentarem certas fragili-
dades adicionais, determinadas por fatores
Vulnerabilidade e históricos ou circunstanciais momentâneos,
responsabilidade social que se encontram em condição de maior sus-
cetibilidade 2,3,5. Nessas circunstâncias não
Segundo Lorenzo, vulnerabilidade porta um apenas a igualitária proteção do Estado deve
sentido de susceptibilidade, ou seja, as caracte- ser requerida, mas medidas específicas e adi-
rísticas que nos deixam aptos a sermos lesados cionais de proteção necessitam ser implemen-
por um evento externo qualquer, e um sentido de tadas 2,3,4,5. A ação do Estado como promotora
risco, que se reporta à possibilidade de que a das garantias dos direitos humanos e das
trajetória desse evento nos encontre em seu liberdades fundamentais pelo reconhecimento
caminho 2. É consensual que a vulnerabilidade da dignidade da pessoa humana pode ser vista
é condição humana universal. Essa constata- como o alicerce para o desenvolvimento da
ção pode ser encontrada em argumentos dos necessária proteção aos vulneráveis.
mais diferentes estudiosos em todas as épocas.
Esses, complementarmente, entendem ser Em documentos internacionais que versam
necessária a igualitária proteção do Estado a sobre aspectos éticos relacionados a pesquisas
todos em decorrência dessa condição 3. com seres humanos, no âmbito específico do
sistema de ciência e tecnologia, são apresen-
Segundo Hurst, essa universalidade amplia tadas definições de vulnerabilidade. A fim de
em demasia as fronteiras do conceito e acar- melhor esclarecê-las esses documentos apre-
reta dificuldades para a consequente necessi- sentam uma lista dos chamados grupos vulne-
dade de proteção especial. Em paralelo, a ráveis. No Relatório Belmont estão relaciona-
visão reducionista da vulnerabilidade quando das as minorias raciais, aqueles em desvanta-
referida apenas à condição em que o sujeito gem econômica, os doentes e institucionaliza-
definitiva ou temporariamente se encontra dos 6. O documento Diretrizes Éticas Interna-
sem condições de defender seus próprios inte- cionais para Pesquisas Biomédicas envolvendo
resses, pode acarretar que alguns, que deve- Seres Humanos, do Conselho para Organiza-
riam efetivamente ser considerados como vul- ções Internacionais de Ciências Médicas
neráveis, não recebam proteção adequada. O (Council for International Organizations of
dilema da construção abrangente do conceito Medical Sciences – Cioms), identifica aqueles
96 A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco – contribuições ao Estado brasileiro
peito ao ideal da Unesco, o de diálogo verdadei- A primeira grande conquista do programa foi
ro, com base no respeito aos valores compartilha- a adoção da Declaração Universal do Genoma
dos e à dignidade de cada civilização e cultura. Humano e Direitos Humanos, em 1997, pela
Por meio do programa, a Unesco promove o Conferência Geral. A segunda, a Declaração
encontro de grupos ad hoc de especialistas de Internacional de Dados Genéticos Humanos,
reconhecida competência para reflexão sobre o adotada em 2003 11.
estado da arte e elaboração de recomendações
sobre os aspectos éticos, legais e sociais oriun- Declaração Universal sobre
dos das ciências da vida, particularmente a Bioética e Direitos Humanos –
genética, voltadas a orientar ações em campos construção da declaração
específicos da ética na ciência e tecnologia 11.
Em 2003, uma das resoluções da 32a sessão
O Comitê Internacional de Bioética (Interna- da Conferência Geral considerava oportuno e
tional Bioethics Committee – IBC) e o Comitê desejável fixar padrões universais no campo da
Intergovernamental de Bioética (Intergovern- bioética no que diz respeito à dignidade, aos
mental Bioethics Committee – IGBC) são a direitos e às liberdades humanas, no espírito do
estrutura desse foro de discussão. O IBC, pluralismo cultural inerente à bioética, e convi-
criado em 1993, é composto por 36 especia- dava o diretor-geral da Unesco a preparar
listas independentes que acompanham o pro- uma declaração de normas universais em
gresso das ciências da vida e suas aplicações, a bioética – a ser submetida à apreciação na
fim de assegurar o respeito pela dignidade e 33a sessão 11.
liberdade humana. É considerado o único
fórum global para reflexão bioética profunda O planejamento dos procedimentos adotados
de tópicos atuais, oferecendo subsídios para rumo a uma declaração universal apresentou
que cada país, particularmente seus legislado- três fases principais:
res, reflita sobre as escolhas da sociedade na
criação ou manutenção de leis nacionais, a. janeiro a abril de 2004: fase de consulta
decidindo entre diferentes posições 11. O escrita aos estados-membros, por meio de
IGBC, por sua vez, foi criado cinco anos mais questionário e debate entre organizações
tarde, em 1998, e é composto por 36 estados- intergovernamentais, organizações não
membros da Unesco, cujos representantes se governamentais e comitês nacionais de
reúnem pelo menos uma vez a cada dois anos bioética sobre a estrutura e abrangência
para examinar os conselhos e recomendações da declaração;
do IBC. O IGBC informa ao IBC suas opi- b. abril de 2004 a janeiro de 2005: fase de
niões e as submete, junto a propostas de ações redação do projeto, que envolveu seis reu-
do IBC, ao diretor-geral da Unesco, o qual as niões do grupo de redação composto por
repassa aos estados-membros, ao Conselho integrantes selecionados do IBC, duas
Executivo e à Conferência Geral 11. reuniões do Comitê Interagência ONU/
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sos quando comparados com regulamentos de versão do projeto de declaração. No início, foi
segurança de países desenvolvidos – deveriam feito um relato sobre as discussões realizadas
ser mencionados especificamente no artigo. pelo IGBC nos dias anteriores, realçando os
Adicionalmente, também recomendou que o principais focos de debate entre as delegações
artigo que tratava de práticas transnacionais dos diversos países. Na discussão entre os par-
deixasse claro a não aceitação de atos de biopi- ticipantes sobre o título sugerido – Universal
rataria, tráfico de órgãos e comércio de mate- Declaration on Bioethics and Human Rights –
rial científico de origem animal e humana. ficou claro que todos concordavam com a pré-
via retirada da palavra norma, mas não houve
O debate foi polarizado entre o Brasil, que consenso sobre a manutenção da expressão
defendia a posição dos países em desenvolvi- direitos humanos.
mento, e a Alemanha, que defendia a posição
dos países desenvolvidos. Segundo a delegação A delegação brasileira recomendou que a liber-
alemã, a Declaração deveria estar restrita a dade de pesquisa fosse mencionada no preâm-
questões relativas à biotecnologia e à biomedi- bulo do documento, sinalizando que estaria
cina, sendo considerada, portanto, imprópria a sendo levada em consideração, mas que não
permanência do artigo referente à responsabili- deveria ser tratada como um princípio, pois a
dade social e necessária a adequação dos artigos pesquisa deve ser limitada por considerações
que tratavam de repartição de benefícios, solida- éticas. Por sua vez, representantes do setor
riedade e cooperação internacional e papel dos governamental e do setor acadêmico de países
Estados, de modo a restringir suas orientações desenvolvidos recomendaram que a liberdade
aos aspectos biotecnológicos e biomédicos. de pesquisa deveria ser tratada como funda-
mental para o progresso da ciência. Outro
Ao término da reunião, foi aprovado o docu- posicionamento da delegação brasileira referiu-
mento Recomendações da 4ª sessão do IGBC, se à retirada da expressão sempre que possível
que, inter alia, solicitava a reconsideração de (wherever possible) do artigo referente à respon-
alguns pontos cruciais como autonomia, con- sabilidade social, que evidentemente enfraque-
sentimento informado, responsabilidade social, cia o compromisso com a igualdade e com a
avaliação de risco, repartição de benefícios, responsabilidade social declarada no mesmo.
práticas transnacionais e comitês de ética.
Grande parte do tempo foi tomado por refle-
Sessão conjunta do Comitê xões sobre a organização interna do projeto da
Internacional de Bioética e do Comitê declaração. Observações sobre a ordem, o
Intergovernamental de Bioética agrupamento e até mesmo os títulos dos arti-
gos consumiram diversas horas da sessão con-
Ocorrida nos dias 26 e 27 de janeiro de 2005, junta. A delegação brasileira interpretou o
essa reunião objetivou promover o debate fato como possível estratégia dos países desen-
conjunto entre o IBC e o IGBC sobre a 4a volvidos para desviar a atenção para pontos de
100 A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco – contribuições ao Estado brasileiro
conceituá-la como estudo sistemático, plural e Em seguida, Michael Kirby, satisfeito com a
interdisciplinar e resolução de questões éticas transparência e o diálogo estabelecidos, fez
levantadas pela medicina e pelas ciências da vida um relato sobre os trabalhos realizados até
e ciências sociais com implicações para os seres então, ressaltando a importante contribuição
humanos e para o relacionamento destes com a do artigo sobre responsabilidade social, que
biosfera, incluindo questões concernentes à dispo- reflete a situação particular vivida pelos países
nibilidade e acesso aos desenvolvimentos científi- em desenvolvimento e as discussões que atual-
cos e tecnológicos e suas aplicações 14. mente ocorrem em círculos especializados no
tema. Ainda sobre esse artigo, outras delega-
Sessão extraordinária do Comitê ções manifestaram apoio ao posicionamento
Internacional de Bioética brasileiro (como a Argentina, o Egito e a
Tunísia) e a China sugeriu que a responsabili-
Ocorrida no dia 28 de janeiro de 2005, essa dade social fosse também mencionada nos
reunião teve como abertura o pronunciamen- artigos sobre repartição de benefícios e coopera-
to do Koïchiro Matsuura, diretor-geral da ção internacional.
Unesco, que, reconhecendo a dificuldade de
preparar uma declaração efetivamente univer- Outros tópicos surgiram na pauta da reunião,
sal, parabenizou a todos pelo esforço. Em sua como o princípio da precaução, o consenti-
visão, a declaração deveria estabelecer um mento informado de crianças, a possibilidade
número de princípios e procedimentos que da existência de leis domésticas dos estados-
servissem de modelo para as legislações dos membros contrárias aos princípios da declara-
diferentes estados-membros, tais como enco- ção, e a responsabilidade com a biosfera.
rajar o diálogo entre todos os atores envolvi-
dos, buscar o consenso entre a pluralidade de Aprovação da Declaração
opiniões e apontar o caminho para medidas
concretas. Também citou com satisfação a Em fevereiro de 2005, a versão preliminar do
decisão de o IBC dar destaque à responsabili- projeto de declaração foi submetida à nova
dade social no contexto da proteção dos direi- consulta pelos estados-membros, por organi-
tos humanos, relacionando questionamentos zações governamentais e não governamentais
éticos com o bem-estar das gerações futuras. e por outras instituições. Em março, ocorreu
De acordo com Matsuura, levantando questões o primeiro encontro do comitê composto por
específicas de acesso aos cuidados de saúde, ali- especialistas governamentais, e mais uma reu-
mentação e água, a redução da pobreza ou a nião do IGBC. Em abril, o diretor-geral da
melhoria do ambiente, a proposta abre perspecti- Unesco apresentou relatório de progresso para
vas de ação que vão muito além da ética médica o Conselho Executivo. Em junho, com o
como tal, e aponta mais uma vez para a neces- segundo encontro do comitê de especialistas
sidade da bioética ser parte de um debate aberto governamentais e mais um do IGBC, a reda-
sobre o mundo político e social em geral 15. ção do projeto foi concluída. Em outubro, a
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no tópico de cooperação internacional, para resultados e produtos passem a vislumbrar a
um artigo específico na seção de princípios ampliação: do acesso a cuidados de saúde de
(Artigo 8 – Respeito pela Vulnerabilidade qualidade e a medicamentos essenciais; do
Humana e pela Integridade Individual), onde acesso à nutrição adequada e água de boa qua-
se destaca a necessidade de proteção de indiví- lidade; da melhoria das condições de vida e do
duos e grupos de vulnerabilidade específica, meio ambiente; da eliminação da marginali-
bem como de respeito à integridade individual. zação e da exclusão de indivíduos por quais-
quer motivos e; da redução da pobreza e do
Naturalmente, essa seção de princípios apre- analfabetismo.
senta, em adição, uma série de orientações
relevantes no sentido de preservar os vulnerá- Considerações finais
veis de possíveis danos oriundos de práticas
científicas e tecnológicas, como: a) a exigên- A Declaração Universal sobre Bioética e Direi-
cia inegociável de consentimento prévio, livre tos Humanos inicia com forte apelo à prote-
e esclarecido com base em informações ade- ção aos vulneráveis e estende-se, em seus
quadas; b) a garantia de que qualquer discri- princípios, ressaltando o respeito à autonomia
minação ou estigmatização constitui violação dos indivíduos e à necessidade de completos,
à dignidade humana, aos direitos humanos e claros e adequados esclarecimentos para a
às liberdades fundamentais e; c) a defesa do obtenção de consentimento dos indivíduos
compartilhamento de benefícios resultantes submetidos, entre outros, a pesquisas biomé-
de qualquer pesquisa científica e de suas apli- dicas. Dedica especial artigo à proteção de
cações tecnológicas. indivíduos ou grupos vulneráveis e avigora a
orientação de respeito à sua integridade.
O artigo 14 (Responsabilidade Social e Rechaça a atuação que reflita um duplo padrão
Saúde) merece o mérito de inserir na agenda e reafirma a responsabilidade social do Estado
bioética uma reflexão incômoda para os países frente à saúde. Esmera-se em declarar o prin-
centrais, contudo de grande importância para cípio do compartilhamento de benefícios e
os países periféricos. Seu registro no texto amplia toda a ótica de respeito e proteção ao
final da Declaração representa um marco na futuro da humanidade e do planeta.
ampliação do escopo conceitual da bioética,
que passa, com a aprovação da Unesco, a con- Em que pese o fato de que o Estado brasilei-
templar a estreita interrelação entre as práti- ro, contribuindo por meio das mais diversas
cas de promoção da saúde e as medidas que iniciativas, tem envidado esforços no sentido
almejam o desenvolvimento social. Agora, de se alcançar uma sociedade mais justa e
após aprovação da Declaração, os governos equânime, não resta dúvidas de que, mesmo
assumiram a responsabilidade de fomentar o não estando sozinho nessa empreitada, per-
progresso científico e o desenvolvimento tec- manecem na sociedade não só as diversidades
nológico de tal forma que no futuro seus desejadas (caso das biológica e cultural), mas
Resumen
104 A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco – contribuições ao Estado brasileiro
reuniones que precedieron a la consolidación de la Declaración y de su promulgación. El texto
concluye mostrando que la DUBDH trajo valiosa contribución al campo de la investigación
científica y tecnológica al afirmar que aunque éstos deben gozar de libertad creativa, se guían
por los principios éticos que respetan claramente la dignidad humana, los derechos humanos y
las libertades fundamentales, con especial atención a los vulnerables.
Abstract
This article records the historical contribution to the bioethical reflection brought about by the
Universal Declaration on Bioethics and Human Rights (DUBDH), adopted in 2005 by UNESCO.
Focusing on aspects of vulnerability and social responsibility, guidelines for Brazil are here
highlighted and interpreted. It is a first hand account of the meetings that preceded the
consolidation of the Declaration and its promulgation. The article concludes by showing that the
DUBDH brought valuable contribution to the field of scientific and technological research by
stating that although they should enjoy creative freedom, they must be guided by ethical
principles that clearly respect human dignity, human rights and fundamental freedoms, with
special attention to the most vulnerable sectors of society.
Key words: Vulnerability. Social responsibility. State. United Nations Educational, Scientific and
Cultural Organization.
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